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As relações entre as sociedades humanas e o mar

são marcadas por diversas práticas económicas,

sociais e simbólicas. Alguns grupos humanos litorâneos M4 O b s t r u i n d o


vivem da pesca, ^struindo um modo de vida

baseado num reladonamento intenso com o mar s o c i e d a d e s


e com os seres vivos que nele vivem.

A vivência diária com o mar é marcada pelas

características do meio-marinho, prindpalmente

sua imprevisibilidade que acarreta perigos

ònstantes para a navegação.

ntonio Carlos Diecues


ISBN 85-87304-07-0

Fundação Ford

N U P A U B - U S P 9V88587'50A070

U P A U B
As relações entre as sociedades humanas e
o mar são marcadas por diversas práticas
económicas, sociais e simbólicas. Alguns
grupos humanos litorâneos vivem da pesca,
construindo um modo de vida baseado num
relacionamento intenso com o mar e com os
seres vivos que nele vivem. A vivência
diária com o mar é marcada pelas
características do meio-marinho,
principalmente sua imprevisibilidade e
mobilidade que resultam em perigos
constantes para a navegação, dando origem
a um modo de vida diferenciado daquele
desenvolvido em terra. Essas práticas
materiais e simbólicas são estudadas pela
antropologia marítima e pesqueira. Este
livro traz a contríbuição desse campo^de ^
pesquisa ao conhecimento das comunidades
e grupos de pescadores artesanais
espalhados pelo litoral brasileiro. Algumas
dessas modalidades de pesca marítima são
tão importantes que se pode dizer que elas
constroem formas diversas de vida social ao
longo do litoral brasileiro.

>a: Frederico Carvalho

igem de capa: Pescadore


tonio Carlos Diegues
A n t o n i o Carlos D i e g u e s

A P E S C A C O N S T R U I N D O

S O C I E D A D E S

LEITURAS EM ANTROPOLOGIA
MARÍTIMA E PESQUEIRA

NUPAUB-USP
Sao Paulo
2004
© da organização, 2004, Antonio Carlos Dicgucs

© direitos dc publicação. 2004, do


N ú c l e o dc Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas
c Áreas Úmidas Brasileiras (NUI*AUB-USI»)

Rua do Anfiteatro. 181 —Colmeias — ['avoíí


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c-mail: nupaub@usp.br

Oiagramaçilo c editoração clctrônica


PREFÁCIO
h.lmne Cnsthui Saiilos

Capa
Fitdeiico Caivalho

Revisío dos originais


Antonio Carlos Diegues

Fotos internas
Amónio Carlos Diegues
Daniel Eduardo VisHam de Caivalho
1'eniaiido Oliveira

A
Ilustrações
Peiryhiu K X P f . O R A Ç Ã O DO.s RRCURSO.s pesqucifos é antiga, tendo uma
importância não somente económica, mas cultural e simbóli-
ca. Alguns grupos humanos foram tão dependentes da pesca que
Apoio: F u n d a ç ã o Ford
pode-se dizer que foram produzidos material e simbolicamente
por essa atividade. Já em 4.700 antes de Cristo havia, nos templos
f Catalogação na Funtc
Bibliotecária: Vera I .lícia dc Moura Accioli Cíardoso Í:RIÍ-8/2269
sumários, listas de embarcações, apetrechos de pesca e das quan-
tidades de peixes capturados. T a m b é m na antiguidade egípcia
IXS-Sy l^icfíucs, Antonio Carlos Sant'Ana
A pesca cxtnstniindo sociedades: leituras cm antro(Xiliif;Ía marítima c conheciam-se ex-votos ou presentes ofertados aos deuses pela pro-
pesqueira / Antonio Carlos .Sant'Ana Diegues. Sào Paulo: Núcleo de A(xjio à teção nos perigos da navegação.
Pesquisa sobre Populações I lumanas c Áreas Úmídas Btasilciras/UST. 2004.
Até hoje, a pesca continua sendo uma atividade aleatória, i n -
certa.freqiientemente perigosa e são essas características que es-
Bibliografia
LSBN:8S^7m07-0 tão na origem da função que as práticas simbólicas e ritualísticas
desempenham em muitas sociedades de pescadores com a finali-
1. Pesca Ancsanal - Bnisil 2. Comunidades litorâneas • Br.isil 3. Pesci -
aspectos aiitr(t[K)16;;icos 4. Recursos |)esí|ueiros-Brasil 5. l-^conomia dade de propiciar capturas abundantes.
pcst|iieira - Brasil f». Pescadores - Brasil Sociedades inteiras, em determinados períodos históricos de-
CDU ,U.V95WW«1 penderam quase que exclusivamente da pesca que foi responsá-
vel pela reprodução física e social de seus membros, bem como

vii
PRKI-ÁCIO
A N T O N I O CAIU.OS DIKGUKS

pela importância de representações sociais e culturais que marca- pescar no litoral daquele país.Rssas poderosas corporações en-
ram a vida social, não somente na antiguidade como nos tempos traram em choque com o poder nacional emergente, e a vitória
modernos. do Estado moderno levou à d i s s o l u ç ã o de grande parte das
Havia peixes de consumo popular e aqueles consumidos pelas mesmas, o que ocorreu no fim do reinado de Carlos V, em mea-
elites, como era o caso do atum, preferido pela aristocracia roma- dos do século XVI.
na. Na Idade Média, destacou-se a pesca do arenque, que deu À medida que a atividade pesqueira se exercia em mares mais
origem a diversas associações e cidades que viviam da comer- distantes, necessitava-se de mais capital para a armação dos bar-
cialização desse peixe. D o século VII ao X, o peixe entrou definiti- cos e m a n u t e n ç ã o das tripulações. A pesca de longo curso, que
vamente na alimentação popular, mesmo nas zonas rurais, onde se exigia mais capital, maior flexibilidade na utilização dos meios de
consumiam o arenque, o atum salgado e a carne de baleia, ao passo produção e da força de trabalho, não se enquadrava mais nos l i -
que a aristocracia feudal consumia salmão, lagostas e outros mites estreitos das confrerias medievais. Estas limitavam o livre
pescados fmos. O arenque tomou-se o peixe mais popular da Ida- comércio e a livre utilização da força de trabalho, impedindo o fun-
de M é d i a e foi o fundador de muitas cidades e portos dc pesca do cionamento do livre-mercado.
Mar do Norte e da Mancha. A preparação da arenque em salmou- Uma outra pesca que construiu territórios e sociedades foi a do
ra, que c o m e ç o u provavelmente na século XIV, na Holanda ou bacalhau, peixe de alto valor proteico que, em parte, foi responsá-
Bélgica, incentivou ainda mais a pesca, pois esse pescado podia vel pela alimentação das camadas populares das cidades europeias
ser mais facilmente transportado para as cidades da interior. no início da Idade Moderna. Durante o século XVI, o bacalhau
A conversão dos povos escandinavos e eslavos ao cristianismo, representava cerca de 60% de todo peixe consumido na Europa e
por volta do século X I , provocou um aumento do consumo e da essa supremacia continuou pelos dois séculos seguintes, servindo
captura do pescado, principalmente do arenque, no Mar Báltico e de alimento barato para o operariado em formação.
no Mar do Norte. N o século X I I , os holandeses se lançaram na Os bascos, que tinham se especializado na pesca da baleia e
pesca do arenque, a partir de Rotterdam, Amsterdam e de controlavam a pesca e comercialização do bacalhau por toda a E u -
Middelburg, onde, em 1271, se formou uma corporação dc comer- ropa, usando o sal para a conservação desse pescado, assim como
ciantes que vendiam o pescado em Bruges e outras cidades tinham fetto com a baleia. A expansão da pesca europeia para o
flamengas. A pescado arenque passou a ser tão vital para várias norte da América (Tefra-Nova) se fez com a experiência basca da
cidades do Mar do Norte e do Báltico, que a Liga Hanseática, criada pesca da baleia.
em 1241, passou a controlar a seu comércio. Financiando a pesca, Inicialmente, as baleias eram capturadas durante a primavera
a Liga, que chegou a reunir 90 cidades sob sua guarda, monopolizou e verão na costa basca, mas desde o século XII esses mamíferos
a comércio do pescado, estocando a produção e fixando a preço. O c o m e ç a r a m a escassear nessa região, o que impulsionou os bascos
monopólio por ela exercido era tão forte que, em 1422, os navios a caçá-las mais longe, no mar do Norte c fmalmente na Groenlândia
da Hansa afundaram os barcos de pesca holandeses que não e na Terra-Nova, no Canadá. Para lá, começaram a se dirigir os
estavam associados a essa organização. barcos de diversos países europeus, uma vez que foram descober-
Por volta do século XII, surgiram, na Península Ibérica, as pri- tos grandes bancos de bacalhau.
meiras corporações medievais: as confrarias de pescadores. Estas Os portugueses t a m b é m se destacaram na pesca da sardinha e
se tornaram tão poderosas no século XIV que chegaram a declarar do bacalhau, tendo atingido a Terra-Nova antes do século XVI e já
guerra contra a Inglaterra, por conta própria, ganhando o direito de no final desse século os barcos portugueses eram os mais numero-

ix
A N T O N I O CARLOS DIKGUKS
PMKKÁGIO

SOS na Terra-Nova, onde grande n ú m e r o de portos e acidentes


lisada no ultimo artigo desta coletânea, intitulado: Á pesca constru-
geográficos tinham nomes portugueses. Os pescadores portugue-
indo sociedades: a história ecológica da tainha.
ses devem ter tido um papel importante na formação dos navega-
Esta coletânea r e ú n e alguns trabalhos sobre a antropologia da
dores portugueses, como sugere Jaime Cortesão, ainda que fama
pesca enquanto disciplina que estuda as relações entre as comuni-
das viagens das Descobertas tenha recaído exclusivamente sobre
dades e sociedades de pescadores e o mar, através da pesca. O
os capitães ligados à burguesia lusitana nascente.
estudo das práticas económicas, sociais e simbólicas do homem
O Brasil é um grande consumidor de bacalhau desde os pri-
que constrói seu modo de vida a partir da pesca é revelador de
meiros anos da colonização e existia uma linha direta de comércio
uma grande diversidade de culturas e de formas de apropriação do
daquele peixe com a Terra-Nova. Já desde o início do século XVII
meio ambiente marítimo.
foi introduzida a pesca da baleia no Brasil pelos pescadores bascos
O primeiro artigo: k interdisciplinaridade nos estudos do mar: o
que detinham uma concessão especial da coroa portuguesa. Fo-
papel das Ciências Sociais pretende dar uma visão da c o n t r i b u i ç ã o
ram construídas muitas armações para a pesca e o preparo do óleo
das ciências sociais, em particular da antropologia marítima e pes-
de baleia entre a Bahia e Santa Catarina, que funcionaram até
queira ao estudo das relações entre as sociedades e o meio ambi-
meados do século XIX.
ente marítimo, enfatizando a importância de se interligar o co-
A pesca representou nos tempos coloniais uma atividade i m - nhecimento científico aos saberes tradicionais dos pescadores
portante como fonte de alimentos para os engenhos e fazendas para a c o m p r e e n s ã o dessas relações económicas, sociais e s i m b ó -
dedicados à monocultura da cana de açúcar e para a alimentação licas.
das cidades e comunidades litorâneas. Na Amazónia, ela repre-
O segundo artigo: Povos e Mares: uma retrospectiva de socioan-
senta a t é hoje, a maior fonte de alimento para as populações r i -
tropolo^a marítima retoma a discussão sobre a necessidade da cons-
beirinhas, cujo consumo de pescado está entre os mais elevados
trução de um novo campo disciplinar em Ciências Sociais, sobretu-
do mundo. Comunidades tradicionais como a dos jangadeiros,
do na Antropologia, para o estudo das relações entre sociedades e
caiçaras, açorianos dependeram e ainda dependem em grande parte
o meio-ambiente marinho. Esse campo do conhecimento vem-se
as atividades pesqueiras como fonte de alimento e renda.
constituindo desde os anos 70, tratando da produção e reprodução
N o Brasil, a pesca de algumas espécies tem grande importân-
dos grupos de pescadores a partir das formas de apropriação eco-
cia na p r o d u ç ã o e reprodução social e simbólica de várias comuni-
-nômica, social e simbólica do ambiente marinho.
dades de pescadores ao longo do litoral brasileiro. Entre elas des-
O terceiro trabalho: A socioantropolo^a das comunidades de pes-
taca-se a pesca da sardinha, que entre 1930 e 1970 contribuiu, de
cadores marítimos no Brasil analisa a i m p o r t â n c i a da socioan-
forma notável, para a alimentação popular, pela a b u n d â n c i a e bai-
tropologia no país, através de alguns autores que contribuíram para
xo preço. A t é o declínio rápido das capturas na década de 80, a
o surgimento c fortalecimento desse novo campo de pesquisa e
pesca da sardinha movimentou as comunidades de pescadores de
conhecimento.
todo o litoral sudeste brasileiro, marcando sua vida económica e
Em Tradição e mudança nas comunidades de pescadores do Brasil,
social.
pretende-se analisar o particularismo das comunidades e grupos
Uma outra pesca que mobilizou e ainda mobiliza várias comu-
de pescadores marítimos brasileiros e os processos de m u d a n ç a
nidades de pescadores é a da tainha que, durante os meses de
pelos quais passam, historicamente, aqueles que vivem e c o n ó m i -
inverno contribui para a alimentação e renda ao longo de todo o
ca e socialmente da pesca, baseando-se em vários trabalhos que
litoral sudeste. A função económica c social dessa pesca é ana-
tratam do tema em nosso país.
X

xi
A N T O N I O CARLOS DIKGUKS

E m A contribuição neo-marxista ao estudo das relações entre o


homem e o mar, quinto trabalho da coletânea, é analisada a contri-
buição marxista e da antropologia económica, através de conceitos
como: modo de produção, condições objetivas da produção, forças
produtivas da natureza, que ajudam na c o m p r e e n s ã o das relações
entre sociedades e o meio ambiente marinho
O sexto trabalho: Formas de organização da produção pesqueira
no Brasil: alguns aspectos metodológicos propõe uma tipologia das
formas de produção e reprodução dos pescadores artesanais e sua SUMÁRIO
relação com a pesca empresarial-capitalista no Brasil, levantando,
no fmal, algumas questões teóricas que merecem estudos mais
aprofundados.
Em A pequena produção mercantil na pesca brasileiía, sétimo es-
tudo da coletânea, procura-se aplicar o conceito de pequena produç-
ão mercantil à pesca artesanal, estabelecendo-se suas característi-
cas principais
E m Realidades e falácias sobre os pescadores artesanais, o autor
analisa onze afirmações equivocadas sobre os pequenos produto- PRRI-ÁCIO V
res pesqueiros litorâneos, desmistificando visões, muitas vezes
preconceituosas, que visam desprestigiar os pescadores artesanais. 1. A I N T K R D I S C I I M . I N A R I O A O K NOS E S T U D O S OO M A R :

N o nono artigo: Conhecimento tradicional e apropríação social do O PAPF.L U A S ClíÍNClAS SociAis 15

ambiente marinho, o autor estuda a contribuição dos saberes tradi-


2. Povos K MARKS: U M A RKTROSPF.CTIVA OK
cionais para o exercício da pesca, para a conservação ambiental e
SOCIOANTROPOLOGIA MARÍTIMA 47
para os sistemas de manejo necessários ao uso sustentável dos re-
cursos marinhos. 3. A SOCIOANTROPOLOGIA DAS C O M U N I D A D K S D K
Em Areas reservadas para a pesca artesanal, estuda-se a con- PKSCADORKS M A R I T I M O S N O BRASIL 65

tribuição da noção de territórios de pesca para os sistemas de ma-


nejo pesqueiro. 4. TRADIÇÃO K M U D A N Ç A NAS C O M U N I D A D H S DE

P F . S C A D O R E S D O B R A S I L : POR U M A

SOCIOANTROPOLOGIA DO M A R 83

5. A CONTRIBUIÇÃO N K O - M A R X I S T A AO E S T U D O

DAS R K L A Ç O E S KNTRE O HOMKM K O MAR 103

6. FORMAS DK ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO

PKSOUKIRA N O BRASIL: ALGUNS ASPRCTOS

METODOLÓGICOS 127

xii
xiii
ANTONIO CARLOS DIKGUKS

7. A PKQUKNA PRODUÇÃO MKRCANTM, NA

PKSÍ:A B R A S I L E I R A 151

1
8. REALIDADES E FALÃCIAS SOBRE

PESCADORES ARTESANAIS 181

9. CONHECIMENTO T R A D I C I O N A I , K AIMÍOPRIAÇÃO

SOCIAL DO A M B I E N T E M A R I N H O 195 A INTERDISCIPLINARIDADE

10. Á R E A S R E S E R V A D A S P A R A A P E S ( ; A A U T E S A N A I 225
NOS ESTUDOS DO MAR:
o PAPEL DAS CIÊNCIAS SOCIAIS^
11. A P E S C A C O N S T R U I N D O SOCIEDADES: A HISTÓRIA

ECOLÓGICA DA TAINHA NO LITORAL

SUDESTE-SUL BRASILEIRO 243

A TÉ R K C E N T E M E N T K , O mar era entendido, exclusivamente,


como parte do mundo natural, marcado pela existência dos
fluxos das marés, e habitado por seres vivos não-humanos, objeto
de estudos da oceanografia e da biologia marinha. O objetivo des-
te trabalho é mostrar que o mar e os oceanos, desde os primórdios
da humanidade, foram objeto de curiosidade, de conhecimento,
de ricas simbologias e de práticas culturais antigas ligadas à pesca,
à Coleta e à navegação. Todas essas atividades foram exigindo um
conhecimento crescente do mar e de seus fenómenos, a partir das
práticas culturais que foram se acumulando durante vários miléni-
os. A partir desse contato e do conhecimento acumulado, desen-
volveram-se sociedades que c o n s t r u í r a m uma m a r i t i m i d a d e
marcante, tais como os fenícios e os gregos, na antiguidade oci-
dental. Daí, a importância do conceito de mariúmidade, entendido

' Conferência proferida na XV Semana de Oceanografia, Instituto Oceanográfico


da USP. novembro. 2003.

XLV
15
A N I O M O CAIÍI.OS I ) i i ; t ; i i ; s A I N I i-:ui)is(:ii'i.i\Aiíii)AOK NOS K s r u u o s o o M A K

como um conjunto dc várias práticas ( e c o n ó m i c a s , sociais e, As P u Á T i C A S Cui/ruRAis MARÍTIMAS


sobretudo, simbólicas) resultante da intcração humana com um D R N A V E G A Ç Ã O K P K S C A V. S U A RKLAÇÃO
espaço particular e diferenciado do continental: o espaço maríti- c:<)M os S A B K I Í K S SOHRK O M A R
mo. A maritimidade não é um conceito ligado dirctamcntc ao
mundo oceânico, enquanto entidade física é uma produção social O mar começou a ser utilizado e conhecido desde os primórdios da
e simbólica. civilização, possivelmente após a exploração dos rios, como o Tigre,
Ao contrário do que ocorre com a percepção e estudo dos ma- o Eufrates e o Nilo. Neste último, a vela feita de pele de animais
res pela ciência moderno-positivista, por largo período da história já era usada para subir o N i l o no Í V milénio antes de Cristo.
da humanidade, os oceanos não eram simplesmente uma realida- (Braudel, 1998). O mar começou t a m b é m a servir como fonte de
de físico-biológica, mas t a m b é m eram povoados por seres huma- alimento e meio de comunicação.
nos e n ã o - h u m a n o s , por monstros e divindades. N o entanto, mes- A pesca é uma das atividades mais antigas exercidas pelo ho-
mo hoje, para uma ciência reducionista, o oceano é uma realidade mem em período anterior ao Neolítico. Os restos de cerâmica,
somente material, despovoada de seres humanos e seus símbolos. cascas de ostras e mexilhões encontrados na Escandinávia, em
O mar é considerado un^a entidade viva por inúmeras popula- período anterior ao Neolítico, atestam a importância dos moluscos
ções marítimas que m a n t ê m com ele um contato estreito e dele na alimentação humana. Segundo Herubel (1928), o arpão encon-
retiram sua subsistência. Essas populações humanas t ê m uma trado nas Ilhas Shetland, junto a restos de peixes e moluscos, seria
percepção complexa do meio marinho e seus fenómenos naturais. utilizado, indistintamente, para matar animais e peixes e, no
De um lado, há um vasto conhecimento empírico adquirido pela Neolítico, a tecelagem primitiva permitiu a confecção das primei-
observação continuada dos fenómenos físicos e biológicos a serem ras redes. N o Egito, durante a 6' Dinastia Menfita, foram feitas
explorados pela chamada etnociência marítima. De outro lado, as representações pictóricas de escravos secando peixes e H e r ó d o t o
explicações para tais fenómenos t a m b é m passam pela representa- afirma que, no Egito Antigo, era comum o consumo de peixes pelas
ção simbólica e pelo imaginário dos povos do mar. camadas populares, o mesmo acontecendo com o atum sect) na
Há uma tendência entre muitos cientistas naturais em achar Grécia Antiga.
que os conhecimentos sobre o oceano começaram com os grandes Uma pesca antiga e que exigia grandes habilidades do pesca-
cruzeiros oceanográficos do século X I X . Na verdade, o que se sabe dor é a do peixe espada, exercida pelos fenícios no Estreito de
sobre os mares é fruto de um acúmulo de informações cjuc se ini- Messina, antes da segunda metade do século V I I I antes de Cristo
ciou quando o homem primitivo começou, da terra, a observar o (Collet, 1993).
mar e os seres que nele viviam. Na Idade Média, do século V I I a X , o peixe tornou-se parte
Neste trabalho, não pretendo minimizar os avanços considerá- integrante da alimentação popular, incluindo o arenque, o atum
veis sobre o conhecimento dos mares realizado por disciplinas como salgado e a carne de baleia. A pesca era uma atividade importante,
a oceanografia e a biologia marinha, mas enfatizar a necessidade incentivada pelos monges. Já no século X e X I , na Republica de
dc uma vimo interdisápiitiaráo-i fenómenos marítimos, a partir das Veneza, fechavam-se braços de estuários, formando-se aspiscariae,
várias formas dc saberes que incorporam a ciência e o conhecimento para a engorda da tainha, alimentada pelas águas do mar. T a m b é m
das comunidades de pescadores artesanais. no século X I , estabeleceu-se a primeira legislação para a proteção
dos alevinos de salmão. Ainda nesse período, surgiu, no Golfo da
Gasconha, a pesca da baleia, cuja carne era consumida como

16 17
A N T O M O CAHI.OS DlKClI-S
A INIKHDISCMM.INAIÍIDAIJK NOK K s i i i J o s D O M A R

alimento, ao passo que o azeite servia como combustível para a


Esse relato revela a existência de barcos com vela e leme, bem
iluminação. Nesse período surgiram as primeiras corporações ou
como o conhecimento da navegação pelos astros:
confrarias de pescadores que organizavam a atividade pesqueira
no norte da Espanha.
"Ulisses ficou satisfeito com aquele vento, quando içou a
A pesca do arenque passou a ser fundamental para as cidades
vela e sentou-se junto do leme, como um marinheiro. Ele con-
da Liga Hanseática, que reunia várias cidades do Mar do N o r t e e
templou as Plêiades e o Cocheiro que tarde se põe, e a Ursa ou
do Báltico. Já em 1.357, realizou-se o primeiro tratado sobre o
Auriga, como alguns a chamam, cujas rodas giram sem parar
controle da pesca, entre os reis da Inglaterra, da Dinamarca e da
onde estão, em face de Orion, e, única entre todas elas, jamais
Holanda, quando as frotas foram classificadas por nacionalidade
se banha no Oceano. Calipso advertira-o que conservasse a Ursa
e a captura noturna foi proibida (Herubel, 1928). N o século XV,
à sua esquerda quando navegasse pelo mar." {Odisseia, livro V).
ou mesmo a t é antes, iniciou-se a pesca de bacalhau, de longo
alcance, nos mares da Terra Nova, no C a n a d á , dando origem às
Os fenícios eram conhecidos como excelentes navegadores,
primeiras companhias de pesca que empregavam barcos à vela,
estabelecendo entrepostos comerciais no M e d i t e r r â n e o ,
atingindo de 40 a 150 toneladas. A revolução industrial deu grande
impulso à pesca e, desde 1880, surgiram os primeiros barcos de
"viajando mesmo de noite, sem se aproximar muito da cos-
pesca a vapor, usando grandes redes de arrasto - os trawlen
ta, distanciando dos outros navegantes que não ousavam se dis-
(Diegues, 1983).
tanciar do litoral. Além disso, tinham construído mapas, esta-
O importante a se ressaltar nessa rápida história é o conheci-
belecido o regime das distâncias e dos ventos e o relatório
mento acumulado pelos pescadores durante esses vários séculos
entalhado da viagem de Hannon no litoral africano foi afixado,
sobre o comportamento das espécies capturadas, a época de sua
publicamente, num templo." (Braudel, p.314).
reprodução e a concentração dos cardumes.
Paralelamente ao saber relacionado com a pesca, desenvolve-
Em Cartago, colónia fenícia da Africa do Norte, existiam gran-
ram-se as técnicas e os conhecimentos relativos aos regimes de
des navegadores, e um deles, Himilton. por volta de 450, atravessou
ventos, ao clima e às correntes marítimas, necessários à navegação.
as temidas Colunas de Hércules (Gibraltar), chegou até as Ilhas
Já em 2.600 a.C, barcos de Biblos faziam ligação comercial entre
Britânicas à procura do estanho.Um quarto de século mais tarde,
o Egito e a Síria, e já nessa época as viagens t a m b é m eram feitas à
Hannon, teria contornado a Africa à procura de ouro. (Braudel, 1998).
noite, exigindo o conhecimento da navegação pelos astros. Segundo
A primeira "viagem oceanográfica" teria sido empreendida,
Braudel (1998), utilizavam-se remos e velas quadradas. Por volta
segundo Raquel Carson pelo marselhês P y t h é a s , cerca de 330
de 1480 a.C, os barcos egípcios apresentavam uma grande vela
a.C, que desejava saber a t é onde se estendia o e c ú m e n o conhe-
quadrada e eram governados por remos de proa. Datam dessa época,
cido, banhado pelo Oceano. Nesse período, já predominava a con-
os ex-votos desenhados nas pedras de uma capela em Malta, em
c e p ç ã o helénica do mundo, segundo a qual o Oceano era um
retribuição aos deuses pela navegação realizada com êxito.
grande rio que contornava os limites do mundo, situado entre a
A Odisseia, escrita por Homero, no último século antes de Cris-
entrada da Terra e o c o m e ç o dos Infernos. O homem que ousasse
to, relata o retorno de Ulisses, depois da guerra de Tróia, no século
ultrapassar o M e d i t e r r â n e o , o único mar, teria de passar por uma
M i l antes dc Cristo e é, sem dúvida, o relato épico mais assombro-
noite horrível, carregada de brumas e nevoeiros, de onde jamais
so dos perigos do mar c das habilidades náuticas do herói grego.
retomaria.
18
19
A N T O N I " C A R L O S I^II-:C;I:KS A iNIKRlJISCIIM.INAlilDAIJI': NOS KsTl DOS DO M.Ali

P y t h é a s , em seu escrito intitulado "Descrição dos Oceanos", des Descobrimentos. Deve-se ressaltar que esses conhecimentos
documento perdido, mas citado posteriormente, teria chegado à e técnicas não ficaram limitados aos europeus, mas eram t a m b é m
Islândia, habitada por povos bárbaros, onde segundo ele, as noi- de conhecimento dos navegadores árabes que, na costa oriental da
tes são curtas. P y t h é a s voltou a Marselha carregado de â m b a r e Africa, serviram de guias aos portugueses, levando-os à índia. As
outras riquezas ( D r e y e r - E i m b c k e , 1992). P o s t e r i o r m e n t e , práticas de navegação t a m b é m eram do conhecimento dos chine-
Posidônio empreendeu uma viagem de Rodes a C á d i s para me- ses que, desde o fmal do século X I V , principalmente na dinastia
dir as mares e averiguar se, de fato, o sol se punha no Atlântico Ming, tinham chegado com seus grandes juncos ao sudeste da Ásia
fazendo um ruído semelhante ao de um ferro incandescente to- e ao sul da África.
cando as águas. A partir dessas práticas culturais e saberes sobre a navegação e
Os sábios medievais do Mediterrâneo, no entanto, mesmo co- a pesca, adquiridos a partir da "ciência do concreto", no dizer de
nhecendo a saga dos normandos pelo perigoso Atlântico Norte, Lévi-Strauss (1989), surgiu, em grande parte, o conhecimento sis-
tratavam esse oceano - limite do mundo como o mar desconheci- temático das diversas ciências da modernidade.
do, escuro e tenebroso, do qual os navegadores jamais retornavam. O conhecimento dos mares resultou, portanto, mesmo antes
Proliferavam t a m b é m as lendas dos santos viajantes, das (luais do advento da ciência chamada "moderna" ou positivista do sécu-
a mais célebre é a viagem de São Brendão que, no século V, teria lo XIX, de um acúmulo crescente de conhecimento resultante das
viajado pelo Oceano Atlântico em busca de uma ilha onde se en- atividades de navegação e pesca. A pesca, tanto local, quanto
contrava o paraíso. O santo, segundo a lenda, descobriria essa ilha nacional ou internacional (a da baleia, do arenque, do bacalhau) e
desabitada, com castelos abandonados, construídos com ouro e o conhecimento acumulado desses pescadores constituíram-se, de
pedras preciosas, abadias ricas e belas. Apesar do caráter alegórico alguma forma, na base do conhecimento científico atual. É i n -
de viagem de São Brendão, as ilhas por ele visitadas constavam teressante se observar, por exemplo, que a primeira organização
dos m a p a s - m ú n d i do séc. X V I , evidenciando a ligação entre o ima- internacional de oceanografia, o Conselho Internacional para a ex-
ginário e a ciência. N o entanto, em maio de 1291, dez anos antes ploração do mar, foi criada em 1902, em parte, em resposta à crise
da Divina C o m é d i a , os armadores genoveses Ugolino e Vadino na pesca da sardinha no oeste da Suécia.
Vivaldi cruzavam o estreito de Gibraltar à busca de riquezas, ante- N ã o se pode, pois, atribuirás viagens de Darwin e do Challen-
cipando-se, em dois séculos, à empresa de Cristóvão Colombo. ger, em meados do século X I X , o início do conhecimento dos mares.
Nos séculos X I V e X V , as navegações dos genoveses, catalães e Esta última, organizada a pedido da RoyaiSoàety, da Inglaterra, ao
maiorquinos desafiavam as proibições e as ameaças divinas, em longo de três anos (1872 a 1876) percorreu os mares colhendo mais
busca de riquezas. Contribuíram para isso o aparecimento da bús- de 12.000 amostras científicas. N o século X V I I , a Royai Soàety pedia
sola, inventada pelos chineses e introduzida no M e d i t e r r â n e o pe- aos navegadores britânicos para registrar vários dados científicos
los árabes, no século X I I I ; do astrolábio e da vela latina, do timão (variações magnéticas, marés, variações climáticas). N o entanto, é
na proa (em vez de lateral) e de navios mais apropriados às gran- necessário se ressaltar a visão dos viajantes naturalistas como
des viagens (Croix, 1964). A partir do século X I I I , começaram a Humbolt que, como físico, químico, botânico, zoólogo, astrónomo
aparecer os "portulanos", cartas náuticas que descreviam portos e e geógrafo, fez contribuições notáveis não somente ao estudo da
rotas náuticas conhecidas. fauna e flora, mas t a m b é m ao conhecimento das p o p u l a ç õ e s
Esses conhecimentos de navegação, usados por pescadores e humanas c suas culturas nas várias partes do mundo que visitou
marinheiros, foram essenciais para o início do período dos Gran- durante a primeira metade do século X I X . N ã o se pode deixar de

20 21
A I N T K U D I S C I P I . I N A K I I M O K N O S E S T U I J O S liO M A K
A N ToNio C A I Í I . O S D I K G U K S

enfatizar t a m b é m a contribuição de outros naturalistas como Spix gadorcs, piratas, pescadores. Alguns deles habitavam os mares de
c Martins, Langsdorf, Pernetty, Conde La P é r o u s e , Scidler e forma temporária (navegadores, piratas, por exemplo) e outros de
Thomas Hwbank (]ue t a m b é m estudaram a fauna e a ílora marítima forma permanente ou quase (pescadores asiáticos que moram, com
e costeira, como t a m b é m as p o p u l a ç õ e s humanas do litoral suas famílias em seus barcos).
brasileiro, durante o s é c u l o XIX. Pode-se afirmar que esses Mesmo a atividade pesqueira realizada por pescadores ar-
naturalistas, dentro do quadro da história natural, desenvolveram tesanais ou industriais era analisada somente em termos de
os primeiros intentos de uma visão interdisciplinar das q u e s t õ e s tecnologias (esforço de pesca, etc.) como se fosse possível analisar
marítimas no Brasil. os instrumentos de captura separados de quem os utiliza, da
A oceanografia física se desenvolveu muito mais intensamente repartição do produto capturado, etc. N o fundo, a análise da pesca
a partir do início do século XX. Os oceanógrafos já estavam organi- era "naturalizada", como se fosse um ato semelhante ao da gaivota
zados internacionalmente, a partir de 1919, na Associação Interna- que mergulha para capturar sua presa.
cional de Oceanografia Física (AIOP). Como não existia ainda uma As razões para a ausência das ciências sociais podem ser ex-
associação oficial dos oceanógrafos biólogos, estes foram convidados plicadas por fatores tanto internos quanto externos a essas
para participar no congresso da AIOP, dc 1922, como uma subseção, disciplinas.
mas os biólogos se recusaram a estar presentes nessa condição. Os fatores externos se referem, em grande parte, à concepção
E m 1957, criou-se a SCOR — C o m i t é Científico de Pesquisa dos cientistas naturais (sobretudo os oceanógrafos físicos e q u í m i -
Oceanográfica, que reunia pesquisadores dos países industrializa- cos) que estudavam os mares como grandes vazios humanos,
dos. A criação da c:OI, Comissão Oceanográfica Internacional, pela desabitados, sem intervenção humana. Por outro lado, como afir-
UNESCO, formada em 1960 por 40 membros, em grande parte dos mamos antes, os especialistas em oceanografia biológica estudam
países industrializados, possibilitou posteriormente a participação a retirada da biomassa pela atividade pesqueira como um processo
de oceanógrafos, físicos e biólogos dos países do Terceiro M u n d o meramente tecnológico, independente das variáveis culturais. A
(UNESCO, 1983). própria administração pesqueira torna-se, para eles, um processo
de controle da retirada da biomassa, através da restrição ao esforço
de pesca. Os parâmetros naturais tornam-se critérios exclusivos
A C O M PA R r i M i-: N 'cA i, i A Ç ÃO
para a m a n u t e n ç ã o dos estoques pesqueiros, independentemente
DA C I Ê N C I A DOS MARKS
dos hábitos alimentares humanos, da existência ou não de mercado,
etc. E o caso de se utilizar somente o MSY (produção máxima
Com a crescente especialização científica, principalmente no sé- sustentável) como parâmetro único de uma captura ótima.
culo XX, o conhecimento dos mares, seus processos ecológicos e Para se chegar a tanto, são propostas "quotas", "defesos", etc.
seus habitantes, tanto humanos quanto n ã o - h u m a n o s encontram- como medidas meramente técnicas e que, ao final, são fadadas ao
se esfacelados em diversas disciplinas (geologia marinha, oceano- fracasso por falta de aceitação dos próprios pescadores. Os interes-
grafia física, química, biológica, etc). Até recentemente, as ciências ses e motivações sociais, mesmo as limitações do mercado não são
humanas estavam muito ausentes dos estudos marítimos, como se levados em consideração para a determinação de um " ó t i m o " de
o mar e os oceanos fossem grandes vazios, povoados somente por captura, pois os critérios são meramente "ecológicos", em busca
espécies de peixes e aves marinhas. E, no entanto, sabemos que de uma situação de equilíbrio na natureza (homeostasis), proposi-
os mares, desde a Antiguidade, estiveram habitados por nave- ção hoje contestada entre os próprios biólogos e ecólogos.

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AvioMo ('AIÍI.OS DIKULKS A iNTKROlSCin.INAKIDAOI-: NOS ESTUOOS DO M A I Í

Dcsconhece-se que o mar é um espaçocheio de "marcas", " i n -


estudo do "mundo rural". O litoral, a costa, o mar e o oceano seri-
dicadoras de territórios", estabelecidas por pescadores artesanais
am simplesmente extensões do continente e as populações que
dentro do processo tradicional de captura. Essa visão de "território
viviam desses ecossistemas seriam consideradas "camponeses".
vazio" acabou sofrendo uma c o n t e s t a ç ã o mais frontal com o
Tanto as ciências naturais quanto as sociais, marcadas pelo
estabelecimento, por parte dos Estados Nacionais, dos mares
evolucionismo do século XIX, foram marcadas pelo reducionismo,
territoriais e das zonas económicas exclusivas, consolidadas na L e i
na medida em que tomam uma parte da realidade que estudam
tio Mar, promulgada pela ONU, em 1984. Mesmo certos fenómenos
como seu todo.
"naturais", como a migração entre fronteiras marítimas nacionais
Desde o século XVII, a investigação científica foi marcada pelo
de e s p é c i e s de pescado de alto-mar, tornaram-se f e n ó m e n o s
paradigma cartesiano ou pelo positivismo que tenta desagregar a
"políticos", como aconteceu no conflito recente entre C a n a d á e
realidade em componentes para reordená-los, posteriormente,
Espanha pela pesca do bacalhau, na medida em que cada país se
como generalizações ou leis. O reducionismo positivista ignora
acha no direito de capturá-los, quando esses peixes migratórios
outras alternativas e, no entanto, novos paradigmas explicativos
passam em seus mares territoriais ou em suas zonas económicas
mais complexos estão aparecendo, como a ciência não-linear, a
exclusivas.
teoria do caos, a física q u â n t i c a , a teoria crítica, a pesquisa
Outro fator externo adicional para explicar a ausência das ciên- construtivista, etc. (Pimbert e Pretty, 1997).
cias humanas nos estudos marítimos é a visão "preservacionista"
Na análise das q u e s t õ e s relativas à relação entre sociedade e
pela qual cjualquer intervenção humana no mar é, necessariamen-
natureza, existe, de um lado, o reducionismo sociológico pelo qual a
te, negativa e desastrosa. O oceano seria a última fronteira "natural
"natureza" se torna compreensível somente pelo viés de suas re-
ou selvagem", uma vez que a maioria dos ecossistemas terrestres
presentações culturais. A interface entre práticas sociais humanas
teria sido afetada negativamente pela ação humana. A semelhan-
c suas c o n d i ç õ e s materiais é perdida de vista. A posição do
ça do que ocorre com as áreas continentais, p r o p õ e m - s e "parques
construcionismo social baseia-se no argumento de que todas as
nacionais marinhos", onde mesmo os pescadores tradicionais que
visões da natureza são construções simbólicas de uma ou outra
aí pescavam, por séculos, sem danificar os recursos pesqueiros, não
(Benton, 1994:31).
podem mais entrar. Muitos cientistas naturais e ecologistas ignoram
Os modelos biológicos, mesmo a teoria dos ecossistemas, t ê m
que as "comunidades humanas" tradicionais desenvolveram, ao
dificuldades em incluir o homem, apesar do discurso de seus pro-
longo dos séculos, formas engenhosas de conservação do habitat
motores, como Odum. Ela privilegia o estudo dos ecossistemas
marinho e seus recursos, estabelecendo áreas onde os próprios
menos tocados pelo homem. A ação humana não visa diretamente
homens não podem penetrar, por serem sagradas, locais onde
sua adaptação ao meio ambiente, mas é fruto de ações intencio-
habitam divindades que não podem ser perturbadas (Bourgeoignie,
nais. Isto é, as lógicas económicas, sociais e culturais permeiam as
1972; Diegues, 1994). Um exemplo disso é o uso de "ilhas c mares
relações humanas com o mundo natural e isso escapa à análise dos
adjacentes como locais religiosos e sagrados", somente utilizados
teóricos do ecossistema. Compreende-se assim que os ecólogos
ocasionalmente para rituais de iniciação, na costa oeste da Africa.
tenham preferido deixar o homem de fora dos ecossistemas e que,
Quanto aos fatores internos, a ausência das ciências humanas,
tendo excluído o homem de seu objeto de estudo, toda transfor-
no estudo das populações humanas que vivem direta ou indireta- mação causada pelas suas atividades aparece como impacto preju-
mente dos mares se deve, em grande parte, à noção segundo a dicial à natureza. Como não levar em conta a ação humana na
íiual o estudo das comunidades marítimas deveria se inserir no
análise dos ecossistemas é irrealista. A concepção sistémica de

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25
A I N J K R O I S C I I M J N A H I I M O K NOS KsTUOOs oo MAK
A N T O N I O CURI.OS Diixa KS

Deve-se notar, como enfaticamente afirma Breton (1989), que


O d u m contribuiu para criar uma conotação misantrópica ao dis-
esses primeiros antropólogos não estavam interessados em estu-
curso de alguns conservacionistas (Lassere, 1997).
dar especificamente as sociedades insulares (Malinowski) ou as
sociedades marítimas dos pescadores (Firth). O interesse de am-
bos era teórico, dirigido à elaboração de novas metodologias (pes-
O ESTL-DO DAS S O C I K D A D K S M A K Í I I M A S :
quisa de campo, método funcionalista) e fazer avançar teoricamente
A SOCIOANTWOPOI-OGIA M A R Í T I M A
a Antropologia.

o interesse das cicncias sociais pelo mar é relativamente recente. A Antropologia Marítima é hoje um campo de pesquisa especi-
Uma das disciplinas pioneiras nesses estudos é a geografia huma- alizado de estudo etnológico sobre comunidades que vivem do mar,
na e a história. Alguns trabalhos, como o de Herubel, " A Evolução principalmente da pesca. A construção desse campo disciplinar é
da Pesca" (1928), o de A. Thomazi, " A História de Pesca" (1947), recente e o verbete Antropologia Marítima apareceu pela primeira
publicados na França, tratam exclusivamente da pesca numa pers- vez em 1992, no prestigiado Dictionnaire de rEtlmologie et de
pectiva histórica e geográfica. VAnthropologie, publicado pela Presses Universitaires de France,
sob a direção de Pierre Bonte e Michel Izard. Segundo Geistdoerfer,
Os estudos etnográficos de sociedades de pescadores come-
a Antropologia Marítima estuda a variedade e a complexidade dos
çaram quando, em inícios do século XX, os pesquisadores ingle-
sistemas técnicos, sociais e simbólicos elaborados pelas popula-
ses c o m e ç a r a m a fazer ciência a partir dos trabalhos de campo.
ções litorâneas no processo de apropriação do espaço marinho que
Assim, Malinowski publicou, em 1922, a clássica monografia: O.f
daí retiram sua subsistência. Ela estuda, portanto, o modo de vida
Argonautas do Pacífico Sul, criticando os a n t r o p ó l o g o s evolu-
cionistas que viam na pesca um estágio civilizatório anterior à gente do mar como específico e particular, em contraste com o
agricultura e à sedentarização. Dentro da perspectiva funcio- modo de vida das populações continentais com as quais as co-
nalista, ele estudou a sociedade dos insulares tombriandeses, munidades marítimas m a n t ê m relações sociais estreitas. Ainda
particularmente o kula (troca ritual de bens) realizado no â m b i t o segundo Geistdoerfer (1992), pode-se falar em sociedades ma-
da navegação entre as ilhas da Polinésia. Suas análises sobre as rítimas em relação a d e t e r m i n a ç õ e s gerais ligadas à localização
funções das crenças religiosas, dos mitos e da magia contribuíram geográfica ou ao tipo de atividades humanas, às quais estão as-
decisivamente para consolidar um novo campo do conhecimen- sociados saberes técnicos particulares (conhecimento do meio ma-
to humano: a Antropologia. rinho, da fauna e da flora, técnicas de fabricação de e m b a r c a ç õ e s
e de navegação).
U m outro pesquisador que contribuiu decisivamente para
Alguns antropólogos preferem falar em antropologia das so-
c o n s t r u ç ã o da A n t r o p o l o g i a foi R a y m o n d F i r t h , t a m b é m
ciedades de pescadores ou haliêuticas. Collet (1993) assinala a espe-
funcionalista, que publicou, em 1946, Os Pescadores Malaios. Nesse
cificidade desse mundo marítimo/haliêutico e das dificuldades
trabalho, Firth utilizou indistintamente os conceitos de econo-
em estudá-lo, pois a pesquisa no mundo haliêutico se parece com
mia dos pescadores e economia camponesa. Segundo este autor,
a superfície do mar em que tudo se apaga. São raros os arquivos
ambas as economias apresentam analogias estruturais e a
dos mestres-pescadores; a própria raridade não é outra coisa que
sociedade dos pescadores foi tratada como parte das sociedades
a expressão de um mundo efémero que se reflete t a m b é m nas
camponesas. E m trabalho posterior (1970), Firth fez uma dife-
ciências humanas, por muito tempo voltadas somente para o mun-
renciação entre o c a m p o n ê s e o pescador, baseada no tipo de
do rural.
acesso aos recursos naturais.

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AN rt)Nií) CAKI.OS DiKta KS A i N r i - K I J I S C I I M . I N A K I I M D I - : NOS Ksil DOS D O M A R

Existe t a m b é m um debate sobre o caráter da antropologia Entre os vários aspectos dessepartifularismo da gente do mar,
marítima definido seja como subdisciplina no interior da Antropo- sobressaem-se os aspectos simbólicos, mágicos e rituais de que se
logia ou como um simples campo de investigação antropológica. A reveste, em muitas culturas marítimas, a relação homem-mar. Esses
maioria dos antropólogos interessados pelo tema prefere falar em aspectos simbólicos variam de cultura para cultura. Enquanto nos
campo específico de interesse e investigação (Galvan, 1984; países ocidentais, o oceano constitui um objeto de medo e terror,
Geistdoerfer, 1989; Pascual, 1991), porque exige técnicas de ob- em algumas sociedades do sul do Pacífico, o espaço marítimo é o
servação e formas de análise particulares, diferenciadas das antro- locus de vida, um ser vivo com o qual é preciso se conciliar antes
pologias das sociedades camponesas e operárias. Somos da opi- de nele se adentrar. As sociedades marítimas do Pacíflco, mais do
nião que a antropologia marítima, enquanto subdisciplina no inte- que outras, desenvolveram mitos e ritos relativos ao mar e aos seres
rior da Antropologia, está em processo de constituição, possuindo vivos que nele habitam. Nas sociedades ocidentais, esses mitos e
um conjunto de temas, técnicas de observação e um grupo cres- ritos estão em desaparecimento, sob o ponto de vista coletivo, mas
cente de pesquisadores. alguns deles ainda persistem, sob o ponto de vista individual.
Entre as principais características responsáveis pela diversida- De um lado, há os rituais de acesso ao mar e, de outro, os de
de das sociedades marítimas estão a valorização positiva ou nega- acesso aos seres que nele existem. Na Polinésia, por exemplo, o
tiva do mar, o modo de organização económica e social, o lugar mar está na origem das ilhas e das sociedades. Cada lugar no oce-
reservado às atividades pesqueiras na economia, o modo de ano, cada ilha, é marcada pelo aparecimento ou moradia dos an-
integração das comunidades litorâneas na sociedade mais ampla e cestrais míticos (Geistdoerfer, 1989).
o caráter simbólico das relações com o mar.
Nas sociedades ocidentais, o mar permanece ainda como um
Em trabalhos anteriores (Diegues; 198.3, 1993) diferenciei a espaço mal conhecido, perigoso, fora da cultura terrestre, fora da
sociedade dos pescadores da sociedade camponesa, apesar de lei que impera no continente. Desse modo, desenvolveram-se duas
ambas estarem inseridas na pequena produção mercantil. Naque- formas de rituais, um de caráter terrestre e outro, marítimo.
le trabalho, ressaltei opartkularhmo da gente do mar, seu modo de Quando entram no mar, os pescadores, por exemplo, devem
vida específico marcado por práticas sociais e culturais distintas abandonar aquilo que vem da terra para se proteger. Quando che-
das existentes nas sociedades camponesas. Essas práticas e modos gam em casa, devem abandonar o que receberam do mar, para se
de vida se constroem em relação a um meio tanto físico quanto reintegrar na sociedade dos continentais, sem os contaminar. Hoje,
socialmente instável e imprevisível. O mar, espaço de vida dos os rituais coletivos de proteção da gente do mar (procissões,
pescadores marítimos, é marcado pela fluidez das águas e de seus oferendas, ex-votos) estão desaparecendo, mas permanecem ain-
recursos, pela instabilidade c o n t í n u a provocada por fatores da certas práticas como evitar a presença, no barco, dc certas cate-
meteorológicos e oceanográficos, pela variação c migração das gorias de pessoas (religiosos, mulheres), não proferir certas pala-
espécies, seus padrões de reprodução, migração, etc. A vida no mar vras e comportamentos enquanto navegam durante a noite.
c t a m b é m marcada não só por contingências naturais, mas por
temores e medos, acidentes e naufrágios, pela flutuação dos preços,
pela extrema perecibilidade do pescado que, uma vez capturado,
deve ser vendido rapidamente, o que obriga o pescador a acertos
particulares de c o m e r c i a l i z a ç ã o que, usualmente, lhe são
desfavoráveis.

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A N I O N I O CAIÍI.OS Oiixa I;S A I N T K R D I S C M M . I N A K I I M D K N O S E S T U O O S OO M A R

O C O N H K C I M K N rO T R A D I C I O N A L KA
amostragens intensivas durante um longo período. Os pesca-
APROPRIAÇÃO S O C I A L DO A M B I K N T H MARINHO
dores dependem das habilidades visuais, e o que v ê e m e me-
morizam é ditado pelas suas práticas na pesca, pelas técnicas
O conhecimento dos pescadores sobre o meio ambiente marinho
de encontrar e capturar o que eles e seus camaradas julgam
e suas e s p é c i e s é escudado t a m b é m nos diversos ramos da
importante. Muitas de suas observações são transmitidas mais
etnociência, como a etno-ictiologia, a etnobiologia, a etno-oceano-
oralmente do que por escrito e por isso mesmo, sujeitas às l i m i -
grafia, etc.
tações da memória." ( M c Goodwin, Neis & Felt, 2000: 252,
Tanto a ciência ocidental quanto o conhecimento tradicional
apud Holms, 2003).
são o resultado de um processo intelectual geral, visando criar or-
dem a partir da desordem (Gadgil, Berkes e Folke, 1993). Nesse
Para esses autores, o conhecimento tradicional na pesca é cu-
sentido, ambos são formas distintas de explicação do mesmo tipo
mulativo durante gerações; é empírico, pois deve continuamente
de f e n ó m e n o . Para Lévi-Strauss (1989), cada uma das técnicas do
confrontar-se com o teste da experiência: é dinâmico, pois trans-
cultivo agrícola, da domesticação dos animais, já usadas no neolítico
forma-se em função das mudanças socioeconómicas, tecnológicas
pelo homem, não foram obra do acaso, mas " s u p õ e m séculos de
e físicas.
observação ativa e metódica, hipóteses ousadas e controladas, para
Muitos pesquisadores acham que a diferença entre o conheci-
serem rejeitadas ou comprovadas por meio de experiências incan-
mento tradicional e a ciência é mais de grau (quantitativo) do que
savelmente repetidas" (1989:34). Para ele, já há:
de tipo (qualitativo). Segundo afirmam alguns autores (Berkes,
Fischer, í^uddle), o conhecimento tradicional possui curiosidade
"duas formas distintas de pensamento científico, ambas fun-
científica, é capaz de realizar experimentos controlados, de
ção, não certamente de estágios desiguais do desenvolvimento
quantificar fenómenos e usa métodos elaborados de inferência e
do espírito humano, mas de dois níveis estratégicos, onde a na-
reflexão.
tureza se deixa atacar pelo conhecimento científico: um apro-
A importância do conhecimento produzido e transmitido oral-
ximadamente ajustado ao da percepção e da imaginação, e outro
mente pelos pescadores artesanais e seu papel nos programas de
sem apoio; como se as relações necessárias, objetivo de toda
manejo pesqueiro tem recebido atenção especial dos pesquisado-
ciência — seja ela neolítica ou moderna — pudessem ser atin-
res de várias regiões do mundo (Ruddle, 2000; Cordell, 2000). Esse
gidos por dois caminhos diferentes: um muito perto da intui-
conhecimento e as práticas associadas, segundo Ruddle (2000),
ção sensível e outro mais afastado." (1989:36)
orientam e sustentam o funcionamento de sistemas de manejo
comunitário e estão na base das decisões e estratégias de pesca
Para alguns pesquisadores, há diferenças entre os dois tipos de
dos pescadores artesanais. Nesse sentido, ele é empírico e prático,
conhecimento, mas são de pequena monta:
combinando informações sobre o comportamento dos peixes,
taxonomias e classificações de espécies e habitat, assegurando
"Como foi indicado por Fischer, as observações dos pesca-
capturas regulares e, muitas vezes, a sustentabilidade, a longo pra-
dores foram adquiridas durante a prática pesqueira e mediadas
zo, das atividades pesqueiras. O conhecimento tradicional tam-
pelo conhecimento transmitido pelas gerações passadas, as
b é m fornece uma base de informação crucial para o manejo dos
espécies e os tamanhos e com quem pescam. Seu conhecimen-
recursos pesqueiros locais, em particular nos países tropicais onde
to apresenta uma escala espacial reduzida, mas requer
os dados biológicos raramente estão disponíveis.
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A I N I K I Í D I S C I I M - I N A R I O A O K NOS K S I U O O S iX) M A U
A N T O N I O ('AIÍI.OS I)ii-:(a:i;s

Vários estudos e etnobiólogos da pesca e antropólogos t ê m arrasto é diferente daquele usado pelo pescador de linha de fun-
mostrado a riqueza do conhecimento dos pescadores artesanais no do; a maneira pela qual o pescador percebe os peixes depende do
Brasil. Gláucia Silva (2000) analisou as categorias analíticas usadas ciclo de vida em que eles são pescados.
pelos pescadores de Piratininga (Rio de Janeiro). Alpina Begossi
(1997) estudou os critérios de classificação de peixes usados na
Ilha de Búzios (SP). Lúcia Helena Cunha (1989; 2000) e Simone A I N T K U I : ) I S C I I M . I N A R I D A D K NAS
Maldonado (2000) descreveram o conhecimento e o saber-fazer PRÁTICAS C U L T U R A I S D E M A N E J O
dos pescadores do litoral paranaense e paraibano, ao passo que
Diegues (1983, 2000) descreveu aspectos do conhecimento e Como vimos anteriormente, o oceano e sobretudo a pesca, não
manejo pesqueiro por comunidades de pescadores artesanais no podem ser entendidos em sua complexidade pela contribuição de
Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Contribui- uma única disciplina, seja ela a biologia, a oceanografia ou a socioan-
ções importantes ao tema foram dadas por Forman (1967,1970), tropologia. É necessária uma colaboração orgânica entre essas
Cordell (1974, 2000), Mourão (1971) e Marques (2001). disciplinas, ainda que elas mantenham seus próprios paradigmas
Neste trabalho, o conhecimento tradicional na pesca é enten- e m é t o d o s . E ilusório pretender-se, nesta fase de especialização, a
dido comí> u m conjunto de práticas cognitivas e culturais, habi- transdisciplinaridade que exigiria uma uniformidade ou mesmo
lidades práticas e saber-fazer transmitidas oralmente nas comu- fusão de paradigmas e métodos. Autores, como Gusdorf (1982),
nidades de pescadores artesanais com a função de assegurar a acham que a transdisciplinaridade não é um objetivo realista, pois
r e p r o d u ç ã o de seu modo de vida. N o caso das comunidades cos- suporia a autoridade de uma instância científica sobre as demais,
teiras, ele é constituído por um conjunto de conceitos e imagens uma metalinguagem ou metaciência.
produzidos e usados pelos pescadores artesanais cm sua relação Talvez um objetivo mais realista seja a interdisciplinaridade
com o meio ambiente aquático (marinho, lacustre, Huvial) e com restrita, como p r o p õ e Edgar M o r i n (1982), não como uma jus-
a própria sociedade. Berkes (1993) define esse conhecimento taposição de disciplinas, mas como um colocar os conhecimen-
como um conjunto cumulativo de saberes e crenças transmitidas tos das várias disciplinas em comum, explorando as interfaces
culturalmente através de gerações sobre a relação dos seres vivos entre elas.
(incluindo os humanos) entre si e com seu meio ambiente (Gadgil, U m dos campos promissores do exercício interdisciplinar é o
Berkes & Folke, 1993). das práticas de manejo, em que cientistas e pesquisadores de d i -
Segundo Holms (2003), o conhecimento ecológico tradicional versas disciplinas, tanto naturais quanto sociais, são chamados a
na pesca é distribuído homogeneamente entre todos os pescado- resolver problemas mais práticos, tais como planos de manejo
res, mas, em parte, é função do tempo de experiência na pesca; a pesqueiro e reservas marinhas (parques ou reservas extrativistas
qualidade desse conhecimento é função da posição do pescador marinhas).
no sistema de pesca. O conhecimento do mestre é, e m geral, mai- No entendimento dessas práticas culturais, é fundamental a
or que o do pescador de convés; o conhecimento do homem é inclusão dos saberes tradicionais daqueles que são chamados a fazer
diferente do conhecimento da mulher; o conhecimento do pesca- o manejo: os próprios pescadores.
dor depende do tipo de tecnologia usada na pesca. Os diferentes
tipos de aparelhos de pesca são sensíveis ao tipo de meio ambien-
te marinho.O tipo de conhecimento do pescador que trabalha com

32 33
A N T O N I O ('AHI.OS DIKÍU.KS A I N I K U D I S C M M . I N . M Í I D A O I - ; NOS H s r i o o s oo MAU

A Interdisciplinaridade nas Práticas exemplo, mas seu resultado tem sido reduzido, uma vez que cada
de Manejo Pesqueiro disciplina estuda a questão a partir de seus próprios paradigmas e
metodologias. Cada uma delas concentra-se no problema, usando
Tendo em vista a diminuição generalizada dos estoques pesquei- conceitos, como o esforço de pesca, que pode ter definições dis-
ros, a preocupação maior tem sido o conhecimento da evolução dos tintas, segundo a disciplina. Como afirma Brêthes,
recursos pesqueiros pelos biólogos marinhos, ao mesmo tempo ava-
liadores dos estoques e administradores pesqueiros. O objetivo de "A captura não é resultado simples do estado dos recursos
seu trabalho é responder a questões como: qual é o tamanho do pesqueiros e de um só parâmetro abstrato definido pelo biólo-
estoque e qual a quantidade que se pode retirar dele, anualmente, go, ou do custo dc produção proposto pelo economista, mas de
sem colocar em risco sua reprodução. Como recuperar um estoque um conjunto complexo que inclui as flutuações da a b u n d â n c i a
de peixes que sofreu uma diminuição drástica.'' A partir daí, foram do peixe, custos, mercado, estruturas e hábitos sociais, com-
desenvolvidos vários modelos de dinâmica populacional c estudos, portamento individual dos pescadores e t a m b é m a legislação,
visando determinar a produção máxima sustentável. marcada por objetivos políticos, mais ou menos ligados aos tra-
Esses esforços, no entanto, não evitaram o declínio trágict) de balhos de pesquisa; a pesca é um sistema que se insere num
algumas espécies como a sardinha da Califórnia, a anchoveta pe- sistema mais vasto, nacional e internacional. Fala-se, cada vez
ruana e, mais recentemente, o bacalhau, no Canadá. Tendo-se em mais, em gestão integrado do espaço marítimo (Levy, 1988) e
vista que a pesca industrial e comercial é seletiva, visando as e s p é - do interesse das c o n t r i b u i ç õ e s das diversas disciplinas"
cies de valor de mercado, com freqtientes repercussões negativas (Troadec, 1990:3-4).
sobre as demais espécies, houve necessidade de se fazer estudos
económicos e fmanceiros, surgindo, posteriormente, modelos de Muitas vezes, a diminuição dos estoques está mais ligada a
análise ecológico-económica. Em muitos casos, devido à sobre- falhas de planificação que às q u e s t õ e s biológicas. Uma das difi-
pesca de algumas e s p é c i e s de alto valor dc mercado, houve culdades encontradas é a de se prever o comportamento das es-
necessidade de se reduzir o n ú m e r o de barcos e pescadores, crian- pécies e a situação futura dos estoques, dada a complexidade dos
do problemas de desemprego e redução de renda familiar. Ao elementos envolvidos. Os objetivos e dificuldades são entendi-
mesmo tempo, em muitos países, como o Brasil, incentivos mal dos de forma distinta por biólogos, oceanógrafos, economistas e
planejados para se desenvolver a pesca industrial tiveram impac- sociólogos. Esses problemas são ampliados pela dificuldade em
tos negativos sobre a pesca artesanal, trazendo problemas crescen- se encontrar uma linguagem comum e os termos utilizados por
tes dc marginalização social e pobreza dos pescadores (Diegues, cada disciplina não se referem, necessariamente, aos mesmos con-
1983). Essa situação exigiu a elaboração de estudos e pesquisa dos ceitos.
aspectos sociais, realizados, sobretudo, nos países em desenvolvi- B r ê t h e s e Fontana (1992) mostram como determinados con-
mento. A partir de então, ficou claro que a pesca não poderia ser ceitos usados pelas diversas disciplinas t ê m um significado dis-
estudada por uma só ciência, exigindo uma colaboração de várias tinto em cada uma delas. Isso ocorre com a noção de equilíbrio,
disciplinas naturais e sociais, através de um esforço m u l t i e de gestão, de variabilidade e de tecnologia. E importante se obser-
interdisciplinar. var que esses quatro termos são usados tanto na biologia, quanto
Alguns estudos, no entanto, resultam da justaposição de várias na sociologia/antropologia e na economia e que, no interior de
disciplinas para tentar se resolver problemas de sobre-pesca, por cada uma delas, há definições distintas segundo escolas de pen-

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A N T O N I O C A R I - O S Diixa.KS A iNrKHDiscin.iNAKiOADi-: NOS Ksii;oos oo M A U

samento. Na htologta, a noção de equilíbrio foi contestada pela produtos da pesca, a e x p a n s ã o das frotas industriais e as políticas
maioria dos biólogos em função dos fracos resultados das tentati- que favoreceram uma captura em larga escala alteraram, visivel-
vas dc previsão do comportamento dos estoques em longo prazo mente, a estrutura da pesca nesses países. Cada vez mais, as cha-
c da variabilidade do nível das populações de peixes, indepen- madas pescas tradicionais artesanais foram incorporadas ao mer-
dentemente da pesca. Na antropologia, a noção de d e s e q u i l í b r i o cado e uma das conseqiiências desse processo foi uma maior es-
é central pelo fato de as sociedades de pescadores apresentarem pecialização numa só atividade e o abandono de outras. O efeito
uma instabilidade ainda maior que a existente nas sociedades combinado da e x p a n s ã o da pesca industrial e as transformações
agrárias. Na economia, a noção de equilíbrio entre oferta e procura na pesca artesanal t ê m levado frequentemente à sobrepesca.
c ainda importante nas teorias neoclássicas, mas t a m b é m é con- A l é m da contribuição das ciências sociais clássicas, nos últi-
testada por outras escolas, como as neo-marxistas e as teorias mos anos, tem-se tornado cada vez mais evidente que os pesca-
recentes de regulação económica ( B r ê t h e s e l'\)ntana, 1992). dores t a m b é m desenvolveram suas formas e práticas cognitivas,
As ciências sociais partem do princípio de que não somente as raramente tomadas a sério pelos administradores de pesca.
espécies e o habitat são distintos, mas t a m b é m são distintas as Um exemplo clássico dessas contradições foi o colapso dos es-
práticas de pesca realizadas pelos pescadores que pertencem a toques de bacalhau no Canadá que levou à suspensão dessa pesca
culturas e sociedades diferenciadas. Uma das tendências das ciên- por vários anos, causando verdadeiros dramas nas comunidades
cias naturais é enfatizar a diversidade biológica e uniformizar as litorâneas de pescadores canadenses.
práticas e organizações sociais dos pescadores. Conforme Brêthes e Fontana (1992), os cientistas de órgãos
governamentais de administração pesqueira no Canadá, encarre-
"Muitos projetos de desenvolvimento da pesca t ê m a ten- gados de fazer a avaliação de estoques, equivocaram-se sobre a
dência de negar esta dimensão histórica e esta diversidade às situação dos estoques do bacalhau do Atlântico Norte, nos anos de
custas de uma visão modernista que acentua a homogeneização 1980. Eles concluíram que o estoque estava em bom estado e
e a especialização dos sistemas, fazendo do aumento da produ- crescendo, permitindo uma captura industrial até maior. Os pes-
tividade económica um objetivo prioritário. Kssa atitude é mais cadores costeiros, no entanto, arguindo que o estoque estavam em
perigosa, pois pode desestabilizar as práticas sociais existen- perigo, contestaram os resultados da avaliação governamental, mas
tes, que dão ênfase maior à cooperação que ao desempenho não foram ouvidos. O colapso dos cardumes de bacalhau logo depois
individual de cada pescador ou ao uso de atividades comple- provou, no entanto, que eles estavam certos e os cientistas
mentares para completar a renda num ciclo anual" (Breton, governamentais estavam equivocados.
1992:15). Hoje, no Brasil, estão surgindo novas práticas e experiências
de manejo pesqueiro que levam em conta a contribuição do conhe-
É preciso salientar que, sobretudo nos países tropicais, antes cimento dos pescadores artesanais em projetos de co-administra-
da chegada do capitalismo na pesca, foram desenvolvidos siste- ção pesqueira que r e ú n e m diversos parceiros como as associações
mas de pesca adaptados às condições ecológicas e socioculturais, e colónias de pescadores, órgãos governamentais e organizações
marcadas, sobretudo, pela maior disponibilidade dos recursos pes- não-governamentais. Essas experiências concentram-se na cons-
queiros, fraca densidade populacional, relações intermitentes com tituição de fóruns de pesca, no manejo comunitário de lagos e
o mercado e pelo uso de tecnologias patrimoniais de impacto re- estuários, particularmente na Amazónia e nas reservas extrativistas
duzido sobre os estoques pesqueiros. A crescente demanda dos marinhas ao longo da costa brasileira (ex: Reserva Extrativista do

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A N T O N I O (ÍAKI.OS DIKGUKS A I N rKUOisciiM.iNAiíiiJAOi: NOS H s i i DOS D O M A U

Mandira, Cananéia). U m dos conceitos e práticas propostos é a do supremamente social, que reflete e reforça os valores e opi-
manejo adaptativo, importante quando os pescadores artesanais niões dominantes da sociedade em cada é p o c a h i s t ó r i c a "
enfrentam v a r i a ç õ e s tanto de ordem a m b i e n t a l ( m u d a n ç a s (2001:13).
climáticas, de salinidade) quanto económica e social (variações de
preço do produto, de disponibilidade maior ou menor de mão-de- Nesse sentido, tanto as ciências naturais quanto as sociais são
obra, etc). A grande diversidade de petrechos e tipos de pesca du- instituições que devem ser entendidas no contexto social do seu
rante o ano, através do uso de um calendário complexo de atividades tempo, são historicamente desenvolvidas, culturalmente localiza-
pesqueiras e não pesqueiras (agricultura, artesanato) é uma forma das e coletivamente produzidas.
de adaptação dos pequenos pescadores à diversidade ambiental e T i n t o a biologia quanto a antropologia têm sido usadas com
de espécies que ocorrem nos ambientes costeiros. T a m b é m algumas fins práticos. O antropólogo produz laudos periciais e, usando a
mudanças e inovações nas técnicas de pesca artesanal, por exemplo, noção de território de uso tradicional de agricultura e pesca, redes
são respostas adaptativas dos pescadores para reduzir e controlar as de parentesco e migrações, pode propor o reconhecimento oficial
variações de ordem ambiental e socioeconómica. de um determinado espaço como terras indígenas. A biologia tam-
b é m é utilizada para determinar que área de floresta ou mar deve
A Interdisciplinaridade nas Questões ser protegida, usando determinados conceitos como biodiversidade,
de Conservação Ambiental efeitos de borda, sucessão ecológica, etc.
Nesse sentido, as diversas "ciências da conservação da nature-
U m dos objetivos da ciência moderna é resolver os problemas za" são aplicações práticas das diversas disciplinas tanto naturais
apresentados pela sociedade, como afirma Lewontin (2001): como sociais. U m exemplo dessas aplicações práticas é o uso do
conhecimento científico c de outras formas de saberes na conser-
"ciência serve a duas funções. Primeiro, ela nos fornece vação marinha.
novas maneiras de manipularmos o mundo material ao produ- Nas últimas décadas, em particular depois do livro de Rachel
zir um conjunto de técnicas, práticas e intervenções (...) A se- Carson, O mar que nos rodeia, na década de 50, nos Estados U n i -
gunda função da ciência, que algumas vezes é independente e dos, denunciando a poluição dos mares por D D T , a conservação do
outras vezes está intimamente relacionada com a primeira, é a ambiente marinho passou a ser uma prioridade num grande n ú m e r o
função de explicação"(p.08). de países. Foi um dos temas da Conferência de Estocolmo, em
1972, e objeto de planos especiais de conservação, por organismos
Seguindo Thomas Kuhn, Lewontin (2001), um dos mais des- internacionais, como a U I C N . O habitat considerado a m e a ç a d o
tacados geneticistas do mundo c o n t e m p o r â n e o afirma que a ciên- como mangues e recifes de corais passaram a ter planos de ação
cia é uma instituição, um conjunto de métodos, de pessoas, um específicos em sua proteção.
corpo de conhecimentos que não está separado das forças sociais A estratégia mais difundida na proteção desse habitat tem sido
que regem nossas vidas e a estrutura de nossa sociedade. De for- a de parques marinhos, em suas diversas modalidades (parques
ma mais clara, Lewontin afirma que: nacionais, reservas ecológicas, etc) que, concebidos e imple-
mentados antes nos países industrializados, tornaram-se f(mtes de
"apesar da ciência reivindicar sua posição acima da socieda- conflitos nos países tropicais. Esse habitat tem sido utilizados por
de, como a Igreja anteriormente, ela é uma i n s t i t u i ç ã o pescadores artesanais que se v ê e m privados de seus meios de sub-

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A N T O N I O (CAKI.OS D I K Í . I . K S A I N TKROISCIIM.INAlíIlJAiJK NOS E.STUIJOS IX) MAIÍ

sistcncia, particularmente a pesca, quando são implantados esses O esboço de uma nova teoria da conservação, que podcmí>s
parques e reservas (Diegues, 1994, 1998). chamar de etnocomej-vação, é resultado da constatação das ambi-
Essas estratégias tem sido alvo de debates no Brasil, não so- guidades e incongruências das teorias conservacionistas elabora-
mente entre preservacioniscas e ecologistas sociais, mas entre ci- das nos países do Norte, quando transplantados ao Sul, como o
entistas sociais e naturais. (Diegues, 1994). A ciência e outras for- apoio, muitas vezes disfarçado de grandes organizações conser-
mas de saberes t ê m dado sustentação às várias estratégias. vacionistas internacionais. Aliás, os conservacionistas do Sul não
A biologia da conservação, por exemplo, tem sido, em geral, t ê m outra escolha a não ser construir uma ciência e prática da con-
utilizada pelos grupos que propõem uma estratégia de conserva- servação que surja das necessidades culturais e ambientais de seus
ção da qual todo ser humano é excluído. Ela c uma dessas discipli- países. Se um novo enfoque para a conservação da natureza não
nas aplicadas que, usando princípios e conceitos da ecologia geral, for construído e implantado, poderemos assistir à destruição i m -
da dinâmica de populações, da biogeografia, visa conhecer e propor piedosa de nossos ecossistemas tropicais e t a m b é m da grande diver-
formas dc c o n s e r v a ç ã o da natureza, tendo surgido dentro do sidade cultural dos povos e comunidades que neles habitam.
contexto histórico norte-americano dos anos 70 e 80, quando se
A seguir, indicaremos alguns elementos que devem ser consi-
procurava determinar o tamanho ótimo de áreas para a proteção e
derados na elaboração de novas estratégias de conservação. N ã o
reprodução de espécies ameaçadas de extinção.
pretendemos aqui elaborar um manual a ser utilizado em todas as
Essa disciplina é muito influenciada pela ecologia profunda, situações, pois não existem cartilhas completas nesse prí)cesso de
uma fdosofia marcada por propostas dc separação entre sociedade construção de um novo conservacionismo. Esses elementos po-
e natureza, e apresenta grandes dificuldades em inserir as comu- dem ser considerados como alguns princípios orientadores nesse
nidades humanas cm propostas de conservação. Sua transferencia esforço de proteger a biodiversidade e a diversidade cultural. Ao
para os países tropicais tem apresentado inúmeras dificuldades, contrário do que pensam alguns conservacionistas, trata-se muito
reconhecidas por ecólogos, por exigir uma quantidade e qualidade mais de administrar visões e interesses humanos, muitas vezes
de informações, em geral, não disponíveis nos países tropicais e opostos, do que manejar processos naturais. E evidente que as
por não levarem em conta, de forma adequada, as atividades populações tradicionais não são os únicos atores na tarefa da con-
humanas (Fonseca e Aguiar, 1995; Diegues, 2000; Pimbert, 1997). servação e outros interesses, como os dos grupos urbanos, agricul-
Nos países do sul, por outro lado, t ê m aparecido, nas duas últi- tores comerciais, etc devem ser levados em consideração. O que
mas décadas, propostas que pretendem incorporara sociedade, cm podemos dizer é que as comunidades tradicionais podem ser alia-
particular as comunidades locais, seus saberes e práticas culturais dos natos nesse exercício, o que t a m b é m implica afas(ar a visão
no processo de conservação da natureza. Baseados em conceitos romântica pela qual as comunidades tradicionais são vistas como
como o da co-evolução da natureza e cultura, da ecologia da conservacionistas natos. Trata-se, evidentemente, de seres huma-
paisagem, da etnociência, da biodiversidade como f e n ó m e n o na- nos com suas qualidades e defeitos, com interesses frequentemente
tural e cultural, do manejo como prática cultural, do respeito à h e t e r o g é n e o s dentro da própria comunidade. Além disso, muitas
diversidade cultural e à democracia, não somente cientistas soci- dessas comunidades t ê m sofrido, nas últimas décadas, processos
ais, mas t a m b é m naturais, bem como associações locais, organiza- de desorganização social e cultural decorrentes de sua inserção
ções não-governamentais e técnicos governamentais estão cons- crescente nas sociedades urbano-industriais, tendo como resultado
truindo uma nova prática e ciência da conservação mais apropria- a perda crescente do acesso aos recursos naturais e t a m b é m de
da às condições ecológicas e culturais dos países do Sul. suas tecnologias patrimoniais.

