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poderia chamar de "esquerda" dentro dos Sempre é possível que um juiz, após

estreitos paradigmas ideológicos da políti- ter sido nomeado por um presidente com Segurança na América do Sul:
ca norte-americana. Diversas pesquisas determinada expectativa de comporta-
mostram que os jovens americanos defen-
dem - como nenhuma geração anterior -
mento para ele na Corte, com o tempo
decepcione o seu padrinho. Foi o que
dimensão regional de seus
princípios que são liberais, como a necessi-
dade de seguro-saúde universal, tolerância
ocorreu com Earl Warren, indicado por
Dwight Eisenhower, com a esperança de desafios políticos Monica Hirst*
com homossexuais e todas as minorias mudar o comportamento considerado li-
culturais, direitos assegurados a todos os beral da Corte montada por Franklin Roo-
imigrantes, utilização de métodos pacífi- sevelt, em seus 12 anos de Casa Branca,
cos e do multilateralismo para a resolução que porém acabou sendo um dos juizes
de conflitos internacionais etc. menos conservadores da história da insti-
As chances de uma vitória da oposição tuição (Eisenhower diria depois que a no-
na eleição presidencial de 2008 são muito meação de Warren foi o maior erro de seu
grandes. Se a Suprema Corte estiver em governo). Entretanto, em virtude do com-
constante litígio com a Presidência e com portamento de Scalia, Thomas, Alito e
a maioria da sociedade em temas que têm Roberts até agora, é muito possível que
se mostrado altamente polarizadores George W. Bush tenha sido mais eficaz do
(como aborto, casamento homossexual, que Eisenhower na escolha de seus juizes, É notável a reversão de expectativas à sua instirucionalidade e ao aprofunda-
entre outros), esta divisão pode ser muito com implicações de difícil previsão para o quando comparamos a agenda de segu- mento de suas metas. Já a agenda da segu-
prejudicial para o país. futuro dos Estados Unidos. rança na América do Sul no início dos rança cooperativa, como uma prescrição
anos 1990 e o cenário atual, considerando norte-americana, foi arquivada a partir de
suas dimensões global, regional e local. Os 11 de Setembro, quando as novas priori-
estudos sobre o tema sublinhavam três dades estratégicas dos Estados Unidos re-
tendências principais nos anos de conclu- sultaram na macrossecuritização de sua
são do século XX. A primeira era prove- agenda hemisférica, reduzindo a funcio-
niente do efeito de derramamento entre os nalidade de regimes e instituições multila-
processos de democratização, de integra- terais. Diferentemente do que se esperava,
ção económica e a cooperação em segu- ganharam novo ímpeto as políticas de
rança, particularmente entre os sócios do defesa nacionais acompanhadas pelo au-
Mercosul. Outra expectativa interpretava mento dos orçamentos militares e a reati-
o fim da Guerra Fria como uma porta vação- de algumas rivalidades inter-esta-
aberta para a segurança cooperativa entre tais. No lugar de uma divisão entre dois
os países sul-americanos e todo o âmbito subsistemas de segurança Andes - Cone
hemisférico, com base no fortalecimento Sul, a América do Sul se transformou num
de regimes regionais e mundiais e o aban- complexo emaranhado de tensões bilate-
dono de políticas de defesa nacionais. A rais, de redes de operações tran.snacionais
terceira tendência indicava a centralidade de delito e de respostas fragmentadas às
do conflito colombiano como fonte de in- pressões estratégicas dos Estados Unidos.
segurança para toda a região andina e o Neste contexto, a guerra na Colômbia, em
fator de maior incidência na diferenciação vez de representar um foco de irradiação
entre uma sub-zona de conflito e outra de de insegurança regional gerador de políti-
paz na América do Sul.1
O primeiro suposto sofreu um forte Monica Hirst é diretora executiva da Fundación Centro
desvio de curso devido à perda de impul- de Estúdios Brasileros e professora na Universidad
so da regionalização económica a partir de Torcuato Di Telia.
fins dos anos 1990, às limitações impostas •Agradeço a assistência de Jazmin Sierra.
SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL: D I M K N s A O REGIONAL PE SEUS DESAFIOS POLÍTICOS

