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Entrevista Cristiana Simão Seixas y

Como medir
o valor
da natureza
Bióloga que coordenou diagnóstico sobre
a biodiversidade nas Américas expõe
estratégias para reduzir velocidade da perda

Fabrício Marques

N
o final de março, pesquisado- do Diagnóstico das Américas do IPBES,
res e autoridades de 129 países documento que mapeou a velocidade da
participaram em Medelín, Co- perda da biodiversidade no continente e
lômbia, da 6ª Plenária da Plata- seus impactos na qualidade de vida hu-
forma Intergovernamental de Biodiversi- mana e sugeriu estratégias para refrear Experiência em interações
dade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), o processo. Pesquisadora do Núcleo de entre conservação e
desenvolvimento qualificou a
painel ligado às Nações Unidas que busca Estudos e Pesquisas Ambientais (Ne-
bióloga a coordenar trabalho
organizar o conhecimento científico e pam) da Unicamp, ela se envolveu nos de especialistas
outras formas de conhecimento sobre últimos anos com um tema de pesquisa
a biodiversidade e os benefícios que ela que está no cerne das preocupações da
fornece para a vida humana no planeta. plataforma: as interações entre conser-
Relatórios sobre degradação e restaura- vação da biodiversidade e desenvolvi-
ção de áreas e a respeito da situação da mento econômico e social. Criada na
biodiversidade em quatro regiões foram zona rural do interior paulista, ela se in-
aprovados na plenária. A organização das teressa pelo assunto desde que escolheu O que foi avaliado no diagnóstico das
informações teve a colaboração direta a graduação em biologia e o mestrado Américas?
de 25 pesquisadores brasileiros, que até em ecologia, realizados na Unicamp, e O foco do diagnóstico não foi simples-
julho devem divulgar outro diagnóstico, passou a desenvolvê-lo em seu doutora- mente mostrar que estamos perdendo
esse específico sobre a situação do país, do em Gestão Ambiental e de Recursos biodiversidade. Isso todo mundo já sabe.
coordenado pelos biólogos Carlos Joly, Naturais na Universidade de Manitoba, O objetivo foi apontar a velocidade desse
da Universidade Estadual de Campinas no Canadá, concluído em 2002. Na en- processo e como a contribuição da biodi-
(Unicamp), e Fábio Scarano, da Universi- trevista a seguir, ela expõe as conclusões versidade e dos serviços ecossistêmicos
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). do diagnóstico, explica a importância dos para a qualidade de vida das pessoas vem
A bióloga Cristiana Simão Seixas, de conhecimentos tradicionais e mostra mudando. A partir disso, levantamos ce-
47 anos, teve um papel de destaque nes- por que é preciso contabilizar também nários e as opções de políticas para tentar
se grupo. Foi uma das coordenadoras os valores imateriais da biodiversidade. frear a perda.

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funcionando. Há um crescimento econô-
mico desordenado, expansão da agrope-
cuária, da mineração e da poluição, além
das mudanças climáticas. Mas também
há iniciativas, ainda em pequena esca-
la, de agricultura sustentável, práticas
sustentáveis de manejo de água, de flo-
resta, de pesca, de caça etc. Nesse sen-
tido, temos muito o que aprender com
populações tradicionais e indígenas. O
diagnóstico aponta que as Américas são
uma região não só altamente biodiver-
sa mas também culturalmente diversa.

A que se deve a queda na pegada eco-


lógica da América do Norte?
Não dá para dizer exatamente, mas há
mudanças no comportamento humano
e no padrão de consumo. A agricultura
orgânica cresce, temos agroflorestas, me-
nor uso de inseticidas e legislações que
controlam resíduos industriais.

E na América do Sul? Qual o potencial


para reduzir?
O aumento da nossa pegada ecológica
tem a ver com muitas pessoas saindo
da linha de pobreza e consumindo mais.
Isso tem o lado bom, que é a questão so-
cioeconômica. Tem um dado importante
a analisar, o da reserva ecológica de cada
país, que é a biocapacidade menos a pe-
gada ecológica. Nos Estados Unidos, o
balanço é negativo. No Brasil é bastante
positivo e o potencial para promover um
desenvolvimento sustentável é grande.

