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Guilherme Falleiros
professor.gljf@gmail.com
Introdução
Os “três porquinhos”, enquanto “clássicos” da Sociologia (sendo que um deles, Karl Marx, nunca
se considerou um sociólogo), são um mito narrado a partir de um momento de revisão da
disciplina sociológica em meados do século XX, como afirma socióloga australiana Raewyn
Connell, uma narrativa que abafa o processo multifacetado e internacional de criação coletiva da
disciplina, e que traça uma concepção purificada de modernidade europeia como se livre das
bases colonialistas que a possibilitaram, tais quais as grandes coletas de dados estatísticos nas
colônias. O abafamento do contraste entre metrópole e colônia foi projetado para fora da
Sociologia, com a caracterização - hoje há muito questionada - desta como estudo da
“modernidade” europeia, e da Antropologia como estudo de povos “primitivos”, isto é,
colonizados, responsabilizados pelo “atraso” das colônias que a suposta razão suprema da
branquitude ajudaria a suprimir - juntamente com as riquezas, saberes e diferenças desses
povos, cuja capacidade de cometer violências não chegava aos pés dos europeus.
Esta razão violenta está associada a um processo histórico e político de constituição de uma
forma de soberania que o filósofo Michel Foucault chamou de biopoder. Neste processo, iniciado
a partir do século XVIII, os Estados assumem não só o poder da morte como também o controle
da vida e a administração dos corpos enquanto micro-totalidades coesas, indivíduos. É aí que,
segundo Foucault, o suicídio se transforma num problema. O cientista político Achille Mbembe
toma a noção de biopoder para pensar a colonização, em sua atualidade, enquanto necropolítica:
a necessidade de separar o cuidado da vida de uns da mortificação de outros - reconhecida por
Foucault como uma escolha racista entre quem vive e quem morre -, criando condições de
dominação tanto externas quanto internas nas quais a guerra se confunde com segurança ou
combate ao crime e o genocídio se confunde com o suicídio.
Fazendo uma aproximação entre genocídio e suicídio, assim como Mbembe, a Antropologia
contemporânea em seus estudos sobre povos indígenas - há tempos discordante do
evolucionismo e do primitivismo constantes de sua origem disciplinar - pode tomar o problema
do suicídio e revirá-lo como crítica ao biopoder, tanto quanto das definições de indivíduo e
sociedade atreladas a ele. Nesse sentido, velhos e novos conceitos de pessoa e dividualidade
podem ser pautados pelas perspectivas ameríndias, em sua diversidade, a partir das quais,
diante das transformações genocidas contemporâneas, os alarmantes casos de “suicídios”
indígenas podem adquirir sentidos insuspeitos.
“Chama-se suicídio todo o caso de morte que resulte direta ou indiretamente de um ato positivo
ou negativo, praticado pela própria vítima, sabedora de que devia produzir esse resultado”,
escreveu Durkheim em O suicídio - Estudo sociológico, publicado na França em 1897.
A vítima e autora é, no caso, um “indivíduo”, mas mesmo assim o suicídio pode ser tratado
enquanto “fato social” a partir de uma série de definições metodológicas cujo pressuposto
elementar é a “força coletiva”.
“A continuidade é uma idéia verdadeira, mas cuja verdade é anterior à diferenciação dos
seres […]. Que mais eu diria? Nossa própria vida está submetida à série; e a
continuidade da consciência, a permanência do sentido íntimo, a incansável vigília do eu
são somente ilusões. Acreditamos viver uma vida indefectível e não-interrompida, ao
menos neste curto intervalo de tempo que nos é permitido; pobres mortais! cada
instante de nossa vida só se liga ao que lhe precede como as vibrações da lira se ligam
umas às outras: a força vital que nos anima é contada, pesada, medida, seriada; se ela
fosse contínua, seria indivisível, e nós seríamos imortais” (Proudhon 1986: 43-44)
De todo modo, ao capturar o conceito proudhoniano de força coletiva, Durkheim lhe dá uma
torção autoritária. Assim, o suicídio, para ser tratado como fato social, precisaria ser dotado de
uma realidade explicativa não simplesmente “maior” do que a soma dos atos individuais e suas
motivações íntimas, mas também a partir de uma oposição da Sociedade em relação ao
Indivíduo segundo a qual aquela seria, sobre este, coercitiva (capaz de impor sanções através de
sua força maior), exterior (existindo anteriormente e independentemente de cada indivíduo) e
geral (casos manifestos em amplitude, jamais isolados, estatisticamente mensuráveis).
