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Rachel Nigro
Nome: Rodrigo Sá Leitão de Abreu Pinto
Conforme proposto pela Prof. Rachel Nigro como trabalho da disciplina de Introdução ao
Estudo do Direito II, tratarei da recepção da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),
também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, pelo direito brasileiro. A investigação
acompanhará os meandros do processo de incorporação do artigo 7º, item 7, do Pacto San Jose a
respeito da proibição da prisão civil por dívida do depositário infiel, tal como decidiu-se no RE-466-
343-1/SP. Tal decisão seria, em seguida, consumada pela publicação da Súmula Vinculante nº 25,
que garantiu maior garantia de segurança jurídica à ilicitude da prisão civil de depositário fiel, em
conformidade com a CADH.
Para tanto, assumiremos como guia o voto do ministro Gilmar Mendes na RE-466-343-1/SP,
visto que sua posição foi vencedora, levando em conta ainda as considerações vencidas do ministro
Celso de Mello.
Antes de iniciar, enquanto alguém que está dando os primeiros passos em matéria jurídico,
chamou-me atenção a pluralidade de fontes que integrou os votos dos ministros no RE-466-343-
1/SP, bem revelando a diversidade de materiais que são utilizados para a resolução de uma questão
jurídica prenhe de complexidades. Valendo-se das descrições Schaira e Struchiner em Teoria da
Argumentação Jurídica1, pode-se fazer as seguintes afirmações: dentre os materiais utilizados,
incluem-se tanto fontes formais obrigatórias (primárias), isto é, “fontes que os profissionais do direito
se veem obrigados a aplicar na resolução de questões legais”. Quanto fontes opcionais
(secundárias), “aquelas que os profissionais acreditam ser relevantes mas que, ainda assim, podem
ignorar impunemente”.
1
SHECAIRA, Fabio e STRUCHINER, Noel. Teoria da Argumentação Jurídica. Rio de Janeiro: Contraponto editora (co-
editora: PUC-Rio), 2016.
2 Dimitri Dimoulis. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2003. P. 199.
Dimoulis. Além disso, em exercício de direito comparado, Gilmar Mendes recorreu às leis
constitucionais outros países para fundamentar suas posições.
Entre as fontes primárias e secundárias citadas acima, existem ainda as denominadas fontes
intermediárias, já que possuem “peso maior que a opinião de juristas, embora tenham peso menor
que a lei”, as quais correspondem a jurisprudência. Miguel Reale definiu a jurisprudência como “a
forma de revelação do Direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude uma
sucessão harmônica de decisões dos tribunais”3, principalmente levando em conta as decisões dos
tribunais superiores, bastando reparar como o ministro Gilmar Mendes tão somente se valeu de
decisões históricas do próprio STF.
Foi precisamente da articulação entre tais diferentes fontes que o votos em questão foram
compostos, afinal, “parece-lhes mais poderoso o argumento jurídico que se apoia simultaneamente
na lei e na jurisprudência e na doutrina e em qualquer outra fonte formal do direito que esteja
disponível”. Como alguém que apenas acabou de começar a estudar direito, já tão bem percebo
como, nesse acúmulo de fontes, reside a complexidade tortuosa do direito, mas principalmente a
sua beleza difícil, e irresistível.
Segundo o artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição, "não haverá prisão civil por dívida, salvo
a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e
a do depositário infiel”.
Por sua vez, o artigo 7º, item 7, do Pacto de San José estabelece que “ninguém deve ser
detido por dívidas, exceto no caso de inadimplemento de obrigação alimentar”.
O mesmo artigo 5ª da Constituição, em seu §2, afirma que “os direitos e garantias expressos
nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a Republica Federativa do Brasil seja parte”. Assim, por mais
3 Miguel Reale. Lições Preliminares de Direito. 27ª Edição. São Paulo: Saraiva: 2003. P. 167.
4 Depositário fiel é aquele ao qual foi confiada a guarda de um bem que não lhe pertence, o qual torna-se depositário
infiel quando o bem é surrupiado ou extraviado enquanto esteve sob sua responsabilidade.
que estabeleça uma cláusula aberta de recepção aos direitos presentes em tratados internacionais
assinados pelo Brasil, não determina com precisão a posição hierárquica em que são incorporados.
