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A justiça como finalidade do governo: conflitos de jurisdição e o cotidiano da governação

no Estado do Brasil no século XVII.

Hugo André Flores Fernandes Araújo*

Resumo: No seguinte artigo analisaremos o governo da justiça, observando especificamente


as ações dos governadores gerais quando ocorriam conflitos de jurisdição. Para tanto faremos
uma breve reflexão sobre o papel da justiça como finalidade de governo. Analisaremos quais
os poderes e competências eram concedidas aos governadores gerais através de seu regimento
e como estes fidalgos faziam uso de suas atribuições.
Palavras-chave: justiça; governo geral; conflitos de jurisdição.

Abstract: In the following article we will analyze the administration of justice, noting
specifically the actions of the general governor when conflicts of jurisdiction occurred. To
this end we will briefly reflect on the role of justice as purpose of government. We will
analyze which powers and competences were granted to the general governor by his regiment
and how this fidalgos were using their assignments.
Key-words: justice; general government; conflicts of jurisdiction.

1- O papel da justiça na governação:

“Dar se lhes o premio ou castigo q. merecerem que he o que pedem todas as leis, e
razoes de bom governo...”1. Este foi o parecer redigido pelos membros do Conselho
Ultramarino em 1651 quando realizaram consulta sobre os motivos apresentados pelo Conde
de Castelo Melhor, governador geral do Estado do Brasil, sobre os atrasos da Armada da
Companhia Geral do Comércio. Tal “matéria” foi considerada de muita importância pelos
conselheiros, “por serem muy prejudiciaes consequencias as que seguem de estes gastos [com

* Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista CAPES-REUNI. Este trabalho
apresenta resultados da monografia de conclusão de Curso de História: ARAÚJO, Hugo André F. F. “He o que
pedem todas as leis, e razoes de bom governo”. Trajetória e governo do 2º. Conde de Castelo Melhor. Junho de
2011. Viçosa, MG.
1
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx. 11,D.1385
a Armada] se naõ apurarem com toda a verdade”2. O parecer formulado aconselhava o
monarca a averiguar os problemas apontados pelo Conde de Castelo Melhor para descobrir os
reais culpados do atraso da Armada, a fim de “se dar satisfaçaõ a justiça”3, função principal
do governo.
A justiça ao longo do antigo regime sempre representou prerrogativa régia de mais
importância, pois “o próprio ofício de reinar estava assimilado à actividade de ‘fazer justiça’,
e a imagem do rei que governa como se de um juiz se tratasse é extremamente recorrente na
literatura desse período” (CARDIM, 2003: 69). Nesse sentido entendemos e utilizamos a
definição de justiça apresentada por António Manuel Hespanha, sendo que esta é um

campo de atividade do poder – é a actividade (...) do príncipe, que consiste (...) na


resolução de uma questão envolvendo direitos distintos e contraditórios, de modo a
fazer justiça, scl., a atribuir a cada um o que lhe é devido. Mas a justiça não era
apenas uma das actividades do poder. Ela era – enquanto se manteve pura a sua
imagem tradicional – a primeira, se não única, actividade do poder. (HESPANHA,
1993:385)4

Ao analisar as situações de governo, que apresentam conflitos de jurisdição, é


imprescindível compreender a delegação de poderes régios aos governadores gerais, a
regalia5. Segundo Francisco Cosentino as funções delegadas aos governadores gerais
viabilizavam ao rei, através de seu representante, o exercício de poderes específicos que não
poderiam ser efetivados sem presença de um oficial régio imbuído com a distinção e as
prerrogativas de governar em nome do monarca, assim sendo,

Os regimentos e as cartas patentes dos governadores gerais estabeleceram as


regras de funcionamento dessa forma de governo e os poderes desses oficiais
responsáveis. Nesses documentos estavam as orientações que estabeleciam a
delegação dos poderes régios – à regalia – transferidos para os governadores.
(COSENTINO, 2011: 4)

