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ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: (RE)PENSANDO A INCLUSÃO

ESCOLAR

Juliana Fernanda de Barros - Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul -


UFMS/CPAR - julianafernanda@msn.com
Profa. Msc. Daniela Bridon dos Santos Reis Brandão - Fundação Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul - UFMS/CPAR - danibridon@gmail.com

INTRODUÇÃO

“Porque escola é coisa de criança, no final das contas se esses meninos e


meninas têm problemas mas estão na escola seus atos viram arte” .
Alfredo Jerusalinsky (1999)

Durante muitos anos, o modelo de educação especial adotou instituições


especializadas para alunos com necessidades educativas especiais, propondo um
atendimento mais específico para essas crianças. Aos que não se ajustavam à rapidez,
eficiência, produtividade e obediência valorizadas pela pedagogia, o envio a classes
especiais era a única alternativa para apartar os incapazes do restante do sistema escolar
(Patto, 2005). No entanto essa prática contribuiu para a segregação de crianças em
escolas especiais ou a exclusão de qualquer modalidade de ensino, onde a rotulação e o
estigma faziam face a vida dessas crianças, que sem direito ao ensino regular, eram
excluídas da sociedade.
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948, o Estado
passou a garantir o direito a todas as pessoas à educação. Em 1961, o atendimento
educacional às pessoas com deficiência passa a ser fundamentado pelas disposições da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN, Lei nº. 4.024/61, que orienta
que pessoas com deficiência sejam atendidas dentro do sistema geral de ensino (Brasil,
2003). A partir dessa lei, outras leis federais, estaduais e municipais foram formuladas
para efetuar o compromisso social com a inclusão escolar.
Assim, a educação inclusiva assume espaço central no debate acerca da
sociedade contemporânea e do papel da escola na superação da lógica da exclusão,
gerando vários questionamentos a essa prática. A principal questão gira em torno da
formação dos professores que, com a grande demanda da inclusão, acolhem em suas
salas alunos com as mais diversas dificuldades e deficiências sem receber, no entanto,

uma formação, orientação, apoio ou suporte adequado para trabalhar com o aluno
diferente.
Neste contexto atual, em que a inclusão se tornou um imperativo nas escolas, o
acompanhamento terapêutico se torna uma modalidade de atendimento cuja proposta é
auxiliar as crianças que apresentam dificuldades graves no desenvolvimento e que
podem se beneficiar justamente da inclusão escolar para sua constituição subjetiva.
Assim, o acompanhamento terapêutico vem aliar-se a inclusão escolar como uma
prática facilitadora na inserção do aluno em uma sala regular, oferecendo suporte à
instituição que o abriga, ao professor e, principalmente, ao aluno incluso.
Desta forma, buscamos neste artigo, através do instrumento teórico-técnico da
psicanálise de orientação lacaniana, refletir acerca da inclusão escolar de crianças com
Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD), mais especificamente de uma criança
de quatro anos com suspeita de autismo, matriculada regularmente em uma escola de
Educação Infantil do município de Paranaíba/MS.

ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO

O acompanhamento terapêutico (AT) é uma modalidade de tratamento e


atendimento em saúde mental, que se dedica ao cuidado de pessoas em sofrimento,
agudo ou crônico, oferecendo escuta singular ao sofrimento psíquico e apostando nos
laços sociais. Vem sendo utilizado cada vez mais no tratamento psicanalítico com
crianças com Transtorno Global do Desenvolvimento cuja proposta é auxiliar os
pacientes que apresentam distúrbios graves, e que estão à margem da sociedade, em sua
reinserção social. Segundo Gavioli, Ranoya e Abbamonte (2002), esse nome é dado
oficialmente aos profissionais que trabalham nas ruas, fora de qualquer instituição, e
tem sido um termo utilizado, por empréstimo, para identificar esta prática na escola.
O AT está ligado, assim, a várias áreas de atuação, e é realizado por
profissionais de diversas formações e referencias teóricos para se fundamentar. Por isso,
não há uma estratégia definida de ação, pois a estratégia é um cenário que se pode
modificar em função das informações, dos lugares, dos acontecimentos, dos imprevistos
que sobrevenham no curso da ação. Assim, a “estratégia é a arte de trabalhar com a
incerteza”, onde o AT pode ser pensado como uma estratégia de pesquisa-intervenção
que vai sendo construída a partir de experimentações (Silva e Silva, 2006).

