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atividades culturais que vêm encontrando dificuldades

artigo crescentes de sobrevivência em função de critérios es-


tritos de mercado (público, rentabilidade etc.) contri-
bui para a tônica marcadamente "conservacionista" da
política cultural oficial.
Tais tendências são responsáveis, em última
Teoria e prática da análise, pela postura defensiva da iniciativa governa-
mental na área cultural, deixando a cargo da empresa
política cultural oficial no privada as melhores oportunidades de investimento e

Brasil faturamento no campo da produção cultural. Parece


haver, assim, uma segmentação irreversível do mercado
de bens culturais. Cabe aos grandes empreendedores
particulares explorar as oportunidades de investimento
Sérg;o Miceli naquelas atividades e frentes de expansão capazes de
Professor titular 110 Departamento de Fundamentos assegurar as mais elevadas taxas de retorno sobre o
Sociais e Jurtdtcos da AdministraÇlÍo e chefe do capital, tais como os fascículos, a televisão, as estações
Núcleo de Pesquisas e Publicações da EAESP/FGY.
de rádio FM, discos, as fitas cassete ou o vídeo-cassete,
destinado aos modernos meios de reprodução eletrôni-
"Uma pequena elite intelectual política e econômi- ca. Os responsáveis pela iniciativa pública na área
ca pode conduzir, durante algum tempo, o proces- cultural se incumbiriam, então, das tarefas defensivas
so do desenvolvimento. Mas serâ impossível a de proteção e conservação do acervo histórico e artís-
permanência prolongada de tal situação. g preciso tico "nacional" já indexado como material "museolé-
que todos se beneficiem dos resultados alcançados. gico", bem como daqueles gêneros e eventos culturais
E para esse feito é necessário que todos, igual- que só conseguem se reproduzir às custas da proteção
mente, participem da cultura nacional." (Trecho governamental, como, por exemplo, a ópera, o balé
do documento Política Nacional de Cultura, clássico, o teatro declamado, a música erudita, e assim
Brastlia, MEC, 1975, p. 9.) por diante. .
A despeito dessa tendência de longo prazo quanto
às prioridades da política pública na área cultural, ao
longo da década de 70 ocorreram transformações impor-
tantes nos conteúdos e orientações da política cultural
no tocante ao trabalho de conservação do patrimônio
histórico e artístico "nacional".
Dentre os fatores que contribuíram para tal
situação, o primeiro foi, sem dúvida, o alheamento
Alguns estudiosos já se referiram ao Estado como de importantes segmentos de intelectuais e artistas
"o grande mecenas da cultura brasileira nos anos 70".1 em relação às iniciativas governamentais. A inseguran-
Tal postura parece procedente, caso se entenda por ça e o medo gerados pelos desmandos cometidos pelos
mecenato a disposição em subsidiar intelectuais e artis- serviços de segurança e censura, quer sobre pessoas,
tas que não encontram colocação segura no mercado quer sobre obras, acabaram se convertendo em óbices
para os bens que produzem. Ou então, como parece à colaboração com os esforços dos dirigentes culturais
ocorrer no Brasil e em inúmeros outros países, o do regime. Tais dificuldades não se cristalizaram a esse
"mecenato" governamental sustenta atividades e gêne- ponto em outras frentes da produção intelectual, como
ros artísticos às voltas com um público declinante no caso das ciências sociais, em virtude da restrita visi-
e que passam a depender crescentemente da proteção bilidade social e da repercussão pública "localizada"
oficial. Desta maneira, a presença do Estado revela-se desse tipo de produção. Embora não tenha havido o
proporcional às dificuldades de mercado, ou melhor, destroçamento de instituições ou o desmantelamento
à impossibilidade de auto financiamento para uma
das atividades culturais, a exemplo do que ocorreu na
dada atividade de produção intelectual ou artística.
