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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

THIAGO LIMA DOS SANTOS

NAVEGANDO EM DUAS ÁGUAS:


ÁGUAS: Tambor de Mina e Pajelança em São Luís do
Maranhão na virada do século XIX para o XX.

São Luís
2014
THIAGO LIMA DOS SANTOS

NAVEGANDO EM DUAS ÁGUAS: Tambor de Mina e Pajelança em São Luís do


Maranhão na virada do século XIX para o XX.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Maranhão para obtenção do título de
mestre em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Sergio Figueiredo Ferretti.

São Luís
2014
3

THIAGO LIMA DOS SANTOS

Navegando em duas águas: Tambor de Mina e Pajelança em São Luís do Maranhão na


virada do século XIX para o XX.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão
para obtenção do título de mestre em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Sergio Figueiredo Ferretti.

Aprovada em: _____/_____/_____

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________
Prof. Dr. Sergio Figueiredo Ferretti (Orientador)
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão

_____________________________________________
Prof. Dr. Lyndon de Araújo Santos
Departamento de História / Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão

_____________________________________________
Prof. Dr. Aldrin Moura de Figueiredo
Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia
Universidade Federal do Pará

São Luís
2014
4

SANTOS, Thiago Lima dos.


Navegando em duas águas: Tambor de Mina e Pajelança em São
Luís do Maranhão na virada do século XIX para o XX. / Thiago
Lima dos Santos. – 2014.
221 f.
Impresso por computador (fotocópia)
Orientador: Sergio Figueiredo Ferretti.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade
Federal do Maranhão, Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais, 2013.
2. Religiões Afro-Maranhenses. 2 Pajelança. 3. Tambor de Mina
CDU 39(812.1)
5

AGRADECIMENTOS

Seria redundante agradecer aos meus pais e avós pelo exemplo de vida e pelo
apoio dado durante os momentos de vida acadêmica e principalmente nas retas finais,
momentos decisivos e quando falhei. Mas, não é demais agradecer a confiança depositada em
mim durante esse tempo, faço de tudo para ser este investimento que algum dia deve dar
certo.
Agradeço a minha irmã por me tirar do sério e mais ainda ao meu cunhado por ter
levado o pacote embora. Agradeço ao João por estar grudado e reclamar minha companhia e
por começar a aceitar a ideia de que eu sempre vou chamá-lo de neném.
Agradeço ao meu orientador, Professor Dr. Sergio Ferretti, por acreditar no meu
trabalho, ceder material para a pesquisa, corrigir o texto, pelo espaço profícuo para o
desenvolvimento da minha trajetória acadêmica e pelo incentivo a continuar pesquisando.
Ao Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular (GP Mina), por preencher o
descanso sabático com uma boa dose de discussões e troca de conhecimentos e em especial à
Professora Drª. Mundicarmo Ferretti pelas contribuições feitas ao trabalho, reconheço-a como
verdadeira coorientadora. Agradeço aos demais pesquisadores por estarem presentes no
debates, sempre elevando o nível das discussões.
Ao Grupo de Pesquisa História e Religião (GPHR) por ter me acolhido no início
da graduação, pelas contribuições que foram dadas desde os primeiros passos desta pesquisa e
aos demais pesquisadores do grupo pelo exemplo de pesquisas bem sucedidas. Agradeço ao
Professor Dr. Lyndon de Araújo Santos, coordenador do grupo pela participação na banca de
qualificação, na defesa e pela leitura minuciosa do texto.
Agradeço ao Professor Me. Raimundo Inácio por ter contribuído com debates
sobre a pajelança na reta final da escrita e ao Professor Dr. Antonio Evaldo pela participação
na qualificação e por ter atendido ao pedido de criticar sem “dó nem piedade”. Agradeço a
designer Raiama Portela pelas imagens desenhadas a partir da descrição dos jornais.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pela oportunidade
dada ao projeto e principalmente aos professores Benedito de Souza Filho, Elizabeth Beserra
Coelho e Marcelo Carneiro, cujas disciplinas contribuíram bastante na orientação desta
pesquisa bem como na tentativa de defini-la em um espaço liminar entre as ciências sociais e
a história, confesso que não sei se consegui nesse texto, mas estou muito satisfeito com o
início das reflexões.
6

Agradeço a Fundação de Amparo a Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e


Tecnológico do Maranhão – FAPEMA – pelo financiamento desta pesquisa.
Agradeço aos que ajudaram este trabalho e também aos que atrapalharam afinal, o
importante é participar.
Encerrando os agradecimentos falando ainda de família agradeço aquela que virá
a ser a minha nova família: agradeço a Camila Portela não só pelo amor, afeição, dedicação e
demonstrações de carinho, mas por me suportar nas piores horas de pressão, chatice,
aborrecimentos e rabugice, isso sim é gostar. Com certeza você vem postergando o meu
infarto.
Por fim agradeço aos meus cabelos brancos por me mostrarem que a vida não é
fácil.
7

Dedico este trabalho à minha avó, Maria


da Conceição Cardoso. Para mim a
senhora será eterna.
8

Every year is getting shorter…


(Time – Pink Floyd)
9

RESUMO

Religiões afro-maranhenses aparecem na documentação em caso de reclamação, através dos


olhos da religião católica e contra os ideais da civilização. Para entender o que eram essas
manifestações religiosas é necessário superar esses registros distorcidos em busca de
evidências para compreender os elementos simbólicos e rituais. Esta dissertação tem como
objetivo analisar em um determinado período de tempo (1889 - 1910) o Tambor de Mina,
pajelança e sua relação com a sociedade ludovicense.

PALAVRAS- CHAVE: Religiões Afro-Maranhenses; Pajelança; Tambor de Mina.


10

ABSTRACT

Afro-maranhense religions appear in the documentation in cases of complaint, through the


eyes of the Catholic religion and against the ideals of civilization. To understand what was
these religious manifestations is necessary to overcome these distorted records in search of
evidence to understand the symbolic and ritual elements. This dissertation aims to analyze in a
specific time frame (1889 - 1910) the Tambor de Mina, Pajelança and its relationship to
ludovicense society.

KEYWORDS: Afro-Maranhense Religion; Pajelança; Tambor de Mina.


11

LISTA DE SIGLAS

APEM – Arquivo Público do Estado do Maranhão.


ACP – Jornal A Campanha
BBL – Biblioteca Benedito Leite.
DMA – Jornal Diário do Maranhão.
PCT – Jornal Pacotilha.
PLF – Pedidos de Licença para Festas.
ODS – Ofícios dos Delegados e Subdelegados de Polícia da Província do Maranhão.
HBD – Hemeroteca Digital Brasileira
MAD – Museu Afro-Digital
12

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Modelo de Ficha de Registro das informações dos PLF ........................ 17


Quadro 2 Modelo de Ficha de Registro das informações dos Jornais .................... 17
Quadro 3 Levantamento dos Jornais no Período Republicano ............................... 21
Quadro 4 Chefes da Casa de Nagô (Santos e Santos Neto, 1989) ......................... 111
Quadro 5 Festas incluídas no PLF 22/06/1898 ....................................................... 129
Quadro 6 Anos de realização de festas na Casa das Minas (1896 -1910) ............... 130
Quadro 7 Terreiros filhos da Casa de Nagô (Santos e Santos Neto, 1989) ............ 132
Quadro 8 Festas no Terreiro do Justino com base nos PLF .................................... 138
Quadro 9 PLF do Terreiro de Vó Severa ................................................................ 142
Quadro 10 Terreiros filhos do Terreiro de Manoel Teu Santo (Santos e Santos
Neto, 1989) .............................................................................................................. 143

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 Comparativo das “duas cidades”................................................................. 94


Mapa 2 Possível Mudança da Casa das Minas (Mapoteca APEM) ........................ 109
Mapa 3 São Luís: Centro e Subúrbio (Mapoteca APEM) ....................................... 123
Mapa 4 Localização da Casa de Nagô e Casa das Minas (Mapoteca APEM) ........ 124
Mapa 5 Localização do Terreiro do Justino (Mapoteca APEM) ............................ 133
Mapa 6 Área em que se localizava o Terreiro de Vó Severa (Mapoteca APEM) ... 140
Mapa 7 Mapa da área da Madre Deus: Localização do Terreiro de Manoel Teu
Santo (Mapoteca APEM) ........................................................................................ 145
Mapa 8 Projeção do Caminho Grande (Mapoteca APEM) ..................................... 158
Mapa 9 Localização do Lugat “Furo” em relação ao centro da cidade de São Luís
(Mapoteca APEM) .................................................................................................. 198
13

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 Hierarquia e sentido das trocas de informação da Chefatura de


Polícia ................................................................................................................... 27
Imagem 2 Capa do jornal “O Novo Brazil” saudando a República ...................... 55
Imagem 3 Bairro do Codozinho ............................................................................ 58
Imagem 4 Bairro do Codozinho............................................................................. 59
Imagem 5 Bairro da Liberdade 1908 .................................................................... 60
Imagem 6 Autorização do Chefe de Polícia (1889) .............................................. 100
Imagem 7 Selo do documento (1909) ................................................................... 102
Imagem 8 Fachada da Casa das Minas – 1984 (MAD) ........................................ 106
Imagem 9 Dançantes e Instrumentos da Casa de Nagô (MAD) ........................... 112
Imagem 10 Fachada da Casa de Nagô (MAD) ..................................................... 115
Imagem 11 Dona Mundica Estrela – 2011 (MAD) ............................................... 135
Imagem 12 Terreiro do Justino – Local para toque de Tambor de Mina
(Arquivo Pessoal) .................................................................................................. 136
Imagem 13 Terreiro do Justino – Local para ritual de Cura/Pajelança (Arquivo
Pessoal) ................................................................................................................. 136
Imagem 14 Jornal Pacotilha, Terça Feira. 23 de Julho de 1937 (HDB) ............... 141
Imagem 15 Fonte do Apicum ................................................................................ 142
Imagem 16 Bandereira (Jornal A Flecha 1979) ................................................... 152
Imagem 17 Detalhe em destaque da Imagem 10 .................................................. 152
Imagem 18 Festa do Divino, Casa das Minas (MAD) ......................................... 153
Imagem 19 Festa do Divino, Casa das Minas – 2006 (MAD) ............................. 153
Imagem 20 Tipos de Festa do Divino (LEAL, 2012) .......................................... 154
Imagem 21 Vapores e os respectivos locais de festa (DMA) ............................... 160
Imagem 22 Festa do Divino Espírito Santo (DMA 18/05/1898) .......................... 161
Imagem 23 Caixas do lado de fora da igreja (MAD) ........................................... 162
Imagem 24 Realização de um ritual de pajelança nos baixos de um sobrado
(Desenho de Raiama Portela) ............................................................................... 187
Imagem 25 Pajé com encantado (PACHECO, 2004) .......................................... 190
Imagem 26 Cultura material de um ritual de pajelança (Desenho de Raiama
Portela) .................................................................................................................. 191
Imagem 27 Ritual de “Mina-Pajé”: a cura acompanhada do tambor e da
assistência. (Desenho de Raiama Portela).............................................................. 195
14

