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Maria de Fátima Lambert

RUI MATOS – As figuras dos sonhos estão mais próximo de mim [parafraseando Bernardo
Soares, o desassossegado]

"Nós não vemos a vida — vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é
infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste
ramo em flor houve camadas de primaveras de ouro, imensas primaveras
extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não
existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho
desmedido que há de realizar-se." Raul Brandão, "Húmus".

Hoje as figuras reuniram-se. Logo se dispersam, deixando intrigados os transeuntes


dentro da Sala de Exposições. As personagens são languidas, esticadas numa transmutação
entre o expressionístico e o abstrato, como se Giacometti e Domingos Alvarez se
encontrassem na esquina da rua e caminhassem, um ao lado do outro, numa coreografia
acromática e muda, onde o pensamento substitui a palavra ouvida. Um sussurra ao outro:

“…És a figura que se transforma,


que emerge solitária do destino,
nunca festejada, nunca lamentada...”1

O conjunto de esculturas – que reúne estas figuras imaginadas - não invalida a atenção
despendida isoladamente. Num olhar distanciado a lisibilidade incide nas linhas que se
desenrolam na arquitetura entrecortada do espaço. São linhas quebradas, contínuas,
sugerindo uma proximidade cautelosa, que atribua a merecida ponderação quanto ao
significado esvaziado, pois que clamando a plenitude a que poucos acedem. É um convite à
meditação, cauteloso e diligente. A escultura é, a este momento primeiro desenho algo
distanciado que atravessa a perspetiva, recuperando mais os ensinamentos gráficos da gravura
ou desenho orientais, do que as balizas da perspetiva renascentista – ainda que esta persista,
num ou outro momento do percurso a empreender.

“…e que regressa, com o seu silêncio característico (chamo silêncio à


linguagem-que-já-não-é-orgão-de-nada)…”2

A aproximação física ao desenho, à escultura, à pintura, à fotografia ou à projeção de


vídeo – para nos limitarmos às artes viso-plásticas – com objetivo de capacitar a apropriação
do objeto em si, implica a demora necessária para observar, para se direcionar [dirigir-se] até
uma intimidade que não pertence somente a de quem seja o criador das obras. A presença
inteira do recetor permite-se divagar, exercendo o direito de um olhar polimorfo, acrónico,

1
Rainer Marie Rilke, “Livro Primeiro – Livro da vida monástica” (1899), Poemas – as elegias de Duíno e Sonetos a
Orfeu, Lisboa, Oiro do Dia, 1983, p. 110
2
Pascal Quignard, Histórias de Amor de outros tempos, Lisboa, Cotovia, 2002, p. 12
conjugado entre a dimensão [pulsátil] objetual da peça artística e a sua própria fisicalidade
subjetivada [imaterializada e estética] in loco.

O desenho escultorizado insinua, por assim dizer, identidades sobreposicionais


perante a proposta gráfica em que se adivinha uma abundante combinatória de componentes
“emancipadas”. Ou seja, a escultura permanece, ainda que circule com a fluência visual que é
desenho; regimenta a instituição de linhas plausíveis para a mobilidade, a deslocação do corpo
do espetador. Guia-o, libertando-o na escolha de sua cativação e sequencializando,
concatenando a harmonia do ato de ver. Neste sentido “ver” uma escultura que se delineia,
traça um certo desprendimento no espaço vazio, circunscrevendo um “desenhar” transitório,
alcançado pelo movimento do corpo próprio [do espetador], ato irrepetível da perceção visual:

«Je dessinais avant même de marcher.


Sur tout et sur n’importe quoi.
Je dessine encore, chaque jour,
avec le même plaisir,
sur tout et sur n’importe quoi.
Mais aujourd’hui, je marche :
je marche dans mes dessins.»3

A deslocação do corpo do visitante constrói um outro “desenho” [trajeto] que convive


com aquele que esteja determinado, fixado pela disposição das peças tridimensionais densas e
filiformes, assim como a delimitação das intervenções de grafite que assumem a função de
pintura, fundo e sustentação para as unidades “viso-gráfico”. O avanço do corpo do espetador
associa-se à coreografia dos detalhes esculpidos, desenhados, como que pintado numa
gestualidade conivente com certa geometrização. A mobilidade corporificada para ver as obras
permite insinuar-se demoras e instantes, entre a postura de verticalidade paralela às paredes
em direção ao esvaziamento propiciado pelos contornos [oblíquos e paralelos] e pela
espessura ínfima das morfologias da matéria e da cor.