Argentina, no Chile e no Uruguai, inúmeros empreen-
Quanto maiores se mostram as dificuldades de comer-
dimentos acabaram se revelando inviáveis, seja por
cialização de um determinado gênero de produção
ingerência direta dos órgãos e agentes de censura, seja
artística ou intelectual no âmbito do mercado de bens
por decisão própria dos artistas e intelectuais. Circuns-
culturais, mais densas tendem a se tornar as pressões
tâncias dessa ordem foram progressivamente cerceando
dos produtores e especialistas, com vistas a ampliar
a atuação dos órgãos oficiais nas frentes de expansão
as faixas de atendimento material e institucional por da produção cultural. 2
parte da iniciativa pública. e.
justamente por força O segundo fator relevante para a ênfase governa-
dessa tendência ''previdenciária'' que os setores pro- mental na política de preservação "patrimonial" pren-
dutivos mais dependentes dos subsídios oficiais na de-se à sensibilização de setores de peso no interior da
área cultural buscam justificar esse apoio, salientando coalízação dirigente para a importância política de se
o valor da atividade em questão para o sucesso de ampliar a presença pública na área de produção cultu-
uma política cultural "patrimonialista", que "adquire ral. A expansão colossal de grandes redes privadas de
assim o status de conteúdo "universal" das políticas entretenimento e informação patenteou ainda mais a
públicas no campo da cultura. Quer dizer, o fato de a precariedade de recursos e de pessoal da infra-estrutura
intervenção do Estado ocorrer precisamente naquelas institucional ofícíal, Nesse sentido, a atuação gover-

Rev. Adm. Empr., Rio ele JlDeiro, 24 (I): 27-31 .;an./mar.1984


namental no campo da produção cultural caracteri- considerável, tendo alcançado um estágio avançado
zou-se por uma postura eminentemente reativa e de diferenciação de ofícios nas respectivas "classes"
defensiva, estando muito aquém do ritmo de desenvol- (associações de produtores, sindicatos de atores e téc-
vimento logrado em outras áreas de investimento social nicos, associações de críticos etc.), tais gêneros corres-
privilegiadaspelo poder público. Ao contrário do que pondem a conjunturas passadas na história da produção
se costuma dizer, a atitude oficial consistiu em marcar cultural.
sua presença e intervir de modo consistente sobre os Segundo as evidências disponíveis, o público para
rumos da atividade intelectual e artística erudita, dei- tais atividades encontra-se em declínio, inclusive em
xando os gêneros e veículos mais rentáveis como "re- diversos países desenvolvidos (EUA, França etc.).
serva" cativa da iniciativaprivada. Tal tendência reforça-se ainda mais dada a obsolescêncía
Ainda dentre esses condicionantes de ordem con- dos esquemas comerciais de exibição teatrais e cinema-
juntural, o marketing do regime constituiu-se decerto tográficos. Diante dessa situação, os grupos de interesse
na .motlvação decisiva das políticas públicas adotadas atuantes em cada uma dessas atividades passam cada
na área cultural. A chamada política de "abertura" acar- vez mais a requerer o auxflío do Estado, de maneira a
retava forçosamente a exigência de melhorar a imagem compensar os prejuízos que a carência de público e a
de marca do regime, quer dizer, requeria a definição de. conseqüente perda de sustentação no mercado provo-
espaços institucionais para os quais fosse possível canali- cam.
zar recursos em favor da nova geração de produtores Como se sabe, essas tendências não são peculiares ou
culturais naqueles gêneros mais dependentes do apoio restritas ao caso brasileiro. Tanto nos EUA como
governamental. A preservação do patrimônio histórico e na maioria dos países europeus, as despesas de consumo
artístico converte-se então num terreno de consenso em cultural das famílias concentram-se crescentemente
torno do qual é possível fazer convergir os esforços de na aquisição de "máquinas culturais" (aparelhos de
agentes cujos interesses e motivações certamente colidi- televisão, toca-discos, receptores de rádio para casa e
riam em gêneros de produção cultural em que a proble- para carro), seguida pela compra de publicações, de
mática estivesse fortemente referida a questões da atua- discos e fitas, de jornais, colocando-se em último lugar
lidade social e política. O patrimônio constitui, portan- a quantia diminuta destinada a ingressos para teatro,