LISTA DE ANEXOS

ANEXO 1
Quadro de Henrique Bernardelli representando o momento em que Deodoro da
Fonseca derruba o chefe do Gabinete Imperial e é ovacionado como proclamador
da República ........................................................................................................... 209
ANEXO 2
Decreto sobre a proibição de intevenção do Estado em assuntos religiosos ........... 210
ANEXO 3
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: Trecho referente às
regulamentações acerca da magia e outras práticas religiosas ................................ 211
ANEXO 4
Quadro contendo os números relativos ao surto de varíola em algumas cidades
do Brasil no ano de 1908 ......................................................................................... 214
ANEXO 5
Pedidos de Licença Para Festa ................................................................................ 215
ANEXO 6
Calendário Ritual do Terreiro de Manoel Teu Santo em comparação aos
calendários da Casa das Minas e Casa de Nagô ...................................................... 217
ANEXO 7
Suposta fotografia de Manoel Teu Santo, publicada por Euclides Ferreira em um
livro de sua autoria, sem citar a origem da imagem reproduzida ............................ 219
ANEXO 8
Quadro contendo informações sobre diversos pedidos de licença para Tambor de
Mina ......................................................................................................................... 220
15

SUMÁRIO

Lista de Siglas ....................................................................................................... 10


Lista de Quadros ...................................................................................................... 11
Lista de Mapas ....................................................................................................... 11
Lista de Imagens ...................................................................................................... 12
Lista de Anexos ....................................................................................................... 13
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 16
1ª PARTE
1. HISTÓRIA E CIÊNCIAS SOCIAIS: por uma leitura antropológica das fontes
históricas .................................................................................................................. 31
1.1 Uma tentativa de definição 43
2. A REPÚBLICA DOS MALES E DAS CURAS .............................................. 50
2.1 A chegada da “coisa pública” .................................................................. 50
2.2 A cidade: suas gentes e manifestações culturais ...................................... 61
2.3 Ciência, saúde e religião na cidade .......................................................... 74
2ª PARTE
3. NAVEGANDO EM DUAS ÁGUAS: religiões afro-maranhenses em São Luís
no fim do século XIX e início do XX ..................................................................... 83
3.1 Religiões Afro-Brasileiras ....................................................................... 83
3.2 Os Pedidos de Licença para Festas (PLF) ............................................... 95
4. TAMBOR DE MINA ......................................................................................... 102
4.1 A Casa de Nagô ....................................................................................... 118
4.2 A Casa das Minas ..................................................................................... 126
4.3 Outras Casas ............................................................................................. 130
4.3.1 Terreiro do Justino ........................................................................... 131
4.3.2 Terreiro de Vó Severa ...................................................................... 138
4.3.3 Terreiro de Manoel Teu Santo ......................................................... 142
4.4 As Licenças Policiais e o projeto civilizador maranhense ....................... 146
5. A FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO .................................................... 150
6. PAJELANÇA ..................................................................................................... 165
CONCLUSÕES: a brincadeira de toque de maracás e o universo complexo das
religiões afro-maranhenses ..................................................................................... 196
Referências .............................................................................................................. 201
Anexos ..................................................................................................................... 208
16

INTRODUÇÃO

A necessidade de escrever sobre a pesquisa não é uma tarefa fácil. É preciso


apontar um momento e dizer “foi aqui que tudo começou” para que seja possível explicar todo
o caminho trilhado até o momento. A história sobre o trabalho pode ser um mito, uma espécie
de cosmogonia que adquire uma carga simbólica para que o escrito possa ser ligado a um
determinado cosmos e passe a fazer sentido. O histórico do trabalho e da pesquisa, junto com
a sua base teórico-metodológica são, assim, os laços científicos que ligam certas ideias a um
campo acadêmico.
Buscando na memória fica difícil apontar o momento “onde tudo começou”.
Talvez o fato de minha avó paterna desde criança frequentar a Casa das Minas com a sua
madrinha, seja o ponto de aproximação com a cultura afro-brasileira que se prolongou até os
tempos atuais, sem que isso causasse estranhamento, nem quando fui a terreiros quando
criança.
Ainda assim não é simples encadear os fatos dessa narrativa até o ano de 2007
quando entrei no Grupo de Pesquisa História e Religião, coordenado pelo Prof. Dr. Lyndon de
Araújo Santos. Ali comecei a ler sobre as religiões e me interessar mais pelo tema e não foi
difícil simpatizar com os trabalhos de Sergio Ferretti, Reginaldo Prandi e Vagner Gonçalves
da Silva. Decidi pesquisar sobre as religiões afro-brasileiras em seu caráter histórico, aspecto
esse que não era abordado tão sistematicamente por tais autores.
Dando início a pesquisa nos arquivos, vi que para entender de religiões afro-
brasileiras haveria de manter uma conexão constante com a antropologia e a sociologia das
religiões. Em 2009 entrei para o Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular coordenado
pelo Prof. Dr. Sergio Ferretti e pela Profª. Drª Mundicarmo Ferretti e com a participação
simultânea nos dois grupos houve o desenvolvimento das ideias e aprofundamento das
análises.
Poucas informações foram encontradas nos Ofícios dos Delegados e
Subdelegados de Polícia da Província do Maranhão1 (ODS) do Arquivo Público do Estado do
Maranhão (APEM), o resultado foi um trabalho monográfico em que são exploradas várias
possibilidades de interpretação das manifestações religiosas a partir do cotidiano da população
negro-mestiça da cidade de São Luís, capital do Estado. Com o fechamento temporário da

1
Fontes pesquisadas desde a graduação e utilizadas como principais fontes na monografia.
17

Biblioteca Benedito Leite (BBL) o acesso aos jornais, rica fonte de referências sobre as
religiões afro-brasileiras no passado, não foi possível.
Ainda com todas as limitações persisti com a ideia de continuar buscando
informações nos arquivos policiais e pouco antes de submeter projeto à seleção do Programa
de Pós Graduação em Ciências Sociais consultei os Pedidos de Licenças para Festa (PLF).

Quadro 1 Modelo de ficha de registro das informações dos PLF


Nº Doc. Data: Situação:
Classificação
Requerente
Requisitado
Lugar
Chefe de Polícia
Observações

Esses documentos não foram utilizados na monografia por ter dado prioridade a
imensa série documental dos ODS e somente a partir de julho de 2012 foi possível ter acesso
aos jornais, por meio da Hemeroteca Digital Brasileira (HDB), portal do acervo de periódicos
digitalizados da Biblioteca Nacional, voltarei a esta documentação a seguir.

Quadro 2 Modelo de ficha de registro das informações dos Jornais2


N° do Jornal Data
Informações
Comentários

O projeto submetido à seleção do mestrado em Ciências Sociais pretendia uma


ampla visão sobre o estado do Maranhão, mas o volume de documentação que aos poucos foi
sendo acumulado durante a pesquisa exigiu o refinamento do recorte temporal e espacial. Boa
parte da documentação diz respeito à cidade de São Luís e entre os anos de 1889 e 1910
foram registrados 552 PLF nos quais se encontram Brincadeiras Carnavalescas, Tambor de
Crioula, Bailes, Tambor de Mina, Festa do Divino Espírito Santo entre outros divertimentos
populares.
Dessa forma uma pesquisa anterior que sofreu pela falta de fontes converteu-se
em um esforço para conseguir dar conta agora de um grande volume documental do qual se

2
As fichas estão organizadas em documentos do Microsoft Word divididos por temática (Pajelança, Pajé,
Curandeiro, Feiticeiro, Festa do Divino). Esses documentos digitais encontram-se dentro de pastas que levam o
nome de cada jornal pesquisado.
18

extraiu dados a serem utilizados nesse trabalho e material para pesquisas futuras em outros
projetos sobre religião e cultura popular ou artigos sobre a temática.
A escrita da introdução é uma tarefa que aparentemente aflige a maioria dos
autores. A introdução só pode ser escrita após o trabalho pronto, de maneira que possa
informar ao futuro leitor daquilo que trata o texto em sequencia. Não há como apresentar
informações sobre algo que não existe e este é o ponto chave do temor com relação a
introdução, pois de fato este é o momento em que a escrita do trabalho é dada por finalizada.
A introdução é um ponto final que vem antes do fim de qualquer trabalho.
Uma introdução não deve ser escrita antes de um trabalho apresentar conteúdo
definido, não em termos tão prontos e acabados, sob o risco de não condizer com o que está
expresso no restante do texto. Não só durante a pesquisa, mas também durante a escrita
elementos podem surgir modificando os rumos da compreensão do objeto. As ideias não são
imutáveis e surgem a partir de diversas operações executadas pelo pesquisador ao longo do
tempo, como informa Pierre Bourdieu.
[...] a construção do objecto – pelo menos na minha experiência de investigador –
não é uma coisa que se produza de uma assentada , por uma espécie de acto teórico
inaugural, e o programa de observações ou de análises por meio do qual a operação
se efectua não é um plano que se desenhe antecipadamente, à maneira de um
engenheiro: é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por
retoques sucessivos, por toda uma série e correções, de emendas, sugeridas por o
que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam
as opções ao mesmo tempo minúscula e decisivas (BOURDIEU, 2007, p. 27)

Gostaria de fazer uma ressalva sobre a utilização da primeira pessoa na escrita.