“É fácil desenhar os olhos que divagam…”4

O cinemático na escultura não precisa de subterfúgios, antes a agilidade de percorrer


os lugares onde as peças foram sedentarizadas; reconhecer-lhes a qualidade de permanência
dialogada com a mobilidade de quem as recebe enquanto imagens diretas, tangíveis,
substâncias de leveza aparente ou profunda. Assim como as unidades esculpidas se perdem e
determinam, em uma ou outra composição, também as reflexões de quem se confronta com
as linhas e suas volumetrias, oscilam, enredam, para depois de desvelarem. Os labirintos
tornam-se límpidos, os encaminhamentos ainda que espiralados, conciliam dualidades e
enigmas – vazio e plenitude, parafraseando François Cheng. Impõe-se, manifestamente, a
exigência ontológica [e a experiência estética] de vazio.

“Quereis saber onde se encontra a estrada das nuvens?


A estrada das nuvens é o vazio”5

3
Jan Fabre, Umbraculum, Paris, Actes du Sud, 2001, p.83
4
Sophia de Mello Breyner, “Olhos”, O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997), Lisboa, Caminho, 2004, p.26
5
O vagabundo do Dharma – 25 poemas de Han-Shan, Caligrafias de Li Kwok-Wing, tradução do chinês de Jacques
Pimpaneau, versões poéticas de Ana Hatherly, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2003, p.54
Em maior proximidade, ou considerada a distância e o afastamento, geram-se ritmos
de perceção, recebendo dados que subsidiam uma análise desta produção tridimensional que
não cessa de mostrar reflexões sobrepostas. Todavia, percebe-se que persistem convicções
muito provavelmente transversais aos diferentes espetadores, ainda que tomando diferentes
configurações ou explorando sensações, eivadas por uma meticulosidade de pensamento e de
fazer assumida pelo escultor, como que insaciado num caminho onde se adicionam obras de
séries anteriores, vividas em outros tempos e espaços.

“…nesse silêncio que eu sei, ou nessas


palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;
se assim for, eu digo se assim for – …”6

Desenhar é algo entranhado no humano, enraizado e presente desde os primórdios.


Como assinalou Emma Dexter7, desenhar é sinónimo de humano, em modo inequívoco e
intrínseco, afirmado com toda propriedade, por comparação a outras expressões e meios.
Não importa tanto o que é o desenho (o que nele se reconhece, o que representa) mas como
é. É relevante o “como” do desenhado, mais do “que é” desenhado. Donde, o desenho – não
apenas como ideia – ser substância identitária plausível, ainda que plasmado através de
técnicas e identificações que não o asseguram em sua condição literal. Ou seja, existe um
desenho que se esvanece no espaço quando o movimento dos bailarinos ou performers se
desenrolam; existe um desenho invisível, um rasto que a efemeridade dos sons pronunciados
fazem alastrar; existe um desenho que reside na espessura da pincelada, na sobreposição de
tintas; existe um desenho que estancou em morfologias, estruturas rígidas ou dúcteis na
certeza da escultura. Em todas estas deriva[çõe]s se constata uma lógica implícita, uma
coerência de plano que lhe subjaz. Assim é capaz de ser cativada, pois determinada a sua
essência numa leitura atualizada. Envolve, por certo, escolhas e deliberações lúcidas por parte
dos artistas.8
“…Cada coisa está isolada ante os meus sentidos,
que a aceita impassível: um ciclo de silêncio.
Cada coisa na escuridão posso sabê-la,
como sei que o meu sangue circula nas veias.”9

As esculturas de Rui Matos são aceções de desenho que decorrem quer do artista-
autor, quer do recetor-unidade-do-público que o apreende e categoriza [qualifica] como tal –
por analogia e intuição ad simultaneum. Carece a disponibilidade de entender além da
circunscrição dos estereótipos organizadores e categoriais, não apenas perante o mundo a ver,
mas a invisibilidade mental e do pensamento ativador de criações estéticas.

“El vacío no aparece como un espacio neutral que sirva tan sólo para amortiguar el

6
e.e. cummings, xix poemas, trad. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p.24
7
Emma Dexter, “Introduction”, Vitamine D – New perspectives on drawing, London, Phaidon, 2005, p.16
8
Cf. Margaret Davidson, Contemporary Drawing – key concepts an techniques, N.Y., Watson-Guptill, 2011.
9
Cesare Pavese – Trabalhar cansa, Lisboa, Ed. Cotovia, 1997, p.71
choque sin modificar la naturaleza de la oposición.”10

O vazio agudiza a presentificação das formas, destaca-as, deixando-as


descontaminadas e quase levitando apesar de serem estáticas. Tal como se categoriza uma
melancolia ativa que contraria a acídia (melancolia passiva), também o vazio e o silêncio são
motores inesgotáveis de obra a vir (parafraseando Maurice Blanchot). Sabe-se que vazio e
silêncio são indissociáveis, mas não análogos ou equivalentes. Servem causas específicas nas
composições de Rui Matos. Confundem-se, ainda que os sinais em que se condensam e
agregam remetam para narrativas viso-espaciais que carece serem decifradas. Os vazios
servem para intensificar a presença dos elementos pictogramáticos [leia-se, neste caso
representativos]; assumem-se como uma pontuação esvaziada que aguça a chegada de novos
tópicos tridimensionais, sendo levíssimas forças lineares ou volumetrias mais fechadas,
espessas e/ou figuradas.