Os dados estatísticos sobre a incidência de suicídios analisados por ele mostravam certas
regularidades ao longo das épocas do ano, nas diferenças de idades (mais comum entre os mais
velhos do que entre os mais jovens - ao contrário do que sugere o senso comum) e gênero (mais
comum entre homens do que mulheres). A partir dessas recorrências, Durkheim demonstra que o
suicídio, aparentemente um ato puramente psicológico, também pode ser estudado pela
Sociologia e compreendido como um fenômeno coletivo.
Quanto à articulação entre indivíduo e sociedade, existiriam três tipos de suicídio para Durkheim,
ainda que na prática possam se misturar: 1) suicídio egoísta: em que o indivíduo não possui
fortes laços de solidariedade com o seu grupo, num excesso de isolamento, mais comum entre
homens porque, segundo o autor, estes estariam menos acostumados à solidão, reagindo à ela
com a morte; 2) suicídio altruísta: o extremo oposto do egoísta, quando se está exageradamente
integrado ao seu grupo, perdendo individualidade e se sacrificando, muito comum entre militares,
cujas taxas de suicídio são sempre mais altas do que as de civis; 3) suicídio anômico: quando o
indivíduo se dissipa nos limites entre grupos em transformação, diante de uma diversificação das
instituições sociais (famílias, escolas, governos, religiões, polícias, universidades, órgãos de
saúde pública, empresas etc.) num momento de grandes mudanças na divisão do trabalho social,
de modo que as motivações individuais se perdem diante da falta de referenciais normativos
estáveis e singulares.
Como fato social, o suicídio deveria ser explicado por outro fato social: o grau de integração
social de um indivíduo, seja excessivamente integrado ou desintegrado. Esses excessos seriam
marcas da “anomia” - ausência de normas - característica da modernização, segundo Durkheim.
Marx e o Suicídio
Em um artigo de 1846, publicado em livro póstumo, Peuchet: sobre o suicídio, Marx faz diversos
comentários sobre casos de suicídio, aludindo a fatores psicológicos, econômicos e sociais.
Não há uma tentativa de ignorar aspectos psicológicos pois, diferente de Durkheim, Marx não se
preocupa em definir um método sociológico, tendo feito apenas considerações informais sobre o
assunto. Ainda assim, Marx não daria à psicologia o mesmo lugar dado por seus seguidores da
chamada Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno e Max Horkheimer. Seu método de análise
filosófico sobre a sociedade, o “materialismo histórico dialético”, tem a economia como base. O
trabalho e o operariado, conforme a dialética marxiana, seriam a tese, enquanto o capital e a
burguesia seriam a antítese, de onde resultaria, graças ao movimento da história, a síntese
socialista. O movimento da história seria causado pelo avanço dos meios de produção
(tecnologia) juntamente com a força de trabalho, que entrariam em contradição com as relações
de produção (desigualdade de classes), dando origem a um novo modo de produção. Marx
acreditava no desenvolvimento da tecnologia e do capitalismo como caminhos para o socialismo.
Cabe notar que, diferente de Proudhon, seu louvado predecessor e posterior adversário nas
disputas entre socialistas no século XIX, Marx não aplica à política a mesma fórmula da força
coletiva que aplicou à economia para explicar a “mais valia”: a política estaria sujeita à economia
ao invés de ser homóloga a ela, como supunha Proudhon. Assim, em contraste com Proudhon, a
importância da economia para Marx estaria ligada à questão do avanço tecnológico que
capacitaria as transformações tidas como indispensáveis para a satisfação das necessidades de
uma organização política mais libertária. Nesse sentido, há um elemento colonialista em seu
pensamento, bastante expresso nas cartas trocadas por Marx e Frederich Engels, por exemplo,
que considera as formas políticas de outros povos como se condicionadas por seu “pré-
capitalismo”, sujeitas aos avanços políticos metropolitanos. Ora, se a intenção é abordar, adiante,
as questões indígenas, recorro a um dos autores referenciais para tal discussão, Pierre Clastres,
que demonstrava com base em estudos em antropologia econômica como os de Marshall
Sahlins, uma afluência de satisfação de necessidades nas supostas “sociedades primitivas”, e
uma falta de conexão e determinismo, nos casos ameríndios, entre formas políticas e meios de
produção - o que pode abrir caminho para pensar o suicídio de modos diversos, inclusive em sua
relação com o biopoder e a necropolítica.