Apresentar-se como o indivíduo por trás do nome impresso junto ao título na capa do trabalho
é mais que válido, é uma necessidade atual das novas reflexões sobre o trabalho do
antropólogo. Segundo Stuart Mills
[...] os mais admiráveis pensadores da comunidade acadêmica em que decidiu
ingressar não separaram seu trabalho de suas vidas. Parecem levá-los ambos a sério
demais para admitir tal dissociação. E querem usar uma coisa para o enriquecimento
da outra. Essa separação é claro é a convenção predominante entre os homens em
geral, originando-se, suponho, do vazio do trabalho que os homens em geral fazem
hoje.
[...]
Isto significa que deve aprender a usar a sua experiência de vida em seu trabalho
intelectual: examiná-la e interpretá-la continuamente. Nesse sentido o artesanato é o
centro de você mesmo, e, você está pessoalmente envolvido em cada produto
intelectual em que possa trabalhar. (MILLS, 2009, p. 21-22).
19

A pesquisa antropológica é uma atividade que cruza realidades, a do pesquisador e


do pesquisado3, portanto a trajetória daquele que realiza determinada investigação interfere na
construção do trabalho e pode ser fundamental na compreensão de certas opções
metodológicas para aquele que lê, muito embora também seja um fato que merece a atenção
do pesquisador, como sugere Pierre Bourdieu.
Como pode o sociólogo efectuar na prática a dúvida radical a qual é necessária para
por em suspenso todos os pressupostos inerentes ao facto de ele ser um ser social,
portanto, socializado e levado assim a sentir-se como peixe na água no seio desse
mundo social cujas estruturas interiorizou? Como pode ele evitar que mundo social
faça, de certo modo, através dele, por meio das operações inconscientes de si
mesmas de que ele é o sujeito aparente, a construção do mundo social do objecto
científico? (BOURDIEU, 2007, p. 35).

Narrar ou deixar claro a experiência pessoal durante as pesquisas “não deve ser
confundida como um divã” em que todos os percalços pessoais devem ser apresentados como
importantes para a pesquisa. Uma pequena biografia e a relação direta entre pesquisador e
objeto pode confundir a dissociação necessária para a postura metodológica de objetivação,
que dá o tom científico dos trabalhos das ciências sociais.
Aquilo a que chamei de a objectivação participante é sem dúvida o exercício mais
difícil que existe, porque requer a ruptura das aderências e das adesões mais
profundas e mais inconscientes, justamete aquelas que, muitas vezes constituem o
interesse do próprio objecto estudado para aquele que o estuda, tudo aquilo que ele
menos pretende conhecer na sua relação com o objecto que ele procura conhecer.
(BOURDIEU, 2007, p. 51).

Nesse sentido específico a história de vida do pesquisador deve ser apresentada


em uma relação direta com a “história de vida do trabalho”, ou seja, apresentando como a
ação de um pesquisador determinou o alcance ou não de determinados objetivos.
Eu fiquei uns dois anos indo na Casa das Minas quase toda semana para conversar
com dona Amância [...]. Eu entrava lá, falava “Bom dia” ou “Boa tarde” com quem
estava. E ninguém falava comigo, ninguém. Entrava, conversava com ela e assistia
às festas. [...] No dia que ela morreu é que dona Celeste veio conversar comigo. Foi
a primeira vez que eu conversei com outra pessoa sem ser [com] a chefe da casa.
(SILVA, 2006, p. 40, entrevista concedida por Sergio Ferretti).

Em que se justifica informar tantas idas ao terreiro e as experiências pessoais


vividas nesse período? Se não fosse a insistência do pesquisador em suas experiências
costumeira, sendo visto constantemente na casa, provavelmente sua presença não teria sido
notada. A sensibilidade do pesquisador em relação a certos aspectos torna-se relevante para
sua permanência no campo ou não, dependendo de suas atitudes. O exemplo que se segue
ilustra de forma clara a sensibilidade do que se fala.

3
Ainda nos casos de pesquisas que são realizadas por um pesquisador em sua própria sociedade é possível
afirmar que há o entrecruzamento de realidades, pois o antropólogo está buscando uma compreensão em uma
racionalidade distinta daquela que é fornecida pelo meio em que vive.
20

Em São Luís, contatei dona Celeste para conversar sobre as pesquisas que têm sido
feitas em sua casa. Cheguei a esse terreiro numa tarde chuvosa de julho de 1995 e
entrei pelo corredor que conduz à varanda interna onde os voduns costumam dançar
em noites de festa. Ao final do corredor encontrei duas velhinhas sentadas no
pequeno muro que separa a varanda do gume, um quintal onde florescem pés de
pinhão branco ao lado de uma frondosa cajazeira. Identifiquei-me meio sem jeito e
perguntei por dona Celeste. “Ela não está”, respondeu-me uma delas, dona Deni, “e
hoje não é dia dela vir” (Amélia, Celeste e Deni, formam um singular “triunvirato”
feminino de poder religioso na Casa das Minas. Conheci essas veneradas senhoras
de outras visitas que fiz a esse terreiro acompanhado de pesquisadores do lugar e das
etnografias que li sobre a religião dos voduns no Maranhão). Portanto, sabia que
solicitar naquele momento uma entrevista a dona Deni, tendo primeiramente
contatado dona Celeste, não seria uma política adequada. A divisão de poder nos
terreiros gera rivalidades e ciúmes entre os membros. (SILVA, 2006, p. 41-42).

A entrevista, que ocorreu no dia seguinte, poderia ter demorado mais alguns dias e
isto poderia estar fora dos cronogramas e orçamentos da viagem. A perspicácia do
pesquisador em não tentar adiantar as entrevistas com outras informantes e a paciência em ter
esperado foram escolhas significativas para tentar assegurar sua permanência no campo.
O relato acima está repleto de fatores que podem afetar uma pesquisa. Em se
tratando daquilo que pode atrapalhar o andamento de observações, visitas, filmagens, enfim,
da pesquisa como um todo, deve-se dar destaque aos fatores que podem não estar dentro do
raio de ação do pesquisador e da possibilidade de serem alterados para dar prosseguimentos às
atividades.
Eu pretendia centrar mais [a pesquisa] na questão do caboclo [...] Só que eu comecei
este trabalho e vi logo que tinha de mudar de estratégia. Ninguém me avisava de
coisas que não eram muito valorizadas. Eu não tinha chance de assistir rituais de
caboclo e toda hora estavam me avisando de candomblé e de saída de iaô [...]. Eu vi
que tinha que assistir muito candomblé para poder saber quando ia acontecer estas
outras coisas. (SILVA, 2006, p. 37, entrevista concedida por Mundicarmo Ferretti).

As escolhas feitas antes e durante a pesquisa também são exemplos de como o


autor se faz presente na construção do trabalho como um todo. Com graduação em história,
mas interessado em pesquisar religiões afro-brasileiras, passei a explorar por contra própria
bibliografia específica sobre o tema. Com isso veio a dificuldade em trabalhar o objeto na
área de história, em que o objeto de pesquisa não parecia ser relevante.
De forma semelhante adaptei o projeto de pesquisa para que tivesse pertinência
para o campo da antropologia, ou seja, construindo um objeto e um problema sociológico
dentro da pesquisa histórica já iniciada na graduação. Estando, em uma área de fronteiras,
trabalhei como os possíveis problemas de adaptação como uma forma de melhor compreender
o objeto, através dos aportes teóricos e metodológicos de ambas as áreas.
As opções do autor são de fundamental importância para quem lê e ajuda muito
no trabalho de compreensão dos aportes teóricos e metodológicos bem como dos caminhos
21

que a escrita do trabalho segue. Deixar claro a intenção daquilo que se quer dizer, daquilo que
se fez e que não fez é uma das funções da introdução, muito embora não seja o único espaço
para se executar tais inserções explicativas.
Pretendia considerar o maior número possível de fontes dos arquivos de polícia,
pois não pensava que teria a oportunidade de trabalhar com os periódicos. Não tinha
esperança que a biblioteca voltasse a funcionar e que o seu acervo fosse reorganizado após
anos de fechamento do prédio para reforma. No entanto, com a possibilidade de consulta dos
jornais na HDB pude ampliar o rol de fontes disponíveis e isso forçou a redução do recorte
temporal em cerca de vinte anos (de 1889 – 1930 para 1889 – 1910).
Após o levantamento dos periódicos para o período de 1890 a 1930 foram
selecionados 11 jornais4 (lista abaixo) dos quais três (em destaque) foram mais utilizados não
só por abranger o período que pretendia pesquisar inicialmente, como por apresentar uma
maior série documental e com mais referências ao objeto pesquisado.

Quadro 3 Levantamento dos Jornais no Período Republicano 5


Jornal Ano das Edições
a) A Campanha: Orgão de interesses populares 1902, 1903, 1904
b A Cruzada: diario politico-religioso, litterario, Disponível no sistema de consulta, mas não
commercial e noticioso. possui conteúdo
c) Pacotilha 1889 a 1930
d) Correio da Tarde 1909, 1910, 1911
e) Diário de São Luiz 1920, 1921, 1922, 1923, 1924, 1925, 1926,
1926, 1928, 1929
f) Diário do Maranhão 1889 a 1919
g) Folha do Povo 1923, 1924, 1925, 1926, 1927
h) O Combate: orgam em prol da verdade, da instrucção 1906, 1909
e da justiça
i) O Globo 1890
j) O Jornal 1910 a 1929
k) O Paiz 1889

A pesquisa documental por diversas vezes exige a mudança no olhar do


pesquisador, muitas vezes os roteiros e planos são modificados (quando não interrompidos),
sendo o controle da situação alterado entre o pesquisador e os documentos, que muitas vezes,
dizem não ou mesmo dão respostas genéricas e evasivas às indagações que são feitas. Isso não
invalida o trabalho, podendo possibilitar novas janelas de análise
Não é o indivíduo totalmente pesquisador distinto de um totalmente “pessoa
comum” que irá conferir cientificidade, pertinência e conteúdo ao trabalho. Não é a presença

4
Disponível para consulta em: http://hemerotecadigital.bn.br/
5
Os periódicos em negritos foram utilizados na pesquisa.
22

de um pesquisador aparentemente destituído de sua pessoalidade ou de sua participação na


pesquisa e nos processos de objetivação que irão diminuir o valor do trabalho.
Ao contrário do que acontece em outras ciências e mesmo nas outras ciências
sociais, em que o analista e pesquisador procura o mais possível estar ausente da
análise e da exposição dos dados, como meio de garantir uma posição neutra e
objetiva legitimadora da cientificidade, o antropólogo nunca esteve ausente de seu
texto e da exposição de seus dados, instrumento privilegiado de pesquisa, a presença
do antropólogo profissional tanto no trabalho de campo quanto no texto etnográfico
foi essencial para a constituição do conhecimento antropológico. Baseando a sua
produção de conhecimento na experiência pessoal de uma outra cultura, a
antropologia legitimou seus enunciados na fórmula: “eu estive lá, vi e, portanto,
posso falar sobre o outro. (CALDEIRA, 1998, p. 134).

