VITALIDADE URBANA: INTERFACE ENTRE EDIFICAÇÕES E ESPAÇOS ABERTOS PÚBLICOS Natércia Munari Domingos, Antônio Tarcisio da Luz Reis natmunari@hotmail.com, tarcisio.reis@ufrgs.br Faculdade de Arquitetura, Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS – Brasil, Rua Sarmento Leite, 320, CEP 90050-170, Fone/Fax: +55 51 3308 3145, propur@ufrgs.br VITALIDADE, AMBIENTE-COMPORTAMENTO, ESPAÇO PÚBLICO. Este artigo trata da importância da vitalidade urbana como resultado da interface existente entre edificações e espaços abertos públicos. A vitalidade urbana é entendida como a presença significativa de pessoas nas ruas de forma a não causar desconforto no caminhar ou na permanência, constituindo ambiências agradáveis. Tal vitalidade tem sido mencionada como um dos fatores primordiais para evitar a degradação de um bairro e até mesmo de uma cidade, com consequências diretas para a segurança das áreas urbanas (Jacobs, 2009). Embora tenha sido salientando por distintos autores (Cullen, 1971; Gehl, 1980, 2010; Hillier, 1983) a importância da permeabilidade visual e funcional entre edificações e espaços abertos públicos para a presença de pessoas nos espaços urbanos, barreiras físicas e visuais continuam a ser erguidas (Reis & Becker, 2011) e relações claras e diretas entre edificações e espaços abertos inexistem em distintas áreas urbanas em diferentes cidades (Gehl, 1980, 2010). Assim, com base na literatura pertinente, são apresentados e discutidos diversos exemplos da existência de maior ou menor vitalidade urbana, como resultado de distintas relações existentes entre edificações e espaços abertos públicos. Concluindo, fica enfatizada a importância da existência de claras conexões visuais e funcionais entre edificações e espaços abertos públicos, para que áreas urbanas tenham vitalidade e, consequentemente, venham a qualificar a vida de seus usuários. INTRODUÇÃO A vitalidade urbana, entendida, para efeitos deste artigo, como a presença significativa de pessoas nas ruas de forma a não causar desconforto no caminhar ou na permanência, é um dos fatores primordiais para evitar a degradação de um bairro e até mesmo de uma cidade (Jacobs, 2009). No passado, a vitalidade urbana estava expressivamente presente em muitas cidades, pois a rua era o lugar do encontro. Nas cidades da antiguidade, os espaços públicos eram o palco de reuniões ao ar livre, das assembléias a céu aberto, das atividades comerciais. Nas cidades da Idade Média, do Barroco e da Renascença, os costumes da vida pública permaneceram; era no espaço público que se concentrava o movimento, realizavam-se as cerimônias oficiais, as exibições, festas públicas e todos os tipos de eventos (Sitte, 1992). Mas o impacto da Revolução Industrial sobre os processos urbanos, revolucionou o modo de se pensar a cidade, promovendo uma alteração na organização do espaço intra-urbano e a substituição das morfologias até então existentes (Kohlsdorf, Holanda, Gonzales, & Farret, 1985). Nos dias atuais, em muitas cidades a rua atua como espaço que serve à circulação, em detrimento das funções sociais, que incentivam o intercâmbio entre as pessoas e asseguram a vitalidade urbana (Jacobs, 2009). A segregação espacial e a tendência ao isolamento característicos da cidade moderna, aliados a um modelo urbanístico que favorece a utilização do automóvel, negligenciam os espaços públicos e a rua como o lugar do encontro e do caminhar. A medida que a vitalidade diminui, perdemos o hábito de circular e participar da vida urbana nas ruas, uma vez que a própria presença de pessoas atrai outras pessoas (Cullen, 1971; Gehl, 2010; Jacobs, 2009; Rogers, 2008). Além da prioridade dada ao automóvel, da presença humana e das relações sociais, fatores físico-espaciais podem interferir na vitalidade. A presença de vitalidade está relacionada às características do ambiente e ao poder de atratividade que o espaço pode ou não exercer, na medida em que tanto as pessoas que moram, como as que circulam por uma área com destino à outra, são fortemente influenciadas pela forma como ele se constitui (Hillier, 1983). A organização global do espaço, através da existência de um sistema adequado de conexões, ou a forma como um espaço se posiciona em relação ao entorno, pode ser determinante para a vitalidade (Hillier, 1983). Além disto, a relação entre edifícios, o modo como estão distribuídos entre si ou os fenômenos que se verificam em um conjunto edificado, são fatores geradores de impacto emocional sobre as pessoas, influenciando em menor ou maior grau a vitalidade (Cullen, 1971). Ainda, a relação entre os espaços abertos públicos e o espaço edificado, materializada pela constituição adequada ou não da interface existente entre estes limites – se há