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A N T O N I O CAKI.OS DIKGUKS A I N T K R D I S C I I - L I N A K I O A O K NOS E S T U D O S D O M A R

Esse novo conservacionismo deve estar ancorado, de um lado, nova geração de pessoas de várias culturas para iniciar estudos junto
no ecoiogismo social e nos movimentos sociais do Terceiro Mundo que aos seus próprios povos. Apesar do desprezo de alguns cientistas,
c o m e ç a m a surgir em vários países como a índia, o Zimbabwe, o um n ú m e r o maior de pesquisadores está incluindo seus co-
Brasil, entre outros. Esses movimentos enfatizam como faz o novo pesquisadores como co-autores de trabalhos científicos.
naturalismo, a necessidade de se construir uma nova aliança entre o Por outro lado, a diversidade cultural, que se considera como
homem ea natureza, que se baseia, entre outros pontos, na importân- condição para a m a n u t e n ç ã o da diversidade biológica, só será
cia de se ressaltar o papel das comunidades tradicionais indígenas e alcançada quando as comunidades tradicionais continuarem a ter
não-indígenas na conservação do habitat litorâneo, das matas e de acesso aos recursos naturais de seu teriitório c não forem expulsas seja
outros ecossistemas presentes nos territórios em que habitam. A pela e s p e c u l a ç ã o imobiliária seja pela i m p l a n t a ç ã o de áreas
valorização do conhecimento e das práticas de manejo dessas popu- protegidas.
lações deveria constituir uma das pilastras de um novo conser- O estabelecimento de áreas protegidas marinhas, ao invés de
vacionismo nos países do Sul. Para tanto, deve ser criada uma nova ser baseado na ideia importada de "natureza selvagem intocada"
aliança entre os cientistas e os construtores e portadores do conhe- deveria se fundamentar na concepção de '^paisagem" ou mosaico de
cimento local, partindo do princípio de que os dois conhecimentos ecossistemas e habitat, constituindo um continuum entre porções do
— o científico e o local — são igualmente importantes. continente, praia e mar que, em muitos casos, constitui o território
Essa nova aliança deverá se fazer t a m b é m na superação das das comunidades tradicionais. N ã o se justifica retirar desse
divergências que hoje separam os ecologistas sociais e os preser- continuum as áreas menos tocadas pelo homem e engessá-las numa
vacionistas, uma vez que uma das principais ameaças está vindo categoria tipo parque nacional ou reserva ecológica onde a popula-
por parte daquelas instituições neoliberais que acham que a con- ção nativa não pode viver. O importante é que, através de contra-
servação poderá ser atingida através dos mecanismos de mercado. tos de manejo entre os Estados e as comunidades locais, estas
Dentro dessa visão aparentemente moderna e "globalizante", os possam se responsabilizar pela proteção integral do seu território.
parques e s t ã o sendo privatizados ou "terceirizados" para que Evidentemente, como em geral se trata de comunidades pobres, o
empresas se encarreguem de construir c gerir os equipamentos Estado deve compensá-las por essa atividade através de projetos
turísticos, transformando essas áreas de proteção em "disneylândias de melhoria das condições de vida.
naturais" destinadas exclusivamente à obtenção de lucro. A incorporação real das comunidades na conservação marinha
O importante é integrar a visão dos cientistas e a do especialis- não pode ser feita considerando os nativos como parceiros juniores
ta local. O cientista tem vantagens em dois níveis: no mais global, e inferiores, utilizando-os exclusivamente como guarda-parques.
o uso de sistemas de informação geográfica informatizada e de A experiência tem demonstrado que, frequentemente, a contra-
bancos de dados e, em nível local, o uso de técnicas etnota- tação de guarda-parque local, isolada de outras medidas de melhoria
x o n ô m i c a s . O saber local, por outro lado, t e m acumulado das c o n d i ç õ e s de vida e renda da comunidade, leva a ressen-
conhecimentos por várias gerações sobre o habitat e suas varia- timentos e desorganização do sistema de produção local.
ções. Existe, pois, uma grande necessidade de se integrar essas Na elaboração das estratégias de conservação, essas populações
duas c o n t r i b u i ç õ e s no planejamento e e x e c u ç ã o de a ç õ e s não somente devem ser ouvidas, mas devem dispor de poder real
conservacionistas. nos órgãos de decisão, o que raramente acontece em países como o
Uma das prioridades é envolver as populações tradicionais na nosso.
pesquisa para a conservação comoco-pesquisadores e treinar uma

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Diegues, A . C. Imagens das águas. São Paulo, Hucitec/NUPAUB-USP.
insondáveis, ameaça jamais afastada de suplícios da fome, da
sede e de morte lenta (...) Os portos dos marinheiros são, raras
vezes, traços de união entre a terra e o mar, muito frequen-
temente são cidadelas terrestres opostas ao mar." (p. 11)

Na história passada da humanidade eram mais frequentes os


naufrágios que as chegadas felizes aos portos. A viagem mítica de

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A N r o N i í ) CARI.OS DII-C;I:KS Povos !•: MARKS

Ulisses, apesar dc seu final fcli/. está marcada pelas tempestades Mesmo depois dos naufrágios c o desejo das praias de sua terra
que quebram Í)S navios, por monstros marinhos (jue ameaçam sub- natal, Itaca, que impelia Ulisses a embarcar:
mergir as frágeis embarcações e por sereias tjue, com suas cantigas
amorosas, atraem os marinheiros para o naufrágio final. Ulisses não "Quando se levantou a mais brilhante das estrelas que vem
teria pí)dido escapar da morte, se não fosse a ajuda dos deuses para nos anunciar que Í) dia está próximo, o navio avizinhava-sc
protetorcs: dc uma ilha. Era o porto dc Fôreis, o Velho do Mar, na ilha de
Itaca. Dois promontórios o rodeiam, com fiancos íngremes des-
"Uma grande onda avançou, agigantando-se acima dele e cendo até a barra, protegendo-a contra as vagas que os ruidosos
fez rolar a embarcação. Ele foi obrigado a largar o leme e caiu ventos levantam do lado de fora: no interior, os navios de bom
na água (...). O mastro partiu-se pelo meio, quando a terrível tamanho podiam fundear sem âncora... Ulisses acordou. Estava
tempestade de ventos furiosos o atingiu. A vela e as vergas deitado no solo da pátria e não sabia, pois estivera ausente muito
foram arrancadas da jangada... As vagas se sucediam e m torno tempo" {Odisseia, p. 146-9).
dela. Como o vento norte, no outono arrasta os pedaços de
cardo e os leva pela planície, rolando, assim os ventos empur- Como afirma Corbin (1989), até o século XVlIl, na Europa, o
ravam a jangada sobre a água (...). Ino, p o r é m , avistou Ulisses. mar não se confundia com o litoral tranqiiilo, local de descanso e
Era uma linda criatura, filha dc Cadmo: outrora mortal, que recreação, mas com as forças selvagens da natureza. A própria Bí-
falava com voz humana, era agora Ucucotcia. a Deusa do Bran- blia transmite essa imagem no G é n e s e que
co Mar, a quem os deuses tinham honrado no oceano salgado.
Ela apiedou-se de Ulisses, ao vê-lo naquele estado miserável" "(...) impõe a visão do "Grande Abismo", lugar de mistérios
{Odisseia, p.65). insondáveis, massa líquida sem pontos de referência, imagem
do infinito, do incompreensível, sobre a qual, na aurora da
N ã o somente o mar de Ulisses, mas principalmente o Mar Criação, flutuava o espírito de Deus (...). N ã o existe mar no
Tenebroso, o Atlântico, era habitado por monstros, d e m ó n i o s e as Jardim do É d e n . O horizonte líquido sobre cuja superfície o
almas dos condenados que provocavam as tempestades. N ã o so- olhar SC perde não pode integrar-sc à paisagem fechada do pa-
mente o herói mítico pede auxílio aos deuses como t a m b é m os raíso. Querer penetrar os mistérios do oceano c resvalar no sa-
marinheiros portugueses e espanhóis lançam relíquias ao mar para crilégio, assim como querer abarcar a insondável natureza
apaziguar as tempestades. Ainda hoje, o temor e o respeito pelo divina" (p.l2).
mar se reflete nos inúmeros ex-votos fixados nas ''salas de mila-
gres" das igrejas de todo o mundo. Através deles, os navegadores O litoral, até o século XVIII, não é somente o lugar da chegada,
representavam os perigos por que passaram, os acidentes e nau- da tranquilidade, mas o receptáculo dos dejetos produzidos pelo
frágios, agradecendo a Deus e aos santos protetores a salvação. próprio mar e t a m b é m o palco das catástrofes e dos naufrágios
O mar para Ulisses é antes um caminho, uma provação para (Corbin, 1989). Mesmo depois do naufrágio, ao chegar à costa,
chegar ao litoral acolhedor de sua terra natal: Ulisses percebe os perigos existentes ao dizer:

"Oigo-vos que nada é pior que o mar para cansar um ho- "Cheguei ao fim de minha viagem sobre aquele incomen-
mem, por mais forte que seja" {Odisseia, p.88). surável pélago, mas não há meio de sair da água. Alguns recifes

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A N I O N I O (>.\UI.OS Dnx.iKs 1 Povos K MARKS

do lado de fora, ameaçadores vagalhões em torno, um rochedo no e da água do mar. N o livro intitulado: O mar que nos rodeia,
a pino sobre profundas águas ao longo da terra: lugar algum escreveu:
para firmar meus dois pés com segurança... T a m b é m o acaso I
poderá enviar contra um monstro do mar: Anfitrite é famosa "(...) peixes, anfíbios, répteis, pássaros com sangue quente,
por seus monstros. Sei que o Abalador da Terra (Poseidon) não mamíferos, cada um deles carrega em suas veias um fluido sa-
ama Ulisses" {Odisseia, p.67).
lino que combina o sódio, o potássio e o cálcio quase na mesma
proporção que a água do mar. Esta herança remonta a milhões
Apesar dos perigos que representa e do terror que Incute aos de anos, quando nossos ancestrais passaram do estado unicelular
navegadores, em particular até o século X V I I I , o imaginário maríti- ao pluricelular, elaborando um sistema circulatórií), onde o
mo, sobretudo para os românticos significa um retorno ao ventre líquido era constituído pela água do mar."
criador.
Essa atração está radicada nas lembranças do mar enquanto Essa introdução teve por objetivo mostrar que, ao contrário do
meio primordial da vida, à semelhança do útero materno e seus que ocorre com a percepção e estudo dos mares pela ciência mo-
líquidos para o qual o ser humano gostaria de voltar. Na própria derna-positivista, por largo período da historia da humanidade, os
constituição do ser humano, cada um de nós recomeça sua vida oceanos não eram simplesmente uma realidade físico-biológica,
individual no oceano redu/ido da matriz maternal, repetindo nos mas eram povoados por seres humanos e não-humanos, por mons-
diferentes estágios de seu desenvolvimento embrionário as etapas tros e divindades. N o entanto, mesmo hoje, somente para uma
pelas quais sua espécie evoluiu (Carson, 1957). De fato, em várias ciência reducionista o oceano é uma realidade somente material,
mitologias, como a egípcia, a hindu, o mar está associado à origem despovoada de seres humanos e seus símbolos. A c o n c e p ç ã o
da vida. totali/ante ainda subsiste entre as populações marítimas que man-
Por outro lado, os seres ancestrais do homo sapiens teriam vindo t é m um contato estreito com o mar e dele retiram sua subsistên-
do oceano. N u m dos vários períodos glaciares, o mar se retirou da cia. Essas populações humanas tem uma percepção complexa do
terra e muitos seres marinhos ficaram presos em águas rasas, pas- meio-marinho e seus fenómenos naturais. De um lado, há um vas-
sando a ocupar um ambiente aquático e terrestre. Posteriormente, to conhecimento empírico adquirido pela observação continuada
desenvolveram pulmões e passaram a viver na terra. Alguns desses dos f e n ó m e n o s físicos e biológicos (ventos, marés, reprodução dos
animais pré-históricos teriam voltado ao mar. Mais recentemente cardumes de peixes) que hoje começa a ser explorado pela chama-
(50 milhões de anos), alguns mamíferos trocaram sua existência da etnociência marítima. De outro lado as explicações para tais
terrestre pela marítima e seus descendentes são os golfinhos, f e n ó m e n o s t a m b é m passam pela representação simbólica e pelo
baleias, focas. O homem ainda hoje tem uma grande familiaridade imaginário dos povos do mar.O estudo dessas práticas culturais
com o mar. Ainda segundo Carson, a atração do homem pelo mar forma o núcleo de um novo campo de conhecimento na antropolo-
residiria na lembrança confusa de sua ascendência. De alguma gia, hoje conhecido como Antropologia Marítima.
forma, o homem sempre teria tentado voltar ao mar, não como as
focas e as baleias, mas usando sua inteligência e sua tecnologia,
construindo barcos, batiscafos e submarinos.
Essa atração pelo mar se reflete, segundo Carson (1957), na
s e m e l h a n ç a de composição, em sais minerais, do sangue huma-

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51
A N T O N Í O C A I Í I . O S I)II-;C;I:KS Povos K MAIÍKS

O E.STUDO DAS SoCfKDADKS MARÍTIMAS: bos era teórico, dirigido à elaboração de novas metodologias (pes-
A Sc)C;iOANTROI'OLOGiA MARÍTIMA quisa de campo, método funcionalista) e fazer avançar teoricamente
I a Antropologia.
O interesse das ciências sociais pelo mar é relativamente recente. A Antropologia Marítima é, hoje, um campo de pesquisa espe-
Uma das disciplinas pioneiras nesses estudos é a geografia humana cializado de estudo etnológico sobre comunidades que vivem do
e a história. Alguns trabalhos pioneiros, como o de Herubel, A Evo- mar, principalmente da pesca. A construção desse campo discipli-
lução da Pesca (1928) e o de A. Thomazi, A História de Pesca (1947), nar é recente e o verbete Antropologia Marítima apareceu pela
publicados na França, tratam exclusivamente da pesca numa primeira vez em 1992, no \)Te.^úg\^áiy Dictionnaire de TEtlinologie et
perspectiva histórica e geográfica. deTAntliropologie, publicado pela Presses Universitaires de France,
Os estudos etnográficos sobre as sociedades de pescadores se sob a direção de Pierre Bonte e Michel Izard. Segundo Geistdoerfer,
iniciaram com a Etnologia, quando os pesquisadores ingleses co- a Antropologia Marítima estuda a variedade e a complexidade dos
m e ç a r a m a fazer ciência a partir dos trabalhos de campo. Assim, sistemas técnicos, sociais e simbólicos elaborados pelas populações
M a l i n o w s k i publicou em 1922 a clássica monografia: Os Ar- litorâneas no processo de apropriação do espaço marinho que daí
gonautas do Pacífico Sul, criticando os antropólogos evolucionistas retiram sua subsistência. Ela estuda, portanto, o modo de vida da
que viam na pesca um estágio civilizatório anterior à agricultura gente do marcomo específico e particular, em contraste com o modo
e à sedentarização. Dentro da perspectiva funcionalista, ele es- de vida das populações continentais com as quais as comunidades
tudou a sociedade dos insulares tombriandeses, particularmente m a r í t i m a s m a n t ê m relações sociais estreitas. Ainda segundo
o kula (troca ritual de bens) realizado no â m b i t o da navegação Geistdoerfer (1992), pode-se falar em sociedades marítimas em
entre as ilhas da Polinésia. Suas análises sobre as funções das relação a d e t e r m i n a ç õ e s gerais ligadas à localização geográfica ou
crenças religiosas, dos mitos e da magia c o n t r i b u í r a m decisiva- ao tipo de atividades humanas, às quais estão associados saberes
mente para consolidar um novo campo do conhecimento huma- técnicos particulares (conhecimento do meio marinho, da fauna e
no: a Antropologia. da flora, técnicas de fabricação de embarcações e de navegação).

U m outro pesquisador que contribuiu decisivamente para Alguns antropólogos preferem falar em :intropolog/a dc/ssocieda-
c o n s t r u ç ã o da Antropologia foi Raymond Firth, t a m b é m fun- des de pescadores ou l/cdiêuticas. Collet (1993) assinala a especificidade
cionalista, que publicou em 1946 Os Pescadores Malaios. Nesse desse mundo marítimo/haliêutico e das dificuldades em estudá-
trabalho, Firth utilizou indistintamente os conceitos de econo- lo, pois a pesquisa no mundo haliêutico se parece com a superfície
mia dos pescadores e economia camponesa. Segundo este autor, do mar em que tudo apaga. São raros os arquivos dos mestres-
ambas as economias apresentam analogias estruturais e a socieda- pescadores; a própria raridade não é outra coisa que a expressão de
de dos pescadores foi tratada como parte das sociedades campo- um mundo efémero que se reflete t a m b é m nas ciências humanas,
nesas. E m trabalho posterior (1970), Firth fez uma diferenciação por muito tempo voltadas somente para o mundo rural.
entre o c a m p o n ê s e o pescador, baseada no tipo de acesso aos Existe t a m b é m um debate sobre o caráter da antropologia
recursos naturais. marítima, definida seja como subdisciplina no interior da Antro-
Deve-se notar, como enfaticamente afirma Breton (1989), que pologia ou como campo de investigação. A maioria dos antropólo-
esses primeiros antropólogos não estavam interessados em estu- gos interessados pelo tema prefere falar em campo específico de
dar especificamente as sociedades insulares (Malinowski) ou as interesse c investigação (Galvan, 1984; Geistdoerfer, 1989; Pascual,
sociedades marítimas dos pescadores (Firth). O interesse de am- 1991), porque exige técnicas de observação e formas de análise

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A N T O N I O CAIÍI.OS 1)M:C;IKS Povos K MAkKS

particulares, diferenciadas das ancropologias das sociedades cam- nele se adentrar. As sociedades marítimas do Pacífico, mais do que
ponesas e operárias. Somos da opinião que a antropologia maríti- outras desenvolveram mitos e ritos relativos ao mar e aos seres
ma, enquanto sub-disciplina no interior da Antropologia, está em vivos que nele habitam. Nas sociedades ocidentais, esses mitos e
processo de constituição, possuindo um conjunto de temas, técni- ritos estão em desaparecimento, sob o ponto de vista coletivo, mas
cas de observação e um grupo crescente de pesquisadores. alguns deles ainda persistem sob o ponto de vista individual.
Entre as principais características responsáveis pela diversida- De um lado, há os rituais de acesso ao mar e de outro, os de
de das sociedades marítimas estão a valorização positiva ou nega- acesso aos seres vivos que nele existem. Na Polinésia, por exem-
tiva do mar, o modo de organização económica e social, o lugar plo, o mar está na origem das ilhas e das sociedades. Cada lugar no
reservado às atividades pesqueiras na economia, o modo de oceano, cada ilha, é marcada pelo aparecimento ou moradia dos
integração das comunidades litorâneas na sociedade mais ampla e ancestrais míticos (Geistdoerfer, 1989).
o caráter simbólico das relações com o mar. Nas sociedades ocidentais, o mar permanece ainda como um
E m trabalhos anteriores (Diegues; 1983, 1995) diferenciei a espaço mal conhecido, perigoso, fora da cultura terrestre, fora da
sociedade dos pescadores da sociedade camponesa, apesar de lei que impera no continente. Desse modo, desenvolveram-se duas
ambas estarem inseridas na pequena p r o d u ç ã o mercantil. Na- formas de rituais, um de caráter terrestre e outro, marítimo.
quele trabalho, ressaltei o particularismo da gente do mar, seu Quando entram no mar, os pescadores, por exemplo, devem
modo de vida específico marcado por práticas sociais e culturais abandonar aquilo que vem da ten-a para se proteger; quando che-
distintas das existentes nas camponesas. Essas práticas e modos gam em casa devem abandonar o que receberam do mar, para se
de vida se constroem em relação a um meio tanto físico quanto
reintegrar na sociedade dos continentais^ sem os contaminar. Hoje,
socialmente instável e imprevisível. O mar, espaço de vida dos
os rituais coletivos de proteção da gente do mar (procissões,
pescadores marítimos, é marcado pela fluidez das águas e de seus
oferendas, ex-votos) estão desaparecendo, mas permanecem ain-
recursos, pela instabilidade contínua provocada por fatores me-
da certas práticas como evitar a presença, no barco, de certas cate-
tereológicos e oceanográficos, pela variação e migração das e s p é -
gorias de pessoas (religiosos, mulheres), não proferir certas pala-
cies, seus padrões de reprodução, migração, etc. A vida no mar é
vras enquanto navegam durante a noite.
t a m b é m marcada não só por contingências naturais, mas por te-
mores e medos, acidentes e naufrágios, pela fiutuação dos pre-
ços, pela extrema perecibilidade do pescado que, uma vez cap-
As J l I S T I I - I C A T I V A . S PARA U M A
turado deve ser vendido rapidamente, o que obriga o pescador a
SOCIOANTROPOLOGIA DO M A R
acertos particulares de comercialização que, usualmente, lhe são
desfavoráveis.
O viver exclusivamente de um ambiente marítimo, ecologicamente
Entre os vários aspectos desse o particularismo da gente do mar distinto do "continental", é um elemento fundamental ainda que
sobressaem os aspectos simbólicos, mágicos e rituais de que se não necessariamente determinante de toda uma "cultura marítima"
reveste, em muitas culturas marítimas, a relação homem-mar. Esses tão presente nos portos de pesca tradicionais de inúmeros países
aspectos simbólicos variam de cultura para cultura. Enquanto nos do mundo.
países ocidentais, o oceano constitui um objeto de medo e terror, Como afirma Geistdoefer (1988), os conceitos utilizados até hoje
em algumas sociedades do sul do Pacífico o espaço marítimo é o para analisar as sociedades camponesas tais como família, salário e
locus de vida, um ser vivo com o qual é preciso se conciliar antes de propriedade, dificilmente se aplicam à realidade social marítima e

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A N T O N I O CAKI.OS OIKGUKS Po\os I-: M A U K S

às práticas da "gente do mar". As comunidades marítimas se produção, em particular das formas pré-capitalistas e capitalistas
constituem pela prática dos pescadores num ambiente marcado de produção.
pelo perigo, risco, mobilidade e mudanças físicas. A constituição E importante afirmar-se, no entanto, que ao contrário da agri-
histórico-cultural dessa comunidades marítimas está relacionada, cultura, onde os fatores naturais são mais controláveis (irrigação,
de alguma forma, com o distanciamento da "terra" enquanto lugar fertilizantes, e t c ) , na pesca marítima há um alto grau dc impon-
de trabalho e vida e com a apropriação económica e sóciocuitural derabilidade, de risco pela própria natureza dos recursos naturais,
do meio marinho, onde os pescadores, tanto artesanais quanto os de um lado, e pelo fato do mar ser um bem "comum", de outro, de
vinculados à pesca empresarial-capitalista, passam uma parte livre acesso. Mesmo nos i n ú m e r o s casos em que há certos
considerável de seu tempo. mecanismos de controle sobre o "território marítimo" por trans-
K importante se ter em conta que somente uma parte das "co- missão hereditária ou comunitária de "locais de pesca", a ativida-
munidades litorâneas" se transformaram em comunidades maríti- de pesqueira é sempre oscilante e imprevisível (Maldonado, 1988).
mas. Grande parte delas, sobretudo as que combinam pesca e Mesmo nesses casos, o pescador marítimo deve reconstituir, se-
agricultura em ambientes fechados (baías, lagunas, estuários), são gundo suas possibilidades e os fatores naturais, a sua zona de pes-
comunidades litorâneas mas não necessariamente m a r í t i m a s ca e produção em relação a outros pescadores e ocupantes do es-
(Mourão, 1971; Diegues, 1983). paço marítimo (navegadores, perfuradores de poços de petróleo).
Nesse sentido, o mar é um espaço de competição.
O "particularismo" das comunidades marítimas, como foi dito
antes, está relacionado com o ambiente físico do mar, marcado pelas Essa característica dc "mar socializado", dc "livre acesso" (pelo
m u d a n ç a s sazonais importantes, por fenómenos atmosféricos que menos teórico) combinada às outras variáveis naturais marcam
operam t r a n s f o r m a ç õ e s r á p i d a s no corpo d ' á g u a (borrascas, indcleveimente as comunidades marítimas como " m ó v e i s " e de-
tempestades, maremotos) e colocam continuamente cm risco a vida pendentes da própria imprevisibilidade e mobilidade dos recursos
dos que nele trabalham. Os recursos naturais renováveis, em pesqueiros. Essas características estão na base mesmo das limita-
particular as espécies de peixe, são móveis e muitas vezes "invisí- ções no processo de acumulação e das relações sociais de produção
veis", reproduzindo-se e migrando de um ambiente a outro, marcadas pela "partilha". Este sistema de remuneração da força-
obedecendo a complexos padrões dc reprodução biológica. de-trabalho, por q u i n h õ e s ou "partes", é usado mesmo pela pesca
empresarial-capitalista. Como analisamos anteriormente (Diegues,
Kssas características fazem parte do objeto dc estudo das C i ê n -
1983), a persistência dessa forma não tipicamente capitalista de
cias Naturais (oceanografia física, biológica, etc.) mas são as práticas
remuneração da força-de-trabalho não é causada exclusivamente
sociais, e c o n ó m i c a s e simbólicas da "gente do mar" sobre a
por fenómenos naturais, mas, principalmente, pela própria dinâmica
realidade física o objeto da socioantropologia marítima.
do capital e pela proletarização progressiva dos "trabalhadores do
Os homens, ao longo da história, ao explorar, gerir e imaginar
mar" (subordinação formal do trabalho ao capital). Nesse sentido,
o mar e seus recursos, elaboraram diversos modos de apropriação
é fundamental a discussão levantada por Mordrel (1972) e Bidet
social, económica c cultural, ligados ao ambiente marinho. As
(1974) ao considerar o "sistema de partes" como uma máscara
práticas sócio-culturais da "gente do mar" d ã o ao ambiente
ideológica (pretensa participação do trabalhador do mar no produto
m a r í t i m o uma d i m e n s ã o antropológica e são marcadas pelas
final) para melhor explorar a força-de-trabalho (Diegues, 1983).
propriedades naturais socializadas. Essas práticas, no entanto, não
são g e n e r a l i z á v e i s e dependentes exclusivamente do meio Enfim, em sua relação com o mar, "os pescadores marítimos"
"natural" socializado, mas t a m b é m das formas de organização da não somente elaboram uma imagem de si próprios (Laberge, 1988),

56 57
A N T O N I O (^VKI.OS DIKGUKS Povos K MAUKS

mas criam mitos e práticas rituais bem como classificam os recur- Na década de 70, as pesquisas e trabalhos são ainda mais nu-
sos naturais segundo categorias específicas (Duarte, 1976; Silva, merosos, destacando-se aqueles que se preocuparam principalmen-
1988) e t ê m linguajar próprio (Silva & Brandão, 1988). Ao contrá- te com o estudo das relações entre as comunidades de pescadores
rio de comunidades de pescadores que vivem em ecossistemas artesanais e a nascente indústria pesqueira (Ivo, 1975), Ximenes
litorâneos abrigados, as sociedades marítimas desenvolveram prá- (1975), Diegues (1983).
ticas rituais variadas, em geral destinadas a aplacar espíritos do O surgimento da pesca industrial-capitalista no litoral norte do
mar. Esses rituais variam segundo o fato de ser o mar ou os recur- Brasil e os problemas daí decorrentes foram uma das causas para
sos naturais o produto simbólico e dominante (Geistdoerfer, 1988). uma crescente produção científica, centrada no MiiSKU E M Í L I O
Há de um lado os rituais de acesso ao mar e de retorno do mar e G o K L D i - Pará (Mello, 1985; Loureiro, 1985; Penner, 1984; Furta-
t a m b é m os rituais de acesso aos recursos. Face aos recursos variá- do, 1987).
veis, incontroláveis e não visíveis, muitas comunidades marítimas Além disso, é necessário se mencionar os trabalhos dos antro-
desenvolveram mitos e rituais que protegem principalmente os pólogos Maldonado (1986), Duarte (1978), Lessa (1980) e Beck
locais de reprodução das espécies (Bourgoignie, 1972). (1979) que estudaram pescadores artesanais no Nordeste, Leste e
Sul do Brasil.
Em 1986, alguns cientistas sociais se reuniram em Brasília no /
A S O C I O A N T R O P O L O G I A DAS Encontro de Ciências Sociais e o Mar, para trocar informações sobre
COMUNIDADES MARÍTIMAS NO BRASIL pesquisas sendo realizadas no âmbito das populações humanas e o
mar. Esses encontros continuaram a se realizar em 1988 e 1989 na
Até 1950, o n ú m e r o de publicações sobre comunidades maríti- Universidade de São Paulo ( / / e III Encontros de Ciências Sociais e o
mas brasileiras foi relativamente reduzido. N o entanto, é preciso Mar), organizados pelo PROGRAMA DK PESQUISA SOBRE POPULAÇÕES
destacar os trabalhos dos antropólogos Pierson e Teixeira (1947) H U M A N A S E AREAS Ú M I D A S D O B R A S I L (que se transformou,
e Mussolini (1945) que descreveram o modo de vida e técnicas posteriormente em N U P A U B - U S P ) . Nesses encontros participaram
de pesca utilizadas pelos pescadores do Estado de São Paulo. antropólogos, linguistas, cientistas políticos, sociólogos, etc. E m
Entre 1950 e 60 houve uma contribuição significativa dos geógra- 1990 realizou-se, no M U S E U E M Í L K ) G O E L ! ; I , em B e l é m do Pará o
fos humanos que descreveram vários aspectos da distribuição e IV Encontro de Ciências Sociais e o Ma7\e todos esses encontros
formas de vida dos pescadores entre o Rio de Janeiro e Santa foram publicadas atas contendo i n ú m e r o s trabalhos nas várias
Catarina ( F r a n ç a , 1954; Bernardes, 1958; Brito Soeiro, 1961). disciplinas das ciências humanas.
Pode-se afirmar que, com raras exceções, eram trabalhos mais
descritivos e empíricos, sendo que, no fmal da década, aparece-
ram alguns trabalhos dirigidos ao "estudo de comunidades"
(Carvalho é-Zí?///, 1969).
A partir de 1960, alguns trabalhos ganharam densidade
metodológica e teórica, enfocando sobretudo a q u e s t ã o das mu-
danças sociais entre os pescadores litorâneos. Destacam-se os tra-
balhos dos sociólogos Mourão (1967, 1971), Diegues (1971, 1983)
e dos antropólogos Kottak (1966), Forman (1970).

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62 63
3
A SOCIOANTROPOLOGIA DAS
COMUNIDADES DE PESCADORES
MARÍTIMOS NO BRASIL^

A PRSCA, PRATICADA pelos índios, é uma atividade anterior à che-


gada dos navegadores portugueses ao Brasil e peixes,
crustáceos e moluscos eram parte importante de sua dieta ali-
mentan Os inúmeros sambaquis, depósitos de conchas encontrados
em sítios arqueológicos ao longo do litoral atestam a importância
da atividade da pesca e coleta.
Jean de Léry, calvinista, estudioso de teologia que em meados
do século XVI participou da tentativa colonizadora francesa no Rio
de Janeiro descreve com detalhes a pesca praticada pelos índios
T u p i m b á s . Ao longo do litoral, esses indígenas usavam canoas,
pirogas cavadas em tronco de árvore e t a m b é m piperis (igapebas),
jangadas feitas de paus amarrados, ambas embarcações utilizadas
na pesca litorânea.

Arcigu publicado originalmente cm E/»ográJfca, v. VIII (2), 1999, pp.361-375.

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A N TONIO CAKI.OS DN:GI;I:S A S ( X ; i O A N T K O T O I . O O I A I M S CoMl.N 1 I M D K S D K P K S C A D O K K S

açoriano, no litoral de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. En-


"Terminando, direi, ainda, a respeito do modo de pescar dos quanto esses dois últimos tipos de pescadores estavam t a m b é m
cupinambás, que além das flechas usam t a m b é m espinhas à ligados à atividade agrícola, os primeiros dependiam quase intei-
feição de anzóis, presas a linhas feitas de uma planta chamada ramente da pesca costeira.
tucom. T i m b é m penetram no mar e nos rios tem jangadas, a Nas primeiras décadas do século XX, a atividade pesqueira,
que chamam piperis: são feitas de cinco ou seis paus redondos. antes vinculada à pequena produção assumiu, em algumas regi-
Quando o tempo está bom e os selvagens pescam separada- ões, uma escala comercial de grande importância, como é o caso
mente, parecem de longe, tão pequenos se v ê e m , macacos ou da pesca da sardinha por barcos que usavam uma grande rede de
melhor rãs, aquecendo-se ao sol em achas de lenha soltas na cerco, chamada de traina. D a í o nome de traineiras dado a essas
á g u a " (Léry 1941:148-149). e m b a r c a ç õ e s , que c o m e ç a r a m a pescar na Ilha Grande (Rio de
Janeiro) e foram introduzidas pelos portugueses e espanhóis, uti-
Além disso, Jean de Léry supreendia-se com a facilidade com lizando uma tripulação de 15 a 20 homens. A primeira dessas re-
que os indígenas pescavam com as redes trazidas pelos europeus: des foi introduzida por um pescador espanhol, que a trouxe pronta
de seu país, por volta de 1910(Bernardes 1958, Brito Soeiro 1960).
"Se porventura os deixávamos manejar as redes, revelavam Além dessa atividade pesqueira, realizada principalmente no
grande habilidade" (Léry 1941: 149) litoral entre São Paulo e Rio de Janeiro, destacou-se t a m b é m nas
primeiras décadas do século XX a pesca realizada pelos descen-
Ainda no período colonial, além da pesca indígena de subsis- dentes dos pescadores açorianos que tinham chegado em meados
tência, organizou-se a pesca da baleia, que se constituía num mo- do século XVIII para colonizar o extremo sul do Brasil, naquela
nopólio da Coroa Portuguesa (Ellis 1969). A concessão dessa pes- época sob ameaça espanhola.
ca era dada a pescadores portugueses e bascos. A mão-de-obra A pesca da sardinha, realizada em grande escala, deu origem
utilizada na captura da baleia era constituída principalmente por t a m b é m às primeiras indústrias de salga e secagem (depois enla-
escravos africanos (Langesdorf 1996), muitos dos quais negros l i - tamento) no Rio de Janeiro e Santos, ao passo que as indústrias
bertos, sobretudo a partir do início do século XIX (Silva 1996). A pesqueiras do Rio Grande do Sul, surgidas na década de 20-30,
importância dessa pesca era grande, no litoral da Bahia, no litoral processavam principalmente a merluza.
sul de São Paulo (ilha do Bom Abrigo) e litoral de Santa Catarina, Na década de 60, o governo brasileiro decidiu implantar uma
onde ainda hoje podem ser vistos os vestígios das diversas arma- indústria pesqueira em base empresarial, através de incentivos
ções. A pesca da baleia somente terminou nos anos 70 com a fiscais concedidos pela recém-criada S u p e r i n t e n d ê n c i a do Desen-
desativação da empresa japonesa em Cabedelo (Paraíba), embora volvimento da Pesca (SUOEPE). A maioria dessas empresas foi cri-
todas as armações baleeiras existentes tivessem terminado suas ada, sobretudo no litoral centro-sul do Brasil, usando trawlers na
operações no litoral brasileiro em meados do século XIX, como captura do camarão para a exportação (Diegues, 1983). Algumas
resultado da competição com pescadores norte-americanos. dessas empresas foram criadas no Ceará, para a captura da lagosta.
A atividade pesqueira deu origem a inúmeras culturas litorâ- Nesse processo, surgia t a m b é m um proletariado ligado à pesca e
neas regionais ligadas à pesca, entre as quais podem ser citadas a ao beneficiamento do pescado, em contraposição à pequena pesca
ào jangadeiro, em todo o litoral nordestino, do Ceará até o sul da artesanal, baseada no modelo ác companha própria da pesca ibéri-
Bahia; a do caiçara, no litoral entre o Rio de Janeiro e Paraná, e o ca, de onde t a m b é m se trouxe as "colónias de pescadores", mode-

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A N I O N I O CARLOS DIKGLKS A S ( x : i o , \ N r H o i ' o i . o G i A DAS C O M I N I D A D K S D K P K S C A D O R K S

lo dc organização dos pescadores introduzido por volta de 1922 e Rio de Janeirv (1960) analisou a introdução da pesca de linha de
semelhante às guildas espanholas. fundo com caíques, introduzida pelos pescadores portugueses pro-
A pesca industrial/empresarial teve seu auge na década de 1970, venientes da Póvoa do Varzim.
passando por uma grave crise na década de 80, quando a maioria O folclorista Luís da Câmara Cascudo, em Jangadeiros (1957)
das indústrias fechou suas portas. Uma das causas principais dessa fez o primeiro estudo sistemático sobre a pesca da jangada no
crise foi a rápida sobrepesca dos bancos de camarão e algumas Nordeste e as comunidades de jangadeiros.
e s p é c i e s de peixes, além da recessão económica que limitou o Pode-se afirmar que, com raras exceções, eram trabalhos mais
aporte dos recursos financeiros conseguidos facilmente pelas descritivos e empíricos, sendo que, no final da década, aparece-
empresas. Uma parte das empresas pesqueiras do sul acabaram se ram alguns trabalhos dirigidos ao "estudo de comunidades" (Car-
transferindo para o litoral amazônico, sobretudo entre Pará e valho é-/tf/// 1969).
M a r a n h ã o , onde continuam explorando os bancos de camarão. A partir do final da década de 1960 e meados da de 1970, al-
guns trabalhos de sociólogos e antropólogos ganharam densidade
metodológica e teórica, enfocando sobretudo a q u e s t ã o das m u -
As CIÊNCIAS SOCIAIS K A PI-SCA N O B R A S I L danças sociais entre os pescadores litorâneos. Nessa época, a pes-
ca e as comunidades de pescadores começaram a ser percebidas
Até a década de 1960, o n ú m e r o de estudos e publicações sobre dentro de um contexto mais amplo da sociedade nacional, da pe-
comunidades de pescadores brasileiros foi relativamente reduzi- netração das relações capitalistas no setor, dos conílitos entre pes-
do. N o entanto, é preciso destacar os trabalhos dos antropólogos ca realizada nos moldes da pequena produção mercantil e a capi-
Pierson e Teixeira (1947): Survey de Icapcmi, uma vila de pescadores talista, etc.
do litoral sul de São Paulo; e Gioconda Pierson e Teixeira (1947): O O sociólogo Fernando Mourão, em seu trabalho: Os pescadores
cerco da tainha na ilha de São Sebastião (1945) e (9 cerco Flutuante: do litoral sul do Estado de São Paulo (1971), relaciona as m u d a n ç a s
uma rede de pesca japonesa que teve a ilha de São Sebastião como centro ocorridas nas comunidades de pescadores dessa área com a emer-
de difusão no Brasil {\946) que descreveram o modo de vida e téc- gência de uma nova racionalidade, a de mercado. A e m e r g ê n c i a da
nicas de pesca utilizadas pelos pescadores-caiçaras do litoral do racionalidade característica do sistema dc mercado foi conco-
Estado de São Paulo. A contribuição etnográfica de Mussolini foi mitante ao surgimento de um novo estrato social (o dos pescado-
importante para o entendimento das relações entre as comunida- res artesanais com embarcações motorizadas que exploram o "mar-
des caiçaras (oriundas da miscigenação entre o colonizador portu- de-fora") e ambos decorreram de m u d a n ç a s no sistema de
guês, o índio e o negro), o mar, os estuários e a Mata Atlântica. Ela comercialização do pescado - especialmente fixação de um preço
analisou t a m b é m o processo de disseminação, entre os caiçaras, do de mercado -, que levou t a m b é m , em menor grau, à introdução de
cerco flutuante, aparelho de pesca introduzido pelos migrantes novas técnicas dc captura.
japoneses. O autor utiliza um instrumental de análise weberiano, contras-
Entre 1950 e 60, houve uma contribuição significativa dos tando o comportamento não-orientado pela dinâmica do mercado
geógrafos humanos que descreveram vários aspectos da distribui- — próprio dos "pescadores-sitiantes" — com o comportamento
ção e formas de vida dos pescadores entre o Rio de Janeiro e Santa racional, orientado pelas demandas do mercado: a dos pescadores
Catarina (França 1954, Bernardes 1950, Brito Soeiro 1961). Este artesanais "profissionais" que exploram sobretudo o mar-aberto
último autor, em Agricultores e Pescadores Portugueses na Cidade do com a ajuda dos recém-introduzidos motores-de-centro (década

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de 60). È nesse novo estrato — o dos pescadores artesanais moto- E m Coqueiral, os senhores locais (bigwigs) manipulavam o
rizados — que o autor encontra uma certa ideologia da pesca, ca- ambiente natural e social segundo seus interesses e, para controlar
racterizada pela identificação com o mar, em cpie a gratificação do a força-de-trabalho exacerbavam as tensões que existiam numa
trabalho aumenta não só pelas maiores (juantidades capturadas, comunidade incipientemente estratificada. Eles ditavam os códi-
mas pelo d o m í n i o do mar, pelo prazer do saber-fazer. gos de conduta e controlavam o mercado de pescado.
Mourão, em uma analise minuciosa das diversas comunidades, Kottak realizou uma analise diacrónica dos processos de mu-
constata t a m b é m os conflitos entre os estratos inovadores dos dança na comunidade baiana de Arambepe, através de dois traba-
pescadores artesanais motorizados e as "classes altas" locais (no lhos: o primeiro foi publicado em 1966—TheStructun of liqucdity
caso de Cananéia, S P ) . O domínio dessas últimas começaria a se in a Brazilian Fishing Community; e o segundo em 1982 —Assault
romper com o surgimento de estratos inovadores ligados à pesca on Paradise. O autor parte do princípio que a comunidade estuda-
motorizada, do comerciante-inovador de pescado que financia a da era relativamente isolada em 1965, com alto grau de homoge-
produção e de uma nova classe média dc origem externa à cidade neidade social marcada pela presença da solidariedade familiar no
de C a n a n é i a ( S P ) . trabalho de pesca e na vida social como um todo. Além disso, não
Antonio Carlos Diegues, em Pesca e MaT-ginalização no Litoral havia ainda estratificação social, sendo t a m b é m uma comunidade
Paulista (1971) e Pescadores, Camponeses e Trabalhadores do Mar auto-suficiente na produção de alimentos.
(1983), usando um enfoque da antropologia económica, analisou N u m primeiro retorno a Arambepe, em 1973, o autor já havia
as relações conflituosas entre a pesca artesanal e a pesca empresa- notado grandes transformações motivadas sobretudo peia implanta-
rial em termos dc modo de produção, enfocando os aspectos socio- ção da Tilbras, indústria química criminosamente instalada próxi-
políticos da emergência das empresas pesqueiras no país. Um dos ma da praia que passou a degradar o meio ambiente costeiro. Dada
aspectos importantes do trabalho é a análise da articulação e a beleza das praias e da paisagem, e t a m b é m a proximidade de
d e p e n d ê n c i a da pesca artesanal em relação à empresarial, devido Salvador, a comunidade passou a ser muito procurada pelos turistas.
à desorganização da pesca artesanal, principalmente entre os pes- A i n t r o d u ç ã o dos barcos a motor tinha beneficiado sobretudo
cadores do litoral norte do Estado de São Paulo. pessoas fora do setor pesqueiro e alguns poucos já proprietários.
O antropólogo norte-americano, Shepard Forman, em seu l i - E m sua última estadia na comunidade, cm 1980, a situação tinha
vro: The Raft Lushermen{\91^), preocupou-se, fundamentalmente, se transformado ainda mais, sobretudo pela abertura de uma estrada
com a m u d a n ç a social e a tradição numa vila de jangadeiros, Co- asfaltada ligando Arambepe a Salvador. Com ela, o turismo se
queiral, no litoral de Alagoas. intensificou ainda mais e se transformou na atividade mais impor-
Forman afirma que os jangadeiros de Coqueiral eram inventivos tante na comunidade. Nesse ano, o n ú m e r o de pescadores tinha se
e que adotavam inovações desde que estas os beneficiassem reduzido a metade em relação a 1973 e a atividade tinha sofrido
diretamente e que não apresentassem grandes riscos aos que viviam grandes transformações, com a introdução da pesca empresarial-
num patamar mínimo dc sobrevivência. Essas inovações incluiam, capitalista que usava sobretudo a força-de-trabalho migrante,
por exemplo, a introdução de redes mais eficientes. Para o autor, exterior à comunidade. I n ú m e r a s famílias passaram a viver de
apesar do caráter tradicional da atividade pesqueira, as m u d a n ç a s serviços a turistas (aluguel de casas, embarcações).
ocorriam vagarosamente, sendo acompanhadas de novas relações
Uma outra contribuição importante na análise da m u d a n ç a em
económicas, particularmente por uma distribuição de riquezas que
comunidades de pescadores artesanais foi dada por Luís Fernando
se dá, em geral, em detrimento dos pescadores.
Duarte, em seu trabalhoj4j-/?í'í2'í.f//o6'»or(1983). Oautor procurou

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A N T O N I O (-AIÍI.OS DIKGUKS
A S O C I O A N T I Í O T O I . O G I A DAS C o M C N l D A D K S DK P K S C A D O R K S

analisar os mecanismos ideológicos existentes na trajetória de


Lourdes Furtado, Wilma L e i t ã o e Alex Fiúza de M e l l o {Povos da
m u d a n ç a entre a organização da pesca artesanal, centrada no mo-
Águas, realidade eperspectivas na Amazónia, 1993) apontam todos,
delo de companha, que marca a cooperação entre os pescadores
por caminhos analíticos c descritivos diferenciados, em vários
artesanais da canoa, e a emergência de uma nova divisão de traba-
locais (litoral do Pará, principalmente), o mesmo processo de
lho que passou a existir na pesca das grandes unidades de captura
transformação da economia pesqueira tradicional pela ação das
e pesca de sardinhas: as traineiras. Duarte analisou, em profundi-
indústrias pesqueiras, em geral vindas do sul do país. Estas, de-
dade, a reprodução social dos pescadores de canoa e os impactos
pois de exaurirem os recursos vivos do mar de alto valor do mer-
sobre ela causados pela imposição de um novo modelo de coope-
cado, como o camarão, deslocaram-se com frotas e fábricas de
ração na produção das traineiras na comunidade de Jurujuba (KJ).
processamento para o norte, onde se situam grandes bancos pes-
Ele estudou o problema da identidade dos pequenos pescadores,
queiros. Esse processo de modernização e pilhagem da natureza,
centrada no modelo de companha, situada no passado como
iniciada já nos anos 60, acentuou-se nas décadas subseqiientes
referencial de legitimidade comum.
numa violência nunca dantes constatada nesse país. Se, num pri-
Nesse sentido, o mundo da desordem, introduzido pela produ- meiro momento, essas indústrias usaram suas próprias embarca-
ção capitalista que avilta o trabalho, o conhecimento do mar e seus ções para a pesca intensiva de espécies comerciais voltadas para
ciclos, só poderia ser alterado com a volta ao modelo de companha a exportação (camarão, piramutaba, e t c ) , num segundo momento
que, por sua vez, tampouco existe mais como no passado. passaram a explorar t a m b é m as áreas reservadas para a pequena
Até a década de 80, grande parte das teses dos cientistas sociais pesca. A m o d e r n i z a ç ã o e a i n o v a ç ã o t e c n o l ó g i c a da pesca
sobre a pesca e as comunidades de pescadores era produzida em artesanal, como afirma M e l l o (1985), não foi uma e s t r a t é g i a
instituições de pesquisa do sul do país, mas a partir de então houve neutra, mas respondeu a uma estratégia da grande empresa que
uma maior diversificação geográfica desses trabalhos. teve assim seus custos diminuídos. Essa articulação com a em-
O surgimento da pesca industrial-capitalista no litoral norte do presa capitalista não foi, no entanto, despida de conflitos sérios
Brasil — e os conflitos daí decorrentes — foi uma das causas de com a pesca artesanal, resultando tanto na pilhagem desenfreada
uma crescente produção científica, centrada no Museu Emílio dos recursos naturais, causadora de uma grande mortandade de
Goeldi e na Universidade Federal do Pará. O cientista político Alex peixes m i ú d o s pelo arrasto, como na destruição dos aparelhos de
Fiúza de Mello, em A pesca sob o Capital: a Tecnologia a Serviço da pesca tradicionais.
Dominação (1985) analisou as c o n s e q u ê n c i a s das i n o v a ç õ e s
tecnológicas na pesca costeira amazônica em termos de poder e Além disso, é necessário se mencionar os trabalhos da antropó-
dominação. Já a antropóloga Lourdes Furtado, em Cuiralistas e loga Simone Maldonado que, em Pescc/doresdo mar{]9S6) e Ent/e
Redeiros de Marudá: Pescadores do Litoral do Pará (1987) estudou as Dois Meios {\99\ analisou a questão do saber, da territorialidade e
técnicas e a organização social dos pescadores do litoral nordeste do segredo entre os pescadores da Paraíba.
do Estado do Pará. Ainda no litoral sul brasileiro deve-se destacar os trabalhos da
Esses trabalhos, assim como os de Violeta Loureiro {Osparcei- antropóloga Lúcia Helena Cunha {Lintre o mar e a terra: tempo e
ros do Mar: natureza e conflito social na Pesca da Amazónia, 1985), de espaço na pesca em Barra da Lagoa, 1987), da antropóloga Anamaria
Maria Angélica M a u é s {A literatura oficial sobre a pesca na Amazôni- Beck {Lavradores e pescadores: um estudo sobr'e o trabalho familiar e
ca: uma tentativa de revisão aitica, 1980), de Maria Eunice Penner trabalho acessório, 1979), e da socióloga Celia Maria e Silva, em seu
{A dialética da atividade pesqueira no Nordeste Amazônico, 1980), de livro Ganchos: ascensão e decadência da pequena prvdução mercantil
pesqueira {\99Z), que analisam as formas pelas quais os pescadores
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artesanais usam o espaço costeiro e a desorganização das comu- ra analisa os conflitos gerados com o desenvolvimento do turismo
nidades pesqueiras de Santa Catarina. na Ilhabela. O trabalho do antropólogo Steve Plante: Espaço, pesca
Rm 1986, alguns cientistas sociais se reuniram em Brasília no e turismo em Trindade (1997), avalia os impactos do turismo sobre a
/ Encontro de Ciênàas Sociah e o Mar, para trocar informações sobre comunidade caiçara de Trindade, no Rio de Janeiro.
pesquisas realizadas no âmbito das populações humanas e o mar. Na coletânea Ilhas e Sociedades Insulares, organizada por Anto-
Esses encontros continuaram a se realizar em 1988 e 1989 na nio Carlos Diegues (1997), vários cientistas sociais analisam os
Universidade de São Paulo, organizados pelo N U P A U B / C E M A R vários processos sócio-culturais em que os pescadores-ilhéus es-
(Centro de Culturas Marítimas). Nesses encontros participaram tão envolvidos.
antropólogos, lingíiistas, cientistas políticos, sociólogos, etc. E m I n ú m e r o s outros trabalhos e teses foram desenvolvidas por
1990 realizou-se, no Museu Emilio Goeldi, em Belém do Pará o / K vários institutos de pesquisa e universidades, mas nem sempre
Encontro de Ciências Sociais e o Mar. De todos esses encontros foram tornam-se disponíveis para consulta.
publicadas atas contendo inúmeros trabalhos nas várias discipli-
nas das ciências humanas.
Na década de 90, diversas teses foram escritas sobre o tema, El.KMKNTOS PARA UMA S O C I ( ) A N T R O P O I , O G 1A
devendo-se ressaltar o trabalho do historiador Luís Geraldo Silva: DAS C o M U N l D A D K S DK PKSCADORKS M A R Í T I M O S

h faina, a festa e o rito: gentes do mar e escravidão no Brasil (1996), em


que analisa o papel dos escravos libertos na atividade pesqueira do A quantidade e a diversidade dos trabalhos sobre comunidades de
século XVII ao século XIX. Esse mesmo autor t a m b é m publicou pescadores publicados no Brasil apontam para a construção de um
Caiçaras e Jangadeiros: cultura maritirna e Modennzação no Brasil campo específico do conhecimento nas ciências sociais que poderia
(1993), ressaltando o papel da mobilização dos pescadores arte- ser entitulado: Socioantropologia Marítima (ou da Pesca). E m
sanais na organização de entidades de classe mais democráticas. alguns dos autores citados (Maldonado, 1986; Diegues, 1995)
T a m b é m nesta década foram realizados trabalhos que enfo- aparece a preocupação em analisar as comunidades de pescadores
caram as consequências de políticas públicas de conservação da como distintas das demais comunidades rurais que praticam a agri-
natureza (estabelecimento de áreas naturais protegidas) sobre as cultura.
comunidades de pescadores artesanais. Em Mito moderno da natu- Até recentemente, essas comunidades marítimas eram estuda-
reza intocada, de Antonio Carlos Diegues (1994), O nosso lugar vi- das com a utilização de conceitos e metodologias aplicadas às
rou parque, de Antonio Carlos Diegues e Paulo Nogara (1994) e na sociedades agrícolas ou rurais (Diegues, 1995). A partir da década
tese de Mestrado de Lea Maria Thomaz, Representações sociais dos de 70, começou a se desenvolver uma área específica do conheci-
nativos da ilha de Mel (1996), foram analisados os impactos da mento nas ciências humanas intitulada antropologia marítima,
implantação dessas áreas protegidas sobre o modo de vida das socioantropologia marítima, ou ainda antropologia da pesca.
comunidades de pescadores costeiros. A Antropologia Marítima é hoje um campo de pesquisa especi-
Os impactos do turismo sobre as comunidades de pescadores alizado de estudo etnológico sobre comunidades que vivem do mar,
artesanais t a m b é m tornou-se um tema importante para os cientis- especialmente da pesca. A construção desse campo disciplinar é
tas sociais. Sobre esse assunto pode-se ressaltar a dissertação de recente e o verbete: "Antropologia M a r í t i m a " apareceu pela
mestrado da antropóloga Maria dei Carmen Calvente (1993): No primeira vez em 1992, no \)XQSÚ^\^(\O Dictionaire de TEtlinologie et
teriitório do azul-matiidio: a busca do espaço caiçara, em que a auto- de rAntliropologie, publicado pela Presses Universitaires de Erance,

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sob direção de Pierre Bonte e Micliel Izard. Segundo Geistdoerfer, jeto de estudo sistemático, exceto na Europa do Norte, e por
a Antropologia Marítima estuda a variedade e a complexidade dos uma razão muito simples: pela prodigiosa quantidade de recur-
sistemas técnicos, sociais e simbólicos elaborados pelas popula- sos haliêuticos" (Collet 1993: 25).
ções litorâneas no processo de apropriação do espaço marinho que
daí retiram sua subsistência. A autora estuda, portanto, o modo de Existe t a m b é m um debate sobre o caráter da antropologia
vida á2. gente do mamo que ele apresenta de específico e particu- marítima como subdisciplina no interior da Antropologia ou como
lar, em contraste com o modo de vida das populações continentais simples campo de investigação antropológica. A maioria dos an-
com as quais as comunidades marítimas m a n t ê m relações sociais tropólogos interessados pelo tema prefere falar em campo espe-
estreitas. Ainda segundo Geistdoerfer (1992), pode-se falar em cífico de interesse e investigação (Galvan 1984, Geistdoerfer 1984,
sociedades marítimas em relação a determinações gerais ligadas à Pascual 1991), porque exige técnicas de observação e formas de
localização geográfica ou ao tipo de atividades humanas, às quais análise particulares, diferenciadas das antropologias das socie-
estão associados saberes técnicos particulares (conhecimento do dades camponesas e operárias. Somos da opinião que a antropo-
meio marinho, da fauna e da flora, técnicas de fabricação de em- logia marítima ou da pesca, como subdisciplina no interior da
barcações, de navegação).
Antropologia, está em processo de constituição, possuindo um
Casteel e Quimby (1975) definem a Antropologia Marítima conjunto de temas, técnicas de observação e um grupo crescente
como o estudo de culturas, sociedades e subculturas marítimas no de pesquisadores.
contexto da Antropologia. O estudo de qualquer cultura, socieda- Entre as principais características responsáveis pela diversida-
de ou subcultura marítimas nas várias disciplinas em que se divi- de das sociedades marítimas estão a valorização positiva ou nega-
de a Antropologia (Etnologia, Arqueologia, Antropologia Social, tiva do mar, o modo de organização económica e social, o lugar
etc.) pode ser considerado Antropologia Marítima. Por míiricima reservado às atividades pesqueiras na economia, o modo de
entende-se do ou pertencente ao mar e esta subdisciplina abrange integração das comunidades litorâneas na sociedade mais ampla e
vasta gama de fenómenos culturais. o caráter simbólico das relações com o mar.
Alguns antropólogos preferem fíilar em antropologia das socie- Centros de Antropologia/Sociologia Marítima surgiram recen-
dades de pescadores ou haliêuticas. Collet (1993) assinala a espe- temente no Canadá, França e Holanda. Em Paris, o Centro de
cificidade desse mundo marítimo/haliêutico e as dificuldades em Etno-Tecnologia em Meio-Aquático foi fundado em 1970 por
estudá-lo: pesquisadores em Ciências Humanas no Museu Nacional de His-
tória Natural. Esse centro tem por função reunir aqueles que estu-
" A pesquisa no mundo haliêutico se parece com a superfí- dam diferentes aspectos da vida dos pescadores, a fim de con-
cie do mar em que tudo se apaga. Ao contrário das sociedades frontrar orientações, métodos e conhecimentos. O centro r e ú n e
agrárias, as quais, com pouca ou nenhuma escritura, são ricas principalmente antropólogos, etnólogos, sociólogos, historiadores,
em arquivos (a terra que produz as colheitas é uma realidade com várias pesquisas em curso.
bem tangível...), são raros os arquivos dos mestres-pescadores; Já os pesquisadores de Amsterdam estão reunidos em torno da
a própria raridade não é outra coisa que a expressão dc um revista Maritime Anthropological Studies ( M A S ) que começou sua
mundo efémero que se reflete t a m b é m nas cicncias humanas, publicação em 1988.
por muito tempo voltadas somente para o mundo rural. Em Mais recentemente antropólogos e sociólogos brasileiros t ê m
c o n s e q u ê n c i a , os traços das sociedades haliêuticas não são ob- produzido trabalhos que acenam para uma sociologia e antropolo-

76 77
A N T O N I O (CAKI.OS D I K G I M Í S A S ( X : i O . \ N T K O I ' O I , O G I A DAS C o M l N I D A D K S D K P K S C A D O K K S

gia das comunidades marítimas. Baseiam-se eles na especificidade BlIil.IOGRAI-IA


das comunidades de pescadores: em suas relações com o meio
ambiente particular, o mar, no seu mundo de valores e ideologias
decorrentes dessas relações com o mundo natural e t a m b é m com a Beck, A. 1979. Lavradores e pescadores; um estudo sobre o trabalho familiar e
sociedade mais ampla, a nível regional e nacional. Parte desses trabalho acessório. Florianópolis. Dissertação (Mestrado), Ul-S('.
pes(]uisadores está associada ao N ú c l e o de Pesquisas .sobre Popu- Bernardes, U. e N . 1950. A pesca no litoral do Rio dc Janeiro. Revista
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gia marítima. Além disso, o NUPAUB tem desenvolvido e publica- tuto Nacional de Antropologia c Historia. (Colección Divulgación)
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ma e da pesca estão dispersos pelo extenso litoral brasileiro, tendo
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TRADIÇÃO E MUDANÇA
NAS COMUNIDADES DE
PESCADORES DO BRASIL:
POR UMA SOCIOANTROPOLOGIA DO MAR

M UITO F R K Q O F N T E M F N T R , o estudo das relações entre as co


munidades humanas e o mar está marcado pelo uso de con-
ceitos e metodologias extraídos das análises das sociedades cam-
ponesas. Se alguns desses conceitos (ciclos agrícolas, parceria,
mutirão, assalariamento rural) podem ser úteis para analisar aque-
las comunidades humanas que associam pesca em ambientes lito-
râneos fechados (estuários, mangues) e agricultura, eles são inade-
quados para explicar as complexas relações que existem entre as
comunidades de pescadores e o "mar de fora", o oceano. Sobretu-
do, os pescadores com grande tradição marítima desenvolveram
formas de apropriações socioeconómica e cultural do meio marítimo
que a p o n t a m para uma crescente " s e p a r a ç ã o " e n t r e as
"comunidades de terra" e as "comunidades de mar". E verdade
que essa distinção é mais clara para alguns povos de grande tradi-

83
A N T O N I O ( ' A U I . O S H I K C I I:S TlíADIÇÃO M C O A N Ç A NAS C O M UNI DAOKS

ção marítima na Europa e Ásia. Ela aparece t a m b é m em certas de complementar. Nesse caso, trata-se mais de agricultor que de
regiões do Brasil, como o Nordeste e Sul. pescador, carecendo em geral de uma "ideologia da pesca" de que
Trata-se de um problema de caráter epistemológico ou da pró- fala Mourão (1971). Isso não quer dizer que essas comunidades de
pria determinação da identidade sócio-ecológico-cultural das comu- pescadores (da I.agoa dos Patos, por exemplo) não tenham um
nidades humanas que vivem do mundo do mar em contraposição profundo conhecimento desses ambientes aquáticos fechados,
ao mundo da terra. Essa tentativa de caracterizar as comunidades como estuários e lagunas, nem que não vivam, em alguns casos,
humanas marítimas como tendo uma especificidade própria em quase que exclusivamente da exploração dos recursos pesqueiros
contraposição às terrestres está dando origem a novas disciplinas desses ambientes, considerando-se pescadores profissionais. E m
tais como a Antropologia e/ou Sociologia Marítima. muitos casos, esses pescadores exploram ao mesmo tempo a laguna
N o Brasil, os trabalhos sobre comunidades de pescadores co- e seus recursos e os ambientes de mar aberto. Privilegiamos, no
meçaram a se tornar mais numerosos a partir dos anos 70. Tenta- entanto, nestas considerações, aquelas comunidades que vivem
mos, no capítulo anterior, estabelecer uma periodicidade entre os dos recursos de mar-aberto e t ê m pratica económica, social e
trabalhos relativos a Ciências Sociais e o mar. Numa primeira fase, simbólica ligada ao oceano, aos ambientes de "fora da barra". Esses
com raras exceções — Gioconda Mussolini, por exemplo —, os ambientes são explorados tanto pelos pescadores artesanais
trabalhos eram de caráter mais folclórico ou de estudos de comu- m a r í t i m o s quanto pelos "embarcados" da pesca empresarial-
nidades onde se ressaltava a homogeneidade social e a tradição. A capitalista. É sobretudo dessas comunidades que trata a Antro-
partir dos anos 70, a pesca e as comunidades de pescadores pologia e Sociologia Marítima.
começaram a ser percebidas dentro de um contexto mais amplo da
sociedade nacional, da penetração das relações capitalistas no setor,
dos conflitos entre pesca realizada nos moldes da pequena produção
TRADIÇÃO E M U D A N Ç A : DIVKRSAS ^
mercantil e a capitalista, etc. Mais recentemente, antropólogos e
F O R M A S DK P R O D U Ç Ã O N A PRSCA
sociólogos brasileiros e estrangeiros t ê m produzido trabalhos que
acenam para uma sociologia e antropologia das comunidades ma-
O termo " m u d a n ç a social" pode ter vários significados. De um
rítimas. Baseiam-se cies na especificidade das comunidades de
lado pode-se pensar em "mudanças estruturais" ou alterações fun-
pescadores: em suas relações com o meio ambiente particular, o
damentais, que modificam radicalmente um modo de produção e
mar, no seu mundo de valores e ideologias decorrentes dessas re-
o transformam em outro. Esse conceito diz respeito à transição de
lações com o mundo natural c também com a sociedade mais ampla,
uma forma de se organizar a produção social em outra. Ele pode
a nível regional e nacional.
t a m b é m se referir a alterações sócio-econômicas c culturais sem
Em primeiro lugar, estão aquelas comunidades de "pescado- que se transformem as determinações estruturais de uma forma
res-lavradores" ou "pescadores-sitiantes" que exploram con- de produção. Assim, a introdução de determinadas tecnologias pode
comitantemente, através de um calendário complexo, os recursos alterar certos aspectos de produção e da vida social de comunida-
do solo (agricultura de subsistência) e os recursos do ambiente des de pescadores artesanais sem que se modifiquem os elementos
litorâneo protegido, em geral estuários e lagunas. Essa categoria fundamentais da pequena produção mercantil. Algumas dessas
de pescadores, já foi amplamente analisada cm trabalhos anterio- mudanças são, na verdade, ajustes de caráter ecológico e socioeco-
res (Diegues, 1973; 1983), são em geral pescadores estritamente nómico, mas não alteram o sistema de produção c d o m i n a ç ã o
vinculados à vida da terra, na qual a pesca entra como uma ativida- existentes. Algumas mudanças podem se originar dentro dc um

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A N T O N I O CAKI.OS DIKOLKS T K A D I C Â O K M U O A N C A NAS C O M I . N I D A O K S

modo determinado de produção por causas e fatores internos, de p r o d u ç ã o . Cada uma delas tem leis próprias de r e p r o d u ç ã o de
enquanto que outras tem origem fora das comunidades, pela seus fatores e de suas relações de produção. Ou, como diz Barel
articulação com outras formas de produção (introdução de relações (1973), cada uma delas tem um ciclo definido de r e p r o d u ç ã o de
de assalariamento, alteração na estrutura fundiária por venda da seus elementos que se i n f l u e n c i a m m u t u a m e n t e q u a n d o
terra a interesses imobiliários). O conceito de mudança t a m b é m articulados. Esse autor sublinha a existência contraditória, num
está relacionado com o "desenvolvimento", entendido como um momento dado, de ciclos de reprodução e de sistemas de idades
conjunto de " m u d a n ç a s " socioeconómicas que levam ao aumento diferentes'. A própria reprodução social global resulta da articu-
dc produção e à distribuição mais equitativa da renda gerada. lação de vários ciclos de reprodução correspondentes, às vezes, a
F m termos gerais, existe, de um lado a pequena produção lógicas sociais distintas. Isso nos remete à ideia central da for-
mercantil litorânea que, ao nosso ver, abarca tanto a produção dos mação econômico-social constituída por modos de p r o d u ç ã o de
pescadores-lavradores quanto a dos pescadores artesanais maríti- distintas idades históricas (sejam termos de desenvolvimento das
mos. De outro lado, existe a produção capitalista ou empresarial- forças produtivas ou de temporalidades distintas). Barel (1973)
capitalista que inclui tanto a produção dos armadores de pesca afirma, por exemplo, que o modo de produção mercantil simples,
(proprietários de mais de uma embarcação), quanto a das empre- cuja duração histórica é mais longa que o modo de p r o d u ç ã o
sas de pesca (Diegues, 1983). feudal, coexiste com este e com o modo de p r o d u ç ã o capitalista.
N o entanto, em nenhuma dessas articulações, o modo de produ-
O problema de tradição e mudança somente ganha a sua verda-
ção mercantil foi dominante. Para nós, a "tradição" está intima-
deira d i m e n s ã o dentro desse contexto de diversidade de modos
mente ligada a essa longa continuidade temporal da pequena
ou formas de produção que se encontram articulados para consti-
p r o d u ç ã o mercantil.
tuir uma formação histórico-social, principalmente no quadro da
passagem de uma forma de produção a outra (exemplo da pesca A q u e s t ã o da tradição está relacionada t a m b é m ao cerne da
realizada nos moldes da pequena produção mercantil para a ca- própria pesca artesanal; o domínio do saber-fazer e do conhecer
pitalista). que forma o cerne da "profissão". Esta é entendida como o domí-
A q u e s t ã o da tradição, além dos elementos anteriormente enu- nio de um conjunto de conhecimentos e técnicas que permitem
merados (relação e conhecimento do ambiente marinho), deve ser ao pescador se reproduzir enquanto tal. Esse controle da "arte da
analisada dentro do que constitui de um lado a pequena produção pesca" se aprende com "os mais velhos" e com a experiência. Com
mercantil na pesca e de outro a sua transformação possível na eles se aprende t a m b é m a representação simbólica do mundo na-
produção capitalista caracterizada pela separação do produtor direto tural que se traduz pelo "respeito" às leis que regem o mar e seus
de seu objeto e meios de produção, realizada através do capital e recursos (Ribeiro Neto, 1988). Esse saber-fazer se cristaliza na f i -
pela introdução das relações de trabalho capitalista (assalariamento
real ou disfarçado).
O problema dc "Idades diferentes" dos mudos dc prodiiçru) está relacionado
F m primeiro lugar é oportuno afirmar que uma das caracte- com do "tempo natural" e "tempo mercantil" estudado por (ainha (1988) cm
rísticas fundamentais das formas pré-capitalistas de produção é seu trabalho: Tempo natural e tempo metranttl na pesca artesanal:
sua articulação com outras formas que lhe são dominantes. E i m - "apenas se quer chamar a atenção para a presença de ordenações temporais,
que, nas feições internas do presente, se conjuntam c se disjuntam de modo
portante reter que a pequena produção mercantil é uma forma
estrutural, numa relação de convivência ou dc domínio: tempo natural e tempo
subordinada, articulada a outras formas de p r o d u ç ã o . Essa mercantil capitalista, respectivamente, em sua expressão cíclica e linear, são
articulação não é uma simples justaposição de formas diferentes ordenações simultâneas e ambivalentes do ritmo do povoado pesqueiro". (p.207)

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T R A D I Ç Ã O K M I DAN(,:A NAS C O M I N I D A D K S
A N I O N I O CARLOS DIKGIKS

gura do "mestre" depositário dos "segredos" do mar, das técnicas motores, etc.) foram absorvidas pelas comunidades de pescadores
tradicionais de localização dos cardumes (Forman, 1970). artesanais sem que houvesse uma transformação profunda das
relações de produção.
"Gonstruindo-se no universo familiar, a u t ó n o m o e simples F m alguns casos, no entanto, verifica-se uma transformação
(parcial ou preponderante) de pescadores-lavradores em pescado-
da pesca artesanal, o mestre se caracteriza plenamente como o
res marítimos integrados ainda à pequena produção mercantil. Em
responsável e o patrono dos destinos do bote c dc sua tripu-
outros, ainda, surge nas comunidades um núcleo de pescadores
lação, como mediador entre o mundo da terra e o mundo do
"embarcados", trazidos dc fora por empresas de pesca ou pescado-
mar, como guardião do segredo da sua sociedade" (Maldonado,
res artesanais voltados para a pesca em mar-aberto (Diegues, 1983).
1988:263).
Na pesca das traineiras (sardinhas) de propriedade de armado-
res ou industriais, parece ter havido uma incorporação de pesca-
A m a n u t e n ç ã o dessa tradição já se traduziu muitas vezes na
dores artesanais nas tripulações da pesca empresarial-capitalista,
resistência à introdução de equipamentos como o piloto automáti-
dentro de um marco dc uma outra forma de produção (Duarte,
co, sonar e radar que poderiam por em cheque o "monopólio" dos
1973; Mello, 1985). Verifica-se t a m b é m que essa incorporação de
conhecimentos de mar por parte dos mestres.
pescadores artesanais em tripulações de embarcações da pesca
O problema da p e r m a n ê n c i a do modo mercantil de p r o d u ç ã o
empresarial-capitalista é problemática, contraditória e, no mais das
na pesca é tanto mais agudo quando se trata de um setor social
vezes, transitória, com retorno do pescador artesanal a produção
da p r o d u ç ã o que se baseia na exploração de recursos naturais
a u t ó n o m a e familiar (Diegues, 1988).
renováveis marcados pela sazonalidade e a b u n d â n c i a determi-
nadas fundamentalmente por processos biológicos. Alguns auto- Alguns autores atribuem essas mudanças ao surgimento de um
res (Gutclman, 1974; Meillassoux, 1960) afirmam que dessa ins- mercado para os produtos da pesca (Mourão, 1971; Bohannan &
tabilidade da captura surge não só a divisão da p r o d u ç ã o em Dalton, 1968). E m casos específicos, há uma articulação entre a
"partes" ou " q u i n h õ e s " entre os "parceiros na pesca", bem como empresa de pesca que compra o produto (pescado) direto aos pes-
o baixo nível de a c u m u l a ç ã o existente nas comunidades de pes- cadores artesanais, sem necessariamente desorganizar esta forma
cadores tjue se movem dentro dos quadros limitados da pequena de produção (Diegues, 1983). Isso se dá principalmente pelo esta-
produção mercantil. C^.omo resultado desses fatores, aparece uma belecimento de "postos de compra" de empresas pesqueiras em
certa homogeneidade social, a inexistência de classes sociais áreas de produção artesanal. Dessa forma, pode surgir uma com-
definidas (Kottak, 1966). São estes fatores (limitação da acumu- plementaridade entre as duas formas de produção com a subordi-
lação, baixo desenvolvimento das forças produtivas, d e p e n d ê n - nação da produção artesanal à capitalista. Essa articulação parece
cias e subordinação dos pequenos produtores aos centros e classes ser t r a n s i t ó r i a pois leva a um aumento do esforço de pesca
sociais vinculadas ao modo de p r o d u ç ã o d o m i n a n t e s ) que normalmente sobre uma espécie de alto valor de mercado (como
caracterizam as condições sociais de pobreza que marcam as co- camarão, piramutaba) e a desorganização da cadeia alimentar, o
munidades marítimas. empobrecimento ecológico e uma pobreza ainda maior dos pesca-
dores artesanais, quando a pesca não se torna mais rentável, se-
Por outro lado, essas comunidades não podem ser considera-
gundo os padrões capitalistas.
das a-históricas ou não suscctíveis de mudanças. I3e um lado, inú-
A desorganização da pesca artesanal é causada, ní) mais das
meros autores (Forman, 1970; Mourão, 1971; Diegues, 1983) já
vezes, pela própria dinâmica do avanço do capital de outros se-
constataram que várias inovações tecnológicas (rede de náilon.