Atualmente essa fórmula que confere autoridade perdeu sua validade por diversas
causas. O antropólogo não é o único capaz de compreender e dar a compreender culturas
diferentes. O que está em jogo agora não é mais a presença comprobatória, o holismo ou a
onisciência do pesquisador, muito menos a sua capacidade de ser científico escondendo-se
atrás dos dados e de uma linguagem impessoal e sim a capacidade de ser crítico em todas as
suas ações.
Faço esta ressalva para poder aproximar o trabalho do historiador com o do
antropólogo. Segundo Geertz (2001, p. 113) a tentativa de compreender o “outro” é o que
aproxima história da antropologia, mas o outro pode estar localizado em diferentes espaços
temporais e/ou espaciais. Ainda assim não se trata da mesma coisa, história e antropologia
distinguem-se (e divergem) por conta de suas abordagens acerca do “outro”.
Na verdade, nem mesmo o “nós”, o “self” que busca essa compreensão do “Outro”,
é exatamente a mesma coisa aqui, e é isso que explica, ao meu ver, o interesse de
historiadores e antropólogos pelo trabalho uns dos outros, bem como os receios que
surgem quando esse interesse é levado adiante. O “nós”, assim como o “eles”,
significam coisas diferentes para quem olha para trás e para quem olha para os lados,
problema este que não se torna propriamente mais fácil quando, como vem
acontecendo com frequência cada vez maior, alguém tenta fazer as duas coisas.
(GEERTZ, 2001, p. 113).

Uma das formas mais simples de se perceber a relação da qual falo desde o início
é considerar o trabalho de campo de cada um dos profissionais das diferentes áreas do
conhecimento. Ir a campo pode significar práticas diferentes entre antropólogos e
historiadores, ainda mais se considerarmos que dificilmente um historiador diz que está indo
ao campo. No entanto, pesquisa de campo é apenas uma designação específica da atividade de
pesquisa na busca pelo outro, como cita Geertz (2001). Assim as aproximações não são só
reais como significativas.
Outra forma de pensar metodologicamente a aproximação entre história e
antropologia a partir do campo é pensá-lo como algo construído e não como um espaço
preexistente e para onde o pesquisador se desloca. Dessa forma uma leitura antropológica de
23

documentos históricos permite a constituição de um campo em que o pesquisador define o


que irá fazer. Como afirma Bourdieu (2007, p. 27) “A noção de campo é, em certo sentido,
uma estenografia conceptual de um modo de construção do objecto que vai comandar – ou
orientar – todas as opções práticas da pesquisa”.
O campo é construído a partir da perspectiva de análise baseado nas áreas de
interesse do pesquisador, ou seja, relaciona-se diretamente com o seu objeto. As análises
propostas, por sua vez, devem estar bem fundamentadas teórica e metodologicamente, de
forma a se tornar compreensível e útil dentro de sua área de conhecimento.
Tampouco serão os referenciais clássicos ou a revisitação de manuais de pesquisa
de campo que irão dar o suporte científico do trabalho e sim a possibilidade de incluir tais
elementos na escrita de maneira reflexiva, tomando como base o contexto pesquisado. Todo
trabalho deve conter uma reflexão epistemológica sobre os fundamentos a partir do qual está
sendo construído, isso permite um maior domínio dos conteúdos abordados e não vai permitir
situações em que a teoria parece deslocada da prática.
As ideias, frases e palavras devem ser utilizadas após reflexões, mas não do tipo
relativista que tendem mais a esvaziar as expressões do que propor novos significados a elas.
Gostaria de retomar ao que já foi dito sobre cientificidade e objetividade para ratificar que
para alcançá-los não vai depender se o pesquisador tomar “dez grãos de quinino” ou não se
portar como “um maldito idiota” (Pritchard, 2005, p. 243) ou se vai citar ao máximo os
autores de determinada escola teórica e sim se trabalhar criticamente com os referencias
teóricos, metodológicos e principalmente com as informações obtidas.
Gilberto Velho exemplifica como uma reflexão sistemática pode relativizar os
pontos de vista de um pesquisador e contribuir para a compreensão do mundo social
pesquisado.
[...] em princípio, dispomos de um mapa que nos familiariza com os cenários e
situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos.
Isto no entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo
dos diferentes atores em uma situação social nem as regras que estão por detrás
dessas interações, dando continuidade ao sistema. Logo, sendo o pesquisador
membro da sociedade, coloca-se inevitavelmente a questão de seu lugar e de suas
possibilidades de relativizá-lo ou transcendê-lo e poder “por-se no lugar do outro”
(VELHO, 1975, p. 40).

Ainda que não faça parte da sociedade pesquisada é de fundamental importância


ao pesquisador questionar a si mesmo acerca daquilo que está escrevendo sobre o outro como
Gilberto Velho destaca: “O meu conhecimento pode estar seriamente compreendido pela
rotina, hábitos e estereótipos. Logo posso ter um mapa, mas não compreendo necessariamente
os princípios que o organizam.” (VELHO, 1975, p. 41)
24

Tratando-se de uma pesquisa que trabalha com documentos referentes a um


período no passado a atenção na familiarização com certas ideias, discursos ou representações
pode significar uma diferença entre um trabalho que acabe reproduzindo acriticamente o que
certa época fala de si e outro que reflita criticamente sobre os discursos dessa época a fim de
compreender as lógicas que de fato organizam as relações sociais que se processam na
sociedade.
Costumo dizer que duvido das fontes. Sempre penso na forma como o documento
foi produzido e o que orienta determinado discurso. Assim como o antropólogo faz uma série
de perguntas aos seus informantes também questiono as fontes, sempre buscando maiores
detalhes, como afirmou Evans-Pritchard (2005, p. 243) “Na ciência, como na vida, só se acha
o que se procura. Não se pode ter as respostas quando não se sabe quais são as perguntas”.
Em alguns casos é possível obter a resposta, em outros não e nesse aspecto “fazer pesquisa de
campo” não é diferente entre antropólogos e historiadores.
As fontes de informações do passado podem ser repletas em dados etnográficos de
terceira-mão6. Os jornais e documentos de polícia podem ser ricos informantes se o objetivo
da escrita é relatar algo com o máximo de detalhes para que possam informar o leitor ou
determinada autoridade sobre os fatos ocorridos. Nesse caso o historiador deve estar atento às
teias de significados partilhadas por quem redige determinado texto (seja uma notícia no
jornal, um ofício entre autoridades, uma sentença ou a transcrição de um depoimento). Ainda
que os PLF possam ser considerados como uma linguagem em primeira mão percebe-se uma
interação cultural em que o “nativo” fala em termos do “não nativo” para ser entendido.
Ao tentar compreender o outro que escreve e o outro que é descrito não me sinto
em um terreno seguro, pois a narrativa historiográfica como a etnográfica é, sobretudo uma
aproximação com determinados acontecimentos e no caso da primeira as inseguranças se
tornam maiores a cada vez que respostas às indagações do pesquisador podem ser obtidas a
partir de suposições embasadas em um contexto histórico específico.

6
Clifford Geertz (2011) trabalha com o conceito de cultura que segundo ele é semiótico, ou seja, uma teia de
significados tecidas e interpretadas pelo homem. Dessa forma o homem é o primeiro a analisar e interpretar a sua
própria cultura – “por definição, somente um ‘nativo’ faz a interpretação em primeira-mão: é a sua cultura
(GEERTZ, 2011, p. 11) –, e o antropólogo ao questioná-lo ou observá-lo estará fazendo uma interpretação de
segunda mão, ainda mais se consideramos que o antropólogo pertence a uma cultura distinta da do entrevistado
ou não partilha das mesmas teias de significados (nesse caso a própria linguagem acadêmica e os objetivos para
o qual a pesquisa é direcionada geram uma interpretação à luz de significados diferentes). Assumindo que a
pesquisa sobre determinada realidade lê algo de segunda mão, o historiador dedicado aos registros históricos de
determinada cultura estaria trabalhando com o as informações de “etnógrafos” situados no passado e portanto
fazendo leituras de terceira mão.
25

O contexto sociocultural fornece subsídios para questões aparentemente sem


respostas, situação esta que não é incomum nas pesquisas sobre a cultura afro-brasileira no
passado. O que é bastante comum é a falta de esforços para compreensão dessas realidades
não tão claras e objetivas. Em muitos casos é preciso responder a questão feita a um
documento com base em informações de outros, cruzando dados e chegando assim a uma
narrativa não isenta de lacunas, ou seja, a construção textual por meio das pesquisas dos
acontecimentos do passado só se torna possível encadeando relatos e detalhes espalhados
entre documentos distintos. João José Reis mostra como isso é possível em Domingos Sodré:
um sacerdote africano (2009) e em O Alufá Rufino (2010) ao reunir detalhes da vida de
sujeitos históricos presentes em fontes distintas e trabalhando com o contexto sócio cultural
para deixar a narrativa dos acontecimentos encadeada sem que as rupturas comprometam a
compreensão daquilo que se quer informar.
Os jornais talvez sejam as fontes em que as interpretações das culturas sejam bem
mais trabalhadas, pois há um espaço maior de subjetividade nos objetivos daquele que
escreve. O redator da notícia e da denúncia pode se permitir a emissão de pontos de vista que
não possuem espaço em um documento que tem como função burocrática apenas registrar
números e ocorrências7 sem maiores preocupações com as descrições. Os jornais, por sua
liberdade de lidar com as informações e tentar convencer o público daquilo que está escrito,
acabam expondo as chaves de leitura do cotidiano, familiares aos leitores da época e às vezes
de difícil percepção para o pesquisador.
A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por entender-se a
imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses e de
intervenção na vida social; nega-se, pois, aqui, aquelas perspectivas que a tomam
como mero “veículo de informações”, transmissor imparcial e neutro dos
acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se insere.
(CAPELATO e PRADO apud LUCA 2008, p. 118).