paredes cegas ou barreiras visuais que distanciam os edifícios do espaço – também é fator determinante de vitalidade nas ruas de uma cidade (Gehl, 2010; Hillier, 1983). Esta interface, também denominada borda, é “a zona que você caminha quando você está na cidade [...] são as fachadas que você vê e experimenta de perto e portanto intensamente. É onde você entra e sai dos edifícios, onde a vida interior e exterior pode interagir. É onde a cidade se encontra com a edificação” (Gehl, 2010, pp. 1076- 1079). O conceito de vias para Lynch parece englobar o que Gehl denominou como bordas: “As vias principais devem ter alguma qualidade singular que as diferencie dos canais de circulação circundantes: uma concentração de algum uso ou alguma atividade especial ao longo de suas margens; uma qualidade espacial característica; uma textura especial de pavimento ou fachada” (Lynch, 2006, p. 106). Para efeitos deste artigo, a interface será considerada como o conjunto de elementos limítrofes entre os espaços abertos públicos e os espaços fechados, caracterizados por componentes verticais (fachadas das edificações) e horizontais (recuos de jardim, terraços, projeção de coberturas, beirais e sacadas). Assim, a existência de vitalidade em um espaço está diretamente relacionada à forma como as estruturas físicas influenciam o comportamento humano (Cullen, 1971). Dada a importância deste aspecto, é essencial considerá-lo na constituição e no exercício de planejamento das cidades e das áreas construídas. No entanto, nem sempre estes aspectos são contemplados. As cidades do Período Barroco e do Renascimento cresceram em um processo gradual, onde as construções foram substituídas lentamente, permitindo um ajuste contínuo e uma adaptação do ambiente físico ao funcionamento real da cidade, correspondendo às necessidades humanas (Gehl, 1980). Na maioria das cidades européias, há uma preocupação maior quanto à vitalidade urbana ou a permanência ao ar livre, tendo sido dada uma grande ênfase ao tratamento dos pavimentos térreos, de forma a contemplar estes aspectos nos fundamentos do seu planejamento (Gehl, 2010). As cidades americanas também têm instituído instrumentos que expressam esta preocupação, e buscam promover resultados construídos visíveis que configurem uma esfera pública de alta qualidade, utilizando a forma física como princípio organizador. Em Miami, a legislação que regulamenta os procedimentos urbanísticos foi totalmente reformulada recentemente, e nesta revisão estão previstas normas que propõem integrar a propriedade individual com a esfera pública, conduzindo a constituição dos pavimentos térreos com adequação de atividades, níveis de transparência e permeabilidade (Miami 21, 2010). Em Porto Alegre, no entanto, a legislação urbanística não prevê mecanismos específicos que exerçam controle sobre a relação dos edifícios com o espaço público, tampouco sobre a relação entre edifícios, dando maior ênfase ao Plano Regulador, que estabelece índices construtivos que condicionam a edificação nos limites do lote como elemento individual. Sendo assim, este artigo tem como objetivo apresentar e discutir diversos exemplos da existência de maior ou menor vitalidade urbana, como resultado de distintas relações existentes entre edificações e espaços abertos públicos. Desta forma, este estudo pode contribuir para um melhor entendimento das relações entre intervenções urbanísticas e a dinâmica de crescimento de cidades vivas, servindo como subsídio para conduzir o planejamento em uma direção que favoreça a vitalidade e o funcionamento pleno da cidade. AS CARACTERÍSTICAS DA INTERFACE QUE ASSEGURAM VITALIDADE O tratamento da borda dos espaços públicos, especialmente os pavimentos térreos dos edifícios, tem uma influência decisiva sobre a vitalidade do espaço da cidade. Esta interface deve ser suave, e para tanto, tem que possuir algumas características essenciais (Gehl, 2010). A transparência, ou a possibilidade controlada de uma esfera visualizar a outra, pode ser fator consistente de atração e permanência do pedestre no espaço público da cidade: Um extremo é a rua com uma borda “suave” com lojas alinhadas, fachadas transparentes, grandes janelas, muitas aberturas e mercadorias em exposição. Aqui, há muito para ver e tocar, proporcionando muitas boas razões para diminuir o ritmo ou mesmo parar. O outro extremo, a rua com uma “borda dura” é um contraste radical: térreos estão fechados e o pedestre caminha passando por longas seções de fachadas de vidro preto, concreto ou alvenaria (Gehl, 2010, pp. 1150-1153) Bentley, McGlynn, Smith, Alcock e Murrain (2013), propõem o controle sobre a transparência e a privacidade dos espaços situando as atividades íntimas na parte de trás, e posicionando