Isso posto, para Marx, os momentos de maior contradição e crise econômicas estariam ligados
às causas do suicídio - mas também de outras formas de violência.
Marx considera o suicídio como um mal do qual padecem todas as classes sociais. Na análise
estatística de Durkheim, por sua vez, os suicídios entre os profissionais hierarquicamente
superiores é relativamente maior… Como Durkheim, Marx também supunha que os valores
sociais são determinados pela natureza particular das sociedades, e chega a conclusões muito
próximas às de Durkheim sobre questões de gênero, idade e motivação social do suicídio.
Todavia, Durkheim legitima a sociedade burguesa e espera, com sua Sociologia, ajudar a
combater o período de anomia existente entre a transição da solidariedade mecânica para a
solidariedade orgânica e, como tratamento contra o aumento da taxa de suicídios, propõe o
incentivo às associações profissionais em prol da integração social dos indivíduos. Já Marx,
como Proudhon, vê na organização dos trabalhadores não a saúde da sociedade burguesa, mas
sua superação.
Diferente de Durkheim e Marx, Weber discordava de que a Sociologia pudesse servir como
ferramenta da reforma ou da revolução, servindo apenas para dizer o que é ou não possível fazer.
Para ele, a própria ciência já seria um valor, ainda que um valor racional, suposta característica da
civilização europeia. A posição de Weber em relação aos valores se difere da de Durkheim ao
estar mais preocupado em como os diferentes valores sociais orientam as ações de cada
indivíduo, e não na apreciação de fatos sociais gerais. Weber concebe, assim, que conservar a
vida é um valor da própria modernidade, de onde pode se concluir que o suicídio ocorreria
quando a vida fosse considerada sem valor. O que, em termos durkheimianos, valeria para o
suicídio egoísta e para o anômico, mas não para o altruísta, no qual o valor social da vida é sua
própria entrega.
A relação entre protestantismo e individualismo foi reconhecida por Durkheim como causa de
suicídio. Nota-se uma relação entre suicídio e individualismo religioso por meio da comparação
entre as taxas de suicídios de católicos e protestantes. Nesse ponto, a análise de Durkheim
reforça as interpretações de Weber. Pode se supor que, de um ponto de vista weberiano, a
economia, tanto quanto a religião, seriam fatores independentes na motivação das ações
individuais - dentre elas o suicídio, agravado pelo individualismo característico tanto do
protestantismo quanto do capitalismo. Tanto para Durkheim quanto para Weber, o individualismo
pode ser entendido como um valor, o que, para Durkheim, relaciona autonomia individual e
desintegração social. Assim, é o próprio individualismo que se torna uma norma social coercitiva.
Através da colonização, esta norma social atinge povos que seguiam e seguem outras normas.
Para terminar, um estudo de Daniel Münster sobre suicídio entre agricultores da Índia reforça as
afirmações de Giddens sobre o uso da estatística para a criação de fatos sociais, também
colocando em questão a suposta baixa taxa de suicídios no campo, além de criticar o
economicismo presente nos estudos sobre causas do suicídio. Segundo Münster, as estatísticas
oficiais indianas e os discursos de Estado sobre elas apresentam as crises econômicas como
causas da elevada taxa de suicídio entre agricultores. Se em outras situações envolvendo
suicídio e questões agrárias verifica-se o “suicídio de protesto” público e notório, na região
indiana estudada por Münster suas causas seriam complexas demais e sua expressão pouco
explícita. Ainda, nota-se uma retro-alimentação das estatísticas sobre as explicações locais, de
modo que as famílias do suicida reafirmassem a versão oficial para o pesquisador.