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A N TONIO CARI.OS DIKGI.KS T R A D I Ç Ã O K M U D A N Ç A NAS G O M U N I I J A D K S

tores da produção social capitalista (avanço das indústrias poluentes os covos e redes de pescadores artesanais são destruídos. A cres-
e o consequente empobrecimento biológico do ambiente, das cente degradação dos ecossistemas costeiros, em particular dos
imobiliárias, das empresas de colonização, madeireiras, da expan- estuários e lagunas, parece ser, no entanto, o fator que mais coloca
são turística, e t c ) . Por outro lado, como afirmamos anteriormente, em risco a reprodução social dos pescadores que operam dentro
as m u d a n ç a s na pequena produção mercantil t a m b é m são causa- dos quadros da pequena produção mercantil.
das pela articulação com a pesca empresarial-capitalista. Esta bus-
ca, nos pequenos produtores, seja mão-de-obra para seus barcos,
seja a oferta de produtos pesqueiros. Neste último caso, a vanta- A l - G U N S E X K M I M - O S DE ESTUDOS
gem é que o capitalista não precisa se responsabilizar diretamente SOBKE T R A D I Ç Ã O N A PESCA A R T E S A N A L
pela reprodução social dos pequenos produtores e sua família.
Uma q u e s t ã o fundamental no processo de mudança se refere A título de ilustração, faremos a comparação de alguns autores se-
às possibilidades do pescador artesanal passar a ser armador de lecionados que trataram o problema da mudança nas comunida-
pesca, proprietário não-trabalhador de várias embarcações com seus des de pescadores artesanais.
respectivos "mestres". Essa questão foi tratada em outro trabalho Mourão, no seu trabalho: Os Pescadores do Litoral Sul do Estado
(Diegues, 1983) e a conclusão a que chegamos é que as possibili- de São Paulo (1983), relaciona as mudanças ocorridas nas comuni-
dades de acumulação de capital para a compra de barcos maiores é dades de pescadores dessa área com a emergência de uma nova
reduzida. Isso pode ocorrer em alguns casos quando o pescador racionalidade, a de mercado.
artesanal e t a m b é m "intermediario-comerciante" de pescado,
passando a acumular capital com o sobrelucro gerado pela " A emergência da racionalidade característica do sistema
comercialização do produto de outros pescadores. de mercado foi concomitante com o surgimento de um novo
Dentro da pequena produção mercantil, são os pescadores-la- estrato social (os dos pescadores artesanais com embarcações
vradores os que mais sentem as pressões da sociedade capitalista, motorizadas que exploram o "mar-de-fora") e ambos decorreram
seja pelos agressões geradas pela poluição urbano-industrial, seja de m u d a n ç a s no sistema de comercialização do pescado —
pela invasão muitas vezes violentas de suas terras junto às lagunas especialmente fixação de um preço de mercado — e, em me-
e praias fechadas. A ocupação crescente das praias e de suas posses nor grau, da introdução de novas técnicas de captura, fato que
tem levado a uma expulsão dos pequenos produtores para áreas t a m b é m foi resultado da nova comercialização" (p. 7).
sempre mais distantes da praia. A poluição urbano-industrial, como
a de C u b a t ã o , tem d i m i n u í d o consideravelmente os recursos O autor utiliza um instrumental de análise weberiano, contras-
pesqueiros ou os tem tornado inadequados para o consumo huma- tando o comportamento não-orientado pela dinâmica do mercado,
no, pela presença de metais pesados. próprio dos "pescadores-sitiantes", com o comportamento racio-
A redução dos estoques pesqueiros, por outro lado, não se dá nal, orientado pelas demandas do mercado: a dos pescadores
somente pela poluição, mas t a m b é m pela pesca predatória reali- artesanais "profissionais" que exploram sobretudo o mar-aberto com
zada pelos barcos de industrias pesqueiras que frequentemente a ajuda dos recém-introduzidos motores-de-centro (década de 60).
operam em áreas costeiras onde trabalham os pescadores artesa-
nais. Já existem inúmeros casos de conflitos entre os pescadores "A emergência de condutas inovadoras, síntese de fatores
de barcos artesanais e industriais especialmente no Nordeste, onde e n d ó g e n o s e exógenos, favorecida pelas alterações ocorridas no

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A N T O N I O CAIÍI.OS DII:GI:I:S T l í A O I Ç Ã O I-: M l DANÇA NAS C o M U N I D A D K S

quadro económico, torna-se mais clara ao longo dos cortes no Finalmente, o autor advoga a construção de um entreposto de
tempo. Ao mesmo tempo, a racionalidade típica de mentalida- pesca que incentivaria a produção dos pescadores artesanais, "nos
de da sociedade adstrita ao polo dominante passa a se impor na limites dados pela potencialidade do pesqueiro e pelos custos de
medida em que uma parte da população local se inscreve produção marginais". O autor sugere que, com o tempo e a passa-
efetivamente em uma economia de mercado. Esta unidade gem à captura industrial, a pesca poderá perder sua importância
económica aos poucos substitui a agricultura como meio prin- para os contingentes humanos atualmente a ela ligados, exceto
cipal de vida do grupo pesquisado, permitindo, segundo as cir- para uma parte dos pescadores artesanais acima citados.
cunstâncias, o aparecimento daquilo que poderíamos chamar A história dos anos subsequentes à construção do entreposto
'ideologia de pesca' em um dos estratos de uma população que, pesqueiro de C a n a n é i a demonstrou que, de alguma forma, hou-
durante séculos, teve na agricultura, e em proporção menor, ve uma passagem para a pesca industrial, mas esta praticamente
em outras atividades, a base de sua economia" (p. 7). não incorporou os pescadores artesanais motorizados como mem-
bros de suas tripulações pois estas, assim como os i n ú m e r o s bar-
E nesse novo estrato — o dos pescadores artesanais motoriza- cos camaroneiros, vieram de fora (Santa Catarina e Santos). As
dos — que o autor encontra uma certa comunidades ligadas a pesca marítima (costeira) conseguiram se
manter mais estáveis (Sales, 1988), ao contrario de i n ú m e r a s co-
"identificação com o mar, em que a gratificação do trabalho munidades ligadas laguna que definharam por razões da d i -
aumenta não só pelas maiores quantidades capturadas, mas pelo m i n u i ç ã o dos estoques pesqueiros, e s p e c u l a ç ã o imobiliária,
d o m í n i o do mar, pelo prazer do saber-fazer" (p. 124). proibição do exercício de atividades tradicionais (agricultura,
e x t r a ç ã o de palmito) pela i m p l a n t a ç ã o de áreas de p r o t e ç ã o
Naquelas comunidades de pescadores-sitiantes do interií)r do ambiental, etc.
estuário, em que não houve a passagem para a pesca motorizada Nesse caso, o surgimento de uma nova racionalidade entre os
em alto-mar, e que pescadores artesanais motorizados não foi um fator suficiente para
a passagem a uma pesca empresarial-capitalista. Faltaram, sem
"a pesca vem declinando de ano para ano em decorrência dúvida, elementos estruturais essenciais para que essa transfor-
da diminuição do teor de salinidade das águas, a anomia é a mação se efetuasse, ou seja, a falta de acumulação de capital para
norma, quer em nível dos conflitos das condutas individuais, compra de embarcações maiores e equipamentos de maior poder
quer em nível da ruptura do consensos societário" (p. 222). de captura, a introdução de um assalariamento real o u disfarçado,
próprio da pesca empresarial-capitalista e "pour cause", a ideolo-
M o u r ã o , em uma análise minuciosa das diversas comunida- gia capitalista própria dessa forma de produção social.
des, constata t a m b é m os conflitos entre os estratos inovadores Forman, em seu livro: The raftfishermen{\910), t a m b é m se pre-
dos pescadores artesanais motorizados e as "classes altas" locais ocupa fundamentalmente com a mudança social e a tradição numa
(no caso de C a n a n é i a , SP). O domínio dessas últimas começaria a economia camponesa. Estudando uma comunidade de jangadei-
se romper com o surgimento de estratos inovadores ligados a pesca ros de Alagoas (Coqueiral), o autor se propõe a investigar os pro-
motorizada, ao comerciante-inovador de pescado que financia a blemas de "conservantismo" e inovação tecnológica.
produção e de uma nova classe media de origem externa à cidade Quanto ao conservantismo, Forman afirma que os jangadeiros
de C a n a n é i a (SP). de Coqueiral são inventivos e que adotam inovações desde que

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A N TONIO CARLOS D I K G L K S T R A D I Ç Ã O K M I D A N Ç A NAS C O M L N I D A D K S

estas os beneficiem diretamente e que não apresentem grandes Paradise. O autor parte do princípio que a comunidade estudada
riscos aos que vivem num patamar mínimo de sobrevivência. Es- era relativamente isolada em 1965, com alto grau de homoge-
sas inovações incluem, por exemplo, a introdução de redes mais neidade social marcada pela presença da solidariedade familiar no
eficientes. Para o autor, apesar do caráter tradicional da atividade trabalho de pesca e na vida social como um todo. Além disso, não
pesqueira, as mudanças ocorrem vagarosamente, sendo acompa- havia ainda estratificação social, sendo t a m b é m uma comunidade
nhadas de novas relações económicas, particularmente por uma auto-suficiente na produção de alimentos.
distribuição de riquezas que se dá, em geral, em detrimento dos N u m primeiro retorno em 1973, o autor já havia notado gran-
pescadores. des transformações motivadas sobretudo pela i m p l a n t a ç ã o da
Essas mudanças são resultado de dois tipos de variáveis: as Tilbras, indústria química criminosamente instalada próxima à
primeiras são variações e adaptações facilmente aceitáveis pelos praia que passou a degradar o meio ambiente costeiro. Dada a
produtores independentes; as segundas são mudanças de escala beleza das praias e da paisagem, e t a m b é m a proximidade de
maior resultantes da imposição de técnicas pesqueiras novas pelas Salvador, a comunidade passou a ser muito procurada pelos t u -
elites com objetivo de controlar os recursos naturais e a força-de- ristas. Se em 1964 cerca de 74% eram pescadores, em 1973 a
trabalho. As inovações tecnológicas no caso estudado e s t ã o , proporção já havia caído para 53%. Ao mesmo tempo, já havia
portanto, relacionadas com a estrutura de poder local. E m Coquei- c o m e ç a d o a existir uma diferenciação maior entre os proprietários
ral, os senhores locais (bigwigs) manipulam o ambiente natural e dos barcos (barcos e redes) e os pescadores, sobretudo porque o
social segundo seus interesses e, para controlar a força-de-traba- acesso aos meios de produção tinha se tornado mais reduzido. A
lho, exacerbam as t e n s õ e s que existem numa comunidade introdução dos barcos a motor tinha beneficiado sobretudo pes-
incipientemente estratificada. Eles ditam os códigos de conduta e soas fora do setor pesqueiro e alguns poucos já proprietários. Ha-
controlam o mercado de pescado. Introduziram os botes na comu- via sido criada uma cooperativa e a pesca representava ainda a
nidade para empregar os jangadeiros como mão-de-obra barata, atividade mais importante da área, apesar dos riscos da sobrepesa.
desestimulando ao mesmo tempo a introdução de técnicas que
E m seu segundo retorno à comunidade, em 1980, a situação
tornariam os pescadores artesanais mais independentes.
tinha se transformado ainda mais, sobretudo pela abertura de uma
Para Forman, os jangadeiros percebem claramente a relação estrada asfaltada ligando Arambepe a Salvador. Com ela, o turis-
entre riqueza, técnicas produtivas e trabalho. N o entanto, estão mo se intensificou ainda mais e se transformou na atividade mais
conscientes de que, por mais que trabalhem, não conseguem acu- importante na comunidade. Nesse ano, o n ú m e r o de pescadores
mular riqueza, que vai parar nas mãos dos comerciantes locais. tinha se reduzido a metade em relação a 1973, a atividade tinha
Ao mesmo tempo, o autor enfatiza os fatores que levam a uma sofrido grandes transformações, com a introdução da pesca em-
certa homogeneidade social, principalmente a solidariedade fami- presarial-capitalista que usava sobretudo a f o r ç a - d e - t r a b a l h o
liar extensa e a cooperação intrafamiliar. Para ele, os conflitos e a migrante, exterior à comunidade. Inúmeras famílias passaram a
c o m p e t i ç ã o exagerada são evitados pela m a n u t e n ç ã o do segredo viver de serviços a turistas (aluguel de casas, embarcações). O es-
das técnicas de localização dos bancos de pesca em alto-mar. tabelecimento de uma comunidade////í/>/^ no local contribuiu tam-
Kottak realizou uma analise diacrónica dos processos de mu- b é m para alterar hábitos e costumes.
dança na comunidade baiana de Arambepe, através de dois traba- As relações sociais na pesca, que eram marcadas pela coopera-
lhos: o primeiro publicado em 1966 — The structure of equality in a ção, passaram a ser de exploração da força-de-trabalho dos não-
Brazilian fishing community — , e outro em 1982 — Assault on proprietários dos barcos. Os pescadores deixaram de pescar com

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"linha junca" para trabalhar com "linhas separadas", em que cada O referencial comum da mudança nas condições de trabalho,
um fa/. uma marca no peixe capturado, indicando sua propriedade. na falta de "solidariedade" e "união" está associado ao surgimento
Consolidou-se uma estratificação social em cujo topo passaram a da traineira enquanto invibializadora do modelo de "companha".
ficar os comerciantes de pescado, os donos de barcos de pesca As traineiras, apesar de permitirem a continuidade de certas ca-
marítima, funcionários públicos e da empresa Tilbras. Os padrões racterísticas da pesca da sardinha em canoas, representam o sím-
de solidariedade se alteraram bem como o comportamento religioso. bolo da m u d a n ç a pois estabelecem um marco inicial de diferenci-
Arambepe, tida anteriormente como o paraíso da homogeneidade, ação que é o da "modernidade". Nela sobressai a presença do "ar-
tinha se tornado um campo aberto a diferenciação social, onde Í)S mador", um proprietário não-trabalhador, bem como a do "mes-
padrões novos de comportamento urbano, importados através dos tre" e de outras posições especializadas (motoristas, cozinheiro,
meios de comunicação e dos turistas, tornaram-se dominantes. etc). Os problemas legais do embarque na traineira, a legislação
Uma outra contribuição importante na análise da m u d a n ç a em trabalhista inerente a ele começam a estabelecer claramente a
comunidades de pescadores artesanais foi dada por Duarte, em diferenciação das formas dc organização social da produção.
seu trabalho: As Redes do Suor {197?>). O autor procurou analisar os
Se de um lado, a ideologia da "companha" ajuda a mascarar a
mecanismos ideológicos existentes na trajetória de m u d a n ç a en-
exploração dos pescadores embarcados, a "partilha" das traineiras
tre a organização da pesca artesanal, centrada no modelo de
e vista como um desvirtuamento da repartição da produção original,
companha, que marca a cooperação entre os pescadores artesanais
pois o ganho maior do "armador" é visto como desproporcional à
da canoa e a emergência de uma nova divisão de trabalho que
sua participação na produção. Por outro lado, o pequeno produtor
passou a existir na pesca das grandes unidades de captura e pesca
se considera um herdeiro direto da tradição da "companha". A
de sardinhas: as traineiras. Duarte estuda em profundidade a re-
mudança é por ele assim percebida como uma pressãtj. Uma ameaça
produção social dos pescadores de canoa e os impactos sobre ela
exterior que inviabiliza a perfeita realização de sua prática,
causados pela imposição de um novo modelo de cooperação na
impondo-lhe uma marginalidade não só em relação ao setor dinâ-
produção das traineiras na comunidade de Jurujuba (RJ). Ele estu-
mico da produção traineira mas t a m b é m cm relação ao modelo
da o problema da identidade dos pequenos pescadores, centrada
tradicional da produção canoeira.
no modelo de companha,
Nesse sentido, o mundo da desordem, introduzido pela produ-
ção capitalista que avilta o trabalho, o conhecimento do mar e seus
"situada no passado como referencial de legitimidade co- ciclos, só poderia ser alterado com a volta ao modelo de companha
mum. U m passado em que a produção pesqueira se fazia ex- que, por sua vez, tampouco existe mais como no passado. Como
clusivamente em canoas movidas a remo, utilizando redes de afirma Duarte,
algodão tecidas a mão e ocupando a força-de-trabalho segundo
um regime permeado pelo igualitarismo e pela referência à
"embora se possa dizer que essas representações de conti-
organização familiar, sobre o qual se tecia uma ampla rede de
nuidade 'servem' ao mascaramento da prática de extração de
reciprocidade" (p.05).
sobretrabalho consubstanciada nas novas relações de produção
nas traineiras, elas expressam muito mais do que isso: a deli-
A identidade dos pescadores passava pela "associação de inte- cadeza e a complexidade dos riscos que entretecem a prática de
resses", a ideia de "corporação" de pescadores, a "estabilidade" e diferenciação, a construção e reconstrução contínua das 'identi-
a "tradição comum".
dades' dentro dos códigos acessíveis de 'legitimidade'" (p 263).

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A N T O N I O CARI.OS DIKGUKS
T R A O I C Ã O K M U D A N Ç A NAS C O M U N I D A D K S

O problema da "tradição e m u d a n ç a " na pesca artesanal está


ao pequeno produtor, etc. A "modernização", como a inovação
muito presente em vários trabalhos que tratam do impacto da pes-
tecnológica da pesca artesanal, como afirma Mello (1985), não é
ca empresarial-capitalista (ou "industrial") numa fronteira recente
uma estratégia neutra, mas responde a uma estratégia da grande
da e x p a n s ã o do capital na pesca: a região amazônica. Os trabalhos
empresa que tem assim seus custos diminuídos. Essa articulação
de Furtado (1987), Penner (1984), Loureiro (1985) e Mello (1985)
com a empresa capitalista não é, no entanto, despida de conflitos
apontam todos, com caminhos analíticos e descritivos diferencia-
sérios com a pesca artesanal, resultante tanto da pilhagem desen-
dos, em vários locais (litoral do Pará, principalmente), o mesmo
freada dos recursos naturais, causadora de uma grande mortandade
processo de transformação da economia pesqueira tradicional pela
de peixes miúdos pelo arrasto, quanto da destruição dos aparelhos
ação das indústrias pesqueiras, em geral vindas do sul do país. Fstas,
de pesca tradicionais.
depois de exaurirem os recursos vivos do mar de alto valor do
De fato, a "modernidade" preconizada por órgãos públicos é
mercado, como o camarão, deslocam-se com frotas e fábricas de
uma estratégia que beneficia fundamentalmente os grandes i n -
processamento para o norte onde se situam grandes bancos
teresses empresariais na pesca e tem levado a uma depaupcrização
pesqueiros. Esse processo de "modernização e pilhagem da natu-
tanto dos recursos naturais da região, quanto dos próprios peque-
reza", iniciada já nos anos 60, acentuou-se nas décadas subsequen-
nos produtores (Diegues, 1988). O próprio Plano Pescart— Plano
tes numa violência nunca dantes constatada nesse país. Se num
de Desenvolvimento da Pesca Artesanal —, criado em 1973, de
primeiro momento, essas indústrias usaram as suas próprias em-
apoio a pesca artesanal (SUOEPE) baseava-se na modernização
barcações para a pesca intensiva de espécies comerciais voltadas
t e c n o l ó g i c a , na c o n c e n t r a ç ã o de recursos, na e l i m i n a ç ã o do
para a exportação (camarão, piramutaba, e t c ) ; num segundo mo-
paternalismo, na integração dos programas assistenciais e na pró-
mento, passaram a explorar t a m b é m as áreas reservadas para a pe-
pria integração entre pesca artesanal e industrial. O motor do
ei uena pesca. Por motivos da sobre exploração dos estoques pes-
Pescart era a "assistência técnica" prestada por engenheiros de
queiros dessas áreas, as empresas passaram a incorporar diretamen-
pesca, a maioria dos quais reduzia o "desenvolvimento" a introdu-
te a produção artesanal. Residindo o problema na captura que se
ção de novas técnicas de captura e processamento do pescado.
realiza em moldes mecanizados, esta tem se mostrado calamitosa
Essas "inovações" tecnológicas tinham falhas principais: nem sem-
para o próprio capital. Busca-se, então, expandir os negócios da
pre eram necessárias, pois o problema não era o aumento da pro-
grande empresa não mais através do aumento das frotas destina-
dução e produtividade, mas os baixos preços pagos ao pescador
das a pesca de "arrasto", mas da dominação dos mercados para
pelo sistema injusto da "intermediação"; os equipamentos pro-
onde são canalizados os produtos decorrentes da pesca artesanal
postos freqiientemente fugiam às possibilidades financeiras de
(Mello, 1985: 291). A compra da produção dos pescadores artesanais
adoção pelos pequenos pescadores, sendo controlados pelos co-
se faz pelos caminhões frigoríficos ou pelos pontos de compra ou
merciantes e donos de empresas ; não levaram em conta o contex-
terminais pesqueiros, estes implantados pelo Estado. Essa compra
to sóciocuitural e o sistema de poder reinante nas comunidades
não só diminui os custos de produção como leva a aumentar o
pesqueiras.
superlucro das empresas. A p r o d u ç ã o pesqueira artesanal se
transforma numa seção externa da fabrica (Mello, 1985: 265), numa O objetivo do presente trabalho foi levantar os problemas prin-
extensão de fato da propriedade privada da grande indústria. Por cipais com que se defronta o pesquisador brasileiro na tarefa de
isto a ação do Estado é fundamental através dos serviços de entender as mudanças por que passam a pesca artesanal e as co-
extensão pesqueira, construção de entrepostos, serviços de crédito munidades de pescadores artesanais espalhadas pela costa brasi-
leira. Como foi mencionado anteriormente, não enfocamos os pro-

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A N I O M O CARI.OS DIKOUKS T R A D I Ç Ã O K M U D A N Ç A NAS C O M U N I D A O K S

blemas das comunidades ribeirinhas e a margem das grandes re- BlIil.lOGRAFIA


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sujeitas sobretudo aos impactos dos grandes projetos e das políti-
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cer subsídios às políticas públicas para o setor, pois a prática tem
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subsidiar os movimentos sociais dos pescadores que, a exemplo
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dos sem-terra, das populações indígenas, de seringueiros e ribeiri-
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deu não somente pela sobrepesca, facilitada pela introdução do
maquinismo e técnicas cada vez mais predatórias, como t a m b é m
pelos efeitos negativos da poluição proveniente dos dejetos urba-

' Publicado originalmente em Pescadores, cam/wiieses e irahalhadores do mar. São


Paulo. Ática. 1983.

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ANioNro CAKI.OS Diixa I-:S A CoNiRiiu:icÃo NKO-MARXISIA

no-indiistriais que em muitos casos provocam a redução do teor de vias de extinção estão a baleia do Golfo da Gasconha, o arenque
oxigénio necessário à vida marinha. do Atlântico Norte, a sardinha da Califórnia etc.
É sabido que 90% dos recursos marinhos se encontram nos O resultado da sobrepesca foi o esgotamento puro e simples
hmites da plataforma continental onde condições físico-biológi- desses recursos naturais renováveis nos mares contíguos dos paí-
cas favoráveis permitem o desenvolvimento das comunidades ses centrais e o deslocamento das frotas para as águas dos países
animais e vegetais. ditos subdesenvolvidos.
As diversas espécies existentes num determinado ecossistema A destruição das forças da natureza em ecossistemas aquáticos
se relacionam dentro do quadro da cadeia trófica, pela qual umas extremamente produtivos, como os lagunares e estuarinos, atinge
espécies servem de alimento às outras. O desconhecimento ou o primordialmente os pequenos pescadores, os quais, dados os equi-
desrespeito a esses processos complexos tem levado, especialmente pamentos relativamente pouco predatórios e embarcações de pe-
através da captura indiscriminada e em larga escala, a verdadeiros quena autonomia que empregam, tiram daí os seus meios de sub-
desastres ecológicos pelos quais e s p é c i e s inteiras de pescado sistência. Na medida em que inúmeras espécies de pescado t ê m
desapareceram ou não puderam mais se reproduzir. Muitas vezes, nas lagunas e estuários o seu ambiente de reprodução, a sobre-
a estrutura de demanda centrada sobre animais marinhos que se pesca aí exercida causa uma diminuição da produtividade global
situam na base de importantes cadeias tróficas, como o camarão, do oceano.
tem levado à sobre-pesca dessas espécies que por sua vez compro- Com o aproveitamento agrícola intensivo das terras próximas
metem a existência de peixes que delas se nutriam. É preciso ter- às lagunas, grande parte da água doce dos rios que aí desemboca-
so em conta que inúmeras características dos processos de produ- vam foi desviada para a irrigação, alterando-se o teor de salinidade
ção na pesca, ao contrário de outras atividades humanas (com das águas estuarinas, com efeitos negativos sobre a reprodução das
exceção da caça), estão marcadas pela natureza dos recursos a se- diversas espécies marinhas. Em outros casos, a abertura de canais
rem explorados. Muitas espécies de pescado exploradas comerci- l i g a n d o lagunas ao oceano t a m b é m a l t e r o u a s a l i n i d a d e ,
almente são cíclicas e móveis. Cíclicas no sentido de que são pas- prejudicando o equilíbrio ecológico preexistente e causando a
síveis de exploração somente em algumas épocas do ano, pois p a u p e r i z a ç ã o das p o p u l a ç õ e s de pescadores ( D a g e t , 1974;
passam por diversas fases até c h e g a r á maturidade; móveis porque Bourgoignie, 1972a).
muitas espécies não ocupam um nicho ecológico fixo, ultrapassan- N ã o se pode, entretanto, explicar a destruição dessas forças da
do não somente fronteiras marítimas de países, como a t é se natureza somente pela variável tecnológicas ou pela introdução
deslocam de um oceano a outro. Além disso, é preciso ter-se em de instrumentos de p r o d u ç ã o mais p r e d a t ó r i o s . C o m o afirma
consideração que essas migrações são motivadas por fatores vários, Godelier (1973b), é o rationaleáç: uma dada forma de organização
incluindo, por exemplo, o deslocamento da massa alimentar que social o clemento-chave na explicação de por que certas socieda-
nutre determinadas espécies (como fitoplâncton), mudanças de des atingem formas de exploração dos recursos naturais renováveis
temperatura, salinidade, etc. que lhes permitem se reproduzir sem destruir irremediavelmente
A desorganização do equilíbrio instável existente entre os d i - o meio ambiente, enquanto que outras desenvolvem processos
versos elementos que c o m p õ e m um ecossistema natural, em ca- produtivos altamente predatórios e comprometedores das forças
sos extremos, levou à impossibilidade de os organismos naturais naturais.
se reproduzirem, motivando o desaparecimento de inúmeras es- Godelier (1974) crítica a tese de Polanyi e Dalton, segundo a
pécies aquáticas. Entre as espécies que já desapareceram ou em qual uma estratégia de otimização dos recursos só é possível no

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A C O N T K i H t i c à o N K O - M A I Í X I S TA
A N I O N I O C A U I . O S DIKC;I:K.S

interior de uma economia mercantil-capitalista. Segundo eles, U m exemplo de utilização sábia dos recursos aquáticos foi des-
somente esse sistema económico, no interior do qual todos os fa- crita por Bourgoignie (1972,b) ao estudar a comunidade dos Tofmu,
tores de produção — a terra, o trabalho, as matérias-primas — t ê m que viviam nas lagunas do D a o m é (atual Benin). Além de utiliza-
um preço, permitiria uma utilização ótima dos recursos baseada rem técnicas ecológicas como a "akaja"^, aplicavam medidas tra-
no cálculo e comparação dos custos de todas as alternativas de dicionais que visavam uma utilização adequada das lagunas, como
produção. as disposições comunitárias sobre o uso de instrumentos de pesca
O que ocorre, no entanto, é que cada forma de produção deter- e a d e t e r m i n a ç ã o de áreas sagradas onde a pesca era proibida. Es-
mina uma maneira específica de exploração da natureza e conse- sas coincidiam com as zonas de reprodução e crescimento dos
quentemente as normas boas ou más de utilização da natureza. alevinos, os quais, se fossem predados, poriam em risco a própria
Cada forma de produção social apresenta, portanto uma raciona- e x i s t ê n c i a daquelas comunidades pesqueiras. Segundo Bour-
lidade própria, indicada pelos objetivos mais gerais de sua reprodu- goignie (1972b), uma das características da sociedade Tofinu era a
ção social ao longo da história. Godelier denomina essas normas associação das estruturas sociais fundadas sobre a família extensa
de racionalidade intencional entendida como um conjunto de re- com atividades económicas centradas na pesca, onde os membros
gras sociais, conscientemente elaboradas e explicadas que se des- desenvolveram técnicas engenhosas de captura que tinham por
tinam a atingir certos objetivos societários. Assim, podemos dis- objetivo manter um equilíbrio entre as necessidades da comu-
tinguir racionalidades específicas ao analisarmos a atividade pes- nidade e a preservação do equilíbrio ecológico. Essas técnicas
queira realizada dentro de formas de produção diferenciadas. U m engenhosas, como o "akaja", permitiram aos Tofinu não somente
pescador inserido ainda numa economia natural tem por objetivo interpretar o meio lacustre onde viviam, mas t a m b é m tirar dele o
na captura o aprovisionamento dos meios de subsistência para si e necessário a sua sobrevivência.
sua família. O excedente eventual é encaminhado para o cumpri- A c o n s t r u ç ã o de um grande porto na laguna, provocando
mento de certas obrigações rituais (consumo em certas cerimónias desequilíbrios ecológicos consideráveis, e a entrada dos Tofinu
comunitárias). N o outro extremo, temos o armador de pesca que numa economia de mercado foram elementos que vieram a des-
cujo objetivo de produção é o lucro monetário, a reprodução do truir irremediavelmente o equilíbrio entre o homem e a natureza
capital, etc. existente anteriormente.
Esses dois pescadores, explorando o meio ambiente, terão dele
uma percepção diferente, que se traduz num comportamento dis- "A desorganização sócio-cultural deixou caminho livre para
tinto em relação às forças da natureza. uma tecnologia destinada a usar os recursos do Lago N o k o n é
Em formações sociais onde a principal forma de captura repou- de uma maneira sempre mais individualista e anárquica. A pres-
sa sobre a frota empresarial capitalista, o limite da exploração de são econômico-ecológica levou, à redução quantitativa e quali-
um cardume aparece somente quando o lucro médio já não é mais tativa das proibições tradicionais de pesca e a uma profanação
realizado, o que significa frequentemente a destruição completa
ou parcial dos estoques.
-' O "akaja" é um tipo de armadilha constituída por ^^alhos de árvtjre colocados na
Já em outras formas de organização social constata-se que a lacuna, onde os peixes sc refugiam, encontrando alimento e proteção contra os
m a n u t e n ç ã o dos recursos é garantida por outro rattotmle, que per- predadores. De tempos cm tempos, lança-se aí a rede retirando-se os peixes
mite a grupos sociais basearem sua reprodução social na reprodu- adultos. Uma armadilha idêntica encontramos na lagoa de Mundaú.em Alaj^oas,
conhecida sob o nome U)cal tie caiçara.
ção biológica dos recursos renováveis.

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A N T O N I O CARI.OS Dii-oirs A CoNTRinuiçÀo NKO-MARXISTA

dos lugares sagrados e preservados. Pediu-se à deusa Anasi A produção pesqueira, dado o seu caráter aleatório e sobretudo
G b é g u , por exemplo, para não levar em consideração a desobe- predatório, constitui um iocus ideal para essa reflexão. Mais do que
diência às leis que ela havia promulgado e que impediam a qualquer outra atividade produtiva, a pesca se realiza dentro de
d e p r e d a ç ã o da laguna. Os lugares santos, em sua grande maio- processos de trabalho profundamente influenciados pelo tipo de
ria, desapareceram e seus símbolos foram devorados pelo sal recursos a serem explorados. Ao contrário da indústria, onde a
das águas salobras, e os santuários foram profanados e abando- matéria-prima é relativamente homogénea, permitindo a produção
nados pelos homens" (Bourgoignie, 1972: 429). em massa, a pesca exige ajustes contínuos a condições naturais em
contínua mudança. Essas condições naturais em c o n t í n u o movi-
A inserção dos Tofmu na economia de mercado levou à sobre- mento dificultam a produção em massa e quando, pela introdução
pesca e à destruição das bases naturais da produção, com a conse- do maquinismo, ela se torna possível, como no caso da pesca do
quente desorganização da vida social tribal e o desaparecimento arenque, ocorre o perigo do extermínio de espécie.
dos mecanismos que levavam os habitantes a se relacionarem de A dizimação de inúmeras espécies animais terrestres e marinhas,
uma maneira harmónica com a natureza. a deterioração da qualidade de vida nas sociedades industriais, a
Firey (1960), no caso nigeriano, demonstrou como a economia crise energética, serviram para que o homem voltasse a considerar
de mercado pode suprimir normas tradicionais de controle e levar as condições naturais não como algo estático, mas como um complexo
a uma exploração extremamente desastrosa dos recursos marinhos. de relações e de processos que produzem e reproduzem a vida.
E m sociedades de pescadores de baixo desenvolvimento das A ideologia burguesa e os filósofos como Bacon viam a natureza
forças produtivas o controle sobre determinados pontos se faz atra- somente do ponto de vista de sua utilidade para o homem. Além
vés da capacidade do pescador em, tendo-o descoberto, poder disso, a natureza era considerada como um inimigo que o homem
conservá-lo. E m muitos desses casos, o melhor pescador é aquele deveria conquistar e domesticar, a partir do conhecimento científico.
que pode localizar e conservar para si ou sua família o maior n ú - Marx, apesar de influenciado pelo Iluminismo, tentou resolver
mero possível de pontos sem que esses sejam descobertos pelos essa dicotomia na medida em que, para ele, a natureza é uma
concorrentes potenciais. Esses pontos podem ser explorados tem- realidade independente do homem, mas ao mesmo tempo media-
porariamente e depois abandonados por outros melhores, bem e da pela praxis humana. A natureza é não somente um elemento da
constituem a herança que um mestre pode passar aos seus des- prática do homem, mas t a m b é m uma totalidade de tudo que existe.
cendentes. Em Marx, as relações entre o homem e a natureza são complexas.
A deterioração crescente das condições naturais da produção De um lado, o ser humano é visto como parte da natureza - um
no ecossistema marinho, a pauperização dos pequenos pescadores conjunto de relações metabólicas envolvendo constante intcração
resultante da sobre-pesca de recursos limitados, as verdadeiras com o meio ambiente físico. Do outro, o ser humano é visto como
catástrofes ecológicas, como a ocorrida na Baía de Minamata, no social, isto é, como um conjunto de relações capazes de criar uma
Japão, pela poluição das águas com mercúrio, suscitaram q u e s t õ e s organização social (Harvey, 1974:265). Para Moscovici (1974: 160),
relevantes na relação entre os tipos de sociedade e os diferentes o materialismo histórico concebe o desenvolvimento social como
ecossistemas. A súbita tomada dc consciência, a nível planetário, um prolongamento do desenvolvimento natural.
do caráter limitado dos recursos renováveis e não-renováveis fez
com que o tema das relações entre o homem e a natureza voltasse "Marx adota um ponto de vista radicalmente diferente.
a ser discutido sob um outro prisma. Para ele, o homem e sua atividade fazem parte integrante da

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A N T O N I O CARLOS DIKGLKS
A CoN'TRiiiuicÃo NKO-MARXISTA

natureza, e uma natureza humanizada é uma natureza trans-


Marx, no entanto, não vê a natureza como algo ontológico e
formada peia atividade humana, associada ao corpo e ao c é r e -
h o m o g é n e o . Ele utiliza termos, como metabolismo, para signifi-
bro humanos. E m outros termos, uma natureza sem indústria
car não somente o intercâmbio que se dá entre o homem e a natu-
e sem a arte do homem é uma ilusão ótica, uma abstração".
reza, através do processo de trabalho, mas t a m b é m entre os ele-
mentos constituintes da própria natureza. O termo metabolismo,
Marx em suas obras usou vários termos para significar nature- usado por Marx em Manuscntos económicos e filosóficos e t a m b é m
za: momentos objetivos da existência do trabalho, condições natu- em O Capital, significa a troca de elementos que se opera através
rais do trabalho, etc. Para Marx, a natureza só ganha sentido pela dos elementos naturais.
ação transformadora do homem através do trabalho. Ela, tomada
Esse metabolismo, afirma Schmidt (1971), está sujeito às leis
abstratamente, rigidamente separada do homem, não é nada para
naturais anteriores ao homem. O homem transforma a natureza,
o homem. Se a natureza é uma categoria social e histórica, cia não
mas a intensidade e magnitude dessa transformação se encontram
se confunde com a sociedade. A natureza não é uma categoria social
limitadas não somente pelo desenvolvimento das forças produti-
e não pode ser dissolvida nos processos históricos de sua apropria-
vas do trabalho, mas t a m b é m pela estrutura da própria natureza.
ção material (Schmidt, 1971).
N o entanto,
Apesar de serem dois pólos irredutíveis, existem, entre o ho-
mem e a natureza, processos de i n t e r c â m b i o através do trabalho
"quais das potencialidades imanentes à matéria são realiza-
de transformação. Godelier afirma que as relações homem/na-
das, e em que grau, continua sempre sendo função do nível das
tureza se d ã o em determinadas condições históricas e naturais
forças materiais e intelectuais da produção, já que a estrutura
específicas. Segundo ele, deve-se lembrar que o meio ambiente
da matéria não é constante" (Schmidt, 1971: 63).
natural não é nem uma variável independente nem um fator
constante. É uma variável que se transforma sob a ação mesma "O homem só pode seguir nessa forma de produção da mes-
do sistema e c o n ó m i c o e social. Dado o duplo sentido do termo ma maneira que a natureza; isto é, ele somente pode alterar as
meio ambiente — entendido o meio ambiente social, isto é, tipo formas da matéria" (Marx, 1964: 20).
de sociedade, como meio ambiente natural — é preferível estu-
dar-se a relação dos ecossistemas e tipos de sociedades, ao invés Marx afirma que o homem confronta-se t a m b é m com elemen-
de homem e seu meio ambiente. Deve-se privilegiar as condições tos da natureza como formas da natureza. Lamentavelmente ele
de r e p r o d u ç ã o dos tipos dc sociedade, tendo-se em vista suas não explorou mais profundamente essa linha de pensamento, des-
c o n d i ç õ e s internar e externas e as modificações que causam no de que sua preocupação básica era a análise do sistema capitalista
meio ambiente natural (1974: 2). A natureza continua, no en- industrial, onde os elementos naturais entram no processo de pro-
tanto sendo sempre o substrato da atividade transformadora do d u ç ã o como matéria-prima já acabada ou semi-acabada. Assim, o
homem. algodão entra no processo produtivo como fio, ou matéria-prima
que já incorporou trabalho numa fase anterior, a da agricultura.
Ora, é na primeira fase que o homem se defronta com as forças
"O mundo material 'filtrado' pelo trabalho humano, e de
da natureza enquanto metabolismo, seja natural seja histórico,
fato não criado por ele, continua sendo atpiele substrato menci-
através do trabalho. E, no entanto, cm atividades como a agrícola
onado (...) que existe sem a intervenção do homem" (Marx,
e a pesqueira, baseadas sobretudo nos ciclos naturais, que as forças
apud BtíttomoTG, 1963: 118).
produtivas da natureza ganham uma importância capital.
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A N I O N I O ( ' A R I . O S D I K Í . H KS A CoNikiiu;i(,:Ão NKO-MAIÍ\ISIA

Marx analisa os objetos da natureza enquanto condições obje- Poderíamos dizer que t a m b é m o mar e seus recursos se trans-
tivas ou naturais da produção. Enquanto estão na natureza, os ob- formam em instrumento de produção quando se aproveitam suas
jetos só possuem um valor potencial. E o trabalho humano que correntes (marés) para a produção de energia, ou ainda, quando,
arranca a matéria de suas condições naturais transformando-a em aproveitando as forças naturais, o homem passa a cultivar o peixe
objeto de uso ou meios de subsistência. E importante considcrar- através da aquicultura.
sc ainda uma diferença entre objeto de trabalho e meio de traba- Marx, preocupado com um outro estágio da produção, o capi-
lho (matéria-prima). O objeto de trabalho é aquele objeto natural talista industrial, onde a matéria-prima já recebera uma filtragem,
retirado da natureza pelo trabalho e transformado em valor dc uso, numa incorporação inicial do trabalho humano, pouco se preocu-
ou, mais precisamente, em meio de subsistência. Já, quando um pou em analisar aquelas formas de organização social de produ-
objeto tem o trabalho incorporado, Marx o considera como meio ção baseadas na extração, tais como a mineração, a caça e a pesca:
de trabalho ou t a m b é m matéria-prima.
Ou, dito de outra maneira, as condições naturais externas de "O objeto do trabalho é dado pela própria natureza na i n -
produção se dividem, sob o ponto de vista económico, em duas dústria extrativa, exploração dc minério, caça, pesca, etc... To-
grandes categorias: riquezas naturais como meio de subsistência, dos os outros ramos da indústria manipulam matérias-primas,
isto é, o solo fértil, águas piscosas, etc, e riquezas naturais como isto é, objetos já filtrados pelo trabalho (...)" {O Capital. Livro I ,
meios de trabalho, tais como as quedas-d'água, rios navegáveis, cap. 7).
madeiras, metais, etc.
N o primeiro caso, os recursos naturais são simplesmente obje- N o entanto, mesmo a produção do objeto de trabalho que o
tos de trabalho, sobre os quais se aplicam os instrumentos de pro- homem arranca da natureza implica a incorporação do trabalho
dução, ou de onde o homem retira os frutos, seja pela coleta, seja humano, uma vez que este é o único criador de riqueza.
pela caça ou pesca.
Ao considerar o solo (e t a m b é m a água) em seu estado virgem "Mas, mesmo quando se trata apenas de encontrar, de des-
como o grande fornecedor dos meios de subsistência para o ho- cobrir, torna-se imediatamente necessário um trabalho, um
mem, Marx vê nele um objeto de trabalho humano. Tudo aquilo esforço, como na caça, na pesca, no pastoreio; é preciso que o
que o homem simplesmente separa do seu ambiente natural são sujeito produza (isto é, desenvolva) certas aptidões. Se circuns-
objetos de trabalho, fornecidos espontaneamente pela natureza. tâncias há em que, sem qualquer instrumento (portanto, sem a
A terra pode ser considerada t a m b é m como instrumento de ajuda de produtos do trabalho destinados cies próprios à pro-
trabalho. Nesse sentido, a terra não é somente o grande laborató- dução), o homem pode apropriar-se daquilo que se lhe oferece
rio/arsenal que fornece os meios e a matéria-prima do trabalho e sem lhe mudar a forma (o que acontece ainda na pastoril), é
residência, base da comunidade. Ela é (incluindo os fertilizantes, preciso considerá-las, mesmo no estado primitivo, como transi-
arados, etc.) t a m b é m um instrumento de trabalho entendido como tórias e de modo nenhum normais" (Marx, 1973: 26).
algo que o homem interpõe entre si e a natureza.
É somente na medida cm que o homem introduz energia exte- Ora, o caso da atividade pesqueira é muito particular. Devido
rior, através da preparação da terra, da adubação, do plantio e da aos processos naturais (maior fertilidade das águas), e t a m b é m à
colheita, utilizando instrumentos de trabalho, que a terra se trans- sorte, pode ocorrer que o pescador retire das águas um volume
forma num instrumento de trabalho. considerável de pescado sem um grande esforço. Podemos então

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A C O N ruiiu:i(,:Ào NKO-MARXISIA
A N T O N I O CARI.OS DIKGLI-S

afirmar que, nessas condições favoráveis, o tempo de trabalho isto é, como fator dc produção. Ao contrário, o trabalho aparece
necessário à produção dos meios de subsistência é menor que em como um fator da natureza" (Marx, í//í/íi^Bottomore. 1963:149).
outras situações. Marx lembra que essa fertilidade diferencial pode
levar a uma d e p e n d ê n c i a maior do homem em relação à natureza, Daí se explica o fato de na pequena produção mercantil pes-
levando-o a viver da mão para a boca. Nesse sentido, ele afirma queira o fator trabalho não entrar como capital. Ele se identifica
que não foram os trópicos, com sua vegetação luxuriante, mas os como uma das condições naturais da produção. Na medida em que
países temperados, os progenitores do capital. o processo produtivo se dirige principalmente para a produção dos
N o que se refere à atividade pesqueira podemos dizer que no meios de subsistência, para a produção dos valores de uso, o
mar estão as condições naturais da produção: os recursos marinhos trabalho não é considerado um custo de produção ou um valor de
que nele existem antes da captura são, na verdade, recursos po- troca. Da mesma forma, o próprio pescado não aparece como fruto
tenciais. Na medida em que, através do trabalho, o pescado é do trabalho, mas como uma dádiva da natureza. As condições
capturado, ele se transforma em objeto de trabalho ou meio de primitivas da produção se apresentam como
s u b s i s t ê n c i a (objeto separado de suas c o n d i ç õ e s naturais de
existência). O peixe, na medida em que é processado, seja no "pressupostos naturais da existência natural do produtor;
barco-fábrica seja na indiistria de terra, transforma-se em ma- do mesmo modo, o seu corpo vivo que ele reproduz e desen-
téria-prima. volve realmente aparece não como obra sua, mas como sua
A maior ou menor importância do pescado, seja como objeto própria condição" (Marx, 1973: 23).
de trabalho ou meio de trabalho, é um indicador de um maior ou
menor grau do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho Marx afirma t a m b é m que todas as formas mais ou menos natu-
e mesmo do tipo de forma de organização social da produção. rais, mas ao mesmo tempo resultado do processo histórico e nas
A produção do pescado enquanto meio de subsistência indica quais a comunidade pressupõe sujeitos unidos objetivamente às
um estágio da produção em que o homem e seu trabalho se con- suas condições de produção (...), correspondem necessariamente a
fundem com as c o n d i ç õ e s naturais da p r o d u ç ã o . A p r ó p r i a um desenvolvimento limitado das forças produtivas. Para Marx,
tecnologia, no caso limite, se confunde com a extensão do próprio as sociedades pré-capitalistas tinham um caráter ahistórico na
corpo humano. O homem tira proveito do que Marx chama de medida em que os instrumentos e os objetos de trabalho não eram
tecnologia natural, ou dos processos próprios da natureza para a produtos do trabalho, mas frutos das condições naturais das quais
produção da vida. í)s próprios grupos humanos não se diferenciavam (Schmidt, 1971).
Por isso, afirma Marx, nas sociedades pré-capitalistas, o homem Gutclman (1974: 20) retoma a mesma ideia ao afirmar que, nas
se utiliza da riqueza natural como meio de subsistência ou objeto formas de organização social em que o nível das forças produtivas
de trabalho, ao passo que, nas sociedades de maior desenvolvi- é baixo, a produção (seu volume, qualidade e eficácia) é determi-
mento das forças produtivas, a riqueza natural é considerada mais nada pelas forças produtivas da natureza e pelo conhecimento
como instrumento de trabalho (quedas-d'água, madeira, metal, (savoJr-faí/ie) que o produtor tem desses processos. O autor explicita
matérias-primas em geral). mais a noção de metabolismo natural usada por Marx c dá-lhe um
estatuto teórico nt)VO, denominando áefoixas(yrodutivas da nature-
"A terra é ainda vista aqui como algo que existe natural- za os processos naturais que se desenvolvem independentes da
mente e independente do homem, e não ainda como capital; ação humana.

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A N T O N I O CARI.OS DII-:Í;I;I:S A CoNiRiiu NI:O-MARXISI"A

Para ele, é aplicando-se o trabalho sobre essas forças produti- estoques pesqueiros), o que, indiretamente, pode afetar as gerações
vas naturais que se o b t é m a produção. Essas forças produtivas futuras, que não mais poderão se utilizar desses recursos. Já no
naturais consistem em processos físico-químicos que agem inde- caso da pesca, a f o r m a ç ã o do sobre-trabalho n ã o se funda
pendentemente da ação humana, tais como a fotossíntese, a circu- necessariamente na separação dessas forças produtivas naturais,
lação de elementos nutritivos, etc. Passes processos se dão no já que normalmente o oceano é de livre acesso, mas na impossibi-
interior de um espaço físico definido. N o caso da agricultura, é o lidade do produtor direto de dispor de equipamentos de captura e,
afastamento forçado do trabalhador direto desse espaço, onde se secundariamente, da sua incapacidade em usar os conhecimentos
realizam esses processos, que permite ao não-trabalhador se apro- adquiridos, por não ser capaz (por falta de embarcação e redes) de
priar do sobre-trabalho. explorar o espaço marinho para onde migram os peixes quando as
Skibberg (1974: 646) vai ainda mais longe ao afirmar que a infra- condições naturais onde viviam antes sofrem alterações físicas.
estrutura económica de uma sociedade não é formada somente Por sua vez, quando o homem vive na d e p e n d ê n c i a dos ciclos
pelas forças produtivas do trabalho e pelas relações sociais de pro- naturais (safra anual da tainha, por exemplo), todo o seu tempo
dução, mas t a m b é m pelas forças da natureza. Segundo esse autor, útil deve ser utilizado para a produção dos meios de subsistência
para Marx, a relação de tensão dialética entre as forças produtivas para si e sua família, havendo pouca possibilidade e formação de
históricas e as relações de produção constitui a força motriz da um excedente. Como afirma Marx, sem um certo grau de produti-
história. As condições naturais seriam para Marx condições i n - vidade do trabalho ou de desenvolvimento das forças produtivas
variantes da p r o d u ç ã o . Skibberg parece sugerir que a t e n s ã o não há excedente de produção, o nível de divisão do trabalho será
dialética que leva às mudanças estruturais inclui t a m b é m as for- baixo e como consequência não diferenciação há social. A esse nível
ças produtivas materiais. N u m dado momento, a crise estrutural técnico e de produtividade social a solidariedade de grupo é uma
se verificaria pela contradição entre as forças produtivas históricas condição indispensável para a sobrevivência física do grupo.
e as da natureza. N o momento em que, pelo desenvolvimento Meillassoux (1960) afirma que quando a atividade humana se
desproporcional das forças produtivas do trabalho (tecnologia), as baseia na extração desses objetos de trabalho, cuja produção é de
forças produtivas naturais não pudessem mais se exercer (dimi- imediato disponível ao fim de cada processo de trabalho (caça,
nuição fatal da capacidade fotossintética, de depuração das águas pesca, e t c ) , a divisão desses produtos entre os participantes é a
do mar, e t c ) , criar-se-ia um impasse para a própria reprodução forma mais normal de remuneração do trabalho.
humana.
Aí talvez resida uma explicação possível de por que na peque-
Nessa mesma linha de pensamento, Skibberg afirma que, ape- na pesca o sistema de remuneração por partes da produção in natura
sar de toda riqueza ser oriunda do trabalho humano, nas ativida- ( n ú m e r o de peixes) seja tão frequente.
des extrativas, como a pesca, ocorre a existência de um sobre-lucro Se por um lado em muitos textos marxistas as forças da natureza
extrativo. Para ele, na medida em que se aumenta, por exemplo, o são consideradas como fatores invariantes da produção (Skibberg,
esforço de pesca (técnicas mais predatórias), há uma transferência 1974), por outro lado o conceito de reprodução nos oferece uma
de valor dos recursos ao lucro n ã o proporcional ao trabalho alternativa teórica adequada para o tratamento das relações entre os
despendido. Nesse caso, não se pode afirmar que todo o lucro pro- ecossistemas naturais e as formas de sociedade. Para a maioria dos
v é m do sub-pagamento do trabalho, nem que foram os trabalha- autores marxistas, a análise da reprodução social se esgota na
dores diretos os explorados. Houve, sim, uma sobre-exploração da reprodução do capital, da força de trabalho e das relações sociais.
natureza que pode levar à sua destruição (desaparecimento dos Ora, em sociedades que vivem da exploração direta da natureza

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A N T O N I O CAUI.OS DIKGUKS A ( ' O N TIÍIIU:ÍC,:Ã() N K O - M A I Í X I S T A

(baseadas na agricultura, pesca, etc.) há uma correlação importante À medida que o capital técnico (equipamentos de pesca e na-
entre a reprodução social e a reprodução natural. Nas comunidades vegação) se torna cada vez maior e o acesso à sua propriedade mais
de pescadores, por exemplo, há uma correlação entre a reprodução limitado, surge a possibilidade histórica de o seu proprietário se
de vida social e a reprodução dos estoques de pescado. A reposição apropriar do sobre-trabalho dos outros pescadores.
dos instrumentos de trabalho — por exemplo, redes — realiza-se A atividade pesqueira ingressa, então, naquele estágio descrito
após a safra de um determinado peixe. Da mesma forma, as festivi- por Marx em que as condições naturais passam a ser considera-
dades e comemorações se realizam após a salga e a venda de deter- das como instrumento de trabalho, não mais como objeto de tra-
minados peixes que aparecem somente durante certo período. balho; o pescado se transforma em mercadoria, em matéria-pri-
Para Althusser (1970), a reprodução das condições de produção ma para o processamento industrial. Inicia-se e n t ã o o processo
recai sobre dois elementos fundamentais: a reprodução das forças de separação do produto direto das condições naturais do traba-
produtivas históricas e a das relações de produção). Isto é, a cada lho: n ã o somente os objetos da natureza se transformam em
ciclo produtivo são repostos os meios de produção (matéria-prima, mercadoria como t a m b é m a força de trabalho se destaca de sua
objetos e instrumentos de trabalho) e a força de trabalho. Por outro situação primitiva de condição natural de p r o d u ç ã o para se tor-
lado, as modalidades dessa reposição são garantidas pelas relações nar, ela mesma, objeto de compra e venda. Surge e n t ã o o traba-
que os agentes de produção estabelecem entre si. A reprodução lho excedente, o sobre-trabalho, considerado como o d i s p ê n d i o
dessas relações, por sua vez, é em grande parte mediada pelas de energia por parte do trabalhador direto (trabalho necessário)
relações de poder, pela ideologia e por diversas representações apropriado pelos detentores dos meios de produção. A propósito,
simbólicas. é importante se ter em conta que as condições naturais favorá-
Ora, ao contrário da produção industrial, a reprodução dos ob- veis como o clima propício, a fertilidade da terra e do mar, influ-
jetos de trabalho — o pescado — se realiza segundo as leis de re- e n c i a r ã o o tempo requerido para a p r o d u ç ã o dos meios de
produção biológica dos cardumes, as quais escapam ao controle do subsistência do produtor (tempo do trabalho necessário à reprodu-
homem. Essa imprevisibilidade na reprodução natural influencia ção do trabalhador), mas não a existência do trabalho excedente
de maneira considerável a reprodução social das comunidades de ou sobre-trabalho, gerador de mais-valia. O sobre-trabalho é fruto
pequenos pescadores. de uma relação entre os produtores diretos e n ã o - p r o d u t o r e s e se
A pesca empresarial-capitalista, ainda que dependa menos das inicia no momento em que o trabalho necessário termina. D a í se
forças da natureza para reproduzir, nem assim está livre dos l i m i - concluir que as razões que levam o produtor direto a trabalhar
tes impostos pelos processos de reprodução natural. Com um ar- além do tempo necessário e seu produto ser apropriado pelo não-
rastão-fábrica, pode-se, a t é certo ponto, superar os condiciona- trabalhador não t ê m explicação na fertilidade da terra ou do mar
mentos físicos a que está sujeito o pescador artesanal em sua e sim na forma de organização de p r o d u ç ã o em que ele está
pequena canoa. O homem passa a explorar diversos ecossistemas inserido. A mencionada fertilidade fornece a possibilidade, mas
marinhos ao mesmo tempo. Mas, afinal, os limites da predação não a realidade do sobre-trabalho.
são dados ainda pela capacidade limitada da r e p r o d u ç ã o dos O capital técnico, que era menos importante que o savoir-faire
estoques e pela capacidade dc resiliência dos ecossistemas. Aí profissional e que as forças produtivas da natureza, torna-se o cen-
reside um aspecto importante na análise da atividade pesqueira, tro do processo produtivo. O próprio pescado já não aparece como
esquecido muitas vezes por aqueles que analisam a pesca como um dom da natureza, mas um produto que somente ganha exis-
idêntica aos outros setores da divisão social dc produção. tência pela aplicação do capital.