no limite com a esfera pública as atividades mais públicas que possam estar em interação com a rua. Outra característica que pode assegurar vitalidade é o que Sitte chamou de coesão: “contiguidade ou proximidade de edifícios a definirem uma parede relativamente legível para os espaços abertos urbanos” (Holanda, 2012, p. 35). A coesão é responsável pelo efeito harmônico de conjunto, através do cercamento contínuo do espaço por edifícios (Sitte, 1992). A coesão imprime unidade ao conjunto edificado e reflete um potencial de atração visual muito superior ao de um edifício isolado ou de edifícios que contenham entre eles espaços vazios (Cullen, 1971). A interface deve também ter ritmos curtos, expressos em fachadas com predominância de linhas verticais, ricas em detalhes que possam despertar experiências interessantes ao longo do caminho (Gehl, 2010). Se o pedestre tem a possibilidade de visualizar todo o percurso antes de sequer começar, o caminho é reto e aparentemente interminável, não há promessas de experiências interessantes e o trajeto tende a ser evitado: “Se edifícios também tem uma expressão de fachada principalmente vertical, passeios parecem menores e mais gerenciáveis, considerando que edifícios com poderosas linhas horizontais sublinham e reforçam a distância” (Gehl, 2010, pp. 1818-1821). Os ritmos curtos também podem ser traduzidos por quadras de pequenas dimensões. As quadras longas geram isolamento das vizinhanças e segregação, pois impedem a formação de combinações complexas na circulação, provocando no pedestre um efeito inibidor sobre o trânsito no percurso (Jacobs, 2009). As “experiências interessantes” citadas por Gehl (2010) podem ser associadas ao atributo da “imaginabilidade” proposta por Lynch (2006): uma característica que o objeto físico possui de evocar uma imagem forte ou um impacto sensorial. Para Lynch, “uma cidade altamente imaginável [...] convidaria o olho e o ouvido a uma atenção e participação maiores” (Lynch, 2006, p. 11). Estudos fisiológicos mostraram que para assegurar um equilíbrio nossos sentidos precisam de estimulação em intervalos relativamente curtos de quatro a cinco segundos. Este ritmo se traduz em 15 a 20 lojas por 100 metros de rua, situação que reflete a realidade de ruas comerciais atraentes em todo o mundo (Gehl, 2010). A expressividade sensorial, a riqueza de detalhes e a imaginabilidade são incrementadas se houver possibilidade da dar vazão à personalização, atributo proposto por Bentley et al. (2013), através do qual os usuários podem manipular o ambiente segundo seus próprios gostos e valores, ampliando o vínculo, a identificação com o espaço e estimulando a diferenciação e a surpresa. No entanto, um alto nível de personalização pode ser prejudicial à função pública das edificações, e deve ser impressa nos ambientes de forma controlada (Bentley et al., 2013). A permeabilidade é outra característica que pode incentivar a vitalidade. A existência de unidades estreitas e muitas portas, complementadas por uma grande variação nas funções fornecem muitos pontos de intercâmbio entre a entrada e saída e muitos tipos de experiências (Bentley et al., 2013; Gehl, 2010). Desta forma, é fundamental a existência de uma distribuição razoável de acessos ao longo da interface, em substituição às estruturas muradas e fachadas “cegas”, instaladas nas cidades e em muitos condomínios residenciais fechados sob o pretexto de proporcionar segurança. No entanto, em muitas áreas residenciais, acessos às garagens ou locais de estacionamento podem fragmentar a borda e desvirtuar a idéia de continuidade (Gehl, 2010). Além disto, segundo Bentley et al. (2013, p. 288), “permeabilidade física entre espaço público e privado ocorre nas entradas de edifícios e nos jardins. Ela enriquece o espaço público, aumentando o nível de atividade em torno de suas bordas”. Para Gehl (2010), este espaço exterior semi-privado imediatamente na frente do nível térreo das residências continua a desempenhar um papel notável para o nível de vida em áreas residenciais. Desta forma, a necessidade de um tratamento adequado destas áreas frontais é imprescindível. A diversidade de atividades é outra propriedade fundamental no que se refere a assegurar a vivacidade da cidade (Jacobs, 2009). No entanto, a diversidade não deve cristalizar a situação e os usos como estão, mas deve ter a possibilidade de ser dinâmica. Determinados usos devem ser evitados na interface entre público e privado pela sua natureza, enquanto outros implicam na adequação da proporção entre o uso e a sua extensão física na borda, porque em certas ruas suas dimensões não são apropriadas (Jacobs, 2009). Os usos que possuem relação direta com as atividades humanas são os que possuem