to, o repositório de obras do passado sobre cujo interes- cinema e espetáculos congêneres." Embora o conjunto
se histórico, documental, e por vezes estético, não paira dessas despesas não ultrapasse o teto de s% do consumo
qualquer dúvida. Trata-se de obras e monumentos que, global das famílias, a parcela gasta com atividades de
no mais das vezes,já se encontram dissociadosdas expe- lazer vem-se apliando consistentemente nos últimos
riências e interesses sociaisque lhes deram origem. 20 anos, sendo apenas superada pelos gastos com saúde
Alguns defensores da postura "patrimonial" na e telecomunicações. E o montante da renda domiciliar
área cultural oficial justificam tal ênfase em termos de alocado na aquisição de equipamentos culturais vem
uma delegação que a sociedade faz ao Governo, indi- se expandindo, em detrimento da parcela de recursos
cando ao mesmo tempo os sítios, monumentos e obras canalizada para espetáculosfora de casa(concertos, peças,
a serem preservados. Não obstante, desde os primeiros filmes etc.). Tais evidênciascaracterizam uma "cultura"
anos de vigência do novo regime, verifica-seo empenho praticada a domicílio às custas da relegação daquelas
de diversos setores dirigentes em redesenhar algumas atividades culturais praticadas no âmbito de equipa-
linguagens e meios de comunicação coletivos. Basta mentos coletivos. Não é de se estranhar, por conse-
mencionar a iniciativa do Banco Central de modificar o guinte, que o resultado dessa tendência nos grandes
leiaute do papel-moeda, as campanhas de relações pú- centros urbanos seja o progressivo déficit dos grupos
blicas, desencadeadas durante o governo Médici, explo- de artistas e intelectuais que se valem desses espaços
rando os dividendos políticos de eventos como a Copa coletivos (teatros, óperas, museus, salas de concerto
do Mundo, a reforma dos Correios e Telégrafos, e a etc.).
propaganda maciça das obras conspícuas do "Brasil Eis algumas das determinações históricas que estão
Grande" (Itaipu, ponte Rio-Niterói etc.) na raiz do privilegiamento da vertente "patrimonial"
O elemento propulsor do trabalho cultural desen- tanto no Brasil como nos EUA e em países europeus.
volvido pelas instituições públicas federais deriva de uma Quase todas as atividades artísticas que dão prejuízo
postura eminentemente patrimonial, que se volta quer passaram, nas duas últimas décadas, a ser subvencionadas
para a restauração de monumentos de "pedra e cal" pelo poder público, fazendo com que o montante mais
e obras de arte do passado (PCH, IPHAN, SPHAN etc.), elevado de recursos canalizado para a área cultural seja
quer para a "conservação" de algumas atividades artís- alocado a serviços incumbidos do trabalho de preserva-
ticas (artes plásticas, música erudita etc.), quer para a ção e restauração do legado histórico e artfstico."
"indexação" de elementos materiais e outros associados A explicação para essa tendência envolve complexa
às manifestações populares (folclore), quer enfim para argumentação. Em primeiro lugar, a preservação de inú-
a "proteção" material e institucional de produtores meras atividades artísticas e intelectuais, bem como as
cujas atividades vêm perdendo terreno no mercado de condições de reprodução de ofícios e habilidades artesa-
bens culturais (teatro, cinema). Isto significa que a nais requeridos por essas mesmas atividades deveram-se
postura ''patrimonial'' permeía inclusive uma parcela ao fato de se terem tornado objeto de consumo exclusi-
substancial das atividades desenvolvidas pelas institui- vo das frações cultas dos grupos dirigentes. O apoio
ções pertencentes à chamada vertente "executiva" do material e institucional com que têm sido aquinhoa-
MEC (Funarte, Embrafilme, SNT, INL). Ainda que das mostra-se proporcional força social e política dos
â

alguns setores de atividade, como por exemplo o teatro, grupos de elite fruidores desse gênero de bens. Diante
e sobretudo o cinema, continuem atraindo um público da impossibilidade de o mecenato continuar em mãos
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Revista de Administração de Empresas
de algumas poucas famflías ricas, dado o vulto de recur- produtores de cultura profissionais, quer enfim em rmo
sos necessários para subsidiar tais atividades culturais de do tipo de público-alvo cujas demandas seriam acolhi-
luxo, o trabalho de preservação, restauração e dífusão das prioritariamente pelo poder público na área cultural.