Os jornais não são imparciais, fazem parte de um jogo social em que relações de
poder são travadas todo momento por meio das informações divulgadas. Não há somente as
disputas entre jornais – A Pacotilha criticava ferrenhamente o Diário do Maranhão (alinhado
ao governo) taxando-o negativamente de governista e acusando-o de legitimar os desmandos
políticos de governadores e intendentes –, mas os jornais por si só, são espaços em que

7
Nos ODS pesquisados foram encontrados vários relatos de prisão de negros por distúrbios e ofensas à moral e
aos bons costumes, mas sem maiores informações do que se tratavam. Lendo os jornais pude ter ideia de que as
manifestações religiosas de matriz-africana também eram acusadas de provocar distúrbios que afetavam o
sossego público além de seus rituais ofenderem a moral e os bons costumes. No entanto, não poderia considerar
tais casos de distúrbios presentes nos ofícios como tendo relações com aspectos da religiosidade da população
negro-mestiça, pois poderiam englobar brigas, desentendimentos, bebedeiras, fatos estes também arrolados como
distúrbios e atos imorais.
26

acusações são feitas e rebatidas costumeiramente em que situações do cotidiano são redigidas
de modo vexatório, substituindo os nomes de figuras públicas por apelidos.
Se existem e são vendidos é porque seu discurso diz respeito a ideias correntes em
determinados meios sociais. A existência de um jornal depende muito do seu público
consumidor (fundamental para manutenção do funcionamento das prensas) e periódicos com
grande número de edições mostram que suas ideias reverberam na sociedade que compra e
consome a informação, mas também a sua forma de lê-la.
A forma de ler uma informação é tão importante quanto a mesma, sem
compreender tal característica correria o risco de repetir estereótipos, cair no discurso da
objetividade e da imparcialidade e de nunca perceber os interesses e motivos pelos quais
determinado acontecimento virou notícia. Essa ressalva é muito importante, pois muitas vezes
as notícias falam indiretamente ou como afirma Merleau-Ponty (1989, p. 93) “a linguagem diz
peremptoriamente quando renuncia dizer a coisa mesma”. Sem essa visão critica do jornal
enquanto um “sujeito” (ou vários) que falam aquilo que falam porque sabem que serão
ouvidos nunca poderia compreender porque a pajelança é notícia recorrente.
A documentação de polícia compreende, além dos PLF e ODS, algumas outras
séries documentais que não foram pesquisadas. Havia uma constante troca de informações
entre as autoridades policiais (representação no gráfico abaixo). Neste tráfego de informações
estavam presentes as temáticas relativas à segurança pública, ao sossego, manutenção da
ordem e dos bons costumes além de outros assuntos relativos a urbanidade, pois uma das
funções da polícia era fiscalizar o respeito às posturas municipais.8

Imagem 1 Hierarquia e sentido das trocas de informação da Chefatura de Polícia.

Chefe de
Polícia

Delegado de
Polícia da
Capital
Suddelegados
de Polícia
(Distritos e
Vilas)

8
Assim, desde o início de nossa história e formação social a polícia esteve agindo no sentido de impor uma
lógica organizacional urbana pensada pelas elites e para as elites em que o benefício de uns era marcado pela
supressão da ampla liberdade de outros. Essa é uma das justificativas para o fato da história dos africanos e seus
descendentes no Brasil ser contada a partir dos arquivos de polícia.
27

No caso desta pesquisa observam-se principalmente as correspondências enviadas


do Delegado e Subdelegados ao Chefe de Polícia e muito poucas entre delegados e
subdelegados. Estes ofícios são relatos do cotidiano em que são registrados os acontecimentos
que tiveram parte nos distritos e os assuntos são variados, prisões, mortes, suicídios,
desentendimentos entre vizinhos e etc. Há também a correspondência relatando os problemas
internos da própria instituição, como a falta de policiais, problemas de ocupação de cargos
(suplentes e inspetores de quarteirão) entre outros que atestam a deficiência do aparato de
segurança e justifica tantos problemas em uma cidade ainda pequena como São Luís.
Como afirmado anteriormente, os ofícios são relatos do cotidiano e neles estão
presentes alguns elementos que podem interessar diretamente aos pesquisadores preocupados
em compreender as ações dos citadinos. Este relato é intermediado pela ótica do escrivão, mas
que não invalida a sua utilização como referencial. Segundo Carlo Ginzburg (1989), fazendo
referência a Mikhail Bakhtin, o texto ainda que intermediado pela voz ou pela pena de alguém
está dialogando com uma realidade, que é marcada por lugares sociais e os interesses de quem
escreve e quem é descrito e que não há possibilidade de entendimento de ambas as categorias
se não for por meio da decifração das falas e posições ocupadas pelos indivíduos.
Os fatos narrados tanto nos ofícios quanto nos jornais estão “contaminados” e
“clarificados” – para usar os termos do historiador italiano – por quem observa e/ou escreve.
Contaminados porque dizem respeito a uma estrutura cognitiva diferente da nossa, de um
tempo distinto e na maior parte das vezes ligada à uma lógica repressiva e que não devem ser
reproduzida. Clarificados porque é a partir desses códigos da linguagem repressiva, uma vez
decifrados, torna-se possível interpretar as culturas. Ginzburg, influenciado por Geertz,
consegue mostrar que tanto historiadores quanto antropólogos são codificadores da cultura,
apresentando-a segundo uma linguagem técnica e científica que é diferente da linguagem dos
nativos.
Utilizo aqui a visão de Geertz da cultura como um conceito semiótico.
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua
análise; portanto, não como uma ciência experimental. (GEERTZ, 2011, p. 4).

A descrição densa dessa cultura, ou a sua interpretação, aproxima a antropologia


da história, pois o historiador também busca compreender o passado a partir dos códigos, teias
de significados e representações construídas pelo homem no tempo.
28

[...] a etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não
ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais
automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são
simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma
forma, primeiro apreender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis
de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar
informantes observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de
propriedade, fazer o censo doméstico... escrever o seu diário. Fazer a etnografia é
como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos
transitórios de comportamento modelado. (GEERTZ, 2011, p. 7).

Não é só a comparação realizada por Geertz que aproxima historiadores e


antropólogos, mas a tentativa do pesquisador em compreender do outro a partir de sua cultura.
Um sistema de crenças e práticas religiosas não são unicamente elementos destas teias de
significados, mas teias que por si só operam classificações no mundo social e natural e
organizam a vida dos indivíduos a partir deste sistema simbólico como observa Bourdieu
(2007).
Trabalharei mais a fundo tais concepções teóricas e metodológicas no
desenvolvimento dos capítulos, mas gostaria de frisar que ao tomar a religião e a cultura
popular na virada do século XIX para o XX são as ideias de urbanização, modernização,
ordenação social, enfim o nosso processo civilizador, que dá o tom da interpretação que as
fontes fazem da cultura da época. Elias compreende que o processo civilizador é um
acontecimento proveniente de demandas sociais pela mudança e não necessariamente um
projeto social a longo prazo.
Claro que “civilização” não é, nem o é a racionalização, um produto da “ratio”
humana ou o resultado de um planejamento calculado a longo prazo. Como seria
concebível que a “racionalização” gradual pudesse fundamentar-se num
comportamento e planejamento “racionais” que a ela preexistissem desde vários
séculos? Podemos realmente imaginar que o processo civilizador tenha sido posto
em movimento por pessoas dotadas de uma tal perspectiva a longo prazo e esse
autodomínio pressupõem um longo processo civilizador (ELIAS, 1993, p. 193).

É possível considerar as tentativas de reforma sociocultural no início da república


como um processo civilizador. Ampliando a noção de Norbert Elias podemos incluir
processos pensados e executados de cima para baixo, originados de uma demanda de um
grupo social específico e impostas a outros. No entanto, o processo civilizador brasileiro
nunca se completou. As autoridades buscaram de todas as formas suprimir uma série de
costumes considerados bárbaros, mas sem sucesso. A “civilização” não venceu e a “barbárie”
manteve-se nas falhas de execução desse processo, mas não sem perdas significativas.
29

Nesse panorama social é necessário compreender a cultura das populações pobres


e marginalizadas para além da perseguição e da repressão há muito constatada e conhecida –
como Ginzburg (1989) deixa claro ao destacar que ao estudar a inquisição privilegiou o que
era proibido e não a proibição – para isso o historiador precisa estar atento aos detalhes, seguir
as pistas se utilizando do paradigma indiciário, ou seja, interpretando pequenas pistas que
serão obtidas muitas vezes de maneira fragmentada nos documentos, mas que servirão para
compor um quadro analítico de determinada realidade.
É preciso também ter a paciência de um antropólogo, que aguarda por uma
entrevista ou que demora muito tempo para obter a resposta às perguntas. Posso afirmar que
muitas perguntas feitas no início da pesquisa foram respondidas somente depois da análise
repetitiva da documentação, depois de comparar documentos, elaborar fichas e tabelas, rever
transcrições, comparar dados, acessar a memória oral já recolhida por outros pesquisadores,
enfim, muitas respostas vieram algum tempo depois das perguntas feitas, isso sem contar
aquelas que ainda ficaram sem respostas.
Nesta dissertação apresento as informações que pude encontrar nos arquivos sobre
as religiões afro-maranhenses no recorte estudado. O que foi possível realizar, em termos de
busca e produção de dados, é apresentado aqui, mas isso não invalida a novas reflexões. O
cruzamento de dados e o conhecimento antropológico dessas manifestações religiosas podem
permitir novas interpretações e gerar mais material a ser apresentado.
Essa é a proposta apresentada no primeiro capítulo, intitulado História e Ciências
Sociais: por uma leitura antropológica das fontes históricas no qual apresento os termos da
reflexão teórica e metodológica que conduziram o trabalho com as informações obtidas em
pesquisa. No capítulo 2, apresento o cenário sócio cultural da república ludovicence e o
espaço no qual as relações sociais aconteciam, destacando as tentativas de controle bem como
os ideais e discursos que a embasavam. Este capítulo encerra a primeira parte da dissertação.
A segunda parte engloba os capítulos em que o objeto de pesquisa é trabalhado de
forma mais detida. O capítulo 3 apresenta considerações sobre as religiões afro-brasileiras e
as pesquisas que se dedicam ao tema além de informar sobre as fontes utilizadas para esta
pesquisa. No capítulo 4 abordo especificamente o Tambor de Mina, manifestação religiosa de
matriz africana característica do Maranhão dando destaque para as informações obtidas nos
pedidos de licença para festa e para os terreiros identificados. O breve capítulo 5 aborda a
Festa do Divino Espírito Santo devido a grande quantidade de pedidos localizados e a sua
relação com os terreiros de Tambor de Mina sendo parte integrante do sistema de crenças e do
calendário de muitos terreiros.
30

O último capítulo, dedicado à pajelança, apresenta reflexões sobre essa


manifestação religiosa e terapêutica a partir de informações obtidas nos jornais. Não era
minha intenção trabalhar com a pajelança, mas as pesquisas nos jornais descortinaram um
universo a parte, que teve de ser contemplado, mesmo com o volume de informações e dados
já obtidos.
Os mapas receberam tratamento digital em preto e branco para melhorar a
visualização, aumentando os níveis de contraste e definição bem como a diminuição das
machas e falhas existentes no documento original.
31

1ª Parte
32

1. HISTÓRIA E CIÊNCIAS SOCIAIS: por uma leitura antropológica das fontes


históricas.