cãs comuns para a sua contenção, conver- global e local, deveríamos ser capazes de va-se um envolvimento crescente do Bra- tas limítrofes ou se identificam novos
teu-se num processo encapsulado de con- identificar no espaço sul-americano um sil, o que reforça os argumentos sobre as pontos de divergência que afetam a boa
flito intra-estatal - acorde às descrições do terreno-comum de interesses e iniciativas novas responsabilidades do país como um convivência em áreas fronteiriças.4 Por um
retrato-falado das ameaças terroristas de- nesta área entre os Estados sul-america- fator de estabilidade na região. Este será ou outro motivo, parece ser mais inconce-
finidas desde Washington. Este encapsula- nos. Sem dúvida, observamos no caso sul- um dos pontos retomados nas reflexões bível hoje do que há dez anos a ideia de
mento não impediu que se alastrasse uma americano, particularmente no Cone Sul, que concluem o artigo. que a soberania territorial possa prescin-
teia de conexões transfronteriças entre os o aprofundamento da colaboração intra- dir de políticas de defesa e controles sobre
grupos narcoguerrilheiros colombianos e regional em defesa e segurança; mas tam- a circulação de bens e pessoas entre Esta-
as organizações de delito operantes em bém constatamos uma notável preserva- dos sul-americanos. Apesar das diferentes
diferentes países sul-americanos. ção de visões nacionalistas e de rivalidades 1. Políticas de defesa; entre condições institucionais e orientações ideo-
Tomando-se o argumento de que o fim inter-estatais. a cooperação interestatal e lógicas das democracias na região, em
da Guerra Fria propicia maior liberdade Pretende-se neste trabalho oferecer todos os casos constata-se a presença das
para que as regiões possam ampliar a res- uma avaliação das políticas de segurança as soberanias reforçadas
FFAA como parceiras dos projetos políti-
ponsabilidade sobre suas respectivas agen- e defesa na América do Sul, com foco no Deve-se sublinhar o fato de que expec- cos nacionais. No Cone Sul, as medidas
das de segurança concluiríamos que a Brasil e Cone Sul, indicando o renovado tativas que não se tenham cumprido de judiciais objetivando a investigação e o
América do Sul fez um uso modesto desta elenco de desafios que enfrentam. Sem forma alguma implica um quadro de mo- esclarecimento sobre a violação de direitos
oportunidade.2 As dificuldades económi- estar prescindindo de uma abordagem destas transformações. Muito pelo contrá- humanos cometidos nos anos de regimes
cas e de gestão encaradas por seus Estados analítica, se dará preferência a uma refle- rio, os anos recentes correspondem a visí- militares, somadas à decisão de não entre-
para assegurar eficientes políticas de se- xão política sobre a agenda de segurança veis mudanças nas políticas de defesa gar às Forças Armadas tarefas de seguran-
gurança e defesa agravaram-se diante do regional. O suposto do qual se parte é de sul-americanas e dos desafios que essas ça pública - para evitar riscos de retroces-
impacto, observado mundialmente, de que uma nova realidade vem se impon- enfrentam. Em todos os casos, seus conteú- sos políticos ou novas máculas sobre a
vinculação entre a dimensão internacional do com relevantes implicações para toda dos foram alterados como resultado do instituição - vêm permitindo que essas
do crime e a porosidade dos mecanismos a região. término da Guerra Fria, dos processos mesmas reconstruam seu sentido de mis-
de controles da circulação de bens, servi- Três temas foram considerados centrais democráticos domésticos, de novos con- são.5 De outra parte, na região andina o
ços, dinheiros e pessoas estimulada pela para abordar a complexa agenda de defesa textos regionais e da atual macrossecuriti- envolvimento militar na luta contra o nar-
globalização.3 e segurança sul-americana. O primeiro se zação da política mundial. Constata-se cotráfico assim como a narcoguerrilha, e o
Partindo-se da ideia de que a unipola- refere às políticas de defesa sul-america- uma articulação entre fatores externos e fortalecimento da capacidade de defesa
ridade concentrou o poder de agenda dos nas: a diversidade de seus conteúdos na- domésticos que favoreceram a expansão como parte da construção de novos proje-
Estados Unidos em temas de segurança, cionais, suas iniciativas de cooperação e do poder militar na América do Sul. Ao tos nacional-populares, têm revalorizado
podemos concluir que, no caso da Améri- sua projeção internacional. O segundo tema mesmo tempo que o fim da bipolaridade o papel das FFAA.
ca do Sul, esta concentração também im- é o da vinculação entre a América do Sul e contribuiu para selar o compromisso das O desempenho recente das economias
plicou a suspensão de sua presença como a agenda de segurança mundial (a da ma- Forças Armadas (FFAA) sul-americanas graças à subida dos preços internacionais
um fator de estabilidade para a região. É crossecuritização), definida pela política com a preservação de valores democráti- de produtos como petróleo, gás e cobre, e
interessante notar que o ."abandono do estratégica dos Estados Unidos. Neste cos, permitindo que essas recuperassem sua repercussão sobre os PNBs, beneficia
posto" não se traduziu propriamente caso, serão tratadas as premissas gerais seus atributos institucionais, as novas ur- automaticamente os orçamentos militares.
numa retirada, mas em uma transfigura- desta política aplicada à região, em espe- gências no campo da (in)segurança inter- No Chile, o aumento de recursos prove-
ção, que passou a obedecer mais ao pa- cial àquelas definidas pelo Comando Sul. nacional a partir de 11 de setembro leva- nientes das exportações de cobre permitiu
drão de uma presença imperial clássica do Também serão abordadas as preocupações ram à configuração de uma nova agenda que suas Forças Armadas tivessem acesso
que a de exercício de poder hegemónico, de Washington com a Tríplice Fronteira global de ameaças, reforçando sua respec- a novas aquisições de material bélico,-6 na
no qual relações políticas são substituídas Brasil-Paraguai-Argentina, que merecerá tiva funcionalidade. Áreas de coordena- Bolívia o braço estendido de Evo Morales
pelo incremento de ações encobertas e a maior atenção. O terceiro e mais problemá- ção entre políticas externa e de defesa, aos militares contribui para fortalecer suas
exibição selecionada de força militar. tico é o do delito organizado: suas ramifi- entre segurança pública e governabilidade bases internas de sustentação e securitizar
Neste sentido, o Plano Colômbia corres- cações regional e global, e sua vinculação vêm sendo rapidamente estabelecidas de o tratamento da agenda energética; no
ponde a um notório exemplo. com o agravamento das condições de (in)se- acordo com a realidade e as percepções Peru a classe política compartilha interes-
Aceitando-se a premissa de que a di- gurança pública nos principais conglome- dominantes dos países da região. ses e percepções geopolíticas com um
mensão regional da segurança correspon- rados urbanos sul-americanos. Sublinha-se Com exceção do Brasil, em diversos paí- exército até recentemente desacreditado
de a um ponto intermédio entre os níveis que, nos três temas mencionados, obser- ses da região subexistem temas de dispu- por suas vinculações com o fujimorismo;

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SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL: DIMENSÃO REGIONAL DE SEUS DESAFIOS POLÍTICOS