do acervo hist6ricoe artístico foi aos poucos sendo en- Para simplificar a demonstração, basta contrapor os con-
tregue à responsabilidade de instituições e técnicos teúdos alternativos do que se entende por "política
públicos especializados", no trato de bens culturais. cultural pública", tal como acabou sendo construída
Mesmo em países capitalistas mais desenvolvidos do que e operacionalizada durante as gestões dos ministros Ney
o Brasil e dotados de uma infra-estrutura diversificada e Braga e Eduardo Portela.
sofisticada de produção, difusão e consumo cultural, No intuito de qualificar a postura oficial implantada
como os EUA e a França, o retraimento dos grandes ao tempo da gestão Ney Braga no MEC, tomemos como
mecenas privados e, conseqüentemente, a influência foco de análise o documento-síntese Politica Nacional
declinante das fundações particulares acabaram levando de Cultura (1975). Dentre as diretrizes dessa política,
à criação de duas poderosas fundações públicas na área a postura de salvaguarda do ''patrimônio histórico e
cultural nos EUA, e ao fortalecimento do Ministério da artístico" configura a única esfera de atividade dos
Cultura e à multiplicação de entidades oficiais culturais órgãos e agentes do poder público. A noção de patrimô-
no caso francês. S A despeito da aferição permanente nio envolve tanto o acervo associado à história dos gru-
que fazem das preferências dos usuários em matéria pos dirigentes como as tradições e costumes das classes
de consumo cultural, verifica-se nos EUA e em outros populares, definidas como folclore ou populãrio."
países europeus um processo de "estatízação" dos Postura idêntica caracteriza a qualificação dos objetivos.
mecanismos,' entidades, colegiados e agentes direta- A PNC visa "a preservação dos bens de valor cultural",
mente ligados às instâncias decis6rias na área de produ- no intuito "de preservar um núcleo irredutível de cultura
ção, difusão e consumo cultural. autônoma que imprima feição pr6pria ao teor de vida do
De outro lado, a força política e cultural da vertente brasileiro". Pretende-se, por essa via, erigir um dique
"patrimonial" deriva da disjunção crescente entre o "caracteristicamente nosso", em condições de auxiliar
produto veiculado pelos meios de comunicação de a triagem de traços culturais "perversos" produzidos
massa operando em bases comerciais capitalistas e os pelo desenvolvimento urbano-industrial e de sustar a
bens culturais subsidiados a fundo perdido por entidades "imposição maciça, através dos meios de comunicação,
governamentais ou por outras modalidades oficiosas de dos valores estrangeiros". A meta "patrimonial" serve,
mecenato. Na raiz desse processo de mudança cultural ao mesmo tempo, para definir pautas próprias de atua-
situa-se a crise de legitimidade com que se defronta o ção governamental e suprir de conteúdos e significações
mercado de bens culturais, cindido pela cerrada com- da "alma brasileira" as metas de segurança e desenvol-
petição entre os grandes empresários modernos da ati- vimento. Na parte descritiva dos componentes básicos
'vidade cultural. As principais redes privadas de entre- da PNC, é possível discernir os dois campos privilegiados
tenimento e informação, as entidades governamentais, aos quais se deve cingir prioritariamente a atuação dos
as confissões religiosas e os partidos políticos buscam organismos públicos. De um lado, os diversos gêneros
impor seus padrões de legitimidade e suas pr6prias e atividades da chamada cultura legítima, que consti-
tuem, em última instância, o que se entende' por "patri-
instâncias de consagração.
Sem entrar no mérito da questão, importa reiterar mônio histórico e artístico" e, de outro, o espectro
que uma parcela significativa dos recursos oficiais diversificado de manifestações legado pelas classes
carreados para a área de produção cultural é hoje cana- subalternas, ou melhor, o "patrimônio menor" deixa-
lizada para aquelas frentes de trabalho marcadamente do pelas classes populares (o folclore).