Hoje, o AT tem sido utilizado cada vez mais como recurso auxiliar no processo
educacional de crianças com graves distúrbios de desenvolvimento. Algumas escolas
regulares da rede particular e pública têm desenvolvido projetos de inclusão de crianças
com deficiência ou com transtornos globais do desenvolvimento, onde o trabalho do AT
entra como um agente facilitador do processo inclusivo. Através de seu trabalho, o AT
cria as condições para que a criança possa frequentar a escola, beneficiando-se do
processo educativo (Assali, 2006). No interior da escola, o trabalho do AT consiste em
um acompanhamento da criança durante todo o período escolar, dentro e fora da sala de
aula, procurando integrá-la ao grupo de crianças, assim como envolvê-la nas atividades
propostas pelo professor (Fráguas, 2002).
Segundo Gavioli, Ranoya e Abbamonte o AT realiza a função de ser porta-voz
do aluno diferente, indicando para ele e para os outros a possibilidade de ser
reconhecido não só como aquele que "bagunça, atrapalha e detona", e colocando em
palavras os atos bizarros e abruptos que a criança manifesta (Gavioli, Ranoya e
Abbamonte, 2002, p.03). Essas nomeações se direcionam no sentido de conter o
imaginário que estas ocorrências desencadeiam no professor e nos outros alunos. Neste
sentido, a presença de um outro funciona como interlocução, fazendo a mediação entre
o ideal do professor e a realidade que o aluno lhe apresenta. O acompanhante funciona,
então, como testemunha do que acontece nas situações cotidianas que o aluno vivencia
na escola, possibilitando o reconhecimento de suas produções, assim como de suas
conquistas. Segundo Porto e Sereno, o "[...] acompanhante interpreta o sujeito nos
momentos em que a concretização da montagem da cena se interrompe e exige sua
intervenção através de ações" (1991, citado por Silva & Silva, 2006, p. 12).
Tafuri (2006) ressalta que este profissional deve estar na escola de forma bastante
peculiar: atento à criança, olhando-a e dando-lhe colo apenas quando é solicitado. A
criança deve ser repensada e imaginada pelo outro, para além da sua doença ou
estereotipia, compreendendo o seu apelo antes de tentar interpretá-la. Assim:
ás vezes é suficiente um pouco de humor ou de uma
palavra capaz de trocar as coisas triviais da vida (quer
dizer, desprendida de toda vivência persecutória) para
desdramatizar uma situação e permitir ao discurso do
sujeito recomeçar sobre outras bases (Mannoni citado por
Tafuri, 2006, p.1).

Segundo Mannoni (citado por Tafuri, 2006), a criança dita autista só tem chance
de sair do estado de ensimesmamento e de alienação se puder conviver com pessoas que
se permitam imaginar e se colocar na relação com ela, independente de qualquer prévio
conhecimento da doença da criança. Uma intervenção como esta pode proporcionar a
esses sujeitos a saída do lugar estigmatizado que muitas vezes ocupam na escola, e criar
um lugar a partir do qual poderá emergir sua subjetividade, que foi aplacada por falhas
relacionais em um período bastante primitivo de sua constituição subjetiva. Para o
professor, esta leitura cria a possibilidade de que ele se espelhe no AT e passe também a
supor que o aluno tenha algo a dizer. Assim:
podemos pensar a posição do AT junto à criança com
transtornos graves na escola: é o Outro da linguagem, que
traduz para ela a ambiência, o movimento geral e o
mínimo movimento, a polifonia, todos os atravessamentos
que constituem o território e o silêncio mais surdo
(bastante próximo da atenção flutuante). Além disso,
nomeia e dá sentido às situações que vão ocorrendo
(Sereno, 2006, p. 09).