“Suicídios” indígenas
O suicídio indígena enquanto dado biopolítico é um dos problemas de saúde pública mais graves
em países da América. A taxa de suicídio indígena no Brasil é de 15,2/100 mil habitantes
(2011-2015). Isso quer dizer que, a cada 100 mil indígenas, 15,2 se suicidam, um número
elevadíssimo se comparado aos casos de não-indígenas (0,4 a cada 100 mil). Se a população
indígena é de 0,25% da população brasileira, mas é responsável por 1% da taxa de suicídio
neste país, pode-se considerá-lo como um componente do genocídio indígena, já que, conforme
o relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil (2016), se enquadra como violência por
omissão do poder público. Esta omissão se dá especialmente no baixo atendimento às
demandas territoriais indígenas na última década, apesar de garantidas pela constituição de
1988.
Além do número alto, se comparado ao não-indígena, outro elemento que chama atenção nas
taxas de suicídio indígenas é que, em números de suicídios relativos à quantidade de habitantes
por faixa etária, é muito mais comum entre crianças, adolescentes e jovens, dos 10 aos 29 anos
(aproximadamente 80% dos casos indígenas), enquanto para pessoas não indígenas é mais
comum entre adultos, dos 30 aos 69 anos (aproximadamente 80% dos casos não-indígenas)
(2011-2015).
Por outro lado, as pesquisas em Antropologia mostram que entender as causas e os sentidos
dos suicídios indígenas é uma questão bastante multifacetada, colocando em dúvida a
aplicabilidade universal de pressupostos e conclusões da Sociologia para povos não-
europeizados. Além disso, há a dificuldade de transpor o mesmo quadro teórico para cada povo
indígena, dotado de cultura diferente dos demais, de modo que a semelhança entre tendências
estatísticas esconde uma diversidade de valores, causas e significados, dependendo do povo
indígena estudado - são mais de 240 povos indígenas no Brasil.
Os estudos mostram uma crítica à colonização como ligada às causas do suicídio, uma possível
identificação maior de certos casos com o “suicídio fatalista” de Durkheim , e também
impossibilidades de aplicação do método durkheimiano, por diferentes motivos. Um deles seria o
fato dos suicídios indígenas se situarem muitas vezes “entre” os tipos definidos por Durkheim,
aceitando diversas explicações causais. Outro motivo é que o próprio conceito de suicídio -
morte posta em prática pela própria vítima de modo consciente de seu resultado - é colocado em
cheque diante de uma série de dificuldades: 1) a definição de intencionalidade, 2) o significado da
morte 3) a difícil separação entre suicídio e homicídio. Estas dificuldades decorrem da
insuficiência do conceito de “indivíduo” para os povos ameríndios. Nesse sentido, a Antropologia
oferece alternativas a partir de conceitos como “pessoa” e “divíduo”.
Numa análise original sobre o suicídio por envenenamento entre os indígenas Sorowaha (falantes
de uma língua Arawa e habitantes da bacia do rio Purus, Amazonas, Brasil), o antropólogo João
Dal Poz traz as preocupações de Halbwachs sobre os significados sociais das situações que
envolvem o ato suicida e a baixa utilidade da comparação estatística quando se tratam de
sociedades de magnitude tão pequena: aproximadamente 145 pessoas, com uma taxa de
suicídio tão elevada, 2% de toda a população, sendo que de 1980 a 2007 os suicídios por
envenenamento foram responsáveis por 68,8% de todos os óbitos. A maioria desses suicídios é
entre jovens, rapazes e moças dos 14 aos 28 anos. Como dizem os Sorowaha, “não é bom
morrer velho, é bom morrer jovem e forte”.
Segundo Dal Poz, o que chamou de “suicídio tópico” teria características do “suicídio fatalista”
de Durkheim: uma afirmação integral tanto da “individualidade” quanto da “sociedade”, de
acordo com o seguinte quadro:
Egoísta + -
Altruísta - +
Anômico - -
Fatalista + +
Todavia, Dal Poz critica a visão durkheimiana sobre o suicídio como resultado geralmente
indesejado do funcionamento da sociedade devido ao excesso ou à falta de normas. O suicídio
sorowaha seria ele mesmo uma forma de sociabilidade e uma cosmologia, que define tanto as
separações internas da sociedade quanto sua totalidade para além do humano.
