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| XIII - SHCU | Tempos e Escalas da Cidade e do Urbanismo | paranoá 13

URBANIZAÇÃO EM TERRITÓRIOS LUSO-BRASILEIROS

A Fixação da Igreja no Território Cearense Durante o Século


XVIII: algumas notas

JUCÁ NETO, Clovis Ramiro


ANDRADE, Margarida Júlia Farias de Salles
PONTES, Alana Figueirêdo

Resumo Abstract:
O Ceará foi tardiamente colonizado. Durante o Ceará state, Brazil, underwent late colonization.
século XVIII, os boiadeiros e suas boiadas cru- During the eighteenth century, cattlemen and
zaram o território cearense. A fixação dos boia- their herds crossed its territory. The settlement
deiros – os sesmeiros do sertão –, aliada à da of these cattlemen (the hinterland’s sesmeiros or
Igreja, domesticando a população indígena que land grantees), as well as of the Church – which
resistia à expansão do criatório, e à participação domesticated the indigenous population that
do Estado português, com a fundação das vilas resisted the expansion of the breeding area –,
cearenses, significou a possibilidade de capitali- together with the role played by the Portuguese
zação em torno da atividade comercial da pecu- State (with the founding of villages in Ceará), re-
ária. A fazenda de gado espalhada no sertão foi sulted in capitalization around livestock farming
sede da ocupação. Ao lado de uma ou de outra as a commercial activity. The cattle farm scattered
fazenda, terras foram doadas aos santos pelos throughout the hinterland was the headquarters
próprios conquistadores para a realização dos of the occupation. Lands adjacent to farms were
atos religiosos, onde foram erguidas algumas donated to saints by the conquerors themselves
das primeiras capelas do território, outras foram for the performance of religious acts. Some of
edificadas nos primeiros aldeamentos. No correr the earliest chapels of the territory were erect-
do século, enquanto construíam edifícios religio- ed in these lands, whereas others were built in
sos em local previamente determinado pelo Bispo the initial settlements. During the course of the
de Pernambuco, o Estado Português cuidava de century, the Portuguese State demarcated par-
demarcar as áreas de freguesias. Possivelmente ish areas while constructing religious buildings
em decorrência da baixa rentabilidade da pecuá- on sites that had been granted by the Bishop of
ria, uma única freguesia colada fora fundada no Pernambuco. Possibly due to the low profitability
Ceará durante o século XVIII, confirmando que o of livestock farming, only one freguesia colada (or
território despertou pouco interesse para Coroa. parish which received ecclesiastical benefits) was
founded in Ceará during the eighteenth century,
Palavras-chave: Capitania do Ceará. Igreja. confirming that the territory aroused little interest
Estado português. Agentes Econômicos. in Portugal.

Keywords: Captaincy of Ceará. Church.


Portuguese State. Economic Agents.

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Urbanização em territórios luso-brasileiros. Paranoá, Brasília, no 13, 2014.

Introdução aldeamentos indígenas, significava o início da


O artigo discute os primórdios da fixação da constituição do patrimônio religioso no Ceará.
Igreja no espaço territorial cearense. Contribui
com a reflexão, mediante a identificação das
áreas do território e dos lugares da fixação, es- A fixação da Igreja no território
tabelecendo a relação entre a gênese dos aglo- A fixação da Igreja no Ceará também ocorreu
merados e a construção das primeiras ermidas tardiamente se comparada com o restante da
e capelas. Também evidencia a pouca importân- terra brasileira. O processo de conversão1 da
cia da capitania para o Estado português consi- capitania não foi diferente daquele empreendido
derando o número de freguesias coladas insta- em outras regiões brasileiras, antecedendo o
ladas no território. poder civil. Também como no restante do Brasil,
a conversão dos sertões do Ceará realizou-se
gradativamente, seguindo os caminhos do po-
A pecuária e a ocupação do território voamento, da construção de capelas pelos co-
No final do século XVII e nos primeiros anos do lonizadores e a consequente ampliação da rede
século XVIII, ordens régias portuguesas proibi- de freguesias no território.
ram a atividade da pecuária na faixa litorânea do
Nordeste brasileiro, reservando-a para a econo- Além daqueles que se fixaram temporariamente,
mia açucareira (JUCÁ NETO, 2012). Expulsos do vários religiosos foram proprietários de sesma-
litoral, os criadores de gado com suas boiadas rias ou estavam “integrados em congregações
partiram em direção à capitania do Maranhão beneficiadas com doações de terras” (NOBRE,
em busca de novas pastagens. 1980 , p. 246).