O texto História e etnologia de Lévi-Strauss, publicado primeiramente em 1949,


demonstra a preocupação do autor em abordar a relação entre etnologia e história ao longo da
história da antropologia (até então). A republicação, quase dez anos depois, como primeiro
capítulo do livro Antropologia Estrutural é indício da importância que o autor dava à questão.
Quatro décadas se passaram entre a primeira publicação de História e Etnologia e
a publicação de História e Antropologia, texto de Clifford Geertz, abordando a mesma
temática, mas em um contexto distinto para a antropologia e para a história. O texto de Geertz
(2001) contempla o que foi possível (des)construir a partir da relação entre ambas em
determinadas pesquisas. Os textos acima citados são pontos de partida para este capítulo que
pretende situar a dissertação nessa relação entre antropologia e história.
As ideias de Geertz sobre a situação atual da antropologia e sua relação com a
história, presentes em textos publicado em Nova luz sobre a antropologia (2001), me levam a
subsidiar considerações acera da relação entre estas duas áreas do conhecimento a partir de
um tema atual, mas não tão novo assim. A primeira noção básica, tomada pelo autor para
iniciar sua discussão é a seguinte:
Parece haver alguns historiadores, cuja educação antropológica terminou em
Malinowski ou começou por Leví-Strauss, que acham que os antropólogos,
indiferentes à mudança ou hostis a ela, apresentam imagens estáticas de sociedades
imóveis, espalhadas por cantos longínquos do mundo habitado, e há antropólogos
cuja ideia de história é mais ou menos a de Barbara Tuchman, e que acham que a
atividade dos historiadores consiste em contar histórias admonitórias, do tipo “e aí”,
sobre este ou aquele episódio da Civilização Ocidental (GEERTZ, 2001, p 111).

Entre antropólogos e historiadores parece haver um falso-desconhecimento mútuo


e quase proposital, principalmente quando é constatada a proximidade entre as disciplinas.
Burke (2002, p. 12) identifica a mesma problemática em termos da relação entre historiadores
e sociólogos, que segundo ele caracteriza-se por um diálogo de surdos.
Historiadores e sociólogos (em especial) nem sempre têm mantido a política da boa
vizinhança. É inegável que são vizinhos intelectuais no sentido de que os praticantes
de ambas as disciplinas estão interessados (como os antropólogos sociais) na
sociedade vista como um todo, e no comportamento humano em geral. (BURKE,
2002, p. 12).

Burke e Geertz deixam claro em suas análises um problema de compreensão entre


historiadores, antropólogos e sociólogos. A dificuldade de conhecer e reconhecer a atividade
do outro não poderia ser explicada por um desconhecimento mútuo (o que é improvável), pela
33

compreensão do outro de forma errada (o que é pouco provável) e pela deturpação mútua da
identidade das disciplinas (o que é bem provável).
Infelizmente cada grupo tende a perceber o outro como um estereótipo bastante
grosseiro. Ao menos na Grã-Bretanha, muitos historiadores ainda consideram os
sociólogos pessoas que fazem afirmações sobre o óbvio em um jargão primitivo e
abstrato não têm nenhum sentido de lugar nem de tempo, espremem, sem piedade,
os indivíduos em categorias rígidas e, ainda por cima, descrevem essas atividades
como “científicas”. Os sociólogos, por sua vez, há tempos consideram os
historiadores coletores de fatos, míopes e amadores, sem nenhum sistema ou
método, sendo a imprecisão de sua “base de dados” equiparada apenas à sua
incapacidade de analisá-los. (BURKE, 2002, p. 13).

Geertz assim descreve a situação relatada acima.


Os antropólogos queixam-se de que a dependência dos historiadores nos
documentos escritos os torna presa de relatos elitistas e convencionalismos
literários. Os historiadores reclamam de que a confiança dos antropólogos no
testemunho oral os torna presa de tradições inventadas e da fragilidade da memória.
Supõe-se que os historiadores sejam arrebatados pela “excitação de apreender coisas
singulares”, e os antropólogos, pelo deleite da construção de sistemas, uns
afundando o indivíduo atuante no rápido suceder de acontecimentos superficiais,
outros dissolvendo por completo a individualidade nas estruturas profundas da
existência coletiva. A sociologia diz Veyne, referindo-se com isso a qualquer
esforço de discernir princípios constantes na vida humana, é uma ciência cuja
primeira linha não foi nem jamais será escrita. A história, diz Lévi-Strauss,
referindo-se com isso a qualquer tentativa de entender sequencialmente essa vida, é
uma carreira excelente, desde que no final se saia dela. (GEERTZ, 2001, p 112).

Fica claro que o problema de (des)conhecimento mútuo se fez e se faz pela


tentativa de afastamento a todo custo por parte de correntes de pensamento históricas e
antropológicas que tendem mais a descaracterização do que à aproximação entre as
disciplinas destas áreas. Esse esforço de diferenciação pode ser questionado e segundo Geertz
(2001, p. 113) a tentativa de tentar compreender o “outro” é o que aproxima história da
antropologia, mas o outro pode estar localizado em diferentes espaços temporais e/ou
espaciais.
Há ainda outro elemento da convergência: a relação entre historiadores e
antropólogos pode ser complementar para aqueles que buscam a compreensão do mesmo
objeto e neste intento interessam-se pelos trabalhos da outra área, propondo inclusive realizar
uma abordagem dupla (histórico-antropológica) de determinado objeto, como salienta
Thompson.
Aquilo que, ainda em 1967, K. Thomas podia justamente definir como “um
argumento que a maior parte dos historiadores considera periférico, para não dizer
bizarro”, tornou-se, neste meio tempo, um tema historiográfico mais que respeitável,
cultivado até mesmo por estudiosos pouco apreciadores das excentricidades. Quais
são os motivos dessa sorte imprevista?
A primeira impressão é que se trata de razões tanto científicas quanto
extracientíficas. Por um lado, a tendência cada vez mais difusa de investigar
comportamentos e atitudes de grupos subalternos ou pelo menos não privilegiados,
como os camponeses e as mulheres, induziu os historiadores a encontrar-se com os
34

temas (e às vezes também com os métodos e as categorias interpretativas) dos


antropólogos. (GINZBURG, 2012, p. 10).

Geertz alerta que ao tratar de junção de disciplinas não está se referindo a uma
fusão – no sentido de criar uma antropologia histórica, uma história antropológica ou mesmo
uma etno-história –, “mas de redefini-los em termos um do outro” (2002, p. 119). Deve-se
buscar afastar as mútuas desqualificações e em troca buscar uma relação mais complementar,
como informa Peter Burke (1997) ao falar da Escola dos Analles, perspectiva de pesquisa
histórica entre as décadas de 1930 e 1980.
A viragem antropológica pode ser descrita, com mais exatidão, como uma mudança
em direção à antropologia cultural ou “simbólica” Afinal de conta [March] Bloch e
[Lucien] Febvre leram o seu Frazer e o seu Lévy-Bruhl e usaram essas leituras em
suas obras sobre a mentalidade medieval e seiscentista. [Fernand] Braudel era
familiarizado com a obra de Marcel Mauss, que fundamenta sua discussão sobre
fronteiras e intercâmbios culturais. Na década de 60 [Georges] Duby utilizara os
trabalhos de Mauss e Malinowski sobre a função dos presentes, afim de entender a
história econômica da baixa Idade Média (Duby, 1973).
Tudo o que os historiadores anteriores pareciam desejar de sua disciplina vizinha era
a oportunidade de sobrevoá-la, de tempos em tempos, em busca de novos conceitos.
Alguns historiadores das décadas de 70 e 80, contudo, demonstrarem intenções mais
sérias. Podiam mesmo pensar em termos de casamento, em outras palavras em
termos de “antropologia histórica” ou de “etno-história”. (BURKE, 1997, p. 94)

A perspectiva de complementaridade citada acima diz respeito não só a fazer


incursões pelas áreas vizinhas para buscar teorias e conceitos. É possível ir além, buscando
novas formas de abordagem, expandindo as fronteiras das disciplinas, fugindo do lugar
comum e explorando conceitos e métodos com a finalidade de aprofundar conhecimentos.
Como propõe Sahlins (2003, p. 94) ao “multiplicamos nossos conceitos de história pelas
diversidades de estruturas e assim, de repente, há um mundo de coisas novas a serem
consideradas”, em uma definição metodológica Sahlins (2003, p. 141-142) faz uma “leitura
antropológica dos textos históricos”.
Talvez a etno-história, a antropolgia histórica ou a história antropológica sejam
apenas ideais a partir dos quais diversos autores buscam intercâmbios entre áreas do
conhecimento sem que as fronteiras desapareçam.
A onda recente de interesse dos antropólogos não apenas pelo passado (sempre nos
interessamos por ele), mas pela maneira como os historiadores lhe dão um sentido
atual, e do interesse dos historiadores não apenas pela estranheza cultural (coisa que
Heródoto já exibia), mas também pelas maneiras como os antropólogos a trazem
para perto de nós, não é um simples modismo; sobreviverá ao entusiasmo que gera,
aos medos que desperta e às confusões que cria. Bem menos claro é a que levará
essa onda, ao sobreviver.
É quase certo, porém que não vá muito além de onde já se foi, seja no sentido de
uma amalgamação dos dois campos em uma terceira coisa, seja na encampação de
um pelo outro. Sendo assim, boa parte da inquietação de ambas as partes acerca da
desapropriação do caráter erudito apropriado (que se costuma designar frouxamente
por “rigor”), bem como a polêmica defensiva a que ela dá margem, são no mínimo
equivocadas. (GEERTZ, 2002, p. 123).
35

Ao destacar a aproximação entre história e antropologia a finalidade é demonstrar


que esse processo vem ocorrendo durante boa parte do século XX, mas sem ainda alcançar
certa valorização entre as principais escolas de uma ou outra área.
As ideias de Goffman, Turner, Bourdieu, De Certeau e outros foram adotadas,
adaptadas e utilizadas para construir uma história mais antropológica. Jacques Le
Goff, por exemplo, vem trabalhando há mais de vinte anos no que pode ser descrito
como antropologia cultural da Idade Média, indo da análise estrutural das lendas ao
estudo dos gestos simbólicos da vida social, especialmente o rito da vassalagem.
(BURKE, 1997, p. 95)

Para Lévi-Strauss a primeira metade do século XX foi para a sociologia e a


história um período de significativo avanço, mas de forma diferente para as duas. Enquanto a
história manteve o seu programa e nele desenvolveu suas pesquisas a sociologia foi marcada
por conflitos internos (Lévi-Strauss, 2012, p. 17). Muito embora Lévi-Strauss não apresente
os detalhes desse cenário é aparente o fato de que as indefinições e lutas causaram certa
desagregação no campo das ciências sociais que dificultaram o avanço em comparação à
história9.
Lévi-Strauss afirma que tanto historiadores quanto antropólogos estavam
interessados em compreender o outro, no entanto, o que etnógrafos e etnólogos não
conseguiam era explicar os processos históricos envolvendo as sociedades estudadas. Franz
Boas é citado como um antropólogo que reconhecia a importância da pesquisa histórica ao
mesmo tempo em que seus métodos não possibilitaram avançar muito nesse sentido.
[...] Boas reconhecia a infinita diversidade dos processos históricos pelos quais ele
se constitui em cada caso. O conhecimento dos fatos sociais só pode resultar de uma
indução, a partir do conhecimento individual e concreto de grupos sociais
localizados no espaço e no tempo. Indução que, por sua vez, só pode resultar da
história de cada grupo. E o objetivo dos estudos etnográficos é tal que essa história
permanece inatingível na imensa maioria dos casos. Assim, Boas, traz as exigências
do físico de fazer a história de sociedades sobre as quais só possuímos documentos
que desencorajam o historiador. (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 28).

