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A fonte vernacular

Pacto com Manu Gaden


CCS, 27 de setembro de 2018

Enquanto a tempestade se formava naquela tarde ensolarada, ela lia em voz alta
alguns parágrafos de seu livro maldito. A cada respiração, ajustava certa quantidade de
palavras: inalava oito e exalava quatro. Ao passo que ia lendo, sua respiração se inebriava
daquela carga bruxuleante que continham aquelas palavras – e ficava mais profunda e
lenta, de forma que tinha mais tempo de pronunciar uma quantidade maior de palavras
nessa brisa cuja fonte não era mais o livro – mas seu coração posto a nu por ele. Porém,
por mais que sua respiração fosse maior, não cabia mais nada naqueles intervalos – e ela
se via necessitada cada vez mais a se inserir no silêncio exigido por cada respiração – cada
uma delas exigia ser, por si só, uma palavra a encher seu peito – a aumentar o volume de
seu tórax – a fazê-la se sentir como uma visitante a clarear essa floresta negra em que seu
próprio corpo se transformou por essa leitura de palavras ventiladas.
Enquanto ela lia, os vasos de plantas – que haviam sido regados há pouco tempo –
transbordavam água, formando pequenos lagos que agora fluíam lentamente pela sala –
até que um deles chegou até mim, encostando em meu rabo, instaurando uma nova fonte
de líquido que se misturava com meu próprio líquido – aquele que saía de minha vagina a
cada palavra que eu ouvia – eu me encontrava, então, pairando num lago artificial.
Cada palavra desconhecida que eu ouvia provocava certa desavença em mim, e,
com ela, nascia uma outra fonte, – não de água – mas de movimentos incontroláveis que
me molhavam analogamente à água das plantas – e que tinham a mesma força particular
de um grito a ressoar numa noite vazia. Eu não conhecia a forma desta fonte – mas sabia
que sua existência era maior que a minha – porém sua superfície estava congelada –
agora, ao passo que ela falava, a fonte fazia correr lagos e açudes dentro de mim.
Não sei como, mas, mesmo estando rodeada por água dentro e fora de mim, eu não
me afogava – nesse estado, aprendia a nadar num discurso liquefeito cujas ondas eram
selvagens elocuções. Meu discurso corrente não pode dar conta desta correnteza – mas
pode me levar ao escuro de uma floresta e soltar minha mão – a fim de me perder de vista –
quando eu, enfim, comunicar-me com o impronunciável de mim.

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