Durante o século XVIII, os boiadeiros e suas É possível presumir que, ao contrário da ativida-
boiadas cruzaram o território cearense. Em rela- de produtiva do açúcar, concentradora de mão
ção a outras áreas do Brasil, a ocupação do ter- de obra, a atividade extensiva da pecuária e sua
ritório foi tardia. A despeito de sua baixa produ- extrema dispersão tenham dificultado a instala-
tividade e pequena rentabilidade, a economia ção da Igreja.
pecuarista atribuiu sentido à ocupação e deu
forma e conteúdo à Capitania. A fixação dos O projeto jesuítico na Capitania do Ceará pren-
boiadeiros – os sesmeiros do sertão –, aliada à deu-se ao surgimento de algumas pequenas
da Igreja, domesticando a população indígena “missões anteriormente estabelecidas pelos ina-
que resistia à expansão do criatório, e à partici- cianos em Parangaba, Caucaia e Paupina, nas
pação do Estado português, com a fundação proximidades da Serra da Ibiapaba, [...] da Serra
das vilas cearenses, significou a possibilidade de Baturité [...] dos Cariris-Novos”, e na instala-
de capitalização em torno da atividade comer- ção do Real Hospício2 jesuítico em Aquiraz.3
cial da pecuária. A fazenda de gado espalhada
no sertão foi sede primeira da ocupação. As missões de Parangaba, Caucaia, Paupina,
das serras da Ibiapaba, de Baturité e dos Cariris
Ao lado de algumas fazendas, terras foram doa- Novos foram transformadas em vilas no reinado
das aos santos pelos próprios conquistadores de D. José I. Os novos topônimos impostos pe-
para a realização dos atos religiosos, onde fo- las autoridades portuguesas foram, respectiva-
ram erguidas algumas das primeiras capelas do mente, os de Arronches (Parangaba), Soure
território. Além das ermidas levantadas no entor- (Caucaia), Messejana, Vila Viçosa Real e
no das fazendas, outras foram edificadas nos
aldeamentos. 1. Tal como Fonseca (2011, p. 83), entendemos a Conversão
em uma dupla acepção: tanto a cristianização dos espaços
originalmente ocupados por povos “pagãos”, como a “ideia
Predominantemente, as primeiras celebrações
de sua metamorfose, de sua transmutação em territórios con-
se realizaram em altares móveis, frágeis, de ma- trolados por autoridades que exercem funções de cunho tanto
deira roliça; noutras situações as ermidas eram religioso como civil”.
simples palhoças de taipa de sopapo com uma
pequena cruz indicando a sua função. 2. Segundo Serafim Leite (1943, p. 73), “entende-se por Hospício
Inicialmente, inexistiam capelas construídas uma casa ou Residência Grande, cabeça de toda Missão, di-
ferente das casas das Aldeias. A ela se acolheriam os missio-
com alvenaria de tijolo. Assim como as fazendas
nários das Aldeias para repousar de vez em quando; e dela,
de gado, hoje são raras as capelas do século os missionários [...] iriam fazer missões às Aldeias e ao sertão.
XVIII. Seria também uma como enfermaria geral [...] A este conceito
primitivo acresceu mais tarde outro, de estudos, vindo a ser
A doação de terras para a construção das pri- este Hospício o primeiro Seminário e o primeiro estabelecimento
oficial de Latim e Humanidades no Ceará”.
meiras ermidas ao lado das fazendas de gado,
juntamente com a formação dos primeiros 3. O Real Hospício de Aquiraz foi destruído em 1854.

