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CRIMES DO FUTURO

Texto narrado no filme “Crimes of the future” (1970) de David Cronenberg.

Tradução para o português: Pedro Lavoura Santos.

Eu sou Adrian Tripod, o diretor deste lugar, a "Casa da Pele". Em certo sentido, a minha
encarnação presente foi gerada pelo dermatologista louco Antoine Rouge. A Casa da Pele
começou por existir como uma clínica residencial para pacientes ricos com problemas
dermatológicos graves, causados pelos atuais produtos cosméticos.

Antoine Rouge, que era na altura considerado pouco mais do que um técnico qualificado,
assumiu a direção da clínica há muitos anos atrás, e orientou-a na direção das espécies de
pesquisa mais fantásticas. As teorias rougianas encontraram forte oposição em certas altas
esferas.

A Casa está agora, inegavelmente, em declínio. De alguma forma, sem que consiga
compreender diretamente, caiu nas mãos dos meus dois taciturnos internos. Os seus
porpósitos são para mim completamente opacos, tal como os propósitos de tantos outros.

Antes do desaparecimento de Antoine Rouge, residiam aqui muitas criaturas estranhas. Mas já
há algum tempo já que só temos uma, e ele… acredito que… notei... segrega uma substância
espumosa e esbranquiçada das orelhas. Não tenho bem a certeza. Os meus internos
descobriram os efeitos letais desta secreção, à qual chamámos "Espuma de Rouge".

Tornou-se obrigatório incinerar os que morrem vitimados pela doença de Rouge. Embora
durante o período de secreção e hemorragia os diversos fluidos patológicos sejam
relativamente inócuos, e até mesmo sensualmente atraentes, estes fluidos rapidamente
desenvolvem uma virulência que pode ser devastadora. Houve um período em que a doença
de Rouge ocorria somente em fêmeas pós-puberes da espécie humana.

É, talvez, natural, que na minha atual confusão, deva encontrar o meu caminho para o
Instituto das Neo Doenças Venéreas. Nos dias emocionantes da administração de Rouge havia
uma grande colaboração entre a Casa e este Instituto.

O meu antigo colega, de alguma forma, retirou-se. Ele próprio contraiu uma espécie de doença
venérea de um dos seus pacientes. Houve uma altura em que era um sensualista convicto, mas
entretanto tornou-se num metafísico puro. O seu corpo começou a criar órgãos
desconcertantes, cada um deles muito complexo, muito perfeito… Único, e no entanto,
aparentemente, sem função. Assim que algum se extrai, cirurgicamente, é rapidamente
substituído por um outro, igualmente misterioso. Ele começou a invadir a sala dos epécimens e
a roubar os frascos que continham estes órgãos. O seu corpo, insiste, é uma galáxia, e estas
criaturas são sistemas solares. Torna-se melancólico quando está longe delas. O seu
enfermeiro diz que a sua doença é possivelmente uma forma de cancro criativo. Acredito que
foi isso que disseram. É difícil recordar tantos dialetos quando se permaneceu tanto tempo em
isolamento.

Consegui uma posição como terapeuta no Grupo Podológico Oceânico. Em apoiam a sua
estrutura teórica, em parte, numa interpretação grosseiramente distorcida dos últimos
escritos evolucionistas de Antoine Rouge. Ainda assim a proximidade a certos conceitos
rougeanos é inegável.

A técnica que estou a tentar desenvolver é a evocação da história genética dos pés, isto é,
tentáculos, barbatanas, asas, etc. Deste modo, e por meio de outras técnicas mais esotéricas,
procuro inverter a recaída psíquica, hoje em dia tão frequente, que pode ocorrer em situações
de intensa pressão genética. Deste modo, pretendo encorajar os pacientes a enfrentar a força
de uma súbita gravidade alienígena, e por exemplo a caminhar quando prefeririam reverter
para formas oceânicas mais primitivas.

Atingi uma espécie de… equilíbrio, na minha inanidade aqui na Importação-Exportação


Metafísica. Foi para mim simples manter-me indiferente ao funcionamento interno desta
companhia, pois na qualidade de um mensageiro entremuros menor, não sou obrigado a
comunicar com muitos candidatos a posições executivas com os quais lide. Como
consequência, no entanto, não tenho bem a certeza do que constitui o significado dos seus
incessantes exercícios em competições.