O povo Sorowaha é uma junção de vários sub-grupos que viviam separadamente num vasto
território que, após massacres e perdas de terras para extrativistas não-indígenas, foram
obrigados a viver juntos numa mesma terra indígena, o que gerou uma situação crítica, alterando
seus padrões sociológicos, tanto em termos de adensamento populacional quanto em termos de
convívio com outros que antes eram considerados estrangeiros ou inimigos. Isto é um dado
importante pois aumentou a convivência entre consanguíneos e afins, que é mais tensa na
juventude, quando ocorrem os casamentos.
O suicídio sorowaha segue um roteiro que, se cumprido à risca, acarreta uma reação em cadeia
de mais suicídios: algum acontecimento (casamento, viuvez, briga de casal, questões sexuais,
problemas com afins, brigas com parentes) teria provocado a irritação da pessoa, que fica muito
brava; a partir daí a pessoa começa a destruir seus pertences (redes, ferramentas, cerâmicas); as
demais pessoas deixam-na extravasar sua agressividade, fingindo desinteresse; a pessoa então
dá gritos e/ou sai correndo de casa em direção a roça para extrair raízes de timbó (veneno usado
para a pesca); parentes e pessoas próximas perseguem a pessoa para tentar impedi-la ou
arrancar dela o timbó; se não conseguem, a pessoa ingere o timbó misturado com água do rio;
depois volta correndo para a casa; caso não desfaleça no caminho, seus parentes - muito
zangados com ela - tentam provocar-lhe vômito; no caso de falecimento, aumenta a zanga,
comoção e choro dos parentes; por causa disso, estes, principalmente os “consanguíneos”, mas
também amigos e afins, podem tentar se suicidar, o que pode acarretar uma progressão
geométrica de suicídios em série, cada vez mais difíceis de serem contidos devido a progressiva
falta de pessoas para impedir cada novo suicídio. O suicídio sorowaha agencia a força coletiva e
a multiplica de modo fatal.
Dal Poz interpreta esse movimento como resultado do confinamento de grupos diferentes no
mesmo espaço: se antes viviam separados e praticavam sua agressividade através da feitiçaria
contra coletivos espacialmente distantes - como fazem outros povos da mesma região - a
necessidade de convivência de todos numa mesma aldeia teria criado uma intensa e centrípeta
(uso aqui uma terminologia de Pierre Clastres) força de coesão social. Todavia, dada a força
contrária, centrífuga, de divisão, característica de diversos povos amazônicos, o resultado seriam
os suicídios.
O antropólogo Spensy Pimentel identifica entre os guarani-kaiowa tanto uma forma de “suicídio
fatalista”, chamado também pela literatura antropológica de “sansônico”, quanto causas
múltiplas para o suicídio, que fazem com que tal suicídio não caiba no quadro durkheimiano
esquematizado por Dal Poz, de modo a situar-se “entre as linhas” que dividem os tipos de
suicídio. Assim como Dal Poz, Pimentel encontra na crise territorial, devido à separação entre
famílias em áreas díspares e terras indígenas pequenas, muitas vezes insuficientes para a
sobrevivência, uma motivação para o suicídio, o que seria confirmado pelas explicações dadas
pelos velhos segundo as quais não seria mais possível a prática do bem viver como antigamente.
Os Guarani-Kaiowá, juntamente com outros grupos guarani, constituem um dos povos indígenas
mais populosos da América do Sul, dividindo-se entre o Paraguai e áreas do Centro-Oeste,
Sudeste e Sul do Brasil, muitos deles tendo vivido numa grande comunidade política organizada
pelos Jesuítas no início da era colonial, e depois perseguidos e dispersos, tendo perdido suas
terras e parte do acesso a suas rotas tradicionais. Apesar disso, continuam circulando e viajando
por vastas áreas do sul da América do Sul.
Segundo Pimentel, a elevada taxa de suicídio decorrente dessa situação seria interpretada pelos
anciãos como fundada numa lesão à integridade mental dos jovens, obrigados a condições de
vida desumanas devido ao problema territorial, o que o autor caracteriza como genocídio.