na Venezuela a hipótese de conflito com os vivem com rivalidades inter-estatais antigas segmentos do governo brasileiro de flexi- Uruguai são simulações desse tipo de mis-
Estados Unidos outorga grandiosidade e e novas, vem se reinstalando a preocupação bilizar sua posição contrária ao envolvi- são, a atuação conjunta desses países no
heroísmo ao setor castrense; na Colômbia de que a América do Sul poderia estar sob o • mento das Forças Armadas em temas de Haiti se tornou um ponto de inflexão nesta
a associação com o governo norte-ameri- risco de retorno a um cenário movido pelo segurança pública, especialmente tendo matéria. A cooperação sub-regional em OP
cano credencia as FFAA como ator de pri- dilema da segurança, no qual processos de em vista as ramificações regionais dos (Operação de Paz) acompanha a nova im-
meiro escalão na vida política local, e no modernização militar - favorecidos pelos grupos armados que operam nos princi- portância que estas mesmas adquiriram
Brasil a liderança em operações de paz da recursos provenientes das vendas de gás, pais centros urbanos do país. Finalmente, para a segurança internacional no mundo
ONU aprofunda o vínculo entre as políti- petróleo e cobre - estariam encobrindo merece ser citada a decisão mais recente da pós-Guerra Fria. Identificadas como
cas externa e de defesa. uma nova corrida armamentista.9 do governo brasileiro, explicitada por de- uma segunda geração de missões de paz,
Desta forma, observa-se um incremen- Entre as áreas andina e do Cone Sul creto, da criação de uma força-tarefa com elas se destacam tanto em termos quanti-
to de poderio militar em países com pro- torna-se importante mencionar a especifi- a missão de formular uma nova política tativos como qualitativos, obedecendo a
cessos políticos domésticos tão díspares cidade da presença brasileira. O Brasil estratégica de defesa para o país. concepções que outorgam às operações
como Chile e Bolívia ou como Peru, Vene- • opera como um país "dobradiça", que une Como já foi dito, as relações interesta- um sentido multidensional. Destaca-se
zuela e Colômbia. Os aumentos mais no- as agendas das duas sub-regiões, o que lhe tais sul-americanas compreendem simul- aqui o caráter instrumental destas ações
táveis se dão nos casos colombiano e chi- atribui um novo tipo de papel e responsa- taneamente agendas de rivalidade e de para lidar com situações de escalada de
leno, seguidos da Venezuela e do Brasil. A bilidade na América do Sul. Ao longo de cooperação. No que diz respeito às inicia- violência e emergência humanitária em
tendência expansiva dos gastos em defesa todo o século XX, sua política externa e de tivas de cooperação em segurança, conser- diferentes partes do mundo, nas quais as
na América do Sul no último triénio não defesa estiveram ancoradas nas premissas va-se a tendência já observada desde os confrontações intra-estatais passaram a
corresponde a um processo uniforme, no- da inexistência de disputas com seus vizi- anos 1990, de que medidas de confiança predominar sobre as interestatais.13
tando-se variações de acordo com as polí- nhos e do princípio da não-intervenção, o recíproca são mais frequentes entre os paí- Desde 2004 os governos argentino, bra-
ticas individuais; o Chile e o Peru concen- que justificou a desmilitarização da maior ses do Cone Sul do que entre os da área sileiro e chileno participam da Minustah,
tram seu esforço de reequipamento em parte de suas fronteiras. Nos anos 1980, andina. No período recente, ações coope- assumindo a responsabilidade de buscar
suas forças navais, a Colômbia, na capaci- com a desativação da hipótese de conflito rativas relevantes foram iniciadas pelo uma solução regional para uma situação
tação de seu exército e a Venezuela, de sua com a nação argentina, ganhou ímpeto a Chile, mencionando-se trabalho humani- de crise terminal do Estado haitiano, que
força aérea. Essas políticas traduzem-se ideia de que as fronteiras de separação tário na fronteira austral chilena-argentina foi acompanhada por um processo insur-
também em preferências diferenciadas de seriam substituídas por fronteiras de coo- e a proposta de retomar o mecanismo 2+2 recional e de quebra de governabilidade.
aquisições externas. Por exemplo, enquan- peração, o que logo se somou à preocupa- com o Peru.11 São conhecidos os esforços A participação destacada de Argentina,
to as compras chilenas provêem principal- ção de reforçar a defesa da área amazôni- empreendidos pelos paísae do Cone Sul e Brasil e Chile (ABC) juntamente com ou-
mente dos países da Otan, as necessidades ca. Recentemente surgiram indicações de o Brasil para avançar no processo de re- tros países levou a missão a adquirir um
venezuelanas vêm sendo supridas pela que este cenário poderia estar se alteran- gionalização que combinem integração sentido emblemático como iniciativa de
Rússia, Espanha, China e Ira.7 Ainda com do. Em diferentes momentos, o governo económica, solidez democrática e segu- cooperação sub-regional, adequada às ex-
respeito ao tema da comercialização, men- • Lula manifestou certo desconforto com as rança cooperativa.12 Apesar de suas im- pectativas da comunidade internacional
cione-se que o Brasil é o único país da re- iniciativas tomadas na década de 1990 de perfeições buscou-se preservar um espaço de ação multilateral sobre situações locais
gião que participa do lado da oferta neste suspender os incentivos ao desenvolvi- próprio de iniciativa na comunidade in- de colapso institucional.
mercado, notando-se que as exportações mento da indústria de armamentos nacio- ternacional, e a construção de uma zona Deve-se ter presente que a presença
brasileiras de equipamento militar para os nal, de adesão aos regimes internacionais de paz que vem adquirindo nova visibili- militar de países conosulhenhos, com a ex-
países sul-americanos expandiram-se no- de não-proliferação e de pouco interesse dade internacional. Além de um patrimó- ceção do Chile, em operações de paz assu-
tavelmente. Ilustrativo, neste sentido, foi o pela capacitação em defesa.10 A decisão nio de medidas de confiança, a realização miu sentidos diferentes nos últimos 15
abandono de prévias reservas políticas brasileira recente de distribuir as unida- cotidiana de exercícios militares conjuntos anos. Nos anos 1990, essa participação es-
mantidas com a Colômbia cujo exército des militares de forma menos concentrada tornou-se um aspecto permanente das re- teve mais motivada pela necessidade de
atualmente é um bom cliente do Brasil.8 na área amazônica, a expansão em 18,9% lações sub-regionais. redefinição do papel das Forças Armadas
Além de uma revalorização da integri- de seu orçamento bélico nos últimos dois A agenda cooperativa ganhou ainda no contexto dos processos de redemocrati-
dade territorial, cabe fazer referência ao anos, e o desenho de uma política de defe- mais impulso a partir do interesse com- zação locais. Na Argentina, a importância
retorno da ideia de que compete às FFAA sa que já não descarta a necessidade de partilhado de participação em operações da subordinação civil-militar, no Uruguai,
proteger os recursos energéticos e naturais um enfrentamento na região são demons- de paz da ONU. Além do fato de que a a possibilidade de obtenção de recursos e
dos países sul-americanos. Na medida em trações de revisão da orientação anterior. grande parte dos exercícios militares reali- capacitação, e no Brasil, o acesso a uma
que as novas circunstâncias nacionais con- Também merece nota a decisão de alguns zados entre Argentina, Brasil, Chile, e nova fonte de prestígio político e institu-

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SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL: OlMKNsAo Klv(