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Monte-Mor o Novo da América (Baturité). As pernambucano era solicitado para a criação de


missões dos Tremenbés, no rio Aracati-Mirim, e uma paróquia, ou freguesia. Se colada, a fregue-
a dos Pacajús, no rio Choró, tornaram-se res- sia teria um vigário dedicado unicamente a ela,
pectivamente Almofala e Monte-Mor o Velho da remunerado pela Coroa.
América (Pacajus), mas permaneceram como
simples povoados (NOBRE, 1980 , p. 242).
O lugar de alguns primeiros aldeamentos
De acordo com Nobre (1980, p. 211), antes mes- No final do século XVII, diante da sangrenta
mo da expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759, “guerra dos bárbaros”, o Rei de Portugal D. Pedro
a possibilidade de tornar o Ceará uma província II entendeu que a forma possível de pacificação
jesuítica já havia fracassado em virtude da cria- da região seria o “estabelecimento de aldeias de
ção das vilas, das freguesias, das dificuldades índios nos sertões de Açu, Jaguaribe e Piranhas”.
de comunicação no território, das brigas entre Seriam duas aldeias em cada sertão, segundo
sesmeiros e povoadores, das “deliberações das ordem régia do governador de Pernambuco
a u to r i d a d e s s u p e r i o r e s s e d i a d a s e m Caetano de Melo Castro datada de 6 de março
Pernambuco, Bahia” e em Portugal, “da insufici- de 1664 (NOBRE, 1980, p. 229). Possivelmente
ência de recursos para uma organização de nas aldeias fundadas nos últimos anos do sécu-
maior vulto” e em decorrência da baixa produti- lo XVII e por todo o século XVIII, uma rudimentar
vidade da atividade econômica da pecuária. capela fora construída.

O território cearense também foi pontuado por Em 20 de agosto 1696, o capitão-mor do Ceará
ermidas, capelas, aldeamentos pequenos e efê- Pedro Lelou5 escreveu, da Fortaleza de Nossa
meros que tiveram à frente, em sua maioria, pa- Senhora da Assunção do Ceará Grande, ao Rei
dres seculares, os Clérigos do Hábito de São de Portugal D. Pedro II, afirmando a inexistência
Pedro. Além dos oratorianos, carmelitas e capu- de sacerdotes e religiosos que assistissem aos
chinhos percorreram o território, aldeando a po- gentios na capitania cearense. O documento
pulação indígena. apresentou ainda um genérico e reduzido pano-
rama quantitativo dos aldeamentos existentes na
Como afirma Bueno (2009), durante o período capitania cearense.
colonial as instâncias de poder organizavam-se,
hierarquicamente, “em instituições irradiadas a [...] há quatro aldeias de gentio potiguaras. Estes
partir das ‘cidades reais’”. Essas instituições são domésticos e batizados, mas mal instruídos
“administrativas, jurídicas e eclesiásticas sobre- na fé por falta de haver nesta capitania
punham seus territórios no espaço”. Eram “ten- sacerdotes ou religiosos que lhes assistam e
táculos metropolitanos na distante ‘Conquista’, lhes ensinem a doutrina porque mal há um para
cumprindo papéis distintos” na lógica da ocupa- todas, ficando elas distantes uma das outra 2, 4,
ção territorial. 6 e 8 léguas e assim mais há uma nação de
tapuias jaguaribaras que estão aldeados, e
Algumas ermidas espalhadas pelo sertão, após alguns destes batizados, mas gentílicos no seu
a autorização do bispado de Pernambuco, foram trato e sem doutrina por alta de terem quem os
transformadas em capelas curadas, visitadas vá catequizando e exortando nela. Há outra
pelo capelão residente da capitania e dependen- nação de tapuias paiacus que assiste este na
tes das paróquias mais próximas. Com o tempo, Ribeira de Jaguaribe que pedem: se querem
no entorno de algumas dessas capelas se orga- aldear, e batizar seus filhos, que lhes deem
nizaram pequenas povoações, alterando a dis- sacerdotes para isso. E há outra nação de
persão reinante, vagarosamente, pela materiali- tapuias anacés que também pedem lhes deem
dade construída dos incipientes núcleos e a sacerdote para se aldearem a batizarem.
institucionalização destes.4 Com o aumento do
número de “pessoas de desobriga” ou o cresci- Até o início do século XVIII, quatro aldeamentos
mento do núcleo adstrito às capelas, o bispo encontravam-se sob os cuidados dos Clérigos
do Hábito de São Pedro no Ceará. Não nos foi
possível determinar suas durações. Dos quatro,
4. Como afirma Murilo Marx (1991, p. 18), a institucionalização dois estavam localizados na Ribeira do Jaguaribe
de “tantas e tão dispersas comunidades” se dava pela oficia- e dois nas proximidades da futura vila de
lização das ermidas “de sua capelinha visitada por um cura, o Fortaleza. Em 1696, os índios paiacus foram reu-
pela sua elevação um dia a matriz, elevação que significava a
ascensão de toda uma região inóspita [...] ao novo status de nidos na Aldeia de Nossa Senhora da Madre de
paróquia ou freguesia”. Ainda de acordo com o autor, o que se Deus (Aldeia Velha), a meia légua do monte
obtinha não era somente o acesso à assistência religiosa, mas
“o reconhecimento da comunidade de fato e de direito perante 5. Projeto Resgate. AHU-ACL-N-Ceara. Cx. 1. Doc. 37. Arquivo
a igreja, portanto perante o próprio Estado”. Histórico Ultramarino, Lisboa.