maior poder de atração, uma vez que pessoas atraem pessoas (Gehl, 2010): “Se temos a escolha de caminhar em uma rua deserta ou animada, a maioria das pessoas na maioria das situações escolheria uma rua animada” (Gehl, 1980, p. 27). OS DIFERENTES MODELOS DE CIDADE E O REFLEXO NA VITALIDADE URBANA As características da interface identificadas como determinantes para a vitalidade urbana apresentam-se de diferentes formas nas cidades, e é possível relacionar estas diferenças às origens, aos princípios de planejamento urbano e tendências arquitetônicas que as configuram e classificam. Para efeitos deste artigo, e de maneira a ampliar o contraste entre os atributos, será dada maior ênfase à análise das cidades de origem medieval com suas posteriores intervenções e às cidades planejadas com características modernistas. Analisando as cidades medievais percebemos que em virtude de sua evolução, seus espaços construídos têm qualidades que são encontrados apenas em alguns casos excepcionais em cidades de períodos posteriores (Gehl, 1980). Ao contrário destas cidades medievais espontâneas, que evoluíram livremente, ajustando-se ao relevo e às casualidades sobrepostas no decorrer de séculos, estão as cidades planejadas, cuja ordenação do crescimento corresponde às limitações impostas pelos planos reguladores, baseando-se em instrumentos urbanísticos que definem uma cidade idealizada. Estes aspectos, que contrapõem procedimentos antigos e modernos em relação à origem da cidade, terão fundamental relevância na análise que segue quanto às características espaciais que asseguram vitalidade. Quanto à Coesão e ao Ritmo. Nas cidades medievais, a rua formava um todo fechado e coeso, e a sua sinuosidade limitava a perspectiva. Sitte (1992) menciona que não é agradável ao usuário a sensação do olhar que se perde no infinito, mas sim a possibilidade de ter, a cada momento, uma visual diversa. Este princípio pode justificar a vitalidade das ruas de inúmeras cidades medievais, assim como ruas em partes de algumas cidades contemporâneas. No entanto, em Paris, uma das mais importantes cidades medievais da Europa, murada e extremamente compacta, as intervenções do Barão Haussmann feitas entre 1852 e 1870 foram sobrepostas a esta malha medieval, demolindo inúmeras vias pequenas e estreitas residuais deste período, e criando imensos boulevares organizadores do espaço urbano, assim como jardins e parques. Na época, estas intervenções foram contestadas. Uma das motivações foi o fato de que a frequência das vias transversais deve ser controlada, pois uma das causas da impossibilidade de um efeito coeso no conjunto urbano é a interrupção contínua das ruas por perpendiculares muito largas, de maneira que a paisagem seja o reflexo de vários blocos isolados e desconectados (Sitte, 1992). Para Panerai, Castex e Depaule (2013), no entanto, as quadras que surgiram como resultado das interseções de Haussmann na malha urbana são compatíveis com as quadras antigas, uma vez que a imagem da cidade é identificada por uma continuidade, efeito de uma rigorosa manutenção da paisagem urbana. Segundo Panerai et al. (2013, p. 40), “não há hiatos ou vazios. As quadras subdivididas foram rapidamente fechadas, sem deixar que os cortes subsistissem. O espaço público é rigorosamente fechado pela linha de fachadas”. No passado os espaços públicos eram conformados por uma massa edificada coesa, enquanto na construção urbana moderna, a relação entre espaços vazios e espaços construídos inverte-se por completo. Os princípios modernistas propõem que as edificações sejam visualizadas de todos os lados, e que a existência de um espaço vazio e uniforme em torno da construção é adequada, enquanto os princípios antigos os contrapõem: “Ninguém parece notar que esse espaço vazio, monótono por si só, anula qualquer variedade de efeitos” (Sitte, 1992, p. 44). Outros estudos ressaltaram a necessidade de que ao lado das grandes ruas se acrescentassem ruas menores de traçado tortuoso e de aspecto pitoresco, a fim de que os transeuntes descobrissem, a cada passo, novos edifícios (Andrade, 1992). Quanto à coesão, cabe uma analogia da cidade medieval com as cidades coloniais brasileiras. Em ambas, os edifícios compõem uma massa sólida que constitui o fundo perceptual, com as ruas e praças emergindo em contraste (Holston, 1993). Esta estrutura perceptual é invertida na cidade moderna. As largas avenidas da cidade não se submetem a nenhum ente volumétrico, e apesar de fragmentadas por muitas artérias, são em geral pontuadas por edifícios isolados intercalados por espaços vazios, e recuos laterais exigidos para viabilizar a construção de edificações em altura. Deste modo, os edifícios são apreendidos como entes individualizados