"patrimoniais", ou, então, acaba sendo repassada a Os documentos e textos produzidos ao longo da
intelectuais e artistas às voltas com a preservação de gê- gestão Portela lidam com pares conceituais idênticos,
neros da produção cultural que deixaram de contar com mas com sinais trocados. 7 Haveria, de uma parte,
as condições materiais e institucionais que lhes deram aquelas atividades que constituem o campo da "cultura
existência, continuidade e sentido. Destarte, a parcela de elite", destinadas à fruição dos segmentos educados
majoritária dos produtores atuantes nos setores de arte e, de outra, quaisquer práticas ou formas de expressão
erudita (das artes cênicas, balé, teatro, 6pera, dança, associadas aos estratos de baixa renda, destituídos de
passando pela música erudita, até as artes plásticas), trunfos materiais, educacionais ou políticos. Ao invés
devota-se a uma atividade predominantemente "museo- de a ênfase recair sobre a meta "patrimonial" a ser lo-
lógica". Daí as demandas insistentes para a montagem grada em ambas as frentes de produção cultural - seja
de centros de documentação, bancos de dados e referên- a frente de profissionais da cultura envolvidos com o
cias, bibliotecas especializadas, arquivos iconográficos, acervo passado e presente da classe dirigente, seja a
museus da imagem e do som, e similares. Dado o vulto frente indiferenciada do folclore como acervo "cons-
considerável dos recursos exigidos para a implantação e truído" e "depurado" do passado das classes popu-
operação desse tipo de empreendimentos, o poder lares - a orientação em pauta privilegia as manifesta-
público também acaba arcando com o ônus de subsi- ções contemporâneas das classes populares valendo-se
diá-los. das expressões "cultura da sobrevivência" ou "cultura
A hist6ria recente das instituições culturais federais da subsistência". Não se trata, é claro, de um enfren-
revela um confronto manifesto entre orientações doutri- tamento algo bizantino entre os defensores da superio-
nárias nos marcos do que se convencionou entender ridade estética ou histórico-documental do acervo legado
por "política cultural". As diferenças de postura ocor- pelas classes dirigentes e os porta-vozes de uma nova era
rem quer em função dos conteúdos privilegiàdos da cultural de valorização das coisas do povo. O alvo
atividade cultural, quer por força do papel reservado aos político da nova orientação doutrinária não deixa mar-

Teoei« e PrdtiCtI diz PoIftictI 29


gem a dúvidas. Era preciso resistir às tendências expan- também para o antigo IPHAN o status de secretaria.
sionistas e, ao que tudo leva a crer, vitoriosas, do pessoal Conforme declarou um dos entrevistados, "primeiro
"conservacionista", ao veio "museolôgico" dos dirigen- Aluísio demonstrou que era preciso separar, para em se-
tes da vertente patrimonial no interior da estrutura guida demonstrar que era preciso unir", referindo-se
administrativa do MEC. Em lugar de carregar nas às duas etapas por que passou o remanejamento ad-
tintas do "nacional", do legado "comum" e "bra- ministrativo da área cultural do MEC. Ciosos do espaço
sileiro ". os teóricos da gestão Portela valorizam o traço de autonomia que já haviam conquistado, os dirigentes
"regional" e "local", sede do que é "autêntico" e dos institutos e fundações, por sua vez, acabaram refor-
"nosso". Ao recusar uma definição estrita da atividade çando a frente de resistência aos projetos centralistas
cultural vigente numa economia de mercado," esse gru- de "colaboração" que lhes fazia a cúpula da Seac.
po de gestores da nova orientação de política cultural A essa altura, o jeito era desistir de contar com o
tenderá, mesmo sem o desejar, a oferecer resistência apoio dos institutos e fundações que, da perspectiva dos
às demandas dos artistas e intelectuais mais dependentes mentores da Seac, tendiam a enxergar o MEC como me-
dos subsídios governamentais. ro intennediário para repasse de recursos ou, então, co-
O contlito entre uma vertente "executiva" e uma mo agência governamental que pagava bom preço pelos
vertente "patrimonial" remonta aos primeiros tempos de serviços que viessem a prestar ao próprio ministério, O
atuação do PAr. persistindo até às vésperas da criação pessoal da Seac procurou implementar as novas diretri-
da Funarte, Naquele momento, a diretriz firmada pelos zes - "descentralização", "democratização", "deselitiza-
gestores do PAC consistiu na promoção de "eventos", ção", "planejamento participativo", eis algumas das pala-
no intuito deliberado de diferenciar esse tipo de inicia- vras de ordem - através dos chamados "projetos exem-
tiva da política de "tombamento". O êxito dos empre- plares", a serem implantados nos estados, mormente nos
endimentos do PAC esteve consistentemente calcado mais carentes. A meta era o atendimento das "popula-
numa aliança com aqueles setores de produtores pro- ções de baixa renda", em cooperação com as secretarias
fissionais carentes de incentivos e recursos governamen- estaduais de cultura. A maneira privilegiada de atuar. era
tais. Em outras palavras, o sucesso do PAC e, mais "fazer a cabeça do pessoal das secretarias que seriam res-
tarde. da Funarte, a repercussão favorável na imprensa e ponsáveis pela absorção e realização dos projetos". Esse
junto aos próprios artistas e intelectuais, têm muito a esforço de aproximação se concretizou através de reu-
ver com a ampliação das oportunidades que então se niões com os funcionários das secretarias estaduais e de
abriram no mercado de trabalho cultural. Nesse sen- visitas periódicas do pessoal técnico da Seac aos estados.