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Arerê, atual Itaiçaba, na Ribeira do Jaguaribe, A “Descrição de Pernambuco com parte da sua
sob a ação do clérigo oratoriano João da Costa história e legislação até o Governo de D. Marcos
(ROCHA, 2001, p. 22). Em 1697, os índios jagua- de Noronha em 1746 e mais alguns documentos
ribaras e anacés foram aldeados em Parnamirim, até 1758” (Quadro 2) apresentou a situação das
a sete léguas de Fortaleza, pelo clérigo João aldeias no Ceará em meados do século XVIII
Leite de Aguiar (NOBRE, 1980 , p. 231). No ano (ROCHA, 2001, p. 247). Segundo o documento,
seguinte, em 1698, Nobre faz referência a um o território cearense possuía nove aldeamentos.
aldeamento nas proximidades da futura vila de Os jesuítas encontravam-se basicamente no li-
Nossa Senhora da Assumpção, sob a atenção toral, excetuando a aldeia da Ibiapada, no alto
do também clérigo João Alvares da Encarnação da serra homônima. Já clérigos do Hábito de
(NOBRE, 2001, p. 231). Em 1699, o clérigo padre São Pedro achavam-se no processo de conver-
João da Costa cria um novo aldeamento (Aldeia são do sertão. Somente a aldeia de Miranda, no
Nova) na Aldeia de Nossa Senhora das Cariri, que dará origem à atual cidade do Crato,
Montanhas, localizada a 24 léguas da antiga encontrava-se sob a ação de um capuchinho, o
Aldeia Velha. Rocha (2001, p. 78) assevera que o frei Carlos Ferrara.
aldeamento provavelmente localizava-se onde
hoje se situa a cidade de Morada Nova. Em 1757, o Catálogo da Companhia de Jesus no
Brasil relacionou somente cinco aldeias no
Além da missão dos jesuítas na serra da Ceará: Parangaba, Paupina (Messejana),
Ibiapaba, definitivamente instalada por volta de Caucaia, Payacus e Ibiapapa (NOBRE, 1980, p.
1695, também no início do século XVIII identifi- 225).
camos a presença de padres da Companhia de
Jesus em missão na Ribeira do Jaguaribe.
Segundo Rocha (2001, p. 79), em 1700, o jesuíta Primeiras capelas e igrejas
João Guinzel6 reuniu índios baiacus na Missão Em alguns casos, após o erguimento das fazen-
de Nossa Senhora da Anunciada ou Anunciação7 das de gado, os sesmeiros requeriam permissão
(Aldeia do Jaguaribe), nas proximidades da atual ao bispado de Pernambuco9 para construção de
cidade de Tabuleiro do Norte. uma ermida, onde poderiam ouvir as missas ce-
lebradas por capelães. A permissão significava
Em 1702, de acordo com Geraldo Nobre (1980, assistência religiosa. As ermidas eram construí-
p. 238), estando em missão pelo sul do Ceará o das em terras doadas10 por um ou mais de um
padre João de Matos Serra, vigário colado da proprietário de terra, contribuindo para a forma-
vila de Aquiraz (STUDART, 1923, p. 303), fundou ção do patrimônio eclesiástico na capitania ce-
o Arraial Novo, sob a invocação de Nossa arense. Juntamente com a fixação dos boiadei-
Senhora do Ó, onde hoje é a cidade do Icó, e aí ros, a Igreja reafirmava, assim, sua presença no
aldeou os índios icós. território, instalando-se nas terras oferecidas.

Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, gover- Em 20 de agosto de 1696, o capitão-mor do


nador da capitania de Pernambuco, escreveu ao Ceará Pedro Lelou, em missiva ao rei de Portugal
rei D. João V, em 1739,8 apresentando uma re- D. Pedro II, afirmou que a capitania cearense
lação das missões e aldeias da capitania per- não possuía igreja matriz e nem curato.11 Que as
nambucana. Na capitania do Ceará, anexos à únicas capelas eram as das aldeias e da
capitania de Pernambuco, foram inventariados Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção.
treze aldeamentos (Quadro 1). Sete aldeias eram
ministradas por jesuítas, uma por capuchinho, O povo desta capitania não tem matriz, nem
quatro por clérigos. Para a vila de Fortaleza, não curato nem há mais igreja fora das aldeias que a
foi especificada a ordem ou irmandade que a capela desta fortaleza, e nela o capelão faz
administrava.

6. Segundo Serafim Leite (1043, p. 76), o jesuíta João Guinzel


é o mesmo padre jesuíta João Guedes, um dos fundadores do
Real Hospício de Aquiraz no Ceará. 9. As paróquias do Ceará eram subordinadas ao Bispado
7. Studart Filho escreveu que, em 1700, “o padre João Guedes, de Pernambuco e este, ao Arcebispado da Bahia, criado em
com ajuda do padre Vicente Vieira, fundou a Aldeia de Nossa 1676.
Senhora da Anunciada, onde reuniu ao Baiacus do Jaguaribe” 10. Em troca da doação de “terras para o santo, seu patrimônio
(apud Nobre (1980, p. 235). O padre João Guedes pertencia à ou da sua capela”, eram rezadas missas para o doador e sua
Companhia de Jesus (cf. LEITE , 1953, p. 94). família, em vida e após a morte (MARX, 1991, p. 26).

8. Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 55. D. 4767. Arquivo 1z Projeto Resgate. AHU-ACL-N-Ceara. Cx. 1. Doc. 36. Arquivo
Histórico Ultramarino, Lisboa. Histórico Ultramarino, Lisboa.

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Urbanização em territórios luso-brasileiros. Paranoá, Brasília, no 13, 2014.

Quadro 1
.

Fonte: Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 55. D. 4767.

Quadro 2

Fonte: NOBRE, 1980, p. 247.