cional. Em cada caso, as motivações provi- curitização; a condição periférica da re- regionais e os vínculos extra-regionais, americanos nos departamentos de Estado,
nham majoritariamente de necessidades gião não lhe poupou o enquadramento especialmente com a China, Síria e o Ira. O Comércio, Tesouro e Agricultura17. As
internas. Na etapa atual, com a inclusão estratégico mundial adotado por Washing- principal alvo deste discurso tem sido o ações do Comando Sul se inscrevem numa
do Chile, os estímulos políticos externos ton a partir de 2001. governo de Hugo Chávez, sendo conve- política de descentralização, com o fecha-
ganharam maior peso, identificando-se Os países sul-americanos conservam niente aqui chamar atenção para o teor mento das bases no Panamá e em Porto
um atributo "exportador" de estabilidade uma relativa autonomia, semelhante à estratégico da ameaça que a política de Rico e a montagem de "Cooperative Secu-
e democracia por parte dos militares da aquela mantida desde o fim da Segunda segurança chavista vem representando rity Locations". Na América do Sul, além
região. Enquanto na etapa anterior as ope- Guerra Mundial, que oscila de acordo com para os Estados Unidos. As preocupações da instalação da base em Mantra, foram
rações de paz eram percebidas como um as orientações das políticas externas de de Washington estariam mais motivadas ativados pontos de radar no Peru e na
instrumento funcional para a consolida- cada país. Pouco a pouco se colocou em pelas projeção do poder político e militar Colômbia, destinados principalmente ao
ção do Estado de direito, sendo percebidas risco a preservação desta margem de ma- da Venezuela sobre a região do Caribe, o monitoramento aéreo do tráfico de narcó-
como um caminho para a transformação nobra em virtude, por um lado, da am- maré nostrum norte-americano, do que o ticos que complementam os Programas de
da mentalidade militar, atualmente a par- pliação da presença militar norte-america- futuro da democracia deste país. Cooperação mantidos com ambos países.
ticipação nessas operações amplifica o na na América do Sul, seja por meio da Após os atentados de 2001 e a redefini- Também foram de caráter diferente os
sentido de missão das FFAA. Desta forma, aliança com a Colômbia ou a montagem ção dos interesses de segurança dos Esta- exercícios conjuntos praticados entre for-
a redefinição do padrão de relações civil- de Estabelecimentos Operativos Avança- dos Unidos, Washington manifestou suas ças militares norte e sul-americanas (34,
militares e a identificação de novas fun- dos; e por outro, em razão das percepções expectativas quanto aos compromissos no período 2000-2005).
ções para a FFAA passam a estar articula- ideológicas dos Estados Unidos, que reati- dos países sul-americanos na guerra con- A presença militar norte-americana
das com a projeção externa do país em vam o "fantasma" de ações intervencionis- tra o terror. De acordo com o governo passou a constituir um fator de desassos-
cenários de crise sujeitos à intervenção da tas na região. As apreensões manifestadas norte-americano, um terço dos grupos sego para vários governos sul-americanos,
comunidade internacional. pelo Comando Sul e pelo Departamento terroristas espalhados pelo mundo opera- especialmente o Brasil e a Venezuela, que,
de Estado em face dos processos políticos vam na América Latina; seus focos princi- desde o lançamento do Plano Colômbia
nacional-populistas passaram a transmitir pais seriam a Tríplice Fronteira e a Colôm- em 2000, manifestam preocupação quanto
2. O enquadramento uma visão securitizada da governabilida- bia. As preocupações de segurança por à suas implicações para a estabilidade da
de democrática. Desde a virada do milé- parte dos EUA levaram à definição de região. Para os países do Cone Sul, este
estratégico norte-americano nio a percepção oficial dos Estados Unidos novas áreas de colaboração destacando-se: tipo de apreensão aumentou ainda mais a
sob o marco da foi de que a segurança regional enfrentava o fortalecimento da cooperação em inteli- partir das novas linhas de cooperação em
macrossecuritização novos problemas gerados pelo desenvol- gência; o desenho de políticas comuns de defesa estabelecidos entre Washington e o
vimento político negativo em países como combate a novas ameaças; a implementa- Paraguai, temendo-se a montagem enco-
O impacto da política estratégica dos Haiti, Bolívia e Venezuela. Mencionava-se ção conjunta de medidas antiterroristas; o berta de uma base militar neste país.18
Estados Unidos para a América do Sul o surgimento de um "populismo radical", cumprimento das leis e de normas jurídi- Desde então colocou-se para a região o
após o 11 de Setembro será brevemente identificado como uma "ameaça emergen- cas para conter atividades criminosas; a desafio de conciliar uma visão defensiva
abordado calcado no conceito de "macros- te", que coincidiria com uma crise da de- recusa a qualquer tipo de apoio a gover- perante o automatismo que caracteriza á
securitzação" cunhado por Barry Buzan.14 mocracia na área.15 nos que patrocinem ou protejam grupos macrossecuritização e a necessidade de
Trata-se de uma definição de ameaça que Como bem assinala Buzan, as manifes- terroristas. Deve-se frisar que uma das encontrar áreas de cooperação com os
parte de uma perspectiva sistêmica-abran- tações da macrossecuritização e suas ine- consequências da atuação do Comando Estados Unidos. A experiência do 3+1
gente de alcance universal, semelhante ao vitáveis configurações ideológicas, indu- Sul foi o fortalecimento das FFAA em toda (mecanismo de diálogo diplomático entre
que se assistiu durante a Guerra Fria. De zem à associação entre os tempos atuais a região, seja como contra-partida ou com- Argentina, Brasil, Paraguai e EUA), inau-
acordo com este conceito, a insegurança da guerra contra o terror e os anos da plementação do aumento da presença mi- gurada em 2002 para lidar com a Tríplice
adquire um sentido planetário, afetando Guerra Fria. Retomar-se-ia um embate litar norte-americana na área. Fronteira, foi uma resposta a este desafio.
de forma generalizada os Estados e socie- ideológico semelhante ao que se observou Entre os sinais de novos tempos da Não obstante, após cinco anos de funcio-
dades, todos submetidos às consequências nos anos 1960 do século passado, quando política regional norte-americana destaca- namento, esta iniciativa parece atender
combinadas da'globalização e da unimun- a Guerra Fria projetou suas polarizações se o papel assumido pelo Comando Sul mais às necessidades simbólicas do que
dialização. O fato de que a América do Sul sobre a região.16 A partir de 2006 as preo- que, dispondo de um orçamento de 100 reais de coordenação entre os quatro paí-
é uma zona marginal para a política de cupações explicitadas pelo Comando Sul milhões de dólares, conta com um staff ses. Enquanto o governo norte-americano
segurança norte-americana não a torna passaram a vincular os cenários políticos numericamente superior ao número de insiste em que se expandam as operações
menos exposta às pressões da macrosse- internos com as coalisões ideológicas intra- funcionários dedicados aos temas sul- de controle e as atividades de inteligência

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SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL: DIMENSÃO REGIONAL DE SEUS DESAFIOS POLÍTICOS