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A N T O N I O CAKI.O.S D I K G U K S A CoNTiíiiuiçÃo NKO-MARXISTA

Na produção capitalista, a natureza torna-se algo externo ao b é m a expropriação progressiva do savoir-faire profissional desse
homem, algo que pode ser transformado em objeto de troca. A conhecer complexo, apanágio de todo pescador experiente.
natureza deixa de ser reconhecida como um poder em si mesma e Mais do que em nenhuma outra profissão, a tomada de decisão
passa a ser uma utilidade para o homem. Como afirma Schmidt de lançar uma rede, por exemplo, está sujeita à avaliação de uma
(1971: 121): série de fatores naturais que vão desde a posição da lua e sua influ-
ência nas marés até os hábitos migratórios do pescado. O conheci-
"numa situação pré-industrial, o elemento natural é domi- mento dessas variáveis naturais, normalmente acumulado de
nante, enquanto que na sociedade industrial a intervenção maneira empírica pelos pescadores, passado de geração em geração,
humana se exerce de maneira crescente sobre os elementos constitui o núcleo mais importante da expertise que caracteriza,
materiais providos pela natureza". por exemplo, um bom pescador. É verdade que a forma de adquirir
e armazenar esses conhecimentos complexos tem se diversificado
Marx t a m b é m analisa os efeitos do desenvolvimento enorme enormemente nas ú l t i m a s d é c a d a s . O pescador lagunar de
das forças produtivas do trabalho sobre as forças da natureza, a sua Cananéia (Brasil), por exemplo, para localizar certos tipos de peixe,
pauperização progressiva, as dificuldades na regeneração da ferti- como a pescada, costuma usar a canoa como caixa de ressonância
lidade do solo, etc. A produção capitalista não somente arruina a para ouvir o ronco da pescada. O bom mestre de traina, pela ardentia
s a ú d e física dos trabalhadores como t a m b é m desorganiza a ou brilho de um cardume de sardinha em noite escura, pode avaliar
vinculação material (o metabolismo) entre o homem e a terra. sua profundidade e volume com boa precisão. O jangadciro do
Nordeste guarda seu ponto de pesca, no mar alto, por um complexo
" E m suma, cada avanço da agricultura capitalista é uma pro- sistema de triangulação de marcas situadas na costa (pontas de
gressão não somente na forma de explorar o trabalhador mas morro, e t c ) .
t a m b é m na arte de devastar o solo; cada progresso na arte de Andersen (1972) mostra como os pescadores artesanais no Atlân-
aumentar a fertilidade do solo por um certo tempo é t a m b é m tico Norte tratam o seu conhecer tradicional como um capital
um avanço na destruição das fontes duráveis dc fertilidade (...) escasso e raro que lhes permite não somente o acesso a bancos
A produção capitalista somente desenvolve a técnica e a com- férteis de pesca como t a m b é m lhes garante o acesso à propriedade
binação do processo de produção social esgotando simultanea- dos equipamentos de pesca. U m proprietário de rede pode abrir
mente as duas fontes dc onde jorra toda riqueza: a terra e o sociedade com um mestre de pesca experimentado, entrando este
trabalhador" {O CaptlaL Livro I , cap. XV). somente com sua experiência e seu trabalho.
Na pesca industrial, os instrumentos eletrônicos de d e t e c ç ã o
E m suma, a produção capitalista não somente se baseia na pro- de cardumes como o sonar, a ecossonda, os instrumentos sofistica-
dução desenfreada da força de trabalho, como t a m b é m na explo- dos de navegação e mesmo os computadores nos grandes barcos,
ração destrutiva das forças produtivas da natureza, rompendo, processam um volume considerável de informações necessárias
frequentemente, os complexos processos pelos quais essa indús- à captura, tornando obsoleto o longo processo de aprendizado de
tria natural produz e reproduz a própria vida. pai para filho.
() aparecimento de formas capitalistas de produção na pesca
Como resultado, a figura do mestre ou do proeiro das pequenas
significou não somente a separação do trabalhador direto dos ins-
traineiras, que ficava a noite inteira pendurado no mastro,
trumentos de trabalho e seu consequente assalariamento, mas tam-
perscrutando o oceano, recebendo vento e chuva, foi radicalmen-

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A N I O N I O CAUI.OS DIKOI.KS A CoNriíiiu:icÀo NI;<)-MAIÍXISÍA

te alterada. O mestre de um barco moderno c antes um técnico de modernos repousa muito mais na leitura das informações colhidas
informática que passa boa parte do seu tempo diante da tela do por estes instrumentos e colocados numa carta dc pesca.
sonar procurando cardumes, ou diante do rádio recebendo instru- Andersen (1972) analisa com minúcias o comportamento dos
ções do departamento de captura da empresa a que pertence a mestres que hoje passam grande parte de seu tempo na leitura do
embarcação e da qual ele mesmo é assalariado. Muitas vezes, na sonar, da ecossonda e na escuta dos outros mestres pertencentes
base das informações recolhidas pela ecossonda ou sonar, o mestre ou não à mesma empresa. O rádio receptor-transmissor fornece
da grande pesca costuma, ele mesmo, fazer sua própria carta de não só informações sobre o deslocamento de outros barcos que
pesca, indicando no mapa com coordenadas geográficas precisas procuram os mesmos cardumes, como t a m b é m permite ao mestre
os locais onde encontrou bons cardumes nas diversas estações. informar à empresa sua localização, o volume capturado, etc. Como
Se é verdade que a introdução desses equipamentos modernos a frota de pesca é verticalmente integrada ao setor de pro-
reduziu o grau de incerteza e aumentou o controle sobre as variáveis cessamento, essas informações são de grande importância. N o
naturais, nem por isso a pesca deixou de ser uma atividade de risco entanto, como bem constatou Andersen, as i n f o r m a ç õ e s são
ou sorte. Mesmo barcos de pesca modernos continuam afrontando propositalmente distorcidas pelos mestres a fim de evitar a com-
furacões e tempestades imprevistas, muitas vezes regressando ao petição de outros barcos quando a pescaria está boa. Daí, o ceti-
porto com os porões vazios. cismo com que o mestre recebe qualquer informação sobre o apa-
Além disso, o conhecimento do comportamento das espécies recimento ou não de grandes cardumes por qualquer um de seus
marinhas implica o uso de técnicas de captura adaptadas às condi- colegas, pertencentes ou não à mesma empresa. N o fundo, a arte
ções variantes. Assim, para cada nicho ecológico e mesmo para cada de um bom mestre é despistar os concorrentes quando encontram
espécie aí existente há necessidade de instrumento diferente. Às um bom pesqueiro e tentar, no meio das informações fornecidas,
vezes, mesmo para a mesma espécie, como a tainha, por exemplo, propositalmente distorcidas, saber onde o peixe foi parar quando
dependendo de sua fase de crescimento, de época de migração, o ele mesmo ainda não encontrou.
pescador necessita de conhecimentos e apetrechos de pesca N o entanto, o blefar nas informações não se explica pelo indi-
diferentes. vidualismo do pescador, mas pela teia de relações que num barco
As condições naturais muitas vezes são tão diferenciadas que liga o mestre à tripulação c à empresa. O blefar nas informações
eliminam a possibilidade de uma exploração em larga escala, atra- através do rádio não parece ser um fenómeno universal. Yoshida e
vés de uma forma de organização empresarial-capitalista, como outros (1974) afirmam que os mestres da vila de Katsumoto, no
vimos na Escandinávia. Japão, se comunicavam pelo rádio quando encontravam bons cardu-
É aí que entra o pequeno pescador, utilizando a mão-de-obra mes de peixe. Mentir pelo rádio era considerado um fato execrável
familiar com uma grande experiência de nichos ecológicos preci- para o mestre que podia perder sua reputação ao chegar ao porto.
sos, onde os apetrechos de captura através de longos anos se adap- N o entanto, o segredo dos bons pontos de pesca era característica
taram àquela pesca. Existe, e n t ã o , uma simetria entre o conheci- do pescador daquela vila. O C o m i t é de Jovens da Cooperativa do
mento acumulado e o instrumento de trabalho que, em geral, é de Matsumoto, segundo Yoshida, teria conseguido persuadir os
sua propriedade (ou familiar). pescadores mais velhos a transmitir-lhes gradualmente os segredos
Instrumentos eletrônicos como o radar e o sonar tornam cadu- de pesca que anteriormente eram passados só aos seus filhos.
cos muitos conhecimentos empiricamente acumulados durante Para um mestre, de nada valem suas capacidades profissionais
gerações. O sucesso da pesca realizada por barcos empresariais se não contar com uma tripulação experiente e que seja mais ou

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A N T O N I O CAIÍI.OS D I K G I K S A CoNiRiiuiçÃo NKO-MAIÍXLSIA

menos estável. Ele só poderá mantê-la se, usando de melhor ma- SOS poderiam aparecer como ilimitados; mas havia a limitação da
neira os equipamentos e sua experiência, conseguir boa produção. capacidade de captura, uma vez que o volume de produção estava
Quanto menos barcos usarem o pesqueiro, maior a produção e maior determinado pelo volume da força de trabalho familiar, seus co-
será a porcentagem que caberá a cada pescador. O mestre sabe nhecimentos e t a m b é m pela sua capacidade de consumo. Como
que será Julgado não só pela empresa, mas t a m b é m pela tripula- os recursos pesqueiros não se encontravam dispersos homo-
ção. Se não conseguir manter uma boa produção, ele poderá vir a geneamente por toda a área, muitas comunidades tratavam de
receber um barco mais velho, com piores condições de pesca e
proteger as áreas férteis contra a invasão de intrusos.
dificilmente ele encontrará uma boa tripulação.
Assim, na pesca costeira de Newfoundland, na Terra Nova
A introdução do maquinismo não somente propiciou a expro- (Canadá), as comunidades pesqueiras tinham, antes da década de
priação do savoir-faire tradicional dos pescadores como t a m b é m 50, um certo controle sobre as áreas de pesca que lhes pertenciam
alterou a percepção que eles tinham do ecossistema marinho. De tradicionalmente. Se um pescador de fora pusesse aí sua armadi-
um lado, os potentes barcos de pesca industrial depredaram os lha, receberia nela, como primeiro aviso, uns quilos de pedra. Na
cardumes de tal forma que alteraram a própria capacidade de re- medida em que os pescadores das diversas comunidades compra-
produção dos cardumes. De outro lado, a poluição urbano-indus-
ram motores e puderam se deslocar, facilmente c o m e ç o u uma
trial causou m u d a n ç a s físico-químicas nas águas com resultados
aguda competição pelas áreas de pesca, surgindo problemas de
imediatos sobre o comportamento das espécies.
diminuição dos cardumes.
A percepção que o pescador tem do meio ambiente varia de A medida que o peixe se transforma numa mercadoria, a per-
acordo com as formas de produção em que estão inseridos. É fun- cepção dos recursos se modifica. Instala-se o comportamento de
damental, como afirma Godelier (1974), analisar cuidadosamente rapina; os recursos são vistos como limitados, e o sucesso da pesca-
o sistema de representação que os indivíduos e os grupos fazem
ria depende da pressa com que se processa a captura. Impossibili-
do meio ambiente em que vivem. É a partir dessas representações
tados de proteger suas áreas tradicionais de pesca, já invadidas, os
mentais que eles agem sobre o meio ambiente. A percepção que
pescadores locais lançar-se-ão t a m b é m na pesca p r e d a t ó r i a .
os indivíduos t ê m do seu meio ambiente natural é formada não
Rompe-se a solidariedade grupai e o resultado final é o abandono
somente de representações mais ou menos objetivas, mas igual-
puro e simples da pequena pesca que Já não permite nem a
mente de Julgamentos de valor e de crenças. Um determinado meio
produção dos meios de subsistência nem a transformação dos pe-
ambiente pode ser lugar de moradia de poderes sobrenaturais, bons
quenos pescadores em proletários do mar que passam a participar
ou maus, que podem interferir no funcionamento da vida dos
diretamente na pilhagem dos oceanos.
homens. Daí, a necessidade dos ritos dc proteção aos pescadores
A dinâmica do capital leva não somente à exploração dos traba-
T o m b r i a n d e s e s quando i n i c i a m a pescaria, descritos por
lhadores do mar, mas t a m b é m os desrespeito das leis que regulam
Malinowski (1948) nos Argonautas do Pacífico.
o metabolismo da natureza.
Vimos em exemplos anteriores que, na pequena p r o d u ç ã o
mercantil, onde os produtores trabalham principalmente para a
produção dos meios de subsistência, existia a percepção dc que
para a sobrevivência do grupo, os recursos naturais deviam ser
utilizados com cuidado, evitando-se o desperdício. Se os peque-
nos pescadores habitavam numa região de águas férteis, os recur-

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125
A N T O N I O CAIÍI.OS OIKÍ.TKS

BlHI.IOGRAi-IA

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126 127
A N TONIO CAIÍLOS DIKGUKS FoiíMAs iJK OIÍ(;ANI/.ACÀO OA PRODUÇÃO PKSOUKIHA

à pesca artesanal e os volumosos subsídios concedidos à pesca A inserção da produção pesqueira na economia mundial não é
empresarial-capitalista pelo Decreto-lei 221, dc 1967. recente. O capitalismo mercantil deu um grande impulso a pesca,
Outros trabalhos (Diegues, 1973; 1983) se empenharam em a partir da dissolução das guildas do Mar do Norte (Herubel, 1928;
mostrara necessidade de se integrar a produção pescjueira ao qua- Boyer, 1967), assim como a intensificação da pesca transoceânica
dro da acumulação de capital e da divisão social do trabalho no realizada por barcos e companhias comerciais europeias no Cana-
Brasil. Autores como Duarte (1978), Mello (1985) e Maldonado dá. A pesca do arenque e do bacalhau realizada no Mar do Norte e
(1986) deram contribuições significativas nessa direção. N o en- no C a n a d á por empresas mercantilistas representou t a m b é m uma
tanto, a produção dos pescadores no Brasil, a relação entre essas fonte de proteína barata para o proletariado europeu emergente.
populações humanas e seu meio-ambiente marinho e de águas Na Europa, o surgimento de empresas capitalistas e a mecani-
interiores exigem um conhecimento mais sistemático e apro- zação das operações de pesca se fez com atraso em relação aos
fundado. Esse conhecimento é ainda mais necessário no momen- outros setores da produção industrial (segunda metade do século
to atual em que as comunidades de pescadores artesanais estão XIX). Os primeiros barcos de pesca a vapor somente apareceram
sob severa ameaça por causa da especulação imobiliária c da de- por volta de 1880(Herubel, 1928), aumentando consideravelmen-
gradação ambiental, provocada por um modelo económico que te a área de ação das embarcações.
exclui amplas camadas da população, sua cultura e suas formas de N o final do século XIX, inúmeros pescadores artesanais tinham-
organização. Parafraseando Marx, a expansão capitalista sobre o se tornado verdadeiros proletários de convés, trabalhando 16 ho-
espaço costeiro e marinho tem-se desenvolvido esgotando as duas ras por dia em condições duríssimas no Mar do Norte.
fontes de onde jorra a riqueza: o mar e os trabalhadores. Tunstall (1969) descreveu com detalhes a proletarização dos
O presente artigo visa levantar alguns problemas teóricos e pescadores artesanais nos portos ingleses de H u l l e Grimsby, a
metodológicos na análise da produção pesqueira c da relação so- exploração dos "aprendizes" e a perda dos instrumentos de produ-
ciedade-ecossistemas marinhos. Como tal, é antes um instrumento ção e do saber acumulado tradicionalmente. Já no início do sécu-
de trabalho que um produto acabado. lo XX surgiram os primeiros conflitos trabalhistas e os sindicatos
dos proletários do mar. A partir daí a história dos pescadores-pro-
letários e da indústria seguiu, de alguma forma,a evolução do ca-
INSKRÇÃO DA PRODIÍÇÃO PKSQUKIRA N A pitalismo, com suas c o n t r a d i ç õ e s . As empresas de pesca se
E C O N O M I A CAPITALISTA M U N D I A I , verticalizaram, integrando os setores de captura, comercialização
e b e n e f i c i a m e n t o do pescado, s u r g i n d o as empresas
A produção pesqueira é hoje, segundo dados da I'"A(), um setor já multinacionais do setor e a expansão das áreas de atuação. Nos
estabelecido na economia mundial, tanto para os países capitalis- países subdesenvolvidos, a pilhagem dos mares se acentuou a
tas como para os socialistas. partir do fim da Segunda Guerra Mundial e ficou ainda mais grave
Com uma produção média nos últimos cinco anos superior a com a entrada de frotas modernas e bem aparelhadas de alguns
100 milhões de toneladas/ano ela é uma importante fonte de pro- países socialistas.
teína animal e de emprego para trabalhadores de inúmeros países, Por outro lado, essa evolução não foi linear. E m alguns países,
sobretudo os da Ásia e África. A exportação de produtos finos do como os da Escandinávia, a chamada pesca artesanal conseguiu
mar (lagostas, c a m a r õ e s , ostras, m e x i l h õ e s , algas, atuns etc.) se manter organizada e incorporar inúmeras inovações técnicas
significa um mercado de várias centenas dc milhões de dólares. (Brox, 1971). T a m b é m em outros países subdesenvolvidos, e por

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A N I O M O CAKI.OS DII-GUKS KoRMAs DK ()K(;ANI/..\Í,:ÀO DA P K O D I CÃD P K S U I K I K A

ra/.ões distintas, a pesca artesanal se articulou com a p r o d u ç ã o buscar em Santa Catarina a força de trabalho entre os pescadores
pesqueira capitalista emergente (Diegues, 1983). artesanais de origem açoriana. Até essa época, a (]uase totalidade
N o Brasil, durante o período colonial, à exceção da pesca da da captura de pescado no Brasil era realizada pelos pescadores
baleia, as atividades pesqueiras se faziam dentro das comunida- artesanais, que foram organizados em "Colónias de Pescadores",
des indígenas e no quadro da policultura litorânea (Diegues, 1971). entidade corporativista criada pela Marinha de Guerra (1922).
A pesca se realizava t a m b é m como atividade marginal dentro dos A presença de grandes estoques pesqueiros no sul do país, como
l a t i f ú n d i o s para abastecer a mesa dos senhores-de-engenho a sardinha, a pescada etc, que podiam ser captura das em grande
(Ft)rman, 1970). Até o início do século, a pesca costeira subsistia escala, a existência de centros consumidores de importância e a
principalmente dentro da policultura litorânea. A partir de então, acumulação de capital permitiram o surgimento nessa região de
e nas cercanias centros urbanos, começou a se desenvolver a peque- uma pesca empresarial-capitalista. Esta se consolidou a partir de
na pesca voltada para a produção de mercadoria. Esse processo 1967 com a lei dos incentivos fiscais criada pela S u p e r i n t e n d ê n c i a
tem pontos em comum em várias áreas do litoral brasileiro (Mourão, do Desenvolvimento da Pesca. Inúmeras empresas foram implan-
1971; Diegues, 1971; Ivo, 1975; Furtado, 1987). Surgiu então a figura tadas para a captura de camarão e outras espécies voltadas para a
do "atravessador", especializado em produtos do mar, que passou exportação. Cerca de 94% das empresas incentivadas eram do
a ser t a m b é m um financiador da p r o d u ç ã o dos pescadores centro-sul do país (Diegues, 1983; Mello, 1985).
artesanais. A partir da Segunda Guerra Mundial, inúmeros fatores O resultado dessa política de incentivos maciços, com volumo-
alteraram a pequena pesca, sobretudo a introdução do gelo, das sa importação de tecnologia não foi animador; grande parte das
redes de náilon e do motor de popa e depois "de centro". A empresas (muitas firmas fantasmas) depois de realizarem pesados
utilização desses insumos, não mais fabricados pelos pescadores, investimentos em infra-estrutura da terra foram à falência, pois,
aumentou sua d e p e n d ê n c i a do mercado e dos "comerciantes". como resultado da sobrepesca, os recursos pesqueiros procurados
Por outro lado, em centros como o Rio de Janeiro, por volta de começaram a escassear. Uma vez dizimados os cardumes de peixes
19.30, surgiram as "traineiras", embarcações que se dedicavam à e crustáceos na região, as empresas do sul se implantaram no norte
pesca da sardinha. Eram embarcações bem maiores que as canoas do país, particularmente no Pará, repetindo aí suas práticas
motorizadas, botes e baleeiras utilizadas pela pesca artesanal. A predatórias (Penner, 1984; Loureiro, 1985; Mello, 1985).
"traina", rede de cerco de sardinha de d i m e n s õ e s apreciáveis, foi Por outro lado, a pesca artesanal, ainda que responsável por uma
introduzida por pescadores ibéricos, de, aliás, grande tradição. parcela importante da captura, recebeu recursos escassos. Além disso,
Inicialmente, as embarcações eram propriedades de armadores passou a sofrer as pressões da pesca empresarial-capitalista, cujos
a u t ó n o m o s , que participavam diretamente da pesca no regime dc barcos pescavam em regiões interditadas, dentro de baías e estuários,
"companha" (grupo de pescaria cujos membros eram remunera- causando uma enorme d e v a s t a ç ã o de recursos pesqueiros,
dos pelo sistema tradicional de "partes" sobre a produção). Com o representada sobretudo pela "fauna acompanhante" (trash fish) do
aparecimento das primeiras indústrias de beneficiamento de camarão, jogada ao mar. Inúmeros conflitos se verificaram entre as
sardinha no Rio de Janeiro, surgiram t a m b é m os "armadores", que duas formas de organização da produção. Além disso, o uso crescente
possuíam mais de uma traineira, constituindo as primeiras peque- dos ecossistemas litorâneos e costeiros, para a implantação de pólos
nas empresas de captura (Duarte, 1978). químicos, petroquímicos, minerometalúrgicos, levou a poluição dos
Quando se organizaram essas empresas, os armadores que não e s t u á r i o s , com o e m p o b r e c i m e n t o b i o l ó g i c o dos recursos
mais participavam diretamente do processo de trabalho foram tradicionalmente capturados pela pesca artesanal. A especulação

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A N T O N I O CAHI.OS DIKGUKS FORMAS DK ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO PK.SOUKIRA

imobiliária, expulsando os pescadores artesanais de suas praias, Pesca Realizada dentro dos Moldes
algumas vezes de maneira v i o l e n t a , c o n t r i b u i u para uma de Pequena Produção Mercantil
desorganização social crescente e para um empobrecimento ainda
maior das comunidades dos pequenos produtores litorâneos. A principal característica dessa forma de organização é a produção
A ação combinada desses fatores causou uma grande destrui- do valor de troca em maior ou menor intensidade; isto é, o produto
ção dos habitats naturais, reduzindo sua diversidade biológica. final, o pescado, é realizado tendo-se em vista a sua venda. Isto
Levou t a m b é m a uma redução da diversidade cultural ao longo da p r e s s u p õ e uma certa divisão social do trabalho já com produtores
costa brasileira, pois inúmeras culturas como a dos jangadeiros, mais ou menos especializados que não necessariamente partici-
^dos caiçaras e açorianos estão sob ameaça de total desorganização. pam da captura. É o caso, por exemplo, do artesão "fazedor de
canoas". Os produtores diretos, nesse caso, são independentes:
proprietários dos meios de produção, incluindo-se aí o savoir-faire
FORMAS DK PRODUÇÃO PKSQUKIRA D O tradicional empregado na localização dos cardumes. O trabalho tem
BRASIL: U M ENSAIO DK T I P O L O G I A em geral características familiares (nuclear ou extensa), a tecnologia
empregada se caracteriza pelo relativamente baixo poder de
Existem no litoral brasileiro, em particular, na costa sudeste, dis- predação e o nicho ecológico é restrito. O processo produtivo gira
tintas formas pelas quais o trabalho produtivo na pesca se organi- em torno de instrumentos de produção (redes, espinheis, canoas,
za. N ã o são estanques mas se interpenetram de forma bastante etc.) apropriados familiar ou individualmente. A unidade de
complexa. A fim de coordenar sob o ponto de vista teórico essa produção e em geral o grupo familiar ou a vizinhança, sendo a
multiplicidade de situações, estabeleceram-se três categorias que, apropriação do produto regido pelo sistema de partilha ou q u i n h ã o
acredita-se, possam ser úteis como modelos explicativos das for- (partes do produto são distribuídas aos produtores diretos). E m
mas de produção existentes ao longo do litoral brasileiro: suma, o p r i n c í p i o que norteia essa forma de o r g a n i z a ç ã o de
produção é o da mercadoria, que se converte em dinheiro através
da circulação mercadoria-dinheiro, que é utilizada para a aquisi-
Pesca de Subsistência
ção de novas mercadorias ( M - D - M ) .

Hoje é praticamente desaparecida do litoral brasileiro, com algu- Podem-se, ainda, distinguir dois subtipos:
ma ocorrência em locais distantes do Amazonas, praticada seja
dentro dos quadros das tribos indígenas ou de pequenos agrupa- 1. Produção Mercantil Simples dos Pequenos
mentos ribeirinhos. Realizada por reduzidos agrupamentos huma- Produtores Litorâneos: "os Pescadores-lavradores'*
nos, a pesca é somente uma das atividades do grupo, aliada à caça
e à pequena lavoura, t a m b é m de subsistência. E, sobretudo, uma Neste caso, a pesca continua sendo uma atividade ocasional do
economia de troca, onde só existe a produção de valores de uso. Em pequeno agricultor, restrita em geral a períodos de safra (tainha,
geral, não há a mediação da moeda nas trocas existentes e o eventual por exemplo). Aí, a propriedade típica é a família e/ou grupo de
excedente é reduzido. A unidade de trabalho pode ser a própria vizinhança. O pescado, além de poder ser salgado e secado para o
tribo ou a unidade familiar Ainda se encontram vestígios dessa consumo direto é, em geral, vendido,, constituindo uma das prin-
"economia de troca" em locais isolados, ao sul do complexo lacustre cipais fontes de dinheiro disponível para a compra de outras mer-
de Iguape-Cananéia (Mourão. 1972). cadorias essenciais. E m todos os casos, a atividade pesqueira se

132 133
A N I O N I O CAKI.OS DIKGUKS K o K M A S DK ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO PKSQUKIRA

inscreve dentro de atividades predominantemente agrícolas que cons- geral, usa aparelhos fixos de captura, tais como o cerco e o curral.
tituem a base de subsistência e organização social desses pescado- Ele não vive somente da pesca nem tem conhecimento e ex-
res (em São Paulo é a típica lavoura-catçara, centrada no plantio da periência para ir buscá-los além dos estreitos limites do meio
mandioca associada ao artesanato caseiro e à coleta de frutos do ambiente, que controla precariamente. A própria canoa é, muitas
mato). O calendário complexo das atividades económicas, apesar vezes, mais um meio de transporte que um instrumento usado na
de diversificado, tem a predominância agrícola, mesmo ao nível captura do pescado. Neste caso, é a pesca que m a n t é m o contato
mais global da cooperação no trabalho (mutirão). Todo o mundo mais intenso entre esses pequenos produtores, donos de seus
de valores (ideologia) é marcado pelas atividades do trato da terra aparelhos de pesca, com o mercado, através, em geral, do ifiter-
(agricultura itinerante). Em geral, os mesmos membros da família mediário, que em um primeiro momento é o mesmo comerciante
(parentes) constituem as unidades de trabalho que se destinam que lhes comprava o pequeno excedente agrícola, comercializado
seja ao trato da terra (em algumas de suas fases), seja à captura do em vilas ou cidades. A medida que a pesca passa a se tornar mais
pescado. Nesse sentido, o conceito-chave e o áo grupo doméstico, intensa e o excedente maior, a d e p e n d ê n c i a em r e l a ç ã o ao
entendido como um sistema de relações sociais que, baseado no intermediário (pombeiro ou atravessador) cresce proporcional-
p r i n c í p i o de r e s i d ê n c i a comum, regula e garante o processo mente. N o fundo, esse pequeno produtor não se reproduz somente
produtivo (Arquetti & S t o l e n , 1975). como pescador; é na lavoura que se definem as c o n d i ç õ e s de
N o limite, a intensidade do trabalho tem como teto o n ú m e r o reprodução mais importantes. Ele se sente mais à vontade junto à
de trabalhadores diretos existentes nos grupos. Quando há ne- casa de fazer farinha, no cultivo de seu pequeno pomar que no
cessidade de sc ampliar a capacidade p r o d u t i v a do grupo calão de seu "picaré".
d o m é s t i c o , apela-se para o " m u t i r ã o " ou ajuda de vários grupos
d o m é s t i c o s em ocasiões especiais como a colheita etc. Percebe- 2. Pequena Produção Mercantil Pesqueira ^
se já uma divisão de trabalho, pois, em geral, as mulheres não iampliada): o Pescador h rtesanal
participam dos gi^upos de pesca ou "companhas". A pesca, sendo
uma atividade complementar destinada a produzir valores de Apesar da m a n u t e n ç ã o de algumas características básicas, própri-
troca, rege-se pelo sistema de partilha ou q u i n h õ e s . Como, no as da pequena produção mercantil familiar simples, surgem alguns
entanto, os equipamentos são de baixo custo relativo, o iguali- elementos que permitem falar-se em pequena produção mercantil
tarismo na divisão do produto e bastante visível (Kottak, 1966). ampliada.
Enquanto nas pescarias mais simples (picaré, por exemplo), inter- Em primeiro lugar, o grupo doméstico, ainda que importante
v é m somente o grupo familiar, em outras mais complexas, como na atividade pesqueira, não mais constitui a base das unidades de
o cerco da tainha, podem participar várias unidades familiares. E m produção e cooperação. A medida que a pesca deixa de ser uma
geral, os instrumentos de pesca, incluindo a rede, são feitos atividade complementar para tornar-se a principal fonte de produ-
t a m b é m com base no trabalho familiar. N o que diz respeito aos ção de bens destinados a venda, à medida que surge um excedente,
instrumentos de trabalho, as embarcações, por exemplo, não são utilizado na compra de embarcações motorizadas, que exigem uma
motorizadas e o seu raio de ação é bastante limitado. A pesca é outra "tripulação", a mão-de-obra mais apropriada nem sempreéa
realizada principalmente em lagunas, baias fechadas ou dentro familiar. De acordo com as novas bases de partilha da produção
de ambientes protegidos. Nesses casos, são os peixes que introduzidas, nem sempre é interessante utilizar um parente como
"acostam"; o pescador-lavrador não vai procurá-los. Por isso, em "camarada".

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A N T O N I O CAIÍI.OS D M - G I K S FORMAS DK ORGANIZAÇÃO DA PRODI.ÇÃO PKSOUKÍRA

Em segundo lugar, a atividade pesqueira passa a ser a principal sam a financiar até o "rancho" ou a comida da família em períodos
fonte de renda, propiciando, em determinadas situações, uma maior difíceis. Desta maneira, o pescador "artesanal" passa a se repro-
produção de excedente, em cuja distribuição entre os pescadores duzir e reproduzir suas condições de existência na pesca, voltada
passam a ser introduzidos padrões menos igualitários. O "dono da fundamentalmente para o comércio. O mercado é o objetivo de
embarcação motorizada", por exemplo, passa a exigir um "quinhão sua atividade, ainda que o "balaio" ou cesto de peixe para o
maior", alegando custos maiores na m a n u t e n ç ã o da embarcação, autoconsumo separado antes da partilha constitua uma das bases
pagamento de financiamentos feitos etc. Rompe-se, então, um certo de sua sobrevivência e de sua família.
igualitarismo existente na subforma de produção anteriormente N o entanto, o excedente reduzido e irregular, a baixa capa-
descrita. C o m isto, torna-se mais nítida a diferença entre os cidade de acumulação, a d e p e n d ê n c i a total vis-a-visáo interme-
proprietários dos meios de produção e os "camaradas". As grandes diário, a propriedade dos meios de produção, o d o m í n i o de um
"companhas" ou grupos de pesca vão reduzindo o seu contingen- saber pescar baseado na experiência (e que constitui sua profissão)
te de mão-de-obra para dar lugar à "tripulações" menores, mais são elementos que caracterizam ainda "a pequena pesca mer-
especializadas. cantil".
E m terceiro lugar, esse novo tipo de pesca, explorando ambi-
entes marinhos e costeiros mais amplos, exige conhecimentos mais A Pesca Empresarial-Capitalista
específicos que os anteriormente usados pelo "pescador-lavrador".
Em quarto lugar, a propriedade dos meios e instrumentos de traba- N o caso extremo encontra-se a pesca realizada dentro dos moldes
lho na pesca passa a ser um elemento fundamental em toda a or- empresarial-capitalistas, que apresenta as seguintes característi-
ganização produtiva, ao passo que a "propriedade familiar" deixa cas fundamentais:
de ser tão importante.
E m quinto lugar, há um avanço tecnológico importante como a a) A propriedade e/ou posse dos instrumentos de produção está
introdução da embarcação motorimda, das redes de náilon, de novos nas mãos de uma empr-esacapitalista, organizada verticalmente,
processos de conservação e transporte do pescado etc. possuindo diversos setores, como o da captura, da comer-
E m sexto lugar, organiza-se todo um processo de comerciali- cialização, industrialização etc. A própria função de mestre tem
zação do pescado em que progressivamente os "atravessadores" aqui um outro significado: enquanto nas formas anteriores o
individuais vão perdendo gradativamente o terreno para as "fir- "mestre" é o próprio pescador, proprietário da embarcação, na
mas" de compra e financiamento da produção. pesca ora estudada ele se transforma num intermediário entre
E m suma, é somente nesse estágio que surge o "pescador" como a firma e os pescadores. É a própria ftiyna ou empresa que de-
tal, que passa a viver exclusiva ou quase exclusivamente da sua t é m a posse dos instrumentos de produção;
"profissão". A expulsão das terras onde viviam e a consequente h) N o limite, todas as funções do barco de pesca empresarial são
urbanização o afastam cada vez mais das atividades agrícolas de remuneradas pox salário. E m muitos casos, no entanto, certas
subsistência. Na verdade, ele não tem mais a alternativa de culti- funções como a do motorista, gelador etc, são remuneradas a
var seu pequeno pedaço de terra de onde, com a ajuda do trabalho salário enquanto outras que participam diretamente da captu-
"familiar", pode retirar sua subsistência quando o mar não lhe ra o são pelo sistema de "partes" ou participação na p r o d u ç ã o ;
permite ir ao trabalho. Passa a depender mais intensamente de c) O pescador perde uma parte considerável de seu poder de de-
agentes ou mesmo firmas compradoras do pescado, que lhe pas- cisão no que diz respeito a quanto pescar onde pescar e descar-

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137
FORMAS DK ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO PKSQUICIRA
A N I O N I O CAIÍI.OS DIKOL.KS

regar Qtc, que passa a ser da alçada de um departamento espe- outro lado, a crescente poluição dos estuários c outros ecossistemas
cializado da empresa: o departamento de captura ou operações; litorâneos e costeiros, a sobrepesca (exercida em particular pelos
d) A introdução de equipamentos modernos tais como o sonar, o arrastões da pesca empresarial-capitalista) e os conflitos entre os
radar, a ecossonda, etc, tendem a transformar bastante a fun- pescadores artesanais e a produção empresarial-capitalista t a m b é m
ção do "mestre de pesca", a mais importante na embarcação, colocam cm risco a produção e reprodução dos primeiros.
ainda que ele continue detendo um grande cabedal de conhe- M u i t o frequentemente, no entanto, há uma articulação entre a
cimento empírico sobre a localização de cardumes. O "mestre" pesca empresarial-capitalista e a artesanal, na medida em que a
começa a passar por um processo de despossesão de seu savoir- primeira se apropria da produção e da mão-dc-obra da segunda
faire, que caracteriza o "mestre artesanal"; sem, necessariamente, desorganizá-la por completo. Pode-se afir-
e) A produção em escala é implementada com barcos de tonela- mar que, em muitos casos, a pesca empresarial-capitalista tem inte-
gem considerável que exigem ampla infra-estrutura em terra resse na permanência da produção artesanal, pois a compra direta
etc; e dos produtos desta última pode diminuir seus custos de produção
em relação ao uso de sua própria frota.
f) A atividade é voltada totalmente para a produção de mercado-
ria sendo que a reposição da força de trabalho se realiza total- O empobrecimento rápido e crescente dos ecossistemas litorâ-
mente através do trabalho assalariado ou equivalente. neos e costeiros, e a consequente diminuição dos recursos pes-
queiros disponíveis, causado pela poluição c degradação ambiental
Trata-se, evidentemente, de modelos teóricos, instrumentos de e a expulsão crescente dos pequenos pescadores de suas praias são
análise que precisam ser operacionalizados quando se tratar de tão graves em muitas regiões que se pode falar de uma verdadeira
empregá-los empiricamente. destruição das comunidades e culturas litorâneas. Em um outro
trabalho, as perspectivas de sobrevivência das comunidades de
pescadores artesanais do Brasil são analisadas (Diegues, 1988).
O PROIÍLKMA DA " T R A N S I Ç Ã O " DI- U M A

F O R M A D K ORGANIZAÇÃO A OUTRA
O CoNCKiTO DK FORMA DK ORGANIZAÇÃO

SOCIAL DA PRODUÇÃO ( M O D O DK I-UODUÇÀO)


Ao se examinar uma formação social historicamente existente,
como a brasileira, pode-se perceber que não ha necessariamente A P L I C A D O À PKSCA

uma evolução de uma forma de organização para a outra. Elas coe-


xistem c o n f l i t i v a m e n t e apesar de que, nessa a r t i c u l a ç ã o , a As formas distintas de organização social da produção que existem
dominânáa é exercida pela forma em que o desenvolvimento das num determinado espaço litorâneo são consideradas manifesta-
forças produtivas é maior: a forma de produção capitalista. ções concretas de modos de produção, que se encontram combi-
Ha efetivamente processos que inviabilizam em maior ou menor nadas; e cuja articulação e existência histórica são apreendidas pelo
grau a pequena produção mercantil: a produção dos pescadores- conceito de formação social.
agricuítores e a dos pescadores artesanais. Fatores tais como a Modo dc produção, um objeto abstrato formal, e entendido com
expulsão dos pescadores-agricultores de suas terras nas praias pela um sistema que compreende várias instâncias (económica, política
especulação imobiliária e pela urbanização desorganizam, no Brasil, e a ideológica) com dominância em última instância de sua base
de forma acelerada, as atividades desses pequenos produtores. De económica. Alguns elementos teóricos são considerados fundamen-

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A N T O N I O CAKI.OS Dii:(;i;i-:s F O U M A S D K OlíGANIZAÇÃO D A P R O D L C Ã O P K S U U K I U A

tais para a apreensão do conceito de modo de produção, tais como produtores litorâneos e costeiros para as cidades, sua pauperização,
o áedominânciaearticulação. Para Poulantzas (1968), a dominância queda de níveis de vida e de sua capacidade produtiva, perda da
pode ser exercida por diferentes instâncias mas que, em última posse da terra, introdução de novos padrões de consumo e domi-
análise, e determinada pelo económico. Já para Balibar (1973) e nação. E dentro dessa gama de processos de " m u d a n ç a social", e
Harnecker (1974), o núcleo estruturai dc um modo de produção necessário se estudar a reação dos diversos grupos sociais nela
não é dado pela articulação entre as diferentes instâncias e sim envolvidos. Por fim, quais os impactos de uma sobre-exploração
pelas relações de produção existentes, que determinam qual instância de recursos naturais sobre os ecossistemas lacustres e costeiros.
tem o papel dominante numa dada formação social. Post (1974) Ora, de uma maneira geral, tudo aquilo que vem alterar os pa-
critica a utilização da rotação do papel dominante das várias drões existentes de transformação da natureza e que pode i m p l i -
instâncias, utilizado por Althusser (1973), afirmando que a prática car uma alteração de relações sociais de produção tem sido tratado
económica ganha seu sentido pela estrutura das outras práticas. Já em termos de tipos de mercado (Bohanan & Dalton, 1968),
o conceito de articulação diz respeito a existência de combinação, " m o d e r n i z a ç ã o " , inovação tecnológica, resistência à m u d a n ç a
numa formação social historicamente determinada de vários modos (Foster, 1963), perdendo-se as descrições em constatações e m p í -
de produção (Poulantzas, op. cit.), a dominância de um sobre os ricas, cujo aporte às reais explicações é reduzido. Parece, no en-
demais. A existência, dentro de uma formação social de modos de tanto, que esses diversos fenómenos constatáveis ao nível empírico
p r o d u ç ã o , de "idades" e ciclos da r e p r o d u ç ã o diferentes foi só encontram explicação dentro de marcos teóricos, tais como for-
estudada entre outros por Barel (1973), Godelier (1973) e mas de organização da produção, sua existência contraditória, seu
Meillassoux (1972). As características específicas de que se reves- contato com outras formas, seu desenvolvimento e dissolução.
te a articulação entre os modos distintos de produção e reprodu- Alguns temas ganham nesse contexto uma importância parti-
ção, os conceitos de "excedente", sobreproduto, formas de apro- cular. Entre eles, a pequena produção simples de mercadoria
priação e repercussão na formação de classes sociais são t a m b é m (explorado por Marx em Un Chapitre Inêdit du Capital, 1971) suas
analisadas por Mandel (1964) e Samir Amin (1973). A metodologia características básicas, o surgimento do modo de produção capita-
tanto para a identificação dos vários modos de produtos quanto lista e sua articulação com o primeiro. As dificuldades na identifica-
para sua articulação constitui ainda hoje um "canteiro de obras" ção histórica dessas diferentes formas de organização da produção
(Godelier, 1973). são apontadas por Bradby (1972). Este autor realça as dificuldades
Dentro deste contexto, é necessário analisar-se as formas espe- na identificação das características das formas de produção p r é -
cíficas pelas quais há a apropriação material dos recursos naturais capitalistas, antes do contato com o capitalismo, desde que, no pro-
pesqueiros, através da atividade humana, utilizando-se determi- cesso de articulação, as estruturas básicas daquelas Já se encon-
nados instrumentos de trabalho, e t a m b é m os objetivos dessa tram "deformadas" por este.
apropriação e através de que processos se efetuam. Deve-se anali- N o Brasil, essas formas distintas de organização da produção
sar a apropriação social, isto é, como através das relaçóes sociais de podem ser analisadas a partir da existência de modelos diferenci-
produção esses recursos são apropriados pelos diversos agentes de ados aqui denominados: a "pesca em sociedade" ou "companha",
p r o d u ç ã o . Mais ainda, interessa uma explicação coerente dos própria das relações de produção existentes entre os pequenos
diferentes f e n ó m e n o s , tais como: a articulação entre a pesca pescadores ("camaradas" ou "companheiros"); e o dos "embarca-
realizada nos moldes de pequena produção mercantil e a pesca dos", tripulantes de barcos pertencentes a "armadores" ou "em-
empresarial-capitalista, a migração das populações de pequenos presas de pesca". Nesse aspecto, devem ser considerados os vá-

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A N I O N I O CARLOS DIKGUKS I ' ' o i i M A s OK ORGANIZAÇÃO DA PRODLÇÃO PKSOLKIRA

rios processos de "passagem" de uma forma à outra, ou seja, a relação entre o homem e à natureza, que hoje ganham importância
"despossessão" dos meios de produção dos meios de produção do no c o n c e i t o de ecologia. T e ó r i c o s marxistas se r e f e r e m
pequeno pescador (não só de seus instrumentos de trabalho, mas freqiientemente a natureza como um "objeto de trabalho homo-
t a m b é m do seu "conhecer" e saber-fazer), as modalidades do exce- g é n e o e indiferenciado" ao analisar os "fatos naturais" (terra, mar,
dente e sua apropriação pelos não-trabalhadores. Há necessidade etc). Apesar da distinção clássica feita por Marx (entre objeto de
de se analisar a possibilidade histórica do surgimento, no Brasil, trabalho e instrumento de produção), a natureza quase sempre e
dos proletários de pesca, "homens do convés", como aconteceu analisada como uma entidade estática. N o capitalismo, ao analisar
em países capitalistas centrais, dentro do processo de subordina- a "matéria-prima" para a grande indústria, os elementos naturais
ção do trabalho ao capital. podem aparecer como um "fator de produção" inerte. N o entanto,
a situação é distinta quando na forma de organização social de
produção, caracterizada pelo reduzido desenvolvimento das for-
ECOSSISTKMAS M A U I N H O S K ças produtivas, o homem vive quase ao sabor dos ciclos de produ-
FORMAS DI- P R O D U Ç Ã O N A PKSCA ção e reprodução natural (como é o caso na captura dos cardumes
de peixes). Daí a importância do conceito de Gutelman (1974) de
Nessa discussão, ganha importância a noção do espaço litorâneo, foiças produtivas naturais relacionadas às forças produtivas sociais
considerado não somente em seus aspectos físicos, mas como um ou do trabalho (Marx, 1968). Ainda segundo Gutelman (op. cit.),
conjunto de condições e processos naturais que influenciam as em sociedades de pouco desenvolvimento das forças produtivas,
relações entre o homem e a natureza. os processos naturais (produção de biomassa e suas característi-
Afirmando a importância dessas condições naturais não se quer cas) ganham uma importância capital. É do controle deles e não
dizer que sejam elas elementos determinantes na formação e trans- dos instrumentos de trabalho que o capital separa o produtor dire-
formações de formas de se organizar a produção. Apesar disso, to na constituição do proletariado. N o aprofundamento da discus-
somente a análise concreta pode esclarecer como, por exemplo, são das relações entre o homem e a natureza, ganham importância
em determinadas condições ecológicas, na apropriação de deter- os trabalhos de Moscovici (1972; 1974), de Sachs (1974), Galtung
minados recursos naturais, não aparecem, /// loco, formas capitalis- (1974), Harvey (1974 ) Bourgoignie (1972) e Barrau (1975).
tas de organização da produção, apesar de a apropriação fmal do Decorrente desta postura, coloca-se o debate em termos de
produto ser realizada por empresas capitalistas (a produção é reali- percepção que cada grupo ou classe social tem do "meio ambien-
zada por pequenas unidades familiares em regime de produção te" (Godelier, 1974), segundo os objetivos da produção, bem como
mercantil simples, mas a comercialização do produto e realizada o conceito de taxa de exploração não só de mão-de-obra, mas tam-
por empresas capitalistas de fora da área). b é m da natureza dentro da forma capitalista de produção (Skibberg,
A articulação de formas diferentes de organização da produ- 1974). Diante desses elementos, os processos físico-químicos que
ção, a dominância de uma sobre as outras, sua realização histórica agem independentemente da ação humana serão provisoriamente
diferenciada a nível nacional e/ou regional é um elemento de chamados de "forças produtivas da natureza".
base na interpretação das chamadas diferenças regionais que apre- F sobre esses processos, em diversos níveis de elaboração do
senta o setor pesqueiro. produto, que o produtor pesqueiro interfere, atrayés dos outros
A pesca, enquanto apropriação material e social dc recursos elementos que formam os meios de produção (instrumentos de
renováveis e móveis coloca problemas relevantes na análise da trabalho, etc). Daí, conclui-se que o homem não age sobre um

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A N T O N I O ('ARI.OS DII-:GI:KS FORMAS OK ORGANIZAÇÃO I M PRODUÇÃO PKSQUKIRA

"objeto de trabalho" estático, mas sempre um complexo biológico, tre a pesca artesanal, como forma de produção mercantil, e a pesca
regido por leis e processos alheios à vontade humana. Sobre ele o empresarial, como produção capitalista.
homem pode interferir, introduzir novas forças até então exteriores Apontou-se necessidade de pesquisas mais aprofundadas e
ao meio ambiente considerado (cultivo artificial de ostras, por interdisciplinares que estudem as relações entre o homem/socie-
exemplo). dade e o meio ambiente marinho. Essas pesquisas servirão tam-
T ê m - s e , pois, dois sistemas de produção que se articulam: o b é m para desmistificar a visão idílica que muitos setores urbanos
social e o natural. A esse ultimo, dar-se-á o nome de ecossistema t ê m da vida no mar. Os ecossistemas costeiros e marinhos não são
natural, entendido como um sistema de elementos biótipos e somente ambientais de grande beleza cénica, são o palco onde os
abióticos, que m a n t é m entre si uma serie complexa de relaçóes homens lutam pela sobrevivência, retirando bens e serviços em
que lhe permite se reproduzir segundo critérios naturais (Deutsch, situações de tensões e riscos de vida. São t a m b é m espaços por onde
1974). São dois sistemas irredutíveis, mas articulados entre si. As- se estendem gradativamente as relações sociais de p r o d u ç ã o
sim, quando o desenvolvimento das forças produtivas sociais é capitalista tanto pesqueira como industrial. A p e n e t r a ç ã o do
pequeno, o homem passa a viverão ritmo das forças produtivas da capitalismo nessas áreas tem acarretado no Brasil um crescente
natureza. A medida que aumenta o nível de desenvolvimento das esgotamento das fontes de onde jorram as riquezas: meio ambiente
forças produtivas, o homem consegue um controle maior sobre os e força-de-trabalho.
recursos naturais, interferindo muitas vezes desastrosamente so-
bre os ciclos de reprodução dos ecossistemas naturais.

CONC;LU.SÒKS

O presente trabalho não objetivou uma análise extensiva da pro-


dução pesqueira no Brasil, e sim colocar alguns temas básicos de
pesquisa visando integrá-la no quadro mais abrangente da produ-
ção capitalista. Parte-se do pressuposto que "pesca artesanal" e BIBLIOGRAFIA
"pesca empresarial-capitalista" não se definem simplesmente pelos
aspectos tecnológicos e de mercado, mas fundamentalmente por
formas diferenciadas de organização da produção. Pretendeu-se Althusser, L . & Balibar 1973. Lirele Capital. Paris, CoIIcction Maspero.
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N
_
" A A N Á i . i S i - DA P R O D U Ç Ã O pesqueifa do litoral brasileiro, e
mais especificamente do Sudeste os agentes da produção
(os pescadores) se relacionam entre si e com as condições obje-
tivas da produção, segundo certas formas ou modelos que ganham
uma existência histórica.
As formas de organização social da p r o d u ç ã o são definidas a
partir das relações de produção existentes em cada uma delas. A
sua distribuição no espaço litorâneo é regulada pela e x p a n s ã o do
processo de p r o d u ç ã o de mercadorias, e, em última análise, com
o avanço do capital nesse setor particular da divisão social da pro-
dução, que é a pesca. As categorias utilizadas devem ser conside-
radas antes como instrumentos de trabalho destinados a explicar
processos de m u d a n ç a e não como modelos estáticos e univer-

Publicadoorigimilmcntc cm Pescadores, Camponesese Trabalhadores do Mar. São


Paulo, Ática, 198.1

150
151
A N TONIO CAUI.OS DIKGUKS A P K O I K N A P l í O D U Ç À O M K U C A N TM,

sais. Eles foram construídos a partir dc um setor determinado, o 8) espaços de captura;


pesqueiro, e de uma realidade específica, a do Litoral Sudeste bra- 9) fonte de conhecimentos na pesca;
sileiro. 10) percepções do espaço de trabalho;
11) produção de excedente e acumulação capitalista;
12) intermediário na comercialização;
As !-c)RMAs ]•: T I P O S DI- PRODUÇÃO PI-SQUKIRA 13) divisão de trabalho;
14) pesca e outras atividades;
Ainda que em dados momentos históricos uma dessas formas seja 15) estrutura social;
a dominante, a mais dinâmica, elas coexistem e se articulam. Ten- 16) papel do Estado.
do-se em vista as diversas combinações dos fatores produtivos em
relações sociais de produção, constatamos que elas assumem for- Trabalharemos fundamentalmente com três categorias que, a
mas possíveis e algumas sub-formas: (a) a produção pesqueira de nosso ver, cobrem as situações existentes na pesca do Litoral Su-
auto-subsistência ou primitiva; (b) a produção pesqueira realizada deste brasileiro.
dentro dos moldes da pequena produção mercantil; (c) a produção
pesqueira capitalista. /. Pesca de Auto-subsistência ou Primitiva
N o interior da pequena produção mercantil, identificamos ain-
da duas sub-formas: (a) a pequena produção familiar dos pescado- Hoje praticamente desaparecida do litoral brasileiro, com alguma
res-lavradores; e (b) a pequena produção dos pescadores artesanais. ocorrência em locais distantes do Amazonas, praticada seja dentro
N o interior da produção pesqueira capitalista encontramos duas dos quadros da organização social das tribos i n d í g e n a s ou de
sub-formas: a produção dos armadores de pesca e a produção das pequenos agrupamentos ribeirinhos. Realizada por reduzidos agru-
empresas de pesca. pamentos humanos, a pesca é somente uma das atividades do gru-
Na Tabela 1, estão indicadas as principais características de cada po, aliada à caça e à pequena lavoura t a m b é m de subsistência. É
uma das formas e sub-formas da organização social da produção. realizada sobretudo dentro de uma economia onde só existe a pro-
Nesta tabela, foram usados alguns conceitos ou instrumentos de dução de valores de uso. Em nenhum momento há a mediação da
trabalho que permitem a produção de novos conhecimentos no moeda nas trocas existentes e o eventual excedente produzido é
d o m í n i o da análise das formas de organização da produção exis- utilizado dentro do princípio de reciprocidade ou de p a d r õ e s
tente na atividade pesqueira. redistributivos. A unidade de trabalho pode ser a própria tribo ou a
As variáveis selecionadas para cada uma das formas de produ- unidade familian
ção são:
1) objetivos da produção pesqueira; 2. Pesca Realizada dentro dos Moldes
2) As relações sociais de produção; de Pequena Produção Mercantil
3) os critérios de alocação de recursos e fatores de produção;
4) a remuneração da força de trabalho; A principal característica dessa forma de organização é a produção
5) a unidade de trabalho; do valor de troca em maior ou menor intensidade, isto é, o produto
6) os instrumentos de produção; final, o pescado, é realizado tendo-se em vista a sua venda. Isto
7) propriedade dos instrumentos de produção; pressupõe uma certa divisão social do trabalho, em que, mesmo ao

152 153
TABELA L F O I Í M A S DI- O R G A N I Z A Ç Ã O I ) \O N A P K S C A

PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL SIMPLES PRODUÇÃO CAPITALISTA N A PESCA

FATORES PESCA DE P R O D U Ç Ã O DOS P R O D U Ç Ã O DOS P R O D U Ç Ã O DOS P R O D U Ç Ã O DAS


VARIÁVEIS AUTO-SUBSISTÊNCIA PESCADORES-UVRADORES PESCADORES ARTESANAIS ARMADORES DE PESCA EMPRESAS DE PESCA

1. Objetivos d:i Aulo-subsistcncia grupai C o n s u m o f a m i l i a r maior Venda maior q u e Produção t o t a l c o n v e r t i d a PriKlução total convertida
prudiiçãu pcítqiicira r)iic v e n d a auto-ctmsumo e m mercadoria e m mercadoria

Z Rclaçucs suciais P r o p r i e d a d e g r u p a i dos Propriedade familiar dos Propriedade i n d i v i d u a l dos A r m a d o r proprietário d o s E m p r e s a proprietária dos
dc priKiiição meios d c produção i n s t r u m e n t o s d e produção i n s t r u m e n t o s d c produção i n s t r u m e n t o s d c prtxliição instrumentos

i Critcriodcalocaçãodus Necessidades M a r s i n a l m e n t c o mercado Parcialmente o mercado de Principalmente mercado M e r c a d o alocando


faturcs d c produção comunitárias/tradição d e fatores d c produção fatores d c produção d c fatores d c produção recursos

4. Rcmuncniçao da força Satisfação d c Parceria; retribuição Sistema d e partes sobre Remuneração Salário mais proporção da
d c trabalho necessidades sociais in èiatum o valor da captura jKir partes captura

5. U n i d a d e d c t r a b a l h o TrÍb(i/cia/comunidade G r u p o doméstico sem G r u i n ) d c pescadores G r u p o d e embarcados G r a n d e especialização


especialização independentes c o m divisão d c t r a b a l h o . d c tarefas

ti. Instnimcntosdc Braço, ou extensão .•\parelhos fixos: l i n h a ; p e - .apetrechos .Aparelhos de [Ksea G r a n d e mecanização dos
produçíl" i m e d i a t a deste quenas redes d c e m a l h a r semi mecanizados mecanizados c móveis aparelhos d c pesca

7, Propriedade dos Cxjmunitária Kamiliar Propriedade .Armador absentcista. .A empresa é a proprietá-


apetrechos individual/ familiar ria d c várias embarcações

S. Capacidade d c prcdaçSo/ Mínima Reduzida .Média Grande M u i t o grande


escala d c produção

9. Espaço c captura Rius; enseadas Rios; áreas estuarinas .•\reas costeiras Plataforma continental L i m i t e s da p l a t a f o r m a
c o n t i n e n t a l e o oceano

la Propulsão das Embarcações R e m o o u vela P e q u e n a s embarcações Barcos a m o t o r G r a n d e s embarcações c


embarcações usadas r a r a m e n t e motorizadas (Hl à vela c e n t r a l com a m v c s Rrande a u t o n o m i a

PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL SIMPLES PRODUÇÃO CAPITALISTA NA PESCA

FATORES PESCA DE P R O D U Ç Ã O DOS P R O D U Ç Ã O DOS P R O D U Ç Ã O DOS P R O D U Ç Ã O DAS


VARIÁVEIS AUTO-SUBSIfTÈNClA PESCADORES-LAVRADORES PESCADORES ARTESANAIS ARMADORES DE PESCA EMPRESAS DE PESCA

11. T i p o s d c conscr\'aç5o I n c x i s t c n t c : o pescado é Pouco u t i l i z a d o . E m G e l o c m pedras; salga Gelo ou resfriamento Resfriamento ou


d o pescado c o n s u m i d o de i m e d i a t o geral, é a salga/ secagem a bordo congelamento a bordo

12. A u t o n o m i a das Embarcações L i m i t a d a a algumas horas A l g u m a s horas n o m a r .Autonomia n o mar Grande autonomia
embarcações usadas raramente d u r a n t e alguns dias n o mar

13. Identificação dos Visual/auditiva Visual/auditiva Visual A p a r e l h o s d c detecção .Aparelhos eletrônicos


cardumes

14. E o n t c dos c o n h e c i - Tradição Tradição Tradição T r e i n a m e n t o f o r m a l para Treinamento formai


m e n t o s na pesca algumas funções generalizado

15. Mercado I n e x i s t e n t e ; sistema d c Periférico Periférico, mas i m p o r t a n t e Central, determinando a Central c determinante
trocas/rcciprt>cidade alocação dos recursos

16. Percepção d o espaço M a r f a z e n d o parte M a r fazendo Mar percebido como Distanciamento entre a Distanciamento
marítimo da terra parte da terra e n t i d a d e própria vida d o mar e a vida da terra mar/terra

17. Produção de excedente Inexistente M u i t o reduzida Casual Moderada Intensa


c acumulação capitalista

18. Intcrmcdiáriona Inexistente Pequeno comerciante Comerciante E m p r e s a especializada no E m p r e s a d e pesca t e m


comercialização agrícxila especializado na pesca c o m e r c i o d c pescado setor d c comercialização

19. E s t r u t u r a social Igualitária Homogeneidade S u r g i m e n t o d c u m estrato l-ormação d e Distinção d c


de pescadores artesanais estratos sociais classes s«>ciais

20. Papel d o Estado Difusão Presença descontínua Organização d o s Presença d o Estado E o r t e presença d o
ser\iços d e terra c m ser^•iços de apoio Esiado(subsídios)

21. Organização social Inexistente Compadrio Compadrio/Colónia Sindicato/Colónia Sindicato


c conflitos d c Pescadores d e Pescadores
A N TONIO (>AIÍI,OS D l K O L . K S
A PKQIJKNA PKODLÇÃO M K R O A N T I I .

nível da pesca, já há funções mais ou menos especializadas que


mo sendo agricultura itinerante). E m geral, os mesmos mem-
não necessariamente participam da captura; tal é o caso, por exem-
bros da família (parentes) constituem as unidades de trabalho,
plo, do artesão fazedor de canoas; os produtores diretos, nesse caso,
que se destinam seja ao trato da terra (em algumas de suas fases),
são independentes, proprietários dos meios de produção, incluin-
seja à captura do pescado. Nesse sentido, o conceito-chave é
do aí o conhecimento e práticas tradicionais empregados na locali-
do grupo doméstico, entendido como um sistema de relações
zação dos cardumes. O processo de trabalho se organiza dentro da
sociais que, baseado no princípio de residência comum, regula
unidade familiar (nuclear ou extensa) ou grupo de vizinhança; a
e garante o processo produtivo. N o limite, a intensidade do
tecnologia se caracteriza pelo baixo poder de predação, e o nicho
trabalho tem como teto o n ú m e r o de trabalhadores diretos exis-
ecológico explorado é relativamente restrito. A captura do pescado
tentes nos grupos domésticos. Quando há necessidade de se
se realiza com instrumentos de produção (redes, espinheis, canoas,
ampliar a capacidade produtiva do grupo doméstico apela-se
etc), de propriedade familiar ou individual, sendo a apropriação
para o mutirão, ou ajuda de vários grupos domésticos em ocasi-
do produto regida pelo sistema de partilha ou q u i n h ã o (partes do
ões especiais, tais como a colheita, etc. A divisão de trabalho é
produto são distribuídas aos produtores diretos). E m suma, o
reduzida e se dá por critérios de sexo e idade, cabendo às
princípio que organiza essa forma de produção é o da mercadoria,
mulheres uma parte maior nos trabalhos caseiros e de roça,
ainda que a mercantilização da produção varie segundo os subtipos
enquanto que os homens, de maneira ocasional, integram as
que apresentamos abaixo:
companhas de pesca. A pesca é uma atividade complementar
destinada a produzir valores de troca. A r e m u n e r a ç ã o da força
a) A forma de produção mercantil simples do pequeno produtor de trabalho se dá pelo sistema de partilha ou q u i n h õ e s identi-
litorâneo: a produção dos pescadores-lavradores. Nesse caso, a ficado como parceria. Como, no entanto, os equipamentos são
pesca continua sendo uma atividade ocasional do pequeno de baixo custo relativo, o igualitarismo na divisão do produto
agricultor, restrita em geral a períodos de safra (tainha, por exem- é bastante visível. Enquanto que nas pescarias mais simples
plo). Aí a propriedade típica de produção é a doméstica (famí- (picaré, por exemplo) i n t e r v é m somente o grupo familiar, em
lia e/ou grupo de vizinhança), e normalmente o pescado, além outras mais complexas, como o cerco da tainha, podem parti-
de salgado e secado para o consumo direto é, em geral, vendido cipar várias unidades familiares. Os instrumentos de trabalho,
e constitui uma das principais fontes de dinheiro disponível especialmente as e m b a r c a ç õ e s , por exemplo, não são meca-
para a compra de algumas mercadorias essenciais. E m todos os nizados ou motorizados, e o seu raio de ação, bastante limitado.
casos, a atividade pesqueira se inscreve dentro de atividades A pesca é realizada principalmente em lagunas, baías fecha-
p r e d o m i n a n t e m e n t e agrícolas que constituem a base de das, ou dentro de ambientes protegidos, tais como recifes. Nes-
subsistência e organização social desses pescadores (em São ses casos, são os peixes que acostam; o pescador-lavrador não
Paulo, é a típica lavoura caiçara, centrada no plantio da man- vai procurá-los em alto-mar. Por isso, em geral usa aparelhos
dioca, mas que associa, além da pesca, o artesanato caseiro, a fixos de captura, tais como o cerco e o curral.
coleta de frutos do mato, como palmito, e t c ) . O calendário Ele não vive somente da pesca, nem tem conhecimento e ex-
complexo das atividades económicas, apesar de diversificado, periência para ir buscar os peixes além dos estreitos limites do
tem a predominância agrícola, mesmo ao nível mais global da meio ambiente marinho que utiliza. A própria canoa é muitas
cooperação no trabalho (mutirão). Todo o mundo de valores vezes mais um meio de transporte que um instrumento usado
(ideologia) é marcado pelas atividades do trato da terra (mes- na captura do pescado. Nesse caso, é a pesca que m a n t é m o

156
157
A N T O N I Í ) CARI.OS DIKGLKS A PKOLKNA PROOLÇÃO MKRCANin.

contato mais intenso desses pequenos produtores, donos de seus o grupo doméstico, ainda que importante na atividade pes-
aparelhos de pesca, com o mercado, através, em geral, do inter- queira, não constitui mais a base das unidades de produção e
mediário, que em um primeiro momento é o mesmo comerci- cooperação. Á medida que a pesca deixa de ser uma atividade
ante que lhes comprava o pequeno excedente agrícola, complementar para tornar-se a principal fonte de produção de
comercializado em vilas ou cidades. A medida que a pesca pas- bens destinados à venda; à medida que surge um excedente
sa a sc tomar mais intensa c o excedente maior, a d e p e n d ê n c i a utilizado na compra de embarcações motorizadas que exigem
em relação ao intermediário ("pombeiro" ou "atravessador") certos conhecimentos, a mão-de-obra mais apropriada nem
cresce proporcionalmente. N o fundo, esse pequeno produtor sempre é a familiar. De acordo com as novas bases de partilha
não trabalha somente como pescador; é na lavoura que se defi- da produção introduzidas, nem sempre é interessante utilizar
nem ainda as condições de sua produção: a terra, é o meio de um parente como camarada.
produção mais importante. Ele se sente m a i s à vontade junto à A atividade pesqueira passa a ser a principal fonte de renda,
casa de fazer farinha, no cultivo de seu pequeno pomar, que no propiciando, em determinadas situações, uma maior produção
calão do seu picaré. de excedente, em cuja distribuição entre os pescadores pas-
Na medida em que as atividades de produção e consumo se sam a ser introduzidos padrões menos igualitários. O dono da
realizam dentro da unidade familiar, que t a m b é m d e t é m os embarcação motorizada, por exemplo, passa a exigir um qui-
meios de produção, e na medida em que inexiste uma acumu- nhão maior da produção, alegando custos maiores na manuten-
lação de capital contínua, podemos dizer que estamos em ção da embarcação, pagamento de financiamentos feitos, etc.
presença de uma unidade camponesa de produção. Rompe-se então um certo igualitarismo existente na subforma
A pesca dos pescadores-lavradores está em franco declínio na de produção anteriormente descrita. Com isto, torna-se mais
maioria das praias do Sudeste, causado pela migração desses nítida a diferença entre os proprietários dos meios de produção
produtores para os centros urbanos. Esse processo, iniciado já e os camaradas. As grandes companhas, ou grupos de pesca, vão
na d é c a d a de 60 nessa região, foi acelerado pelo estabeleci- reduzindo o seu contingente de mão-de-obra para dar lugar a
mento de áreas protegidas, como parques e reservas, onde a tripulações menores, mais especializadas, que operam geralmen-
agricultura tradicional e o extrativismo vegetal foram proibi- te com embarcações motorizadas. Surgem então funções antes
dos. Essa forma ainda persiste em alguns lugares do litoral sul inexistentes nas embarcações não-motorizadas, como o motorista,
de São Paulo e no litoral paranaense, bem como é ainda o gelador, etc, ao mesmo tempo em que desaparecem outras.
frequente na Amazónia. Já na década dc 70, mais de 65% dos Esse novo tipo de pesca, explorando ambientes marinhos e cos-
pescadores da região sudeste-sul viviam nas áreas urbanas e teiros mais amplos, exige conhecimentos mais específicos que
sub-urbanas, ainda que dependendo quase inteiramente da os anteriormente usados pelo pescador-lavrador.
pesca. Essa proporção aumentou consideravelmente nas d é - A propriedade individual dos meios e instrumentos de traba-
cadas seguintes. lho na pesca passa a ser um elemento fundamental em toda a
b) A pequena produção mercantd dos pescadores artesanais. Apesar da organização produtiva, ao passo que a propriedade familiar deixa
m a n u t e n ç ã o de algumas características básicas próprias da de ser tão importante.
pequena produção mercantil familiar simples, surgem alguns Há um avanço tecnológico importante, como a introdução da
elementos que nos permitem falar em pequena produção mer- embarcação motorizada, das redes de náilon, de novos proces-
cantil ampliada. sos de conservação e transporte do pescado, etc.

158 159
A N T O N I O CAIÍI.OS DIKGUKS A F K O L K N A PKOIJUÇAO M K U C A N I H .

Organiza-se todo um processo de comercialização do pescado, manual. Apesar de os embarcados não serem proprietários dos
em que progressivamente os atravessadores individuais vão per- instrmnentos dc produção, a remuneração da força de trabalho,
dendo gradativamente o terreno para as firmas de compra e para a maioria das funções, se faz pelo sistema de partes,
financiamento da produção. b) A produção empresarial-capitalista. É através deste subtipo que
Em suma, é somente nesse estágio que surge o pescador a pesca capitalista atinge seu grau mais elaborado. Suas princi-
artesanal como tal, que passa a viver exclusiva ou quase exclu- pais características são:
sivamente da sua profissão. O pescador artesanal passa a viver - A propriedade dos instrumentos de produção está nas mãos
e a reproduzir suas condições de existência na pesca, voltada de imia empresa, organizada em diversos setores e integra-
fundamentalmente para o comércio. O mercado é o objetivo da verticalmente: o setor de captura, a industrialização e a
de sua atividade, ainda que o balaio ou cesto de peixe, reli- comercialização;
giosamente separado antes da partilha, constitua uma das ba- - O setor dc captura, cm terra, passa a ter uma imiiortância
ses de sua sobrevivência e de sua família. fundamental, limitando o poder dc decisão do mestre no
N o entanto, o excedente reduzido e irregular, a baixa capaci- que diz resi^eito a (pranto pescar, onde descarregar, etc;
dade de acumulação, a d e p e n d ê n c i a total vis-à-vis ao interme- - O próprio processo de captura passa a ser controlado em
diário, a propriedade dos meios de produção, o domínio de um terra pelo sistema de rádio;
saber pescar baseado na experiência (e que constitui sua pro- - O regime dc salário mensal ou semanal torna-se o mais
fissão), são elementos que caracterizam ainda a pequena pro- generalizado, ainda que, em alguns casos, os pescadores
dução mercantil. recebam uma porcentagem sobre o valor global da pro-
dução;
3. Pesca Realizada dentro da Forma de - A divisão de tarefas atinge um grau importante, com a in-
Organização Social Capitalista da Produção trodução das máquinas para lançar e recolher a rede, de be-
neficiar o pescado a bordo, etc;
Na p r o d u ç ã o capitalista da pesca, podemos encontrar dois - Atividade voltada totalmente para a produção de mercado-
subtipos: rias: a reprodução dos meios e agentes dc produção passa
pela extração da mais-valia dos trabalhadores do mar, que
a) A prod ução dos armadores, proprietários de mais de uma embarca- não mais possuem o conhecer e as práticas tradicionais t|ue
ção. Os armadores não participam das atividades da captura, à caracterizavam o pescador artesanal, possuidor dc uma pro-
frente das quais colocam um preposto: o mestre. Os embarcados fissão ou ofício.
são tripulantes engajados para as diversas tarefas da pesca. E m
relação às formas de produção anteriormente descritas, há
divisão dc tarefas importantes, com o aparecimento dc funções A PK()I:)I Ç Ã O K RKIMÍOI)1;ÇÃO SOCIAL
distintas ligadas à direção (mestres), à casa das máquinas (mo- DOS PKSCADORI-.S AUTKSANAI.S
toristas), à preparação do "rancho" (cozinheiros) e ao manejo
das redes e equipamentos de pesca (os homens do convés). N ã o Pescadores-lavradores e pescadores artesanais íiizcm parte dc um
há, no entanto, a introdução do "maquinismo" que transformaria mimdo ao mesmo tempo idêntico c diferente. Amlíos são grupos
essas atividades em tarefas estanques, retirando seu caráter .sociais caracterizados pela forte d e p e n d ê n c i a iVcntc aos comer-

160 161
A N T O N I O CARI.OS O I I : Í ; I K S A PKOI-I^NA PRODUÇÃO M K R C A N T I I .

ciantes. Ambos são produtores independentes, mas sem poder, rizados p r o v ê m de outras praias, como ocorreu em C a n a n é i a
grupos dominados. Ambos conservam ainda, em maior ou menor (litoral paulista), com a vinda dos catarinenses. Esses eram
grau, a propriedade dos bens de produção e do saber-fazer e co- acusados de raspar o fundo do mar, matar os filhotes dos peixes,
nhecer: uns mais vinculados à terra que cultivam, outros ligados além de, com o arrasto, d e s t r u í r e m os aparelhos fixos usados no
ao mar. O trabalho na roça ainda fornece aos primeiros produtos interior da laguna. Nesse ecossistema limitado e explorado pela
de subsistência importante, como a farinha de mandioca produ- comunidade dos pequenos pescadores, a t é alguns anos, era
zida localmente, enquanto que os segundos são obrigados a impensável o arrasto do camarão-legítimo, pois essa técnica estaria
comprá-la. T a m b é m os primeiros estão ligados a ritos agrários, destruindo as bases mesmas da s u b s i s t ê n c i a da irmandade.
como a dança de São Gonçalo e outras festas associadas ao mundo Atualmente, ambas as categorias de pescadores t ê m que se
agrário, enquanto que os segundos t ê m padroeiros mais ligados à defrontar com o arrastão, que varre a costa à procura do camarão
pesca e ao mar, como São Pedro. Enquanto os primeiros vivem sempre mais escasso, jogando ao mar toneladas de peixe acom-
em comunidades rurais, os segundos, em geral, moram nas cida- panhante chamado lixo c que vem poluir as praias usadas pelos
des ou vizinhanças. Para os pescadores-lavradores, em vias de pequenos pescadores.
desaparecimento, a cidade é um lugar onde se vai vender os pou- Em alguns pontos da costa, no entanto, a canoa motorizada
cos excedentes (farinha de mandioca, artesanato) ou por ocasião passou a explorar um outro espaço inatingido pelas canoas a remo:
das festas enquanto que para os segundos, a cidade é o lugar de o espaço costeiro. Em Cananéia, por exemplo, o "mar de dentro"
sua p r o d u ç ã o e reprodução social enquanto produtores de mer- (a laguna) continua sendo o espaço dos cercos dc bambu, dos
cadoria e participantes da cultura urbana. picares, da pesca a linha, de baixo poder de predação, ao passo que
Neste tópico, trataremos da pesca artesanal, uma vez que, como o "mar de fora", o mundo de "fora da barra", é explorado pelo
foi dito anteriormente, a produção dos pescadores-lavradores está pescador artesanal com sua canoa motorizada.
em franco declínio no litoral sudeste, pelas razões anteriormente O mar de fora significa o perigo, o imprevisto, a iminência de
apontadas. uma tempestade que pode virar a canoa. Desses perigos só pode
A pesca dos pescadores artesanais com baleeiras e canoas mo- escapar uma embarcação a motor, dirigida por quem conhece os
torizadas representa ao mesmo tempo uma continuidade e o início segredos do tempo c do mar: aí o pescador persegue o peixe, e não
da ruptura com a pequena pesca dos pescadores-lavradores. espera que ele venha ao seu encontro, como no caso da pesca por
A continuidade se reflete na imprevisibilidade da produção armadilhas fixas. Para o pescador - lavrador, que espera a entrada
enfrentada tanto na canoa a remo quanto na canoa a motor. Ambas da tainha no estuário, o espaço aquático é extensão da terra; são
exploram um meio ambiente limitado devido ao tamanho e po- baías, enseadas ao abrigo dos ventos perigosos e das ameaças do
tencia dos meios de produção. Ruptura, na medida em que a ca- mar grosso. Nesse sentido, o mar de fora é um elemento de base
noa/baleeira motorizada permite o arrasto, técnica mais predatória na p r o d u ç ã o dí) pescador que vive da pesca, em oposição ao
do que a normalmente utilizada pelos pescadores-lavradores. Além pescador-lavrador. Viver do mar significa conhecer os segredos, as
disso, chegando mais rapidamente ao pesqueiro, a canoa motorizada suas manhas. Tanto para o pescador-lavrador quanto para o
tem mais vantagens que aquela movida a remo. Essa capacidade artesanal, o mar de fora é o oceano traiçoeiro. A diferença é que o
maior dc p r e d a ç ã o da primeira tem levado frequentemente a primeiro o evita e segundo passa a viver dele, enfrentando-o. E m
conflito entre essas duas categorias de produtores. Esse conflito Cananéia, as histórias dc pescadí)res não tratam do mar de dentro;
pode assumir maiores proporções quando os pescadores moto- elas c o m e ç a m na travessia da barra, esse c e m i t é r i o dc tantos

162 163
A N I O M O CAUI.OS 1 ) I I : G I I : S A PI-OI:KNA PROOUÇÃO M I - R C A N I I I .

pescadores que começavam a sc aventurar "lá fora". Quando a barra, "uma certa identificação com o mar. em que a gratificação
por algum imprevisto, deve ser atravessada à noite, com mar grosso, do trabalho aumenta, não só com as maiores quantidades cap-
turadas, mas pelo d o m í n i o do mar, pelo prazer do saber, em-
"a gente se agarra ao Senhor Bom Jesus dc Iguapé e à expe- bora indiretamente, que, apesar do mau tempo, venceu o mar,
riência, para não se rebentar em algum baixio". despertando-lhe uma certa vaidade, na medida em que sabe
que o fato é comentado pela comunidade" (1971: 124).
O respeito c o temor do mar rcHctcm-se na religiosidade popu-
lar tanto católica (]uando dos ritos afro-brasilciros. Os ex-\-otos Já o pescador-lavrador, ainda que integre num complexo calen-
presentes em várias igrejas do litoral brasileiro indicam o momen- dário anual uma série de atividades económicas, vive, ainda mais
to cm que a promessa feita aos santos no momento de perigo é do que o pescador artesanal, na d e p e n d ê n c i a dos ciclos naturais.
fmalmente paga, com a doação de quadros votivos, miniaturas de Obrigados, em maior ou menor escala, a seguir o ciclo de reprodu-
embarcações, em geral expostas nas salas de milagres. Nos ritos ção natural do pescado, ambos os pescadores valorizam a liberdade
afro-brasilciros, a llgura dc Iemanjá c chamada para proteger os em que exercem suas atividades em relação à escravidão daquele
pescadores c homens do mar (Diegues. 1998, 2000). que é embarcado. A frase: "Eu mi dono da minha canoa, e vou pescai-
A insegurança é a característica principal que marca a vida do onde e quando quero", reflete o controle que o pequeno pescador
mar em oposição à vida da praia. O mar é o espaço das correntes d e t é m do processo de trabalho cm relação ao embarcado, tripulante
perigosas, dos ventos que mudam de direção, do peixe que se de um barco grande dc pesca.
desloca; e, finalmente, mesmo com o peixe no cesto, o pescador A liberdade caminha j u n t o com o conhecer adíjuirido ao
enfrenta a instabilidatic do mercado. Daí a preocupação constante longo de anos de e x p e r i ê n c i a . O conhecer do velho pescador se
com a produção dos outros: "fulano vem chapado de peixe", o que traduz pela sabedoria, algo distinto do saber-fazer. A sabedoria
significa, não somente uma boa pesca, mas t a m b é m a possibilida- não diz respeito ao manuseio de um apetrecho de pesca, mas
de do rebaixamento do preço pelo atravessador. onde e quando utilizá-lo. .A sabedoria, o pescador a adquire não
A separação do mundo da terra é vista pelo pescador sobretudo somente pela e x p e r i ê n c i a , mas indo pescar e o u \ i n d n os mais
como um abandono das fainas agrícolas. Assim, em Hriceira, velhos.
Portugal, o pescador tem N o entanto, para uma boa pescaria não é suficiente o conhecer.
É preciso ter sorte. A sorte traduz o outro lado da medalha: a
"uma mentalidade (]ue o faz, sem ser por orgulho, desprezar existência móvel dos cardumes, o seu aparecimento nem sempre
todo trabalho ou atividade relacionada com o campo (...) K talvez prc\isível. A sorte tem um pcst) ainda mait)r (juando o pc(|ueno
o desprezo pelo trabalho agrícola que motiva seu desinteresse pescador trabalha com armadilhas fixas mas, mesmo nesse caso, o
até pelo arrancar do golfo, a apanha das algas — trabalho que é conhecer do pescador é fator de sucesso. "E preciso fer ciência para
realizado pela gente terrestre, os salvios" (Alves, 1965: 22). assentar bem um cerco". Is.so traduz a necessidade do conhecimento
do perfil de fundo, da direção das marés, etc. O conhecer é
Mourão, analisando a passagem da pesca a remo para a pesca contrabalanceado pela sorte, porque, muitas vezes, dentre dois
motorizada, explora as diferentes percepções que os vários estra- cercos assentados próximos, um pode amanhecer cheio dc tainhas,
tos de pescadores t ê m do meio ambiente. O pescador (]uc explora cn()uant() o outro está \.
o mar de fora, com a canoa motorizada, já apresenta Para os pescadores dc jurujuba {RJ), fazer uma

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A N T O N I O CARI.OS DIKGUKS A PKQIJKNA PRODUÇÃO M K R C A N T I I .