tido. a gestão Ney Braga assinala um período de revi- Sem poder dispor do trabalho de equipes pertencentes a
goramento das instituições públicas federais voltadas entidades do MEC, que só estavam dispostas a tanto me-
para o atendimento setorial (Embrafilrne, SNT etc.). diante a celebração de convênios remunerados, foram
Passando a dispor de autonomia financeira, adminis- contratados como autônomos sociólogos, arquitetos e
trativa e até doutrinária, essas entidades foram-se des- economistas de fora do MEC.
prendendo da tutela exercida pelos órgãos de cúpula Os projetos foram realizados num bairro e duas fave-
do MEC. Enquanto na gestão Ney Braga os artistas e las no Recife, em quatro favelas de Fortaleza e em duas
intelectuais sentiam, na teoria e na prática da "política favelas do Rio de Janeiro. No Recife, a pesquisa de co-
cultural oficial". que o MEC, o DA(', o PAC e demais munidade no Clube dos Abanadores deu origem a um re-
organismos estavam a serviço de seus interesses, prontos latório onde os técnicos davam maior importância à de-
para o encaminhamento de suas demandas, a doutrina núncia pura e simples das injustiças sociais de que era ví-
em voga durante a gestão Portela contribuiu para intran- tima aquela população do que à preocupação em estabe-
qüilizá-los. Não obstante, na prática, a nova orientação lecer um diagnóstico da situação concreta. A idéia-mes-
não chegou a ter maiores conseqüências fora do âmbito tra de que "o produto estava no processo", fazendo com
estrito da Seac, onde sucederam as experiências de que o trabalho desenvolvido junto às populações tomasse
"pesquisa participante". o lugar da identificação de quais seriam as demandas des-
A despeito dos acenos táticos em direção aos pro- sa população em matéria de "cultura", pontua também
dutores e usuários do que consideravam como "cultura os resultados das outras experíêncíasmencíonadas, Na ci-
burguesa". um móvel importante da opção Seac - "na di- dade do Rio de Janeiro, a Seac contratou um grupo au-
reção dos setores da população de baixa renda, na dire- tônomo de pesquisadores-sociólogos e, em Fortaleza, o
ção daquelas regiões do país menos desenvolvidas" projeto foi tocado por intermédio de uma repartição do
- foi o desejo de restaurar as funções de coordenação próprio MEC.
que se haviam esvaziado na transição do DAC para A metodologia utilizada nessas experiências de "pes-
a Seac e em meio ao fortalecimento das instituições quisa participativa" ou "pesquisa de confronto" consis-
setoriais (Embrafilme, SNT) e à criação da Funarte. tia, basicamente, no recurso aos instrumentos usuais de
Desde o início de gestão Portela, elementos de destaque coleta de dados em investigações etnográficas: contatos
da nova equipe dirigente empenham-se em recuperar individuais com elementos da vizinhança, histórias de
o espaço decisório perdido em favor dos institutos e vida aprofundadas, reuniões com setores da comunida-
fundações que, segundo acreditavam, tendiam a manter de, tais como igrejas, blocos de carnaval, escolas de sam-
apenas uma vinculação nominal à jurisdição do MEC. ba e participação em manifestações coletivas da comuni-
A primeira reação a tal tendência consistiu na trans- dade. Nesse processo, os pesquisadores acabaram percor-
formação do antigo Departamento de Assuntos Cul- rendo as mesmas etapas de questionamento com que se
turais em Secretaria de Assuntos Culturais. Os dirigen- defrontaram outros cientistas sociais em situações idênti-
tes recém-empossados da área patrimonial, tendo à cas de "estranhamento" ou "desenraizamento" em rela-
frente Aluísio Magalhães, revidaram, reivindicando ção ao objeto de investigação, Primeiro, começaram a

30 Rellista de AdministTtlção de Emprew


questionar as bases das relações de dominaçfo-subordina- de Apoio à Indústria Cinematográfica (cujos esquemas de dota-
ção inerentes à interação pesquisador-pesquisado, passan- ção orçamentária e de atuação se assemelham bastante aos da
Embrafllme), o Fundo de Apoio ao Teatro Privado (1964), o Es-
do a colocar em dúvida a validez de pesquisas conduzi- critório Nacional de Difusão Artística (197S), abrangendo a
das por pessoas externas à comunidade e alheias a seus música e a dança, o Fundo de Criação Audiovisual (1979), desti-
problemas e anseios mais prementes, a sentir necessidade nado à produção de programas especiais para a televisão, e o
de repartir sua remuneração com os próprios pesquisa- Fundo de Intervenção Cultural (1971), dentre os serviços autô-
nomos mais relevantes.