desconectados e afastados entre si e em relação a rua, atendendo aos princípios modernistas de liberar o solo: “A rua não é a figura destacada de uma massa de sólidos, mas uma via limitada de passagem. [...] não mantém nenhuma semelhança com a rua enquanto espaço de socialização para os pedestres” (Holston, 1993, p. 143). Análises feitas por Holston em Brasília, mostraram que os moradores das superquadras rejeitaram a “anti-rua”, uma vez que ela não estimula o intercâmbio e a sociabilidade, contradizendo as práticas sociais: “Na falta de uma calçada contínua, margeada pelas fachadas de prédios, não apenas a idéia de “dar uma volta pela avenida” é irrealizável, mas também o flaneur urbano tornou-se uma figura em via de extinção” (Holston, 1993, p. 147). Através da análise da morfologia destas cidades é possível relacionar a presença de coesão adequada e ritmos curtos nas interfaces à existência de vitalidade, reafirmando a importância destas características para coibir a degradação do espaço urbano. Quanto à permeabilidade e à transparência. Conforme descrições de Panerai et al. (2013), além de coeso, o perímetro da quadra pré-Haussmanniana em Paris está em contato com a rua, estimulando a permeabilidade da interface. A transparência está presente de forma controlada, tornando visíveis as funções de troca, propícias à exposição, e ocultando as funções de caráter mais privado no interior da quadra. Este modelo que integrava diferentes atividades e funções era eficiente, pois permitia a presença de certa complexidade inerente ao tecido da cidade. A quadra de Haussmann, no entanto, apesar de propor uma multifuncionalidade limitada, uma vez que as funções de trabalho foram excluídas da quadra habitacional, continua a oferecer um perímetro aberto para as ruas, expresso na supervalorização direcionada aos espaços públicos (Panerai et al., 2013). Na cidade moderna a permeabilidade é comprometida não só pela ausência de proximidade e contato da edificação com a rua, mas em alguns casos, com a eliminação de espaços sociais de interação. Este fato é perceptível em Brasília, onde Holston (1993) verificou que as famílias brasilienses sentem-se “trancadas” em seus apartamentos, considerando-o frios, incômodos e inconsistentes com as práticas sociais. A impossibilidade de se ter varanda, sacada ou quintal impediria as trocas costumeiras entre exterior e interior, reduzindo a permeabilidade. Além disto, a edificação é elevada através do pilotis, reduzindo a sua conexão com a rua. Os princípios modernistas trazem um novo modelo, que separa com maior rigor as esferas pública e privada: “O prolongamento das moradias, antes ocultas (fachada para o pátio, jardim individual), se torna a fachada do edifício que será compreendido em dois níveis: o nível global e do exterior e o nível individual e do interior” (Panerai et al., 2013, p. 148). Além disto, os fundamentos modernistas, que eximem as paredes das funções estruturais, abrem espaço para a utilização das fachadas de vidro, trazendo a transparência de forma excessiva e expondo a vida privada. Análises feitas por Holston (1993) comprovam a enorme rejeição dos moradores em relação a este modelo, materializada pelas tentativas de recuperar a privacidade através da colocação de todos os tipos de barreiras visuais que possibilitem este resgate: Assim como a eliminação do ornamento na fachada nega a exibição pública do status individual na arquitetura, também a transparência do vidro expõe o âmbito privado – antes recluso atrás de paredes ornamentadas – a um novo exame do público (Holston, 1993, p. 193). Apesar das análises de Panerai et al. (2013) quanto à morfologia de Paris não vincularem diretamente as características da interface à presença de vitalidade, elucidam a existência de permeabilidade e transparência controlada nesta cidade, inegavelmente viva. Gehl (2010) reafirma a importância deste atributo, trazendo estudos feitos em Copenhagen, Melbourne e Estocolmo, onde políticas de promoção de fachadas ativas e transparentes tiveram resultados efetivos quanto à presença de vitalidade. Em Miami, a recente legislação urbanística, o Miami 21 Code,1 propõe normas que buscam integrar a propriedade individual com a esfera pública, prevendo padrões de design que definem níveis adequados de transparência das fachadas comerciais frontais. Em contraponto, Holston (1993), traz relatos de rejeição dos moradores de Brasília em relação às fachadas residenciais excessivamente envidraçadas e à ausência de vínculo da edificação com os espaços públicos e ruas, que possuem reduzida circulação de pedestres. Estes fatos reafirmam a influência destas características na presença de vitalidade das cidades. Quanto ao estímulo e à personalização. Quanto