"boa maré significa mais do que matar uns tantos quilos dc referindo à mesma sociedade que antes caracterizava a pesca da
peixe, t a m b é m necessário ressaltar que esse resultado não é praia de onde ele mesmo viera.
apenas resultado do trabalho: é aquilo até onde o trabalho pode
ir, onde até o seu ponto máximo esbarrou na natureza. Uma "A verdadeira companha é assim situada no passado como
boa maré, por oposição a uma maré fraca, não significa que o um referencial de legitimidade comum. U m passado em que
trabalho foi maior ou menor - a relação pode ter sido a t é inver- a p r o d u ç ã o pesqueira se fazia exclusivamente em canoas mo-
sa. Significa que a produção é o resultado do trabalho, mas tam- vidas a remo, utilizando redes de algodão tecidas a m ã o e ocu-
b é m da sorte" (Duarte, 1978: 72). pando a força de trabalho segundo um regime permeado pelo
igualitarismo e pela inllucncia da organização familiar sobre a
A medida que o barco se toma mais possante e os equipamen- qual se tecia uma rede de reciprocidade. A vigência desse es-
tos mais produtivos, a sorte cede mais lugar à experiência e à pírito na p r o d u ç ã o correspondia, assim, às noções de uma
técnica. Cerca de 80% dos pescadores-lavradores de C a n a n é i a , corporação de pescadores, de uma comunidade de famílias
acima de 35 anos, davam à sorte, ao destino e à amizade, a razão de pescadores, de uma t r a d i ç ã o c o m u m de irmandades"
do sucesso pessoal e da riqueza, ao passo que poucos os relacio- (Duarte, 1978: 4).
navam ao esforço pessoal e ao trabalho. A situação era diferente
para o pescador artesanal, trabalhando com canoa motorizada, que Mesmo vivendo acuados em bairros próximos ao mar, onde são
atribuía o sucesso e a riqueza mais ao trabalho que à sorte (Mourão considerados como o povo pobre, os pescadores artesanais, tanto
1971). do Portinho, em Ubatuba, quanto os do Acaraú, cm C-anancia,
A amizade e o companheirismo, como terceiro fator responsá- tentam recriar os laços tradicionais que existiam nas praias dc onde
vel pelo sucesso e riqueza, nos remetem à importância da solidari- vieram. Aliás, essa tendência dos caiçaras de formar núcleos fe-
edade na pesca realizada em companha e em sociedades. chados já é relatada por França (1954), na década de 40, quando os
A sociedade diz respeito sobretudo ao grupo dos iguais em pescadores de Ilhabela abandonavam suas praias para ir trabalhar
contraposição à tripulação dos grandes barcos em que os embarca- em Santos.
dos podem vir de praias e cidades distintas. ''Agora tudo terminou, A amizade, enquanto fator de sucesso na vida, está associada à
veto gente de fora, ambiciosa, briguenta, até jagunço entrou", é o ajuda da família extensa, à colaboração dos compadres. Para os
comentário mais comum dos pescadores que v ê e m o seu antigo pescadores migrantes para as cidades, a noção de irmandade diz
modo de vida se decompor, seja frente à frota empresarial-capita- respeito à solidariedade existente nas praias de onde esses pesca-
lista, seja frente à invasão de suas praias e de seus pesqueiros. O dores vieram. A família esfacelada do caiçara migrante não pode
referencial da sociedade é sempre a família ou o conjunto de famí- mais exercer inteiramente as funções que exercia numa sociedade
lias que c o m p õ e m a praia c a vizinhança. marcada pelas atividades agrícolas.
O pescador artesanal motorizado t a m b é m se refere aos par-
ceiros e camaradas, mas o seu significado começa a ser diferente. "Osfilhosvão à escola, procuram outro oficio, e assim sou obri-
Hm Ubatuba, (litoral paulista) a maioria desses pescadores mo- gado a procurar um camarada de fora para ir pescar comigo."
torizados já vive no centro urbano. Quando o seu Inácio, do
Portinho, fala em botar sociedade com o irmão, para evitar o A produção das canoas motorizadas' e das baleeiras começa a
pagamento da taxa do I N P S do camarada, ele já não está se distanciar-se da produção das canoas a remo, e um dos elementos

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A N I O M O (].\ÍÍI.OS Oii:(;i-|-:.s A f'i:yi I:N.\I ÇÃO M I M Í C A N I I I .

indicativos dessa mudança está na introdução dos gastos comuns, de móveis, constatamos algumas diferenças importantes. Este
já descritos anteriormente. FJes denunciam uma importância cada adapta seus instrumentos dc trabalho a uma matéria-prima re-
v c / maior tios instrumentos de tral)alÍK) e de sua propriedade do lativamente h o m o g é n e a : a madeira. Já o pescador artesanal é
processo produtivo. obrigado a dominar o manejo de diferentes instrumentos de cap-
A distinção maior, no entanto, entre a pesca dos pescadores- tura utilizados para distintas espécies de pescado, num meio am-
lavradores e a dos pescadores artesanais está no surgimento, entre biente em c o n t í n u a m u d a n ç a . A menor falha no assentamento
esses ijltimos, do que podemos chamar de corporação de ofício. da rede, no l a n ç a m e n t o dos cabos, pode destruir o c([uipamcnto
Os pescadores artes anais se identificam com um grupo possuidor ou danificar irremediavelmente o motor. Isso pode significar a
dc uma profissão. Ksta c entendida como o d o m í n i o dc um con-
perda dc um capital considerável, adquirido depois de anos de
j u n t o de conhecimentos e técnicas que permitem ao produtor
trabalho intenso.
subsistir c SC reproduzir cncpianto pescador. Esse sentido de per-
I'"rcquentemente, o pescador que explora vários tipos de meio
tencer a um determinado grupo sc concretiza no possuir a carteira
ambiente marinho e captura várias espécies de pescado, segundo
de pescador proílssionai. "Eu vivo r/a minha profissão rk pescador"
as estações, é obrigado a ter diferentes tipos de apetrechos adapta-
não significa somente a d e p e n d ê n c i a exckisiva dos produtos da
dos a situações diferentes. Dado o seu alto custo, o pescador pode
pesca, mas t a m b é m participar de um grupo ([uc domina os segre-
dispor somente de um ou outro desses apetrechos, dependendo
dos do mar, como se locomover nele, como identificar as diversas
de outros pescadores para realizar certos tipos de pesca. Nesse caso,
e s p é c i e s de pescado, seus hábitos migratórios, etc. O que carac-
há uma rotaçãí) no papel do dono da rede c uma certa difusão da
teriza o pescador artesanal não é somente o viver da pesca, mas
propriedade dos meios de produção.
sobretudo a apropriação real dos meios de produção; o controle
O centro desses conhecimentos não se situa no fazer enquanto
do como pescar e do que pescar, em suma, o controle da arte de
tal, mas sobretudo no conhecer. O saber-fazer diz respeito à reali-
pesca. O d o m í n i o da arte exige dele uma série dc cjualidades
zação de determinados atos, como, saber dar o nó, soltar a poita,
físicas e intelectuais que foram conseguidas pelo aprendizado na
dar partida UÍÍ motor. Por aí é que começa o aprendizado do jovem
e x p e r i ê n c i a , que lhe permitem apropriar-se t a m b é m dos segre-
dos da profissão. É fundamental nessa caracterização a unidade pescador.
entre a força de trabalho e os instrumentos de trabalho. Esses Tornar-se um pescador profissional, entretanto, significa ser
são adaptados ao corpo humano, e sua utilização exige uma técnica portador do conhecer que implica no quandt), onde c por (juc fa-
especial (]uc é o apanágio do artesão. Mesmo trabalhando em zer. Esse conhecer é constituído por um conjunto de ideias sobre
grupí), a técnica é essencialmente individual. Ao contrário da o navegar, o movimento das marés, os tipos de fundo propícios à
pesca, n u m grande arrastão moderno, em que a m á q u i n a se vida dc certas espécies dc pescado, noções empíricas sobre os
i n t e r p õ e entre o trabalhador direto c seu objeto de trabalho, hábitos dos diferentes peixes, etc. O importante não é conhecer
impondo o seu ritmo aos trabalhadores, na pesca artesanal o um ou outro aspecto do segredo, mas saber relacionar os fenóme-
pequeno produtor tem o d o m í n i o completo das o p e r a ç õ e s da ní>s naturais e tomar as decisões relativas à captura.
captura. Cordell (1974), analisando certos grupos de pescadores nordes-
tinos, afirma (pic fazer o lanço certo implica na habilidade do
Podemos dizer que, no caso da pesca, o d o m í n i o da arte exige profissional cm usar o conhecimento adquirido pela experiência e
um período dc experiência mais longo que nas outras formas de
tomar decisões rápitlas num meio ambiente muito variável. Para
artesanato. Sc compararmos o pescador artesanal a um artesão
ele, o pescador experiente consegue simplillcar uma gama dc ai-

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A N I O N I O CAIÍI.OS DIKGIJKS A PKOLKNA PRODUÇÃO M K R C A N I I I .

tcrnacivas, segundo modelos relativamente complexos de conhe- minar os parcéis que passavam a explorar com exclusividade, à
cimento, a fim de tirar um melhor proveito das variáveis naturais. semelhança dos jangadeiros de T i b a ú do Sul.
Os pescadores sabem que os peixes são migratórios e que seus Forman (1970), que estudou o sistema de marcas dos jan-
habitats variam segundo as temporadas, condições climáticas, t i - gadeiros de Coqueiral (Alagoas), encontrou a mesma divisão ima-
pos dc í u n d o do mar, períodos de chuva, etc. Como no mundo dos ginária do espaço marítimo, a cujas fatias os pescadores davam no-
homens, o mundo dos peixes é vivo e cheio de malícia. "Tempeixe mes como "restinga", "raso", "parede", etc. Quando os jangadei-
burro e peixe inteligente, peixe molengo e peixe lutador. A sardinha, por ros se afastavam muito e os contornos do litoral desapareciam, as
exemplo, épeixe burro", di/em os pescadores de Ubatuba. linhas traçadas inicialmente (chamadas de confrontação) eram
tomadas como base. D a í para a frente, no entanto, a localização
"O peixe, diferentemente da maior parte dos objetos de tra- dos parcéis era completada pela sassanga ou l a n ç a m e n t o da linha
balho, é dotado de vida animal e comporta-se como tal, isto é, dc chumbo. Uma vez chegado ao fundo, o chumbo era retirado da
locomove-se, alimcnta-sc, procria, batalha pela sua sobre- água, cheirado e observado para atestar se o substrato marinho era
vivência (...) H á uns quatro anos, nessa baía aqui entrava tainha composto de areia, lodo ou pedra.
em quantidade. Aqui na baía, nessa hora, a gente ia pra prai- Kottak (1983) afirma que os mestres de pesca artesanal não
nha, cercar, que ela estava de volta, igual ao chefe de família revelam a maneira de se localizar seus pontos preferidos para asse-
sem tirar nem pôr. Kla vem para cá, correr, e de tarde ia para gurar uma maior produção ao seu barco e, consequentemente, uma
Santa Cruz, dormir. Então a gente cercava, de manhã cedo, para certa ascendência sobre os demais pescadores. O segredo do ofício
não assustar. Atualmente ela não vem mais aqui. Ela já está seria assim utilizado pelos mestres para justificar t a m b é m um
dormindo lá fora, no fundão. O peixe agora fica no meio do q u i n h ã o maior na hora da partilha. Na comunidade de jangadeiros
mar, no meio do oceano" (relato de um pescador. Apud\^\s2jx.ç,, estudada por Forman, no entanto, a maioria dos pontos de pesca é
1978: 84). do conhecimento geral dos pescadores. Somente alguns deles, os
mais p r o d u t i v o s ou que exigem maior e x p e r i ê n c i a na sua
U m dos aspectos mais interessantes do segredo da profissão é a (re)localização, continuam como propriedade temporária de quem
localização dos bancos de peixe e parcéis existentes no mar de o descobriu.
fora. E m todo o litoral nordestino, desde os jangadeiros no Rio Mas a explicação de Forman é ciue o segredo sobre esses pon-
Grande do Norte a t é os pescadores de bote a vela de Itaipava, no tos não se justifica pela possibilidade do controle dos mestres ex-
Espírito Santo, o saber localizar e guardar na memória os bons perimentados sobre os demais, ou pela porção maior na partilha,
pontos de pesca constitui um dos núcleos do segredo profissional. pois nessa comunidade eles não ganham uma parte maior que os
Galvão (1968) relata como os pescadores de T i b a ú do Sul (RN) demais. É um mecanismo utilizado para diminuir a c o m p e t i ç ã o
dividem o mar em níveis de profundidade e tipos dc fundo {ca//e- sobre recursos escassos, pois a sobrepesca nesses pontos levaria à
/í/.r.da praia a t é 12 braças; tassas entre 14 e 15 braças; altos até 30 sua exaustão. Estaria no segredo da marcação a base para a so-
braças de profundidade, e t c ) . Onde acabam os msos (a 50 braças brevivência da comunidade de pescadores que tiravam sua sub-
de profundidade), os jangadeiros usam o sistema dc marcas, con- sistência da pesca.
seguido através de triangulação visual com objetos fixos no litoral O d o m í n i o dos segredos da profissão passa então a ser o ele-
(torre de igreja, montanha, e t c ) . E m Itaipava (ES), os pescadores mento distintivo do pescador em relação ao não-pescador. Mourão
por nós estudados usavam idêntico sistema de marcas, para deter- (1971) analisa em Cananéia o surgimento de uma ideologia de pesca

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A N TONIO CAUI.OS Dii:c;i:i-;s A Pi;ut KNA PiiODi (,:.\ M K U C A N T I I .

no processo da passagem da pesca cm canoa a remo para a pesca mento. E m suma, o caráter essencial do sistema dc mestria e
artesanal, em canoas motorizadas. O surgimento dessa ideologia das corporações — onde o trabalho artesanal sc constitui cm
como conjunto de valores próprios aos pescadores artesanais estaria sujeito e, nessa medida, em proprietário — dcfinc-se pela rela-
associado não somente ao domínio de técnicas de pesca mais ção com o instrumento dc produção (instrumento de trabalho
produtivas, mas t a m b é m a uma vinculação maior com o mercado como propriedade) diferentemente da relação com a terra, com
dos produtos do mar.
o solo (com a matéria-prima como tal) detido em propriedade"
Esse feixe de conhecimentos, que identifica o ofício do pesca- (197.3:35-6).
tlor artesanal, vai se perdendo à medida que, por uma razão ou
outra, ele é obrigado a embarcar como simples tripulante de um Reside nessa arte de pesca, como meio de produção (caracterís-
grande arrastão. D a í o temor expressado pelo pescador artesanal tica do fator trabalho), um fator fundamental na c o m p r e e n s ã o da
do Portinho, em Ubatuba (SP) em relação ao embarque: "Na trai- resistência à proletarização, tantas vezes demonstrada pelos pesca-
neira, só embarco como mestre". Embarcar como simples tripulante é dores artesanais do litoral brasileiro e constatada em muitas pes-
o caminho temido para a desqualificação profissional, para a perda quisas empíricas através da preferência pelo trabalho a u t ó n o m o .
do conhecer que constitui o cenve do ofício. Daí, se explica tam-
bém o comportamento violento de alguns mestres de traineira,
provindos da pesca artesanal, durante o período de introdução da
1 MIM,I(:AÇÕI:.S TI-:(')UI(:A.S ÍJO USO DO
ecossonda para identificação eletrônica dos cardumes, ou do pilo-
CoNCKiTo Dl'. P i ; g r i : \ . \O
to automático para facilitara navegação: eles danificavam proposi-
MI:IU:AN'III. N A PI:S(:A
talmente esses equipamentos com receio de serem substituídos
por eles. N ã o se tratava de uma selvageria de mestres ignorantes,
As características básicas das sub-formas de organização social da
mas uma forma de proteger o conjunto de conhecimentos adquiri-
produção que analisamos — a dos pescadores-lavradores e a dos
dos pela experiência c pela tradição c que sc identificava com a
pescadores artesanais — remetem-nos a uma categoria teórica es-
própria possibilidade de sobrevivência encjuanto pescador e que
pecífica mais abrangente: a da pcí)ucna produção mercantil. As
era tido como a m e a ç a d o pela nova técnica.
duas subformas mencionadas acima são consideradas como varian-
Em resumo, no processo de dissolução da forma de produção tes da pequena produção mercantil enquanto modalidades de apro-
do pescador-lavrador o afastamento da terra e de suas condições priação material e social de determinados recursos existentes nos
naturais de produção é um fator fundamental. Na destruição do ecossistemas marinhos. O emprego dessas categorias, no entanto,
artesanato pesqueiro as razões são outras. A dissolução dessa for- coloca algumas dificuldades teóricas que passaremos a discutir.
ma dc produção se dá pela perda ou separação dos instrumentos A forma de produção mercantil é considerada pré-capitalista
de trabalho e das artes de pesca. Aliás, arte de pesca e instrumento no sentido de anterior A emergência histórica do capitalismo ou
dc trabalho estão intimamente ligados na produção artesanal. Como no sentido de que o desenvolvimento de suas forças produtivas se
afirma Marx: encontram num estágio inferior ao atingido pelo capitalismo.
A preocupação fiindamental de Marx, era a análise interna do
"A arte de se apropriar realmente do instrumento, dc o ma- niodt) capitalista dc produção, e somente de maneira marginal cic
nipular enquanto meio de trabalho, surge como um talento par- tratou dos modos pré-capitalistas de produção e de sua transição
ticular do trabalhador, (jue faz dele o proprietário do instru- para o primeiro.

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A N T O N I O CAUI.OS DIKGUKS A PKQUKNA PKOOUÇÀO M K U C A N T I I .

Na França, alguns ancropólogos marxistas se lançaram à pesqui- cios de reprodução e de sistemas de idades diferentes. Ou ainda: a
sa teórica e de campo com o objetivo de elaborar os instrumentos reprodução do sistema global resulta da articulação de vários ciclos
teóricos necessários à produção de conhecimentos sobre as formas de reprodução correspondentes, às vezes, a lógicas sociais distintas.
de organização pré-capitalistas. Apesar dos indiscutíveis avanços Isso nos remete à ideia central da formação económico-social
na análise dessas formas e de sua articulação com as capitalistas constituída por modos de reprodução de distintas idades históricas
podemos dizer como Godelier que a construção teórica ainda está (seja em termos de desenvolvimento de forças produtivas ou de
ao nível de canteiro de obras. Uma outra dificuldade encontrada é temporalidade). Desta maneira, o anacronismo encontrado por
que os estudos feitos até agora em sua maioria foram realizados autores funcionalistas em termos tecnológicos e culturais não
dentro das fronteiras do Estado nacional, onde os aparelhos de constitui reminiscências isoladas, mas instâncias próprias de formas
Estado já estavam dominados capitalismo (Post, 1972). de organização diferenciadas em graus distintos de realização.
Uma das características fundamentais dessas formas pré-capi- A existência histórica de uma formação social está ligada, de
talistas de produção é sua articulação a outras formas de produção, um lado, à reprodução das relações fundamentais que caracteri-
que lhes são dominantes. zam o modo de produção dominante, e, de outro lado, como conse-
E necessário reter essa primeira característica da pequena pro- q u ê n c i a disso, à reprodução da dominância de um determinado
d u ç ã o mercantil: é uma forma subordinada, articulada a outras modo de p r o d u ç ã o sobre os demais (com a r e p r o d u ç ã o da domi-
modalidades de produção. Dessa forma, a identificação dos ele- nação de um sistema de classe ou de uma classe social sobre as
mentos básicos da produção mercantil, na análise de um caso con- demais). Ora, essa reprodução da dominância de um modo de
creto, toma-se difícil na medida em que a própria articulação in- p r o d u ç ã o é determinada historicamente e está ligada às modali-
troduz m u d a n ç a s nas características internas dessa forma de orga- dades de articulação entre os modos de produção que c o m p õ e m
nização da produção. Estudando as formas de produção pré-capi- uma formação social. Daí, afirmar Barel (1974) que num momento
talistas, mas articuladas à capitalista, torna-se impossível distin- histórico há uma c o e x i s t ê n c i a de ciclos de r e p r o d u ç ã o e de
guir, através de uma observação artificial, como eram organizados sistemas de "idades" diferentes. Ora, a r e p r o d u ç ã o de modos de
seus elementos básicos antes do contato com o capitalismo. A pró- produção com ciclos diferentes implica contradições e formas con-
pria situação de articulação pode transformar certas relações tradi- traditórias de dominação/subordinação. Assim, por exemplo, Barel
cionais numa forma mais c o m p a t í v e l com o capitalismo (por cita o modo de produção mercantil simples, cuja duração foi mais
exemplo, a transformação da renda-trabalho, etc.) (Bradby, 1972). longa que o modo de produção feudal, coexistindo tanto com este
Essa articulação tampouco é uma justaposição de formas dife- como com o modo de p r o d u ç ã o capitalista, ainda que, em
rentes de produção. Cada uma delas tem leis próprias de reprodu- nenhuma das duas articulações, o modo de produção mercantil
ção de seus fatores e de suas relações de produção, ou, como afir- simples tenha sido dominante.
ma Barel (1973), cada uma dessas formas tem um ciclo definido de Quais são os elementos estruturais que d e f n e m a pequena
reprodução de seus elementos que se iníluenciam mutuamente produção mercantil e quais são as relações que se reproduzindo
quando articulados. E, no entanto, o tempo ou ciclo de reprodução lhe garantem a sobrevivência.?
da forma de produção dominante que dá o ritmo e as modalidades Marx afirma que a pequena produção atinge sua forma mais
de reprodução do sistema como um todo. clássica no momento em que o trabalhador é proprietário dos meios
Barel (1973), ao analisar a articulação de formas de produção, de produção, que ele próprio controla. E o caso do c a m p o n ê s que
sublinha a coexistência contraditória, num momento dado, de ci- d e t é m a terra que cultiva ou do artesão que maneja suas ferramentas

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A N I O N I O CAIÍI.OS D I I X Í I K S A Pr.yiKNA !*uoDi\:.\ MI-KCANIII.

como um v i r t u o s o . Esse modo de p r o d u ç ã o p r e s s u p õ e o não-capitalistas de produção, essa extorsão do sobre-trabalho se


parcelamento do solo, a dispersão dos meios de produção. Ele exclui faz sem (lUc o trabalhador direto tenha perdido totalmente a posse
t a m b é m uma divisão de trabalho acentuada c um livre desenvol- ou o controle dos meios de produção.
vimento das forças produtivas. É um modo dc produção compatível Ora, na forma de produção ora estudada, apesar da grande vari-
somente com uma sociedade que existe em limites estreitos e edade de relações dc trabalho existentes empiricamente, o cama-
primitivos. rada ou companheiro dc pesca dispõe de um certo controle sobre o
Daí, serem a propriedade dos meios de produção, o controle do processo de trabalho através do conhecimento acumulado das artes
processo de trabalho, a dispersão dos meios de produção, a redu- de pesca e mesmo do uso de uma parte dos instrumentos de
zida divisãt) do trabalho responsável por um fraco desenvolvimen- trabalho utilizados na captura. Assim, por exemplo, na pesca da
to das forças produtivas, as principais características da pequena lagosta em Marataízes, no Espírito Santo, cada pescador levava a
p r o d u ç ã o m e r c a n t i l . Esta pode ser mais bem analisada se sua rede meijoada (espécie de rede de espera) numa embarcação
comparada com a produção capitalista. Nesta existe uma separa- pertencente a um dono de barco que participava ou não do processo
ção completa entre os trabalhadores e os meios de produção, que dc trabalho. Em ambos os casos, o dono do barco ganhava 1/5 da
se instalaria com a presença de um não-trabalhador que impõe as p r o d u ç ã o das redes dos camaradas. Caso o dono do barco
condições de produção e reprodução pela extração da mais-valia. participasse da captura, além do resultado da pescaria dc sua rede,
Já na pequena produção mercantil, embora exista a proprieda- levava ainda o quinto dos outros pescadores. Esse quinto pode ser
de i n d i v i d u a l ou privada dos meios de p r o d u ç ã o , n ã o há o considerado uma forma de renda, renda-produto, que é a forma
surgimento do não-trabalhador, nem a extração da mais-valia de assumida pela extração do sobretrabalho dos camaradas. O pa-
quem participa do processo de trabalho. gamento dessa renda podia ser dispensado pelo dono do barco
Cabem aqui algumas considerações sobre as relações de pro- quando o resultado da pescaria fosse t ã o m e s f | U Í n h o que
dução existentes na pequena produção mercantil pesqueira. Rela- impossibilitasse ao camarada obter os seus meios de subsistência.
ções de produção são aquelas que se estabelecem entre os agentes Trata-se, então, a nosso ver, de um sistema de parceria, em que
e os meios materiais de produção. Essas relações não se reduzem a o camarada ou parceiro ainda não se encontra totalmente despoja-
simples contatos intersubjetivos. Post (1974) atribui um papel do dos meios de produção e tem um controle variável sobre o
fimdamental às relações de produção na própria d e t e r m i n a ç ã o de processo de trabalho. Esse controle sobre o processo de trabalho
uma forma de organização social da produção. Para cie, os meios se traduz, por exemplo, no conhecimento acumulado das artes de
de p r o d u ç ã o e a força de trabalho se transformam em forças pesca, dos hábitos alimentares dos peixes, etc. Na pequena pesca,
produtivas através das relações de produção. Marx pensa essas mesmo que o camarada não embarque com os seus equipamentos,
relações em termos de relações de distribuição, pois elas determi- cic entra na canoa com uma bagagem de conhecimentos que o
nam não só o destino do produto final como t a m b é m distribuem dono da rede respeita c considera, ao tomar uma decisão sobre
os agentes da produção em classes sociais. Elas determinam, por onde e quando lançar a rede. Além disso, o pescador, (juc é cama-
sua vez, as modalidades de extração do sobre-trabalho í]ue é apro- rada hoje, a m a n h ã pode decidir sair para pescar sozinho com sua
priado por acpielcs que são proprietários dos meios dc produção. linha ou outros apetrechos de pesca.
Na produção capitalista, a expropriação do sobre-trabalho se Essa parcela retida do produto excedente peh) dono da rede,
faz com a separação do trabalhador dos instrumentos de' trabalho (pie pode ser o terço, o quarto ou o quinto da produção, poderia ser
c com a jicrtia do controle do processo dc trabalho. Já cm formas chamada de renda /// natura no caso da produção dos pescadores

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A N T O N I O CAIÍI.OS DIKGUKS A PKOUKNA PROOIÍC.ÃO M K I Í C A N T I I .

sitiantes. Efetivamente, após a captura, a divisão do pescado se dá BlHI,lí)GRA|-|A


na praia, fazendo-se os montes de pescado que cabem a cada
pescador. O terço da rede ou da canoa constitui um monte à parte,
que é levado por seu dono, além de seu q u i n h ã o como participan- Alves, J. 1965. linguagem dos pescadores de Ericeira. Lisboa.
te do processo de trabalho. O pescador dispóe do seu cjuinhão como
Barel, Y. 1973. La Reproducition Sociale. Paris, Anthropos.
deseja, vendendo-o ou levando-o para casa. Nessa forma de
Bradby, S. 1972. Thc dcstruction of national cconomy in Peru. Economy
produção, no entanto, o sustento da família é prioritário. "Fulano é
and Soàety. Lima, maio.
esganado. Vende até o peixe (pie devia levar para alimentar osfilhos"é a
Dicgucs, A. C. (org,) 2000. Imagem das águas. São Paulo, Hucitec/NUPAUB-
censura que a comunidade faz ao pequeno pescador que vende
USP.
seu melhor pescado na praia, levando somente os peixes miúdos
. 1998. Ilhas eMares, simbolismo e imaginário. São Paulo, Hucitcc/
para casa.
NUPAUB-USP.
Duarte, 1\. 1978. hs redes do suor: a reprodução social dos trabalhadores da
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(Mestrado), Universidade Federal do Rio de Janeiro.
I''orman, S. 1970. The raftfishermen:tradition and change in the Brazilian
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178 179
A x r o N i o CAUI.OS Dii-;c;n-:s

REALIDADES E FALÁCIAS
SOBRE PESCADORES
ARTESANAIS^

O M O O K i . o K C O N Ò M i c o brasilciro das ú l t i m a s d é c a d a s ,
concentrador de renda, voltado para a exportação de gran-
des empresas veio acentuar o abandono por que passa a pequena
produção tanto agrícola quanto pesqueira, em particular a pesca
artesanal. Isso apesar da importância real dos pequenos produto-
res do setor pesqueiro, responsáveis por uma grande parcela da
captura de pescado, destinada tanto à exportação quanto ao con-
sumo interno no Brasil. Dada a prioridade que o novo governo
pretende dar a produção de alimentos para o consumo popular,
através dos pequenos produtores, é fundamental sc resgatar a
importância dos pescadores artesanais espalhados pelo litoral e
águas interiores do nosso país. Daí, ser fundamental se desmistificar
a imagem corrente que existe não somente nos meios urbanos,

Publicado originalmente em Poz-meA/a/rs. São Paulo. M:I'AI:IÍ-1;SI', 19%.

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181
A N I O N I O CARLOS D I K G L K S
RKALIDAIJKS K KALACIAS

mas até nos órgãos de administração pesqueira que v ê e m na pesca diferentes em cada fonte, mas pode-se estimar que mais dc um
artesanal um "setor marginal" ou uma peça de folclore. O tema milhão de pessoas dependam dessa atividade tanto nas águas
central deste artigo é mostrar que a pesca artesanal desempenhou marinhas quanto nas continentais. Nessa estimativa, incluem-se
e continua a desempenhar um papel fundamental na produção tanto pescadores e pescadoras, mas aqueles que trabalham na
pcs(]ucira deste país, intimamente vinculada ao mercado e à pes- c o m e r c i a l i z a ç ã o , c o n s t r u ç ã o e conserto de e m b a r c a ç õ e s ,
ca empresarial capitalista e que portanto não é nem marginal nem processamento do pescado etc.
folclórica, mas sim dependente, com seus produtores explorados e
A produção pesqueira artesanal continua sendo significativa,
carentes do apoio que se deu tão fartamente à pesca e à aqiiicultura
apesar da falta de apoio governamental. Responsável por mais de
empresarial nesses últimos anos. Como foi analisado anteriormente,
80% das capturas na década de 60, teve sua participação diminuí-
o resultado mais evidente dessa política foi a d e p r e d a ç ã o dos
da em favor da pesca empresarial nos anos 70/80, e recuperando
recursos vivos do oceano, e e x p l o r a ç ã o da m ã o - d e - o b r a e o
uma participação mais elevada que a empresarial no final da déca-
empobrecimento do próprio pescador artesanal.
da de 90, em virtude da desorganização desta última. Observa-se
É preciso não confundir o pescador artesanal com o pescador até uma re-artesanalização de algumas industriais, como o da la-
de auto-subsistência pois aqueles produz principalmente para a gosta no Nordeste, uma vez que muitos barcos da pesca empresa-
venda e como todo pequeno produtor é dependente do mercado, rial abandonaram a atividade e passaram a comprar o produto dos
através da teia de intermediários e "marchantes". Ele é um pe- barcos da pesca artesanal.
(|ucno produtor que participa diretamente do processo da pesca,
Com a declaração da Zona Económica Exclusiva a partir da I I I
dono dc um cabedal enorme de conhecimentos e dos instrumen-
CoNi-KRi-NCiA D O IVÍAií D A S N A Ç Ò K S U N I D A S , ahugaudo considera-
tos de trabalho, operando seja em unidades familiares seja com
velmente a faixa marítima sob jurisdição nacional, a importância
"camaradas" ou companheiros. O excedente produzido é relativa-
da pesca artesanal deve ser ainda mais enfatizada, pois é sabido
mente pequeno e as técnicas de captura são em geral simples, mas
que a quase totalidade do potencial pesqueiro brasileiro se encon-
adaptadas aos ecossistemas litorâneos tropicais marcados por um
tra dentro dessa área, até os limites da plataforma continental, ex-
grande n ú m e r o de espécies de pescado.
plorada, em geral, pelos pescadores artesanais.

I M P O R T Â N C I A D A PK.SCA AKTK.SANAL
EQUÍVOCOS R FALÁCIAS A SLUKM ESCLARKCIDAS

Existem no mundo cerca dc 10 milhões de pescadores artesanais,


Existem muitos equívocos em relação aos pescadores artesanais
responsáveis pela quase metade da produção pesqueira, seja em
que precisam ser esclarecidos. Eles t ê m como fundo a ignorância
águas costeiras, litorâneas ou águas interiores. Em alguns conti-
de tecnocratas, com visão urbana ou uma mistificação por parte
nentes, como a Asia, sua importância é crucial como fonte de pro-
das empresas capitalistas de pesca e seus associados em órgãos de
teína barata, pois alimenta cerca de 1 bilhão de indivíduos ( F A O ) .
administração pesqueira deste país, que assim tentam justificar as
E m muitos países da Africa é uma das principais fontes de prote-
razões do abandono cm que deixaram a pequena p r o d u ç ã o
ínas para o consumo popular.
artesanal.
As estatísticas sobre o número de pescadores artesanais no Brasil
são falhas e contraditórias, às vezes organizadas segundo critérios

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183
A N I O X I Í ) CAIÍI.OS D M - G I K S RKAI.IOAOKS I-: KA!..\(:IAS

r' Falácia: "Os Pescadores Arlesaaah são Indolentes nefícios sociais" ( K x p e r t C o n s u l t a t i o n on Strategies for
e não 'Praballiam com Regula rida c/e" Fisheries Development. FAO Fislieries Report, n. 295, Roma).

Ora os pescadores artesanais vivem sob a freqiicncia dos ciclos Daí, a recomendação dos Ministros de Pesca c Agricultura que
naturais, que determinam os períodos de aparecimento de certas participaram nacjucla Conferência:
espécies de pescado, bem como dependem muito fortemente
das marés, e condições do mar. Daí, como em todos os países do "Dada a crescente importância atribuída ã pesca artesanal
mimdo, a pesca artesanal ser uma atividade cíclica com períodos pelos programas de desenvolvimento nacional e internacional,
de maior ou menor intensidade de trabalho, com horas dc espera considerando-se que a produção desses pescadores é quase que
c horas dc extenuante esforço físico. inteiramente dirigida ao mercado interno c representa quase
metade do pescado consumido mundialmente, esforços es-
2" Fa/ácia: "Os Pescadores Artesanais são Mendigos de Praia e peciais devem ser feitos para aumentar a produção desse setor
Constituem um Problema Social a ser Tratado por Programas c deve-se dar prioridade às políticas de desenvolvimento da
Assistenciais" pesca" (Relatório da Conferência da 1-AO sobre o Desenvol\'i-
mento Pesqueiro. Roma, junho/julho de 1984).
Na r e u n i ã o p r e p a r a t ó r i a para a C O N I - H I Í K N C . I A OA 1V\ SOISRI.; O
D K S K N V O I . V I M H N T O Pi;.sQn:nío, realizada em Roma em 1983/1984, Essas declarações são, ao nosso ver, suficientes para refutar esse
especialistas do mundo inteiro desfizeram esse e q u í v o c o ao afir- segundo equívoco.
mar:
3" Falácia: "A Pesca Artesanal é um Setor de Transição
"Os últimos dados disponíveis de muitos países do Tercei- entre a Pesca de Auto-Subsistência e a Pesca Empresarial -
ro M u n d o indicam que as pescas artesanais são mais viáveis Capitalista e, portanto, tende a Desaparecer"
sob o ponto de vista económico e as mais desejadas sob o ponto
de vista social, sobretudo quando se explora ecossistemas cos- Ora, o que se t ê m visto em muitos países do mundo, mesmo nos
teiros (...). Alguns fatores importantes como a natureza dos desenvolvidos, é uma extraordinária persistência desse "modo
recursos naturais disponíveis nas águas tropicais, a dispersão de p r o d u ç ã o " . Na maioria dos casos, no entanto, essa forma de se
espacial das comunidades dc pescadores, a ampla utilização combinar os meios de produção e a força-de-trabalho está articu-
dc materiais disponíveis localmente, o direcionamento do pes- lada e é dependente da produção empresarial-capitalista que lhe
cado a mercados locais e regionais, o uso reduzido dc com- compra a p r o d u ç ã o e usa sua força-de-trabalho excedente, como
bustível fóssil justificam a prioridade a ser dada a esse siste- tripulantes dos grandes barcos de pesca. Nesse sentido, o setor é
ma de produção..." usado como um bolsão de força-de-trabalho barata para o setor
empresarial-capitalista. A persistência desse modo dc p r o d u ç ã o
Ou ainda: se explica:

" N o desenvolvimento da pesca artesanal deve-se ressaltar a) pela flexibilidade com que se adapta às condições naturais muito
sua c()mpro\ada viabilidade económica e seus múltiplos be- especiais que existem nos mares tropicais e sub-tropicais tais

184 185
ANiONro CAKI.OS DIKGUKS RKAI.IOAOKS K FALÁCIAS

como a dispersão dos cardumes, os habitats de peixes que não mais que nenhuma outra à as condições de escassez de combustí-
permitem o uso intensivo de arrasto, a mobihdade dos cardumes, vel fóssil, utilizando a propulsão à vela, ou a combinação vela-motor.
as variações sa/.onais dos estoques pcscjuciros, etc; Além disso, a utilização de equipamentos de pesca fixo, tais como
h) pela combinação dos látores de produção íjue privilegiam a uti- cercos fixos, cercos flutuantes reduz consideravelmente os custos
lização da força-de-trabalho familiar e sobretudo do imenso de deslocamento e os custos globais da captura.
conhecimento acumulado pela tradição familiar;
c) pela freqijente absorção de força-de-trabalho proveniente das 5" Falácia: "A Pesca Artesanal Produz somente
áreas rurais vizinhas; Pescado de Baixa Qualidade"
d) pela resposta flexível às condições flutuantes do mercado e tam-
b é m pela função exercida pelo setor em muitos países, ao abas- Em muitos países do mundo, a pesca artesanal é a que apresenta
tecer de pescado fresco os restaurantes e a demanda sazonal os circuitos mais curtos da produção-cí)mercialização, desem-
dos turistas. barcando pescado fresco de alta qualidade nos mercados, locais e
regionais. Na Asia e na Africa, por exemplo, além de muitas re-
As pressões sobre o setor são sobretudo externas, tais como a giões do país, o excedente de captura é salgado e seco represen-
apropriação das praias do pequeno pescador pelos complexos tu- tando uma reserva de proteína para grandes faixas da população.
rísticos, pela especulação imobiliária que chega a impedir a des- Além do mais, são processos que utilizam a energia solar. E m vári-
carga do pescado ou a atracação das embarcações. Além disso, os os países da Europa, com grande tradição pesciueira, o pescado
riquíssimos ecossistemas estuarinos, freciiientcmente utilizados fresco, dc alta qualidade é fornecido pelos pescadores artesanais,
para a pesca, estão sendo depredados pela poluição urbana, des- c vendido nos restaurantes de alto padrão situados geralmente nos
pejo de dejetos industriais, aquicultura industrial, corte dos man- próprios portos de desembarque. N o Brasil, o sistema de conser-
guezais, verdadeiros viveiros para inúmeras espécies marinhas. vação privilegiado é o do pescado congelado, consumido unica-
Outra fonte de pressão reside na competição desleal por parte da mente pelas classes sociais de alta renda. Além disso, o pretenso
frota empresarial-capitalista, que apesar de receber toda gama de modernismo de algumas autoridades locais leva a proposições,
incentivos, desde os financeiros até subsídios para o combustível como a de um prefeito de uma cidade do litoral norte paulista que
acaba j^escando em áreas que usualmente são destinadas ao setor queria, anos atrás, deslocar um bairro de pescadores situados na
artesanal, destruindo cardumes e os equipamentos de pesca dos região central da cidade, junto ao mar, porque era uma mancha de
pequenos pescadores, esses privados de todos os incentivos acima vergonha pois depreciava o valor dc uma área nobre. Em vários
mencionados. países do mimdo, um bairro de pescadores artesanais é um ponto
turístico obrigatório, que abriga muitas tradições, bons restauran-
4" Falada: "A Pesca ArtesanaléIneficiente" tes típicos onde parte da produção pesqueira é consumida, geran-
do renda c divisas.
Essa posição é equivocada pois uma embarcação artesanal gasta E t a m b é m sabido que os problemas do pescador artesanal não
cerca de 1/5 do combustível por tonelada de pescado capturado do estão no mar. Eles começam em terra com a falta dc crédito, con-
(|ue utiliza um barco do setor empresarial-capitalista. Além disso dições de vida, endividamento e terminam na terra, com os baixos
emprega cerca de 1/4 dos investimentos por tonelada do que re- preços pegos pelo intermediários. Ora, no Brasil, mesmo a infra-
quer um barco empresarial. A pesca em pequena escala se adapta estrutura de comercialização criada recentemente não beneficia.

186 187
A N T O N I O ('AKI.OS H I K O I I - S RKAI.IOAOKS K 1'"AI.AÍ:IAS

em geral, o pescador artesanal, pois os entrepostos são construídos Há, no entanto, necessidade de estudí)s antropológicos e so-
nos grandes centros, e muitas vezes sem mesmo uma rampa para ciológicos sobre a estrutura social e de poder dentro das comuni-
que desembarquem as canoas, botes, baleeiras e outras embarca- dades de pescadores para se conhecer melhor o meio social em
ções da pesca artesanal. que as inovações vão se integrar.

6" Falàna: "O Pescador' Artesanaléignorante, e 7" Falácia: "O Pescador Artesanal é Passivo e não
Resiste às Mudanças Tecnológicas " Sabe Defender os seus Direitos"

A essência da pesca artesanal é o conjunto de conhecimento sobre Apesar dos processos de desapropriação dos instrumentos de tra-
meio-ambiente, condições de marés, identificação dos pesqueiros balho e das próprias condições materiais de existência por que passa
c manejo dos i n s t r u m e n t o s de pesca. Este c o n j u n t o de a pesca artesanal em muitas partes do mundo, registram-se cada
conhecimentos faz parte dos meios de produção dos pescadores vez mais frequentes os conflitos entre a pesca artesanal e a
artesanais. Esse conjunto de conhecimentos é cm geral transferi- industrial geradores de violência como ocorrem frequentemente
do de pai para filho e guardado ciosamente pelos pescadores, como
em vários países e mesmo no Brasil.
provam vários estudos antropológicos e sociológicos realizados no
Brasil (Mourão, 1 9 7 1 ; Diegues, 1983; Cordcll, 1974; Maldonado,
(V" ludácia: "Os Pescadores Artesanais são Isolados"
1 9 9 1 ) . Esses conhecimentos, transmitidos por via oral, fazem par-
te do acervo mental do "mestre" e constituem um elemento fun-
já vimos c]uc uma das características da pesca artesanal é a disper-
damental do êxito das viagens de pesca. Quanto à aludida "resis-
são das comunidades produtoras, o que,frequentemente, respon-
tência à m u d a n ç a " descrita por alguns extensionistas, trata-se na
de às especificidades dos ecossistemas naturais específicos, ricos
verdade de "inovações" que, muitas vezes, vêm a beneficiar so-
cm pescado, mas que se encontram distantes dos centros urbanos.
mente os "armadores de pesca" ou a(]ucles que dispõem de capi-
N o entanto, estabelecendo pontos de compra, sobretudo para
tal para investir c acabam se apoderando dos eventuais aumentos
camarão e pescado dc primeira, as empresas de comercialização
dc produtividade realizados pelos pescadores. Além do que, mui-
integram a maioria dessas comunidades no mercado nacional. Mais
to freqiientemente o aumento no capital fixo, necessário ao uso de
do (JUC isso, essas empresas que, muitas vezes, são firmas com
nova tecnologia, acaba alterando o sistema tradicional de partilha
barcos próprios acabam utilizando pescadores artesanais como
beneficiando sobretudo os "armadores de pesca". Em vista da
força-de-trabalho nos próprios barcos ou compram a sua produção.
pouca disponibilidade de capital c da sazonalidade da pesca. Í | U C
Nesse sentido, a pesca artesanal está articulada e dependente da
muitas vezes põe em risco a própria sobrevivência física do pesca-
pesca empresarial.
dor c sua família, é normal que o pequeno produtor venha a incor-
porar inna nova tecnologia somente quando ela tenha feito sua
prova. Assim mesmo, inúmeras inovações já foram incorporadas 9" Falácia: "Os Pescadores Artesanais são
pelos pescadores artesanais, tais como a rede de náilon cm substi- Individualistas e não se Oiganizam "
tuição à de algodão, o motor de popa c depois o dc centro cm
substituição à propulsão à remo c vela, as diversas técnicas de ar- É evidente que a própria natureza da pesca, enquanto "caça", leva
o pescador a guardar segredo dc seus pontos de pesca e a dificil-
rasto p(ír pe(]uenas embarcações para a pesca do camarão, etc.
mente compartilhar com outros a razão mesma dc seu êxito: o

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189
A N T O N I O C:AIÍLOS DIKGUKS RKAI.IOAOKS K l'\\i.Á<:iAs

conhecimento dos pesqueiros. Isso existe mesmo entre "mestres" IP' Falácia: "O Pescador Artesanal é um
da pesca industrial, pertencentes à mesma empresa. N o entanto, Profissional de Tempo Integral"
enquanto realizada dentro do grupo de pesca, é uma atividade
coietiva, já com um certo nível de divisão de tarefa e trabalho. Em muitas regiões, o pescador artesanal é um pequeno produtor
Quanto à atual organização dos pescadores artesanais em que combina várias atividades tais como a agricultura, o extrati-
" C o l ó n i a s de Pesca", esta é um resquício das associações medi- vismo, a pesca, o artesanato etc. É, em geral, uma forma de m i -
evais i b é r i c a s e que, frequentemente, n ã o representam os nimizar os riscos e aproveitar os períodos dc entressafra. Muitos
interesses dos pequenos pescadores. E m muitos casos, presi- programas de assistência e crédito, aceitam somente o candidato
dentes de colónias são líderes partidários e não pescadores, que que exerce a pesca como única atividade e em tempo integral. Isso
utilizam a organização com í1ns de controle social e político. leva à desestruturação dessa forma de produção, aumentando os
Elas t a m b é m n ã o estão capacitadas a resolver um problema riscos de fracasso e as chances de um empobrecimento, bem como
básico do pequeno produtor: comercialização. Nos últimos anos, a sobrepesca. Os programas de desenvolvimento deveriam, ao
sobretudo a partir da C o n s t i t u i ç ã o de 1988, que garante o direi- contrário, respeitar essa complementaridade de atividades, já
to de associação, a participação dos pescadores nas políticas tradicional em muitas áreas costeiras. Daí a necessidade de se ela-
pesqueiras tem aumentado, com o aparecimento de movimen- borar cm programas de desenvolvimento rural que respeitassem o
tos sociais ligados à pesca. modo de vida dos pequenos produtores costeiros.

W Falácia: "Os Pescadores Artesanais são Predadores"


PRSCA ARTESANAL R
Em todas as partes do mundo, a sabedoria tradicional do peque- D E S E N V O L V I M E N T O DA PESCA ^
no pescador e sua d e p e n d ê n c i a da reprodução cíclica dos esto-
ques é são fatores importantes na conservação dos recursos. E m Em virtude de sua importância termos de produção pesqueira,
muitos casos usam técnicas inventivas de conservação dos car- geração de empregos, fornecimento de alimentos e divisas, a pes-
dumes. É o caso do "acajá" usado pelos pescadores lagunares do ca artesanal deve f;r/er parte integrante de toda estratégia de de-
Benin, encontrado t a m b é m na lagoa do M a n d a ú , Alagoas. São senvolvimento pesqueiro. Sucede, no entanto, que o conceito de
verdadeiros viveiros artificiais feitos com galhos de árvores onde "desenvolvimento pesqueiro" utilizado é, em geral, equivocado,
r e ú n e m os peixes, que somente são pescados quando atingem a pois tem como critério somente o aumento físico da produção.
idade adulta. O pescador artesanal passa a depredar quando é Novos pesqueiros levariam a novos investimentos em embarca-
compelido a tanto, pela c o m p e t i ç ã o desleal da frota empresarial, ções e equipamentos a t é o momento em que, dada a característica
pelo sistema de preço praticado pelos compradores, associado de "bem-comum", propriedade comum do mar e seus recursos,
frequentemente a monocaptura de espécies de alto valor de mer- haveria um superdimensionado esforço de pesca, e sobrepesca. Até
cado como o camarão. Essa sobrepesca, quando praticada é, ali- o ponto de equilíbrio recursos/inversões haveria "desenvolvimen-
ás, um sinal da desestruturação das próprias comunidades dos to" e depois haveria necessidade de "manejo". Ora não existe
pescadores. desenvolvimento de "recursos pesqueiros" e sim sua utilização
auto-sustentada, destinada ao bem-estar, ao aumento de renda das
populações que deles se utilizam, etc. Nesse sentido, o desenvol-

190 191
A N TONIO CAUI.OS DIKGUKS

mento e a experiência local acumulados pela tradição, não devem


ser considerados como um simples retorno a técnicas ancestrais.
Ao contrário, esse enfoque sócio-ecológico deve ser intensivo em
pesquisa científica e tecnologia moderna, como catalisadora na cri-
ação de cadeias de produção que utilizem muita mão-de-obra, não
representem perigo para o ecossistema natural e sejam economi-
camente viáveis.

CONHECIMENTO TRADICIONAL
E APROPRIAÇÃO SOCIAL DO
AMBIENTE MARINHO

BlBl.íOGKAI-IA

Cordcll, J. 1967. Thc lunar tide fishing cycle in Northcastcrn Brazil.


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marítima. Brasília. Tese (Doutoramento), Universidade Kederal de oralmente pelos pescadores artesanais e seu papel nos pro-
Brasília.
gramas de manejo pesqueiro t ê m recebido atenção especial dos
Mourão, E 1971. Pescadores do litoral sul do Estado de SÕo Paulo. São Pau- pesquisadores de várias regiões do mundo (Ruddle, 2000; Cordell,
lo. Tese (Doutoramento), FFLCH-USl».
2000). Esse conhecimento e as práticas associadas, segundo Ruddle
(2000), orienta e sustenta o funcionamento de sistemas de manejo
comunitário e está na base das decisões e estratégias de pesca dos
pescadores artesanais. Nesse sentido, ele é empírico e prático, com-
b i n a n d o i n f o r m a ç õ e s sobre o c o m p o r t a m e n t o dos peixes,
taxonomias e classificações de espécies e habitats, assegurando
capturas regulares e, muitas vezes, a sustentabilidade, a longo pra-
zo, das atividades pesqueiras. O conhecimento tradicional tam-
b é m fornece uma base de informação crucial para o manejo dos
recursos pesqueiros locais, em particular nos países tropicais onde
os dados biológicos raramente são disponíveis.

194 195
A N I O M O CAKI.OS l)ii;c;ii:s C O N I I K C I M K N TO T U A D I C I O N A I . K Al'Kí)l'KlAC,:ÃO S o C I A I .

Vários estudos de etnobiólogos de pesca e de antropólogos t ê m p r i n c i p a l m e n t e no parentesco; (f) pelo uso de tecnologias
mostrado a rique/a do conhecimento dos pescadores artesanais no patrimoniais relativamente simples, com impacto limitado sobre
Brasil. Gláucia Silva (2000) analisou as categorias analíticas usadas o meio ambiente; (g) pelo fraco poder político e d e p e n d ê n c i a
pelos pescadores de Piratininga (Rio de Janeiro). Alpina Begossi política e económica dos centros urbanos; (h) pela tradição oral
(1997) estudou os critérios de classificação de peixes usados na responsável pela produção e transmissão dos saberes, símbolos e
Ilha de Bú/ios (SP), Lúcia Helena Cunha (1989, 2000) e Simone mitos associados com a pesca artesanal e, em algumas vezes, com
Maldonado (2000) descreveram o conhecimento e o saber-fazer a pequena agricultura; (i) por um certo nível d c identidade social
dos pescadores do litoral paranaense e paraibano. Diegues (1983, e cultural que distingue essas comunidades das demais pelo modo
2000) descreveu aspectos do conhecimento e manejo pesqueiro de vida dos pescadores; e (j) por uma visão de mundo e linguagem
por comunidades de pescadores artesanais no Rio Grande do Norte, próprias, distintas daquelas do mundo urbano-industrial.
(Espírito Santo e Rio de Janeiro). Contribuições importantes ao
tema foram dadas por Forman (1967,1970), Cordcll (1974, 2000),
Mourão (1971) e Marques (2001). ÁRKA.S I-: T K M A S Í^O C O N H K C I M K N ro A D I C I O N A L
Neste trabalho, conheámeuto tradiáoual na pesca é entendido
como um conjunto de práticas cognitivas e culturais, habilidades Esse conhecimento e saberes englobam diversos campos como a
práticas e saber-fazer transmitidas oralmente nas comunidades classificação de espécies aquáticas, comportamento dos peixes,
dc pescadores artesanais com a função de assegurar a reprodução taxonomias, padrões de reprodução c migração das e s p é c i e s e
dc seu modo de vida. N o caso das comunidades costeiras, cie é cadeias alimentares. Eles se referem t a m b é m às características
c o n s t i t u í d o por um conjunto de conceitos e imagens produzidos físicas e geográficas do habitat aquático, clima (nuvens, ventos,
e usados pelos pescadores artesanais em sua relação com o meio m u d a n ç a do tempo)e às artes de navegação e pesca. O conheci-
ambiente aquático (marinho, lacustre, fluvial) e com a própria mento tradicional t a m b é m diz respeito às relações com o mundo
sociedade. Berkes (1993) deflne esse conhecimento como um sobrenatural.
conjunto cumulativo dc saberes e crenças transmitidas cultural-
mente através de gerações sobre a relação dos seres vivos (inclu- Taxonomias de Peixes
indo os humanos) entre si e com seu meio-ambiente (Gadgil;
Berkes & Folke, 1993). E m muitas comunidades de pescadores artesanais brasileiras, os
Esse tipo particular de conhecimento é produzido por comuni- peixes desempenham um papel importante entre os demais seres
dades dc pescadores que se caracterizam: (a) pelas relações sim- vivos nas classificações nativas, com a utilização dc diversos crité-
bólicas c económicas intensas com a terra, o mar e seus ciclos, rios. Essa deferência aos peixes evidencia-se com o uso da catego-
construídas nas práticas de uso dc ambientes costeiros e marinhos; ria de "família", na classiflcação das espécies de peixes, sendo
(b) pela ligação com o território onde o grupo social se reproduz menos utilizada para animais e plantas. Esse tratamento especial
socialmente; (c) pela importância das atividades de subsistência, dado aos peixes deve ser visto a partir de conceitos e imagens que
ainda que as relações com o mercado desempenhem um papel os aproximam do homem, desde que ambos são responsáveis pela
importante na reprodução do modo dc vida; (rl) pela acumulação articulação entre a terra c o mar (Silva, G. 2000).
limitada de capital; (e) pelo papel crucial desempenhado pela As classificações nativas t a m b é m emjHcgam tipologias pelas
unidade familiar ou d o m é s t i c a c as relações sociais baseadas quais cada classe de seres deve apresentar o maior n ú m e r o de ca-

196 197
C 0 N I I K ( : i M K N ' T O T l í A D l C l O N A l . K AlMíOlMÍIAÇÃO S O C I A I .
A N T O N I O CAIÍI.OS DIKOUKS

percebem a natureza como feita por esses dois vastos mundos: o


racteríscicas semelhantes para poderem ser identificadas. Alem
da terra c o do mar. A distinção entre esses dois mundos é uma
dessa regra, baseadas t a m b é m na forma e aparência externa, exis-
base importante para a classificação, pois animais e plantas são
tem incorporações situacionais entre classes de nomes atribuídos
vistos e organizados segundo pertençam a um desses dois mun-
de acordo com características intrínsecas, articuladas por uma es-
dos. Os que vivem na terra são vistos em relação dc contiguidade
pécie de hierarquia de oposições complementares, relacionadas
com os pescadores e são classificados segundo critérios antro-
entre si de maneiras diversas, dependendo do contexto de refe-
pomórficos. Os que vivem no mar são ligados à terra por relações
rência. Essa classificação hierárquica é diferente da taxonomia
de analogia, sendo esse ambiente visto como a imitação da terra,
biológica clássica que estabelece subordinação até entre diversas
reforçada pela similaridade das formas entre os seres desses dois
categorias (Silva, G. 2000).
mundos (Silva, G. 2000).
A classificação dos peixes é peculiar. São classificados segundo
atributos e categorias relacionados com a vida humana e t a m b é m
com os animais terrestres e aves; esses atributos referem-se tanto Compoitamento dos Peixes
às características externas como às personificações: os peixes são
lerdos ou espertos, alguns são mais sensíveis que outros e, além H á b i t o s detalhados de alimentação dos peixes são descritos pe-
disso, eles se comunicam entre si. A semelhança com animais los pescadores na Lagoa de Marituba, na foz do Rio São Francis-
terrestres, existe o cação-gato, o peixe-cobra, o peixe-galo, etc. co, no Pastado de Alagoas. (Marques, 2001). Esses pescadores
(Cunha, 2000). usam o conhecimento desses hábitos de predação para escolher
suas iscas. O conhecimento dos hábitos alimentares é usado tam-
b é m para organizar a pesca. Assim, durante as primeiras chuvas,
Classificação cie Habitat
quando o peixe "ronca", ao colocar os ovos, é hora de preparar os
covos de pesca.
Além das espécies de peixes, rochas submersas são designadas pelo
nome do pescador que as descobriu. Essas d e n o m i n a ç õ e s Marques (1991) estudou, num enfoque de e t n o c o n h e c í m e n t o ,
exemplificam as relações entre os pescadores c seu meio ambien- as "caiçaras", estruturas feitas de galhos e depositadas nas águas
te marinho visto como um espaço domesticado. Cunha (2000) das lagunas de M u d a ú e Manguaba, pelos pescadores artesanais.
analisa as características físicas do mar e a produção de seu conhe- O autor menciona que os pescadores distinguem peixes que v i -
cimento. Para ela, o conhecimento tradicional marítimo é produ- vem nessas estruturas mais ou menos permanentemente como o
zido e acumulado culturalmente através da prática profissional, mero (Epi/ieplielus), carapeba (Eugerres hrasilinaus), camurim
sendo continuamente recriado de acordo com a especificidade do (Centropomus spp), caranlia (Lutjanus cyanoptems) e aqueles (juc
ambiente que se apresenta como cíclico, móvel e imprevisível. E m procuram p r o t e ç ã o t e m p o r á r i a nas c a i ç a r a s com a salema
outras palavras, a apropriação do mar e de seus recursos requer o (Archosaigus sp.) e o vermelho (Lutjanus sp.).
conhecimento de um código de saber-fazer que é construído e Os padrões de mobilidade e migração são t a m b é m conheci-
ritualizado no mar pela tradição, aprendizado, experiência e intui- dos por muitos pescadores artesanais na costa brasileira. U m
ção. Isso significa que a apropriação social desse espaço é simulta- exemplo é a migração da tainha (Mugilidac) realizada a partir do
neamente um ato cultural e produtivo. sul do país durante o inverno. Os primeiros ventí)s frios de maio
Vários autores enfatizam a relação entre o espaço duplo — ter- indicam as primeiras arribadas de tainha e a pesca dessa e s p é c i e ,
ra e mar — onde os pescadores moram e trabalham. Os pescadores ainda hoje, é importante para inúmeras comunidades litorâneas

198 199
A N T O N I O CAUI.OS DIKGCKS C O N I I K C . I M K N T O T u A O I C . I O N A I . K ATUOI'UIA(,:ÃO SOCTAI.

do sudeste brasilciro (Mussolini, 1945, Mourão, 1971). culturais. A construção desse corpo complexo e detalhado de
O ajuntamento de peixes associado à reprodução é um com- conceitos c símbolos baseia-se numa observação empírica de longo
portamento conhecido pelos pescadores artesanais brasileiros. Os prazo e é aplicada a áreas marinhas relativamente reduzidas em
sinais de cardumes de peixes são dados pela "ardentia". ou brilho tamanho, usadas pelos pescadores tradicionais locais, sendo
produzido por certos peixes pelágicos, como a sardinha, em noites raramente aplicável a outras regiões. Esse corpo de saberes orienta
dc lua nova, indicando o momento de lançar a rede de cerco o comportamento dos pescadores e as estratégias de pesca e é
(Diegues, 1983). Dc acordo com Ruddle (2()()()): essencial para prever situações em (pie a pesca pode ser produti-
va. Nesse sentido, o conhecimento tradicional ajuda os pescado-
"E conhecida a alta previsibilidade de concentração de pei- res locais a construir seus próprios mapas mentais que os orientam
xes associada à r e p r o d u ç ã o , pois esse comportamento se onde e como pescar.
correlaciona com as fases da lua. Estas são um indicador maior Os mapas mentais desenhados pelos pescadores ilhcus-
de eventos previsíveis em áreas de pesca, pois muitos peixes monteiros, a pedido de Eerri (1997), revelam o contorno da Ilha
formam grandes concentrações em momentos de reprodução dc M o n t e de Trigo no litoral norte paulista, marcado por vários
em locais conhecidos, durante certos meses e fases da lua. Nos p a r c é i s submersos a mais de 25 metros de profundidade e,
trópicos, locais privilegiados para as concentrações de cardu- portanto, não visíveis a olho nu, cada um com seu devido nome
mes usados para a alimentação são conhecidos pelos pescado- (Trinta réis, Lage da Coralinga, etc).
res locais" (p.282-3).
Como Ruddle ( 2000) indica:

"os padrões de uso de recursos são produtos, não do am-


As C A U A C Í I : líís riCAs S O C I . - M S K
biente físico e seus recursos per se, mas das perrepções e das
Cui.TfUAIS D O S S A H K I Í K S T IÍ A D I C [ O N AI S
imagens formadas culturalmente sobre o ambiente e seus recursos.
Assim, para se entender adequadamente as relações ecológi-
O conhecimento tradicional dos pescadores artesanais não é p r é - cas, é crucial se compreender a base local de conhecimento e
lógico ou pré-científico, mas como foi afirmado por Lévi-Strauss, o sistema cognitivo que lhe é subjacente" (p.282)
ele é baseado em observação contínua de fenómenos naturais re-
correntes que permite ao pescador tomar decisões sobre o momento
de ir pescar, sobre o local mais adequado c sobre o uso das técnicas
FORMAS DK PRODUÇÃO K TRANSMISSÃO
mais apropriadas. Sem esse conhecimento preciso, seria impossível
DOS SABKRI-S T R A D I C I O N A I S
a sobrevivência dessas comunidades e a reprodução de um modo
de vida num ambiente marinho sujeito a freqíicntes e perigosas
A habilidade em identificar zonas produtivas de pesca na imensi-
m u d a n ç a s de tempo.
dade do mar, fora da terra, pode ser chamada de habilidade
Como Gláucia Silva (2000) assinala, a classificação tradicional cognitiva dos pescadores que é o resultado do processo de apren-
de espécies é similar, cm alguns aspectos, à taxonomia usada pelas dizado. Existem habilidades específicas ligadas à familiaridade dos
ciências biológicas. No entanto, o fato mais importante é que ambos humanos com um espaço determinado, intrinsecamente ligadas
são uma resposta à mesma necessidade de ordem mencionada por às atividades, p e r c e p ç õ e s c atitudes, e adquiridas pela so-
Lévi-Strauss (1978), que é subjacente a todas as configurações cialização, responsáveis pela capacidade dos pescadores em se

200
201
C o N l [ K ( : i M K N ' T O T l í A O l C I O N A I . V. A I ' l í OI'Ií I AÇÃO S O C I A I ,
A N T O N I O CAIÍI.OS DII-:C;I:KS

missão do aprendizado, muitas vezes, são tão sutis que os aprendi-


orientar no meio marinho. Nesse sentido, a " m e s t r a n ç a " e o co-
zes não se dão conta do processo e é muito comum que, ao se
nhecimento das artes de pesca surgem e se desenvolvem num
indagar como alguém aprendeu tal habilidade, a resposta será:
espaço físico determinado. Essas práticas culturais moldam a visão
Aprendi sozinho ".
de mundo e o modo de vida das comunidades de pescadores
(Maldonado, 2000).
N o caso da pesca de marcação ou de caminho e cabeço, pela qual
GKNKIU), DIVISÃO D K T U A H A M I O K
rochas submersas são encontradas e sua posição, guardada na
C O N H E C I M E N T O T R A D I C I O N A L
memória dos "mestres de pesca", a visão é o sentido mais i m -
portante para o processo de produção do conhecimento. Como afir-
Os saberes tradicionais não estão distribuídos, de maneira unifor-
ma Ferri (1997), referindo-se à produção e transmissão do conhe-
me, entre os pescadores. Ainda que os pescadores mais velhos
cimento de locais de pesca na Ilha de Monte de Trigo, litoral norte
sejam considerados mais conhecedores que os jovens, mestres de
de São Paulo, existe uma verdadeira "tradição visual" e a produ-
pesca com sucesso são aqueles que possuem qualidades especiais
ção do conhecimento se dá através dela. Aprende-se vendo como
de mestrança. Esta é entendida como um conjunto de conheci-
os outros ííi/em, sobretudo os mais velhos e experientes.
mentos, c o m p e t ê n c i a e experiência que garantem a autoridade
necessária para decidir onde e como pescar e t a m b é m o respeito
"Visão, audição, olfato, sentido de equilíbrio e capacidade da tripulação. Para os pescadores de Galinhos (RN), a sorte somen-
de perceber o tipo de balanço do mar são sentidos extraordi- te ajuda os mestres experientes que sabem navegar guiados pelas
nariamente desenvolvidos nos ilhéus monteiros. Todas as per- estrelas e são capazes de descobrir bons pesqueiros em lajes
c e p ç õ e s que esses sentidos lhes proporcionam geram sinais submersas e guardá-los em segredo.
que permitem interpretar o tempo, o mar e os peixes. Isto que
N o entanto, algumas mulheres são experientes na pesca e tam-
se chama intuição, na realidade, é dado por um desenvolvi-
b é m na coleta de marisco, sendo chamadas t a m b é m de marisquei-
mento de todos os sentidos naturais a um nível que não é
ras. Elas garantem a subsistência com a mariscagem, sobretudo
conhecido pelos que são da cidade (...) o (erralãoperequeano é
em dias em que os homens não podem sair ao mar por causa do
um vento que se percebe antes de sua chegada, pelo olfato,
mau tempo. E m alguns lugares, elas praticam alguns tipos de pes-
pelo cheiro de mangue vindo da praia continental do P e r e q u ê ,
ca, como a das lulas, usando zangarias.
indicando a vinda da viração, o tempo de chuva que vem da
terra" (p. 146).