dos, culminando com a exigência de contarem comum
lugar fixo de reunião na comunidade. 6 "2. A proteção, a salvaguarda e a valorização do patrimônio
Conforme declara um dos participantes dessa expe- histórico e artístico e ainda dos elementos tradicionais geralmen-
te traduzidos em manifestações folclóricas e de artes populares,
riência em texto recém-publicado, o público-alvo desses
características de nossa personalidade cultural, expressando o
projetos eram as categorias que não têm acesso às insti- próprio sentimento da nacionalidade." In: "S. Diretrizes" da
tuições culturais, e nem sequer produzem artigos ou ma- Pól(tica Nacio1llJIde Cultura. Brasflía, MEC, 1975. p. 24.
nifestações passíveis de serem enquadrados nas rubricas
usuais de "folclore" e "cultura popular". Poder-se-ia di- 7 Consultar os documentos de autoria de Márcio Tavares d'Ama-

zer que as experiências em pauta foram-se desenvolvendo ral, secretário de Assuntos Culturais durante a gostão Portela:
"Sociedade brasileira e política cultural". Brasília, MEC, jan.
a partir de uma definição de cultura bastante próxima à 1980 mimeogr., "Mensagem aos participantes do Encontro Re-
linhagem etnogrãfica, à qual se acrescentavam a inten- gional Norte, Nordeste e Centro-Oeste de Pró-Reitores de Exten-
ção política de "despertar a consciência" daquelas popu- são e Assessores de Cultura". Manaus, abro 1980. mimeogr.;
lações e de auxiliá-las a produzir conhecimentos capazes "Mensagem aos participantes do 3'? Seminário Nacional do Pro-
de contribuir para a transformação e melhoria das suas diarte". São Luís, ago.1980. mimeogr. Ver também osdocumen-
tos: "O desenvolvimento cultural no IV Plano Nacional de De-
condições de vida.9 senvolvimento" e "Linha de trabalho para obtenção de indicado-
Esses foram, em resumo, os principais pontos do res culturais", ambos sem data, mas produzidos no mesmo perío-
confronto entre a teoria e a prática da "política cultural do. Por último, cumpre mencionar os trabalhos de um dos princi-
oficíal", em dois momentos distintos da década de 70. pais formuladores doutrinários da gestão Portela, Pedro Demo,
então assessor do ministro da Educação e Cultura: "Cultura e
1 Holanda, Heloísa Buarque de. Impreswes de VÍllgem/CPC,
educação comunitária". Brasflía, MEC, out. 1980. mimeogr.;
vanguarda e desbunde: 1960/70, São Paulo, Brasiliense, 1980. "Perspectivas da Educação". Brasília, MEC, ago. 1979; "Dire-
trizes de educação (Alguns' tópicos relevantes)". Brasília, MEC,
S. d.; "Planejamento participativo (Elementos de uma discussão
2 Além dos inúmeros depoimentos de artistas e intelectuais atin-
gidos na pele por arbitrariedades dos serviços de segurança e cen- preliminar)". Brasília, MEC, 911.; "Universidade e comunidade".