à eliminação do ornamento das fachadas, os estudos de Holston (1993) colocam Brasília como objeto de grandes críticas pelos moradores das superquadras, que se referem à ausência de diferenciação das construções. A uniformidade e a padronização da arquitetura das super-quadras de Brasília é rejeitada, em face da sua monotonia, impessoalidade e da impossibilidade dos usuários de imprimir na moradia suas individualidades: “A falta de diferenças individualizadoras é sentida de forma mais aguda no lugar onde as pessoas moram, e esclarece o frequente uso e importância do critério de “personalidade” nas avaliações da arquitetura residencial em Brasília” (Holston, 1993, p. 192). Pinder e Pinder (2003) também enfatizaram a necessidade de se direcionar um maior cuidado sobre a concepção de espaços exteriores, sobre o desenho, as cores e texturas de seus materiais, gerando estímulo e surpresa, e incentivando o usuário a caminhar durante horas sem entediar-se. Somando-se a isto, Bentley et al. (2013) coloca que a personalização dos ambientes pode tornar mais claro o padrão de atividades de um local, o que é especialmente valioso em ambientes ativos e que acomodam uma grande variedade de usos que podem ser alterados ao longo do tempo. Apesar da idéia de que as superfícies externas devem ser projetadas de forma a permiti-la, um alto nível de personalização pode ser prejudicial à função pública das edificações (Bentley et al., 2013). Bentley et al. (2013), traz critérios para explorar a personalização de forma adequada nas edificações, posteriormente aplicados em um projeto de incentivo em residências ao longo do lado norte de Maltings Place, a cerca de 30 milhas a oeste de Londres. No entanto, não traz resultados quanto à efetiva aplicação destes critérios e sua receptividade perante os usuários. Em Paris, o perímetro da quadra é criteriosamente tratado e planejado, e apesar destes critérios estabelecerem homogeneidade, remetem à riqueza de detalhes e a existência de estímulo: “O centro da cidade, geralmente composto de edifícios de alvenaria de oito andares, proporcionam uma agradável uniformidade de cor e escala e mostram evidências de que a cidade foi planejada de acordo com uma visão estética” (Rybczynski, 1995, pp. 23-24). O cuidado com este aspecto na conformação das estruturas arquitetônicas condicionou até mesmo o parcelamento do solo, pois ele submete-se à forma futura das edificações e não o contrário (Panerai et al., 2013). Apesar de certa rigidez nos critérios que configuram o perímetro da quadra, a sua uniformidade aparece como uma qualidade positiva, refletindo-se na vitalidade das ruas de Paris e na frequente referência à imagem característica e inconfundível de suas ruas.
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O Miami 21 Code é o Código de Zoneamento da Cidade de Miami elaborado a partir dos princípios do Novo Urbanismo e do crescimento urbano inteligente. Está em vigor desde 2010, substituindo o Decreto 11000. Disponível em http://www.miami21.org/. Quanto às atividades. A diversidade de atividades é considerada fator imprescindível para a manutenção da vitalidade urbana, uma vez que traz benefícios não só estéticos, pela exclusão da monotonia e a inserção de diferenciação na interface, mas pela possibilidade de apresentar autenticidade em seu conteúdo (Jacobs, 2009). Brasília é um exemplo expressivo da ausência de diversidade. Neste sentido, o plano piloto, que organizava a cidade em zonas de atividade homogênea e excludentes entre si, ao contrário do que predispõe a vida cotidiana, que implica em uma mistura heterogênea de funções, mostrou-se inadequado (Holston, 1993). Além disto, as áreas urbanas onde as atividades são diversificadas incentivam o caminhar, enquanto a inexistência de diversidade aumenta as distâncias a percorrer e favorece a utilização do automóvel. A reprodução excessiva de usos mais lucrativos em uma mesma região também é inadequada, pois pode levar à degradação de áreas urbanas (Jacobs, 2009). Segundo Panerai et al. (2013), o antagonismo de funções entre o perímetro e o interior da quadra em Paris traduzia-se em um eficiente modelo de integração de atividades, concebido de forma a possibilitar a substituição de usos, e levando em conta “a transformação histórica, a modificação, a bricolagem (ou seja, a recuperação de uma estrutura abandonada e disponível) e ate mesmo o uso impróprio” (Panerai et al., 2013, p. 35) Além da diversidade, a utilização inadequada dos pavimentos térreos das edificações interfere diretamente na vitalidade (Jacobs, 2009). Segundo Jacobs (2009) alguns usos devem ser evitados no contato com a rua (estacionamentos, garagens de caminhões longos ou pesados, postos de gasolina, painéis