Na educação, o pedido da presença de um acompanhante terapêutico está


relacionada, na maioria das vezes, à demanda de que ele possa responder pelas atitudes,
às vezes “birras” assustadoras, e pela educação da criança que ainda não está inclusa ao
universo escolar e com a qual o corpo docente acredita não saber lidar. De fato,
entender e decifrar o que querem transmitir essas crianças com esses atos de resistência
não é uma tarefa fácil, uma vez que apontam para a própria resistência da escola em
“sair de seu lugar cômodo” e desprender de seus ideais. Assim, diante desses casos fica
imaginariamente reforçada a idéia de que o problema está localizado exclusivamente na
criança, e assim a escola não se mobiliza para tentar compreendê-la. Como efeito, a
escola procura no AT a possibilidade de resolver esse impasse sem precisar implicar-se
com esse aluno. Assim, dentro do imaginário escolar este profissional seria a pessoa
ideal para resolver o seu impasse, pois este uniria a função de ser um especialista –
entendendo as peculiaridades do aluno com questões subjetivas – e trabalharia dentro da
escola, colaborando no processo de inclusão escolar (Gavioli, Ranoya e Abbamonte,
2002).
Desta forma, o acompanhante deve estar atento para não “aceitar” esse lugar que
a escola lhes oferece, como o especialista que possui toda carga de responsabilidade por
aquele aluno e que isoladamente irá decifrar o diferente e propor alternativas para a

solução do “problema”. Ao contrário, deve convocar a todos a participarem do processo


de inclusão, convocando uma ação institucional, onde os saberes, sem distinção
hierárquica, podem e devem ser convocados e compartilhados rumo á educação
inclusiva.
Assim, o acompanhante terapêutico deve sensibilizar o professor para a
singularidade daquela criança, facilitando uma intervenção pedagógica junto a ele, e o
encorajando a acolher e sustentar as produções do sujeito e com as quais ele deve se
comprometer (Sereno, 2006). Deve levar esse educador a refletir sobre a sua posição
imaginária de impotência, lugar cristalizado de queixas e incertezas, para poder lançar
novas questões sobre a sua prática educativa e sobre a instituição escolar. Desta forma,
deve possibilitar uma circulação discursiva, criando a possibilidade de que o educador
se espelhe no acompanhante terapêutico (at) e passe também a supor que o aluno tenha
algo a dizer (Ferrari e Freller, 2008).
Assim, a função do AT na escola, vai de encontro com a perspectiva da
Educação Terapêutica, ou seja, de alguém que sustenta para a criança as regras que
regem a instituição, ao mesmo tempo em que dá lugar e voz ao aparecimento da
subjetividade do aluno. Como aponta Kupfer (2007):
a proposta da Educação Terapêutica é instituir o simbólico
em torno do real; não é apenas educação em seu sentido
clássico, pois não visa moldar a criança ao ideal do eu do
educador (...) Precisa apresentar materiais, sugerir
caminhos (...) Ao mesmo tempo, deve escutar o pouco de
sujeito que ali por vezes emerge (p. 115-6).

Por princípio, a função do acompanhamento terapêutico na escola é algo bem


definido e com tempo de finalização. Assim, o AT termina quando a classe (professora
e crianças) e a instituição passa a funcionar como referência para acolher e sustentar as
produções do sujeito com as quais ele deve se comprometer (Sereno, 2006).

ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO COM UMA CRIANÇA DITA


AUTISTA: RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA

“Transmitir marcas simbólicas é inventar metáforas que possibilitem ao


sujeito usufruir um lugar no discurso. Trata-se de uma educação que
reconheça e se aproprie da sua condição de contribuir para a constituição e
o aparecimento do sujeito, tanto do lado da criança quanto do lado do
educador”.
Petri citado por Braga (2005,p. 59)