Como a diversidade cultural e a bioló-


gica andam juntas?
Qual é a dimensão dela? produzir serviços para a humanidade. Ao A proposta do IPBES é fornecer o me-
Os dados mostram que 95% das prada- mesmo tempo, temos 22,8% da pegada lhor conhecimento disponível para a to-
rias na América do Norte já se transfor- ecológica do mundo, o que é evidente- mada de decisão. Isso depende da ciência
maram em áreas dominadas pela ação mente desproporcional. A pegada eco- e também de conhecimento das comu-
humana. O mesmo vale para 88% da Ma- lógica é o impacto que a produção eco- nidades indígenas ou tradicionais. As
ta Atlântica, 70% dos Campos do Rio de nômica e o desenvolvimento dos países populações que vivem em um ecossis-
la Plata, incluindo os Pampas, 50% do causa nos ecossistemas. Ela continua tema entendem como ele funciona. Há
Cerrado, 17% da floresta amazônica e por crescendo na América do Sul, no Cari- um sistema de valores e de conhecimen-
aí vai. Em algumas regiões, a biodiversi- be, na América Central. Mas nos Esta- to acoplado ao sistema biofísico. Essas
dade diminui muito rapidamente. Ain- dos Unidos e no Canadá, embora sejam populações podem ensinar a manejar
da assim, as Américas possuem 40% da responsáveis por dois terços da pega- ecossistemas de maneira sustentável,
chamada biocapacidade global, que é a da ecológica do continente, a tendência tirando o máximo proveito dele, sem
possibilidade de prover serviços e bene- é de diminuição. Esta é a boa notícia: é destruí-lo.
fícios para a humanidade. Isso é medido possível frear esse processo.
pelo potencial ecológico dos ecossiste- Como é possível incorporar esse tipo de
mas das Américas, pela contribuição de Como fazer isso? conhecimento ao diagnóstico?
tecnologias e pela capacidade de absor- O diagnóstico mostra aqui e acolá ini- Incorporamos esses exemplos na forma
eduardo cesar

ver os dejetos da produção econômica. ciativas que estão conseguindo dar uma de estudos de caso. Por definição, esse
O continente tem 13% da população do refreada em algumas áreas. É preciso conhecimento é local. Fizemos um es-
mundo e 40% da capacidade global de aprender com os exemplos que estão forço para coletar trabalhos etnográfi-