É bom lembrar que as decisões do HC nº 72.131 e do ADI n° 1.480-3, naquilo que toca a
internalização dos tratados internacionais, basearam-se, sobretudo, na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal iniciada através do RE 80.044 de 1977, momento em que discutiu a recepção da
Convenção de Genebra. Antes disso, o STF retinha posição internacionalista, condizente com a
teoria monista de interpretação do direito internacional face ao direito nacional, uma vez que admitia
a prevalência hierárquica do direito internacional sobre o interno. A partir do RE 80.044/77, ao adotar
posição soberanista (teoria dualista), ocorreu um deslocamento da compreensão do STF sobre a
incorporação dos tratados internacionais pelo ordem brasileira - em preferência desse último -
quando consigna-se que os conflitos entre duas disposições normativas, uma de direito interno e
outra de direito internacional, devem ser resolvidas pela mesma regra geral destinada a solucionar
antinomias entre normas de um mesmo grau hierárquico.
A despeito dessa primazia conquistada pelo ordenamento jurídico interno, ela não era
absoluta. Em lugares específicos da legislação brasileira, o direito internacional ainda assim
mantinha precedência. Ao analisarmos o Código Tributário Nacional, o artigo 98 afirma: “Os tratados
e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão
observados pela que lhes sobrevenha.” Ora, enquanto o direito internacional relativa aos direitos
humanos obtinha apenas estatuto infraconstitucional, o direito internacional tributário (âmbito
patrimonial) possuía a prerrogativa inversa, configurando um caso flagrante em que os direitos
humanos estariam preteridos aos direitos patrimoniais, pois os efeitos dos tratados estariam sujeitos
5 SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Marcial Pons Empório, 2013. P. 158.
ao esvaziamento como consequência de uma simples lei ordinária que a fragilizasse. Ao passo que
a proteção aos direitos humanos, outrora corolário absoluto da própria garantia da dignidade da
pessoa humana, encontrava-se defasada6. Afinal, segundo Cançado Trindade:
“Não é razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (a começar pelo
direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a um acordo
comercial de exportação de laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção de vistos para
turistas estrangeiros. À hierarquia de valores, deve corresponder uma hierarquia de normas,
nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas mediante
critérios apropriados. os tratados de direitos humanos tem um caráter especial, e devem ser
tidos como tais.”
Não obstante tal consequência imediata, deve-se notar que a Emenda Constitucional nº45
lavra duas tendências convergentes. Em primeiro lugar, na medida em que a EC nº45 especificou
o caráter dos tratados internacionais em questão, sublinhou-se a particularidade dos tratados de
direitos humanos ao dotá-los de caráter preponderante uma vez comparados aos demais. Se os
tratados de direitos humanos, de agora em diante, obedeceriam a um mecanismo singular de
incorporação, pelo qual previa-se a possibilidade de incorporação com peso normativo
constitucional, o tema dos direitos humana gozava portanto de “precedência temática”7, nos termos
de Adrian Sgarbi, de forma que eram “distinguidas pelos operadores em termos de importância
valorativa”8, próximo ao entendimento que prevaleceu na Constituição de 1988 quanto aos direitos
e garantias individuais.
6 Como dizia Cançado Trindade: “Não é razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (a começar pelo
direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a um acordo comercial de exportação de
laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção de vistos para turistas estrangeiros. À hierarquia de valores, deve
corresponder uma hierarquia de normas, nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas
mediante critérios apropriados. os tratados de direitos humanos tem um caráter especial, e devem ser tidos como tais.”