Genocídio, segundo a Lei no .2.889, de 01 de outubro de 1956, ainda em vigência -, é a tentativa
de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, o que inclui a)
matar membros do grupo; b) causar lesão à integridade racial ou física de membros do grupo; c)
submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a
destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio
do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. O quesito (c)
é acionado para caracterizar certos suicídios indígenas como “genocídio” causado pelos não-
indígenas.
O genocídio também foi considerado associado ao suicídio no caso dos indígenas aikewara,
falantes de uma língua tupi-guarani no sudoeste do Pará, onde foram obrigados, durante a
ditadura militar (1972-1973) a ceder suas terras a fazendeiros que auxiliavam o exército contra a
guerrilha do Araguaia. O antropólogo Orlando Calheiros trata como fruto do genocídio o caso de
enforcamento de um jovem devido ao seu gosto pelo consumo de mercadorias e modas urbanas,
transformando-o quase em um espectro, como são as pessoas que vivem na cidade, segundo os
povo Aikewara, chamadas de “espectros-por-engano” (já que ainda não morreram). Como
espectros, são desprovidos de desejos, não seguem os próprios desejos mas sim o desejo do
“Inimigo”, o “dono-das-coisas”, enfeitiçados pelos objetos industriais que visam acumular.
Segundo contam os Aikewara, muito antigamente eles também viviam na cidade, mas de lá
fugiram, em busca da vida verdadeira. Assim, para escapar desta morte em vida de “espectro-
por-engano”, o caminho para a vida verdadeira, para o mencionado jovem, foi se matar e assim
levar consigo um inimigo: ele próprio.
Ao analizar o caso sorowaha, o antropólogo Miguel Aparício afirma ser problemático caracterizar
a morte por ingestão de timbó como “suicídio”, já que ao tomar o veneno a pessoa daria início a
uma transformação xamânica: ao invés de predador (pescador), se transformaria em presa
(pesca), abandonando a partir daí sua perspectiva humana e adotando uma outra perspectiva:
torna-se outro, deixa de ser si mesmo. Segundo Aparício, isso advém de uma mudança histórica
e uma adequação de sua cosmologia costumeira - ligada aos conflitos xamânicos e à
transformação em outro - à realidade atual do confinamento territorial, já que antigamente as
mortes eram causadas pela interferência, na pessoa, de uma ação estrangeira, o feitiço causado
por um xamã inimigo, fazendo com que a vítima deixasse de ser predadora e se tornasse presa.
Com esta mudança, agora é pela raiva suicida que a própria pessoa deixa de ser ela mesma,
deixa de ser uma parente ou amiga e se torna, naquele momento, um inimigo. Assim, seria
inapropriado chamar de “suicídio” um ato de uma pessoa que já não é ela mesma.
Os mesmos pesquisadores relembram estudos sobre os Tikuna, um dos mais populosos povos
ameríndios do território nacional, falante de uma língua isolada que habita a fronteira entre o
Brasil e o Peru. Entre eles o suicídio também pode ser causado pela inveja e pela ação xamânica,
afetando não só os jovens mas também certos adultos em posições políticas importantes.
Já o povo indígena Karajá, habitante das margens do rio Araguaia (Mato Grosso, Goiás e
Tocantins), falante de uma língua do tronco Macro-Jê, também viveu em épocas recentes surtos
de suicídio por enforcamentos, principalmente de rapazes aptos a se casar ou recém-casados,
em momentos diferentes ao longo dos anos de 2010 e 2011, que foram interpretados de distintas
formas e podem ter múltiplas causas.
Segundo esta última explicação, apenas a primeira morte por enforcamento de um jovem em
2010 (a mesma estudada por Helena Schiel) teria sido um suicídio de fato, todavia as demais
seriam fruto de feitiçaria. Feiticeiros teriam entrado em contato com a corda usada pelo suicida e
assim captado habilidades mágicas que seriam passadas “de mão em mão”, para outros
feiticeiros, que começaram a usar essa técnica como uma nova “moda” de causar dano às
pessoas. Esta moda seria semelhante a outras modas feiticeiras do passado, que não incluíam
suicídio e eram menos letais, como um surto de “loucura” que fazia com que jovens pegassem
armas e tentassem assassinar seus parentes.