Gostaria de compartilhar aqui um pouco dos desafios da minha experiência com


o AT, uma vivência rica e inusitada, acreditando que isso possa servir como
contribuição para o levantamento de questões pertinentes a essa modalidade de
tratamento e sobre a questão da inclusão.
Iniciei o meu estágio de AT a partir de uma demanda da Secretaria de Educação
do município de Paranaíba/MS, que solicitou ao curso de Psicologia da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) uma estagiária para acompanhar uma criança
com suspeitas de autismo matriculada numa escola regular de Educação Infantil nesse
mesmo município. De acordo com a Secretaria de Educação, a escola e as professoras
estavam encontrando dificuldades na lida com essa criança, não sabendo como proceder
diante das questões apresentadas pela mesma. E assim se deu a minha entrada na
instituição.
No primeiro dia de estágio, estava bastante ansiosa para conhecer a criança, e ao
mesmo tempo preocupada e insegura em relação ao meu trabalho, já que não fazia tanto
tempo que eu havia iniciado meus estudos sobre as questões do autismo e do
acompanhamento terapêutico. No entanto, resolvi lançar-me neste desafio, encorajada
pelas experiências da École Éxperimentale de Bonneuil-sur-Marne, fundada por Maud
Mannoni, onde as estagiárias que ali são aceitas não precisavam ter um currículum
vasto, ou conhecer a fundo sobre as questões do Transtorno Global do
Desenvolvimento, sabendo diferenciar cada diagnóstico, bastando ter o desejo de estar
com aquelas criança. Por isso me lancei nesta experiência.
A criança ao qual eu acompanhei, Caio (nome fictício que adotarei aqui), um
garoto de quatro anos de idade, ainda não tinha um diagnóstico fechado de autismo, mas
segundo os que conviviam a sua volta, tudo levava a crer que realmente era uma criança
autista. Caio não fazia nenhum tipo de atendimento psicoterápico na época, sendo
apenas acompanhado por uma fonoaudióloga. Caio já estava matriculado no jardim II
de uma escola regular de Educação Infantil há sete meses, porém a demanda da escola
em relação ao trabalho de AT era decorrente do pouco preparo da professora e da escola
para lidar com as questões de uma criança com psicopatologia grave.
Ao entrar na instituição, pude logo perceber que as funcionárias e professoras
observaram certa mudança em Caio, mas não avaliavam isso como um efeito do
trabalho que desenvolveram com ele. Quando questionei como foi a entrada de Caio na
instituição, as professoras disseram que esse foi um momento “conturbado”, pois

ninguém sabia o que fazer com ele, e que a direção pareceu não se responsabilizar.
Disseram que ele só “chorava, gritava, não parava na sala de aula, urinava e defecava na
roupa e não segurava nem o seu prato de comida” (sic). Mas acrescentaram que ele já
“melhorou muito, pois agora ele fica mais tempo em sala de aula fazendo as atividades,
não defeca e urina na roupa, não grita tanto como antes e até aprendeu a comer sozinho,
se adaptando a rotina da instituição” (sic).
Com o passar dos dias fui percebendo que Caio era uma criança que não
estabelecia contato com o outro, quase não falava, emitia apenas alguns sons
aparentemente sem sentido, apresentava alguns comportamentos mecânicos e
estereotipados, e andava e manipulava alguns objetos da sua sala sem nenhuma
finalidade especifica. Parecia não se afetar pelas palavras, pois não olhava e parecia que
se fazia ausente de qualquer interação. Caio preferia brincar sozinho ao entrar em
contato com as outras crianças. Passava muito tempo entretido consigo mesmo,
perambulando pelos espaços, devido a sua dificuldade de ficar em sala de aula com seus
colegas. Não tinha recursos psíquicos suficientemente estruturados para lidar com o
desconhecido, e quando não suportava determinada situação, gritava, chorava e agredia
os demais.
O início do meu trabalho caracterizou-se, portanto, por um momento de
ambientação e observação do que se passava na relação de Caio com a classe,
professora, funcionárias e com a própria instituição. Logo constatei que a escola não
parecia implicada com as questões de Caio, ainda que quisesse ser considerada uma
“escola inclusiva”. A direção depositava toda carga de responsabilidade pela criança na
professora “que tinha que dar conta dele” (sic). A escola de Caio tinha expectativa de
que minha presença em sala de aula garantiria que ele fizesse todas as atividades tal
como os seus colegas. Era claro para mim que a escola queria alguém que se
responsabilizasse e respondesse por ele, auxiliando-o nas questões pedagógicas. Já a sua
professora demonstrou disponibilidade e interesse em ajudar essa criança, tentando
entender por que ele se comportava daquela forma. Ela estava realmente disposta a
ajudar e cooperar com as minhas atividades. Notei que ela era paciente e amorosa com
ele, não o excluindo de qualquer atividade lúdica ou pedagógica, e sempre se esforçava
para tentar entende-lo e ajudá-lo. A existência dessa figura acolhedora foi bastante
positiva para ele, pois ela lhe dava amparo emocional para melhor suportar o ambiente