“…onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira


que de longe em longe se remove…e insiste.”11

A criação artística, no caso de Rui Matos, manifesta-se na ausência de sinais excessivos


que excedessem, que gritassem a sua eclosão. Recorre, antes, a pronúncias expressivas,
através de gestos fechados que estabilizam os pesos do excesso, que contrariam o acúmulo de
insignificâncias ou o esgotamento de recursos que se revelam atávicos.

“E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo


mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a
despersonalização.”12

Mímica do mundo, uma expressão avançada pelo escultor, não equivale a estabilizar
portanto uma visão atávica do mundo, antes desafia seja in-corporado (intangível ou
irreconhecível) na obra pensada e executada. Trata-se da genuína e originária aceção,
significado de mimesis, termo inicialmente respeitante às artes expressivas – teatro, dança,
música – e não às artes representativas (ou construtivas).
A criação artística, para alguns artistas carece um pensamento cuja fundamentação se
divide entre a experienciação pessoal, a sensibilidade conceptualizada e o aprofundamento de
sistematizações de teor ontológico e antropológico cultural (e simbólico). Eis como as derivas
que glosam o pensamento místico oriental, assim como a literatura plasmada nos Haikai
(como atrás se mencionou) impregnam as decisões plásticas de Rui Matos. A harmonia das
dissonâncias culturais e místicas anulam as suas incompatibilidades mútuas, como mencionou
Rudolf Otto, na medida em que alguns filósofos e pensadores ocidentais decifraram,
perceberam que a mística é a mesma em todo tempo e lugar. Intemporal e sem história, ela é
em todo lado igual a si mesma. A incidência naquilo que é o enigma superficial das
incongruências pode sanar-se na prática artística, neste caso na prática de uma escultura que é
bidimensional e tridimensional em paralelo. Unificada na sensibilidade estética que a molda,
governa e disponibiliza para a intencionalidade – quer a artística, mas sobretudo a estética.

10
François Cheng, Vacío y plenitud, Madrid, Siruella, 2016, p.88
11
Carlos Drummond de Andrade, “Um eu retorcido”, Antologia Poética, Lisboa, Dom Quixote, 2001, p.44
12
Sophia de Mello-Breyner, excerto de texto lido na Sorbonne, em Paris, em Dezembro de 1988, por ocasião do
Encontro intitulado Les Belles Étrangères in “Arte Poética V”, Ilhas (1989), Lisboa, Caminho, 2005, p.76
O peso torna-se leve, o deslizante determina-se e permanece, o pequeno é grande e vice-
versa. Pense-se em Hermes Trismegisto, citado por Almada Negreiros, em epígrafe na
Invenção do Dia Claro:
"O pequeno é como o grande. O que está em cima é análogo ao que está em
baixo. O interior é como o exterior das coisas. Tudo está em tudo."13

Eis a sabedoria iluminada do mundo, adquirida mediante exercícios de meditação dos


filósofos e artistas chineses, tal como François Cheng ou Jacques Brosse souberam elucidar.
Não será tanto uma busca identitária, antes o esvaziamento de si mesmo que permitirá
vivenciar a plenitude através da assunção de vazio:

“Abre-se a porta da unidade da causa e do efeito, / já não há duas ou três vias,


mas apenas uma, mesmo diante de vós.
A forma é a partir de então não-forma.”14

A abertura ao mundo, que se reconhece nas suas obras, implica uma assunção
convicta de que o despojamento congrega a dádiva e a posse, ultrapassando os inconciliáveis.
Essa sua capacidade em pesar o espaço e guardá-lo estabilizado, salvaguardando-lhe a leveza
da alma conciliada, gera composições únicas. São episódios, quase roçando uma visão life-
writing, definidos pela gestualidade controlada; pela palavra sustentadora da visibilidade que a
matéria legitima; pelo rigor exercido, de modo inexcedível, sobre o metal dominado – numa
aceção algo prometaica.

13
Hermes Trismegisto citado por Almada Negreiros in Invenção do Dia Claro, Lisboa, Olisipo Ed, 1921 [facs], p.14.
14
Zazen-Wasan citado por Jacques Brosse, Os Mestres Zen, Lisboa, Pergaminho, 1999, p. 166

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