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RUI MATOS – As figuras dos sonhos estão mais próximo de mim [parafraseando Bernardo
Soares, o desassossegado]
"Nós não vemos a vida — vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é
infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste
ramo em flor houve camadas de primaveras de ouro, imensas primaveras
extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não
existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho
desmedido que há de realizar-se." Raul Brandão, "Húmus".
O conjunto de esculturas – que reúne estas figuras imaginadas - não invalida a atenção
despendida isoladamente. Num olhar distanciado a lisibilidade incide nas linhas que se
desenrolam na arquitetura entrecortada do espaço. São linhas quebradas, contínuas,
sugerindo uma proximidade cautelosa, que atribua a merecida ponderação quanto ao
significado esvaziado, pois que clamando a plenitude a que poucos acedem. É um convite à
meditação, cauteloso e diligente. A escultura é, a este momento primeiro desenho algo
distanciado que atravessa a perspetiva, recuperando mais os ensinamentos gráficos da gravura
ou desenho orientais, do que as balizas da perspetiva renascentista – ainda que esta persista,
num ou outro momento do percurso a empreender.
1
Rainer Marie Rilke, “Livro Primeiro – Livro da vida monástica” (1899), Poemas – as elegias de Duíno e Sonetos a
Orfeu, Lisboa, Oiro do Dia, 1983, p. 110
2
Pascal Quignard, Histórias de Amor de outros tempos, Lisboa, Cotovia, 2002, p. 12
conjugado entre a dimensão [pulsátil] objetual da peça artística e a sua própria fisicalidade
subjetivada [imaterializada e estética] in loco.
3
Jan Fabre, Umbraculum, Paris, Actes du Sud, 2001, p.83
4
Sophia de Mello Breyner, “Olhos”, O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997), Lisboa, Caminho, 2004, p.26
5
O vagabundo do Dharma – 25 poemas de Han-Shan, Caligrafias de Li Kwok-Wing, tradução do chinês de Jacques
Pimpaneau, versões poéticas de Ana Hatherly, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2003, p.54
Em maior proximidade, ou considerada a distância e o afastamento, geram-se ritmos
de perceção, recebendo dados que subsidiam uma análise desta produção tridimensional que
não cessa de mostrar reflexões sobrepostas. Todavia, percebe-se que persistem convicções
muito provavelmente transversais aos diferentes espetadores, ainda que tomando diferentes
configurações ou explorando sensações, eivadas por uma meticulosidade de pensamento e de
fazer assumida pelo escultor, como que insaciado num caminho onde se adicionam obras de
séries anteriores, vividas em outros tempos e espaços.
As esculturas de Rui Matos são aceções de desenho que decorrem quer do artista-
autor, quer do recetor-unidade-do-público que o apreende e categoriza [qualifica] como tal –
por analogia e intuição ad simultaneum. Carece a disponibilidade de entender além da
circunscrição dos estereótipos organizadores e categoriais, não apenas perante o mundo a ver,
mas a invisibilidade mental e do pensamento ativador de criações estéticas.
“El vacío no aparece como un espacio neutral que sirva tan sólo para amortiguar el
6
e.e. cummings, xix poemas, trad. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p.24
7
Emma Dexter, “Introduction”, Vitamine D – New perspectives on drawing, London, Phaidon, 2005, p.16
8
Cf. Margaret Davidson, Contemporary Drawing – key concepts an techniques, N.Y., Watson-Guptill, 2011.
9
Cesare Pavese – Trabalhar cansa, Lisboa, Ed. Cotovia, 1997, p.71
choque sin modificar la naturaleza de la oposición.”10
Mímica do mundo, uma expressão avançada pelo escultor, não equivale a estabilizar
portanto uma visão atávica do mundo, antes desafia seja in-corporado (intangível ou
irreconhecível) na obra pensada e executada. Trata-se da genuína e originária aceção,
significado de mimesis, termo inicialmente respeitante às artes expressivas – teatro, dança,
música – e não às artes representativas (ou construtivas).
A criação artística, para alguns artistas carece um pensamento cuja fundamentação se
divide entre a experienciação pessoal, a sensibilidade conceptualizada e o aprofundamento de
sistematizações de teor ontológico e antropológico cultural (e simbólico). Eis como as derivas
que glosam o pensamento místico oriental, assim como a literatura plasmada nos Haikai
(como atrás se mencionou) impregnam as decisões plásticas de Rui Matos. A harmonia das
dissonâncias culturais e místicas anulam as suas incompatibilidades mútuas, como mencionou
Rudolf Otto, na medida em que alguns filósofos e pensadores ocidentais decifraram,
perceberam que a mística é a mesma em todo tempo e lugar. Intemporal e sem história, ela é
em todo lado igual a si mesma. A incidência naquilo que é o enigma superficial das
incongruências pode sanar-se na prática artística, neste caso na prática de uma escultura que é
bidimensional e tridimensional em paralelo. Unificada na sensibilidade estética que a molda,
governa e disponibiliza para a intencionalidade – quer a artística, mas sobretudo a estética.
10
François Cheng, Vacío y plenitud, Madrid, Siruella, 2016, p.88
11
Carlos Drummond de Andrade, “Um eu retorcido”, Antologia Poética, Lisboa, Dom Quixote, 2001, p.44
12
Sophia de Mello-Breyner, excerto de texto lido na Sorbonne, em Paris, em Dezembro de 1988, por ocasião do
Encontro intitulado Les Belles Étrangères in “Arte Poética V”, Ilhas (1989), Lisboa, Caminho, 2005, p.76
O peso torna-se leve, o deslizante determina-se e permanece, o pequeno é grande e vice-
versa. Pense-se em Hermes Trismegisto, citado por Almada Negreiros, em epígrafe na
Invenção do Dia Claro:
"O pequeno é como o grande. O que está em cima é análogo ao que está em
baixo. O interior é como o exterior das coisas. Tudo está em tudo."13
A abertura ao mundo, que se reconhece nas suas obras, implica uma assunção
convicta de que o despojamento congrega a dádiva e a posse, ultrapassando os inconciliáveis.
Essa sua capacidade em pesar o espaço e guardá-lo estabilizado, salvaguardando-lhe a leveza
da alma conciliada, gera composições únicas. São episódios, quase roçando uma visão life-
writing, definidos pela gestualidade controlada; pela palavra sustentadora da visibilidade que a
matéria legitima; pelo rigor exercido, de modo inexcedível, sobre o metal dominado – numa
aceção algo prometaica.
13
Hermes Trismegisto citado por Almada Negreiros in Invenção do Dia Claro, Lisboa, Olisipo Ed, 1921 [facs], p.14.
14
Zazen-Wasan citado por Jacques Brosse, Os Mestres Zen, Lisboa, Pergaminho, 1999, p. 166