sura, como Mário Lago, Antonio Houaiss, Ferreira Gullar, ver o Brasília, MEC, ago. 1979; "Política social e política educacional
ensaio-<lenúncia de Michalsky, lan. O Palco amordaçado (15 anos (Pesquisa da intervenção na realidade)". Brasília, MEC, s.d.; "De-
de censura teatral no Brasil). Rio de Janeiro, Avenir Editora, seducação permanente". Brasília, MEC, set. 1979; "A pobreza
1979. (Coleção Depoimentos, v. 13.) também tem charme". Brasília, MEC, ago. 1979; "Custos sociais
do desenvolvimento". Brasflía, ~C, out. 1979; "Educação co-
munitária". Brasília, MEC,out. 1979; "Redistribuição da renda".
3 Consultar as pesquisas sobre consumo de bens culturais reali-
Brasl1ia, MEC, novo 1979; "Subeducação". Brasília, MEC, maio
zadas pelo Centro de Sociologia Européia, Escola de Altos Estu-
1980; "Relevância da dimensão cultural para a política social".
dos em Ciências Sociais, Paris, sob a direção de Pierre Bourdieu,
Brasília, MEC, novo 1979; "Política social da educação e da cultu-
e pelo Centro de Estudos Culturais de Birminghan, sob a lideran-
ra". Brasília, MEC, out. 1979; "Indicadores culturais (Algumas
ça de Richard Hoggart. Ver, em especial, a obra-síntese de
indagações introdutórias)". Brasília, MEC, out. 1978.
Bourdieu a esse respeito, La Distinction, critique IOcillledu juge-
ment. Paris, Les ~ditions de Minuit, 1979. 8 Aliás, a recusa em conceder significáção cultural própria aos
meios de comunização de massa constitui uma postura comum
4 A distribuição de recursos na França em 1979 evidencia o re- a ambas as formulações doutrinárias referidas no texto. A Poli-
parte tendencial das despesas na área cultural em outros países: tica Nacfo1llJIde Cultura identifica os meios de comunicação de
massa como agências a serviço de interesses estrangeiros, incapa-
zes de propiciar a constituição de linguagens "culturais" locais.
Milhões de francos % Os teóricos da gestão Portela, por sua vez, preferem caracteri-
zá-los como puro comércio, condição que leva a situá-los no cam-
Conservação dos monumentos po da antiarte. A "cultura de massa" é algo puramente negativo,
históricos, dos museus e arquivos, onde entram "elementos que não são puramente simbólicos, ar-
das casas de cultura e do Centro tísticos nem culturais em sentido estrito". Para uma deimição
Pompidou 962 43,1 mais qualificada desses conceitos, consultar a lista de textos indi-
cados na nota anterior.
Difusão e ensino musical 396 18,0
9 Consultar Sales, Ivandro da Costa. Pesquisa-confronto sobre
cultura popular: lições de uma experiência do setor público. In:
Administração geral 298 13,3 Brandão, Carlos Rodrigues, org. Pesquilll ptl11icipante. São Pau-
lo, Brasiliense, 1981, p. 199-211. Eis a definição de cultura com
Teatro e espetáculos 248 ll,O que trabalharam as equipes envolvidas nos "projetos exemplares"
da gestão Portela, segundo o texto citado: "Encontraríamos indi-
Criação e ensino de artes cações do modo de sentir, pensar e agir em todas as práticas so-
plásticas 168 7,S ciais: nas práticas que têm fim predominante de sobrevivência
material (produção .e circulação de bens, serviços e"dinheiro), nas
práticas com fím predominante de sobrevivência política (formas
Bibliotecas públicas 160 7,1 de orpnizaçfo e associaçlo para obter e/ou assegurar o poder);
nas práticas que têm iun predominantemente de expressão ou
Total 2.232 100,0 reprelentaçfo (manifestações artísticas ou religioas etc.).
Falávamos de práticas com fíns predominantes e não exclusivos
de alJum aspecto porque abíamos que cada uma delas expressa
5 Na França, o sistema de rádio e televisão encontra-se em mio. os aspectos de sobrevivência material, política e simbólica."
do Estado. Além disso, foram criados nos últimos ano. o Fundo Sales, lvandro da Costa. op. cito p. 201.

Teoria e Prdtica da Polftica 31

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