pESQUISA FAPESP 267  z  41


cos, antropológicos e etnobiológicos, Como conciliar a preservação da bio-
que mostram, por exemplo, como po- diversidade com o desenvolvimento?
pulações indígenas vêm manejando a O diagnóstico deixa claro que as áreas
caça de forma sustentável por séculos. Não há uma protegidas são muito importantes para
Também se mostrou que as populações a conservação, mas insuficientes. E que
indígenas no alto rio Negro criaram no- parte do mundo estratégias de restauração são igualmente
vas variedades de mandioca, por meio importantes para áreas degradadas, mas
de manejo e cruzamentos.
que seja não devem ser a política principal. Preci-
intocada pela samos pensar em como manejar de forma
Há outros destaques? mais sustentável as áreas que já estamos
Não tem um que seja mais representati- ação humana. explorando. É possível? Eu acredito que
vo. São casos únicos e cada um tem par- sim. Tem que ter força política e lidar
ticularidades. O manejo da mandioca no Isso não com inúmeros interesses, mas o diagnós-
rio Negro, na Amazônia brasileira, é um tico apresenta várias possibilidades. No
exemplo. Há relatos, agora comprovados
existe nem caso da agricultura, há conhecimento so-
com imagens de satélite, que muito do no polo Norte bre como aumentar a produtividade em
que achávamos que eram florestas intac- uma área sem ter muito impacto. Outro
tas na Amazônia são na verdade áreas ponto: é necessário gerar mais energia,
manejadas e desenhadas pelas popula- já que a população está crescendo. Quais
ções que viveram ali em outras épocas, seriam as opções? Talvez seja preciso
que exploraram, por exemplo, as casta- construir uma hidrelétrica, sim. Elas não
nheiras. O homem maneja esses ambien- ção final. Embora a proposta é que haja devem ser vistas sempre como vilãs. Mas
tes há milhares de anos (ver reportagem uma paridade entre pesquisadores de deve-se fazer hidrelétricas em áreas on-
à pág. 18). Não tem uma parte do mundo ciências humanas e ciências naturais, de haja uma caída de água grande e com
que seja intocada pela ação humana. Isso isso não foi possível. As indicações feitas pouco impacto. Sempre há opções e, en-
não existe nem no polo Norte. eram predominantemente da área bioló- tre elas, uma combinação que gere menos
gica. Assim, a grande maioria foi de bió- perdas. É necessário colocar as diferentes
Como foi reunir pesquisadores de áreas logos, ecólogos, agrônomos, cientistas opções e as perdas e ganhos no papel,
diferentes para produzir o diagnóstico? do clima e houve poucos economistas, mas não vale contabilizar só o valor eco-
É preciso compreender como funciona sociólogos e antropólogos. Também se nômico. Quando uma população indígena
o IPBES. Em cada diagnóstico, abre- buscou reunir pessoas representativas é deslocada da sua área, não perde só o
-se uma chamada para pesquisadores e dos diversos biomas e sub-regiões das ganha-pão. Vai perder cultura e conheci-
pessoas interessadas. Oitenta por cento Américas. Entretanto, não havia especia- mento desenvolvidos localmente. Muitas
dos participantes devem ser indicados listas no Ártico. A solução foi convidar populações deslocadas acabam desapa-
por governos – no caso do Brasil, pelo 50 autores contribuintes, especialistas recendo. As Américas concentram 15%
Itamaraty – e 20% pela sociedade civil que ajudam a escrever alguns parágrafos das línguas do mundo e quase dois terços
e setor privado. Aí, o IPBES faz a sele- sobre um dado tema. delas estão sendo ameaçadas ou em risco
de extinção. Há muita cultura deslocada
por construção de barragens, exploração
da minérios e conflitos de terras.
Pegada ecológica nas Américas
Como mudar comportamentos?
Evolução da área que cada sub-região do continente requer para Não se vai longe sem promover uma
produzir todos os recursos que sua população consome e absorver conscientização maior. Se perguntar a
os rejeitos gerados por ela (1992 a 2012) uma pessoa quanto do bem-estar dela
vem da natureza, ela provavelmente vai
mencionar a alimentação. Na verdade, é
Hectares globais Pegada ecológica total a comida, a água, a roupa que veste, o ar
que respira. O bem-estar de caminhar
3 bilhões
numa praça, num parque, numa mata,
n Caribe
n Mesoamérica
tudo vem da natureza. Com a vida nas
n América do Norte cidades, as pessoas perderam essa per-
2 bilhões n América do Sul cepção. Além disso, suas opções de con-
sumo geram impactos na natureza sem
que elas se deem conta disso. A questão
1 bilhão
não é parar de consumir, mas de ter um
consumo consciente. Qual é o alimento
0 fontes  Global Footprint que eu vou comprar? Conheço o impacto
Network e World
1992 1996 2000 2004 2008 2012 Wildlife Fund (2016) que ele teve na natureza? Vou comprar

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tantes onde esse produto vai ser levado.
O espectro da preservação É preciso levar tudo isso em conta. Na
questão da água é a mesma coisa. Gasta-
Porcentagem de áreas protegidas pela legislação nas -se muita água para produzir alimento.
Américas e em suas sub-regiões A tensão é entre a segurança hídrica e
a segurança alimentar. A água não teve
% valor econômico nas tomadas de deci-
são durante séculos. Só há pouco tem-
25 n Terrestre po, numa situação de escassez, é que se
20
n Marinha começou a valorar a água.
n Total