na área, os governos brasileiro e argenti- Sul projetadas para o período 2007-2016. lidade ocasionada por armas de fogo. Os da microssecuritizações. Facilitados e esti-
no reafirmam a improcedência das sus- Trata-se de uma refundação de facto do países latino-americanos enfrentam desa- mulados pela globalização, os contatos
peitas do Departamento de Estado de Sistema Inter-americano, baseada na for- fios crescentes para conter a escalada de entre ambos produzem-se como conse-
presença de células vinculadas ao terro- mulação de objetivos e missões por meio práticas de delito organizado que já ad- quência do encolhimento do Estado. Como
rismo islâmico. de novas parcerias com os países da re- quiriu uma dinâmica auto-sustentada e foi apontado por Buzan, uma das princi-
Entre os aspectos relevantes da ma- gião. Conceitualmente o campo de inte- encontra fortes explicações nos contextos pais motivações deste vínculo é de nature-
crossecuritização encontra-se a adequação resse transcende as noções clássicas de de marginalidade social marcados pela za financeira, o que estimula um universo
dos sistemas jurídicos nacionais às pres- segurança e defesa, identificando-se qua- exclusão e a desigualdade. infinito de artifícios para a lavagem de
sões norte-americanas por políticas mais tro ameaças essenciais: (i) pobreza e desi- Como contraponto do conceito de ma- dinheiro em todas as partes do mundo.22
eficientes de controle e repressão ao terro- gualdade, (ii) corrupção, (iii) terrorismo, crossecuritização utilizado na seção ante- Mas o fato de que as suas dinâmicas pos-
rismo internacional. Diferentemente dos (iv) crime. É superada assim a noção de rior, propomos a ideia de uma rede de sam associar-se não implica que seja uma
países andinos - Colômbia, Peru e Bolívia, segurança coletiva e cooperativa com a microssecuritizações para caracterizar a de- tendência inexorável. Nosso argumento é
os países do Cone Sul não enquadram o magnificação da ideia de parceirias que sigualdade complexa teia de conexões que precisamente de que, na agenda sul-ameri-
tema na alçada das políticas de defesa. No deverão aumentar a liberdade de movi- ameaça a segurança pública sul-america- cana, a rede de microssecuritizações consti-
Brasil, a criminalização da lavagem de di- mentos dos Estados Unidos em toda a re- na. Sustentamos que um aspecto crucial tui um fenômerio auto-sustentado, alimen-
nheiro e, na Argentina, a legislação anti- gião.20 Prevê-se uma nova geração de de tal rede é a sua dimensão regional, tado por motivações sociais, económicas,
terrorista são anteriores ao ataque de 11 de acordos de segurança (não são mais "mili- atualmente uma condição essencial para a políticas e culturais próprias da região.
Setembro nos Estados Unidos.19 Também tares") acompanhados por designações de sua eficácia, sua natureza expansiva e sua Na América do Sul, a negligência dos
precedem esta data as medidas de comba- status de aliados extra-Otan, da criação de auto-sustentação. Em contraposição à ma- Estados diante das suas responsabilidades
te ao narcotráfico executadas pelo Brasil Centros de Excelência regionais e de pro- crossecuritização, a microssecuritização de segurança pública corresponde a uma
em colaboração com seus parceiros do gramas de treinamento militar que permi- está baseada em manifestações locais de das mais sérias falhas dos processos de
Mercosul, seguindo as premissas do Plano tam aos parceiros valorizar o estilo de ameaças e violência. Enquanto sua abran- democratização.23 O agravamento desta
de Segurança da Tríplice Fronteira, vigen- vida norte-americano. Para alcançar esses gência é limitada, como se fosse uma par- deficiência, compartilhada pelos sistemas
te desde 1998. propósitos planeja-se a transformação da tícula de insegurança, sua força e capaci- jurídicos e policiais nos diferentes países
A partir da sexta e sétima reuniões atual organização militar do CS em uma dade de causar impacto se deve às suas da região, outorgou-lhe um caráter cróni-
ministeriais de defesa (Quito, em 2004 e Inter-agência Conjunta de Segurança que vinculações com outros pontos de irradia- co com profundos enraizamentos sociais e
Manágua, em 2006) observa-se um tom de atuará com grande autonomia junto ao ção que, por sua vez, reproduzem novas económicos. A principal consequência de
concórdia e abertura entre Washington e governo dos Estados Unidos.21 Á relação manifestações de violência. A possibilidade tal falha institucional tem sido o desenvol-
os países sul-americanos, facilitado pela com os parceiros na região atenderá à ne- de conexão entre pares, em espaços nacio- vimento de uma complexa rede de inter-
abordagem multidimensional da seguran- cessidade de melhorar a capacidade de nais e/ou regionais estatais e privados, é o conexões entre o delito e o sistema policial,
ça regional. Passou a ser outorgado espe- entendimento e a ligação de "todo o apa- que lhe assegura capacidade operativa. Da estimulado pela distribuição dos fartos
cial reconhecimento às atribuições da OEA relho governamental" (as aspas são nos- mesma forma que a macrossecuritização, a recursos económicos provenientes princi-
no campo da segurança hemisférica, so- sas) com a sua agenda de segurança. Um microssecuritização também se beneficia palmente do tráfico de drogas e de armas
mado à valorização das medidas de con- dos pontos de destaque da formulação do da globalização, através da mobilidade de leves. Atualmente a América do Sul é res-
fiança recíproca, da participação nas ope- CS é a inclusão de temas de segurança recursos, da interconexão dos mercados ou ponsável por 45% do tráfico mundial de
rações de paz conduzidas pelas Nações pública como uma área de atenção e ação das facilidades tecnológicas, especialmente cocaína, e lidera a cifra mundial de homi-
Unidas, especialmente no Haiti, e da ade- da parceria com os governos da região, no campo das comunicações. A microsse- cídios cometidos com armas leves.24 Este
são às iniciativas do Conselho de Seguran- tema da próxima seção. curitização também conta com seus antece-' constitui o caldo de cultivo da rede de
ça da ONU em não proliferação. E chama- dentes, sendo notório o fato de que o delito microssecuritizações, que conta com a
tiva a coincidência entre a redução do 3. Segurança pública: entre organizado não corresponde a um fenôme- cumplicidade de segmentos dos Estados e
perfil das reuniões ministeriais e o aumen- mo do século XXI. Mas sua incidência na das elites locais, ameaçando cotidiana-
to de expectativas com respeito ao Co- o delito regionalizado e os vida cotidiana ganhou novo dramatícismo mente a cidadania.
mando Sul, o que indica a natureza cam- esforços por remonopolizar no período recente, observando-se graus É ainda no contexto da expansão da
biante das relações dos Estados Unidos a violência diferenciados de exposição à sua capacida- violência, marcada pela reduzida capaci-
com a região em temas de segurança. de de produzir violência e insegurança. dade do Estado de contenção ao delito
Finalmente, merece menção o anúncio A América Latina corresponde à região Outro ponto a ser sublinhado refere-se organizado, que se vê estimulado o apare-
das premissas estratégicas do Comando na qual se registra a maior taxa de morta- ao vínculo entre os universos da macro e cimento de uma nova geração de grupos