escolar. Em relação às crianças da sala de Caio, não observei grandes dificuldades, já


que estavam acostumas com as reações e atitudes dele.
Após esse período de observação e ambientação, minha meta foi estabelecer um
vínculo com Caio, me fazendo ser confiável a ele, e oferecendo uma “estrutura de
acolhimento” para que ele pudesse ser acolhido e escutado. Logo percebi que Caio tinha
resistência às mudanças e baixa tolerância à frustração, e frente a qualquer situação
aversiva reagia de uma forma bem particular, gritando, chorando ou agredindo alguém.
Assim, por exemplo, quando quebrava a ponta do seu lápis, ele gritava e o jogava no
chão; quando queria determinado brinquedo e o outro não entendia seu pedido, gritava e
agredia o outro; quando uma criança pegava o seu brinquedo, ele a agredia; quando
tentava empilhar os cubos e estes caiam, ele os jogava no chão e gritava; quando não
conseguia colocar o seu tênis, ficava irritado. Nesses momentos, eu procurava oferecer
um acolhimento físico e emocional, tentando entender o motivo do grito, choro ou
agressão. Eu procurava atender prontamente aos pedidos de Caio, oferecendo-lhe colo e
escuta, comportamento esse que não era bem visto pelas funcionárias e professoras, que
acham que eu era muito “mole” com ele e que não impunha os limites necessários.
Foi então ficando claro para mim que seria preciso nomear, colocar em palavras
os atos bizarros e abruptos que Caio manifestava, uma ação que iria no sentido de conter
o imaginário que estas ocorrências desencadeavam nos profissionais da instituição e nos
outros alunos, ocorrências essas que eram vistas, quando muito, como “manha”, “falta
de limites” e “birra”. Não se oferecia nenhum significado às atitudes de Caio a não ser
estas. Assim, percebi que era necessário dar voz e re-significar as construções
particulares que Caio encontrava como saídas possíveis para as diversas situações que
enfrentava no laço social. Essa atitude de re-significar as vivências de Caio para as
funcionárias também iria ao sentido de conter o imaginário de que eu estava mimando-o
e privilegiando-o em detrimento a outras crianças. Assim, mais do que tentar adequá-lo
às necessidades da escola, me preocupava em significar os acontecimentos para ele,
exercendo a função de Outro, atribuindo aos atos de Caio uma significação e, ao mesmo
tempo, deixando que essas significações circulassem para ele advir como sujeito (Braga,
2005). Percebi então que era preciso nomear os acontecimentos, oferecendo um
significado, supondo ali um sujeito, uma demanda e um desejo.
Um exemplo disso foi um fato que ocorreu na sala de aula, quando as crianças
estavam brincando de andar com o carrinho em volta da mesa. Caio ficou parado com o