publicitários gigantescos), enquanto outros são problemáticos não pelo tipo, mas por sua dimensão em relação à testada, pois em certas ruas a proporção não é adequada. Em Miami, o já citado Miami 21 Code estabelece padrões de design que propõem ocultar, nas fachadas frontais, elementos arquitetônicos característicos de atividades como edifícios- garagem e estacionamentos. Além disto, limita o número de acessos de veículos por testada de quarteirão, situando-os preferencialmente nas ruas com orientação leste- oeste, de forma a priorizar o circular do pedestre em determinadas ruas. Assim, a legislação urbanística deve estabelecer um zoneamento com diversidade, restringindo usos inadequados nos pavimentos térreos. Neste caso, a adaptabilidade das edificações à novos usos são características importantes para a manutenção da vitalidade, uma vez que favorecem a permanência e a preservação das edificações existentes e possibilitam a inserção de diferentes atividades. Segundo Gehl (2010), os princípios deste planejamento, que concebe a vida existente na cidade como ponto de partida, constrói estruturas mais complexas, que contam a história do desenvolvimento urbano, constituindo paisagens visualmente mais atrativas e mais vinculadas às necessidades humanas. Quanto ao tratamento das áreas frontais. Na cidade medieval, a rua era configurada e estruturada pelas edificações, e o espaço público era rigorosamente limitado por uma linha de fachadas (Panerai et al., 2013). Sitte (1992) faz referência a esta rua sem interrupções, e traz à tona a disparidade entre o método antigo e moderno, criticando o exemplo insensato da irregularidade provocada nos limites das ruas pelos avanços e recuos nas fachadas dos edifícios, o que é visível ainda hoje nas cidades. Esta alternância nos recuos afeta a sensação de continuidade do perímetro da interface, comprometendo a coesão e a sensação de acolhimento proporcionada por este atributo. No entanto, a ocupação e ornamentação destas áreas exteriores frontais das residências com ajardinamento e vegetação é defendida por Sitte (1992). Mais tarde Ebenezer Howard, influenciado pelas idéias de Sitte, cria o modelo de cidade-jardim, cujas habitações apresentam-se recuadas do alinhamento do terreno, com jardins fronteiriços (Andrade, 2003). A existência de recuos de forma regular ao longo da rua com função de ajardinamento é uma prática constante, visível no Brasil a partir do fim do século XIX, e exercida sob clara influência européia (Aragão, 2008). Em Porto Alegre, apesar da restrição construtiva sobre estes espaços, frequentemente eles são ocupados irregularmente, na maioria das vezes com construções destinadas a garagens ou estabelecimentos comerciais, na tentativa de aproximar a edificação da rua e estabelecer maior interação com as pessoas e a esfera pública. Em Brasília, os princípios modernistas não atendem a estas necessidades, pois a conexão da edificação com o espaço público e até mesmo com o solo é negada pela introdução do térreo em pilotis (Holston, 1993), tipologia que também se reproduz em Porto Alegre. Gehl (2010) traz exemplos de estudos feitos em 1976 em Melbourne na Austrália, e em 1977 em Waterloo e Kitchener, no Canadá, onde fica evidenciada a existência de um padrão mais intenso de atividades em ruas residenciais densamente construídas e com alpendre ou quintal de frente para a rua. É perceptível que em relação à vitalidade, o modelo que aproxima a edificação da rua é mais eficiente. Neste sentido, é pertinente que a legislação urbanística possa flexibilizar a ocupação das áreas de recuo, hoje com fortes restrições construtivas, em uma direção que favoreça esta conexão. Este incentivo pode se dar através da permissão à construção de elementos mais permeáveis como galerias, vitrines e decks nas áreas comerciais, ou varandas, terraços, gazebos e pérgolas, que gerenciem a intensidade da transparência em áreas sociais residenciais e induzam possibilidades de permanência e contemplação. CONCLUSÃO Este artigo corrobora a idéia de que a existência de vitalidade no espaço da cidade está diretamente relacionada à forma como as estruturas construídas se relacionam com os espaços abertos públicos e influenciam o comportamento humano. Estudos de diversos autores, que analisaram cidades e edificações quanto à morfologia e receptividade dos habitantes, permitiram definir características espaciais da interface entre espaços fechados e espaços públicos abertos que exercem influência sobre a vitalidade, e podem afetar positivamente os usuários. Apesar do entendimento de alguns teóricos2 de que as qualidades que provocam impressões sensoriais agradáveis dificilmente podem ser redutíveis a critérios universais, pois em geral estão associadas