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paramilitares formados por ex-militares recursos, métodos e doutrinas. De outro, da organização Primeiro Comando da do que constatar uma nova realidade -
ou agentes e ex-agentes do sistema de se- estaria o empenho por criar condições Capital (PCC) em diferentes partes da uma tendência frequente na literatura
gurança pública que, por sua vez, propor- para o funcionamento de democracias se- América do Sul, registrando-se suas rami- sobre segurança internacional - pós 11 de
cionam um novo circuito de tráfico de guras, nas quais se buscaria manter uma ficações na Colômbia, Bolívia, Paraguai, Setembro. O fato de que a América do Sul
armas.25 Sua presença soma-se às tantas ação diferenciadora de missões e instru- Uruguai e Argentina. Também foi detecta- constitui uma área estrategicamente mar-
manifestações de inoperância do Estado, mentos, distinguindo-se os espaços da da uma dimensão regional no escambo ginal facilita a percepção desta transfor-
em seu papel de ente protetor das popu- política, segurança, defesa, dos direitos praticado entre as redes de tráfico de mação de forma dissociada da guerra
lações civis submetidas à violência gerada humanos e soluções sociais (especialmente armas e a de entorpecentes.29 contra o terror. Acreditamos que os princi-
pela guerrilha, pelo crime organizado e o a educação) como condição necessária A ação coordenada interestatal para o pais problemas de segurança na América
tráfico de drogas. Para as elites, desde para uma ação pública dotada de autori- combate ao crime organizado é insuficien- do Sul estão mais relacionados ao agrava-
longa data a solução adotada vem sendo dade e legitimidade. te na América do Sul. No Cone Sul, meca- mento do que se rotulou "a nova agenda"
o da segurança privada - aquela que Duas questões interligadas emergem nismos como o Grupo de Controle de - terminada a Guerra Fria - do que "à
provê proteção como negócio, especial- quando se aborda o tema da segurança Armas do Mercosul vêm mostrando resul- mais nova agenda", que Barry Buzan
mente valorizada para lidar com a persis- pública. A primeira, de natureza concei- tados limitados.30 Outro instrumento sub- identifica como de macrossecuritização.
tente indústria de sequestros.26 Deve ser tuai, refere-se à diferenciação entre terro- regional pouco efetivo, em vigor desde Devemos frisar que o fator diferenciador
frisado que este conjunto de desdobra- rismo e ações que compreendem métodos 2004, é o Memorando de Entendimento não remete apenas a uma questão de
mentos da falência da autoridade estatal, terroristas. Cada vez são mais semelhan- para o Intercâmbio de Informação sobre a quantidade mas também de qualidade, o
que estimula usos e abusos de poder e a tes os métodos empregados no terrorismo, Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de que indica a especificidade dos problemas
busca de formas alternativas de proteção entendido como uma ameaça global, e Fogo, Munições, Explosivos e outros Ma- de segurança na América do Sul.
à vida e à propriedade, são encontradas aqueles utilizados pelo crime organizado teriais Relacionados. Também registram-
tanto em zonas urbanas quanto rurais na que ameaçam à segurança pública em se iniciativas coordenadas com organis- II
região. A violência no campo constitui âmbitos urbanos sob a responsabilidade mos multilaterais, especialmente a OEA a
uma dimensão igualmente ativa da rede de autoridades locais. A questão concei- ONU.31 A principal meta das ações conosu- Acreditamos que na atualidade o as-
de microssecuritizações em países como a tuai conduz ao debate sobre o tipo de au- lenhas tem sido conter as conexões ilícitas pecto mais relevante da agenda de segu-
Colômbia, Peru, Bolívia e o Brasil. Men- toridade e força adequado para conter que encontram no território paraguaio e rança sul-americana é possuir uma rede
cione-se ainda o fenómeno do paramilita- esse tipo de ameaça. Emerge neste caso a nas fronterias amazônicas, áreas privile- de microssecuritizações conectada regio-
rismo como um produto de exportação controvérsia entre o uso da força militar giadas pela rede de microssecuritição ope- nalmente. O crime organizado adquiriu
associado ao fenómeno da privatização ou policial para combater as diferentes rante na América do Sul. força, organização e recursos que lhe ou-
da guerra e ao reaparecimento recente de ameaças à segurança pública. Quanto torga capacidade de articulação nacional,
mercenários para atender à agenda da maior a dificuldade enfrentada pelos Esta- regional e global. Além dos pontos de
macrossecuritização. dos sul-americanos para conter a ação do Reflexões finais contato já mencionados entre a macro e a
Este dramático panorama vem pondo crime organizado nos principais centros microssecuritização, devemos destacar
em evidência as limitações do Estado sul- urbanos - Rio de Janeiro, São Paulo, Cara- Espera-se que o conjunto de ideias e um elemento que os associa, o risco que
americano para cumprir eficazmente suas cas, Bogotá e Buenos Aires -, mais presen- informações reunidas neste artigo possam ambos introduzem para a preservação de
responsabilidade de formulação e imple- te se faz a controvérsia sobre o envolvi- contribuir para enriquecer um diagnóstico valores políticos democráticos e a prote-
mentação de políticas de segurança públi- mento dos militares neste tipo de missão. político dos problemas de segurança na ção de liberdades civis. O impacto causa-
ca. Coloca-se em tela de juízo os meios dos Investigações parlamentares recentes América do Sul. Com este mesmo propó- do por ambos estimula respostas "incivili-
quais se dispõe para proporcionar respos- no Brasil sobre o tráfico de armas indica- sito oferecemos algumas reflexões finais: zadas" por parte do Estado e da sociedade,
tas institucionais, observando-se dois ti- ram o envolvimento do próprio Estado no instalando a violência como um recurso
pos de receitas: de um lado, se identifica- delito, sejam forças de segurança pública l de poder que se dissemina. Buzan chama
ria a construção de projetos guiados pela ou mesmo as Forças Armadas.27 Também a atenção para o conflito entre o Estado e
premissa da segurança democrática, basea- foram colhidas informações sobre as rami- Insistimos de que houve uma mudan- a sociedade incivilizada que predomina
do na securitização da ação pública com a ficações regionais deste tráfico beneficiado ça de agenda da segurança regional no na guerra contra o terrorismo, nós subli-
expectativa de tornar mais eficiente o uso pela precariedade dos controles nos aero- período de uma década. Como entender nhamos a tensão entre a civilização e a
da força. Parte-se de uma visão unificado- portos, portos e fronteiras do país.28 Pes- esta alteração? Parece-nos mais importan- barbárie que se observa nos esforços de
ra de ameaça que tende a concentrar quisas realizadas sobre o tráfico de armas te chamar atenção para o processo de contenção ao crime organizado.32 Quais
numa mesma estratégia de ação os seus leves na América do Sul revelam a atuação transformação da agenda dos anos 1990, são os afores responsáveis pela manuten-

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SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL: DIMENSÃO REGIONAL DE SEUS DESAFIOS POLÍTICOS