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Urbanização em territórios luso-brasileiros. Paranoá, Brasília, no 13, 2014.

ofício de vigário causa de haver pouca Freguesias


obediência na infantaria por ele os querer reger Além da construção das ermidas e capelas, e
e meter-se em toda a governança, com sua elevação à condição de igreja matriz, o bis-
autoridade de vigário; e sendo só não pode po de Pernambuco cuidou de ordenar a demar-
acudir a toda obrigação; também se deve cação dos limites das freguesias13 cearenses,
atender nesta parte ao bem das almas. que seriam frequentemente percorridas por pa-
dres visitadores angariando fundos para os co-
Geraldo Nobre (1980, p. 242) assevera que, pro- fres portugueses.
vavelmente, “excluídas a do Forte de Nossa
Senhora da Assumpção e as das aldeias dos Em sua maioria, as vilas foram fundadas onde já
missionários”, a capela dedicada à Nossa existiam as sedes das paróquias, o que confirma
Senhora do Ó cujo patrimônio fora doado pela a precedência da organização religiosa quanto
família Montes na ribeira do rio Salgado, no lugar à organização político-administrativa (NOBRE,
da futura matriz de Nossa Senhora da 1980, p. 246). Durante o século XVIII, o número
Expectação do Icó, foi a primeira a erigir-se no de freguesias superou o número de vilas criadas
Ceará. A Carta Régia fundacional da Vila de no Ceará. A capitania alcançou o século XIX
Nossa Senhora da Expectação do Icó, de 1738, com dezessete freguesias e quatorze vilas.
determinou a criação de uma “nova Villa no Icó
junto aonde se acha a Igreja Matriz” (JUCÁ Em 17 de fevereiro de 1777, D. Tomás da
NETO, 2012). Encarnação Costa e Lima, bispo de Pernambuco,
apresentou ao rei de Portugal D. José I14 uma
Por volta de 1793, Manuel da Cunha Pereira, o relação de todas as igrejas paroquiais que per-
capitão comandante da Ribeira do Jaguaribe, tenciam ao bispado pernambucano – que se
pediu licença à rainha D. Maria I para edificar estendia desde a foz do São Francisco até
uma ermida em homenagem a Nossa Senhora Fortaleza, no Ceará, fazendo limite com o do
das Dores, em sua fazenda chamada Boqueirão, Pará, a oeste, e com o arcebispado da Bahia, ao
localizada na freguesia das Russas.12 O docu- sul –, abrangendo várias capitanias. Segundo o
mento expressa os procedimentos que provavel- bispo todas as capelas do bispado ou eram de
mente todos os detentores de terra, durante o
século XVIII, deviam ter seguido ao requerer ao [...] engenhos necessárias para a celebração do
bispado de Pernambuco a construção das pri- Santo Sacrifício da Missa e administração dos
meiras capelas no território cearense. A requisi- Sacramentos aos trabalhadores dos mesmos,
ção implicava a doação de terras para o orago ou são edificadas pelos povos circunvizinhos
correspondente à igreja, contribuindo para o com patrimônio competente, nas distancias
patrimônio religioso da capitania do Ceará. grandes das suas Matrizes para o referido fim
dos Sacramentos e Santo Sacrifício,
Diz Manoel da Cunha Per.a Cap.m Comand.e da conservando-se nelas hum Sacerdote com
Ribeira de Jaguaribe, Capitania do Ceará licença do próprio Parocho, sem alguns
Grande no Bispado de Pern.co que elle encargos de encapellados.
pertende edificar na sua fazenda do Boqueirão
Freg.a da Russas [...] hua Ermida a Nossa Snr.a De acordo com o documento, no território cea-
das Dores; a qual se faz necess.a para nella rense havia uma vigaria colada, dezenove amo-
ouvirem Missa o Sup.te e Sua Fam.a e igualm.te víveis e trinta e quatro capelas (Quadro 3).
os Povos circunvizinhos q’ distar da moradia do
Sup.te Seis legoas a Ermida mais próxima [...] a As Paróquias, “freguesias coladas” ou “colativas”
Sua Pied.e lhe conceda faculd. de p.a d.a possuíam “vigários colados”, “padres perpétuos”
fundação concorrendo a Licença do Ordinário a que eram nomeados pelo Rei e recebiam os “be-
patrimônio Canônico. nefícios eclesiásticos”, as “côngruas”. Já os
Curatos ou paróquias encomendadas possuíam
padres encomendados, temporários, “nomea-
dos pelo bispo e remunerados pela população”;
ou seja, não recebiam côngruas. Para

13. As freguesias “designavam o templo – a igreja matriz -, [...]


a povoação [...], o conjunto dos fregueses, e por fim, o território
paroquial, que incluía a povoação sede, áreas rurais e, por vezes,
sertões residuais” (FONSECA, 2011, p. 84).

12. Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_017. Cx. 12. Doc. 693. 14. Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 126. D. 9545.
Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.

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Urbanização em territórios luso-brasileiros. Paranoá, Brasília, no 13, 2014.

subsistirem as paróquias “cobravam da popula- “côngruas” em um território pautado pela baixa


ção as “conhecenças”, que eram taxas diferen- rentabilidade econômica. Como no restante do
ciadas (e em geral muito elevadas) para cada Brasil, o estabelecimento da estrutura eclesiás-
tipo de celebração ou sacramento” (FONSECA, tica no Ceará dependeu, primordialmente, da
2011, p. 83). A Coroa só criava freguesia colada iniciativa dos habitantes. O que diferia de outras
quando lhe convinha. regiões do território brasileiro foi a ausência de
capital local, associada à baixa rentabilidade da
A Instalação de Freguesias Coladas como medi- pecuária, que possibilitasse maiores investimen-
da de controle implicava investimentos por parte tos por parte dos habitantes, durante o processo
do Estado Português. Daí por que as sedes pa- de fixação da Igreja.
roquiais nos sertões do Brasil localizavam-se em
pontos estratégicos do território brasileiro. Em 1800, o visitador Mariano Gregório do
Como afirma Fonseca (2011, p. 83), a instalação Amaral correu a capitania demarcando os limites
“supunha a existência de povoamento estável e das freguesias cearenses e identificando suas
de certa prosperidade nas zonas que seriam in- matrizes e capelas. O espaço territorial do Ceará
cluídas dentro da freguesia”.15 encontrava-se definitivamente ocupado pela
igreja. Possuía dezessete freguesias e apresen-
Para efeito de comparação lembramos que, em tava uma rede eclesiástica com vinte e duas
1778, a região das Minas Gerais possuía cin- igrejas Matrizes e quarenta e sete capelas
quenta freguesias coladas (FONSECA, 2011, p. (Figuras 1, 2 e 3). A maioria das igrejas matrizes
97), São Paulo treze e o Ceará em 1775 apenas e capelas encontrava-se nas estradas coloniais
uma. A presença de uma única freguesia colada delineadas pelo engenheiro Silva Paulet16 em
na capitania cearense é indicativa do pequeno sua Carta Marítima e Geográfica da Capitania do
interesse da Coroa em relação ao Ceará, na me- Ceará de 1817.
dida em que implicava o pagamento das

Quadro 3

Fonte: Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 126. D. 9545.

15. Fonseca (2011, p. 105) justifica o elevado número pela im- 16. “Antonio José da Silva Paulet – Coronel do Real Corpo de
portância econômica da região mineradora, o que implicava a Engenheiros. [...] Por Dec. de 13 de Maio de 1811 foi nomeado
necessidade de “se ter “pastores” da confiança do rei na direção Ajudante de Ordens do Governo do Ceará, que assumiu a 19 de
das comunidades mineradoras, sobretudo durante o apogeu da Março de 1812” (STUDART, 1923, p. 278-279).
produção aurífera”.

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Urbanização em territórios luso-brasileiros. Paranoá, Brasília, no 13, 2014.

Figura 1: Mapa Geográfico da Capitania do Ceará, 1800.

Fonte: Mapa Geográfico da Capitania do Ceará. Autor: Mariano Gregório do Amaral [1800]. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Figura 2: Vetorização – mapa original. Mapa Geográfico da Capitania do Ceará, 1800.

Fonte: Mapa Geográfico da Capitania do Ceará Autor: Mariano Gregório do Amaral [1800]. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Figura 3: Reconstrução gráfica: Freguesias, Igrejas Matrizes e Capelas da Capitania do Ceará. Ano 1800.

Fonte: Mapa Geográfico da Capitania do Ceará. Mariano Gregório do Amaral [1800]. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro/Carta
Marítima e Geográfica da Capitania do Ceará de 1817. José da Silva Paulet. Lisboa, GEAEM.