Quanto à concentração de suicídios entre jovens, segundo os Karajá, estes estariam mais
suscetíveis a feitiços por terem a cabeça mais “fraca” que os adultos. Uma prova disso seria o
fato de um certo adulto, que ouvia vozes dizendo para se matar, ter conseguido evitar o álcool e
outras formas de desencadeamento do desejo suicida e, em conjunto com práticas xamânicas,
ter se “curado” do feitiço suicida.
Todos estes exemplos mostram que uma série de elementos constitutivos da individualidade que
garantiriam que o suicídio fosse um ato próprio e consciente contra si mesmo não se aplicam: a
intencionalidade pode estar abalada (a pessoa pode estar fora de si, ter se tornado outra ou ter
perdido a razão, inclusive pelo uso de substâncias como o álcool); a morte pode ser uma outra
vida ou mesmo a vida verdadeira (como no caso dos Sorowaha e dos Aikewara); a morte pode
ter sido causada pela ação de outra pessoa ou entidade (feitiço e xamanismo).
Indo um pouco além do sugerido por Seeger, minha pesquisa sobre o povo Xavante (falante de
uma língua Macro-Jê que hoje habita terras no leste do Mato Grosso) mostra como tal
comunidade também ocorre fora do parentesco, como nos chamados “grupos de idade”, que
congregam várias pessoas da mesma faixa etária. Assim, a pessoa se constitui por vínculos
cruzados, não só através da rede de parentesco mas também através de outros grupos que não
o de parentesco (como os grupos de idade), sendo ela própria dividida, divídua.
Entre os Tikuna, a pessoa enraivecida, muitas vezes tendo “perdido a razão”, talvez pelo
consumo de álcool, tornada “suicida”, estaria agindo contra a própria família, segundo a
antropóloga Regia Erthal.
No caso das mortes karajá, posso sugerir também uma extensão do “suicídio” sobre o grupo de
idade: ora, assim como os Xavante, os Karajá se dividem em grupos de idade que comem juntos
e trabalham juntos, conforme o antropólogo André Toral. Jovens recém-casados fazem parte do
mesmo grupo - entre eles se encontra uma das maiores taxas de suicídio karajá…
Aparte disso, no caso karajá, como apontado por Eduardo Nunes, também existe um contágio
corporal entre os feiticeiros, independente da idade, que vão passando “de mão em mão” a
técnica do feitiço. O próprio feitiço seria uma forma de contágio corporal, através do toque do
feiticeiro: segundo a história do homem adulto que se “curou” do feitiço que lhe causava desejo
de morte, ele foi tocado na nuca por um jovem que todos diziam ser feiticeiro quando estavam na
chamada “casa dos homens”, local onde vários grupos de idade masculinos se misturam.
Suicídio e poder
A ideia de “suicídio” aparece mais de uma vez nos estudos Pierre Clastres (1934-1977) sobre
formas de contra-poder ameríndias. Uma delas se refere a profetas e outra a guerreiros.
O autor identificou no profetismo tupinambá, em busca da chamada “Terra Sem Males”, durante
os dois primeiros séculos da colonização portuguesa no Brasil, uma espécie de “quase suicídio
coletivo”. Os Tupinambá eram povos que faziam guerras de vingança para a captura de poucos
inimigos que eram trazidos para a aldeia para um ritual canibal. A partir de um certo ponto de
acirramento dessas guerras de vingança, os chefes guerreiros passaram a ter muito poder, contra
o qual surgiriam os movimentos proféticos. Esses foram grandes migrações em massa, de várias
aldeias guiadas por pessoas que prometiam levar o povo à “Terra Sem Males” na qual não
precisariam mais trabalhar e viveriam uma vida de festas e vitórias. Recusando as expedições
guerreiras e mesmo o trabalho cotidiano, muitos morriam nessas migrações devido à falta de
comida e pela atividade incessante de cantos e danças que buscavam realizar o ideal prometido.