15 Que lacunas ficaram no diagnóstico?


Tem muito ainda a ser descoberto em
10
termos de biodiversidade e de funciona-
5 mento dos ecossistemas. Os bancos de
dados disponíveis sobre dados socioeco-
0 nômicos baseiam-se em países, em divi-
Américas Caribe Mesoamérica América América
Total do Norte do Sul
sões geopolíticas, enquanto as informa-
ções sobre biodiversidade se relacionam,
fontes  World Conservation Monitoring Centre (Unep) e International Union for Conservation of Nature geralmente, a bioma. Outra questão é que
muitos estudos são feitos localmente, e
sabemos muito pouco sobre o quanto
qualquer madeira para construir a minha mineradoras? Um tomador de decisão as suas conclusões podem ser genera-
casa ou apenas madeira certificada? Es- muitas vezes não se dá conta de que o lizadas. Temos também dificuldade em
sas escolhas podem ajudar a minimizar bem-estar dele e de seus eleitores está correlacionar os benefícios da natureza
o impacto. Outro foco é criar políticas ligado à natureza. com qualidade de vida, incluindo seus
que organizem melhor a paisagem. As valores econômicos e imateriais.
plantas se dispersam, por exemplo, pelo Por que a restauração de áreas degrada-
vento ou com a ajuda dos pássaros. Pre- das não é considerada uma prioridade? É trabalho para que ramo de pesquisa?
cisamos pensar em corredores ecológi- Se a restauração fosse a solução, podería- É um desafio para economistas, antropó-
cos para fauna e flora, em incentivar a mos desmatar tudo para restaurar mais logos, sociólogos. Pense nas áreas verdes
ter mais polinizadores para aumentar a tarde. O prejuízo disso seria enorme. A urbanas, no quanto ter contato com a
produção de culturas agrícolas. Um dos restauração é necessária para áreas já natureza aproxima as pessoas e faz com
diagnósticos aprovados anteriormente degradadas. Mas, quando restauramos, que se socializem. Isso traz bem-estar.
pelo IPBES tratou da polinização. Ba- não é possível recuperar 100% dos servi- Mas como se mede isso? Outra questão
seado nele, a França criou uma política ços e dos benefícios que a natureza provê é compreender melhor a relação entre
para colocar plantas silvestres à beira nem a biodiversidade que existia antes. vetores indiretos da mudança da biodi-
das estradas, porque elas atraem insetos É possível restaurar a parte arbórea de versidade, como o crescimento popula-
polinizadores e isso ajuda a aumentar a uma mata degradada. Em relação à fauna, cional, o desenvolvimento insustentável,
produtividade da agricultura. tanto a dos microrganismos do solo como a falta de governança efetiva, a desigual-
dos pássaros e mamíferos, é outra conver- dade, com os vetores diretos, como o
O peso do agronegócio na economia sa. Também não se consegue restaurar desmatamento, a mudança climática, a
brasileira atrapalha essas estratégias? uma parte imaterial da degradação. Eu e fragmentação de hábitat, a sobre-explo-
Sou filha de produtor rural e não vejo as minha família podemos ter uma relação ração dos recursos. Podemos fazer po-
divergências entre o agronegócio e os com uma árvore porque ela foi plantada líticas para frear o desmatamento, mas
ambientalistas como inconciliáveis. No por meu bisavô. Se alguém tirar a árvore, primeiro precisamos entender as causas.
diagnóstico brasileiro, fomos conversar pode-se até plantar outra no lugar, mas o No fundo, esse processo se acelera por-
com o setor produtivo, com indígenas, valor relacional nunca vai ser o mesmo. que há cada vez mais gente no mundo.
com organizações não governamentais. As Américas têm 1 bilhão de habitantes
Tem muita gente no agronegócio que O que o diagnóstico diz sobre a compe- e é esperado que chegue a 1,2 bilhão em
tem consciência ambiental e está pro- tição entre bioenergia e alimentos pelo 2050 e que o PIB do continente dobre
duzindo de modo mais sustentável. Tem uso da terra? no mesmo período. Qual será o impacto
muito vilão também. O país precisa in- Foi um tema inconclusivo. Tanto a ex- ambiental disso se não optarmos por um
vestir em mobilização de conhecimen- pansão da cana-de-açúcar quanto a da padrão de vida mais sustentável em ter-
to. Já geramos muito conhecimento e produção de alimentos podem gerar pre- mos de produção e consumo? Tal opção
agora temos de levá-lo aos tomadores juízo se não forem feitas de forma sus- exige uma mudança comportamental em
de decisão e fóruns de debate. Como tentável. O ponto é que sempre há ga- todos os níveis: do indivíduo às grandes
se leva isso ao agricultor familiar e às nhos e perdas – e não só para uma dada corporações, passando, é claro, pelas ins-
grandes empresas agropecuárias ou às região, como também para lugares dis- tituições governamentais. n

pESQUISA FAPESP 267  z  43

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