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Urbanização em territórios luso-brasileiros. Paranoá, Brasília, no 13, 2014.

A Igreja, o Estado, os agentes econômi- formas e em tempos diferenciados, transforman-


cos e a população indígena: uma ação do o espaço.
integrada
A fixação da Igreja no Ceará foi orquestrada por Referências
párocos que ou, na maioria das vezes, acompa- BUENO, B. P. Dilatação dos confins: caminhos,
nhavam os primeiros desbravadores ou funda- vilas e cidades na formação da Capitania de São
ram aldeamentos, congregando a população Paulo (1532-1822). Anais do Museu Paulista,
indígena que resistia à expansão da pecuária. A São Paulo, v. 17, n. 2, 2009.
rede eclesiástica cearense precedeu a rede civil,
mas em termos jurídicos ficava submetida à au- FONSECA, C. D. Arraiais e Vilas D’El Rey: espa-
toridade portuguesa, assim como ocorreu no ço e poder nas Minas Setecentistas. Belo
restante do território brasileiro. No entorno das Horizonte: Ed UFMG, 2011.
primeiras fazendas de gado, com suas ermidas,
e dos aldeamentos a gênese urbana se faz pre- JUCÁ NETO, C. R. Primórdios da urbanização
sente. Como no restante do Brasil, a fixação – no Ceará. Fortaleza: BNB/UFC, 2012.
construção de capelas e Igrejas Matrizes – de-
pendeu basicamente dos habitantes locais. As LEITE, Pe. S. J. História da Companhia de
ações foram individuais ou associadas em Jesus no Brasil (séculos XVII-XVIII). v. 3. Rio de
irmandades. Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1943.

De maneira dispersa, até as primeiras décadas MARX, M. Cidade no Brasil: terra de quem? São
do século XVIII, a Igreja fixou-se nas proximida- Paulo: Edusp; Nobel, 1991.
des da foz do rio Jaguaribe, nas áreas adjacen-
tes à Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção, NOBRE, G. da S. História eclesiástica do Ceará.
na serra da Ibiapada – mais especificamente v. 1. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desportos,
onde hoje se encontra a cidade de Viçosa do 1980.
Ceará – e em alguns pontos do interior da capi-
tania, como ocorreu no lugar da atual cidade do ROCHA, L. M. da. Russas: 200 anos de emanci-
Icó. Somente a partir de 1738 a administração pação política. Fortaleza: Banco do Nordeste,
civil portuguesa fixou no sertão do Ceará, inicial- 2001.
mente nas proximidades do Icó. O Icó foi eleva-
do à condição de vila somente em 1738. Por STUDART, G. Barão de. Figuras do Ceará
todo o século XVIII, a dispersão da Igreja junta- Colonial. Revista do Instituto do Ceará. Tomo
mente com a fundação de vilas no território foi XXXVII. Fortaleza: Typ. Minerva, 1923.
paulatinamente sendo alterada.

Embora a Coroa não tenha proibido a instalação


de ordens religiosas na Capitania cearense,
como ocorreu na zona mineradora, no Ceará
não encontramos conventos e residências de
ordens regulares com porte arquitetônico como
as que foram construídas em outras regiões do
Brasil. Supomos que a não fixação de ordens
regulares em edificações de grande porte de-
veu-se às condições da conquista pautadas por
uma extrema adversidade: as secas, as brigas
por posse de terra entre os sesmeiros, a resis-
tência indígena à expansão da pecuária e pela
pequena produtividade e baixa rentabilidade da
economia pecuarista, atividade econômica que
atribuiu forma e conteúdo ao território.

Finalmente, afirmamos que a compreensão da


organização do espaço territorial do Ceará sete-
centista não pode desconsiderar as múltiplas
ações integradas entre a Igreja, os representan-
tes da atividade pecuária, a população indígena
e o Estado português. Os agentes envolvidos na
ocupação do território uniram-se de diversas

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