2
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx. 11,D.1385
3
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx. 11,D.1385
4
Ressaltamos que a jurisprudência do Antigo Regime divida a justiça em campos, de acordo com a função
específica à qual ela se destinava, dessa forma havia justiça comutativa, justiça distributiva e justiça vindicativa,
das quais não trataremos neste artigo, para mais informações Cf: CARDIM, 2003:71.
5
Segundo definição de D. Raphael Bluteau, Regalia “he um sinal exterior, demonstrativo da authoridade &
Magestade Real. As Regalias essenciaes saõ fazer leys, investir Magistrados, eleger Ministros dignos, & a seus
tempos publicar guerra, & fazer pazes”. BLUTEAU, s/d, vol. VII: 193.
2
Neste sentido, a regalia imbuia os governadores gerais de poderes régios, entre eles as
prerrogativas próprias da justiça. Os poderes concedidos ao governador geral no regimento,
através das instruções expressas em capítulos, são dotados de um caráter “costumeiro”
(Cf:CARDIM, 2003: 73-74), como se observa no 3° capítulo do regimento:

3º Tanto q chegardes à Bahia presentareis aos goves q agora servem a patente q vos
mandey passar do cargo de Capitão geral de mar e terra daquelle estado, e os mais
despachos q levais para logo vos houvessem de entregar o governo q se fará na
forma acustumada, sendo prezente as pessoas q neste alto se achão ordinariamte, e
da entrega se farão autos q se mi hão de enviar para todo o tempo constar q se
procedeo conforme a ordem q sempre se usou em altos semelhantes.6

Feitas essas caracterizações iniciais, passaremos a análise dos poderes do governo


geral, bem como o estudo de alguns conflitos de jurisdição e das práticas de justiça que
permearam essas ações políticas.

2- “Fareis guardar o Regimento”: delimitação das jurisdições e poderes

As considerações que apresentaremos a seguir são delimitadas para a compreensão da


dinâmica administrativa do governo geral na América lusa, no século XVII, após a
restauração da dinastia bragantina.
Faz-se necessária uma breve caracterização da monarquia portuguesa no século XVII,
pois esta possuía atributos corporativos, polissinodais e jurisdicionais. Segundo António
Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier a compreensão da “concepção corporativa da
sociedade” (XAVIER; HESPANHA, 1998: 114) é herdada do imaginário medieval e católico
onde a sociedade era entendida como um corpo. Neste “corpo social” o monarca exercia a
função de cabeça, ordenar as demais partes do corpo, como governante garantindo a unidade
“das partes”, ou seja, “manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um
aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qual o seu estatuto
(‘foro’, ‘direito’, ‘privilégio’); numa palavra, realizando justiça.” (XAVIER; HESPANHA,
1998:115)

6
PR-AvBA:AHU_ACL_CU_005.Cx.1;D.40.
3
Aliado a esse entendimento da divisão social vigorava a compreensão da repartição do
poder entre as várias partes do “corpo”, pois de acordo com a cultura política então vigente
“um poder político ‘simples’, ‘puro’, não partilhado” (XAVIER; HESPANHA, 1998: 114) era
rejeitado pelos corpos sociais constituintes da monarquia, porque “tão monstruoso como um
corpo que se reduzisse à cabeça, seria uma sociedade, em que todo o poder estivesse
concentrado no soberano” (XAVIER; HESPANHA, 1998:114). Estes traços corroboram o
entendimento diferenciado que se desenvolve sobre a monarquia lusitana, pois como podemos
perceber os próprios sujeitos históricos buscavam vias de manifestação de seus interesses, não
assistindo passivos a imposição de um modelo de governo, como classicamente foi retratado
por aqueles que enxergam uma concepção absolutista de governo na América portuguesa.
Pedro Cardim observou que as relações de negociação do poder eram incontornáveis
ao monarca, uma vez que

neste ambiente social juridizado a sua relação com os corpos obedecia à mesma
matriz ético-jurisdicional, pois entre o rei e cada um deles existia como que um
acordo tácito que consagrava a capacidade política dos diversos corpos do reino:
tal acordo habilitava esses corpos a participar do governo através do dispositivo
polissinodal, ou seja, mediante a rede de conselhos e de tribunais, cada qual
especializado em lidar com a sua respectiva área jurisdicional. (CARDIM, 1998:
19-20)