Quando Antoine Rouge desapareceu, pouco depois de ter contraído a doença que leva o seu
nome, acreditávamos que tinha preferido morrer só, num exílio apenas em parte desejado
pelo próprio. Ainda assim, numa ocasião, ele observou que a doença de Ruge não podia ser
fatal para Rouge, ainda que já tivesse matado centenas de milhares de mulheres. E… é verdade
que a sua morte foi confirmada somente por certas autoridades que há muito desejavam a sua
morte. No entanto, eu e Rouge, enquanto meu mentor, éramos muito naturalmente próximos,
e eu sinto como certo que ele já não existe.

Tenho estudado o cartão estereoscópico que me foi entregue pelo homem com os dedos dos
pés interligados. Ainda que os seus modos fossem brutais, o cartão que me deu era
simultaneamente convidativo e peculiarmente lisonjeiro. No entanto, provavelmente foi por
causa das imagens de natureza sexual perversa presentes no cartão, tão reminiscentes
daquelas que estranhamente ganharam popularidade na Casa da Pele, que me decidi a não
contactar estes discretos colegas, como se descreviam a si mesmos. No entanto, temo que se
permanecer aqui por muito mais tempo, o meu arduamente conquistado equilíbrio possa
transformar-se numa estase mórbida.

O meu paciente, anteriormente difícil, agora recebe-me de braços abertos. Já não manca, e
defende que é um resultado da minha abortada tentativa de terapia oceânica. Considera que
chegou a um acordo com os seus dedos do pé mutantes. Ele dizia algo, elaboradamente
filosófico, acerca de criaturas marinhas, o ar e a água, mas os seus idiomas são extremamente
obscuros.

Como tinha previsto, fui convidado a juntar-me a uma reunião de conspiradores. Por
enquanto, os seus propósitos são-me indiscerníveis, tal como os propósitos de tantos outros.
No entanto, é bastante claro que são pedófilos heterossexuais, um grupo especificamente
ilegalizado, embora ainda assim cada vez mais ubíquo.

Agora somos todos discípulos de um novo mestre, parece. Chama-se Tiomkin. Ele descreve
estas esferas provocantes como o seu aquário, e ordena-me que me comprometa
psiquicamente com qualquer aquário pelo qual sinta empatia. Não posso negar a minha
atração por algumas destas perversas imagens multidimensionais.

Tiomkin sugere que é necessário que evolua uma nova sexualidade para uma nova espécie de
Homem, uma bioquímica genética emergente para uma forma de vida extrema e
inovadoramente reprodutiva. Ele menciona Antoine Rouge. Mas aparentemente não consigo
ver qualquer ligação.

Adrian Tripod foi aceite pelo conselho de administração da Fundação de Pesquisa


Ginecológica. Existe um diretor que se queixa de que os seus pés e pernas são sobremodo
imprevisíveis. Receia que um dia o abandonem completamente, sem aviso, e assim, quando
está sozinho, não caminha. Ele repara como as instalações da Fundação são vastas, e a
dificuldade em conseguir ajuda, para quem subitamente fique desamparado. Neste contexto,
menciona o atirador contratado da fundação, que aparentemente tem tendência a interpretar
erroneamente confrontações sociais subtis.

Adrian Tripod será diretamente introduzido com o objeto dos seus estudos. Ela é uma
importação de pesquisa trazida por elevado custo de uma grande distância, através de várias
fronteiras fortemente contenciosas. A corporação Importação-Exportação Metafísica esteve
envolvida no empreendimento. Ele sublinha a natureza complexa da puberdade
prematuramente induzida, a qual deixa um tal sujeito vulnerável à doença de Rouge, e não
pode garantir que ela não esteja já, de algum modo, defeituosa quanto a este aspeto.

Num obscuro hotel para passantes, o mesmo, há quem diga, que o predestinado
dermatologista louco Antoine Rouge ocupou durante os seus últimos anos no exílio, Adrian
Tripod garante acomodação temporária para si e para os seus colegas subversivos.

O recepcionista fala longamente de uma excrescência parecida com uma raiz que começou a
crescer de uma das suas narinas. Acredita ser uma extensão de certas células nervosas, uma
antena modificada, talvez, um delicado órgão sensitivo sintonizado com… o quê? Pergunto-lhe
acerca de Antoine Rouge, mas não responde.

Ainda que, por questões de segurança, estejamos sem a orientação de Tiomkin por algum
tempo, entre nós concordámos que não deve haver atraso na tentativa de fecundar a nossa
estranha e insondável cativa.

Adrian Tripod sente a presença de Antoine Rouge.

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