Boas queria para a antropologia a possibilidade de fazer induções a partir de


documentos que pudessem de fato indicar para certa realidade vivida e não especulações. A
importância dada à história nesse caso não se traduzia na possibilidade de sua execução, pois
os documentos conhecidos não permitiam a escrita dessa história.

9
É possível encontrar exemplos para as considerações de Lévi-Strauss ao observar alguns trabalhos, como o de
Radcliffe-Brown em que são dedicados espaços para as definições identitárias de sua área a saber: “Concebo a
antropologia social como a ciência teórico-natural da sociedade humana, isto é, a investigação dos fenômenos
sociais por métodos essencialmente semelhantes aos empregados nas ciências físicas e naturais. [...] Como os
senhores sabem, há etnólogos ou antropólogos que afirmam não ser possível, ou pelo menos proveitoso, aplicar
aos fenômenos sociais os métodos teóricos das ciências naturais. Para essas pessoas a antropologia social, tal
como a defini é algo que não existe e nunca existirá. Para eles, evidentemente, minhas observações não terão
valor algum ou pelo menos o significado que pretendo.” (RADCLIFFE-BROWN, 1973, P. 233)
36

Boas não só admitia a necessidade de uma relação complementar entre história e


etnologia como a imprescindibilidade da primeira para a segunda e vice-versa. É a partir do
estudo detalhado dos costumes que Boas afirma que a “etnologia está inextrincavelmente
ligada à história-cultura” (BOAS, 2004, p.94) e é partir do qual pretende conhecer as
especificidades de uma cultura bem como conseguir material suficiente para o
estabelecimento de leis gerais e das conexões entre os povos.
O estudo detalhado de costumes em sua relação com a cultura total da tribo que os
pratica, em conexão com uma investigação da distribuição geográfica entre tribos
vizinhas propicia-nos quase sempre um meio de determinar com considerável
precisão as causas históricas que levaram à formação dos costumes em questão e os
processos psicológicos que atuaram em seu desenvolvimento. Os resultados das
investigações conduzidas por esse método podem ser tríplices. Eles podem revelar
as condições ambientais que criaram ou modificaram os elementos culturais,
esclarecer fatores psicológicos que atuaram na configuração da cultura; ou nos
mostra os efeitos que as conexões históricas tiveram sobre o desenvolvimento da
cultura. (BOAS, 2004, p. 34).

Embora Boas creditasse ao método histórico a capacidade de auxiliar a etnologia,


suas ressalvas também são evidentes. Ao considerar o método histórico influenciado pelo
evolucionismo e preso à pesquisa documental muito pouco poderia ser feito no sentido de
avançar em seus intentos. São essas as concepções de Lévi-Strauss ao afirmar que o material
fornecido por Boas não possibilitaria que um historiador procedesse de alguma forma com o
seu método.
É preciso destacar ainda que a história de então estava ainda muito ligada à
pesquisa em documentos escritos. Essa tradição historiográfica – marcada pelo manuseio do
documento mais como prova do que necessariamente como fonte – era predominante à época
de Boas, mas já sofria modificações quando Lévi-Strauss escreveu seu texto e como ele
mesmo afirma.
[...] em sua marcha progressiva para determinar e explicar o que apareceu aos
homens como consequência de suas representações ou de seus atos (ou das
representações e atos de alguns deles), os historiadores sabem perfeitamente, e cada
vez mais, que têm de lançar mão de todo o aparelho das elaborações inconscientes.
Foi-se o tempo de uma história política que se contentava em arrolar
cronologicamente dinastias e guerras segundo o eixo de racionalizações secundárias
e reinterpretações. (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 50).

Devido a essa tradição ter se mantido muito forte durante boa parte da primeira
metade do século XX e ao fato da própria noção de história estar presa ao documento escrito,
é que Lévi-Strauss afirmava que os etnólogos não tinham a capacidade de fazer a boa história
até então, já que não possuía os elementos necessários para tal. Sem conseguir alcançar um de
seus objetivos de análise, afirmava Lévi-Strauss:
37

A etnologia e a etnografia (a primeira, aliás, reduzida à segunda) não passariam


então de uma história envergonhada demais de si mesma, em razão da falta de
documentos escritos ou figurados, para ousar assumir seu verdadeiro nome. (LÉVI-
STRAUSS, 2008, p. 24).

Radcliffe-Brown também partilhava da opinião de que o antropólogo não deveria


se ater a questões históricas pela falta de material para a prática do método histórico.
Faltam-nos quase completamente dados históricos autênticos para o estudo
científico de sociedades primitivas em condições isentas do domínio por sociedades
mais evoluídas que resultam nessas sociedades compositórias. Não podemos
estudar, mas tão somente especular sobre os processos de mudança que ocorreram
no passado de que não temos registros. Os antropólogos especulam sobre
transformações antigas nas sociedades dos aborígenes australianos, ou dos
habitantes da Melanésia, mas tais especulações não são história e não têm valor para
a ciência. Para o estudo da transformação social nas sociedades que não sejam
compositórias a que aludimos temos que contar com o trabalho de historiadores que
lidem com documentos autênticos. (RADCLIFFE-BROW, 1973, 249)10.

Novamente temos aqui a visualização de uma caracterização do método histórico


citado anteriormente. Essa mudança vai ocorrer com a ampliação do conceito de documento e
das modificações da pesquisa histórica com a Escola dos Annales (BURKE, 1997, p. 79-108).
Ademais é visível que Radcliffe-Brown não privilegiava a história como forma de estudo das
mudanças nas sociedades – como queria Boas –, já que, em sua abordagem, observava
mudanças das estruturas sociais que não implicavam em mudanças na foram das estruturas.
No estudo da estrutura social a realidade concreta de que estamos tratando é uma
série de relações realmente existentes, em dado lapso de tempo, que agrupa certos
seres humanos. [...] A ciência (diferentemente da história ou da biografia) não se
interessa pelo particular, peculiar, mas apenas pelo geral, pelas espécies, pelos fatos
que se repetem. As relações concretas de Antônio, João e Pedro, ou a conduta de
Manuel e José podem ser lançadas em nossos apontamentos para uma descrição
geral. Mas o que precisamos para fins científicos é um balanço da forma da
estrutura. (RADCLIFFE-BROW, 1973, 237 – grifo meu).

O fato de não considerar a história como uma ciência, ou pelo menos no nível
científico da antropologia social, corrobora ainda mais para a necessidade de não trabalhar de
maneira detida com a história de determinado povo, a não ser em seu caráter anedótico,
pontual e exemplificador. Sem possuir o nível de ciência a história e seu objeto não possuíam
pertinência nas análises de cientistas sociais, marcada pela constatação da “continuidade da
estrutura através do tempo” (Radcliffe-Brown, 1973, p. 237).
Por toda a vida de um organismo sua estrutura está sendo sempre renovada; e de
modo idêntico a vida social constantemente renova sua estrutura. Assim, as relações
concretas de pessoas e grupos de pessoas mudam de ano a ano, ou mesmo de dia-a-
dia. [...] Mas enquanto a estrutura social muda deste modo, a forma estrutural geral
poder permanecer relativamente constante por período de tempo maior ou menor.
Assim, se visito uma comunidade relativamente estável e a revisito após dez anos,

10
Radcliffe-Brown denomina sociedade compositórias ou sociedades plurais aquelas marcadas pelo domínio de
uma população sobre outra em que uma nova estrutura surge a partir das relações sociais orientadas por
diferentes valores e interesses. (1973, p. 248).
38

verifiquei que muitos de seus membros morreram e que outros nasceram; os


membros ainda vivos ficaram dez anos mais velhos e suas relações para com os
outros mudaram de muitos modos. Contudo observo que as espécies de relações que
posso constatar são pouquíssimo diferentes das vistas dez anos antes. A forma
estrutural pouco mudou.
Mas por outro lado, a forma estrutural pode mudar, às vezes gradualmente, e outras
vezes com relativa rapidez, como no caso das revoluções e conquistas militares. Mas
mesmo nas transformações mais revolucionárias mantêm-se alguma continuidade
estrutural. (RADCLIFFE-BROW, 1973, p. 237-238 – grifo meu)

Radcliffe-Brown não avança muito em sua argumentação, a não ser em insistir


que mudanças existem, embora não sejam significativas a ponto de transformar uma contínua
ordem/forma da estrutura. Considero essa insistência em tentar provar a continuidade como
uma consequência da opção teórica e metodológica tomada pelo autor de forma que o
universo que se configura em seu olhar de pesquisador estará condicionado a certos aspectos
já definidos anteriormente. Condição essa questionada por Edmund Leach.
Os antropólogos sociais que, na esteira de Radcliffe-Brown, usam o conceito de
estrutura social como categoria por meio da qual se pode comparar uma sociedade
com outra pressupõem na verdade que as sociedades existem durante o tempo em
equilíbrio estável. Será então possível descrever, por meio de categorias sociológicas
comuns, sociedades que presumivelmente não estão em equilíbrio estável?
(LEACH, 1996, p. 67).