A APROPRIAÇÃO T R A D I C I O N A L DO M E I O M A R I N H O :
A transmissão desses conhecimentos é feita de diferentes ma-
A T E R R I T O R I A L I D A D E M A R Í T I M A
neiras. N o caso da pesca de marcação cm Galinhos (RN), o mestre
pode mostrar aos seus filhos ou ao membro interessado de sua
A apropriação social do meio marinho (manejo ou gerenciamento)
tripulação os sinais no continente que ele usa para fazer a sua rota
pode ser definida como um conjunto de práticas culturais de i n -
(picos de morros, torre de igreja, etc). E m outros casos, o aprendiz
tervenção na natureza, baseado na manipulação de componentes
aprende através da observação, da imitação do que faz o mestre,
orgânicos e inorgânicos, visando a reprodução social das comuni-
hreqiientemente, o processo de aprendizado é informal e as ins-
dades costeiras de pescadores. Neste trabalho, será usado o termo
truções verbais são raras. Para Ferri (1997), os processos de trans-

203
202
A N I O M O CAKI.OS DIKGI.-KS ( ' o N i i i : < : i M i : N ' r o ' r K A O i c . i o N A i . v. AI*KOIMÍIAÇ.\ SOCIAI,

apropriação tradicional do meio e dos recursos marinhos em vez dc pesca e para a identificação das espécies de pescado. E m algu-
de manejo ou gerenciamento, pois D conceito de apropriação in- mas comunidades de pescadores, o meio marinho não é uniforme,
corpora mais facilmente os aspectos simbólicos que envolvem a mas se apresenta formado dc inúmeros micro-habitats que incluem
relação entre os pescadores e seu meio ambiente. o mangue, as lagunas, os pesqueiros em lajes submersas, as barras
Através dessa apropriação social, os pescadores constroem sis- de rios, etc. E m alguns casos, alguns desses micro-habitats são
temas de "tenência ou posse marítima", através dos quais são de- deixados em descanso, enquanto outros são usados para a pesca
finidos os direitos de acesso aos recursos pesqueiros ou outros (Marques, 2001).
(mangue, recifes de coral, etc). N o processo de reprodução social Espaço e territorialidade são categorias definidas nas ativida-
dos pescadores, enquanto grupo social, eles podem, de forma i n - des de pesca, apontando para os diversos domínios da vida: água,
tencional ou não, regulamentar o acesso aos recursos do mar, contro- terra e ar, aos quais os pescadores atribuem significados. Apesar da
lando artes de pesca, ou impedindo a entrada de pescadores de indivisibilidade, o espaço marinho, marcado por elementos simbó-
fora em seu território de pesca. Como aponta Cordcll (2000), os licos, não c h o m o g é n e o , indiferenciado. Existem os pontos de
sistemas de tenência dos territórios marinhos são baseados em pesca, as rotas e caminhos influenciados por fenómenos naturais
valores culturais relacionados com a construção e afirmação da como os ciclos das marés e luas, pela reprodução dos peixes e tam-
identidade social e de um sentimento de se pertencer a um lugar. b é m pelas práticas culturais (Maldonado, 2000).
A apropriação social do mar ocorre dentro dos limites da territo- Para os pescadores artesanais, portanto, o mar não é somente
rialidade através da qual os pescadores "marcam" áreas que usam um espaço físico, mas é t a m b é m o resultado de práticas culturais,
na pesca, algumas das quais são apropriadas de forma comunitária. onde os grupos de pescadores artesanais se reproduzem material e
Ou como afirma Godelier, através da noção do território, um grupo simbolicamente.
social garante aos seus membros o controle ou acesso aos recursos Os recursos explorados são móveis, e estabelecer e manter l i -
naturais, a reprodução do homem enquanto espécie, seus meios de mites e divisas não é tarefa fácil. Apesar disso, os pescadores
subsistência, e as relações sociais e simbólicas. (Godelier, 1984). artesanais dividem o espaço marítimo através de sistemas de se-
A territorialidade marinha depende não somente do meio físico quencia dc lanço de rede, pesqueiros e "caiçaras". Os saberes tra-
a ser explorado, mas t a m b é m das relações sociais estabelecidas dicionais tornam possível a divisão do mar em zonas onde a pesca
entre aqueles que o utilizam. Para muitas comunidades de pesca- é praticada sem ferir os direitos de outros pescadores e que são
dores, o mar apresenta marcas de propriedade, geralmente em guardadas pela lei do respeito. N o entanto, essa territorialidade do
pesqueiros produtivos descobertos e guardados em segredo. Essas mar n ã o se faz sem conflitos e intrigas que, algumas vezes,
marcas podem ser físicas, como as das "caiçaras" construídas nas terminam por estragos em redes e cercos.
lagoas de M u n d a ú c Manguaba, em Alagoas, e protegidas pela "lei O "respeito" às zonas de pesca está na base da t e n ê n c i a tra-
do respeito". As marcas podem t a m b é m ser invisíveis, como os dicional dos espaços marítimos e funcionam enquanto operam a
pesqueiros em lajes submersas, encontrados pelo sistema de estrutura social e os valores que lhes são subjacentes. Hoje cm
navegação intitulado de "caminho e cabeço". Para os membros dia, a desorganização social que marca várias comunidades de
das comunidades de pescadores artesanais, o território marinho é pescadores leva ao abandono dessas práticas. E m outros casos,
mais amplo e mais fluido que o terrestre. no entanto, essa tenência marítima ainda funciona e pode de-
O conhecimento do meio físico é extremamente importante sempenhar um papel importante na conservação dos recursos
para uma navegação segura, para o uso adequado de instrumentos marinhos.

204 205
A N TONIO CARI.OS DIKGUKS
C O N I I K C I M K N V O T U A O I C I O N A I . K AlMíOTRIAÇ.-SO S o C I A I .

Os ASIM-CTOS SiMiiÓI.ICOS D A
U m dos mais conhecidos orixás dos ritos afro-brasilciros é
AIMÍOIMUACAO T R A D I C I O N A L D O M A R
Yemanjá, rainha do mar, t a m b é m considerada mãe dos peixes (Yeye:
mãe; eja: peixe) que protege tanto os peixes como os pescadores e
A posse social do espaço marítimo implica não somente relações
marinheiros. Os pescadores de xaréu, na Bahia, costumavam pedir
com o meio ambiente e com a sociedade, mas t a m b é m em cone-
a bênção e proteção de Yemanjá antes de começar a pesca, sem o
xões simbólicas com o mundo não-material. Conceitos e represen-
que a pesca poderia ser infrutífera e as redes poderiam se romper.
tações do n^undo natural e seus recursos são distintas em socieda-
São famosas as festas populares de dois de fevereiro e da última
des tradicionais e sociedades urbano-industriais. Godelier (1984)
noite do ano, quando milhares de fiéis se r e ú n e m nas praias para
argumenta que essas duas sociedades apresentam racionalidades
comemorar o dia da M ã e do Mar, atirando às ondas os presentes
distintas e cada uma delas dispõe de um conjunto dc regulamentos,
preferidos: pentes, sabonetes, flores, moedas para agradecer
conscientemente elaborados, para atingir seus objetivos. IDe acordo
Yemanjá e pedir-lhe proteção (Seljan, 1973).
com esse antropólogo, cada sistema social e económico cria um
A imaginação popular dos pescadores artesanais está repleta
modo específico de uso dos recursos naturais e do trabalho e,
de seres mágicos que castigam quem destrói a floresta e mangues
consequentemente, cria normas para o bom e mau uso dos recursos
(caipora, curupira, boitatá) e aqueles que maltratam os animais
naturais. De acordo com Godelier (1984), no interior das relações
(anhangá) (Câmara Cascudo, 1972). Assim, os varjeiros da Várzea
materiais com a natureza, existe um aspecto não-material que
da Marituba, em Alagoas, acreditam que M ã e d'Agua vira a canoa
unifica as três funções do conhecimento: representar, organizar e
dos pescadores ambiciosos que pescam mais que o necessário para
legitimar as relações sociais e com a natureza. Para se entender o
sua sobrevivência.Entrar nesses ambientes aquáticos, sem a devi-
processo material de produção é essencial se levar em conta os
da permissão significa, para esses pescadores, um ato perigoso. E m
mitos e símbolos usados pelos pescadores para representar o mar e
alguns manguezais da região norte, existem os "ataídes", seres
os seres que aí vivem. O processo de produção na pesca tradicional
míticos que a m e a ç a m aqueles que cortam as árvores sem cuidado.
incorpora elementos simbólicos que atuam não sobre a natureza,
N o lago do Arari, na Ilha de Marajó, os pescadores locais afirmam
mas sobre as forças sobrenaturais que garantem uma pesca
ter visto uma arraia grande que protege os outros peixes encur-
proveitosa e, por vezes, castigam os pescadores demasiadamente
ralados em poças d'água durante a estação seca. Para pescar aí, os
ambiciosos.
pescadores necessitam da permissão da arraia grande, sem o que
A estreita relação desses pescadores com o ambiente e sua maior podem correr risco de vida (Fares, 2001).
d e p e n d ê n c i a leva à associação de ciclos naturais (chegada de
Mata e água são domínios que se inter-relacionam na Amazó-
cardumes) com explicações míticas e religiosas. As comunidades
nia e são extensões da vida dos pescadores "caboclos" que acredi-
caiçaras do litoral sudeste pescam sem temor em estuários fechados,
tam na existência de entidades sobrenaturais, os caruanas, bichos
mas temem a passagem das barras de mar, onde podem ocorrer
de fundo, a cobra- grande, a tapiraiaura e a onça d'água que mo-
naufrágios. Na sala de milagres da basílica do Senhor Bom Jesus
ram no interior dos igarapés e que são capazes de ameaçar aque-
de Iguapé, estão expostos ex-votos, aí expostos como pagamento
les que desrespeitam os ambientes (Furtado, 1997). Alguns ca-
de promessas feitas por navegantes ameaçados por tempestades.
boclos evitam pescar em certas áreas e períodos, com receio de
Nesse sentido, é importante se analisar o sistema de represen-
encontrar as "encantarias". Esse receio pode ser interpretado
tações e símbolos que as comunidades de pescadores constroem
como um mecanismo de controle das ações humanas sobre esses
em sua relação com o meio ambiente.
ambientes.

206
207
A N I O N I O CAIÍI.OS DIKGLKS CONMKC.IMKN TO T R AOICl ON A l . K A f U O r i í l A Ç . À O S O C I A I ,

Existe um debate sobre o caráter "conservacionista" consciente Exemplos de Apropriação Social dos
relacionado com essas crenças e comportamentos das comunida- Ambientes Aciuáticos Brasileiros
des tradicionais. Posey (1992) utiliza o enfoque étnico e ético para
discutir a q u e s t ã o da intencionalidade dessas práticas tradicionais. Seguem abaixo alguns exemplos de apropriação social dos ambi-
Segundo ele, para alguns autores, as práticas tradicionais que l i m i - entes e recursos aquáticos, ao longo do litoral, sistemas estuarinos
tam a exploração dos recursos naturais podem ser consideradas e fluviais brasileiros.
intencionalmente conservacionistas. De acordo com eles, os pesca-
dores artesanais desenvolvem essas práticas de forma consciente — Caiçaras ou Pesqueiros
para proteger os recursos naturais e os seres míticos associados a
essas práticas desempenham um papel crucial nos sistemas de Caiçaras ou pesqueiros são estruturas, em geral piramidais, consti-
apropriação social do ambiente. Para Posey, essa c uma visão éf/ca tuídas de galhos colocados no fundo de estuários e lagunas. São
desenvolvida pelo pesquisador, mas nas concepções dos pescado- semelhantes aos akajás existentes em Benin e descritos por
res artesanais, esses seres podem desempenhar um papel i m - Bourgoignie (1972) e Kapestky (1982) e, no Brasil, por Diegues
portante, por exemplo, para evitar a a c u m u l a ç ã o de capital que (1983) e Marques (1991). N ã o se sabe se esta técnica foi trazida da
levaria a uma diferenciação social em sociedades mais homo- África do Oeste pelos escravos negros ou desenvolvida localmen-
g é n e a s . Nesse sentido, dentro da visão êmica dos pescadores, te. Essas estruturas são usadas pelos pescadores de M u n d a ú e
essas práticas podem não ser conservacionistas no sentido em Manguaba, em Alagoas e em Mamanguá, Estado do Rio de Janei-
que são definidas hoje. Na verdade, muitas dessas comunidades ro. S ã o colocadas em águas rasas, com pouca correnteza. Os
de pescadores descendem dos povos indígenas que habitaram e pescadores que as constroem tem um grande conhecimento das
habitam a costa brasileira (Guarani, T r e m e m b é , Pataxó) e incor- espécies que se abrigam nesses habitat artificiais, bem como dos
poraram práticas materiais e não-materiais dessas culturas. Na diversos organismos que se fixam nos galhos durante os vários
cosmologia de povos indígenas, não há distinção clara entre os seres estágios de sucessão ecológica: as macro-algas, localmente deno-
humanos e não-humanos, sendo que todos os seres vivos estão re- minadas de cabelo; o perifiton, conhecido localmente como limo,
lacionados por uma teia de sociabilidades. A natureza não é só ha- os Terrinidae, chamados de buzame, o sururu (Mytella cliannana)
bitada pelos humanos e animais, mas t a m b é m pelos espíritos dos e as ostras (Cassostrea rizophorae). Cada um desses organismos serve
ancestrais c t a m b é m dos animais (Descolla, 2000). Nesse sentido, de alimento a uma fauna específica dc peixes. Quando os peixes
os conceitos modernos como "conservação", "vida selvagem", maiores atingem a idade adulta, são pescados com rede, sendo
"natureza intacta", "biodiversidade naturar'e "ecossistemas deixados aqueles ainda jovens (Marques, 1991).
naturais" são conceitos ocidentais que não se enquadram dentro As caiçaras podem ser consideradas:
da visão de mundo e dos seres vivos dessas populações tradicio-
nais. Portanto, a "conservação do mundo natural" deve ser pensa-
- Sistema de tenência do mar
da a partir dessas categorias mentais das populações tradicionais.
Os pescadores locais são donos do lugar cm (jiie se instala a
Constata-sc, t a m b é m , que muitas dessas comunidades tradicio-
caiçara, que é protegida pela lei do respeito. Como dizem os
nais estão usando o "discurso ecológico" para forjar alianças t]ue
pescadores locais: ''Não podemos proibir que outros pesquem nas
possam garantir a posse de seus territórios e a reprodução de seu
nossas caiçaras, mas eles respeitam as nossas como nós respeitamos
modo (ic \'ida.
as deles".

208 209
C O N H K C I M K N I O T l í A D l C l O N A l . K A l ' I í OlMí IACÃO SOCIAI
A N TOMO CAIÍI.OS DIKOUKS

— A Pesca de Marcação ou de Caminho e Assento


Umdade de recursos.
Os pescadores t ê m conhecimento que as caiçaras concentram
É uma modalidade de localização de lajes submersas, ante-
espécies de peixes que, de outra maneira, viveriam dispersas
riormente descobertas pelos mestres, em várias localidades do Nor-
(concentração de biomassa).
deste. O mar recebe marcas (daí o termo marcação), cujo processo
- Dispositivo de concentração de peixes.
é guardado em segredo pelo pescador que descobre o pesqueiro. A
As espécies de peixes encontram aí um higar dc alimentação e
viagem ao local (o caminho) se faz tendo como referência os picos
proteção.
de morros, torres de igreja localizados em terra, possibilitando a
- Sistema de apropriação de recursos (manejo pesc^ueiro).
chegada aos "cabeços" (lajes submersas).
Os pescadores locais utilizam esses novos habitat de uma forma
Esse sistema foi descrito inicialmente por Cascudo (1954) e,
responsável, coletando os peixes em idade adulta e, nesse sen-
posteriormente, por Galvão (1968), no Estado do Rio Grande do
tido, a caiçara pode ser considerada uma técnica de aquicultura
Norte. Posteriormente, Forman (1970) descreveu esse tipo de pesca
extensiva, como afirma Kapetsky (1981).
em Alagoas e, de acordo com esse autor, o segredo está no centro
dessa atividade e tem como finalidade diminuir a competição por
N o caso de M u n d a ú , as caiçaras estão recebendo o impacto da
pesqueiros de alta produtividade. Quanto mais " c a b e ç o s " são
degradação da lagoa, causada pela descarga de resíduos da fa-
descobertos pelo mestre, maior a sua fama e o respeito dos outros
bricação do álcool, da urbanização galopante, contribuindo para a
pescadores (Diegues, 2000).
desorganização do éthos de respeito reinante nas comunidades
locais.
— Cercos e Currais
— A Pesca de Calão no Sul da Bahia
Cercos, na região sudeste, e currais, no nordeste, são armadilhas
construídas em bambu ou material semelhante que, instaladas
Esse tipo de "posse" marítima foi descrito por Cordell (198.3) e,
próximas à costa, bloqueiam o caminho dos peixes que acabam
através dela, os mestres controlam a pesca realizada em pequenas
entrando no cercado e de onde não podem mais fugir. O local e o
porções de estuários que sofrem influência das fases da lua e das
cerco são apropriados pelos pescadores que instalam a armadilha e
marés. Esses locais recebem nomes dados pelos mestres que de-
a despescam. Pescar clandestinamente no cerco constitui uma
t ê m direitos exclusivos sobre os pesqueiros utilizados para os
ofensa grave e ocorre quando o Í Z / ^ O Í do respeito existente no inte-
lanços de rede. A utilização desses espaços e a sequência dos lanços
rior da comunidade está desaparecendo ou quando pescadores de
são determinadas por uma conjugação complexa das fases da lua
fora da comunidade o fazem.
e das marés. O acesso a esses pesqueiros, por outros pescadores,
pode ser garantida pelo sistema de compadrio, pelo qual os de
fora levam como membro da tripulação um compadre local que
cede seus direitos de pesca, evitando, assim, eventuais conflitos. — Acesso Restrito a Pesqueiros
Esse sistema tem sofrido a incursão de pescadores de fora que
ferem a tradição do respeito, ao pescar, sem licença, nos locais De acordo com a legislação brasileira, a pesca pode ser exercida
controlados pelos mestres. em qualquer localidade por todo o pescador associado à colónia
que tenha sua carteira em dia. N o entanto, em várias regiões, cer-

210 211
A N l O M O CAIÍI.OS i : ) i i : ( ; n : s C o N M K O l M i C N TO T l í A D l C l O N A l . V. Al'líOPKIAÇÃO SOCIAI

tas áreas de pesca são tradicionalmente exploradas por comunida- consenso, através do rodízio em que cada equipe tem a sua vez.
des adjacentes que defendem seus direitos tradicionais contra a Esse rodízio impede que a mesma equipe utilize o espaço mais
incursão de barcos dc arrasto. Isso ocorre no Saco do M a m a n g u á , produtivo sempre (o Canto), em detrimento de outras equipes.
ao sul do Rio de Janeiro, onde os pescadores artesanais locais se O n ã o - c u m p r i m e n t o do combinado do rodízio implica em
opuseram aos arrastões, tendo jogado no fundo do e s t u á r i o s a n ç õ e s , no mais das vezes, informais, mas socialmente
estruturas de cimento, com vergalhões de ferro destinados a rasgar discriminatórias" (Silva, 1997).
as redes de arrasto. Organizados numa associação local, esses
pescadores t ê m tido sucesso em evitar a entrada dos barcos de
arrasto e mantido acesso exclusivo para a pequena pesca de camarão As RKI.AÇÒKS KNTKK OS SAIÍKIÍKS T R A D I C I O N A I S ,
(Diegues & Nogara, 1994). A AiMíoiMíiAÇÃo S O C I A L D O AMIÍII-;NTK M A R I N H O

!•: A Qiii-sTÃo D O P ( ) D I : R
— Lanços Sequenciais tie Rede
No Brasil, a posse marítima e a apropriação social dos recursos do
Os pescadores artesanais são usualmente acusados de serem de- mar somente há pouco tempo v ê m recebendo atenção por parte
sorganizados e individualistas e, no entanto, existem exemplos dos pesquisadores. Um das razões é que a zona costeira, assim como
que mostram experiências de auto-organização. Isso ocorre, por a Amazónia, fora das áreas já urbanizadas, foram tratadas como es-
exemplo, na pesca da manjuba (Anchoviella huhsi), no estuário de paços vazios, ainda que fossem habitados por populações tradicio-
I g u a p e - C a n a n é i a , ao sul do Estado de São Paulo. Como hoje a nais, socialmente invisíveis até recentemente. Somente há pouco
pesca da manjuba se restringe a poucas áreas do estuário e da foz tempo, essas populações se tornaram socialmente mais visíveis,
do Rio Ribeira, com grande concentração de redes na safra, os quando começaram a se organizar e a resistir às expulsões de suas
pescadores organizam a s e q u ê n c i a dos lances, seguindo a an- áreas costeiras, muito valorizadas peia especulação imobiliária.
t e c e d ê n c i a de chegada de cada equipe na área. Na Ilha do Car- Assim como em outras partes do mundo, no Brasil, o espaço
doso, litoral sul de São Paulo, existe a pesca da caiôa realizada no marítimo é considerado de acesso livre. Durante os anos 60, quan-
tempo da tainha, onde equipes de três a cinco pescadores dão o do se implantou a indústria de pesca no Brasil, o acesso livre aos
lanço de praia nas " t e n s õ e s " ou espaços em que, imaginariamen- recursos bióticos tornou-se um dos pressupostos básicos para o fun-
te, se divide a costa: existe a tensão do Canto, a mais produtiva, cionamento das empresas de pesca (Diegues, 1983). A frota subsi-
junto ao costão, do Meio e da Rabada. As equipes de pesca se diada de grandes barcos de pesca invadiu as áreas tradicionalmen-
organizam nos dias que antecedem a arribada das tainhas vindas te ocupadas pela pesca artesanal, c o m e ç a n d o a desorganizar os
do sul, decidindo aquela que começará a dar o lanço em primeiro sistemas tradicionais de apropriação dos recursos pesqueiros. Os
lugar, c o m e ç a n d o pelo Canto. Na segunda noite, essa mesma conflitos t a m b é m c o m e ç a r a m a aparecer, particularmente no
equipe lanceia nas outras " t e n s õ e s " e o Canto passa a ser usado Nordeste. Os administradores de pesca simplesmente ignoraram
pela outra equipe e assim sucessivamente, para ([uc todos te- os sistemas tradicionais de manejo existentes, em parte invisíveis
nham as mesmas chances na pescaria. para os de fora, e impuseram leis que beneficiaram exclusivamen-
te a ineficiente indústria pesqueira.
"Nota-se aí que existe uma regulamentação informal de O estabelecimento de áreas protegidas sobre territórios perten-
acesso a esse espaço considerado de uso comum, que se dá por centes a comunidades litorâneas t a m b é m afetou negativamente o

212
213
A N r o M o CARLOS DIKGUKS
C O N M K C I M K N r o T R A D I C I O N A L K Al>HOI'RIACÀO S{)CIAL

modo de vida dos pescadores artesanais. Muitas dessas áreas, nas


nidades para exercer seu sistema tradicional de manejo. Isso é
regiões costeiras, eram e são habitadas por pescadores artesanais
particularmente importante em países tropicais onde o conhe-
que desenvolveram formas específicas dc apropriação dos recursos
cimento científico é ainda insuficiente" (p.291).
do mar. Frequentemente, as matas associadas aos ecossistemas
litorâneas conservaram-se em bom estado n ã o porque foram
transformadas em parques nacionais, mas sobretudo porque eram A situação atual é de confrontação, e não de cooperação entre
habitadas por essas comunidades tradicionais. Ainda assim, a esses dois tipos de conhecimento. De um lado, está o conjunto
legislação brasileira sobre unidades de conservação de proteção tradicional de saberes sobre os ciclos naturais e sistemas de mane-
integral pressupõe a expulsão desses pescadores artesanais de seus jo. De outro lado, está o conhecimento científico, derivado princi-
territórios ancestrais. palmente das ciências naturais, muitas vezes reducionistas, que
ignoram o saber tradicional.
Outra razão para o baixo nível de reconhecimento da importância
tio conhecimento e manejos tradicionais é a pressuposição dc que O conhecimento científico moderno julga-se não somente o juiz
uma p o p u l a ç ã o analfabeta e marginal não consegue produzir de todo o conhecimento, mas t a m b é m da proteção da chamada
conhecimento valioso. Muitas das instituições governamentais do "natureza selvagem" de que se julga árbitro e protetor. Isso explica
meio ambiente são controladas por cientistas naturais que porque, nas chamadas unidades de conservação de proteção total, a
consideram ser o conhecimento científico ocidental a única base pesquisa "científica" seja estimulada, ao passo que o conhecimento
para o estabelecimento de manejo costeiro. A partir desse pressu- tradicional, das comunidades que aí vivem, é ignorado.
posto e q u i v o c a d o , eles i m p õ e m sistemas de manejo Ainda que a ciência moderna e a tradicional sejam duas formas
frequentemente baseados em dados biológicos incompletos, trazen- de saberes, a relação entre ambas continua sendo pouco estudada.
do conseqtjências negativas para a pesca. Instala-se, então, um Como afirmam Gadgil, Berles e Folke (1993):
confronto entre os saberes, o científico moderno e o tradicional, ao
invés de uma colaboração frutífera. Na base desse conflito, está, "o conhecimento tradicional, com seu enfoque diacrónico,
sem dúvida, a questão do poder associado ao conhecimento cientí- ao contrário da ciência moderna com sua análise sincrônica, tem
fico, sendo este último utilizado pelo Governo para justificar muitas uma importância grande para a conservação. Mas como o co-
de suas intervenções cm áreas sociais e ambientalmente frágeis. nhecimento tradicional está intimamente ligado à prática e às
crenças, é mais difícil de se aceitar a validade desse saber no
O reconhecimento da importância do conhecimento tradicional
â m b i t o da ciência ocidental" (p.l55).
na gestão dos recursos naturais deve partir da aceitação, por parte
dos órgãos governamentais, do princípio, segundo o qual os porta-
dores desse conhecimento, as comunidades tradicionais, t ê m o Essa situação está mudando vagarosamente no Brasil e está
direito de permanecerem seu território e continuar exercendo seu havendo um aumento do interesse pelo conhecimento tradi-
modo tradicional de vida. Isso é negado a essas populações no caso cional e pela etnociência dentro e fora das universidades e ins-
cm que seus territórios são transformados em áreas protegidas, titutos de pesquisa.
negadoras de seus modos de vida. Como afirma Ruddle (2001): Numa pesquisa bibliográfica organizada pelo NUPAUB, em 1999,
sobre conhecimento tradicional e biodiversidade, constatou-se que
35% de cerca de 1.000 trabalhos sciecionados utilizaram o
"O conhecimento local pode ser entendido como um sis-
tema de poder e, portanto, pode fornecer autoridade às comu- conhecimento tradicional e o enfoque etnocientífico. Cerca de 25%
desses trabalhos t a m b é m mencionaram a existência de manejo
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215
A N TOMO CARI.OS D I K O I K S CONHKCIMKN r o T R A D I C I O N A I . K AI-ROIMÍIAÇ.SO SOCIAL

tradicional utilizado pelos pescadores artesanais. A maioria desses NOVAS T K N D f ; . N c i A S i- EXIM-RILNCIAS

trabalhos foi escrita entre 1990 e 1999, sobretudo por antropólogos LOCAIS DE GESTÃO DM RECURSOS

e etnocientistas. A partir desse levantamento, fica claro o interesse E ESPAÇOS M A R I N H O S

crescente dos biólogos pela pesquisa sobre o conhecimento


tradicional. Existem tendências diversas C j u a n t o à continuidade dos sistemas
Areas em que o conhecimento tradicional pode contribuir para tradicionais de apropriação do ambiente marinho e seus recursos
a gestão dos recursos marinhos: no Brasil. Dc um lado, alguns deles estão desaparecendo rapida-
a) Avaliação de estoques pesqueiros mente f r e n t e às pressões da pesca industrial, da ocupação urbano
Como Ruddle (2001) afirma, o conhecimento tradicional dos e turística da faixa litorânea e da aquicultura. De outro lado, co-
pescadores pode fornecer uma base útil para se avaliar os esto- m e ç a m a existir experiências pioneiras que visam a implantação
ques pesqueiros e a dinâmica de suas populações. E particular- de reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável que
mente importante o conhecimento que se refere ao período, incorporam, ainda de forma incipiente, o conhecimento tradicio-
localização e comportamento das concentrações de peixes para nal e a apropriação social dos espaços marinhos.
a reprodução em recifes e lagunas. Enquanto os programas governamentais de gerenciamento
h) Conhecimento de microhahitats costeiro t ê m se caracterizado por serem mn exercício burocrático
O conhecimento desses habitats e das espécies associadas pode com grande dificuldades de implantação real, cm algumas áreas,
ser usado para determinar a localização de reservas marinhas, comunidades costeiras estão realizando suas próprias e x p e r i ê n -
. para o estabelecimento de defesos e áreas fechadas de grande cias de gestão costeira. N o Estado do Ceará, por exemplo, a s co-
interesse para a reprodução das espécies. munidades de pescadores estão sofrendo o impacto da pesca i n -
c) Métodos de manejo tradicioncd dustrial predatória da lagosta e da ocupação turística desenfreada.
Como foi mostrado anteriormente, os pescadores artesanais de- Para combater esses processos, foi instalado o F Ó R U M DO L I I O R . M ,
senvolveram vários tipos de tenência marítima que podem as- do qual participam n ã o somente os representantes das co-
segurar um acesso equitativo aos recursos e seu uso sustentá- munidades locais, de organizações governamentais e não-go-
vel. Esses sistemas incluem restrições temporais, espaciais e vernamentais e t a m b é m dos empresários na busca da o r d e n a ç ã o
de uso de equipamentos de pesca. das atividades humanas no litoral, no manejo da pesca da lagosta
d) Métodos de pesca e na o r d e n a ç ã o da ocupação turística. Essas comunidades t ê m
Os pescadores artesanais conhecem uma grande variedade de iniciado atividades pioneiras de fiscalização conjunta da pesca
equipamentos e artes de pesca que podem ser relevantes para da lagosta, com as autoridades responsáveis, e criando conselhos
projetos viáveis de desenvolvimento pesqueiro. Eles t a m b é m comunitários que, em alguns casos, disciplinam a ocupação das
t ê m experiência com técnicas, visando a criação de habitats e praias.
recifes artificiais. Em outras áreas, estão sendo implantadas reservas extrativistas,
e) Etnoictiologia como a de Pirajubaé, em Santa Catarina, a do Arraial do (^abo, no
O conhecimento dos pescadores sobre sistemas de classificação Rio de Janeiro e a de Mandira, em São Paulo, com o objetivo de
de peixes e taxonomias, usando nomes locais, são relevantes explorar, de forma sustentável, os recursos marinhos e melhorar o
para os estudos de avaliação de estoques e uma base importan- nível de vida das comunidades envolvidas. Em algumas dessas
te para os estudos de biologia pesqueira. experiências, há um trabalho conjunto entre associações locais.

216 217
A N T O N I O CAKI.OS DIKCU I:S
C O N H K C I M K N T O ' r i í A D I C I O N A I . I- AlMÍOlMílAÇÃO S o C I A l .

organizações não-governamentais e governamentais, bem como


E m alguns casos, essa contribuição começa a ser reconhecida.
de institutos de pesquisa.
Isso se deve, em primeiro lugar, à organização das próprias co-
Ao mesmo tempo, c o m e ç a m a aparecer experiências inova-
munidades tradicionais que começam a se opor ao uso predatório
doras com áreas protegidas. Um exemplo importante é o da Re-
dos recursos naturais, propondo soluções como o exemplo descri-
serva de Desenvolvimento S u s t e n t á v e l de Mamirauá, no Ama-
to no Saco de M a m a n g u á e na Reserva de Desenvolvimento Sus-
zonas, onde as comunidades ribeirinhas, com o apoio de organiza-
tentável de Mamirauá. Algumas reservas extrativistas marinhas
ções n ã o - g o v e r n a m e n t a i s , desenvolveram e estão implantando
t a m b é m foram implantadas, de forma inovadora, com forte parti-
planos de manejo para o uso de lagos, com diversas finalidades,
cipação das comunidades locais. Em segundo lugar, c o m e ç a m a
entre as quais as comerciais, de subsistência, de r e p r o d u ç ã o das
aparecer exemplos de cooperação interdisciplinar entre biólogos e
e s p é c i e s , etc.
cientistas sociais, com uma crescente valorização da etnociência e
do conhecimento tradicional. As organizações locais de comuni-
dades de pescadores artesanais ainda são politicamente frágeis,
C()Nc:i,usõr-:.s mas c o m e ç a m a aparecer em vários locais da costa brasileira, in-
corporando, por exemplo, as mulheres pescadoras e extrativistas.
Apesar das ameaças que pairam sobre os sistemas tradicionais de
Finalmente, está se tornando cada vez mais claro que o re-
apropriação dos espaços marinhos e seus recursos, o conhecimen-
conhecimento da importância dos saberes e sistemas de gestão tra-
to de que dispõem as comunidades tradicionais sobre seu território
dicional dos espaços e recursos costeiros passa pelo reconhecimento
constitui um elemento importante a ser incorporado em novas
dos direitos que essas comunidades litorâneas t ê m a seus territórios.
experiências de gestão dos recursos e espaços. Esses conhecimen-
tos c sistemas, no entanto, não podem ser transferidos mecanica-
mente aos sistemas atuais de gestão desses recursos. É importante
se afirmar que a gestão de recursos naturais é, basicamente, a re-
gulamentação do comportamento humano no uso dos recursos e
não a regulamentação dos recursos naturais enquanto tais. A ges-
tão tradicional inclui um n ú m e r o maior de objetivos, além dos
económicos e da eficiência técnica, englobando a qualidade dc vida,
a sociabilidade e os aspectos s i m b ó l i c o s . A t r a n s p o s i ç ã o de
mecanismos de controle pesqueiros de países desenvolvidos,
como o de quotas e licenças, sem um conhecimento adequado
da racionalidade subjacente às atividades pesqueiras tradicionais,
pode levar a uma grande desorganização da própria atividade pes-
queira.
Este trabalho sugere e recomenda que a contribuição do co-
nhecimento tradicional, e de seus sistemas de manejo, sejam inte-
grados aos programas nacionais de gestão costeira e dos recursos
naturais.

218
219
A N I O N I O CAIÍI.OS DII:C;I:KS C O N M I ; ( : I \ U : N I O T U A O I C I O N A I . K Ai'Ut)i>iíiACÃo SOCIAL

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222 223
A N I O M O CAKI.OS DIKOCKS

ÁREAS RESERVADAS
PARA A PESCA ARTESANAL

S P A Ç O S MARÍTIMOS E DE ÁGUAS interiores t ê m sido, nas últi-


i m a s décadas, objeto de conflitos, por vezes violentos entre a
pesca industrial e a artesanal, entre pescadores de fora da região e
os pescadores " c o m u n i t á r i o s " . Nas áreas costeiras, esses confli-
tos se traduzem em incursões de barcos de arrasto que, freqiiente-
mente, destroem os equipamentos de pesca dos pescadores
artesanais locais. Nas águas interiores, os exemplos mais mar-
cantes estão na Amazónia, onde as comunidades de pequenos
pescadores c o m u n i t á r i o s se o p õ e m às e m b a r c a ç õ e s motorizadas
provenientes de portos regionais. Esses conflitos t ê m sido inten-
sos na região de S a n t a r é m , onde os pescadores tentam regula-
mentar o acesso aos pesqueiros, garantindo seu modo de vida.
Nessa região, fala-se em "reforma agrária aquática", termo ade-
quado, pois trata-se não somente de garantir o uso dos espaços
aquáticos como t a m b é m o da borda dos lagos, controlados fre-
qiientemente pelos grandes fazendeiros.

224
225
A N T O N I O CAKI.OS DIKGUKS ÁiíKAS RKSKKVADAS I'AIÍA A PKSCA ARTKSANAI.

Nesse sentido, o controle do acesso a essas águas de uso dos moderna e à resistência à inovação tecnológica. Com a criação das
pescadores artesanais tem um caráter emblemático, pois as comuni- indústrias de pesca, ou os pescadores artesanais trabalhariam como
dades locais tentam garantir seu modo de vida que está ameaçado. tripulantes nos modernos barcos de pesca ou simplesmente te-
Os comunitários tentam defender, t a m b é m , áreas aquáticas dc uso riam de abandonar a atividade pesqueira. Como os recursos finan-
comum, cujo acesso é, muitas vezes, tradicionalmente controlado ceiros e técnicos foram canalizados para a indústria pesqueira e
por regulamentações informais e por um sistema t a m b é m informal para a construção de grandes barcos, em quase todas as regiões
de sanções aos infratores. Essas questões se inserem num debate, costeiras do Brasil, os pescadores artesanais não tinham condições
hoje internacional, sobre "os comuns", sistemas especiais de acesso de competir, tendo suas áreas tradicionais de pesca sido invadidas
aos espaços e recursos naturais controlados por comunitários c que pelos grandes barcos da pesca industrial/empresarial.
se acham, hoje, a m e a ç a d o s pela economia eufemisticamente Os resultados da política de incentivos fiscais traduziram-se,
chamada de "globalizada" (McCay & Acheson, 1987; Ostrom, nas décadas de 60 e 80, num aumento considerável da produção
1990). pesqueira industrial de exportação, que não foi sustentável. Os
Este trabalho visa mostrar a importância da m a n u t e n ç ã o e bancos pesqueiros foram dizimados pela sobrepesca, a rentabi-
mesmo a reconstrução desses sistemas de uso comum dos recur- lidade dos barcos diminuiu consideravelmente cm muitas regiões
sos pesqueiros, controlados pelos pescadores locais e suas institui- e, finalmente, grande parte do parque industrial pesqueiro foi su-
ções, dentro do debate do uso sustentável dos recursos naturais e catcado. Para satisfazer a demanda crescente pelo pescado, foi
da construção de sociedades sustentáveis (Diegues, 1996). necessário recorrer às importações que hoje respondem por mais
Essa proposta pode parecer arcaica para alguns, uma vez que de um terço do pescado disponível para o consumo humano.
as políticas governamentais atuais valorizam a privatização, e a Nesse quadro pouco animador, a pesca artesanal, mesmo sem
economia neoliberal entroniza o mercado como a mão divina ocul- apoio governamental, tem hoje uma contribuição proporcional
ta que, para seus seguidores,destina os recursos de forma mais maior que a pesca industrial, dentro da produção pesqueira nacio-
adequada. É evidente que a defesa das áreas de uso comum con- nal, conforme estatísticas do IlíAMA. E m 1980, a c o n t r i b u i ç ã o
tradiz os dogmas das políticas neoliberais que, como se sabe, t ê m percentual da pesca industrial era de 66,6% da produção pesquei-
falhado ao não promover uma distribuição mais justa de renda, ra, decaindo para 45,2%, em 1997. A contribuição da pesca artesanal,
ocasionando uma marginalização social cada vez mais acentuada em 1980, era de 38,4% e passou para 54,8%, em 1997, superando,
no Brasil. portanto, a da pesca industrial.
Pode-se concluir que, longe de ter desaparecido, a pesca
artesanal parece ter reconquistado parte do terreno perdido para a
A PK.SCA ARTKSANAL: U M M O D O pesca industrial, com uma produção marítima de 353,350 tonela-
DK VIDA I:M EXTINÇÃO.? das, em 1997, superior às 291,080 toneladas de barcos industriais.
Esses dados nãt) só desmentem a euforia dos burocratas dos anos
N o auge do período dos incentivos fiscais na década de 70, não era 60, mas exigem t a m b é m uma reversão das políticas públicas, de
raro ouvir-se, de burocratas da extinta Sudepe, que a pesca artesanal forma corajosa e sem preconceitos contra os "pobres e atrasados
estava com os dias contados, pois representava o atraso e o pescadores artesanais".
subdesenvolvimento. A pobreza de nossas comunidades de De nada adianta a euforia recente de responsáveis governa-
pescadores artesanais era, então, atribuída à falta de tecnologia mentais pelo setor pesqueiro que acenam, outra vez, para a mira-

226 227
A N I O N I O ( ^ \ K I , O S DIKGUKS Á i i K A s RKSKIUADAS I'AIÍA A PKSCA A R I K S A N A I .

gem da possibilidade de aumento espetacular da produção pes- Ao utilizar ecossistemas costeiros de alta produtividade como
queira industrial, baseada em indicações preliminares de estoques os estuários, lagunas, mangues, lagos e represas, as comunidades
ainda não explotados, ocultos em algum lugar da nossa Zona Eco- de pescadores artesanais t ê m seus territórios da pesca ameaçados
nómica Exclusiva. Trata-se, a nosso ver, do mesmo discurso ufa- pela expansão urbano-tiirística e industrial e pela degradação de-
nista que levou, em anos anteriores, às políticas irresponsáveis da corrente dessas atividades. Os pescadores artesanais, para seu
SUOEPE, com seus incentivos fiscais e com o mirabolante FISET/ desenvolvimento, necessitam de ecossistemas em grau adequado
Pesca, através do qual vultosos recursos do contribuinte brasileiro de conservação e, nesse sentido, são aliados naturais dos movi-
foram lançados no redemoinho financeiro infernal, semelhante ao mentos sociais ecológicos.
descrito por P>dgar Alan Poe na novela Maebtrom. Lembremo-nos, U m f e n ó m e n o recente c preocupante é a expansão desorde-
por exemplo, das estimativas da P^AO sobre o potencial pesqueiro nada do cultivo intensivo de camarões (carcinocultura), particular-
brasileiro, nos anos 60, de mais de 1.80(K000 toneladas para a pes- mente no Nordeste. l i m 200.3, calcula-se que cerca de 35.000
ca marítima. A produção pesqueira marítima não ultrapassou, nas hectares foram destinados à carcinocultura no Brasil que, usando
últimas décadas, a média anual de 700.000 toneladas. espécies exóticas, afeta principalmente as áreas próximas ao man-
Qualquer política realista de pesca tem. hoje, de levar em con- gue (apicuns) e os próprios manguezais, gerando uma produção de
ta, mais do que nunca, o manejo adequado dos recursos e o papel dezenas de milhares de toneladas destinadas à exportação. Os
dos pescadores artesanais e suas organizações. Pastados mais afetados são o C e a r á , Rio Grande do N o r t e e
Pernambuco. Calcula-se t a m b é m que cerca de 300 a 500.000 hec-
tares são propícios á carcinocultura, no Brasil. Somente no Rio
O PAPKI, DA PESCA ARTESANAL Grande do Norte, verifica-se uma expansão de mais de 30% dessa
NA CAPTURA E N A MARICULTURA atividade ao ano, tendo sua exportação ultrapassado os produtos
tradicionais, como a fruticultura, transformando-se o camarão culti-
N ã o só as organizações internacionais como a FAO, em seu Código vado no primeiro produto de exportação desse Estado. Os impac-
de Pesca Responsável, como t a m b é m organizações internacionais tos dessa atividade são enormes, pois cerca de 20% dos manguezais
não-governamentais, como o Coletivo Internacional de Apoio aos foram destruídos na Tailândia e no Plquador, onde doenças como a
Pescadores Artesanais (ICSF), t ê m enfatizado o papel da pesca da "mancha branca", dizimaram as áreas de cultivo. Na índia, o
artesanal no desenvolvimento e manejo pesqueiro. aumento dessas áreas de cultivo levou a conflitos sérios com os
Ao ocupar um contingente maior de pescadores por embarca- pescadores artesanais. Os ambientes costeiros, particularmente os
ção do que a pesca industrial, a pesca artesanal é uma atividade manguezais e apicuns, sofrem ameaças pelo despejo de restos de
importante na geração de emprego e renda para as populações alimentos que c o n t ê m anabolizantes e nutrientes que podem le-
litorâneas. A P^AO t a m b é m tem reconhecido que, frequentes ve- var à eutrofização e à redução do oxigénio dissolvido, ocasionando
zes, a rentabilidade da pesca artesanal é superior à industrial, a morte de organismos vivos e o assoreamento das áreas utilizadas.
pelo reduzido uso de energia fóssil nos motores de suas embar- (Nascimento, 2003). Estudos dos pesquisadores Clemente Coelho
cações. Além disso, o produto da pesca artesanal, ao ser destina- Júnior e Yara Novelli mostram que haverá uma perda de 300 quilos
do aos mercados locais e regionais, é uma fonte fundamental de de pescado nativo para cada 1.000 quilos de camarão cultivado no
proteínas, vitaminas e aminoácidos para a população das cidades mesmo período (Candisani, 2003). A deterioração dos manguezais,
litorâneas. como resultado dessa prática intensiva, afeta diretamente os

228 229
A N T O N I O CAIÍI.OS DIKGUKS ÁuKAS RKSKIÍVAOAS I'AIÍA A PKSOA Ali TKSANAI.

milhares de pescadores artesanais que retiram deles seu meio de Os sistemas Formais e híformais eo
vida. É de se ressaltar que as "camaroneiras" são instaladas em Co7itrole de Território Pesqueiro
terrenos piíblicos (áreas de marinha) tradicionalmente usados para
a pesca artesanal. Outras alternativas não são levadas em conta Existem dois sistemas de acesso e controle de áreas pesqueiras
pelos investidores, como o uso de espécies nativas, o consórcio pelos "comunitários", segundo o nível de formalidade que atingi-
com tanques-rcdc para o cultivo de peixes e o cultivo semi- ram. Alguns sistemas são antigos, apresentam regras informais e
intensivo. encontram-se, hoje, seriamente a m e a ç a d o s por m u d a n ç a s
O ordenamento das atividades humanas na zona costeira é uma ambientais e sociais. Outros, como as reservas extrativistas pes-
necessidade para o bom desenvolvimento da pesca artesanal e da queiras, são recentes, tendo sua origem na mobilização social que
aquacultura e, nesse sentido, essas atividades devem estar inte- visa a proteção dos recursos e dos modos de vida locais.
gradas em planos de gerenciamento costeiro.
/. Os Sistemas Informais de Uso Comum
de Áreas e os Recursos Pesqueiros
D I R E I T O S D E USO E ÁREAS

PROTEGIDAS I»ARA A PESOA ARTESANAL


Até recentemente, as formas pelas quais os pescadores artesanais
controlam o acesso de outros aos bancos e áreas de pesca eram
A redução ou perda de áreas de pesca artesanal, pela intrusão de pouco conhecidas. De um lado, essas formas estão sujeitas à lei do
outras atividades, tem sido constatada em vários países, inclusive segredo pela qual os pescadores competidores são mantidos fora
no Brasil. A intrusão ilegal de grandes barcos de arrasto, o aumen- de áreas de grande produtividade natural. De outro lado, esses
to da poluição em lagos e estuários, a destruição de habitats impor- sistemas são considerados primitivos e arcaicos, não merecendo a
tantes como recifes de corais c manguezais t ê m tido efeitos mui- atenção dos responsáveis pelo desenvolvimento e manejo da pes-
tas vezes devastadores sobre as atividades pesqueiras artesanais. ca artesanal.
Essa perda de habitat de pesca e a redução dos estoques pes- Em muitos casos, pessoas de fora da comunidade t a m b é m po-
queiros ocorrem juntamente com a expulsão de comunidades de dem ter acesso aos recursos naturais, criando uma relação dc pa-
pescadores das praias, seja pela expansão turística, seja pelo esta- rentesco ou quase-parentesco com moradores locais. É o sistema
belecimento de parques e reservas naturais. Os pescadores aca- de "compadrio" descrito por Cordell (1982), no sul da Bahia. Se-
bam perdendo seus ranchos de pesca e são obrigados a viver longe gundo esse autor, direitos ao uso dos recursos comuns podem ser
das praias (Diegues, 1996). conseguidos e transferidos através de sistemas de compadrio e
O baixo nível de emprego nas áreas rurais tem t a m b é m esti- t a m b é m do aprendizado dos complexos sistemas de manejo dos
mulado a migração de populações pobres para áreas costeiras, oca- recursos pesqueiros, onde o conhecimento e técnicas patrimoniais
sionando um aumento do n ú m e r o de pescadores não-capacitados (a pesca de calão, respeitando os ciclos lunares) são transferidos
e de catadores de moluscos que empregam técnicas predatórias aos "comunitários".
em muitas regiões de nossa costa, juntamente com a diminuição
E m várias regiões litorâneas, existe a noção de espaços de uso
de estoques, e que tem levado os pescadores artesanais a pratica-
comum, apropriados pelos pescadores locais através de um enge-
rem técnicas predatórias causadoras de uma diminuição ainda maior
nhoso sistema de pesca ou cultivo extensivo de organismos
dos recursos pesqueiros.
estuarinos chamados de "caiçara" ou "pesqueiro". Trata-se de

230
231
A N T O N I O CARI.OS DII:GI;I-:S ARKAS RKSKKVADAS I'AIÍA A PKSCA A R I K S A N A I .

estriicuras retangulares ou circulares construídas com paus de man- Nesse sentido, ainda que o mar seja um "espaço de uso comum",
gue ílxados no substrato lagunar, onde se desenvolvem diversos o sistema de marcação faz com que ele seja apropriado pelos que
organismos vivos, num complexo processo de sucessão ecológica. d e t ê m maior conhecimento, os "mestres". A primeira descrição
Os peixes passam a ter, nas "caiçaras", seu habitat permanente ou desse processo de apropriação simbólica e material do mar se deve
temporário e são capturados pelos pescadores artesanais locais, de a Galvão (1968), mas t a m b é m foi estudado por outros: Forman
maneira seletiva. Esses processos de s u c e s s ã o ecológica são (1970), Maldonado (1993) e Diegues (1983, 1992). Para Forman,
conhecidos dos pescadores que os descrevem com precisão, se- por exemplo, o ponto central desse tipo de pesca e apropriação do
gundo trabalho de etnoictiologia realizado por Marques (1991), nas espaço e recursos é o "segredo" que diminui a c o m p e t i ç ã o por
lagoas de M u n d a ú e Manguaba, em Alagoas. recursos escassos, reduzindo as possibilidades da sobrepesca.
As "caiçaras" ou "acadjás" existem na Costa do Marfim, na T a m b é m no Nordeste, Cordell (1982) descreveu a "pesca do
Africa, tendo sido descritas por Bourgoignie (1972). S e m e l h a n ç a s calão", regida pelas fases da lua, como forma de apropriação tradi-
entre os dois sistemas foram assinaladas por I3iegues (1983), e cional de estuários.
poderiam ter sido trazidos pelos escravos africanos da Costa Oeste A característica principal desse sistema informal é ele ser man-
Africana, durante o período colonial. Esses engenhosos sistemas tido pela lei do "respeito" que ainda regula o comportamento de
de pesca podem ser considerados como formas de apropriação de algumas comunidades de pescadores. Esses sistemas informais
um território de uso comum, a laguna, e seu acesso é t a m b é m podem ser considerados formas tradicionais de manejo pesqueiro
regulamentado pela "lei do respeito" e pela tradição. A instalação que estão sujeitas ao desaparecimento pela diminuição da eficácia
de uma "caiçara" exige um grande conhecimento dos diversos da "lei do respeito" e da eficácia das sanções a ela associadas.
nichos ecológicos da laguna, das correntezas e marés e dos hábitos
alimentares dos peixes. A "lei do respeito" faz com que cada grupo 2. Sistemas Formais de Uso Comum dos ^
de pescadores não invada os espaços dos outros. As "caiçaras" Recursos e dos Espaços Pesqueiros
podem t a m b é m ser consideradas como "unidades de recursos",
como habitat que serve para concentrar recursos pesqueiros e como A importância dada à proteção dos sistemas de uso comum dos
técnicas de manejo dos recursos. Através do conhecimento e recursos pesqueiros tem-se traduzido pela construção ou recons-
t é c n i c a s patrimoniais, pescadores locais t ê m , nessa t é c n i c a trução social de modalidades novas de áreas de uso comum, como
patrimonial, uma fonte de subsistência e renda. reservas extrativistas marinhas, fóruns de pesca c e x p e r i ê n c i a s
Ainda no Nordeste, existe a pesca da "marcação" ou do "cami- de co-manejo de lagos amazónicos. Ao contrário dos sistemas i n -
nho e c a b e ç o " através da qual certos fundos rochosos submersos formais, essas novas modalidades apresentam diversos graus de
são,descobertos e mantidos em segredo por pescadores artesanais, formalidades em sua apresentação. O sistema mais formal é a
através de um complexo sistema mental de triangulação, usando reserva extrativista, onde sua criação é regulamentada por lei,
como referência altos dos morros, torres de igrejas, cor da água e obedecendo a determinados princípios como: (a) o princípio de
correntes. Alguns desses "cabeços" são conhecidos e usados por e x c l u s ã o , isto é, somente podem utilizar os recursos da área
todos os pescadores da comunidade, mas outros são guardados em demarcada os pescadores ou coletores que pertencem a uma as-
segredo pelos seus descobridores que conseguem voltar a eles sociação formal de usuários; (b) a delimitação clara de limites
através do conhecimento exato do "caminho". E m muitos casos, geográficos; (c) a organização social dos usuários; (d) as sanções
esses "cabeços" são transferidos de pais para fdhos, ou amigos. para os que desrespeitam as normas estabelecidas, através de fis-

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A N T O N I O (>AIÍI,{)S DIKGUKS Á u K A s RKSKRVADAS I>AUA A PKSCA A R I K S A N A I .

calização conjunta das associações de pescadores; (e) as normas biodiversidade e a cultura local podem ser protegidas. Esse tipo
de manejo dos recursos. de manejo, no entanto, é diferente do estabelecimento e imposi-
As reservas extrativistas de pesca e coleta são formas inovado- ção de "planos de manejo" por cientistas e burocratas. Ele exige
ras e novas experiências sociais ainda em formação e apresentam um tempo mais longo para sua elaboração, pois depende de con-
um grande potencial de aumento de renda c emprego. Ademais, sultas contínuas e de um diálogo constante com a população local,
essas reservas podem ser consideradas como instrumentos ade- da inclusão de cientistas sociais nas equipes de trabalho e de uma
quados de manejo dos recursos pesqueiros, garantindo seu uso sus- maior flexibilidade no planejamento, valorizando mais o processo
tentável. no qual as decisões são tomadas do que o estabelecimento de ob-
I n ú m e r o s problemas precisam ser solucionados para a expan- jetivos rígidos de conservação. A experiência desse projeto tem
são desses sistemas no Brasil, mas as experiências pioneiras das demonstrado, no entanto, que uma vez tomada uma decisão pelas
reservas pesqueiras e de coleta/manejo de P i r a j u b a é (SC), populações locais, há muito mais chances das resoluções serem
M a n d i r a - C a n a n é i a (SP) e Arraial do Cabo (RJ) podem e devem obedecidas. Isso se manifesta, por exemplo, no consenso a que
ser estimuladas. chegou a população local quanto à conservação e uso sustentado
Nessas reservas, novas técnicas de pesca, manejo e cultivo de dos lagos, de extrema importância biológica e socioeconómica. Nos
organismos marinhos podem ser experimentadas, bem como for- debates, as comunidades decidiram definir várias categorias de
mas inovadoras de pesquisa participativa. T a m b é m t ê m surgido utilização dos lagos, englobando espaços totalmente preservados,
novas experiências de cooperação interdisciplinar e interinstitu- como os lagos intocáveis de procriação, lagos de m a n u t e n ç ã o (para
cional entre institutos de pesquisa, organizações governamentais uso exclusivo da comunidade para a pesca de subsistência), lagos
e não-governamentais e associações locais. de comercialização (para uso exclusivo da comunidade, pesca para
U m exemplo de experiência inovadora ocorre na Reserva de venda) e lagos das sedes (onde a pesca é permitida para o abaste-
Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, com área de 1.124.000 cimento das sedes dos municípios).
ha, e que foi criada para proteger grande parte das terras inundáveis As comunidades, em assembleia, t a m b é m decidiram o tipo de
localizadas entre os rios Japurá e Solimões. Nessa extensa área, sanções a serem aplicadas aos comunitários que desrespeitem as
m o r a m 4.500 r i b e i r i n h o s , espalhados em 50 pequenas decisões.
comunidades, tendo em média 14 domicílios. Essa população vive Observam-se, no caso da RDS de Mamirauá, os princípios
tradicionalmente da pesca, da caça e do uso da floresta. Além dessas apontados por Ostrom (1991) para a existência de regimes de
atividades tradicionais, há, no entanto, o corte de madeira vendida propriedade comum, com perspectivas de duração:
nas serrarias das cidades.
Ao contrário do que manda a legislação ambiental restritiva a) Limites territoriais definidos
(expulsão dessa população da área), a administração do projeto A "propriedade comum" de Mamirauá tem seus limites razoa-
decidiu manter os "varzeiros" nesse território onde sempre vive- velmente definidos, uma vez que coincidem com as divisas da
ram. Essa região é de grande diversidade biológica e, durante as estação ecológica.
cheias, as águas se espalham por milhões de hectares, tornando a b) Coerência entre a apropriação e as normas de uso dos recursos
fiscalização da RDS-M uma tarefa impossível. A equipe de admi- São realizadas assembleias gerais regulares com os represen-
nistradores pertencentes a uma organização não-governamental lo- tantes das várias comunidades de varzeiros para definir os t i -
cal, acredita que, somente com p a r t i c i p a ç ã o c o m u n i t á r i a , a pos de tecnologia a ser empregada nas diversas atividades. Essas

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A N T O M O C-.\ÍÍI,<)S HM-GIIKS ÁUI;AS 1^KSI:IÍ\ADAS I-AIÍA A 1'I:SC.A AU'II:SANAI

comunidades participam da definição de um plano de uso do nova forma de e x t e n s ã o que leve em conta toda a cadeia produ-
espaço e dos recursos naturais, conjuntamente com os técnicos tiva. A participação dos comunitários é fundamental para se en-
e administradores da área. contrar as práticas mais apropriadas socialmente, isto é, aquelas
c) A íTanjos para escolhas colettvas que e s t ã o sob o poder dos comunitários, e que devem ser testa-
Foram criadas instâncias, as assembleias, nas quais podem ser das e mesmo modificadas com o saber dos próprios pescadores.
feitas, em bases consensuais, as escolhas coletivas relativas às Antes de se estimular novas práticas, é necessário saber se as
atividades económicas e aos serviços sociais, estabelecendo-se práticas tradicionais, muitas vezes melhor adaptadas ao ambiente
as bases para os regulamentos a serem seguidos na Reserva. e ao contexto social, podem ser utilizadas ou modificadas, quando
Essas escolhas dizem respeito sobretudo aos diferentes tipos há m u d a n ç a s tanto socioculturais como ambientais.
de uso em cada lago (pesca de subsistência, comercial, lagos de Na adoção de novas técnicas, é necessário calcular-se o risco
reprodução, e t c ) . económico e sociai, uma vez que, em geral, essas comunidades de
d) Monitoramento pelos cotnunitários pescadores apresentam um nível reduzido de acumulação dc ca-
Uma vez tomadas as decisões mais importantes, em bases pital e poupança e qualquer experiência mal sucedida pode ame-
consensuais, o monitoramento do uso dos recursos é feito pelos açar a própria sobrevivência dos grupos de pescadores.
próprios comunitários. Essas novas experiências são um espaço privilegiado para o
e) Sistema de sanções exercício de um trabalho interdisciplinar no qual os cientistas, os
Nas assembleias, é definida uma série de sanções, indo da ad- extensionistas e os especialistas locais da própria comunidade
moestação do transgressor às multas previstas pela legislação podem desempenhar um papel fundamental.
ambiental.
f) Mecanismos para solução de conflitos CoNci,ust)i':s
As assembleias constituem o mecanismo mais utilizado para a
solução dos conflitos intra e extracomunitários. Os sistemas tradicionais de acesso a espaços e recursos de uso
g) Reconhecimento mínimo dos direitos de se organizar comum (comunitários), existentes no Brasil, não são formas do
A organização social dos comunitários é fundamentai para o bom passado, congeladas no tempo ou em total desorganização fren-
desempenho das atividades da reserva. te ao avanço da propriedade privada. Ainda que muitos desses
sistemas tenham se desestruturado frente à e x p a n s ã o capitalis-
3. Novas Experiências de Extensão Pesqueirri, ta, existem exemplos recentes que mostram a capacidade dos
de Manejo e Criação de Organismos Marúrdios " c o m u n i t á r i o s " não só em reagir, mas t a m b é m em reorganizar-
se, recriando modos de vida e territórios de uso comum. Existe,
E importante dizer que a extensão pesqueira deve levar em conta ainda hoje, no Brasil, uma variedade de formas comimais de aces-
a transmissão de conhecimentos e práticas tradicionais, envolven- so a espaços e recursos naturais que, por muito tempo, foram
do o saber e as técnicas. Nesse sentido, ela não pode ser restrita desconsideradas e a t é ignoradas pelas formas dominantes de
somente à introdução de novas técnicas, mas deve poder incorporar apropriação, seja pela grande propriedade privada seja pela p ú -
o vasto conhecimento acumulado pelos pescadores artesanais. blica. Essas formas geralmente subsistem em r e g i õ e s com
As reservas extrativistas de pesca, coleta e cultivo, constituem, ecossistemas considerados "marginais", com solos considerados
sem dúvida, um espaço geográfico e social privilegiado para uma inapropriados para uso agrícola ou urbano-industrial intenso.

236 237
A N T O N I O CARLOS DIKGUKS ÁRKAS RKSKRVAOAS TARA A PKSGA ARTKSANAI.

Esses sistemas existem por um largo período de tempo em meros casos (vide exemplo da ocupação amazônica), o próprio
comunidades tradicionais não-urbanas, e se caracterizam pela uti- Estado criou políticas e mecanismos de incentivos fiscais que co-
lização comum (comunitária) de determinados recursos, como os laboraram para a devastação ambiental.
peixes, plantas medicinais da mata, produtos do extrativismo ve- Por outro lado, a literatura recente (McCay & Acheson, 1987)
getal (cipós, materiais de construção) e áreas de cultivo agrícola tem registrado c analisado um n ú m e r o considerável, no mundo
itinerante. Além dos espaços usados em comum, existem outros inteiro, de formas comunitárias de acesso a espaços e recursos
apropriados individualmente, como o lugar da habitação, quintal, que t ê m assegurado um uso adequado e s u s t e n t á v e l dos recursos
etc. Eles existem em comunidades tradicionais com forte depen- naturais, conservando os ecossistemas e gerando modos de vida
dência do uso de recursos naturais renováveis e com vinculações socialmente mais equitativos (ainda que não necessariamente
mais ou menos limitadas com o mercado. Esses arranjos subsis- afluentes).
tem e são permeados por uma extensa teia de relações de paren- O que tem ocorrido, mais frequentemente, é a "tragédia dos
tesco, de compadrio, de ajuda mútua, de normas e valores sociais comunitários" (McCay & Acheson, 1987), que são expulsos de seus
que privilegiam a solidariedade intragrupal. Existem t a m b é m territórios tradicionais pela e x p a n s ã o da grande propriedade
normas de exclusão de não-membros, que t a m b é m podem ter privada, da propriedade pública e dos grandes projetos.
acesso aos recursos usados em comum, desde que, de alguma for- E m determinados momentos históricos, essas formas de apro-
ma, se identifiquem com o grupo de usuários (por exemplo, atra- priação comum dos recursos passaram a sofrer o impacto de outras
vés do compadrio). Certos membros de comunidades costeiras, formas de propriedade, como a estatal ou a privada, e a estar
como os "mestres" de pesca, são depositários de um conhecimen- ameaçadas de desaparecimento. Em certos casos, a ameaça exter-
to maior sobre o mundo natural que lhes permite um acesso privi- na tem sido um elemento essencial na afirmação dos direitos co-
legiado a recursos móveis e migratórios, como na pesca de "marca- munitários e na reconstrução da tradição. Em outros casos, o pró-
ção" ou de "caminho e cabeço". prio Estado reconheceu juridicamente esses arranjos tradicionais
Essas situações contradizem a teoria da "Tragédia dos Comuns" frente à expansão da grande propriedade particular.
(Hardin, 1968), segundo a qual, num regime de propriedade co- A contínua redução desses espaços comunitários de uso comum
mum, necessariamente, cada "comunitário" tentaria incrementar e regulamentados socialmente, causada pelas incursões de grupos
seus rendimentos, aumentando, dessa forma, a pressão sobre os económicos poderosos, resultou, cm alguns casos, no reforço e até
recursos (aumentando o n ú m e r o de ovelhas num pasto comum ou na reorganização desses sistemas tradicionais. Isso foi possível, na
o esforço de pesca no mar), ocorrendo a sobre-pastagem ou a história recente do Brasil, com o fim do regime autoritário, com o
sobrepesca. E m razão disso, segundo a teoria, haveria necessidade fortalecimento da sociedade civil através dos sindicatos rurais, das
de apelar para o Estado, impondo regras rígidas na exploração dos a s s o c i a ç õ e s de base, de o r g a n i z a ç õ e s ambientalistas n ã o -
recursos ou para a propriedade privada, como forma mais adequa- governamentais, dos movimentos sociais de caráter nacional e com
da de proteção dos recursos e de garantia da rentabilidade. um contexto internacional favorável. O empenho dos "comunitá-
Está claro, no entanto, que a propriedade privada ou as gran- r i o s " em conservar seu modo de vida, em m u i t o s casos,
des corporações não necessariamente conservam os recursos natu- circunscreveu-se a situações locais e é duvidoso que o controle
rais de suas propriedades, pois, em muitos casos, são responsáveis dos espaços e recursos usados em comum possa perdurar por mui-
pela erosão do solo, degradação das águas e externalidades cujos to tempo. E m muitos casos, essa continuidade só é garantida com
custos devem ser arcados pela sociedade como um todo. E m inú- acordos mais ou menos informais com instituições oficiais do meio

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A N I O N I O CARI.OS DIKGUKS ÁR!:AS RKSI:IÍ\AIJAS PARA A PI:S(:A A I Í I I : S A N A I .

ambiente, como o IBAMA. A pouca publicidade dada a esses acor- dades de proteção ambiental restritivas, pode ser fator importante
dos dificulta o surgimento de um movimento social mais amplo para o efetivo reconhecimento do valor dos sistemas de apropria-
dos "comunitários'* dentro e fora das unidades de conservação. ção comunitária de espaços e recursos naturais na gestão ambiental
Contribui, para isso, uma legislação ambiental, em muitos casos e na proteção da biodiversidade e da diversidade sóciocuitural.
copiada de países industrializados, que tem se revelado inade-
quada para os países do Terceiro Mundo, como sucede na criação
de áreas naturais protegidas de onde a população tradicional deve
ser expulsa. Na camisa de força dessa legislação, as populações
tradicionais são consideradas como "infratoras", apesar de residi-
rem em seus territórios ancestrais por largo período de tempo e
manterem relações históricas com seu território e, através de seu
modo de vida, terem contribuído para a conservação ambiental.
Uma situação diferente é a do ressurgimento dos "comuns"
através das reservas extrativistas que fazem parte integrante do
m o v i m e n t o nacional dos seringueiros, r e s p o n s á v e l pelo seu
surgimento. Ele t a m b é m exerce papel essencial no estabelecimen-
to das reservas extrativistas, na sua aceitação nacional c internaci-
onal como instrumentos importantes para o uso sustentado dos
recursos naturais da Amazónia e para a co-gestão de amplos espaços BlBLIOGKAFIA

de grande riqueza biológica.