O referido dispositivo polissinodal era expresso na participação dos corpos sociais,


seja através das cortes, seja através dos diversos conselhos governativos, assim sendo
“podemos afirmar que o universo político deste período apresentava dois elementos
particularmente estruturantes: a pluralidade jurisdicional por um lado, e o imperativo de
consulta das instâncias representativas, por outro” (CARDIM, 1998: 22). Dito de outra forma,
a repartição do poder, expressa no governo por conselhos, garantia a representação dos corpos
sociais, de modo que

a administração central estava organizada de acordo com um modelo polissinodal,


em que cada conselho ou tribunal (mas mesmo cada magistrado) podia opor ao rei,
de forma praticamente incontornável por este, as suas próprias competências. (...) A
monarquia não tinha, portanto, sobre o seu próprio aparelho político senão aquele
mesmo poder de supervisão de que gozava sobre os poderes alheios. (XAVIER;
HESPANHA, 1998: 129)
4
O funcionamento deste modelo administrativo é verificado no caráter jurisdicional que
a monarquia lusitana assume, visto que a atribuição de poderes implicava na regulação do
exercício dos mesmos, atributo por excelência do campo da justiça, ou seja, “de acordo com a
teoria corporativa do poder e da sociedade, a função suprema do rei era ‘fazer justiça’, isto é,
garantir os equilíbrios sociais estabelecidos e tutelados pelo direito, de que decorria
automaticamente a paz” (SUBTIL 1998: 141).
Nesse sentido, entendemos que as instruções de governo recebidas pelos governadores
gerais em seus regimentos eram manifestações do caráter jurisdicional da Monarquia Lusa.
Francisco Cosentino infere que estes regimentos “combinavam instruções que procuravam
atender a necessidades conjunturais com orientações que eram permanentes” (COSENTINO,
2009: 69). O governo geral recebeu poderes e jurisdições que permitiam ao rei português “se
fazer presente”, ainda que distante, uma vez que os poderes delegados aos governadores
gerais permitiam que estes, como representantes da figura régia, intermediassem a relação do
monarca para com seus súditos.
Sendo assim, o governo geral é entendido como “um ofício régio superior que detinha
delegações de jurisdição inferior” (COSENTINO, 2009: 78), pois é um ofício superior na
medida em que o governador geral exerce funções próprias do monarca, contudo, sua
jurisdição é de qualidade inferior por ter suas ações submetidas à supervisão régia e dos
conselhos palatinos e ainda por seu tempo de permanência no ofício estar condicionada a
determinações do monarca, como é possível observar no 2º capítulo do Regimento de António
Teles da Silva: “enq durar o vosso governo não sahireis daly pa nenhuma parte salvo se
tiverdes expresa ordem minha pa fazerdes”7, e na Carta patente8 do Conde de Castelo Melhor:
“Govor e Capm Geral do Estado do Brazil que servira por tempo de tres annos & o mais q eu
o houver por bem e nam mandar o contrario”9.
Os poderes do oficio de governador geral residiam em três campos efetivos de
atuação: justiça, fazenda e milícia. Estas competências estão especificadas nos sessenta
capítulos que compõe o regimento. Ressaltamos que os governadores gerais possuíam relativa
autonomia para tomar decisões de governo, a despeito da pormenorização dos capítulos dos