7 SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Marcial Pons Empório, 2013. P. 121.
8 Ibid. P. 122.
que surgiu em paralelo ao Pacto de San José da Costa Rica), o Brasil ainda protagonizava
compreensões como aquelas em voga no HC nº 71.131 e na ADI n° 1.480-3. O que parecia, dada
a sua ampla pretensão soberanista, em desacordo com intuitos internacionalistas presentes na
constituição, a exemplo do artigo 4º, parágrafo único, que afirma que “a República Federativa do
Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina,
visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
Foi Cançado Trindade, na época consultor jurídico do Itamaraty, que propôs na Assembleia
Nacional Constituinte (durante a audiência pública de 29 de abril de 1982 da Subcomissão dos
Direitos e Garantias Individuais), o artigo 5º, §2, daquela constituição. O intuito de sua proposta era
justamente uma abertura internacional do país, conforme afirmado pelo mesmo:
“Se, para os tratados internacionais em geral, tem-se exigido a intermediação pelo Poder
Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou
obrigatoriedade no plano ordenamento jurídico interno, distintamente, no tocando aos
tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles
garantidos passa, consoante os parágrafos 2 e 1 do artigo 5º da Constituição Brasileira de
1988, pela primeira vez entre nós a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente
consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do nosso ordenamento jurídico
interno.”9
Ou seja, se a interpretação da lei estivesse de acordo com a intenção daquele que a propôs,
a jurisprudência do STF postulada desde o RE 80.044 de 1977 não teria inibido, como vimos, casos
como aquele do HC nº 71.131, em que persistiu a paridade ordinária entre os tratados internacionais
de direitos humanos e a legislação infra-constitucional. De maneira acentuada, visto que estamos
tratando de um caso diretamente relacionado ao Pacto de San José, a postura de Cançado Trindade
era justamente motivada pela provável adesão ao Pacto que já se insinuava em 1987, no momento
da Constituinte, por mais que só fosse realmente fixada em 1992: “Minha esperança, na época, era
no sentido de que esta disposição constitucional fosse consagrada concomitantemente com a
pronta adesão do Brasil aos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, o que só se concretizou em 1992.”10
Sobre o caráter supraconstitucional que tais tratados externos obteriam, Gilmar Mendes
sublinha a “dificuldade de adequação dessa tese à realidade de Estados que, como o Brasil, estão
fundados em sistemas regidos pelo principio da supremacia formal e material da Constituição sobre
todo o ordenamento jurídico”. Ressalte-se, portanto, não somente uma mera dificuldade, mas uma
impossibilidade de realizar tal internalização supraconstitucional sem atentar contra a soberania do
país (primeiro fundamento do Estado, segundo o artigo 1º, inciso I) e a pirâmide kelseniana na qual
se baseia o Direito Brasileiro com a constituição no topo.
9 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos
humanos nos planos internacional e nacional. In: Arquivos de Direitos Humanos 1. Rio de Janeiro: Renovar; l999, p. 46-
47 MENDES, Gilmar em Recurso Extraordinário 466-3413-1 São Paulo.
10 Ibid.
brasileiro deva ter inibida a prerrogativa institucional de legislar sobre prisão civil por dívida, sob o
fundamento de que o Pacto de São José da Costa Rica teria pré-excluído, em sede convencional,
ao menos no que se refere à hipótese de infidelidade depositária, a possibilidade de discipllinação
desse mesmo tema pelo Congresso”. Agora no RE 466.343-SP de 2008, de maneira semelhante
ao que fizera pouco antes no HC 87.585-8/TO (12/03/2008) em que já se evidenciava sua mudança
de compreensão, Celso de Mello defendeu que os tratados internacionais deveriam ser
incorporados a nível constitucional, afirmando que, a respeito das convenções internacionais de
direitos humanos celebradas antes da Emenda Constitucional nº 45, “incide o § 2º do art. 5º da
Constituição, que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração
e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade.”