Este “ser para a morte” evitaria que guerreiros como ele voltassem sua força contra a própria
sociedade, caso em que se tornariam uma classe dominante, segundo Clastres. O impulso
incessante de aventurarem-se em ataques cada vez mais ousados e muitas vezes solitários a
inimigos, impedia que tal classe se estabelecesse. Em muitos casos na América indígena, esses
guerreiros aventureiros eram instados aos ataques em suas bebedeiras (de modo que a
embriaguês alcoólica é outro ponto em comum com certos suicídios atuais), saindo por conta
própria ou em grupos pequenos para atacar inimigos sem a anuência ou participação do resto
dos demais. Normalmente eram da mesma faixa etária daqueles que mais cometem suicídios
dentre vários povos ameríndios atualmente: jovens rapazes.
Muitos dos casos acima mencionados relacionam os “suicídios” a um momento histórico no qual
as lutas e escaramuças entre coletivos diferentes e dispersos num vasto território foram
substituídas pelo confinamento territorial, com uma presença maciça de não-indígenas nas
cercanias, tanto quanto do Estado biopolítico na vigilância e controle dos povos. Isso teria levado
praticamente à ausência de guerras entre indígenas - mas não teria evitado ataques e massacres
causados por não-indígenas, dada a situação dos ameríndios, como diria Mbembe sobre a
necropolítica, dentro e fora da lei.
Este novo período histórico estaria ligado ao suicídio guarani “sansônico”, segundo Pimentel.
Suicídio associado também a uma recusa de viver num mundo em que não há lugar para outros
mundos, revelando inconformismo e insubmissão, enfrentamento do destino e a uma busca por
liberdade, contra o excesso de autoridades confinadas num mesmo território pequeno.
O suicídio karajá que teria sido somente o primeiro caso de enforcamento - de modo que os
demais teriam sido causados por feitiços - foi realizado por um jovem que era neto de um chefe
de aldeia, de uma família de prestígio e que, talvez noutro momento histórico, estaria em plena
idade guerreira. Este jovem recém casado, como é o costume entre os Karajá, foi obrigado a se
mudar para a casa da esposa, numa aldeia distante. Devido às atuais limitações territoriais,
dificuldades econômicas e a novas atividades (como a escola do Estado na aldeia), os rapazes
teriam menos momentos de isolamento e relaxamento diante das famílias de seus afins, sendo
obrigados a passar muito tempo naquele ambiente novo e ainda hostil.
Este jovem, segundo aponta Schiel, estava cansado de ser governado pela família de sua esposa
e pensava em abandoná-la, mas a regra karajá afirma que o marido que abandonasse a esposa
deveria tomar uma surra de seus cunhados - nos braços, pernas e costas. No caso de famílias de
prestígio, seus parentes também poderiam ser surrados. Assim, segundo alegações prévias do
jovem, para evitar esta situação que causaria enorme vergonha para sua família, num ato de
recusa da coerção promovida pelos seus afins, agiu contra o desejo alheio e seguiu seu próprio,
enforcando-se.
Esta recusa à coerção por parte dos afins apresenta um vetor de movimento semelhante àquele
dos profetas tupinambá que contrariava o aumento de poder dos chefes de guerra analisados
por Pierre Clastres.
Segundo diversas pesquisas sobre lideranças ameríndias, como a de Pierre Clastres, líderes
devem ser mais generosos do que os demais, ao invés de acumular bens e poder. Recusar a
pessoas de prestígio um poder excessivo também seria uma motivação dos feitiços que
causariam “suicídio” em adultos entre os Tikuna, por exemplo. Esses casos seriam efeito da
“inveja” contra a pessoa que acumulasse bens ou poder.
Enfim, diversas práticas ameríndias que se aproximam do suicídio podem ser interpretadas por
um viés político alternativo, envolvendo formas de insubmissão e busca por outros mundos
possíveis. Apesar da estatística não servir para explicar os variados casos, aí ela sinaliza uma
discrepância dos povos indígenas em relação aos padrões da biopolítica colonizadora, sugerindo
entre ameríndios uma outra forma de relacionar vida e poder. A compreensão desta outra forma -
ou outras formas! -, entretanto, implica questionar as próprias noções de indivíduo e suicídio.
***
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