7
PR–AvBA: AHU_ACL_CU_005.Cx.1;D.40
8
Como Francisco Cosentino apontou as cartas patentes “eram instrumentos régios de nomeação para os diversos
ofícios e para transferência de poderes. (...) são os instrumentos usados pelos monarcas para realizar a provisão
do ofício de governador geral.” (COSENTINO, 2009: 73)
9
SM-BNRJ – 1, 2, 5
5
regimentos (Cf: HESPANHA, 2010: 60), uma vez que as instruções destes indicavam que “os
casos omissos delas deveriam ser decididos pelo governador, depois de consultar o bispo, o
chanceler da Relação da Bahia e o provedor da Fazenda Real” (HESPANHA, 2010: 61). O
57º capítulo do regimento instruía o governador geral se aconselhar com as outras jurisdições
presentes no Estado do Brasil, contudo a decisão final sobre o procedimento cabia ao
governador geral:
provereis nellas como ouverdes mais por meu serviço e sendo as tais couzas de
qualidade q convenha ter se nellas segredo, as praticareis com quais quer das ditas
pessoas q for prezente q vos melhor parecer e se nas couzas assy praticardes a tal
pessoa ou pessoas fordes differentes nos pareceres se fará cumprir o em q vós vos
resolverdes e as couzas q assy comunicardes fareis por escrito com declaração dos
pareceres das pessoas com quem os praticardes e assente q sobre ellas tomardes. 10

A existência e funcionamento das diversas jurisdições demandavam um ofício que


preservasse seus poderes e garantisse o respeito aos espaços de atuação das mesmas, cabia,
portanto, ao governador geral intermediar os conflitos que surgissem; e se o governador
estivesse envolvido no conflito, as instancias superiores como o Conselho Ultramarino,
deliberavam sobre o conflito e formulavam um parecer ao monarca sobre a situação e
remetiam a decisão de volta à América lusa. Nesse sentido, ressaltamos a importância
acentuada dos poderes que pertenciam ao ofício do governo geral nas questões de justiça.
Essa importância é apresentada claramente na instrução do 37º capítulo do regimento:

A Justiça he de tão grande e particular obrigação minha e tão necessria para a


conservação e acrescentamto dos estados q tudo o q na administração della vos
encomendar e encaregar será mto menos do q desejo porem confio de vos q com tal
cuidado procurareis se faça inteiramte q não se me haja de vos por bem servido mas
por satisfeito em tudo o q toca a esta obrigação e seja meyo com q aquelo estado va
cada vês em augmento.11

Após a caracterização das jurisdições e dos poderes investidos no ofício do governo


geral, passamos a análise de situações de governo, onde o regimento foi norteador dos
procedimentos de governação utilizados para resolução dos choques de jurisdição.

10
PR–AvBA: AHU_ACL_CU_005.Cx.1;D.40.
11
PR–AvBA: AHU_ACL_CU_005.Cx.1;D.40.
6
Ressaltamos que a utilização dos regimentos é uma característica fundamental do viés
jurisdicional da monarquia portuguesa, uma vez que não compreendemos as jurisdições na
América Portuguesa como rigidamente hierarquizadas, mas como justapostas
institucionalmente, conforme o modelo sugerido por António Manuel Hespanha (Cf:
HESPANHA, 2010: 57), de modo que cabia ao governador geral zelar pelo respeito e
coexistência das mesmas. Dessa forma os regimentos eram fonte de jurisdição, pois

Todos os regimentos do governo-geral estabeleceram regras que regulamentaram o


relacionamento entre a jurisdição régia, representada pelos governadores gerais,
com a eclesiástica, a do Tribunal da Relação e a dos governadores das capitanias.
Esses regimentos tiveram uma grande abrangência temporal e incorporaram as
experiências vividas pela colonização e pela monarquia portuguesa. A análise
comparativa desses regimentos nos permite perceber uma alargamento do
‘protagonismo’ dos governadores-gerais em relação as outras jurisdições com as
quais conviviam estabelecendo relações de subordinação. (COSENTINO, 2010:
412.)

3- Provimento de ofícios e conflitos de jurisdição

Em cinco de outubro de 1651, o Conselho Ultramarino realizava uma consulta sobre


um conflito de jurisdição acerca do provimento de ofícios. Nessa consulta se discutia o que
António Camelo, morador da cidade de Salvador, apresentava como petição para o cargo de
escrivão da ouvidoria geral, ofício que estava vago pela morte de João Borges Escovar.
António Camelo argumentou em seu pedido que há vinte e quatro anos servia no Estado do
Brasil em ofícios de guerra e outros de “importância”, além de ressaltar que era parente do
“defunto”, pretendendo o ofício “para favorecer a viúva”12. Este afirmou em sua petição que
o governador geral não possuía “Jurisdição para prover propriedades de officios, nem as
serventias”13, uma vez que este, estando provido no referido ofício, foi impedido de exercê-lo
pelo Conde de Castelo Melhor. O governador geral justificava sua ação, pois já havia provido
“Joaõ Pereira Bacelar, em vertude de hua carta de VMgde de recomendaçaõ”14. António
Camelo pedia a efetivação da mercê que lhe fora impedida pelo Conde de Castelo Melhor,