Mesmo a par da brilhante exposição de Celso de Mello, Gilmar Mendes manteve sua opinião
e não coadunou com a posição internacionalista do seu companheiro de STF. Uma vez excluída a
possibilidade de incorporação ao nível constitucional, restaria incluir o Pacto de San José como lei
ordinária, já que a mesma não passou pelo processo estabelecido pela EC nº45. No entanto, como
afirmamos acima, esse contexto fragiliza a defesa dos direitos humanos, visto que as normas dos
tratados internacionais poderiam ser revogadas por outras leis posteriores ou específicas. Era
importante, portanto, garantir uma posição aos tratados acima das leis ordinária para que, dessa
maneira, estivesse posta uma limitação aos conteúdos de outras leis que poderiam intervir naquela
sob a cláusula da cronologia ou especialidade.
É por isso que Gilmar Mendes retoma uma posição expressa anteriormente pelo ministro
Sepúlveda Pertence em 29 de março de 2000, na ocasião do julgamento do RHC nº 79.785-RJ.
Assim como Gilmar Mendes ao analisar as possibilidades de supraconstitucionalidade e
constitucionalidade dos tratados, Sepúlveda Pertence afirma de maneira semelhante que “a partir
da Constituição positiva do Brasil - e não daquilo que a cada um aprouvesse que ela fosse - fica
acima de minha inteligência compreender que, sobre ela, se afirmasse o primado incondicional das
convenções internacionais”. Sepúlveda Pertence então complementa:
Dessa maneira, o ministro Sepúlveda Pertence assume a defesa de uma posição hierárquica
que, embora infraconstitucional, não se iguala às demais leis ordinárias. É plasmada, portanto, uma
posição entre a constituição e resto do ordenamento jurídico brasileiro, de tal modo que adita a
Constituição ao acrescentar uma limitação à lei ordinária. Segundo Sepúlveda Pertence, trata-se
de“aceitar a outorga de força supra-legal às convenções de direitos humanos, de modo a dar
aplicação direta às suas normas - até, se necessário, contra a lei ordinária - sempre que, sem ferir
a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela
constantes.”
Gilmar Mendes retoma isso para referendar a característica de supralegalidade dos tratados
e convenções de direitos humanos internacionais. Através da supralegalidade, impossibilita-se a
eficácia jurídica das normas infraconstitucionais conflitantes com os tratados. Embora continuem
infraconstitucionais, tais normas internacionais de direitos humanos adquirem um atributo de
supralegalidade, ao contrário dos demais tratados internacionais que continuam incorporados em
termos ordinários. Como afirmou Gilmar Mendes, “os tratados sobre direitos humanos não poderiam
afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento
jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do
sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.” De agora em diante, ao serem interpostos
entre a constituição e a legislação inferior, os atos normativos internacionais de direitos humanos
incidem com efeito paralisante sobre as leis infraconstitucional que legislem sobre a mesma matéria
tratada pela norma internacional, de modo que aquelas perdem sua aplicabilidade, sejam elas
anteriores ou posteriores ao gesto de adesão ao tratado.
No caso da prisão por dívida do depositário infiel, tornam-se ineficazes o Decreto-Lei n° 911
(Lei do Depositário Infiel) e o art. 652 do Código Civil de 2002 (similar ao art. 1.287 do Código Civil
de 1916). Dito de outro modo, elimina-se a base legal para a prisão civil do depositário infiel
conforme previa o artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição, o que só pode ser alterado, a partir de
então, caso seja aprovado alguma emenda constitucional que contenha conteúdo semelhante ao
das normas que atualmente tratam desse assunto, presentes na legislação civil e na processual
civil. Como concluiu Gilmar Mendes:
“A prisão civil do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos
assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para si mesmo,
mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e
supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos humanos.”
11 MAUÉS, Antonio Moreira. Revista Internacional de Direitos Humanos – v.1, n.1, jan.2004 – São Paulo, 2004. P. 228.