cão da ordem, quais os limites para o uso paço para que os governos da região reco- rivais na América do Sul estão atualmen- VII
da força e qual o tipo de autoridade mais nhecessem a necessidade da moderniza- te alimentadas por questões territoriais,
apropriado. Essas são as questões que ção de sua missão, o que acabou por lhes econômico-sociais, de cultura política, de Quando abordamos o tema da dimen-
devem ser abordadas politicamente. Como outorgar um novo fôlego institucional e diferentes políticas internas e externas, e são regional do crime organizado na Amé-
não colocar em risco o aprendizado que político. Na região andina este reforço de de capacidades de defesa. As rivalidades rica do Sul devemos sublinhar o papel de-
adquirimos sobre a defesa do direitos missão está mais vinculado ao envolvi- na América do Sul são civis e militares; sempenhado pelo Paraguai. Este país se
humanos? É também neste contexto que mento no combate ao narcotráfico e à elas combinam um jogo de interesses in- converteu no território livre do delito sul-
devemos encarar o debate sobre o papel narcoguerrilha, estimulado pelos Estados ternos que alimenta e polariza a compe- americano. A porosidade de suas fronteiras
das FFAA. Unidos. Nos países conosulenhos a preocu- tição política em quase todos os países vem permitindo sua utilização para opera-
pação sempre presente de manter este tipo da região. ções visando ao trânsito de entorpecentes,
de atuação fora da alçada militar começa a recursos financeiros e armas de grupos e
Ill personagens responsáveis pela inseguran-
perder sustentação, principalmente no VI
Institucional, política e economicamen- Brasil. O aspecto mais complexo desta ça pública das principais cidades da região.
te as FFAA sul-americanas atravessam um controvérsia diz respeito à crescente difi- A irrelevância estratégica da América Como já foi frisado em outros textos, esta
momento notavelmente positivo. Como culdade de diferenciação entre os campos do Sul foi sempre motivo de certa miopia funcionalidade encontra explicações no
foi mencionado, tanto na região andina de ação militar e policial, mais ainda por parte dos Estados Unidos para com a processo contínuo de cumplicidades entre
como no Cone Sul os militares parecem quando se considera o crime organizado região, nos momentos de aplicação de o Estado paraguaio e segmentos governa-
haver reencontrado um sentido de missão como uma forma de ação terrorista. É ne- seus esquemas de macrossecuritização. A mentais de países vizinhos, especialmente
que combina, em cada caso, estímulos cessário não confundir o fenómeno do percepção de governos populistas como nas localidades fronteriças. Ao contrário
proporcionados por: participação em Ope- terrorismo com o emprego de métodos ameaça se deu durante a Guerra Fria e do que se previu, o Mercosul, em lugar de
rações de Paz da ONU, combate às dife- terroristas. volta a se repetir na Guerra contra o Ter- se prestar a conter este tipo de permissibi-
rentes formas de ameaça locais e globais, ror. Anualmente este tipo de percepção lidade, terminou por agravá-la ainda mais;
necessidade de defesa territorial, proteção distorcida - especialmente pelo Comando as facilidades para a troca de mercadorias
dos recursos energéticos e/ou naturais, Sul - vem contribuindo para a polarização acabou beneficiando a circulação de armas
afirmação de valores nacionais e interlo- O fato de que as FFAA se vejam forta- ideológica entre a Venezuela e o governo e drogas entre os países do bloco.
cução privilegiada com o Comando Sul. lecidas institucional e economicamente norte-americano, com visível impacto na
Em vez de observar com tanta insistência em toda a América do Sul suscita novas agenda de segurança sul-americana. Mas VIII
o aumento dos orçamentos militares na reflexões sobre a aplicação do conceito de os territórios cinzas são tão abundantes
região, poderia ser mais apropriado que paz interdemocrática na região, especial- quanto os negros e brancos nesta dinâmi- Devemos insistir sobre"as graves con-
aprofundássemos os estudos sobre os mi- mente num momento em que regimes de ca. Ao mesmo tempo em que a expansão sequências da inexistência de respostas
litares e os processos políticos sul-ameri- direito convivem com a expansão de riva- do orçamento militar venezuelano res- institucionais regionais para lidar com a
canos, tema abandonado por nossa acade- lidades interestatais e o aprofundamento ponde-a uma política de defesa que iden- complexa teia de problemas de segurança
mia com o apagar das luzes dos regimes de sentimentos nacionalistas. Um primei- tifica os EUA como uma ameaça, suas re- na América do Sul. Iniciativas específicas
autoritários. ro passo seria a própria desconstrução do percussões junto de seus vizinhos, amontoam-se sem conduzir a uma cons-
conceito, tratando de compreender a paz especialmente o Brasil, inscreve-se no trução política de uma base institucional
na região mais como o resultado da coin- marco de discordâncias políticas crescen- responsável por uma normativa comum e
IV temente relevantes. Deve-se ter claro, en- por ações coordenadas. No âmbito sul-
cidência quanto à rejeição ao conflito, do
No Cone Sul, a questão das relações que um processo convergente de constru- tretanto, que as diferenças entre a Vene- americano, podemos identificar quatro
civil-militares revolve o passado trazendo ção política que busca aprofundar a harmo- zuela e o Brasil não são as mesmas que fatores que obstaculizam uma construção
consigo a imputação da responsabilidade nia e o convívio. O sentido da rivalidade separam Caracas de Washington. No últi- comunitária: 1) a persistência e renovação
dos militares pelas violações de direitos interestatal adquiriu nova complexidade, mo caso, constata-se uma disputa ideoló- de rivalidades inter-estatais, 2) as diferen-
humanos durante os anos de autoritaris- e deve ir além de métodos contábeis e de gica e estratégica que se projeta sobre a ças de doutrinas de defesa e de tratamento
mo, o que há 15, 20 anos era identificado apreciação generalizantes para concluir área do Caribe, enquanto as tensões brasi- de problemas de segurança pública, 3) o
como uma questão que conduziria ao en- se estão ou não presentes. A rivalidade leiro-venezuelanas dizem respeito à vin- desinteresse estratégico dos Estados Uni-
fraquecimento político das FFAA. Não também resulta de uma construção polí- culação estabelecida entre capacidades de dos, 4) a dificuldade do Brasil de vincular
obstante, a adequação dos militares ao tica, ainda mais se manifestadas em con- projeção de projetos políticos associados a seu poder dissuasivo com uma atuação
Estado de direito abriu com o tempo o es- textos políticos democráticos. As agendas modelos energéticos alternativos. política regionalizada.

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SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL: DIMENSÃO REGIONAL DE SEUS DESAFIOS POLÍTICOS