a ambientes que se originaram no passado de forma espontânea a partir das necessidades humanas, foi possível concluir que há uma lógica a ser seguida na configuração destas estruturas. Reproduzi-la, na tentativa de definir em projeto o resultado do efeito destas circunstâncias que se sucederam e se sobrepuseram ao longo do tempo, já é realidade em muitas cidades, a exemplo de Miami, onde as novas normas urbanísticas utilizam-se, como padrões de referência para o desenho da interface, de dimensões e proporções trazidas pelas imagens de várias cidades européias. Somando-se a isto, na análise de procedimentos antigos e modernos quanto à vitalidade, surgem muitos contrastes, em geral desfavorecendo os princípios modernos. Estes princípios modernistas, que na maioria das vezes subsidiaram o crescimento das cidades brasileiras no século passado e no atual, em geral conduziram a um planejamento sem a preocupação sobre como as estruturas físicas influenciam o comportamento humano, tratando os edifícios de forma isolada, muitas vezes desconsiderando as adjacências e a idéia do impacto do conjunto edificado sobre a percepção visual. No entanto, isto não implica em desconsiderar a herança do Movimento Moderno sobre as cidades, mas remete à necessidade de contemplar seus aspectos positivos e corrigir suas falhas, especificamente no que se refere à vitalidade.
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Referência de Camilo Sitte a R. Baumeister em seu livro sobre a expansão das cidades.
Assim, este estudo reúne um conjunto de critérios que devem ser observados no projeto das edificações que limitam os espaços públicos, conduzindo o planejamento urbano em uma direção que coíba a degradação dos espaços. No entanto, estes atributos precisam estar vinculados à essência do processo de planejamento, através da reformulação de conceitos que ainda abrigam ações limitadas ao atendimento de índices urbanísticos com ênfase quantitativa, desconsiderando a cidade existente, as necessidades reais das pessoas, o desempenho dos lugares e ambiências e a relação entre volumes edificados, espaços abertos, permeabilidades e movimento. A essência da cidade está na relação entre o espaço público e as estruturas edificadas e é na adequação desta conexão que reside o potencial de uma cidade tornar-se viva, visualmente atraente e em condições de adaptar-se às mudanças a que está sujeita em sua evolução. REFERÊNCIAS Andrade, C. R. M. (1992). De Viena a Santos: Camillo Sitte e Saturnino de Brito. ln C. Sitte, A construção das cidades segundo seus princípios artísticos (4. ed.). São Paulo: Ática. Andrade, L. M. S. (2003, 4 novembro). O conceito de cidades-jardins: Uma adaptação para as cidades sustentáveis. Retirado de http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.042/637 Aragão, S. (2008). A casa, o jardim e a rua no Brasil do século XIX. Em Tempo de Histórias: PPG-HIS/UnB, (12), 151-162. Bentley, I., Mcglynn, S., Smith, G., Alcock, A., & Murrain, P. (2013). Responsive environments: A manual for designers. Oxford: Architetural. Kindle Edition. Cullen, G. (1971). Paisagem urbana. Lisboa: Architectural. Gehl, J. (1980). Life between buildings: Using public space. New York: Van Nostrand Reinhold. Gehl, J. (2010). Cities for people. Washington: Island. Kindle Edition. Hillier, B. (1983). Space syntax: A different urban perspective. Architects’ Journal, 178(48), 47-63. Holanda, F. (Org.). (2012). Ordem e desordem: Arquitetura e vida social. Brasília: FRBH. Holston, J. (1993). A cidade modernista: Uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras. Jacobs, J. (2009). Morte e vida de grandes cidades (2. ed.). São Paulo: WMF. Kohlsdorf, M., Holanda, F., Gonzales, S., & Farret, R. (1985). O espaço da cidade: Contribuição à análise urbana. São Paulo: Projeto. Lynch, K. (2006). A imagem da cidade (3. ed.). São Paulo: Martins Fontes. Miami 21: Your city, your plan. (2010, September 10). Project vision. Retirado de http://www.miami21.org/ Panerai, P., Castex, J., & Depaule, J.-C. (2013). Formas urbanas: A dissolução da quadra. Porto Alegre: Bookman. Pinder, A., & Pinder, A. (2003). Beazley's design and detail of the space between buildings. London: Architetural. Kindle Edition. Reis, A., & Becker, D. (2011). Morfologia urbana e o impacto dos condomínios fechados. Projectare, 4, 108-119. Rogers, R. (2008). Cidades para um pequeno planeta. Barcelona: Gustavo Gili. Rybczynski, W. (1995). City life. Toronto: Harper Collins. Sitte, C. (1992). A construção das cidades segundo seus princípios artísticos (4. ed.). São Paulo: Ática.
A Ouc Lagoa Do Papicu Como Exemplo de "Predatismo" de Áreas Vulneráveis Pela Iniciativa Privada - Um Estudo de Caso Sobre A Operação Urbana Consorciada