O reconhecimento social das reservas extrativistas mostra a i m -
portância de se repensar e se reconstruir as formas tradicionais de Candisani, L . 2003. Criação dc camarões muda cara de manguezais c
apropriação de espaços e recursos naturais renováveis em países afeta seu equilíbno ecológico, www.galileu.globo.com
do Terceiro Mundo. Essa reconstrução se realiza dentro de um Cordell, J. 1982. Locally managed sea territories in Brazil. Roma, FAO.
processo dinâmico, pelo qual as comunidades extrativistas bus- Diegues, A. C. & Nogara, R 2000. O nosso lugarvirou parque. (2a. cd.) São
cam integrar o tradicional (sobretudo em termos de conhecimento Paulo, N U P A U B - U S P .
e sistemas de manejo) e o moderno, procurando formas legais de Diegues, A. C. 1996. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo,
existência dentro de territórios agora reconhecidos oficialmente. Hucitec.
Elas, através de suas organizações, t a m b é m estão se mostrando
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capazes de realizar alianças com outros setores da população na-
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cional, incluindo as universidades, onde vão buscar alternativas íropologia Marítima. São Paulo, N U P A U B - U S P .
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Galvão, H. 1968. Novas cartas da praia. Natal, Edições do Val.
extrativistas, pode-se concluir que o surgimento de movimentos
semelhantes, entre as populações tradicionais residentes nas uni- Hardin, G. 1968. Thc tragedy of the common.s. Science, n.l62.

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A s S O C I E D A D E S H U M A N A S estabciecidas no litoral, desde tem-


pos imemoriais, relacionaram-se com os seres vivos do mar
através de práticas materiais e simbólicas. Algumas sociedades,
no entanto, tiveram luna d e p e n d ê n c i a maior que outras em rela-
ção ao pescado, e alguns peixes marcaram períodos históricos i n -
teiros. Assim, na Antiguidade, a pesca do atum era praticada, de
forma ritual, pelos gregos e romanos; na Idade Média, a pesca do
arenque foi responsável pelo florescimento das cidades e portos
do Mar do Norte e da Mancha; as cidades do norte da Espanha
viveram, por vários séculos, da captura da baleia; durante a Idade
Moderna, a partir do século X \ ' , a pesca do bacalhau fez viver muitas
cidades litorâneas de Portugal e da França; na Inglaterra, o pro-
letariado era alimentado com peixe e batata no período da revolu-
ção industrial; no Brasil, durante a época colonial, o bacalhau
salgado, importado da Europa, era alimentação básica dos enge-
nhos do Nordeste; t a m b é m no Brasil, as populações indígenas e.

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A N T O N I O CARLOS DIKGLKS
A PKSCA C O N S I R L I N O O SOCIKDADKS

posteriormente, inúmeras comunidades de pescadores artesanais ses da safra, são guardadas até o outro inverno. O caráter huma-
dependem, nos meses do inverno, da pesca da tainha e do parati. nizado dessa pesca permite-nos sugerir que existe uma verdadeira
Este artigo está dedicado ao estudo da pesca da tainha ( g é n e - história ecológica da tainha, isto é, uma história das relações entre as
ro M u g i l ) no â m b i t o das cukuras caiçaras do Htoral sudeste e comunidades de pescadores e os cardumes migrantes, marcada por
açorianas do Htoral sul brasileiro. Além de seu caráter cíclico e práticas materiais, sociais e simbólicas. Ao contrário de uma visão
coletivo, essa pesca é a mais esperada, pelas comunidades de pes- economicista, mercantilista e reducionista, essa pesca deve ser
cadores, exercendo funções simbólicas de grande importância analisada como um fenómeno social e cultural total que mobiliza
para a r e p r o d u ç ã o económica e social dos pescadores. Durante energias humanas e animais, simbologias e estratégias, mitos e
os meses de inverno, a aproximação e a pesca da tainha no litoral lendas não somente no litoral brasileiro, mas em muitas praias do
sudeste constituem um verdadeiro acontecimento social em que mundo inteiro. Somente a pesca industrial, realizada com grandes
o clima de festa reinante na praia reafirma a solidariedade e a barcos e instrumentos eficazes de localização dos cardumes em
identidade grupai dos pescadores. A tainha não somente alimenta, alto mar, acaba com a magia desse acontecimento, transformando
mas traz contentamento e prazer, através de uma atividade pes- a tainha em simples mercadoria. Na pesca industrial, não há a espera
queira coietiva. E m muitos aspectos, antes de ser uma presa, a ansiosa e a festa dc praia, mas somente uma atividade silenciosa e
tainha é uma convidada, esperada com ansiedade, cujo encontro calculada que, num único cerco, apreende uma grande quantidade
com os pescadores é marcado pela sorte; ela pode ou não acostar de peixe, muitas vezes praticada à saída dos cardumes da Lagoa
naquela praia, em sua migração para o norte. É um cardume de dos Patos, que iniciam sua migração para o norte.
fortuna que, dependendo da sorte, pode ser pescado aos milha-
res ou simplesmente passar ao largo em busca de outras praias. A história ecológica da pesca da tainha durante o inverno, pelas
comunidades de pescadores do sudeste/sul brasileiro, é, portanto,
Além disso, para os pescadores, a tainha tem traços antro- distinta da história ecológica da pesca industrial, ainda que os
pomórficos: ela é inteligente, esperta, escapando do cerco; brinca pescadores artesanais circulem entre ambas numa determinada fase
em frente à praia, move-se de um canto do mar para o outro, o que de suas vidas, e consigam distinguir uma da outra em seus diversos
exige perícia dos vigias que seguem seus movimentos, até o lançar aspectos, emitindo juízos de valor sobre uma ou outra forma de
das redes. Para muitos pescadores, esse é um embate entre produção.
protagonistas em que vence quem tiver maior esperteza e habili-
Essa história ecológica baseia-se no princípio da ciclicidade de
dade, com possibilidade de êxito e fracasso.
um evento sócio-ecológico que deve se repetir a cada inverno, caso
U m cerco pode movimentar centenas de pessoas ansiosas que os pescadores e as tainhas não faltem ao encontro marcado. As
falam, gesticulam e aguardam o milagre de uma pesca abundante. tainhas somente faltam a esse encontro quando o homem desres-
A captura de 20 ou 30 mil tainhas ainda ocorre em alguns lugares, peita o ciclo ecológico da reprodução das espécies. Os pescadores
apesar da redução crescente dos cardumes. Essas pescarias abun- de praia podem faltar a esse encontro caso seu modo tradicional
dantes e aleatórias revestem-se de um caráter quase miraculoso, e de vida tenha sido desorganizado material e socialmente.
as notícias desse evento correm de praia em praia, sendo objeto de
Enquanto disciplina, a história ecológica preocupa-se funda-
noticiários de rádio e televisão.
mentalmente com as relações entre sociedades e naturezas, medi-
Esse encontro final entre os cardumes de tainha e os homens é adas através das relações sociais, do conhecimento tradicional e
o momento culminante dc um longo período de espera em que as científico, dos mitos c simbologias. Essas relações são mediadas
artes de pesca são preparadas e que, uma vez usadas nos três me- pelos modos de produção, pelos quais sociedades e naturezas são

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produzidas material c simbolicamente. N o caso da pesca da tainha, A pesca da tainha nas praias, de alguma forma, busca recriar o
essas formas de produção são basicamente duas: a pequena pro- tempo da abundância, já passado e que resiste na memória dos
dução mercantil e a pesca industrial/empresarial. Neste estudo, mais velhos e nas, cada vez mais raras, safras milagrosas quando
tratarei da pequena produção mercantil onde predomina uma são cercadas grandes mantas de milhares de tainha, distribuídas a
tecnologia relativamente simples, de impacto mais ou menos re- todos que ajudaram na puxada da rede, mesmo "os de fora", os
duzido sobre os cardumes de peixe, uma organização social ba- turistas, num clima agitado de festa. É que o peixe é mais que
seada no trabalho familiar, comunitário ou coletivo. A distribuição uma mercadoria a ser vendida; é o símbolo de uma vida social que
da produção baseia-se numa certa equidade social, em que o merca- está transformando rapidamente as tainhas e os próprios pescado-
do não é o único definidor dos objetivos da produção, competindo res em mercadoria.
com outras finalidades como o reforço da identidade social, a O importante nesse enfoque é o estudo dos processos pelos
celebração de uma vida social mais intensa que a existente no quais os pescadores constroem, material e simbolicamente, a pes-
mundo urbano-industrial, a valorização do conhecimento tradicio- ca da tainha, através do conhecimento tradicional elaborado sobre
nal do mundo natural e seus ciclos ainda que, hoje, essa vida a migração da espécie, das técnicas de captura utilizadas, da orga-
comunitária seja uma pálida imagem do que era no passado. nização social criada c do simbolismo associado a essa atividade.
Assim, a história ecológica da pequena produção mercantil é A abordagem utilizada neste artigo — a história ecológica —
marcada por uma representação social da natureza distinta daquela teve sua origem nos trabalhos dos historiadores dos Annales, na
existente no mundo urbano-industrial. O mar é visto como uma Universidade de Estrasburgo, na França, na década de 30 e foi
entidade viva da qual dependem homens e peixes, com ciclos retomada na década de 70, com o surgimento da questão ambiental.
determinados pela dinâmica natural e que determinam migrações U m grande expoente, nesse esforço por uma nova história, foi
e ciclos biológicos dos seres marinhos. Ferdinand Braudel, em seu clássico Mediterrâneo, onde analisa as
As tainhas são classificadas, segundo o momento em que se relações recíprocas entre esse mar e as civilizações que o cercam,
inserem nesses ciclos: aparecem solitárias no início da chegada (e, numa história de longa duração. Segundo Donald Worster (1988),
por isso, são chamadas de "soltas"); apresentam-se em cardumes o principal objetivo dessa história é aprofundar nosso entendimento
que migram e são chamadas "corseiras" e, ao final da migração, de como os homens influenciaram e foram influenciados pelo seu
estão exaustas, depois de desovar são chamadas de "de arribada". ambiente natural através dos tempos. Essa nova abordagem
São classificadas t a m b é m pela cor, pelo gosto de sua carne e se- histórica parte do princípio segundo o qual, o homem está dentro
gundo interditos e tabus. Os pescadores, por sua vez, reagregam- da natureza, é uma das forças da natureza e não ó um meio exterior
se no inverno em coletividades para esperar e cercar os coletivos ao qual ele se adapta. Ou como afirma Moscovici (1974), o homem
de tainha, festejando na praia como elas "farreiam" no mar. produz o meio que o cerca e é, ao mesmo tempo, seu produto.
Os ciclos de reprodução desses peixes influenciam as formas Além disso, a natureza faz parte de nossa história e o homem se
de reprodução do coletivo de pescadores, onde as relações de pa- relaciona com ela através da sociedade. Como parte do estudo dessa
rentesco e de vizinhança são reproduzidas e recriadas durante o relação complexa, estão as noções de co-evolução pela qual cultura
inverno, ainda que essa coletividade esteja, em grande parte esfa- e natureza evoluem interativamente (Noorgard, 1994). U m outro
celada pela urbanização, pela incorporação de valores urbanos e conceito básico da história ecológica é o de paisagem, entendida
pela perda crescente do linguajar particular, dos mitos e tradições, como estrutura espacial, moldada pela ação do homem, resultante
cm grande parte oriundos do passado agrícola. da intcração entre processos naturais e socioculturais.

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A N T O N I O CAKI.OS DIKCUKS
A PKSCA CÍJNSTKLINDO SOCIKIMOKS

A T A I N H A N O LITOUAI, BRASII.KIIU):
Os Mugilídeos, com pelo menos três espécies {Mugilplatnnm-
REPRODUÇÃO, MIGRAÇÕES E
tainha\ rurema\ Mugjl gaim ardianus - paratis), estão presen-
DADOS ESTATÍSTICOS
tes, em diferentes fases de seu ciclo de vida nas áreas costeiras
brasileiras (Sierra de Ledo, 1988).
A tainha é um dos peixes mais frequentes em várias partes do As espécies tidas como recursos pesqueiros mais importantes
mundo: do litoral do Pacífico, entre a Califórnia e o Chile, na costa são a Mugilplalanus e a MugilCurema, localmente conhecidas como
leste norte-americana até o México; no M e d i t e r r â n e o , em toda a tainhas e parati. As tainhas estão na forma adulta durante as m i -
costa africana e asiática, incluindo a Oceania. grações reprodutivas (genéticas) e nos primeiros estágios larvais
São peixes catádromos, desovando em água salgada, mas viven- durante as migrações tróficas. As migrações reprodutivas da Mugil
do parte de suas vidas em águas salobras e mesmo doces. Durante platanus ocorrem do fim do outono até meados do inverno, quando
os meses de outono e inverno, as tainhas adultas migram para o se formam grandes cardumes, com fêmeas desovando no mar, em
mar aberto para desovar. N o Golfo do México, há observação de áreas ainda não muito bem definidas no Brasil. O início da desova
tainhas desovando a mais de 70 quilómetros da costa, a uma pro- ocorre em fins de abril e princípios de maio, enquanto a Mugil
fundidade de 1.000 metros. (Museu de História Natural da Flórida: curema desova no princípio da primavera (Sierra do Ledo, 1988).
tainha listada: M u g i l ccphalus). Na fase pós-larvar, os filhotes ingressam nos manguezais, estuários
O g é n e r o M u g i l é formado por mais de 100 espécies. Cerca de e lagoas, alimentando-se de microfitobentos, restos de macrófitas
40 diferentes espécies são conhecidas como tainhas vermelhas {i'ed e matéria orgânica.
mul/eí), estando presente em águas europeias com diferentes no- Fatores ecológicos da costa sul do Brasil são fundamentais para
mes. Eram apreciadas Já no tempo dos romanos, pela sua carne e a existência desta espécie na região. A temperatura da água, osci-
t a m b é m pela sua cor vermelha. Os romanos a conservavam vivas lando nos 17 graus, e os ventos sul e sudoeste favorecem o deslo-
em tanques e as escolhidas eram mortas e logo servidas à mesa. O camento dos cardumes em seus deslocamentos reprodutivos; já
preço das tainhas em Roma era alto, mais elevado que a média no transporte de ovos e das larvas, as correntes litorâneas são deter-
dos outros peixes. Elas migram para o alto mar no inverno, prova- minantes. Nos manguezais e lagoas, a disponibilidade de áreas
velmente para desovar e, no fim da primavera e no verão, aproxi- protegidas e de alimento proporciona, de maneira favorável, o
mam-se da costa, onde penetram estuários e lagunas. Na Idade crescimento das formas jovens (Sierra de Ledo, 1988).
Média, na região de Veneza, as tainhas eram criadas em "piscariae",
A tainha, além de ser um dos peixes mais populares, é um dos
tanques ou viveiros. Entradas de estuários eram cercadas forman-
mais capturados ao longo do litoral brasileiro. Foi, juntamente
do açudes e neles os peixes retidos eram alimentados naturalmente
com o parati, classificada pela Comissão Federal dc Abasteci-
pelas ricas águas estuarinas. Essas tapagens existem até hoje no
mento e Preços (1955) como pescado de primeira qualidade, ao
Adriático e são chamadas de vtilli para o cultivo extensivo de es-
lado da enchova, merluza e pescadinha, sendo superada somen-
pécies como a tainha. Viveiros semelhantes são usados t a m b é m
te pelos pescados finos como o badejo, cherne, linguado, robalo
no Nordeste brasileiro.
e namorado. Entre 1980 e 2001, contribuiu com cerca de 3% do
Já as tainhas cinzas (grey mu/kr) formam uma família diferente pescado marítimo produzido, ficando entre as 4 espécies maríti-
de mais de 70 espécies diferentes, vivendo cm cardumes que não mas mais capturadas ( I B G P \.
são exclusivamente marinhos, vivendo t a m b é m em áreas de água Nos últimos 20 anos, no entanto, sua produção caiu pela meta-
salobra e até em rios. de, tendo atingido um pico de captura, em 1982 (23 mil toncla-

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das), e passando para 10 mil toneladas nos últimos cinco anos, consumo desse peixe era grande e distribuído t a m b é m entre
decréscimo atribuído à captura de barcos da pesca industrial (trai- aqueles que pescavam pouco.
neiras), barcos de arrasto que cercam os cardumes na saída da Lagoa O período da pesca da tainha, no inverno, era tão importante
dos Patos, no início da migração, capturando-os em grandes que servia de marco na contagem do tempo e na preparação de
quantidades. Além disso, determinadas empresas de pesca retiram expedições guerreiras:
as ovas da tainha, de alto valor comercial para e x p o r t a ç ã o ,
descartando o peixe. O crescimento e a poluição urbano/industrial "eles partem quando a fruta amadurece, pois não conhe-
que afetam o litoral são t a m b é m tidos como responsáveis pelo cem nem os anos nem os dias. Para a partida, t a m b é m se orien-
decréscimo da captura. E m 2001, a pesca industrial ocorreu prin- tam de acordo com a desova de um peixe que em sua língua
cipalmente nos estados do Rio de Janeiro (80% do desembarque), chamam de pirati. O período de desova chamam de pira-
Santa Catarina (com 19% do desembarque). São Paulo (com 22% c e m a " ( L é r y , sd, p. 74).
da captura) e principalmente no Rio Grande do Sul, com 80% da
tainha capturada, situação grave, uma vez que grande parte dessa O processo de preparação da tainha t a m b é m é descrito por Jean
espécie deixa a Lagoa dos Patos para a corrida de reprodução, de Léry:
quando é pescada ( I B A M A / C K P E N E , 2001). E m outros Estados,
particularmente do Norte e Nordeste, a produção é artesanal, com " C o m e ç a r e i dizendo que os selvagens chamam ao peixe,
e x c e ç ã o do Pará, onde existe captura industriai dc pouca re- genericamente, pira, dando nomes particulares às diversas es-
presentatividade. pécies. Denominam Áyremà(cunmã) e parati certos sargos que,
assados ou cozidos, são muito saborosos, principalmente os
segundos... Quando os v ê e m em bandos aproximam-se os sel-
A PESCA DA T A I N H A PELOS INDÍGENAS vagens de repente, e com flechas certeiras em poucos mo-
Blí.VSILEIROS ANTES DA CHEGADA mentos fisgam muitos peixes (...) A carne desses peixes é
DOS PORTUGUESES muito friável, por isso, costumam os selvagens, quando os
pescam em grande quantidade, moqueá-los e reduzi-los à fa-
Restos de ossos de peixes, incluindo de tainha e parati, encontra- rinha" (s/d, p. 145).
dos em sambaquis ou casqueiros, mostram que essas espécies eram
exploradas há mais de 3.000 anos a.C. no litoral brasileiro por indí- Ou, ainda, depois de assar a tainha, os T u p i n a m b á s faziam uma
genas brasileiros. farinha a que chamam de piracuí e que era facilmente transportá-
A pesca da tainha tinha grande importância para os índios bra- vel e podia ser armazenada para alimentar os guerreiros em suas
sileiros, antes e depois da chegada dos portugueses. Assim, Hans expedições guerreiras.
Staden (1981) que visitou o Brasil entre o Rio de Janeiro e São Mussolini (1953) ressalta a importância da contribuição indí-
Paulo, em meados do século X V I , tendo ficado prisioneiro dos gena na pesca tradicional brasileira, em particular na pesca da
T u p i n a m b á s e conhecido seus costumes, relatou que os indígenas, tainha, que era uma atividade fundamental para os índios que ha-
no inverno, pescavam os "piratis" que migravam para os rios para bitavam o litoral brasileiro.
desovar, chamando essa migração de piracema. Os índios usavam Essa influência se revela, em primeiro lugar, nas artes de pes-
setas ou fisgas e t a m b é m redes feitas de fibras como o tucum. O ca, como a rede de ticum usada para emalhar peixes. Costumavam

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A PKSCA CoN.siRtiNix) SOCIKDADKS

t a m b é m bater o remo na água para assustar a tainha e fa/.c-la entrar Ainda que o presente trabalho se concentre na importância
na rede, hábito ainda muito utiHzado na pesca do parati, chamado da tainha para as comunidades costeiras do sul c sudeste, deve-
de "pesca de abalo", na Bahia e de "tróia", em São Paulo. Além
se destacar a importância da contribuição dessa e s p é c i e para a
disso, os indígenas usavam as "tapagens" com que obstruíam a
subsistênc ia das populações litorâneas em Estados do Norte,
boca de rios e estuários para impedir a saída da tainha, ainda hoje
como Pará e M a r a n h ã o e t a m b é m em Alagoas e Pernambuco, no
usadas na Amazónia e que poderia ter influenciado o aparecimento
Nordeste.
dos "viveiros" do Nordeste. Em Pernambuco, as C u r i m ã s , até
Assim, no período colonial, Nieuhof, em 1682, descreve a i m -
recentemente eram mantidas em viveiros especiais, e a despesca
portância dessa pesca em Pernambuco, onde a tainha é chamada
era feita na Semana Santa.
de curimã-parati, termos usados pelos índios. Já naquela época,
A fisga e a flecha t a m b é m eram usadas pelos índios durante a
existiam os viveiros feitos com aterro de partes de estuários para
estação da tainha. Dos índios t a m b é m vieram a canoa, feita dc
represar as águas de maré, onde ficavam retidas as tainhas, que
cascas de árvores ou de tronco cavado (ubás), as jangadas (piperis)
eram alimentadas pelos ricos nutrientes estuarinos. O período
e a poiui, pedra amarrada com cipó, envolta em peda ço de rede
da despesca era, em geral, a semana santa, onde o consumo de
que servia para ancorar canoas e redes. Segundo Mussolini (1953),
tainhas era maior. Até recentemente, as curimãs ou tainhas, como
essa técnica teria sido levada para Portugal e deu origem a expres-
são chamadas localmente, eram conservadas nesses viveiros, a t é
sões usadas no Brasil, como "pescar de poita", ou pescar de dentro
nas proximidades de Recife, e foram aterrados pela e x p a n s ã o
da canoa, "rede poitada", rede fundeada com poita, etc.
imobiliária.
O m o q u é m era t a m b é m uma forma tradicional de assar a tainha,
Gabriel Soares (1938), ainda no período colonial, afirma que a
usada em várias regiões do Brasil, sobretudo na Amazónia, pelos
tainha, conservada seca, era responsável por parte importante da
índios que faziam um buraco no chão onde empilhavam os peixes,
alimentação nos navios e engenhos:
acendendo e n t ã o uma grande fogueira (Mussolini, 1953). A tainha
moqueada era usada pelos índios para conservar melhor o peixe,
"E comecemos logo do principal que são as tainhas, a que
uma vez que não usavam o sal. E m algumas áreas da região
os índios chamam paratis, do que há infinidade d'ellas na
amazônica, esse processo é usado até hoje.
Bahia; com as quaes secas se m a n t é m os engenhos e gente
dos navios do Reino (...) E são estas tainhas, nem mais nem
menos, como as de Espanha, mas muito mais gostosas e gor-
PI-:.SC:A IJA T . M N H A N O BKA.SIL-COI.ÔNIA
das, dos quaes sabem logo em um lanço três, quatro m i l
tainhas, que t a m b é m tem ovas... Chama os indios coirimas a
A pesca da tainha tem uma grande tradição no Brasil, sendo reali-
outros peixes de feição das tainhas, que morrem nas redes e
zada desde o Rio Grande do Sul até o Pará, onde funcionava como
que tem o mesmo sabor, mas são muito maiores" {apud
moeda corrente com a qual eram pagos funcionários públicos e
Beltrão, 1983: 13).
soldados. N o Grão Pará, no século XVIII, cada soldado tinha direi-
to a duas tainhas por dia, o contador da tesouraria ou da alfândega,
Cascudo (2002) descreve essa pesca, t a m b é m no Nordeste,
além dos 8()$000 anuais, recebia quarenta tainhas secas, cem das
como um embate entre os cardumes de tainha, apresentados
de salmoura e vinte balaios de moqueca de tainha (Artur Orlando,
1913^//)/í,2'Mussolini, 1953:91). como um exército, no qual existem vários tipos de soldados e os
pescadores.
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A N I O N Í O CAIÍI.OS DIKGUKS A PKSCA CONS r i í i i N D O SOCIKDADKS

"grosso do cardume é precedido por um grande grupo de ba- O domínio da influência caiçara se estende do litoral sul do Rio
tedores, os primeiros sacrificados, mas t a m b é m os defensores da de Janeiro até o litoral paranaense, apesar de que, em alguns
espécie, batalhões nadando em forma de leque, os guias da fa- lugares, as pessoas não se identificam como "caiçaras", denomina-
mília imensa que emigra para as funções da desova, abrindo ca- ção mais utilizada no litoral paulista. O modo de vida é o fator
minho debaixo das vagas transparentes. Por último, no coice, fe- usado aqui para identificar um grupo como pertencente à cultura
chando a retaguarda, a coluna de defesa posterior, em semicírculo, caiçara e, sob esse aspecto, essas comunidades podem ser iden-
protegendo a retirada do grande exército silencioso" (p. 48). tificadas como caiçaras, ainda que existam algumas diferenças
quanto a certos elementos, como a linguagem, mitos, lendas e tam-
O mundo dos pescadores, segundo Mussolini (1953), era então b é m na forma de inserção na sociedade nacional.
permeado de mitos e lendas que reafirmavam um modo de vida e Os açorianos colonizaram o litoral de Santa Catarina e Rio Gran-
uma forma de religiosidade em que às expressões cristãs do espírito de do Sul, mas, neste trabalho, são estudados somente aqueles que
religioso juntavam-se benzimentos e curandeiros. vivem no litoral catarinense.
O desenvolvimento histórico-cultural apresenta particularida-
des que são resumidas a seguir.
A PESCA DA T A I N H A N O L I T O R A L

S U D E S T E - S U L D O BRASIL
A História rias Comimidades Caiçaras do Sudeste

N o Litoral Sudeste-Sul, existem dois tipos de populações tradi-


As comunidades caiçaras estão espalhadas pelo litoral sudeste bra-
cionais de pescadores que t ê m uma longa tradição de pesca da
sileiro, entre o sul do Estado do Rio de Janeiro e ao longo dos Estados
tainha nos meses de inverno: os "caiçaras" e os descendentes de
de São Paulo e Paraná. Ainda que não existam estudos precisos sobre
migrantes dos Açores, chamados, em forma abreviada de "aço-
a origem dos caiçaras, há indicações de que se trata de pequenos
rianos". São populações de tradições culturais distintas: os caiçaras
produtores litorâneos que se formaram, provavelmente, desde o
t ê m influência portuguesa mais generalizada, ao passo que, entre
século X V I I I , nos interstícios das grandes monoculturas de açúcar,
os açorianos, existe uma tradição mais específica, herdada dos
no litoral fluminense e norte-paulista, e de arroz, no litoral sul
migrantes açorianos que chegaram no sul do Brasil, em maior nú-
paulista. Uma parte dessas comunidades t a m b é m foi formada com
mero, a partir do século X V I I I . Ambos sofreram uma influência
a desorganização sócio-econômica desses ciclos agrícolas após a
comum, a indígena, expressada pelo modo de fabricar a farinha de
libertação dos escravos (Diegues & Nogara, 1994). A economia dessas
mandioca e em algumas artes de pesca. A influência indígena
comunidades era baseada na pequena agricultura, principalmente
parece ser mais acentuada entre os caiçaras, que utilizam um nú-
de mandioca, produto básico de sua alimentação, e complementada
mero considerável de palavras de origem indígena ( t u p i n a m b á ,
pela pesca, principalmente nos estuários e baías. N ã o se tratava de
tupiniquim, carijó, entre outras). Por outro lado, os caiçaras t ê m
uma economia de subsistência, pois mantinham relações comerciais
alguma influência negra, ao passo que, entre os açorianos, essa
com os centros urbanos litorâneos onde iam vender seus produtos e
influência parece ser muito reduzida.
comprar outros que não produziam, como o sal, o querosene, a pólvora
Uma das tradições comuns é a pesca coietiva da tainha e, nessa e os produtos manufaturados. O modo de vida litorâneo dessas co-
atividade, existem formas de organização social e técnicas muito munidades caiçaras, t a m b é m chamadas de praianas, era basica-
semelhantes, multas das quais perduram até nossos dias. mente o mesmo ao longo do litoral assinalado anteriormente.

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A PKSGA CONS TRLINOO SOÍ.IKOAOKS
A N T O N I O CARLOS DIKGLKS

Segundo Vicente de Carvalho {] 948), o caiçara não difere mui- gidas, como parques e reservas, que intcnsiílcaram o ê x o d o dc
to do caboclo do interior, um pouco mais escuro taivez que seu parte dessa população para as cidades, em busca de trabalho,
irmão de serra acima. Mestiço, descendente de índios e de portu- serviços de s a ú d e e e d u c a ç ã o . A migração temporária, princi-
gueses, com mistura relativamente pequena de escravo africano: palmente para as plantações de bananas na Baixada Santista, nas
primeiras d é c a d a s do século XX, marcou grande parte dessas
"O pescador tem estatura mediana, tendendo para baixa, comunidades fluminenses e paulistas, mas a migração defmitiva
magro, pele escura curtida pelo sol e pelo vento do mar. Quan- para as cidades é um fenómeno mais recente, resultante, em parte,
do são, c forte e resistente, adestrado na luta constante contra o da legislação ambiental que proibiu as atividades agrícolas e de
oceano e contra toda a sorte de males que o afligem (...) Até caça na Mata Atlântica.
meados dos anos 60, muitas comunidades caiçaras localizavam-
se nos cantos das praias onde, ao abrigo dos ventos, o mar cal- A História das Comunidades
mo permitia a saída das embarcações para a pesca, e a presença Açorianas do Sul do Brasil
de fontes garantia-lhes água para beber Viviam em casas
isoladas umas às outras, mesmo nas praias onde a população Os pescadores do sul são, em sua maioria, descendentes dos
era de duas ou três centenas de habitantes. Muitas casas cons- imigrantes açorianos e t a m b é m dos madeirenses c portugueses con-
truídas atrás i\o jundu, vegetação de restinga que servia como tinentais que se estabeleceram no litoral catarinense e rio-
proteção contra o vento. Sua presença era indicada somente grandense, a partir de meados do século XVIII, guardando traços
pelos 'portos', aberturas largas e sinuosas que as comunicam culturais próprios, fruto da miscigenação, sobretudo com os índios
com a praia. A entrada deles erguiam-se os varais para estender (Lisboa, 1997).
as redes e eram guardadas as canoas" (p.38-39). Os colonos açorianos chegados no século XVIII deram conti-
nuidade à agricultura de subsistência iniciada pelos colonizadores
A própria pesca, que era uma atividade complementar à agri- da capitania de São Vicente, alguns dos quais t a m b é m de origem
cultura, passou a ser uma fonte de renda central para os caiçaras p o r t u g u e s a - a ç o r i a n a , chegados na região já no s é c u l o XVII,
t a m b é m nas primeiras décadas do século XX, com o abandono desenvolvendo a policultura que tornou o litoral de Santa Catarina
progressivo da agricultura. N o litoral sul fluminense e norte auto-suficiente em alimentos (Beck, 1983).
paulista, a chegada de lanchas a vapor vindas de Santos para a Esses colonos eram agricultores e pescadores em seus lugares
compra do peixe conservado em gelo (fenómeno que ocorre tam- de origem e, quando se fixaram no litoral sul do Brasil passaram a
b é m no litoral sul) e o aparecimento da pesca embarcada em trai- combinar a agricultura com a pesca. Conforme Franklin Cascaes
neiras, especializadas na captura da sardinha, entre 1920-19.30, trou- (1989), os açorianos começaram a pescar tainha nos meses de i n -
xeram m u d a n ç a s importantes para essas comunidades. O resulta- verno, entre maio e julho, quando praticavam a pesca coietiva da
do desse processo foi uma dependência e uma especialização maior tainha, usando "parelhas" ou arrastos de praia. 'lambem no inver-
da pesca como geradora de renda. no, ocorria a transformação da mandioca em farinha — a farinhada
A partir dos anos 50-60, essa situação vemse alterando bas- — e, por isso, esse período era marcado por uma intensa vida so-
tante pela abertura de estradas de rodagem, pelo afluxo de turistas cial e por festas dedicadas aos santos padroeiros
e veranistas que se estabeleceram nos povoados, comprando e se Segundo Várzea (1994), essa transição gradativa da agricultura
apoderando das praias e pelo estabelecimento de áreas prote- para a pesca iniciou-se já nas primeiras décadas do século XX,

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A N I O N I O CAIÍI.OS DIIIGUKS A I'I:.S(:A C O N S I R L I N O O SOCIKDADKS

quando se instalou uma economia mcrcantilizada no litoral cata- Caram sobretudo as comunidades de açorianos que se dedicam à
rinense baseada na atividade pesqueira. pequena pesca c, mais recentemente, ao cultivo de mexilhão.
A expansão urbana acentuou-se em meados do século XX, com As décadas de 70 e 80 t a m b é m trouxeram outras m u d a n ç a s
a rápida urbanização de Florian{)polis e da orla marítima entre importantes no litoral catarinense, com a introdução do turismo e
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, ocasionando um processo de das residências secundárias. Muitos desses pescadores, como resul-
expulsão dos pescadores de suas praias. A urbanização das praias tado da expansão urbana e da diminuição dos estoques, transferi-
do centro-sul catarinense iniciou-se já na década de 30, mas, em ram-se para o setor de serviços, atendendo o grande contingente
outras regiões, foi um processo mais demorado, c o m e ç a n d o a se de turistas nacionais e estrangeiros que passam a temporada de
manifestar a partir da década de 60, aproximadamente (Teixeira, verão no litoral catarinense e rio-grandense.
1990). Acentuou-se t a m b é m uma especialização e d e p e n d ê n c i a
maiores dos moradores em relação à pesca, com o surgimento da
pesca artesanal. O aumento do mercado consumidor urbano, a
O T K M P O DA FAIÍTURA K A PKSCA
melhoria das estradas e a introdução da motorização das embar-
DA T A I N H A NAS C O M U N I D A D K S
c a ç õ e s e das redes de náilon foram fatores importantes no
CAIÇARAS K AÇORIANAS
surgimento da pesca artesanal catarinense. Nessa é p o c a , os
pescadores açorianos já tinham perdido parte de suas terras e praias
A imagem de uma sociedade da abundância em tempos idos é
para a e x p a n s ã o i m o b i l i á r i a e o t u r i s m o , a u m e n t a n d o sua
comum tanto às comunidades caiçaras quanto às açorianas. E o
d e p e n d ê n c i a do trabalho no mar. Já na década de 40-50, surgiu a
tempo lembrado pelos poucos pescadores mais velhos que chega-
pesca empresarial que usava barcos maiores como traineiras e
ram a vivenciar a economia e as sociedades baseadas na agricultu-
arrastões de camarão que, por sua vez, começaram a recrutar os
ra que lhes garantia a subsistência e a pesca que lhes aportava o
pescadores artesanais como tripulantes. Nas últimas d é c a d a s ,
dinheiro necessário para adquirir, na cidade, os bens que não pro-
houve uma redução importante dos estoques pesqueiros da região,
duziam. Era t a m b é m o tempo de uma vida social mais intensa.
capturados pela pesca artesanal que entrou em crise, somente
Em ambas as sociedades, esse período áureo se estendeu de mea-
amenizada pela introdução recente da maricultura de ostras e
dos do século XIX até meados do século XX.
mariscos.
Os pescadores de origem açoriana ficaram conhecidos como — O Tempo da Fartura entre os Caiçaras
excelentes profissionais da pesca, migrando sazonalmente entre o
Rio Grande do Sul e São Paulo, onde eram conhecidos como Muitos caiçaras identificam o início do século XX até as décadas
pescadores-anrioriilhas. Muitas artes novas de pesca foram intro- de 50 e 60 como o período da abundância e da fartura. Até aí, a
duzidas por esses pescadores nos locais para onde migravam cm agricultura garantia a base de subsistência, particularmente a fari-
suas campanhas de pesca. A partir de 1970, a indústria de pesca nha dc mandioca, combinada com a pesca da tainha que trazia o
ganhou grande impulso em Santa Catarina com a política de i n - dinheiro necessário para comprar na cidade os bens que não pro-
centivos fiscais. N o entanto, em menos de dez anos, fizeram-se duziam nos "sítios". A fartura não se referia somente à produção e
sentir os sinais da sobrepesca e algumas dessas empresas cata- consumo de bens materiais como t a m b é m à riqueza e intensidade
rinenses migraram para outros lugares, como o litoral norte amazô- das relações sociais inter-e intravizinhanças, povoados e bairros.
nico, levando seus barcos e pescadores. N o litoral catarinense, fi- Dc um lado, havia o mutirão que reunia a vizinhança num sistema

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A N TONIO CAIÍI.OS DIKOUKS A PKSCA CON.STIÍIINDO SOCIKOAOKS

de troca, de dons e contra-dons, durante as atividades agrícolas, Carlos Borges Schmidt (1948), ao estudar, na década de 40, as
culminando com a dança do fandango à noite. A natureza era pró- comunidades caiçaras ao longo do litoral paulista, enfatiza a i m -
diga e as terras abundantes, permitindo a agricultura itinerante e o portância da pesca da tainha. Para ele, a pesca da tainha era, na
policultivo. De outro lado, havia a pesca da tainha, praticada du- década de 40, a principal e a mais importante de quantas se prati-
rante o inverno, período de pouca atividade agrícola, excetuando- cam na região de Ubatuba.
se o fabrico da farinha de mandioca nas casas de tráfico, trabalho,
Para Mussolini (1945), é no inverno que os pescadores arte-
em geral, realizado pelas mulheres.
sanais de Ilhabela esperavam ansiosamente pela arribada das
A partir dos trabalhos pioneiros de Carlos Borges Schmidt tainhas que lhes garantiam o sustento e um pouco de dinheiro para
(1948), Gioconda Mussolini (1945) e Maria da Conceição Vicente suas despesas. A grande quantidade capturada dessa espécie fez
de Carvalho (1948), para o litoral paulista; e Lysia e N i l o Bernardes com que a tainha se transformasse num dos peixes mais populares
(1950), para o litoral fluminense; e, a partir de depoimentos de nas comunidades caiçaras, que desenvolveram técnicas e sistemas
velhos caiçaras, constata-se que entre as atividades pesqueiras, a de captura que envolviam grande parte de seus membros em formas
pesca da tainha representou, a t é a década de 50-60, e ainda repre- complexas dc cooperação e divisão de trabalho.
senta, em muitas comunidades caiçaras da costa sudeste, uma
T a m b é m na década de 40-50, Carvalho (1948) assinala a i m -
atividade económica e social importante, que garantia a sua sobre-
portância da pesca da tainha para os caiçaras do litoral sul paulista:
vivência durante longos meses, uma vez que esse peixe, salgado-
seco, juntamente com a farinha de mandioca eram alimento básico
"a pesca da tainha é a de maior vulto. Constitui a maior fon-
e moeda de troca. Podemos dizer que a safra da tainha, nos meses
te de riqueza das praias. Aproxima-se nos meses de junho, j u -
de inverno, é uma atividade-símbolo do modo de vida caiçara.
lho e agosto, em ardumes, chegando a atingir vinte mil peixes.
Apesar da diminuição da importância dessa atividade em muitos
Acossada pelo frio dos mares do sul, ela procura abrigo nas águas
lugares, associada à d i m i n u i ç ã o dos estoques e de m u d a n ç a s
mais quentes e tranquilas das barras dos rios e dos fundos das
trazidas pela urbanização e transformações na vida das praias
enseadas, onde vão desovar... E esta a época de fartura nas praias,
ocorridas com o turismo, essa pesca ainda exerce uma grande atra-
quando o caiçara faz suas compras de mantimentos e roupas. E
ção sobre os caiçaras, muitos dos quais abandonam outras ativida-
quando o resultado da pesca dá para mais alguma coisa do que
des para participar dessa atividade pesqueira que continua reafir-
matar a fome, quando se movimentam as praias com a volta
mando a tradição e o modo de vida tradicional.
daqueles que se dirigiram aos bananais em busca de um ganho
Como afirmamos anteriormente, na fala dos caiçaras mais ve- mais certo" (p.45).
lhos, a safra da tainha participava da fartura das comunidades no
período em que eram donos de suas praias e terras, combinando a Da mesma forma, Bernardes (1950) enfatizava a importância
agricultura com a pesca. De um lado, a safra da tainha ocorre nos económica e social dessa pesca para as comunidades caiçaras do
meses de inverno, em que a maioria das outras pescarias fracas- litoral fluminense.
sava, sendo então responsável pela alimentação e pelo dinheiro de A a b u n d â n c i a era, pois, fruto da natureza pródiga de um lado
que necessitavam para a compra de mercadorias e para organizar e e da c o m b i n a ç ã o entre a agricultura itinerante e a pesca, sobretu-
participar de inúmeras festas que ocorriam nos meses de inverno do da tainha. Essa complementaridade, como veremos depois,
(Bandeira do Divino, festas juninas, festa do Senhor Bom Jesus de c o m e ç o u a ser rompida quando o pescador-lavrador foi gra-
Iguapé, etc). dativamente se transformando em pescador artesanal, mais de-

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A N TONIO (-AUI.OS DIKGUKS A PKSCA CONSTIU INDO SOCIKIMOKS

pendente do mercado e cada vez menos da lavoura. De uma Marcílio (1986) t a m b é m denomina a safra da tainha, no inverno,
maneira geral, essa cisão começou a se produzir a partir da déca- como a época de felicidade para os caiçaras de Ubatuba, pois coin-
da de 20-30, quando as embarcações de Santos vinham comprar cidia com a época de menor disponibilidade de outros alimentos.
o peixe e principalmente o camarão no litoral sul e as "lanchas de
pesca" mencionadas por Mussolini (1945), t a m b é m de Santos, "Salvo, eventualmente, no caso da pesca, notadamente a da
apareceram no litoral norte para comprar o peixe, substituindo, tainha, cuja época de chegada dos cardumes, para a felicidade
aos poucos, as viagens épicas das canoas de voga, de mais de 20 do caiçara, coincidia com o período dc menores disponibilida-
metros de comprimento e dois metros de boca, na descrição de des da produção agrícola... As 'campanhas', que com maior sor-
Schmidt (1948). te conseguiam trazer grandes quantidades de tainhas, depois
Havia prodigalidade e intensidade das relações sociais e de com- de repartirem entre si o melhor da pesca, não deixavam de com-
padrio. Tanto o mutirão na roça quanto o trabalho coletivo na safra partilhar o restante com os parentes, amigos, vizinhos e os po-
da tainha realçavam os aspectos comunitários e de solidariedade bres, como nos relataram inúmeras vezes vários velhos caiçaras
existente entre "vizinhanças" e os moradores da mesma vizinhan- de Ubatuba" (p.35-6).
ça, em grande parte parentes e compadres. Havia, sim, uma
diferença na repartição das tainhas entre os proprietários das ca-
noas e redes, que recebiam, em geral, um terço da produção, f i - — O Tempo da Fartura entre os Açorianos
cando dois terços para os pescadores. Mas havia t a m b é m uma d i -
visão mais equitativa, uma vez que não somente as mulheres e O p e r í o d o situado entre meados do século XIX e as primeiras d é -
crianças recebiam seu quinhão como havia t a m b é m o "quinhão do cadas do s é c u l o XX era considerado pelos descendentes dos
santo" e das "viúvas". migrantes açorianos como o período da fartura, dada a a b u n d â n c i a
O aparecimento cíclico das mantas de tainha no inverno reacendia dos peixes, particularmente da tainha e das roças de mandioca e
os laços de solidariedade existentes na comunidade e de uma certa outros cultivos, de onde se produzia a farinha, base da alimenta-
forma produzia e, até hoje produz e reproduz, as relações sociais e a ção familiar.
própria comunidade. Nesse sentido, a safra da tainha pode ser A atividade de pesca de tainha, segundo Cascaes (1989), era a
entendida como um mito recriador da própria comunidade. principal modalidade de pesca na Ilha de Santa Catarina. Duran-
K fartura das colheitas agrícolas decantadas pelos antigos era, te a safra, os pescadores deixavam a lavoura e passavam a viver
sem dúvida, relativa e proporcional ao consumo reduzido de uma em ranchos à beira-mar, aguardando a chegada dos cardumes. Esse
população pequena e dispersa. A abundância na safra de tainha, processo é t a m b é m descrito por Teixeira (1990) que assinala a
que garantia um excedente vendido nas cidades, muitas vezes como importância da tainha da qual se usava a banha para a iluminação
peixe salgado seco de que se faziam os pratos típicos locais (como das casas:
o azul-marinho, a tainha assada em folha de bananeira, etc.) deve
t a m b é m ser entendida num contexto de pouca acumulação de " U m pequeno n ú m e r o dc móveis c uns poucos utensílios
excedente. E m suma, a natureza era farta, a tecnologia de traba- de cerâmica e ferro compartilhavam o cenário das casas dos cam-
lho, tanto na pesca quanto na lavoura, rudimentar, mas adequada poneses, que ainda tinham iluminação fornecida pelo lampião
às necessidades da época. Uma produção maior desse pescado, não com óleo de mamoeira e no inverno, com banha de tainha (...)
constunida e não comercializada, era perdida. Aliás, é oportuno salientar que a 'oposição' pesca/agricultura

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AN'|-ONI() CAUI.OS DIKGLKS A PKSCA (CONSTRUINDO SOCIKDADKS

t a m b é m define a distribuição espacial das comunidades: prtí- A descrição acima dá a impressão que os caiçaras viviam em
ximo à praia ficavam os ranchos de materiais de pesca e canoas função dessa espera, aguardando a boa nova da chegada nas praias
— muitas vezes feitos totalmente de palha de tiririca — e nas vizinhas, mais ao sul. Schmidt (1948) assinala o frenesi que envol-
encostas; um pouco mais afastado da praia, mas não longe, fica- via essas comunidades na expectativa da chegadas das mantas,
vam as residências, os engenhos de farinha — com estrutura indicando que, durante a safra, as outras atividades económicas
igual a das casas e instrumentos feitos de madeira — e, mais ficavam como que meio suspensas e a assiduidade ao trabalho da
longe, nas encostas ficavam os roçados" (p. 49). roça diminuía ou mesmo se paralisava.

Teixeira (1990) reproduz o calendário anual das atividades eco- "Paira como que qualquer cousa no ar, é a sensação de que
nómicas dos descendentes dos migrantes açorianos, em que se cardumes rondam a costa, penetram por enseadas e bacias, apro-
combinavam tarefas agrícolas e pesqueiras de verão e do inverno. ximam-se ou recuam para o largo, passam de porto em porto
Algumas atividades empregavam mão-de-obra familiar, enquanto sempre a caminho do Norte, insinuam-se, sorrateiros e fra-
outras, como a pesca de arrasto da tainha, eram atividades de caráter cionados, pelas bacias a dentro dos rios e ribeirões, à procura de
coletivo. local propício para a desova" (p.24).

A Expectativa e a Preparação Até a visão dos cardumes em frente no mar, em frente à praia,
para a Chegada das Taitihas não se sabia se as tainhas chegariam em grande quantidade ou se
faltariam ao "encontro", como, às vezes, ocorria, enchendo de frus-
Nas comunidades caiçaras, a preparação para a safra, semanas an- tração os pescadores. A espera da chegada dos cardumes (mantas)
tes de maio, mobilizava homens e mulheres na confecção e conser- de tainha nas praias gerava, e ainda gera, em muitas comunidades
to das redes de praia e de arrastão, dos tresmalhos, que eram embe- uma grande expectativa, semelhante a um jogo de azar.
bidos em banhos de casca de aroeira, mangue, cajueiro e outras Dessa pesca, participavam não somente os pescadores da praia,
espécies para depois serem deixadas para secar nos varais das prai- mas t a m b é m os moradores do "sertão" e do p é da serra, que aban-
as. donavam suas roças c eram atraídos pelo fascínio que envolvia essa
Schmidt (1948) é o autor que descreve com maiores detalhes a pesca. Para Schmidt (1948), a pesca da tainha exercia uma grande
preparação dos pescadores para a safra nas semanas que antece- fascinação sobre toda a população litorânea, incluindo velhos,
diam a esperada chegada dos cardumes: mulheres e crianças.
Gioconda Mussolini (1945), ao descrever a pesca da tainha na
"Chegados os meses propícios, a notícia da aproximação, Ilha de São Sebastião (Ilhabela), litoral norte de São Paulo, nos
costa acima, de sul para norte, dos primeiros cardumes, corre anos 40, retrata a expectativa pela chegada das primeiras mantas
mais veloz que as próprias mantas de tainha. Desde tempos, de tainha.
aguardando a hora, antegozada nos seus imprevistos, com as
redes cuidadosamente consertadas e com suas tralhas revistas, " T i v e oportunidade de assistir a um desses momentos de
embarcados nos batelóes de quatro palmos de boca, sob os ran- expectativa, quando, tudo pronto, espera-se pela chegada da
chos dos terrenos da marinha, estão todos preparados para o tainha. Os olhos do pescador, (juando no mês de junho, se vol-
início da estação de pesca" (p.26). tam constantemente para sondar a bocaina, o ponto de re-

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A N T O N I O (>AIÍ[,O.S DIKGUKS A PKSOA CONSTRUINDO SOCIKDADKS

fercncia barométrico, enunciador do SW, o vento forte que en- e à fartura das colheitas. As terras não tinham dono como as de
costa a tainha" (p.l40). hoje, com seus documentos de cartório e cercas. A propriedade se
restringia a casa, ao quintal, às canoas e redes. A a b u n d â n c i a das
Dessa forma, a chegada das primeiras mantas era precedida das terras era acentuada t a m b é m pelo abandono de grandes pro-
notícias que corriam as praias e a captura dos primeiros peixes priedades monocultoras, cujos donos, sobretudo depois da abo-
tinham um grande valor simbóhco. O caráter ritualístico dessa pes- lição da escravatura, vinham morar nas cidades. Parte dessas
ca, ao contrário de muitas outras praticadas no verão, está ligado à propriedades foi tomada pelo mato e, não sendo reclamadas por
procura das "primeiras tainhas", as primícias de uma colheita que herdeiros eventuais, passaram a ser usadas pelos caiçaras ou
se aproximava, chamadas, em alguns lugares, de "tainha solta", caboclos do lugar. As terras de plantio eram apropriadas pelos que
peixe de grande valor simbólico. estivessem plantando, por um certo período de tempo, sendo
Mussolini (1945) descreve a perseguição às primeiras tainhas depois deixadas em pousio. Outro morador da "vizinhança", em
trazidas pelos primeiros ventos frios e chamadas localmente de geral parente ou conhecido, poderia ter a permissão para usá-las
"tainhas soltas". Os ilhéus com suas canoas tentavam achar essas depois. A mata era densa, muitas vezes hostil e morada de sacis,
primeiras mantas até em pesca noturna e o motivo não será "tanto caiporas e outros seres mágicos que eram apaziguados com pre-
o lucro que possa advir, mas a emoção tie apanhar e ostentar os sentes (tabaco) para liberarem a caça (Diegues & Nogara, 1994).
primeiros peixes da temporada" (p. 140). Havia t a m b é m o orgulho Havia, pois, um contínuo entre o espaço domesticado da casa, do
de poder chegar ao mercado com as primeiras tainhas que tinham quintal para um semi-domesticado, o das roças e os espaços me-
um melhor preço. nos domesticados, os da mata usados para a caça. A praia próxima,
T a m b é m entre os açorianos catarinenses, as semanas que ante- ao contrário da casa, do quintal e da capela, era um espaço apropri-
cediam a chegada dos cardumes eram de grande expectativa, como ado pelas atividades pesqueiras, muitas vezes cíclicas, como a da
afirma Cunha (1987): tainha. O mar, além da arrebentação, era o domínio do perigo e da
morte, que precisava ser afrontado por pessoas que, em geral, não
"A espera de seu tempo é marcada por grande expectativa, sabiam nadar. Algumas praias mais l o n g í n q u a s eram t a m b é m
pois a pesca da tainha traz o início de um novo ciclo, fazendo a utilizadas sazonalmente com a instalação de ranchos de pesca,
passagem de um tempo de escassez para a possibilidade de u m usados durante a safra da tainha e abandonados depois.
tempo de fartura, ainda que relativo" (p.l38).

Os pescadores mais velhos tanto caiçaras quanto açorianos, O C O N H K C I M K N T O T l í A D l C l O N A l , SOllKK A T A I N H A

referem-se ao tempo antigo, de sua juventude, como tempo de


fartura e a pesca da tainhaera um dos símbolos dessa abundância. O conhecimento tradicional é aqui entendido como um conjunto
O confronto entre os "dias de hoje", difíceis, e o tempo antigo é de práticas cognitivas, de crenças, de habilidades práticas e de
recorrente no discurso dos velhos pescadores/lavradores e o pró- saber-fazer transmitidas oralmente nas comunidades de pescado-
prio presente é comparado c explicado pelo tempo de antigamen- res, e que garantem a reprodução de seu modo de vida. Ele é um
te, quando tudo era, aparentemente, mais fácil (Brandão, 1983). saber prático, cumulativo, produzido por gerações sucessivas de
A abundância relacionava-se com a variedade de recursos natu- pescadores, a partir da observação cotidiana, contínua e confrontada
rais a serem utilizados, à grande quantidade de terras disponíveis com os testes da experiência diária. Esse saber não é d i s t r i b u í d o

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A N T O N I O CAIÍI.OS DIKGUKS A PKSCA CONSTIÍUINIJO SOCIKDADKS

homogeneamente entre todos os pescadores, concentrando-se, em 70 e 95 c e ntíme tr os e a tainha de rio, menos apreciada e menor,
geral, nos pescadores mais velhos e experientes, variando segundo com aproximadamente 30 centímetros. Nos meses de junho e j u -
o ambiente usado e as diferentes técnicas de pesca. lho, as tainhas são muito apreciadas por se apresentarem ovadas e,
Os caiçaras detinham, e muitos ainda d e t ê m , um conhecimen- já no final de agosto, estão magras e desovadas. São chamadas,
to tradicional importante sobre o comportamento das tainhas, so- então, de damas, apelidadas de "tainhas de agosto".
bretudo durante o período migratório reprodutivo, quando elas se Os ventos e as marés são indicadores da chegada das mantas.
apresentam em cardumes. Para os pescadores de Ubatuba, os cardumes de tainha são precedi-
Desenvolveu-se um conhecimento prático, do concreto, no dos pelo mau tempo e, enquanto não faz uns dias de chuva e vento,
dizer de Lévi-Strauss, que supria a precariedade dos instrumentos o peixe não aparece e não sc iniciam as pescarias (Schmidt, 1948).
de trabalho, mas que era um componente fundamental das forças O tamanho e volume dos cardumes t a m b é m variavam, segun-
produtivas locais. N o caso da pesca da tainha, esse conhecimento do a safra, e essa característica era, e ainda c, um elemento central
se concentrava na figura do "vigia" e do proeiro da canoa que da expectativa dos pescadores. Schmidt (1948) já assinalava que,
organizam os lanços da rede. em Ubatuba, 1932 foi um ano excepcional para a pesca, quando
Para Mussolini (1945), o caiçara de Ilhabela conhece a trajetó- milhares de tainhas foram capturadas, diminuindo muito nos anos
ria da migração da tainha, iniciada em abril, quando saem das nume- seguintes. Alguns pescadores atribuíam essa diminuição à ativida-
rosas lagoas do sul para, como se diz em Santa Catarina, "correr o de de pesca de arrasto (trawlers), iniciada pelos japoneses c feita a
corso". Os cardumes costumam subir a costa brasileira, de sul a meia milha da costa, naquela época, matando os peixes menores, o
norte, migrando das lagunas do sul do país, principalmente da "comedio" dos maiores, enquanto outros diziam ter notícia de
Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, para desovar, provavel- fechamento da barra nas lagoas do sul, sendo as tainhas captura-
mente em mar aberto, depois de entrar nas áreas estuarinas à das no interior das lagunas. A guerra de 1939-1945, proibindo a
procura de alimento. A migração ocorre no outono/ inverno, de atividade pesqueira dos japoneses, teria, segundo os pescadores,
abril-maio, terminando aproximadamente em agosto-setcmbro. possibilitado grandes safras em 1943-1944.
Todo esse ciclo migratório e reprodutivo é de conhecimento do Já em Iguapé, litoral sul de São Paulo, são pescados a tainha, o
pescador, menos sua designação científica. tainhotão, o parati-guaçu c o parati-poca ou apoá. A tainha é conheci-
Na visão de pescadores de Ilhabela, o peixe passa por diversas da como "do mar de fora", quando é gorda, com "dois dedo de
metamorfoses, havendo diversas categorias de tainha, segundo o banha", e vem subindo a costa desde o litoral sul do Brasil, entre
período do ano em que aparecia: em início dc maio, apareciam as maio e junho. Segundo os pescadores locais, existe a tainha dc cri-
tainhas soltas, os primeiros peixes que prenunciam a estação, mas ação no mar de dentro, entre Iguapé e Paranaguá, que é mais ma-
quando os cardumes começam a se concentrar, em junho/julho, gra, sem gordura. O parati chega t a m b é m em manta, no m ê s de
ela é chamada peixe de corrida, que aparece em grandes mangotes abril. Quando tem chuva e vento sul, ele entra no Mar de Dentro.
e, no final, ganha o nome peixe de arribada (que inicia a viagem Segundo os pescadores do litoral fluminense (Niterói), a tainha
de volta), quando chega aos estuários (Mussolini, 1945). se divide em dois tipos, de acordo com a origem de seu movimen-
Ao estudar as variedades de tainha conhecidas pelos caiçaras to, conforme constata Ivima (1997).
de Ubatuba, Schmidt (1948) afirma que eram conhecidas duas O primeiro tipo é a tainha "de dentro", "do sul" ou "gorda".
variedades: a tainha de corso ou verdadeira, com colorido branco e Costuma ocorrer no "inverno", nos meses de maio a agosto, principal-
escamas com listras escuras, com o comprimento variando entre mente. Diz-se que ela se desloca ("anda") no quarto de lua min-

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A N rosílo CIAKI.OS Dii;(;i:i:s A PKSC:A C O N S i i í i INOO So(:ri;oAOi:s

guante e na lua nova. "Gosta" de mar "pesado" (agitado), de vento Duarte (1978), no litoral do Rio de Janeiro, onde o peixe não é
(especialmente sudoeste) e de chuva. As vezes, aparece em janeiro apenas um ser vivo, mas se comporta segundo padrões semelhan-
e aí é denominada "temporona". Quando capturada, é dividida em tes aos das sociedades humanas.
"ovada" (que tem uma ova amarela e grande) e "macha" (que tem A carga semântica do "humano", com suas qualidades de es-
uma ova esbranquiçada e bem menor). A "ovada" é maior e, quando perteza, luta, atribuídas ao peixe, aparece t a m b é m no trabalho da
atinge tamanho e pesos apreciáveis (6 a 8 quilos, aproximadamen- rede, quando a pesca parece um enfrentamento entre o peixe e o
te), é chamada de "macacoana". Essa tainha "ovada" é altamente homem, no cpial a tainha deve ter a possibilidade de escapar ao
valorizada em função de sua ova, que alcança preços bastante cerco.
elevados no mercado. N o entanto, não é considerada boa de comer,
por ser a carne muito oleosa, "teimosa". Diz-se que a ova tem "valor O Tempo Frio e o Tempo Quente
próprio" e a tainha não. ''Foi Dem quefez assim". A tainha "macha" é
considerada melhor, porque mais magra (I>ima, 1997). A chegada das tainhas marca a visão cíclica que os caiçaras t ê m da
7 á m b c m os pescadores açorianos tinham e ainda tem um conhe- natureza. O ciclo que começa em março/abril, com o preparo das
cimento aprofundado sobre as tainhas, seus movimentos migrató- redes e das canoas, a expectativa de uma pesca abundante e a
rios c seus hábitos. Seu Anastácio, pescador de Ibiraquera (72 anos), subida dos vigias aos morros iniciam esse ciclo que chega ao seu
cjue começou a pescar com 11 anos, distingue vários tipos de tainha; pico com a saída das canoas ao mar. Ele termina com o apareci-
a da quaresma, é magra, e entra com o vento sul; seguida peia cordeira, mento das tainhas magras de agosto para se reiniciar outra vez em
que entra com o rebojo do vento sul; a maranhão que é gorda e março/abril, quando as mesmas tarefas e a mesma expectativa se
grande, procedente t a m b é m do sul (Lagoa dos Patos); e a última, a repetem. Ao mesmo tempo, esse ciclo, como dissemos antes, re-
facão, que é a que volta do norte, já magra. produz a vida social, uma vez que homens, mulheres e crianças
A tainha tem algumas características antropomórficas, como a estão na praia não somente para pescar, mas para reafirmar os va-
inteligência, a vivacidade e a esperteza. N o dizer de um pescador lores de sociedade que t a m b é m se expressam pelos símbolos, ori-
de I g u a p é , entando a formação dos grupos tradicionais de pesca que se recri-
am a cada safra e que se desfazem depois dela: as "compendia", as
"F. um peixe esperto, inteligente porque quando a água está cla- sociedades e as combinações. Vimos como mesmo os pescadores que
ra, ele vê a rede, mergulha para baixo para escapar, ou pula por tinham ido trabalhar nos bananais, longe de casa, abandonavam
cima da rede. Depois da tainha, o peixe mais inteligente éa pescada seu trabalho para voltar à sua praia para se integrar à pesca da tainha,
amarela. A tainha come aquela escuma da água, o legume da água, isto é, à vida social intensa. É como se a vida social se intensifi-
ela fica pitando (comendo) aquele legume de cima d'água. Quando casse e se fortalecesse durante o período de inverno c diminuísse
tem muita tainha, a gente escuta o rincho, bamlho que ela faz, quan- após a safra. N o ciclo seguinte, o de verão, os pescadores se
do uma lixa uma na outra'' reagrupavam em equipes menores para as diversas pescarias do
"tempo quente", quando as espécies eram variadas, as áreas de
(Seu Benedito Carvalho, pescador de Icapara, Iguapc, 2004)
pesca, mais distantes e as técnicas de pesca mais diversificadas.
N o litoral sul paulista (Juréia), ''a tainha éo bicho mais sabido dos Verifica-sc, aqui, o processo social tão bem analisado por Mareei
peixes, depois é o parati e em terceiro é a caratinga " (Sanches, 1997: Mauss entre os esquimós. Essa ideia de ciclo t a m b é m foi aponta-
151). Essa antropoformização do peixe é apontada t a m b é m por da por Cunha (1987), entre os pescadores açorianos da Barra da

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A N T O N I O (^MÍI.OS OIKCCKS
A PKSCA CONSTRUINDO SOCIKIMOKS

Lagoa, em Sanca Catarina. T a m b é m aí, a espera dc seu tempo é


marcada por grande expectativa, pois a pesca da tainha traz o iní-
cio de um novo ciclo, fazendo a passagem de um tempo de es-
cassez (àqueles que não praticam o cerco) para a possibilidade de
um tempo fartura, ainda que relativo. Nesse período de entressafra
ou entreciclo, alguns pescadores se encontram embarcados ou efe-
tuando biscates, retornando à atividade local, o que leva a pensar
que a tainha os "chama de volta".
Essa aceleração e intensificação da vida social na safra da
tainha foram t a m b é m assinaladas por L i m a (1997). Para ele, a
pescaria da tainha é o ponto focal do inverno, a s í n t e s e da vida
comunitária de Itaipu, em Niterói, constituindo uma apropriação
ritual do excedente que colabora para a r e p r o d u ç ã o da vida so-
cial dos pescadores. Cria-se, mesmo, um circuito de produção,
repartição e consumo de bens e serviços simbólicos que cons-
tituem e uma esfera que ultrapassa a esfera económica, reforçan-
do a vida social. Nesse período, segundo o autor, o individuo se
transforma em ser social, participante das coniptni/ias de arrasto,
foco de todas as a t e n ç õ e s da comunidade. Nesse período, a pes-
caria da tainha cria um ambiente mágico, constituindo ela mes-
ma técnica cujo sentido deve ser buscado em nível de represen-
tações simbólicas.
Para Lima (1997), a visão cíclica da pesca da tainha divide o
ano em duas estações que se caracterizam por morfologias distin-
tas do ano, constituindo verdadeiros pólos de atração de significa-
dos sociais. O inverno aglutina c o verão r/eso/gani-za c dispersa os
pesradores. Sua existência cíclica, antes de ser uma imposição da
"natureza", é uma construção social que se revela através de uma
ritualização constante das atividades rotineiras, numa festa contí-
nua, como pensada por Mauss para a sociedade e s q u i m ó .