16. Veja Alencar, Kennedy, "Não queremos Guerra Fria 26. Veja Mandei, Robert. "The privatization of secu-
IX a expansão de uma rede regional de mi- rity", Armed Forces & Society, v. 28, n.1, 2001.
na AL, diz Marco Aurélio Garcia", Folha de São Paulo,
crossecuritizações. O reconhecimento do 7/05/06. Soares de Lima, Maria Regina, "Guerra Fria, de
Por último,'parece-nos necessário fri- Brasil em temas de segurança regional é 27. O Congresso Brasileiro criou, em abril de 2006, a
volta à América do Sul?", Jornafdo Brasil, 29/08/2005. Comissão Parlamentar de Investigação sobre Organiza-
sar a centralidade da presença brasileira ainda limitado, estando inevitavelmente Tokatlian, Juan Gabriel, "El regreso de Ia Guerra Fria", ções Criminais de Tráfico de Armas. Seu objetivo foi in-
no processo de transformação da agenda subordinado ao debate em curso sobre a LaNación, 10/04/05. vestigar as principais fontes de fornecimento de armas
de segurança sul-americana. O Brasil ad- sua responsabilidade política na constru- 17. Barry, Tom. 'Mission Creep' in Latin America - U.S. para o crime organizado, identificar as falhas na legis-
quiriu um novo tipo de vínculo com esta ção de um projeto comunitário sul-ameri- Southern Command's new security strategy", Américas lação e nas estruturas institucionais para a implementa-
agenda na década recente seja graças à sua cano. Nosso ponto é de que essa responsa- Program, International Relations Center (IRQ, julho ção de novas medidas coercitivas. A CPI contou com a
projeção mundial no boom dos mercados bilidade vale para todos os campos de 2005. colaboração do Exército e da Polícia Federal, que divi-
internacionais de armamentos, ou o seu interação, incluindo o da segurança. 18. Veja Flynn, Matthew & Logan, Sam and Matthew dem responsabilidades no controle de armas, e com a
envolvimento como "país dobradiça" com Flynn, "US military moves in Paraguay rattle regional assessoria técnica ONG Viva Rio. Disponível na página:
relations", IRC Américas, 14/12/05. <http://www.comunidadsegura.org/?q=es/node/31618>.
19. No Brasil depois da Lei n° 9.613/98, de 3 de março 28. De acordo com a CPI, nos seus 15.735 quilómetros
de 1998, conhecida como "Lei de Lavagem de Dinhei- de fronteira, o Brasil dispõe de 140 pontos de entrada
Notas 8. Veja "Ranking do Poder Militar na América do Sul
ro", o governo Lula elaborou o anteprojeto da Lei de armas.
contra o terrorismo e seu financiamento encaminhado 29. International Narcotics Contra/ Strategy Report.
1. Hirst, Monica, "Seguridad regional en Ias Américas" - 2006/2007", Military Power Review. Malamud, Carlos
ao Congresso em 2007. Na Argentina menciona-se a Lei Washington, D.C.: Press: 1-2/03/00.
en Wolf Grabendorff (comp.), ia seguridad regional en y Garcia Encina, Carlota. "^Rearme o renovación dei
n2 25.241, sancionada em 23/11/00.
ias Américas. Enfoques críticos y conceptos alternatives. equipamiento militar en América Latina?", DT IM° 30. Até o presente não foi colocado em funcionamen-
31/2006, Real Instituto f/cano, 15/12/2006. 20. United States Government, Southern Command, to o Sistema de Informações sobre Armas (Sisme) criado
Bogotá: Fescol/Cerec, 2003.
"Command Strategy 2016", agosto 2007. pelo Grupo de Controle.
2. Buzan, Barry. Regions and Power: The Structure of 9. Calle, Fabián, "El ascendente debate sobre poder
militar y recursos naturales estratégicos", Nueva Mayo- 21. Idem, p. 16
International Security. Cambridge: Cambridge Universi- 31. Na OEA vale mencionar as iniciativas da Convenção
ty Press, 2003, p. 18, ría, 08/06/07. Malamud, Carlos y Garcia Encina, Carlota. 22. Buzan, Barry (2006), op c/t, p. 9 Intra-americana contra a fabricação e o tráfico ilícito de
"^Rearme o renovación dei equipamiento militar en 23. Veja Sain, Marcelo. "Democracia, Seguridad Públi- armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais
3. Veja Hurrell, Andrew. "Security in Latin America",
América Latina?", DT n° 31/2006, Real Instituto Elcano, ca y Polida: Ia reforma dei sistema de seguridad y poli- relacionados (Ciffta). Na ONU vale mencionar a "Confe-
International Affairs, v. 74, n. 3, 1998. Tokatlian, Juan.
15/12/2006. cial en Ia Província de Buenos Aires", Seminário "Lãs rência sobre tráfico ilícito de armas leves" (2001), o
Globalización, narcotráfico y violência: siete ensayos
sobre Colômbia. Buenos Aires: Editorial Norma, 2000. 10. Veja Guimarães, Samuel Pinheiro. Desafios brasilei- Reformas Policiales en Argentina". CELS, Buenos Aires, treinamento anti-seqúestro prestado pela Unodc para
Mittelman, James H & Johnston, Robert. "Globalization ros na era dos gigantes. Rio de Janeiro: Contraponto, 1-2/12/1998. profissionais de segurança pública sul-americanos, o
of organized crime, the courtesan state, and the cor- 2006, p. 347. 24. United Nations, "Office of Drugs and Crime", Uni- Convénio contra a delinquência transnacional organi-
ruption of civil society", Global Governance, v. 5, n. 1, 11. O mecanismo 2+2 consiste em encontros bilaterais ted Nations 2006 World Drug Report, Nova York, 2006. zada e o Protocolo de armas de fogo (2002).
jan-mar 1999. entre os ministros da Defesa e os ministros das Relações 25. Veja Jones, Adam. "Parainstitutional violence in 32. Buzan, Barry. "The war on terrorism as the new
4. Podem ser mencionadas as tensões fronteiriças entre Exteriores de dois países para a discussão de temas de Latin America", Latin American Polltics S Society, v. 46, macro-securitisation", Oslo Workshop, 2-4/02/2006,
Colômbia e Venezuela, Chile e Peru e Chile e Bolívia, defesa e segurança. Os encontros 2+2 entre peruanos e n.4, 2004. p. 20.
Bolívia e Paraguai, a falta de reconhecimento chileno da chilenos encontravam-se suspensps desde 2005.
cartografia argentina para os Gelos do Sul, e o conflito 12. Hirst, Monica, "Mercosur's complex political agen-
entre Argentina e Uruguai pela construção da fábrica da" em Riordan Roett(ed.), Mercosur Regional Integra-
do celulose "Botnia" às margens do rio Uruguay. tion, World Market^ Londres: Lynne-Rienner Publisher,
5. Veja Sikkink, Catherine e Booth Walling, Carrie. 1999. Jones, Charles. "International Relations in the
"The emergence and impact of internacional trials", Américas: microcosm or exception?", mimeo, Universi-
mimeo, Universidad Torcuato Di Telia, 2006. dade de Cambridge, 2005.
6. Veja Calle, Fabián. "Evolución reciente de Ias políti- 13. Veja Jervis, Robert e Snyder, Jack, "Civil war and
cas y estructuras de defensa en el Cono Sur (Argentina, the security dilemma" em Snyder J. e Walter, B. (comp.),
Brasil y Chile): rumbo a Ia disuasión o a Ia seguridad Civil Wars, Insecurity, and Intervention, Columbia Uni-
regional?". Disponível em: versity Press, 1999, pp. 15-38.
<http://www.fuerzaaerea.mil.ar/prensa/estudios/docs/ 14. Barry Buzan, "The 'War on Terrorism' as the new
informe%20abc%20defensa.doc>. 'macro-securitisation'?", Oslo Workshop, fevereiro 2006.
7. Veja Calle, Fabián. "Evolución reciente de Ias políti- 15. "Testimony of Gral. James Hill - United States Army
cas y estructuras de defensa en el en Sudamérica: los Commander, United States Southern Command" - be-
casos paradigmáticos de Chile y Venezuela y su impacto fore the House Armed Service Committee, United Sta-
regional", mimeo, 2007. tes House of Representatives, 24/03/04.

62 POLÍTICA EXTERNA 63 VOL16 N°3 DEZ 20O7 JAN/FEV 2008

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