seu carrinho observando as crianças, e logo depois começou a bater com seu carrinho no
carrinho das outras crianças que passavam perto dele. Ao invés de repreendê-lo por que
ele estava atrapalhando os colegas, eu tentei entender por que ele estava fazendo aquilo.
Então, percebi que Caio na verdade não estava querendo “agredir” as crianças ou
atrapalhar a brincadeira, mas se inserir na brincadeira delas, mas aparentemente não
sabia como fazer. Então eu disse: - “Ah, você quer brincar com os seus amiguinhos?”, e
o peguei pela mão e entrei na “roda” junto com ele, rodando em torno da mesa com o
carrinho. Quando percebi que ele já estava à vontade, eu me retirei e o deixei sozinho
com as crianças. Percebi que ele demonstrou satisfação de estar junto com as outras
crianças e inserido na brincadeira delas.
A partir do momento em que eu comecei a nomear e dar um significado aos
comportamentos até então “bizarros” do Caio, as funcionárias e as professoras se deram
conta de que sua agitação motora aparecia em momentos de angústia, quando havia um
confronto com o desconhecido, e não era uma simples birra de criança pequena. “A
gente percebe que às vezes ele chora e grita com o intuito de falar alguma coisa, mas a
gente não entende. Com as outras crianças é mais fácil porque elas falam, mesmo
desobedecendo” (sic, fala da funcionária).  Assim, expliquei para elas, em uma reunião
para discutirmos as questões do Caio, que quando ele responde com gritos e com
agressões, fazendo a famosa “birra”, na verdade ele está descarregando sua frustração
por achar que não está sendo compreendido. Sua principal dificuldade relaciona-se à
simbolização, ou seja, expressar em palavras ou transferir para palavras aquilo que ele
quer, utilizando assim outros meios para se expressar, tais como: grito, choro, “birra” e
apontar o dedo. Então esclareci que as “birras” e os comportamentos “bizarros” do Caio
tinham uma intencionalidade, ou seja, tinham o intuito de transmitir algo, e que era
preciso elas se atentarem a isso e não interpretarem como mais uma “manha de
criança”.
Outro fato que me deparei foi com a questão da introdução dos limites, algo
muito cobrado e valorizado dentro de uma instituição composta por regras. Assim, em
meio às regras rígidas e os discursos que pairavam na instituição, “tem que colocar
limite nesse menino, se não ele vai ficar impossível” (sic), eu me deparei com a situação
de não saber se eu deveria impor os limites e impedi-lo de fazer algo que fugia das
normas da instituição, ou se deveria ser mais flexível com ele, deixando-o “burlar” as
regras quando sentisse necessidade. Porem, a questão maior era: será que Caio seria
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capaz de suportar a introdução dos limites? E até que ponto eu estaria atendendo a uma
demanda dele ou da instituição?
Essas questões se acentuaram quando Caio foi para o Jardim II, que devido à
troca de ano, sua professora mudou e o quadro de funcionárias da instituição se renovou
também. Houve nesse momento uma mudança no comportamento do Caio, pois agora
ele estava convivendo com outras pessoas, exceto os alunos da sala, que se mantiveram
os mesmos.
Com essa mudança, as cobranças se intensificaram, uma vez que Caio havia
“regredido” em algumas questões, especialmente as comportamentais. A questão dos
limites intensificou-se na instituição, reforçadas pelo discurso da mãe, que dizia impor
limites mesmo que ele grite ou chore, pois “ele é esperto e sabe como fazer com que as
pessoas façam o que ele quer” (sic), “então aqui na creche vocês podem colocar limites
sim, se ele rasgar a atividade pode brigar com ele e dar outra para ele fazer, se não ele
vai montar em vocês” (sic). Nesse impasse, e em meios a tantas cobranças: escola (“o
Caio está impossível, o que você vai fazer?”), professora (“tem que colocar limite nele”)
e a mãe (“você é muito mole com ele”), acabei respondendo a essa demanda e
esquecendo do meu sujeito: o Caio.
Assim, mudei minha prática com ele, e passei ser mais arredia e incisiva aos
comportamentos dele, o repreendendo duramente quando fugia a norma esperada, por
exemplo, quando batia em outra criança, ou quando ultrapassava os limites, sem, no