12
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx.12.D.1440
13
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx.12.D.1440
14
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx.12.D.1440
7
fato que gerou discussão no Conselho Ultramarino, gerando um parecer ao Monarca que
retomava itens do regimento. O parecer formulado pelos conselheiros era favorável a António
Camelo, indicando que o regimento não concedia aos governadores gerais o monopólio para
prover serventia dos ofícios, mas “He concedido por elles somte, poderem os govres prover as
serventias em quanto VMgde naõ mandar o contro e ainda com obrigação de avizarem das q
provem, pa VMgde ”15.
Em anexo à consulta constavam as cópias dos capítulos 8º e 41º do regimento do
governador geral, essas instruções especificavam as questões relativas ao provimento de
ofícios. O 8º capítulo indica que o governador geral ao constatar que haviam vagas dos ofícios
de justiça e fazenda, poderia prover pessoas qualificadas para aquela função “ate se
prézentarem pessoas q tenhaõ provizões minhas para haverem de servir os taes officios”16,
instrução que o governador parece ter negligenciado e por conseqüência originando essa
discussão no Conselho Ultramarino. O 41º capítulo repete basicamente a instrução do 8º,
acrescentando apenas que o governador deveria prover no ofício as pessoas mais aptas, com
ênfase de que ao fazê-lo deveria dar conta ao rei “dizendo o cargo q vagou, e porquem, se
deixou filhos, e em que o provestes” 17.
Não encontramos documento que indicasse a efetivação do parecer remetido pelo
Conselho Ultramarino ao Monarca, mas consideramos salutar identificar os procedimentos
que a Monarquia utilizava para resolver questões conflituosas de ordem jurisdicional: a
análise dos conselheiros visava estabelecer o respeito à jurisdição prevista pelo regimento; as
consultas eram elaboradas tendo em vista as instruções regimentais para determinar como
resolver os conflitos.
Na consulta do Conselho Ultramarino de 13 de Outubro de 1651, encontramos uma
situação semelhante a que analisamos acima. Luis de Mello Pinto fazia petição ao Monarca
para que se lhe restituísse a companhia na qual deveria servir como Sargento-mor, este foi
destituído desta companhia pelo governador geral, Conde de Vila Pouca de Aguiar, e ao
verificar-se o equivoco do governador, o ofício lhe foi restituído, porém em outra companhia.
Luis de Mello Pinto não concordou com essa ordem, “por querer antes servir com os

15
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx.12.D.1440
16
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx.12.D.1441
17
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx.12.D.1441
8
soldados que por seu respeito sentaraõ praça na dita sua companhia, e por naõ largar o
serviço de VMgde o foi continuar e noutra compa”18.
O parecer formulado na consulta foi favorável a Luis de Mello Pinto, aconselhando o
monarca a ordenar o governador geral restituir o sargento-mor a sua antiga companhia, onde
novamente os conselheiros fizeram referência a capítulos do regimento do governador geral,
além de enfatizar que os governadores do Ultramar não andavam cumprindo as instruções dos
regimentos19.
Tal como na consulta que analisamos anteriormente os conselheiros enviaram cópias
dos mesmos capítulos do regimento e ainda remeteram a cópia de um alvará datado de três de
20
Dezembro de 1621 . Neste alvará o Monarca comunicava estar ciente que os governadores
das partes ultramarinas, não apenas o Brasil, não “guardavam” as instruções do regimento
sobre o provimento das “serventias”, pois estes deveriam ocupar esses ofícios vagos com
pessoas qualificadas mas em caráter provisório, enquanto não chegasse a ordem régia
provendo o cargo segundo os meios costumados e previstos no regimento. A redação do
alvará tem como finalidade reforçar as instruções existentes no regimento, e por isso os
21
conselheiros remetem a cópia deste para o monarca . Como temos salientado, quando os
governadores gerais excediam o limite de suas jurisdições, as partes “lesadas” recorriam
contra essas atitudes apelando ao monarca. Como resultado estabelecia-se uma discussão
sobre como resolver o conflito respeitando a justiça, o que se dava através da consulta aos
seus conselhos governativos, neste caso o Conselho Ultramarino.