O Processo de Trabalho

O processo de trabalho na pesca da tainha, tanto entre os açorianos O vigia observando os cardumes de tainha.
cjuanto entre os caiçaras, envolve diferentes tipos de rede, com
suas equipes de trabalho e saberes diferenciados. Consideraremos

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A N T O N I O (CAIÍI.OS DII-:GI:KS A PK.SCA CONSTIÍUINDO SOCIKOAOKS

dois tipos de rede, as mais frequentemente usadas nas comunida-


des caiçaras; o tresmalho e o arrastão de praia que t a m b é m recebe "A esta altura o espia já fez um cálculo seguro do peixe en-
o nome de costa ou rede de costa. Entre os pescadores açorianos, volvido pelo cerco. Uma, duas, cinco, dez m i l tainhas, fosse a
existem vários m é t o d o s de captura, mas a rede de parelha de praia quantidade: cercada e o seu n ú m e r o , com elevada aproxima-
ou arrasto de praia foi a escolhida para este trabalho, por ser ção, seria do conhecimento do espia. Se o saltio aumenta, se
considerada uma pesca coietiva que envolve toda a comunidade, amaina, se recrudesce; calcula com segurança o nosso homem
assim como é a pesca de tresmalho e sobretudo a do arrastão de o que ainda resta envolvido. Assim vão as cifras diminuindo,
praia, entre os caiçaras. mais ou menos rapidamente, tal seja o assanhamento do peixe,
até que tirado na praia o que não conseguiu escapar, é de se
/. A Identificação dos Cardumes: admirar a precisão do cálculo" (Schmidt, 1948: 29).
o Papel do Vigia ou Olheiro
Já em Iguapé, o cerco da tainha começava com o sinal do espia,
A figura do pescador que procura e avista o cardume que se apro- um "mágico que conhecia bem os peixes" que ficava encima dc
xima é uma figura central em todas as modalidades de pesca da uma elevação de terreno ou trepado num galho de mangue. Com
tainha, entre os caiçaras e açorianos, ainda que sua função e técni- diferentes sinais de mão, o espia informava os pescadores das com-
cas de sinalização variem de um lugar para o outro. A função de binações sobre o tamanho da manta e a que distância da praia devia
vigia é tradicionalmente exercida pelos pescadores mais velhos, fazer-se o cerco com a rede.
em geral, aposentados, pois requer bastante experiência no saber
enxergar os sinais indicadores dos cardumes, a luminosidade e a "Quando ele levantava um dedo, era sinal de cardume pequeno,
ardentia que indicam os cardumes em movimento. para sercetrado pelo cutrico, quando mostrava 4 dedos, era sinal de
O processo de trabalho inicia-se, com o trabalho dos vigias, manta grande, para ser cercada com anmtão de praia."
espias ou olheiros, pescadores que t ê m por função avistar e ava- (Seu Benedito Carvalho, pescador de Icapara, Iguapé, 2004)
liar, do alto de uma elevação, os cardumes e guiar as operações de
cerco das mantas de tainha realizadas no mar. O papel dos vigias é T a m b é m no litoral do Rio de Janeiro, em Niterói, segundo Lima
parecido em todas as praias caiçaras, variando seu n ú m e r o e as (1997), da responsabilidade do espia ou vigia e de sua capacidade,
formas de comunicação com os pescadores das canoas. de seu instinto e de sua acuidade e visão dependem o resultado da
Para Carvalho (1948), em Bertioga, litoral central de São Pau- empresa. Ele constata a presença do cardume, fareja-o, nota seus
lo, nos anos 40, o vigia, percebendo qualquer anormalidade no movimentos, quando ainda ninguém deles se apercebe. O espia
mar, acenava com uma toalha branca para a canoa da rede e, nes- prenuncia a aproximação das tainhas, calcula o seu n ú m e r o , dando
ta, um outro fazia soara buzina para reunir os pescadores. De todos o alarme a que acodem os pescadores. Nessa hora decisiva, é o
os cantos, como por encanto, surgiam homens, mulheres e crian- comandante das operações que ordena o lance, obedecido pelos
ças para tomar parte na pescaria; todas as o c u p a ç õ e s eram pescadores, a postos. E m razão de sua responsabilidade e
abandonadas para só serem retomadas depois de terminada a fai- habilidade, tem um q u i n h ã o maior na partilha do pescado.
na do peixe. O papel do vigia é t a m b é m importante no cerco noturno da
Ao vigia competia t a m b é m calcular o n ú m e r o de tainhas que tainha, ípiando se exigem habilidades especiais. Durante a noite,
íoram cercadas e, geralmente, ele não errava na conta: o espia embarca numa canoa e sai para o mar, colocando-se numa

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A N I Í ) N K ) CAUI.O.S OIKGLI-S A PKSGA CONSTRUINDO SOCIKOAOKS

posição ( J U C lhe permite observar os movimentos do cardume, o daqui me vê, daqui ele chama os outros que estão na praia, e bota a
relampejar do peixe que salta, o barulho que faz e, com base em rede pra baixo e vamos lancear o peixe" (Cunha, 1985: 134).
sua experiência, estima o rumo e a quantidade de peixe.
A responsabilidade do vigia é grande, pois se deixar passar o A capacidade de avistar o cardume, interpretar seus movimen-
momento exato para ordenar a operação, o trabalho será perdido, tos ao longo da costa e calcular seu tamanho é, portanto, uma
os pescadores contrariados c seu prestígio comprometido (Lima, qualidade i m p r e s c i n d í v e l de qualquer bom vigia ou olheiro.
1997). Avistar, do cume dc uma elevação na praia, é, de certa forma,
O papel do vigia t a m b é m é importante na pesca de arrastão de uma marca dc propriedade e o cardume, mesmo antes de ser
praia entre os pescadores do litoral paranaense. capturado, já é de propriedade da companha ou equipe de pesca.
A "fraqueza da vista", causada em geral pela velhice, mas tam-
"Na época de inverno, segundo os pescadores, a tainha vem b é m pela ação do sol no mar, significa o fim de um bom vigia e de
do sul em direção ao norte, pela costa. Um vigia no alto do morro, sua profissão.
ao avistar o cardume, dá sinal para os outros pescadores que
aguardam na praia. Ao receber o sinal do vigia, embarcam na
2. Canoas e Redes
canoa que já está preparada e remam em direção ao cardume
para dar o lance de rede. Kncjuanto isto, os demais pescadores
A embarcação usada no cerco da tainha é a canoa fabricada de um
llcam na praia esperando o momento de iniciar o arrastão. A
tronco só escavado no meio, a enxó e machado e, em geral, de
tainha nada à flor d'água, de modo que o vigia percebe a
grande tamanho para conter redes grandes e possibilitar os movi-
aproximação do cardume pelo movimento do mar e pela colo-
mentos de lanço da rede ao mar.
cação prateada que toma. Quando é cardume pequeno a água
As canoas usadas nessa pesca t ê m , pelo menos, quatro palmos
fica com um aspecto; quando é grande, toma outro, 'brilha igual
de boca e na sua construção são usadas madeiras como o cedro, o
prata'. Niuna distância de .300 ou 400 metros, os pescadores
ingá amarelo, o jequitibá, a timbuiva, o guapuruvu, ainda que esta
mais experimentados, sabem aproximadamente quantos pei-
última seja pouco duradoura. Quando não são usadas, são guarda-
xes v ê m no cardume" (Kraemer, 1978: 17).
das cm ranchos cobertos e pintadas, usando-se o óleo de noga (fei-
to da nogueira de Iguapé, nativa da região) que pode se adicionado
Para os pescadores açorianos, o vigia tem a mesma função que a outras tintas. Canoas conservadas, assim, podem durar mais de
a exercida entre os pescadores caiçaras. meio século (Schmidt, 1948).
Nas praias de Santa Catarina, as canoas são guardadas em ran-
" E m cima da pedra, no costão, os vigias desde cedo lá per- chos ao final da safra e usadas somente no ano seguinte. Já em
manecem, em frente, ou próximo da cruz. Um vigia no morro, Iguapé, em virtude das restrições ambientais ao uso de troncos de
outro em terra, à beira da praia. Encarregam-se de observar os árvores, são usadas canoas de fibra de vidro, mas segundo os pesca-
cardumes e, quando os v ê e m , fazem sinal com os braços, dores, não se comparam em navegabilidade às canoas de madeira
abanando para os pescadores a presença da tainha com o gri- e, quando viram na arrebentação, vão ao fundo.
to: \Sai fora!\m conta o vigia Severo Martins, pescador Se a canoa preferida é uma só, existe uma grande variedade de
aposentado: A gente tira uma camisa e faz o sinal para os outros e redes e armadilhas para a pesca da tainha. Neste trabalho, no en-
daí eles vêm. Estou lá em cima na praia, de lá eu faço o sinal, ele tanto, trataremos somente da rede de tresmalho e do an-asto de praia

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A N T O N I O CAIÍI.OS DIKGLKS A PKSCA CONSTUIMNOO SOCIKOAOKS

( t a m b é m chamada de rede de costa), usadas pelos caiçaras, e do Na descrição de Schmidt (1948), a rede de costa tinha uma altu-
arrasto ou parelha de praia, entre os pescadores açorianos, por se- ra de 5 a 6 braças que variava de acordo com as posses do dono.
rem as mais usadas e, principalmente, por associarem um n ú m e r o Cada pano de rede possuía, em média, 100 braças, mas as me-
maior de pessoas, como foi assinalado anteriormente. lhores tinham cerca de 200 a 400 braças, tamanho suficiente
para cercar o cardume e chegar de novo à praia. Os flutuadores
— Os T i p o s de Rede eram feitos de cortiça e os chumbeiros, de barro cozido. Antiga-

Dois tipos de técnicas de pesca são analisadas neste trabalho: o


tresmalho e a rede de costa/arrasto.
A) A Rede de Ti^esmalho
De influência portuguesa, é usada, no litoral norte, como rede
de emalhar, originalmente feita com três panos e conhecida
t a m b é m como feiticeira em outras regiões do litoral.
N o cerco da tainha, o tresmalho era usado como rede de cerco
ou de emalhe, onde participavam, em geral, duas sociedades ou
grupos de pescadores, em duas canoas, com um tresmalho cada,
além de canoas que seguiam à pequena distância para "aparar"
as tainhas que tentassem fugir. O tresmalho tinha cerca de 70
braças de comprimento (cada uma das partes), por seis de altu-
ra, sendo lançado e recolhido pelas canoas dentro do mar. C^ada
tresmalho tinha o seu mestre, um chumbeiro e um proeiro. Ain-
da que não existisse uma divisão nítida de tarefas, cabia ao mes-
tre cercar o cardume para que este não fugisse, bem como diri-
gir as operações gerais de captura. O proeiro dirigia a canoa e o
chumbeiro largava a cortiça. De início, todos remavam e, quan- 0 cerco da tainha no litoral sul paulista.
do se procuravam as mantas para cercar, o proeiro é que ia indi-
cando a posição a ser seguida (Mussolini, 1953).
Na década de 40, em Ilhabela, a rede de arrasto de praia já mente, a rede era tecida à mão, com a ajuda do malheiro ou
estava caindo em desuso, em função do maior n ú m e r o de pes- agulha, tabuinha fma, com meio palmo de comprimento.
cadores necessários para seu manuseio. c) A Operação do Cerco com a Rede de Costa
A rede de tresmalho era c é, ainda hoje, muito usada nas praias, Para Carvalho (1948), a operação de cerco começava quando a
sendo conhecida no litoral sul paulista como "bretanha". canoa era rolada para o mar, nela embarcando cinco ou seis ho-
h) O Arrasto de Praia ou Rede de Costa mens necessários para dar o lanço. A rede tinha uma extensão
Ao contrário do tresmalho, usado no mar e que emprega um de 120 a 200 braças, pertencente, em geral, a um só proprietá-
n ú m e r o menor de pescadores, o arrasto de praia ou rede de costa rio. As vezes, pertencia a vários donos, sendo formada de diver-
requer o trabalho de uma equipe mais numerosa. sos panos, costurados uns aos outros para a pesca da tainha. Uma

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A N Í O N K ) (CAIÍI.OS DIKGUKS A PKSOA C o N . s - r i í i i N i i o SOCIKDADKS

rede de 120 braças exigia cerca de \ camaradas para ser puxa- realizada, em geral com a rede de arrastão, com cerca de 300 metros
da, as de duzentas, vinte e cinco. Largada na praia, uma das (200 e poucas braças). As condições atmosféricas pouco afetam
extremidades da rede, rapidamente fazia-sc o cerco, um semi- este tipo de pesca que é feita próximo à costa. Cerca de 50 a 60
círculo de 200m de diâmetro, envolvendo o cardume. Outras pessoas participam do cerco da tainha, entre homens, mulheres e
canoas acompanhavam a rede do lado de fora, cujos homens crianças. Na canoa em que está a rede que faz o cerco, vão quatro
levantavam-na para "aparar" o peixe que procurava fugir, sal- pescadores.
tando por cima dela. Sendo muito grande o cardume, dava-se O arrasto de praia ou parelha de praia, realizado pelos açorianos,
um segundo lanço, denominado "rede de forro", a fim de apará- não difere muito da realizada pelos caiçaras, como descreve C u -
los. A rede era, então, trazida braça a braça, obedecendo a um nha (1987) na Barra da Lagoa, na Ilha de Florianópolis:
certo ritmo. Cada um tomava o seu lugar sem atropelo, sem se
ouvirem ordens; os homens iam para o fundo até onde alcança- "Os pescadores partem para o cerco da tainha em pares de
vam pé, as mulheres, até a água chegar-lhes aos joelhos. canoas e, por ser realizado, a beira da praia, realizam um trajeto
Schmidt (1948) descreve t a m b é m a operação da rede de cerco curto. Saem duas canoas juntas, cada qual carregando uma par-
no litoral sul paulista, enfatizando a cadência dos passos dos te da rede de arrasto com 150 braças, bota-se 150 numa e 150
puxadores na areia da praia: noutra. Postas em movimento, as canoas aos poucos vão se
abrindo, seguindo a orientação dos vigias, até que, dado o lan-
"enquanto dois ou três homens remam, aceleradamente, ou- ço, são ancoradas na forma em que as redes foram lançadas na
tros dois jogam ao mar a rede que, com maestria, fora ali arru- praia, fazendo um semicírculo entre o mar e a terra. A partir de
mada. As canoas, agrupadas, vão se separando cada vez mais, então, inicia-se o processo de arrasto. Os pescadores em terra,
ao passo que as que acabaram de deitar ao mar a sua carga em n ú m e r o relativamente grade (20, 30, 50 ou mais), ficam em
dirigem-se rapidamente para terra, onde vão chegar quase que cada extremidade puxando a rede do mar para a terra, trabalho
conjuntamente com as últimas embarcações, portadoras das que exige grande esforço" (p.l39 ).
extremidades da rede (...) Tal seja a extensão total das redes
empregadas no cerco tal será a distância cm que ficarão, na praia,
as suas extremidades. Feito o cerco, a rede, vista de cima, se A Orga/iização Social da Pesca
aproximará a sua figura de uma circunferência, cortada pelo
meio de um dos raios, corda essa que coincidirá com a linha da A organização social na pesca da tainha apresentava, no passado,
praia. Chegados em terra iniciam os camaradas, as ajudantes e características comuns tanto entre os caiçaras quanto entre os aço-
todos quanto quiserem, ou por ali estiverem, a puxada. Pouco a rianos, apesar de haver variações, segundo a região.
pouco, passo a passo, de fasto, os pés assinalando fundo na areia, Entre os caiçaras de Ubatuba (Schmidt, 1948), na pesca de rede
cadenciada, mas ininterruptamente, vai o pessoal dando de costa, na década de 1940, o redeiro ou patrão da rede tinha um
andamento ao enervante e demorado aia" (p. 23-29). grupo mais ou menos fixo de pescadores, parentes ou moradores
da comunidade. Eram quatro ou cinco moradores para cada rede
A pesca da tainha, no litoral paranaense, é descrita por Kraemer de 100 braças. Eram os camaiadas, cuja obrigação era pôr c tirar
(1978), no final da década de 70. Conforme visto, para ela, uma das rede, estendê-la e recolhê-la ao rancho depois da pescaria. Exis-
pescarias mais famosas no litoral paranaense é a pesca da tainha. tiam t a m b é m aqueles que apareciam durante a safra, muitos vin-

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A N I O N I O CARLOS DIKGUKS
A PK.SCA CONSTRUINDO SOCIKDADKS

do de fora. N ã o cinham grande compromisso com seus patrões,


apanhar mariscos (mariscar) e colher algas marinhas. Quando
dos quais podiam se desligar a qualquer momento, para passarem
pescam, geralmente o fazem com caniço (pindaíba), como se
a outros. Eles acorriam ao terem notícias de que em algum lugar se
chama a vara em costas paulistas" (Mussolini,1953: 96).
realizava o lance, ajudando e recebendo a paga. Se de alguma praia
mais além lhes chegava a notícia de que fora cercado algum outro
Já da pesca da tainha, em Iguapé, não participavam nem mu-
cardume, para lá se encaminhavam, repetindo a tarefa.
lheres nem crianças, cujas atividades eram ligadas mais à roça.
Entre os caiçaras, as equipes de pesca tinham d e n o m i n a ç ã o
Entre os açorianos, a t é meados do século XX, os grupos de
local variada: era a "companha" no litoral fluminense, a "socieda-
pesca eram chamados de companha na área da ilha de Santa
de", na Ilhabela, a "campanha", em Ubatuba, a "combinação",
Catarina, nome proveniente dc Portugal, e que representava o
cm Iguapé.
trabalho de parentes e vizinhos na pesca e, mais especificamente,
N o geral, havia uma divisão técnica dc trabalho, com funções
o grupo que operava na pesca de parelha ou arrasto de praia. Nesse
definidas. E m primeiro lugar, vinha o vigia, cujas funções, como
p e r í o d o , a pesca era um complemento da agricultura e o peixe,
vimos anteriormente, variavam desde a identificação e avaliação
vendido em geral salgado/seco, trazia para a família o dinheiro
do cardume a t é funções de comando, divididas com o mestre ou
para a compra do que não produzia na roça. Ao contrário das outras
patrão da rede. Havia t a m b é m os aparadores que, com suas canoas
pescas, como a do camarão rosa, que eram feitas individualmente
e redes estendidas ao longo das canoas, tentavam impedir a fuga
ou em pequenos grupos, a rede de parelha de praia implicava a
dos peixes e, finalmente, os camaradas ou companheiros que iam
participação de toda a comunidade, e a distribuição mais equita-
nas canoas e os ajudantes que auxiliavam na puxada da rede.
tiva da p r o d u ç ã o ressaltava o igualitarismo existente. E m outras
Na organização da pesca do tresmalho descrita por Mussolini praias, como as do sul de Santa Catarina, o grupo de pesca cha-
(1948), havia «i "sociedade", que podia ser composta de elementos sociedade, conforme visto anteriormente. T a m b é m aí exis-
da mesma família, irmãos e filhos, ou de parentes e conhecidos. tia uma reduzida divisão técnica e social do trabalho. Cada "só-
Em Ubatuba, Marcílio (1986) assinala que se usava o termo com- cio", entrando com uma parte da rede que seria emendada cm
panha para denominar o grupo que participava da pesca da tainha. outras para formar a rede de arrasto. Por essa razão, eram t a m b é m
E m ambos os casos, no entanto, provinham do grupo doméstico, conhecidas como "emendas" (Teixeira, 1990). Todos os que par-
entendido como um sistema de relações sociais, baseado no prin- ticipavam da pesca recebiam sua parte ou q u i n h ã o , inclusive as
cípio de residência comum que garantia o processo produtivo. A viúvas e o santo padroeiro do lugar. Algumas delas, como as de
base da sociedade era a força de trabalho familiar e comunitário. São João do Sul, fundada em 1914, tinham uma rede feita cm
Quando uma atividade específica, como a pesca da tainha, exigia trabalho de mutirão, reunindo cerca de 30 pescadores para a pesca
um aporte maior de mão-de-obra, recorria-se a outras unidades do bagre e da tainha.
familiares, ainda dentro, no entanto, da economia doméstica. A
Segundo Teixeira (1990), nesse períí)do, a mulher t a m b é m
pesca era uma atividade masculina, ainda que em alguns lugares a
participava da pesca através do fornecimento de comida aos pes-
mulher participasse na puxada da rede.
cadores e da confecção das redes. Entre os açorianos, a panagem da
rede era feita de algodão, trabalho que ficava a cargo da mulher,
" A pesca da tainha é uma das poucas em que a mulher par-
mas da qual t a m b é m as crianças e jovens dela participavam. Depois
ticipa (...) Acredita-se, em geral, que a mulher d ê má sorte na
de pronta a panagem das redes, era preciso entralhá-las. N a
pesca (...) Em matéria dc mar, a tarefa das mulheres se reduz a
confecção dos cabos das redes, era usado o gravata, sendo o eníra-
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A PKSCA CONSTRUINDO SOCIKDADKS
A N ' I ( ) N I O CARI.OS DIKGUKS

A persistência da pesca da tainha nos tempos de hoje, apesar


lhamento sujieríor feito com raiz de rorticeira, que serviam de bóias,
das limitações existentes, pode ser considerada um forte elemen-
e o inferior, feito com chumbadas de barro. As mulheres, apesar de
to de identidade grupai. Para Lima (1977), o ritual da pesca está
não participarem diretamente na pssca, desempenhavam, com o
vinculado a uma representação da identidade social do grupo de
auxílio das crianças, uma série de outras tarefas, na farinhada, na
pescadores. Para os pescadores embarcados, muitos dos quais egres-
secagem e salga do pescado, na roça, na torrefação e moagem do
sos da pesca artesanal, a simbologia da vida social mais igualitária,
café, na confecção de redes e no trabalho doméstico.
não hierárquica e reinante nas companhas dc outrora continua sendo
Além de mobilizar toda a comunidade local em torno da rede, o
um marco ao qual se contrapõe o trabalho hierárquico e organizado
cerco e puxada da rede reafirmavam a importância da ideologia da
pelo tempo do relógio que existe nas traineiras. O espírito de
companha, pois se afirmava a igualdade dos companheiros, em
companheirismo, de estabilidade, de respeito à tradição que rei-
oposição à hierarquia e desigualdade real que informa sua ativida-
nava na companha ou sociedade existe para esses pescadores
de em termos de funções técnicas e remuneração diferenciada,
somente na memória do tempo de ouro que já passou e ciue está se
segundo a propriedade ou não dos instrumentos de trabalho. Nes-
perdendo ou já se perdeu. Talvez esse apelo mítico ao tempo da
se sentido, pode-se dizer que o inverno é a época em que se
solidariedade, em que o pescador era dono de seu trabalho e de
maximiza a hierarquia e se reafirmam os valores locais, quando os
seu tempo, seja o grande motivador para a volta do embarcado, já
ganhos extraordinários são possíveis.
velho ou aposentado, à pesca da tainha, à sua praia (Duarte, 1978).
A companha, marcada pela cooperação direta entre pescadores
de uma mesma comunidade, pelos seus aspectos t a m b é m hidicos,
fica sendo a referência na memória do tempo de ouro e da abun- A Criação do Território da Pesca
dância daqueles pescadores artesanais que embarcaram numa
tripulação de traineiras, barcos maiores destinados à pesca da sar- A pesca da tainha não somente reforça a solidariedade entre os pes-
dinha, que ficam muitos dias fora do porto. cadores, mas t a m b é m cria o território onde ela se realiza: a praia,
que durante a safra é o espaço social mais importante para a comu-
Segundo Cunha (1987), entre os pescadores açorianos da Barra
nidade. Até meados do século XX, as praias eram apropriadas comu-
da Lagoa, próximo a Florianópolis, o arrasto de praia era uma prática
nitariamente pelos caiçaras e açorianos, sendo consideradas um
coietiva que envolvia toda a população masculina (adultos, velhos
espaço de trabalho. Quando havia várias companhas que usavam
e crianças), mobilizando a comunidade como um todo. A organização
simultaneamente esse espaço, eram estabelecidos diversos tipos
em torno da rede apresentava uma forma própria no tocante aos
de arranjos entre elas, para evitar possíveis confiitos. Os cercos eram
grupos de trabalho, ao n ú m e r o de pessoas envolvidas, ao modo de
realizados por ordem de chegada dos vários grupos de pesca. E m
pcrríiUia da produção efctuada e ao tipo de embarcação e requeridos.
algumas praias de Santa Catarina, mesmo as equipes que não parti-
Esse modelo de organização implicava um sistema complexo
cipavam diretamente do cerco, ajudavam para aparar Í:^ peixe em
de regras bem definidas, estabelecidas mediante acordo m ú t u o
volta da rede, para que não escapasse e, para isso, recebiam tam-
entre as sociedades de pesca: cada possibilidade de lance da tainha
b é m a sua parte ou quinhão. Quando os cardumes acostavam em
em cada dia obedecia a uma ordem previamente acordada. Quan-
locais mais propícios na praia, a pesca realizava-se em turnos para
do participavam do cerco mais de uma companha, uma dava o lan-
as diversas equipes, para que nenhuma delas fosse prejudicada.
ce na frente e a outra, logo em seguida. Quando aquela da frente
Para L i m a (1997), além da noção construída do tempo dos an-
não deixava espaço suficiente para o lance da segunda canoa, a
tigos que remete à formação e à identidade grupai, havia a noção
primeira repartia com a segunda a produção.

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A N T O N I O CAHI.OS DIKGUKS
A PK.SCA C O N S T R U I N D O SOCH-DADKS

t a m b é m construída de território: í2/í;»/tf, espaço social de trabalho,


de interações sociais intensas e de diversão. A praia, entre o mar e a um q u i n h ã o , os ajudantes a meio q u i n h ã o e, por f i m , o espia
a terra, surge como local público, liminar, fronteiriço e ponto de recebia pagamento dobrado: dois q u i n h õ e s .
r e f e r ê n c i a fundamental do grupo. Se de um lado, o mar em N ã o somente os pescadores participam da partilha, mas tam-
contraposição à terra, onde reina um outro poder, é tido como i l i - b é m mulheres e crianças, mesmo aqueles que prestavam algum
mitado, de outro, ele tem seus limites de uso e conhecimento da- tipo de ajuda recebem alguma tainha para seu sustento e n i n g u é m
dos pelas características das artes de pesca. Ele t a m b é m c apro- voltava de m ã o abanando para casa.
priado, mas não indistintamente, porque somente o (jue é conhe- A religiosidade popular t a m b é m fa/.ia com que o santo da fre-
cido e valorado é passível de apropriação. guesia participasse da partilha, ganhando uma de cada cem tainhas,
a mais bonita, chamada de "atara". Era não somente um agradeci-
mento ao santo por ter favorecido a pesca, mas um pedido para
"Entre a terra e o mar está, portanto, a praia, de d o m í n i o
que o mar continuasse sendo pródigo.
público se situa na fronteira dessas duas representações. A praia
não é somente o lugar do pescador, mas o próprio lugar em que
a identidade .social se define, extrapolando-se para o mar e para " D e cada cem, lança-se para o lado uma tainha, em geral, a
a terra" (p. 133). mais bonita do lance... A tainha separada chama-se 'tainha de
apara'. N o Brasil, como em i^ortugal, costuma-se ofertá-la ao
santo padroeiro do local" (Mussolini, 1948: 92).
Por outro lado, a praia está divida em marcos, locais onde es-
tão guardadas as canoas grandes e pequenas e pontos de refe-
Na descrição dc Carvalho (1948), nas praias ao norte de San-
rência no mar para diversos tipos de pesca c, nesse sentido, é
tos, na d é c a d a de 1940, (juando o peixe atingia a praia, c o m e ç a v a
fruto de r e p r e s e n t a ç õ e s sociais coletivas, transmitidas de geração
cm geração. o trabalho de r e m o ç ã o para o local a salvo das ondas. Homens,
mulheres e crianças amontoavam-no, procedendo, e n t ã o , à con-
tagem e à primeira divisão: um terço era para o dono da rede. Os
A Repartição do Pescado
dois terços restantes eram divididos entre todos aqueles que to-
maram parte na pescaria. Colocando-se os participantes em volta
A divisão do produto começava após a chegada das redes, e va-
ao peixe, c o m e ç a v a , e n t ã o , a distribuição, um a um, diante de
riava segundo as regiões e os tipos de rede. Segundo Schmidt
cada pescador, a t é o último. Na praia da Bertioga, cada homem
(1948), na d é c a d a de 1940, na pesca com rede de costa, ou ar-
recebia dois q u i n h õ e s , as mulheres um e as crianças meio-qui-
rastão de praia, recolhido e amontoado o peixe na praia retirava-
n h ã o , isto é, para cada dois peixes que cabiam aos homens, as
sc o terço, pertencente ao dono da rede. N o caso da rede pertencer
mulheres recebiam um e as crianças t a m b é m recebiam uma tainha
a dois ou mais redeiros que tinham juntado suas redes para cer-
a cada duas rodadas.
carem juntos, o pescado era repartido proporcionalmente ao n ú -
Ainda segundo Mussolini (1953), na década de 1940, no litoral
mero de braças de rede de cada um. As redes que estivessem
norte paulista, quando na pesca da tainha particijxiva mais de um
embarcadas nas canoas, prontas para serem levadas ao mar, eram
tresmalho ou terno, a divisão da produção era mais complexa: o
ct)nsideradas como tendo sido usadas. Depois de retirada a terça
proprietário do terno de tresmalho e das duas canoas recebia um
parte de cada redeiro, os dois terços restantes pertenciam aos
terço do total capturado, O proprietário da rede, quando participa-
camaradas, aos ajudantes e ao espia. Os primeiros tinham direito
va da pescaria, recebia um terço pelo tresmalho mais um q u i n h ã o

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A N T O N I O CARLOS I.)II:(;UKS A PK.SCA CONSTRIÍINOO SOCIKOAOKS

(o quinhão é uma quantidade variável de peixe resultante da divisão O Beneficiamento e o Comércio da Tainha
do monte por seis participantes, após a retirada do terço da rede).
O proprietário da canoa e de uma parte do tresmalho recebia a Até a introdução do gelo na pesca artesanal, que se iniciou por
metade de terço, o adulto que entrava com o serviço recebia um volta dos anos 50, mas que variava segundo a região, a conservação
f]uinhão, e a criança, meio quinhão. do produto era feito pelo sistema de secagem e salga.
Km Iguapé, o pescado era dividido cm cinco quinhões, sendo
um para o dono da rede e os outros quatro para os camaradas. Eram a) A Salga
separadas t a m b é m tainhas que eram doadas às viúvas e pessoas
pobres de Icapara. Até a introdução do gelo, em meados dos anos 1940-1950, a tainha
era consumida fresca, durante a safra, ou conservada sob a forma
"A gente separava nossos quinhões c dava para quem não salgada c seca, para ser vendida e t a m b é m ser consumida, no pe-
tinha o (|ue comer". Hoje cm dia mudou; é cada um por si e ríodo de escassez de mistura. Na descrição de Mussolini (1945),
Oeus por todos" no litoral de São Sebastião, quando chegava o fim da estação, a
(Seu Benedito (-arvaiho, pescador de Icapara. Iguapé. 2004) produção já abarrotava o mercado e não interessava mais às lanchas
vindas de Santos, com gelo. O restante das tainhas era escalado,
j á no litoral fluminense, Bernardes (1955) descreve a divisão salgado e colocado para secar nos varais, servindo para o consumo
da seguinte forma: participavam dc cada companha ou grupo de posterior.
pesca nove camaradas, sendo que, na partilha, o dono da rede fica- N o litoral sul paulista, quando a produção era muita, escalava-
va com um terço da produção, cabendo a cada pescador um quin- se o peixe, cortando-o verticalmente ao meio, lanhando (fazendo
to. O mestre e o vigia recebiam quinhão e meio. cortes) para a melhor penetração do sol. Uma vez salgado e deixa-
T a m b é m entre os açorianos (Teixeira 1990), a repartição reali- do dois dias na salmoura, o peixe era colocado em varais na praia
zada nas companhas ou sociedades, a t é inícios do século XX, era para secar, podendo se conservar, amarrado em feixes, por uns
mais equitativa, mas à medida que a pesca se tornou a única três meses (Benedito Carvalho, pescador de Icapara, 2004).
atividade do pescador artesanal, a partir de 1930-50, colocando- O fator limitante para a salga era a grande quantidade de sal,
o na d e p e n d ê n c i a do intermediário (pombeiro) que dispunha de adquirido nas cidades.
meios para vender o peixe no gelo, c na medida em que os pesca-
dores necessitavam de algum dinheiro para comprar a rede de "O peixe é 'consertado' e 'escalado', o que se resume em
náilon, essa divisão equitativa foi alterada, beneficiando mais o abri-lo pelo ventre, tirar a barrigada primeiro e depois lanhá-lo
patrão da rede. E, fundamentalmente, a forma de divisão do pro- pelo dorso, desdobrando-o em cortes internos, de forma a tiuc,
duto, que norteava as sociedades essencialmente igualitárias, deu aberto e esparramando, tome o formato de uma manta ovalada.
lugar a esquemas e regras de divisão mais desiguais, beneficiando Depois, sal e sol. Colocado em giraus ou estendido em varais, o
os donos dos meios de produção. tempo necessário para que perca o excesso de umidade, o que
Nessa nova situação, o patrão ou patrões da rede ficavam com a não leva mais que poucos dias, está o peixe salgado e seco,
metade da produção e os camaradas recebiam a outra metade. pronto para ser acondicionado em caixões usados, remetido
Quando o patrão não participava do cerco, t a m b é m recebia sua depois para os centros de distribuição e consumo" (Schmidt,
parte, mas devia dividi-la com o mestrc-proeiro. 1948: 32).

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A PKSCA CONSTRUINDO SOCIKDADKS
A N r o N i o CARLOS DIKGUKS

dor-sitiante, um pequeno produtor que é mais ligado ao sítio e à


Entre os açorianos, nesse período, as tainhas não consumidas
ou vendidas />/ natura t a m b é m eram salgadas e consumidas pos- lavoura que à pesca (Bernardes, 1955).
teriormente. Além de contribuir diretamente na composição da N o litoral norte de São Paulo e sul-fluminense, a tainha salga-
dieta alimentar, a tainha era sua principal fonte de ingressos. De- da seca era um dos produtos transportados pelas canoas de voga.
pois de capturado, o pescado era escalado, salgado e seco para ser Elas podiam ter até mais de 20 metros de comprimento e dois
consumido gradativamente e, principalmente, ser vendido. Com metros de largura, sendo construídas de um tronco escavado a enxó
o dinheiro obtido, o pescador-camponês podia adquirir as merca- c machado. Sua construção era feita em mutirão, exigindo a cola-
dorias essenciais que não produzia. boração de um grande n ú m e r o de moradores, sobretudo para se
retirar o tronco de árvore do mato. Segundo Schmidt (1948), algu-
mas dessas canoas podiam transportar até seis m i l litros de aguar-
h) Transporte e Comércio da 'Tainha
dente, além de oito passageiros e mais a tripulação, constituída do
patrão e quatro ou cinco remadores. As canoas de voga tinham dois
Sendo a pesca, enquanto produção de mercadoria, uma atividade
mastros, um no centro onde era içada a vela mezena e outro na
sazonal, que dependia em larga escala de uma espécie sujeita a
proa, onde ia o traquete. Entre os produtos levados por essas canoas,
variações consideráveis, o excedente produzido era t a m b é m oca-
entre Parati, Ubatuba, Ilhabela, Bertioga, São Sebastião e Santos,
sional e variável. Por ocasião de uma boa safra, poderia haver um
estavam os fardos da tainha salgada seca.
certo excedente comercializável, mas este dependia sobretudo das
condições de salga da tainha, uma vez que esta era a iinica forma
tradicional de conservação do pescado. Nesse caso, o sal era um "Mas os velhos representantes da época das canoas de voga
fator limitante a uma acumulação em larga escala de um produto relembram com saudade: Bons tempos aqueles. Com os I5$0Õ0
muito perecível. Observe-se que, tendo-se em vista a precarieda- que se ganhavam para remar e com as 'quitandas' que se levavam
de dos processos domésticos de secagem e salga, a conservação do para vender, por conta da gente, isto é, ovos, peixe .seco ou salgado,
produto se limitava a algumas semanas. laranjas, trazia-se para casa um sortimento completo: uma lata de
Assim sendo, o pequeno produtor litorâneo, ao levar os seus querosene, um saco de .ml para o peixe, anzol para pescar, pano para
produtos para vender nos pequenos núcleos urbanos, transportava vestido" (Mussolini, 1953: 85).
em sua canoa, não somente a tainha seca, mas t a m b é m alguma
farinha de mandioca, rapadura, lenha cortada, etc. Nesse tipo de Pela década de 40, a maioria das canoas de voga já não navega-
organização social, o pólo da acumulação de capital, ainda que re- va, tendo sido substituídas, no comércio de peixes, por lanchas a
duzido, não se encontrava com pequenos produtores, mas nas mãos vapor, em geral baseadas em Santos. A novidade dessas lanchas é
dos comerciantes urbanos. Como não se tratava de uma economia que elas já traziam o gelo com que podiam conservar os peixes por
de auto-subsistência, mesmo que os contatos com o mercado fos- vários dias.
sem ocasionais, a reprodução dos meios de produção já passava
pelos comerciantes urbanos, onde os pequenos produtores se abas- "Já as tainhas, apanhadas então em maior n ú m e r o que o co-
teciam de fios de algodão para tecer suas redes, de sal, de combus- mum do pescado, são vendidas aos lancheiros que, carregados
tível para os lampiões, etc. seus barcos de muito gelo, e relativamente pouco dinheiro para
ser dado em troca dos peixes, cruzam a costa à busca de fácil e
No entanto, a categoria social que se reproduz nessa forma de
rendoso ganho, cies parecem adivinhar o dia, a hora, o Jocal
organização da produção não é o pescador toutcourtsim, o pesca-

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A N I O N I O CARLOS DIKGUKS
A PKSCA CONSTRUINDO SOCIKDADKS

do cerco. Postas as canoas no mar, prontas para o lance, aparece


A tainha era usada t a m b é m como medicamento: a banha da
a lancha, singrando baía a dentrt).Bcm menos que alguma cousa,
tainha era usada em ferimentos de animais para evitar que as
um pouco mais do que nada, em geral, c pago o preço da tainha
moscas varejeiras produzissem o berne ou para evitara inflamação
pescada" (1953:36).
causada pela mordida de morcegos.

Entre os pescadores açorianos, segundo Teixeira (1990), a tainha


As Dimensões Simbólicas da Pesca da Tainha
funcionava como moeda dc troca, pois, devido às dificuldades de
comercialização, os lavradores-pescadores trocavam diretamente
Como vimos anteriormente, a pesca da tainha não tem somente
o pescado por outros produtos agrícolas, que não possuíam em suas
uma função económica, alimentar, mas é um acontecimento soci-
roças com os agricultores de regiões mais interioranas.
al e cultural de grande importância para a reprodução social e cul-
tural dos pescadores caiçaras e açorianos. P^la tem aspectos sim-
"Vinha o pessoal do sertão a cavalo, com canga ia pra cairegá...
bólicos importantes que solidificam as relações sociais nas praias,
Eles de tarde tratava pro pescadorpega no outro dia, traziam feijão,
reafirmando identidades. Ela é, em si mesma, uma festa para os
café, um poço de arroz pra troca..."
que dela participam e, ao mesmo tempo, está associada a vários
(ex-Iavrador-pescador-Passo de Torres).
festejos religiosos que ocorrem no inverno.
Na é p o c a de fartura, a safra da tainha n ã o representava
A tainha era, pois, usada não somente como alimento, mas dela
somente a fartura material, mas era carregado dc d i m e n s õ e s
era retirado o óleo que servia como combustível para a iluminação.
simbólicas: era um período de expressão de grande alegria e con-
tentamento, particularmente quando os cardumes eram grandes
c) Tabus A limentares
e a captura era farta.
Para muitos povoados, a chegada dos cardumes significava a
Na pesquisa realizada por Hanazaki (2001), na década de 90, "o
garantia de fartura, pois o que não era consumido fresco era sal-
parati pema" (Mugilgaimardianus) é um dos peixes mais citados
gado e vendido nos centros urbanos. Várias festas populares esta-
como "fortes", "teimosos" ou "quentes", cujo consumo é restrito
vam, e cm alguns lugares ainda estão, associadas a essa pesca, que
especialmente para as mulheres grávidas, lactantes e pessoas en-
fermas ou idosas. Marques (1991) notou que o parati (Mugil dá origem t a m b é m a lendas e mitos.
gaimardianus) t a m b é m é uma espécie carregada, com restrições de O "inverno" era, portanto, um período em (juc os pescadores
consumo na região de M u n d a ú - M a n g u a b a (Alagoas) e em outras podiam ganhar algum dinheiro, dada a quantidade do pescado e de
regiões do litoral, como na Bahia. seu p r e ç o de mercado. Com o dinheiro ganho com a tainha,
pagavam-se dívidas e compravam-se bens de C]ue se precisava na
Tabus semelhantes são conhecidos t a m b é m na região de Iguapé.
casa. Além disso, era tempo t a m b é m de se festejar os santos liga-
dos à pesca, como São Pedro, festa realizada quase ao final da safra.
"A mulher c^ue dava à luz não podia comer bagre, tainha, porque
E m Iguapé,
fisgava na ferida. Dava coceira e era perigoso. A mãe também não
podia estender a roupa da criança no varal quando tinha lua cheia
"a pesca da tainha termincwa por volta de fins dejulho, e com o
porque dava acjuela dicnréia trzul."
dinheiro conseguido com a venda do pescado gastava-se o dinheiro na
(Seu Benedito Carvalho, pescador de Icapara, Iguapé, 2004)
festa de agosto em homenagem ao Bom Jesus de Iguapé, onde grandes
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A N T O N I O CAIÍI.OS DIKGUKS

Cunha (1987) t a m b é m retrata o mesmo clima de alegria na


romarias afluíam à cidade de Iguapé. Com o dinheiro da tainha
também compnwam na cidade os produtos que não podiam produ- chegada da rede entre os pescadores açorianos da Barra da Lagoa,
zir na roça, como o sal, tecidos, querosene, etc. O açucara gente fazia, em Santa Catarina:
o açúcar de tacho, açúcar preto. Pas.sada a época da tainha, vinha o
preparo da roça de rama, a mandioca, onde também se plantava "Durante esse período, são grandes a agitação e a barulhei-
melancia, abóbora. Hoje em dia, não dá mais para plantar, porque o ra. Todos c o m p õ e m o mesmo cenário, no qual os participantes
lbania e a Polícia Florestal não deixam..." tendem a confundir-se (velhos, crianças, donos-de-redes, pa-
trão, camaradas ajudantes). E um momento de grande euforia,
(Seu Benedito Carvalho, pescador dc leapara, Iguapé, 2004)
em que as vozes masculinas ressoam em tons altos ou em grita-
ria, dando a impressão de que estão numa grande briga" (p. 139).
Ficaram no imaginário dos velhos pescadores os anos de sorte,
em que milhares de tainhas caíam em um só lance. Em Ubatuba,
por exemplo, os pescadores contam que, certa ve/., cercaram um O ritual do cerco e puxada do arrasto de praia, na pesca da tainha,
cardume para cem mil tainhas num lance, numa noite de chuva. O revela um f e n ó m e n o social que não é somente económico, mas
peso era tanto que partiu a rede e eles conseguiram retirar somen- que revela uma d i m e n s ã o simbólica importante ligada à diversão
te 8 mil peixes, tendo perdido os demais, que escaparam (Schmidt, e à festa. Na descrição de Kant de Lima (1997),
1948).
"Nesta hora, todos são pescadores, todos de Itaipu, viven-
A descrição mais viva de uma pesca prodigiosa foi feita por
do uma euforia que atinge seu paroxismo quando a rede, com
Virgilio Várzea, em 1895, numa praia dc Santa Catarina (1994).
as tainhas pulando, chega à praia (...) A hierarquia está pre-
sente nos gritos do vigia, na orientação da estratégia de terra e
"Cavaleiros, homens a pé, mulheres, crianças, afluíam, cor-
rendo de toda a parte. E o peixe começou a alastrar a praia, nos sinais do mestre, da canoa situada no mar, no meio do
numa onda viva e colossal de corpos fulgurantes, torneados, 'copio' da rede (...) Mas quando a rede se aproxima, menos se
polidos, como formados d'aço, a se debater, aos roncos, numa ' v ê ' da hierarquia, e o que se tem é uma tremenda confusão"
angústia e convulsão de morte, as bocas abertas, ofegantes, como (p.253).
exalando almas. Eram tainhas do corso, de mais de meio metro,
lançadas ali aos milhares (...) Schmidt (1948) descreve a aproximação dos cardumes em frente
à praia como uma dança na qual as tainhas fazem marchas e contra-
— Cem m i l ! - gritou o Z é Souza, erguendo-se e mandando
botar para baixo a canoa que patroava. marchas, reunindo-se e dispersando-se, entregando-se a mergulhos
no ar. As tainhas saltavam t a m b é m no escuro da noite no mar,
Na praia, havia agora uma aglomeração de povo. A notícia das
"relampeando no saltio". O caráter buliçoso e festivo existia t a m b é m
cem m i l tainhas mortas à tarde - o maior sucesso da pesca na-
no duelo entre os "aparadores", que com suas pequenas redes,
quele ano, no lugar - levada de boca em boca para o interior,
despertara a boa gente dos sítios, entediada e vazia nesse longo evitavam que o peixe pulassem fora das redes.
dia dc descanso. A festa do peixe no mar correspondia a festa dos pescadores,
famílias e vizinhos napraia, no momento da chegada da rede,
Mesmo com capturas menores, o ambiente da praia é sempre
quando a gritaria geral contagiava a todos que participavam da
alvoroçado, cheio de homens mulheres e crianças, que se agi-
pesca.
tam, gritam, correm quando a rede chega à praia (...)"

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A N T O N I O CAUI.OS DIKGUKS A PK.SCA CON.STIÍUINDO SOCIKOAOIIS

" É de se ver o alvoroço e a algazarra do pessoal, o corre- Para Teixeira (1990), processo de mudança semelhante ocor-
corre, a gritaria, nem o marulho das ondas, no entrechoque da reu no litoral catarinense, quando a utilização do motor nas em-
rede, gente c peixe, consegue abafar"(Schmidt, 1948: 27). barcações apareceu primeiro nas comunidades que praticavam a
pesca marítima, isto entre 1935 e 1945. Igualmente nesta época,
Para Duarte (1978), a categoria de festa ou farra é t a m b é m utili- cm 1950-60, começaram a ser confeccionadas as primeiras panagens
zada para designar a movimentação do peixe na água, cujos sinais dc rede, utÍlizando-se o fio de náilon de polietileno e, cinco anos
visíveis p e r m i t e m sua localização. N ã o se trata de qualquer mais tarde, mais ou menos em 1960-65, chegava o gelo como forma
movimentação no sentido de deslocamento físico, mas sim de uma de conservação do pescado.
aglomeração buliçosa a que se dedicam os cardumes em determi- Nesse período, com a intensificação da pesca das traineiras,
nadas ocasiões e que sugere aos pescadores uma representação de destinadas à captura da sardinha, mas que traziam t a m b é m tainhas
brincadeira: é a farra dos peixes no mar que corresponde à farra e outros peixes pelágicos, começou um período de maior escassez
dos pescadores na praia. desses peixes, o que causou a mudança da pesca de rede de cerco
Esse conjunto simbólico permite a Gioconda Mussolini (1953) (tainha) para o camarão, realizada com redes de arrasto em barcos
afirmar que, na pesca da tainha, no litoral paulista, tudo é tradição. motorizados que exigem maior investimento.
Por outro lado, muitos pescadores artesanais abandonaram a
pesca artesanal, embarcando principalmente nas traineiras para a
O T K M P O D A EscASSi-z: AS M U D A N Ç A S pesca da sardinha e nos arrastos, para a pesca do camarão. Os in-
centivos da Sudepe, em meados de 60, foram muito utilizados pelas
Conforme registrado, a partir de meados do século XX, várias indústrias catarinenses, o que resultou num grande aumento da
m u d a n ç a s sócio-econômicas no litoral sudeste afetaram profunda- pesca industrial c numa d i m i n u i ç ã o da pesca artesanal. Os
mente a pesca artesanal e o modo de vida das comunidades de pescadores artesanais que já tinham uma tradição de se locomover
pescadores tanto caiçaras quanto açorianos, com impactos sobre a para o litoral de outros estados, em que eram chamados de andori-
pesca tradicional da tainha. nhas, intensificaram essa migração sazonal, principalmente para a
U m conjunto de mudanças se originou com a expansão uibana, Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul.
a abertura de estradas e a corrida imobiliária em todo o litoral su- U m outro fator de expulsão das comunidades de pescadores de
deste, ainda cjue o ritmo e a intensidade não tenham sido as mes- suas terras foi a implantação dc parques nacionais, sobretudo a
mas. N o litoral de São Paulo, a especulação imobiliária começou a partir dos anos 60, que contribuíram para o esvaziamento progres-
expulsar os caiçaras de suas terras, já nos anos 40-50, muitas vezes sivo de inúmeros caiçaras moradores dessas áreas e o cerceamento
utilizando a violência de jagunços. Em muitos casos, os pescado- das atividades tradicionais.
res caiçaras começaram a perder o acesso à praia, processo que Essas mudanças contribuíram para a diminuição dos caiçaras
vem se intensificando.até nossos dias, com o grande aumento da disponíveis para as atividades pesqueiras que requeriam grande
atividade turística.
n ú m e r o de pescadores e ajudantes, como as rede de arrasto de
N o litoral norte paulista e sul fluminense, t a m b é m por essa tainha. Mourão (2003) já havia notado o desaparecimento de mui-
época, começaram a operar as traineiras que buscavam os jovens tas dessas redes no litoral sul de São Paulo.
caiçaras nas praias como Picinguaba para compor as tripulações Uma outra causa da diminuição dos cardumes de tainha foi a
dos barcos usados na pesca da sardinha. intensificação da pesca de arrasto e das traineiras ao longo do lito-

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ral sudeste, em particular na saída da barra da Lagoa dos Patos, de


cação da degradaçãí) ambiental, a expansão turística, o uso da praia
onde migravam as tainhas para a corrida da costa. A ação dessas
pelos turistas e a entrada na pesca de trabalhadores dc outros seto-
traineiras era tida como uma das principais causas da diminuição
dos cardumes entre os pescadores caiçaras e açorianos. res produtivos, entre outras. Esses fatores já tinham c o m e ç a d o a
agir nos anos 70, mas se tornaram mais graves nas décadas posteri-
ores ( L i m a & Ferreira, 1996).
^'Naquele tempo tinha grande fartuj-a."
O resultado conjugado da diminuição dos cardumes e do n ú m e -
(Seu Benedito Carvalho, pescador de Icapara, Iguapé, 2004)
ro de pescadores fez com que os pescadores procurassem técnicas
de pesca que poupassem mão-de-obra, com a utilização de moto-
A partir dos anos 60, já começou a diminuir o tamanho dos
res e das redes de náilon. Em outros lugares, as redes de arrasto de
cardumes que chegavam à costa e, segundo os pescadores, isso se
praias foram s u b s t i t u í d a s por redes que usam menos pescadores
deve à pesca industrial das traineiras nas proximidades da Lagoa
em seu manuseio, como ocorreu no litoral sul paulista. Mais re-
dos Patos, quando as tainhas começam sua migração.
centemente, na ú l t i m a d é c a d a , foram introduzidas as redes
chamadas de "feiticeiras" ou bretanhas, de 80 a 100 braças, feitas
"Lá na boca da Lagoa dos Patos, tem 30 ou 40 barcos traineiras
de 3 panos de redes com malhas de tamanhos diferentes que são
esperando a saída da tainha pela barra. Não sobra nada. Também
usadas como redes de espera e de currico de praia, muito difun-
diminuiu pela atividade dos arrastos de camarão que, em grande
didas na região de I g u a p é , sendo manejadas por dois pescadores
número, varrem o litoral próximo a Iguapé e Cananéia, matatido
cada rede.
também muitos filhotes."
(Seu Benedito Carvalho, pescador de Icapara, Iguapc, 2004)
"A feiticeira começou a .ser feita na Pa/ya da Ribeira e éproibida
por aqui porque mata também peixe pequeno".
Segundo o pescador José da Silveira, 61 anos, pescador de
Garopava, no litoral catarinense, a pesca da tainha em barcos i n - (Seu Benedito Carvalho, pescador de Icapara, Iguapé, 2004)
dustriais, a traineira, começou na região, em 1956. Esses barcos,
em 1962, já usavam a ecossonda para a identificação dos cardumes Cunha (1987) t a m b é m constatou a introdução da rede de caça
e, há cerca de 12anos, foi introduzido o sonar, muito mais eficiente (de malha) na Barra da Lagoa, Santa Catarina, realizada fora da
que a ecossonda. Segundo o pescador, a introdução do sonar reduz praia, substituindo parcialmente as redes de arrasto de praia. O
muito a possibilidade de fuga dos cardumes de tainha e reside aí conflito entre os pescadores que usam as redes de arrasto de praia
uma das causas da diminuição dos cardumes. Hoje, ainda segundo e as redes de espera continua até hoje.
esse pescador, existem cerca de 80 traineiras pescando próximo à Como já foi visto anteriormente, a partir de meados do século
barra da Lagoa dos Patos, tendo, em m é d i a , 28 metros de XX, em Santa Catarina, o sistema de partilha sofreu alterações,
comprimento e 110 toneladas de carga. favorecendo mais os patrões de rede. N o entanto, mais recente-
mente, a partilha voltou a favorecer os camaradas que passaram a
N o litoral fluminense, as causas das mudanças não diferem
receber quase 70% de toda a captura.
daquelas indicadas pelos outros pescadores. As causas da d i -
O papel da mulher ficou consideravelmente reduzido, passando
minuição dos cardumes de tainha indicadas foram a ação das trai-
a se ocupar mais das tarefas domésticas e deixando ao homem o
neiras, dos barcos de arrasto e das redes de espera que cortam o
papel principal de trazer dinheiro da pesca para casa. A mulher tam-
caminho das tainhas, a pesca industrial, no sul do país, a intensifi-
b é m passou a complementar a renda com trabalhos de artesanato.
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A N T O N I O CAKI.OS D I K G L K S A PKSCA {'ON.STIÍLINOO S(K:IKI)AOKS

A visão dos recursos inesgotáveis, traduzida pela chegada cíclica flitos entre as "parelhas" (Córdova, 1986). A solução encontrada
dos cardumes da tainha, foi gradativamente substituída pela no- para os conflitos foi juntar a sociedade da Meia Praia à do Canto.
ção dc que o peixe está diminuindo, principalmente pela ativi- Desde 1983 (mais ou menos), então, a sociedade da Meia Praia,
dade dos barcos de arrasto, pela poluição e pela pesca predatória com sua única rede de tainha com oito homens, pesca junto com
realizada por determinadas artes de pesca utilizadas t a m b é m pe- a sociedade do Canto, composta de duas emendas, uma com sete
los pescadores artesanais. redes e outra com nove redes de tainha, nas quais trabalham 70
A d i m i n u i ç ã o dos estoques de tainha t a m b é m é assinalada na homens (Cordova, 1986).
Região dos Lagos e de Cabo Frio, o que leva os pescadores a T a m b é m começou a existir competição entre redes fixas c de
reduzir a malha da rede, capturando peixes menores, conforme espera, colocadas nas entradas das baías e estuários e as redes de
indica Oliveira (2001). arrasto de praia, como ocorreu em Niterói (RJ), onde as redes de
A influência da poluição é indicada pelos pescadores de tainha espera, fundeadas na baía, são tidas como a causa do desapareci-
do sul de Santa Catarina, onde existe degradação ambiental cau- mento das tainhas:
sada pela extração do carvão:
"Antigamente não tinha muito isso não, tá entendendo? Não ti-
"Depo/s veio a poluição (depirita, lançada no rio Araranguá), e nha essa rede de espera na beira da praia... e agora es.ses barcos ficam
a produção quebrou em 907c." aqui, vão ficando, mais uns anos não vai dar pra pescar mais aqui,
(Depoimento dc João Antonio da Silva, ninguém pode mais pescar direito. Já tem dois ou três barcos, amanhã
colctado por João d'Alba, 1989). chegam mais dois ou três, vão botando aí, porque aqui é o melhor
lugar pra pescar.. então amanhã não pode mais, vai escasseando, tá
Até as primeiras décadas do século XX, não havia grandes con- entendendo?"
ílitos na pesca, uma vez que, além da produção de farinha para uso (Manuel Lagarto, 60 anos, 15 fcv. 1996)
doméstico, não havia outras atividades agrícolas que competissem
com a pesca, podendo a comunidade dedicar-se à safra da tainha. O início da safra da tainha de 1993, provocou uma guerra entre
A partir da segunda metade do século XX, os conflitos começaram pescadores em Balneário Barra do Sul ( S C ) , causando cenas de
a se intensificar. violência entre os pescadores que usam a rede de arrasto e os que
Em alguns casos, apareceram disputas pelos melhores pontos utilizam redes fixas, colocadas na boca de baías e enseadas. As re-
de pesca numa praia que se intensificaram quando c o m e ç o u a des de até 300 metros, dos que praticam o arrasto de praia, ficam
existir uma escassez maior da tainha. Uma dessas disputas ocor- presas nas poitas cpic sustentavam as redes dc espera (Braga, 2003).
reu na Praia dos Ingleses, que era dividida em três segmentos: o Em algumas praias, como a de P â n t a n o do Sid, cm acordo com
Araçá, a Meia-Praia e o Canto da Praia. Este último era o local o I B A M A , dc 1 de maio a 30 de junho, são retiradas as redes de
mais piscoso, onde se concentravam os cardumes de tainha e, cerco flutuante e as redes de espera para não atrapalhar a pesca da
por isso mesmo, cobiçado por todas as .sociedade.^. Inicialmente, o tainha realizada com arrasto de praia (Medeiros, 2002).
Canto da Praia era dominado pela parelha de uma única família O conflito ocorre t a m b é m com os turistas que, sobretudo no
que conseguia atrair mais pescadores e ajudantes, pois o q u i n h ã o verão, ocupam as praias com suas barracas e diversos tipos de es-
era maior. As outras parelhas do Araçá e Meia-Praia tinham d i f i - portes. Segundo Cordova (1986), com o uso intensivo das praias
culdade de conseguir os camaradas e por isso havia muitos con- pelos turistas, no verão, dificultando o trabalho das redes, os pes-

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A N T O N I O CARLOS DrKcuKs A PKSCA (CON.SIRLINOO SOCIKOAOKS

cadores, como forma de resistência profissional, t ê m , então, se


dedicado com afinco à atividade na época cm que lhes é facultado
o domínio da área: o inverno. Deste modo, reservam o verão para o
trabalho embarcado em barcos das empresas (alto-mar), retornando
às suas comunidades para a safra da tainha. Dentro do â m b i t o do
turismo, t ê m - s e verificado conflitos entre os praticantes de surfe e
os pescadores de praia, mesmo durante o inverno. E m vista disso,
em muitas praias, é proibido o exercício desse esporte durante os
meses de maio e junho.

A SoiíkPVivÊNCiA DA P K S C A DA T A I N H A HOJK

Apesar da diminuição dos cardumes e do n ú m e r o de pescadores, a


Vigia observando cardumes no caminhão.
pe.sca da tainha continua viva em vários pontos do litoral sudeste.
Ilha Comprida (SP), 2004
Es.sa persistência é, de alguma forma, surpreendente uma vez ciue
seus ganhos financeiros são reduzidos. Uma das e x p l i c a ç õ e s
possíveis é que ela faz reviver os valores comunitários e a identi-
dade dos pescadores caiçaras e açorianos.

I
" A pesca do arrasto da tainha é uma expressão cultural e
t a m b é m uma oportunidade de promover uma divisão mais
equitativa dos recursos, apesar de atualmente ser uma ativida-
de economicamente desvantajosa" (Medeiros, 2002: 72).

Nas comunidades caiçaras do litoral norte paulista, continua a


haver expectativa em relação à chegada das mantas de tainha. As
canoas e as redes são preparadas semanas antes do período de
migração, mas os grupos de pesca assim como os cardumes são
mais reduzidos que no passado.
N o litoral sul paulista, os preparativos para a safra da tainha do
inverno de 2004 foram feitos já em abril, com a compra dos fios de
náilon para a confecção da feiticeira. São t a m b é m usadas as grandes
Pescadores na canoa,
redes de arrasto de praia. Na Ilha Comprida, existem umas 6 ou 8,
iniciando o cerco.
Ilha (Comprida ( S P ) , pertencentes às peixarias que compram a produção dos pescadores
2004. a baixo preço. Essas redes são lançadas e puxadas por 6 a 8 camara-

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A N T O N I O CAHI.OS DIKGUKS
A PKSCA CONSTIÍUINDO SOCIKDADKS

das, incluindo o olheiro ou vigia que, hoje, em cima de um caminhão


da peixaria, observa o mar para identificar as mantas de tainha.
Nas praias que se urbanizaram totalmente, como em Niterói, a
pesca com rede de arrasto praticamente desapareceu, ficando, no
entanto, a sua memória. Seu Euclides narra a "idade de ouro" da
abundância e da intensa vida social, que hoje se reduziu conside-
ravelmente, pois a praia foi tomada pelos bares de praia e pelos
esportes aquáticos com os quais o pescador tem de dividir seu
espaço de trabalho (Lima, 1997).
Mas é em Santa Catarina que o ritual da pesca da tainha con-
tinua vivo, apesar da redução dos cardumes, da d i m i n u i ç ã o das
sociedades como se pode depreender de uma descrição do ar-
rasto feito em 2003.
Puxando a rede na
Ilha Comprida (SP). 2004.
"O vigia apita e vem descendo o morro. Lá embaixo, no
rancho, os pescadores largam o jogo de d o m i n ó , a cachaça, o
almoço, e correm para colocar as redes no mar. Deslizam as
canoas sobre as 'estivas' e se preparam para mais um 'cerco':
um cardume de tainha está entrando na praia.
Em cada canoa embarcam quatro remeiros, um chumbeiro (que
lançam a rede ao mar), um tainhadecabo (que leva a extremida-
de da rede até a praia) e o patrão, que comanda todo o cerco,
atento aos sinais do vigia. Além de dar as coordenadas do car-
dume, o vigia t a m b é m indica quantas canoas devem entrar na
água: uma bandeira para uma canoa; uma volta com o casaco no
ar para duas canoas e duas voltas para três canoas.
Quem fica na areia - os 'camaradas'-seguram uma das pon-
tas da rede - o 'calão' - enquanto a canoa contorna o cardume,
levando para o outro lado da praia a ponta mestra. Os pescado-
res sc dividem e dão início à puxada, trazendo o peixe aprisio-
nado dentro da bolsa de rede. O tempo da puxada varia de
acordo com o tamanho do cardume e ela pode levar mais de
três horas para ser puxada.
Quando termina o cerco e o peixe já está na areia, a alegria
toma conta da praia. Depois de enxugadas as redes é hora da
'divisa'. Cada comunidade tem um sistema diferente para a d i -
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A PKSCA C í ) N s r R r i N i ) o SOCIKOAOKS

visão dos peixes: as maiores ficam sempre com o vigia; para o


ocorre durante sua migração para o norte. Segundo um estudo do
dono da rede fica um terço dos peixes e para os camaradas, os
Centro de Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar (CTTMAr) da
outros dois. Se o lance for grande, a tainha t a m b é m é repartida
Universidade de Itajaí(Univali), cerca de 8 de cada 10 fêmeas são
com que estiver na praia.
capturadas antes da desova. Esse fato é agravado pela captura das
Todo ano a história se repete. As primeiras rajadas de vento
fêmeas somente para a retirada das ovas, que são exportadas pra a
sul no litoral catarinense, nos meses de maio e junho, anunciam
Europa e Japão, operação realizada no mar pelas traineiras, acom-
a chegada da tainha. Os cardumes, vindos da Lagoa dos Patos
panhada pelo descarte criminoso do peixe. Como se sabe, a pesca
(RS), iniciam sua migração para o norte da costa brasileira em
industrial da tainha ne.sse Estado é mais importante que a artesanal,
busca de águas mais quentes propicias ao seu desenvolvimento.
pois em 2003, esta foi responsável por 1.000 toneladas enquanto
Em vários pontos do litoral, comunidades pesqueiras se reú-
que aquela capturou 2.400 toneladas. E m 2004, estima-se que a
nem para mais uma temporada da pesca artesanal da tainha. Os
produção seja pelo menos .30 porcento menor. Grande parte das
ranchos são reabertos e as redes revisadas para a espera de gran-
tainhas, cerca de 90%, são capturadas no litoral de Santa Catarina
des lances. Enquanto o peixe não vem, as histórias são contadas
c Rio Grande do Sul, restando um n ú m e r o cada vez menor delas
de pai para filho, relembrando os grandes lances do passado.
que conseguem chegar aos Estados do Sudeste.
Das quin/e mil tainhas pescadas em uma só puxada, restou
A renda gerada por essa pesca é importante, sobretudo para os
apenas a lembranças: hoje, os lances raramente passam de m i l .
pescadores artesanais, mais t a m b é m vem decrescendo ano a ano.
Os pescadores artesanais atribuem a escassez do peixe ao au-
P>m 2003, a renda gerada foi de 2,5 milhões de reais, mas, em 2004,
mento do n ú m e r o de embarcações motorizadas que pescam cm
alto-mar, equipadas com radar, e p o l u i ç ã o das á g u a s dos estima-se que esse valor não chegue a 1.9 milhões de reais {Tiibu-
nascedouros de tainha, que prejudica a reprodução do peixe" mi Cataiineme, 17/06/2004).
A ação das traineiras continua sendo a causa principal da re-
d u ç ã o dos cardumes, como foi apontado pelo olheiro Manoel
O fascínio de uma "pesca milagrosa" de tainha continua a sus-
citar a admiração, ainda hoje, como pode se depreender dos noti- dos Santos, da praia do Santinho, ao norte da Ilha de Santa
ciários televisivos e dos jornais que registraram as 15 m i l tainhas Catarina:
capturadas em um só lance, na Praia da Lagoinha, em Florianó-
polis, no dia 17 de junho de 2004. Segundo o Úiário Caíarinense, o "A gente pescava de uma só vez 40,50 mil tainhas, mas há 20 ou
olheiro dessa praia identificou 15 cardumes durante várias horas, 30 anos. Agora a gente pega é 10 ou 12 mil porque tem muito barco de
dos quais somente um foi cercado por 6 canoas a remo, numa ativi- pesca no mar Enquanto a gente mata 10 mil, eles matam 100.000
dade que durou mais de duas horas. tainhas."
(Manoel dos .Santos, 69 anos.
A redução dos cardumes e da quantidade capturada continua
sendo uma grande preocupação de cientistas e pescadores. Uma Tribuna Catarinense, 17/()6/2(}í)4)

causa apontada para a redução dos cardumes, por biólogos e pes-


U m fato ressaltado recentemente (2004) por um pescador de
cadores, é a captura desordenada de fêmeas antes da desova, que
Garopava (SC) é o fato de um n ú m e r o crescente de jovens se inte-
ressar pela pesca de arrasto (ou parelha) de praia, na região, o que
Vide site: littp:/Avww./.imbanct.cum.br/culturaItainlia.html). indica a grande capacidade de atração dessa pesca, apesar do
declínio das capturas. Os pescadores dessa localidade afirmam que,
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A PKSOA C O N S I R L I N O O SOCIKOAOKS

em algumas praias, centenas de pessoas ajudam na puxada da rede,


o que indica t a m b é m a popularidade dessa pesca, ainda hoje.
Algumas mudanças foram introduzidas na divisão do produto
da pesca. E m 2004, fomos informados que, há cerca de 10 anos,
foram alteradas as proporções que recebem a "guarnição" (dono
do barco) e os pescadores (camaradas) que, até então, era de 50%
para cada uma das partes. Hoje, os pescadores ganham duas partes
e a guarnição somente uma, e essa nova divisão foi acordada em
função da diminuição dos ganhos dos pescadores.
Hlm alguns lugares, ainda se reserva o " q u i n h ã o " das viúvas,
esposas de pescadores que já morreram, mas o " q u i n h ã o do san-
to", antes doado para a igreja local, desapareceu em virtude do
declínio das capturas (Medeiros, 2002). Pode-se ainda acrescentar
que, concomitantemente ao d e c r é s c i m o da captura, houve um
Pesca abundante. declínio da religiosidade popular, uma secularização da socieda-
Cananéia ( S P ) . 2 0 0 4 . de e o avanço das igrejas protestantes que desacreditam o "culto
das imagens".

CONCLUSOKS: A HLSTÓRIA ECOLÓGICA DA TAINHA

Como observamos anteriormente, as relações entre os açorianos e


caiçaras com os cardumes de tainha variaram ao longo do período
histórico estudado, entre meados do século XIX e início do século
XXI. Pudemos constatar t a m b é m que essas relações não são somen-
te económicas, mas culturais e simbólicas. Isso nos permite afirmar
que existe um contínuo histórico, com períodos em que es.sas relações
foram se alterando gradativamente, com a redução dos cardumes e
com as mudanças nas relações socioculturais que essas populações
m a n t ê m entre seus membros e com a sociedade envolvente. Nesse
sentido, podemos falar de uma história ecológica que une os
pescadores a um conjunto de seres vivos do mar-as tainhas.
Analisando os diversos momentos históricos que caracterizam
Pcua de Nossa Senhora dos Navegantes
agosto 2004. Cananéia (SP). as relações entre os açorianos, caiçaras e os cardumes de tainha, no
período estudado, constatamos períodos diferentes em que essas
relações mudam.

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A N TONIO CARI.OS DII:C;I;KS
A PKSCA CONSTRIIINDO SOCIKDADKS

N u m primeiro período, que chamamos de fartura, pois é assim


turistas para consumir um peixe muitas vezes capturado fora das
que o denominam os atores ao se lembrar dessa época, entre mea-
praias do lugar.
dos do século XIX e primeiras décadas do século XX, as relações
entre os pescadores e os cardumes eram marcadas pela expectativa O esgotamento desse processo se iniciou quando os pescado-
da chegada de peixes-visitantes, obedecendo a um ciclo natural, o res/lavradores começaram a perder suas terras e sobretudo suas
da corrida pela costa. A essa chegada cíclica natural, correspondia praias, em meados do século XX, em função do crescimento da
um ciclo social, o da fartura e da riqueza, tanto material quanto especulação imobiliária e do turismo, passando a depender quase
sócio-cultural. Nesse sentido, o ciclo biológico que as tainhas (pie exclusivamente da pesca mais especializada, a artesanal. C-om
criavam correspondia a um ciclo da vida social marcada pela o aparecimento da pesca empresarial das traineiras, que t a m b é m
afirmação de uma sociabilidade intensa, o período do dom em que capturam a tainha, os pescadores artesanais se transformaram em
todos os moradores das praias participavam e eram retribuídos /// mão-de-obra assalariada e os peixes, em objeto de compra e ven-
natura pela sua c o o p e r a ç ã o . As tainhas ainda não tinham se da. A pesca coietiva com redes de arrasto dc praia foi escasseando,
convertido em mercadorias, ainda que uma parte delas, salgada e dando lugar a técnicas de pesca que exigem um n ú m e r o menor de
seca, fosse levada ao mercado das cidades. pescadores, como a rede de espera.
As tainhas tinham qualidades humanas, eram espertas, brin- N o entanto, ainda hoje, o fato surpreendente é que essa pesca
cavam saltando à luz do sol e da lua, c tentavam escapar, e muitas coietiva ainda persiste em algumas comunidades açorianas e
escapavam das redes. Elas tinham uma chance de continuar sua caiçaras, exercendo mais uma função simbólica que económica. É
migração para o norte. Essas tainhas eram ansiosamente espera- como se os pescadores, muitos dos quais vivendo já em áreas su-
das, desejadas, traziam fartura e atraíam pescadores ausentes para burbanas e não mais controlando as praias como espaço de tra-
as respectivas praias para participar de um ritual, de uma festa balho e sociabilidade tentassem recriar o "tempo da fartura" e da
(|ue marcava a identidade do grupo, reforçando a solidariedade e sociabilidade intensa. A simbologia da pesca da tainha continua
um período de relações sociais intensas. A rede de arrasto de praia intensa, tanto na memória dos que já nao pescam mais quanto no
para os caiçaras ou parelha de praia para os açorianos exigia um trabalho daqueles que ainda persistem nessa pesca coietiva.
uso coletivo, distinguindo a pesca da tainha de outras pescas de
verão, em geral realizadas individualmente (a do camarão-rosa,
por exemplo) ou em grupos menores. Nesse período histórico, as
atividades agrícolas ou pesqueiras eram marcadas pelo tempo na-
tural, no dizer de Cunha (1987), pelos ciclos ecológicos: havia um
tempo para cada atividade, dentro de um complexo calendário de
cultivos agrícolas e pesqueiras. N ã o era necessário ir buscar a tainha
em alto-mar, elas mesmas se aproximavam das praias, recriando o
mito natural e social do eterno retorno, no dizer de Mircea Eliade.
Esse ciclo socioecológico era t a m b é m o período das diversas
festas de inverno, como a de São João, São Pedro e de Nossa Se-
nhora dos Navegantes, entre outras. Elas pouco tinham a ver com
as "festas da tainha", hoje realizadas com a finalidade de atrair

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A PKSCA CON.S'THI-ÍNOO SOCIKDADKS

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315
314
Antonio Carlos Sanf Ana
Diegues é professor da
Universidade de São
PauLo, no curso de Pós-
Graduação em Ciência
Ambiental. É também
coordenador científico
do NUPAUB - Núcleo de
Apoio à Pesquisa sobre
Populações Humanas e
Áreas Úmidas Brasileiras, da Universidade de
São Paulo. Trabalhou vários anos na ONU, em
Genebra e em Roma, onde através de
contínuas viagens à Ásia, África e América
Latina obteve amplo conhecimento das
condições ambientais e das populações
humanas desses continentes. Como diretor do
NUPAUB, organizou vários projetos de
pesquisa de caráter interdisciplinar nas
regiões litorâneas. Pantanal e Amazónia, em
colaboração com várias universidades
brasileiras e organizações internacionais.
É autor de vários livros, entre os quais:

I Pescadores, Camponeses e Trabalhadores do


Mar

I
A. Diegues, Ática, 1983.

Nosso Lugar Virou Parque


A. Diegues e P. Nogara, Nupaub, 1994.
I
Ilhas e Mares: Simbolismo e Imaginário
A. Diegues, Nupaub, 1995.

O Mito Moderno da Natureza Intocada


A. Diegues, 3ed. Hucitec, 2000.

I A Imagem das Águas


A. Diegues (org.), Hucitec, 2000.
Pr#v#
Pabx: (011) 4178 05 22 fax ramal; 30
provografica.com.br
I Enciclopédia Caiçara - Vol. I - O Olhar do
Pesquisador
A. Diegues (Org.), Nupaub, Hucitec, 2004

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