entanto, me atentar para o motivo que o levou a se comportar daquela forma. Eu estava
querendo mostrar “serviço” para a instituição e esquecendo de quem eu realmente
deveria atender e me preocupar. Ao mesmo tempo, percebi que esta minha mudança
estava fazendo Caio afastar-se de mim, parecendo não me reconhecer mais.
Em meio essa confusão sobre o meu papel, meu trabalho e as cobranças, o
próprio Caio, de uma forma sutil, pode me mostrar, através de uma brincadeira, qual era
a minha verdadeira função dentro da instituição como acompanhante terapêutica. Certo
dia, Caio pegou as peças de encaixe que sempre brincava, e começou a montá-las
sozinho sem solicitar minha ajuda. Fez uma base pequena e começou a encaixar as
peças uma em cima da outra, tentando formar “uma grande torre”. Mas como a base era
pequena, estreita e frágil, não estava aguentando mais o peso da torre, e começou a
querer tombar. Ao perceber isso, Caio ficou segurando com uma mão a base e com a
outra me dava as peças para eu encaixar por cima. Porém, mesmo ele segurando a base
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da torre e tentando fixá-la na mesa, não estava conseguindo mantê-la em pé. Quando a
torre caía, ele ficava extremamente irritado e começava a gritar. Então eu resolvi ajudá-
lo, e fui reforçando a base da torre, construindo os alicerces para tentar mantê-la em pé.
Quando eu percebi que o alicerce, a base estava bem firme, falei para ele continuar
construindo a torre, e assim ele fez.
Quando terminamos, ele ficou olhando durante alguns minutos para a torre,
admirando-a. Eu, então, também parei e resolvi admirá-la junto com ele, e consegui
relacionar a construção dessa torre com a minha função diante das questões do autismo.
No começo dessa brincadeira, as peças estavam todas misturadas dentro do balde,
confusas, perdidas, assim como nós somos no início da nossa vida, pois segundo a
teoria psicanalítica, a percepção do próprio corpo é formada por sensações separadas,
provocadas por estímulos dos diferentes órgãos, que o sujeito não consegue
naturalmente agrupar e formar um todo (o Eu), tendo assim a sensação de um corpo
fragmentado, não possuindo uma representação integrada. Assim, é preciso um Outro
para marcar e mapear o corpo com significantes, ou seja, “infundindo musicalidade nos
sons rudes e nos gestos bruscos deste corpo devastado pelo desamparo” (Birman, 1997),
fazendo a tradução dos gestos, choros e balbuciar do bebê, supondo que ali há uma
demanda, começa dar a possibilidade para a criança perceber o seu corpo como uma
unidade completa. Ou seja, é necessário a presença de um Outro para que o corpo, as
peças, se “encaixem” e formem uma unidade. Porém, no autismo, algo falhou e esse
Outro não conseguiu infundir musicalidade nesse corpo, nomeá-lo, causando problemas
na constituição da imagem corporal e no estabelecimento do laço social.
Assim, quando Caio tenta montar sozinho uma torre, em cima de uma
base/estrutura frágil, não fortalecida, não construída, ela cai, uma vez que não tinha
suporte o suficiente para aguentar uma estrutura tão grande. Então, mesmo que ele
tentasse erguer a torre, não conseguia. E aqui entra o trabalho do acompanhante
terapêutico, como aquele que irá ajudar a fortalecer a base, a estrutura, para que a
criança possa se apoiar nela, e a partir disso se organizar e conseguir se estabelecer.
Após esse dia, minha visão e minha prática mudaram consideravelmente com
Caio. Eu percebi que antes de atender qualquer demanda, seja da instituição, seja da
professora, ou dos pais, a demanda principal que deveria ser ouvida e atendida era de
Caio, pois ele era o meu sujeito.
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A partir disso, passei a agir com mais segurança em relação ao Caio e a minha
prática, me posicionando melhor frente à instituição e à professora. Como consequência,
pude contribuir de maneira significativa com Caio, fazendo intervenções pontuais e
percebendo claramente os momentos em que os diferentes discursos que circulam no
campo social sustentam lugares sociais para a criança. Pois, para Lacan, a linguagem
constitui o eixo central através do qual o laço social acontece, ou seja, é na cadeia do
discurso que o sujeito se constrói (citado por Luz, 2009).