4- Considerações finais:

Destarte, buscamos enfatizar como poderes do governador geral no campo da justiça


eram fundamentais para o funcionamento do governo na conquista, dessa forma ressaltamos a
importância das ações de governo que visavam à conservação das jurisdições.

18
PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx.12.D.1443
19
Cf:PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx.12.D.1443
20
A data do alvará nos indica que este foi formulado durante a União Ibérica. O fato deste alvará ser lembrado e
utilizado como norteador da formulação de um parecer por um alto Conselho régio, como Ultramarino, torna
mais uma vez evidente a incorporação de práticas castelhanas no modo bragantino de governar, estando em
acordo com o que os estudos recentes têm indicado (Cf: COSENTINO, 2011; COSENTINO, 2009: 240-241).
21
Cf: PR-LF:AHU_ACL_CU_Cx.12.D. 1444.
9
Compreendemos também que os conflitos de jurisdição que analisamos são uma característica
intrínseca dessa conformação do Império Luso, pois

existia, no seio da coroa, uma série de organismos – conselhos e tribunais – cuja


jurisdição derivava, em parte, de um ato constituinte do rei, embora também de sua
própria auto-organização. Essa configuração peculiar explica a existência, no
quadro da coroa, de órgãos concorrentes na tramitação dos assuntos, o que não
raro produzia conflitos de jurisdição. (BICALHO, 2010: 347)

Buscamos evidenciar a complexidade das relações que envolviam a governação, sendo


que entendemos nessa sociedade tradicional de antigo regime, fortemente pautada em práticas
e usos costumeiros, as ações de governo são manifestações desta cultura política tradicional.
Portanto nossa análise, com todas as suas limitações, sinaliza para a importância das questões
advindas do estudo das relações entre os poderes e jurisdições existentes na América Lusa,
uma vez que julgamos ser imprescindível analisar as relações dos governadores gerais com os
outros oficiais régios e com as elites locais, para uma melhor compreensão das dinâmicas
políticas e sociais daquela sociedade.
Contudo, enfatizamos que cabe às análises deste tipo um esforço de buscar a
apreensão da cultura política desta sociedade típica de Antigo Regime, pautada no direito
costumeiro, a fim de não incorrer nos erros comuns de um anacronismo, que projeta termos e
conceitos inexistentes ao período (como burocracia, corrupção e patrimonialismo), ou de
uma incompreensão da dinâmica político-social existente, que leva a alguns autores a concluir
que a administração era confusa, ou que houvesse ausência de métodos e de racionalidade por
trás das ações de governo.

Fontes e obras de referência:

BLUTEAU, D. Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, Rio de Janeiro, Universidade do


Estado do Rio de Janeiro, 10 vols. s/d, cd-rom.

Projeto Resgate - Barão do Rio Branco:


PR: Projeto Resgate
LF: Luiza da Fonseca – Caixa 11, Doc.1385; Caixa 12, Doc.1440-1441, 1443-1444.
10
Av: Avulsos BA: Bahia – Caixa1, Doc.40.

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro:


SM-BNRJ: Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro - 1, 2, 5

Bibliografia:
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administração da monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos.” In: FRAGOSO,
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CARDIM, Pedro. “As cortes na política do século XVII”. In: Cortes e Cultura Política
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CARDIM, Pedro. “‘Governo’ e ‘Política’ no Portugal de seiscentos: o olhar do jesuíta
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COSENTINO, Francisco Carlos C. Governadores Gerais do Estado do Brasil.Séculos
(XVI-XVII): Ofício, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume; Belo
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XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. “A representação da
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