Um exemplo vivenciado na creche que ilustra como os discursos oferecidos
podem sustentar lugares sociais foi quando as crianças estavam brincando no pátio, e
Caio começou a correr atrás de uma criança para bater nela, algo que fazia com
frequência quando se deparava com alguma frustração. Porem, ao invés de barrá-lo e
não oferecer nenhum significado para aquilo, disse à criança que o Caio estava
brincando de bicho-papão. No mesmo momento, Caio aceitou esse discurso que lhe foi
oferecido e imediatamente se colocou no lugar a ele demandado de bicho-papão.
Em algumas outras situações, foi possível transformar em demanda as brechas
que Caio produzia, significando seus comportamentos, representados como “bizarros”
pelos atores educativos, e oferecendo-lhe a oportunidade de transformar essas
produções em algo socializável a todos. Pois quando se nomeia a ação aparentemente
sem sentido da criança, dá-se a ela um significado o qual ela pode se colar e
futuramente elaborar. Assim, ao estabelecer a demanda, o Outro traduz em palavras as
ações regidas pela criança e oferece a possibilidade de se posicionar e significar.
Pude observar isso claramente no episódio do parquinho, onde Caio, não
sabendo nomear o seu desejo (de ser balançado), usa do corpo para lançar-se ao outro. E
quando eu suponho uma demanda no seu comportamento e a nomeio (você quer que eu
te balance?), ele pode se colar nela e depois de algum tempo a demandar com palavras
(Balança; aqui; vem). E na medida em que eu já não atendo mais o seu pedido,
dificultando o seu acesso ao desejo (alternância presença e ausência – dando um espaço
para a palavra e ação do outro), ele tem a possibilidade de ressignificar outras formas de
me solicitar (cotando até 10 para que eu o balance).
Fui percebendo então que Caio estava lidando melhor com as frustrações,
interagindo mais com as outras crianças e com a professora, aceitando o contato físico, e
pronunciando algumas palavras, como, “vem”, “aqui”, “não”, “cai fora”, “balança”,
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entre outras. Estava aceitando inclusive que as crianças o beijassem e beijando o rosto
das crianças quando estas o solicitavam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante essas experiências, ficou claro que se a inclusão for feita de maneira
reflexiva, implicando e atingindo todos os atores educacionais, a escola e as
aprendizagens podem ser ferramentas terapêuticas, pois aumentam a circulação social
das crianças, seu repertório cognitivo e sua posição no mundo da linguagem. Os
discursos sociais que circulam no interior do campo social sustentam para a criança
lugares sociais, oferecendo-lhe a possibilidade de se estabelecer no laço social. Assim,
como bem ressaltou Kupfer (2007), ir à escola, para crianças com autismo, poderá ter
um valor constitutivo, onde, a partir da inserção escolar, seja possível uma retomada e
reordenação da estruturação psíquica do sujeito.
Sendo assim, o acompanhamento terapêutico vem como uma prática auxiliadora
no processo de inclusão escolar, oferecendo sustentação à subjetividade da criança para
que a mesma encontre a possibilidade de um lugar em sua singularidade. Porem está
claro que a presença do at deve ser dosada, pois a escola deve se apropriar da
responsabilidade de educar a criança e inseri-la em sua meio social (Parra, 2009).
O trabalho do acompanhante terapêutico não se deve voltar exclusivamente para
a criança acompanhada, mas também para escola, os pais, demais alunos, diretora e
equipe pedagógica, exercendo um papel de pano de fundo, de mediação entre todos os
componentes que cercam o acompanhado, acompanhando-os também (Parra, 2009).
Assim, diante essa experiência ficou claro que o grande desafio no trabalho com
a inclusão é aprender a lidar com as próprias frustrações, respeitar e aceitar que o outro
não tem que necessariamente responder às nossas expectativas. Assim, é preciso conter
a ansiedade e saber se posicionar diante das demandas que vão surgindo, para não
perder o mais importante de vista: a criança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1

                                                            
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