Não se trata aqui de defender unilateralmente a preponderância da história sobre


os aspectos da vida social de um povo, mas de destacar que desde Boas a ideia de se
compreender as mudanças no passado das sociedades estudadas aparece como uma postura
metodológica complementar. No entanto, para certos antropólogos a dificuldade em se
proceder desta forma leva a não considerar o tempo como elemento de suas análises levando a
conclusões ou inferências deturpadas sobre a realidade observada.
Quando as sociedades antropológicas são assim dissociadas do tempo e do espaço, a
interpretação que é dada ao material é necessariamente uma análise de equilíbrio,
pois, se assim não fosse, decerto pareceria ao leitor que a análise era incompleta.
Mais do que isso, porém: Como na maioria dos casos o trabalho de investigação foi
realizado definitivamente sem qualquer noção de repetição, a apresentação é de
equilíbrio estável; os autores escrevem como se os trobrianders, os tikopias, os nuers
fossem e são agora e para todo o sempre. Com efeito, a confusão entre os conceitos
de equilíbrio e de estabilidade está tão profundamente arraigada na literatura
antropológica que o uso de qualquer desses termos está sujeito a ambiguidade.
(LEACH, 1996, p. 71).

De certo modo a negação da investigação histórica na etnologia seria uma saída na


busca pela diferença definitiva entre ambas. Saída essa inclusive aceita por Lévi-Strauss, não
por considerar necessário investir em uma negação completa da história na configuração
social – posição essa criticada pelo autor – mas sim na tentativa do etnólogo em analisar
dados históricos. Caso os historiadores desejassem trabalhar com o método etnológico nada
os impediria, mas o inverso poderia não ser possível pela falta de material ou informações
39

para tal feito, daí a “negação da história” por parte de alguns, como é possível observar nas
palavras de Lévi-Strauss.
É essa a atitude de Malinowski, cuja prudência tardia não basta para fazer esquecer
tantas proclamações ambiciosas. É também essa a atitude de muitos etnólogos da
nova geração, que, antes de irem a campo, não se permitem realizar o estudo das
fontes e da biografia regional, sob o pretexto de não estragar a maravilhosa intuição
que permitirá ao etnólogo, num diálogo atemporal com sua pequena tribo e acima de
um contexto de regras e costumes altamente diferenciados [...] atingir verdades
eternas sobre a natureza e a função das instituições sociais. (LÉVI-STRAUSS, 2012,
p. 33).

A atitude de negação de uma pela outra não deixa claro em que cada uma das
ciências que “estudam sociedades que são outras em relação àquela em que vivemos” (LÉVI-
STRAUSS, 2012, p. 30). A questão que merece resposta permanece: com quais definições
opera a história e a etnologia para diferir uma da outra? Essa pergunta também foi elaborada
por Lévi-Strauss e respondida da seguinte forma.
[...] é nas relações entre história e etnologia no sentido estrito que reside o debate.
Propomo-nos a mostrar que a diferença fundamental entre elas não é nem de
objetivo, nem de método e que, tendo o mesmo objeto, que é a vida social, o mesmo
objetivo, que é a melhor compreensão do homem, e um método em que varia apenas
a dosagem dos procedimentos de pesquisa, elas se distinguem, sobretudo pela
escolha de perspectivas complementares. A história organiza seus dados em relação
às expressões conscientes, e a etnologia, em relação às condições inconscientes da
vida social. (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 42).

Ao tratar do inconsciente como objeto da etnologia, resta à história trabalhar com


as manifestações conscientes dos homens, ou seja, de ações que são conhecidas do cotidiano
do homem e objetos de sua reflexão. Esses dados conscientes materializam-se nas fontes, ou
seja, no ato de registrar sua ação, ou seja, de narrar ou contar o seu cotidiano. Sem a
existência desse registro consciente (em suas várias formas) não haveria como, na visão do
etnólogo, praticar história, ao passo que trabalhar com o inconsciente das sociedades poderia
ou não prescindir desse registro histórico, a depender da intenção do pesquisador.
História e antropologia possuem uma relação que deve ser pensada de acordo com
a necessidade de fazê-la. Não sendo imprescindível, seria no mínimo enriquecedor e
esclarecedor a uma análise trabalhar de maneira conjunta com ambas. Esse é o caso do
trabalho com as religiões afro-brasileiras no passado. Tal perspectiva de trabalho não é tão
simples. Nem sempre as fontes possibilitam uma abordagem que possam informar ao mesmo
tempo sobre o contexto e seus símbolos. Como é possível observar em A formação do
Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia (2007) de Luis Nicolau Parés.
40

O livro enquadra-se ao mesmo tempo na área da história e da antropologia da


religião afro-brasileira. Interdisciplinar, portanto, incide numa pluralidade de temas
diversos, mas internamente entrelaçados, incluindo entre outros: a construção da
etnicidade jeje no Brasil Colônia, a contribuição dos cultos de voduns no processo
formativo do Candomblé, a micro-história de dois terreiros de nação jeje e uma
etnografia seletiva do panteão e do ritual vodum contemporâneo na Bahia.
Um aspecto significativo desse trabalho diz respeito ao uso complementar de fontes
escritas e orais, em combinação com a análise dos comportamentos rituais. Embora
não seja uma metodologia totalmente nova, essa interface entre história e etnografia
foi utilizada com pouca freqüência nos estudos afro-brasileiros. O cruzamento
crítico dessa variedade de fontes se mostrou bastante fértil e abriu caminhos
interpretativos que teriam sido impossíveis a partir da análise de um único tipo de
fonte. (PARÉS, 2007, p. 13).

Afirmar que o livro se situa na área da história e da antropologia pode não


significar muito se pensarmos que o autor pode separar o conteúdo em duas partes distintas,
uma em que se dedica a abordar apenas o contexto histórico e uma segunda em que se dedica
a etnografia. No entanto, neste livro em particular, semelhante à abordagem feita por Sahlins
(2003), a cultura da nação jeje nunca está desligada de seu sentido histórico.
A comunidade religiosa é abordada por Parés como tendo uma formação sócio-
ritual, ou seja, a partir de elementos que se inter-relacionavam através das relações sociais
entre a população negro-mestiça e os contatos culturais provenientes destas.
Progressivamente, as denominações de nação deixaram de designar indivíduos
compartilhando uma mesma terra de origem ou ascendência africana. O
pertencimento de uma pessoa a uma nação passou a depender do seu envolvimento,
normalmente marcado pela iniciação, com um terreiro onde, no culto,
predominavam elementos rituais e míticos de uma determinada terra africana. Como
bem notou [Vivaldo da Costa] Lima, o parentesco biológico foi substituído pelo
parentesco de santo, decorrente de processos iniciáticos. Consequentemente, o
conceito de nação “religiosa” ficou estritamente relacionado com as diversas
linhagens ou genealogias da família-de-santo, através das quais “a norma dos ritos e
o corpo doutrinário” são de uma forma ou de outra, transmitidos. (PARÉS, 2007, p.
102 – grifo meu).11

O termo nação era um mecanismo de discriminação/classificação da “mercadoria”


humana transportada e vendida. Enquanto uma categoria que poderia ser chamada de
burocrática passou a ser utilizada também como uma identidade, origem e ascendência
territorial africana utilizada pelos próprios escravos e seus descendentes de12 maneira êmica,
mesmo quando essa identificação não corresponde precisamente a uma etnia, como é o caso

11
O trabalho de Vivaldo da Costa Lima ao qual faz referência Nicolau Parés é a sua dissertação de mestrado
intitulada A família-de-santo nos candomblés jejes-nagôs da Bahia: um estudo de relações intragrupais (UFBA,
1977).
12
Parés (2007, p. 26) identifica a transposição da identidade metaétnica – atribuída a um grupo por indivíduos de
fora dele – para a identidade étnica a partir dos processos de socialização dos escravos, que poderia ocorrer tanto
na África quanto no Brasil.
41

dos africanos denominados Mina por se originarem do forte de São Jorge da Mina na Costa
do Ouro, atual Gana.13
As várias denominações dadas aos negros sofreram alterações de sentido ao longo
do tempo. Uma destas alterações diz respeito ao momento em que a identidade de um
indivíduo ou grupo deixa de ser relativa a sua origem em África (ou relativa a ideia desta
origem) e passa a fazer referência a iniciação ritual do grupo religioso o qual passa a fazer
parte.
Indivíduos de etnias diferentes passavam a se reconhecer e se denominar como
parte desta ou daquela comunidade religiosa à revelia de sua origem em termos estritamente
geográficos. Atualmente pessoas podem reivindicar para si uma identidade africana relativa
ao terreiro de iniciação sem que o pai ou filho de santo tenham tal ascendência.
O cotidiano e a cultura são marcados pela dinâmica. As mudanças ocorrem devido
ao fato do primeiro nem sempre favorecer a manutenção da segunda, sem que isto possa
invalidar uma determinada prática. Um indivíduo iniciado no Candomblé pode se denominar
como participante de uma nação, mesmo que esta não corresponda àquilo que designava os
indivíduos que iniciaram o candomblé. Seguindo o raciocínio de Sahlins (2003) a história
teria modificado a cultura em suas estruturas no momento em que a organização social dos
indivíduos escravizados teria sido determinante na estruturação de sua cultura religiosa,
mesmo sem invalidar elementos rituais e simbólicos.
É possível trabalhar com a mesma perspectiva de análise quando Parés busca a
compreensão do processo de mudança ritual ocorrida durante o século XIX, através do
processo que chamou de “institucionalização ou reinstitucionalização das formas de
organização religiosas negras no Brasil e da constituição de uma religião afro-brasileira”
(Parés, 2007, p. 118).
A minha tese de base para entender o problema sustenta que esse processo se deu
através de um progressivo nível de complexidade social e ritual. De um estágio
inicial, em que “fragmentos de cultura religiosa” foram retomados e postos em
práticas por pessoas carismáticas que atuavam de uma forma relativamente
individual e independente (em interações pessoais, visando principalmente a fins de
cura e adivinhação), passou-se pela formação das primeiras congregações religiosas
de caráter familiar ou doméstico, geralmente dedicadas ao culto de uma só
divindade, até se chagar à formação das primeiras congregações extra-familiares,
socialmente ainda mais complexas nas suas estruturas hierárquicas e práticas rituais,
que com o tempo chegaram a funcionar com certa estabilidade em espaços próprios,
com um calendário litúrgico recorrente e dedicadas ao culto de uma pluralidade de
divindades, “assentadas em altares ou espaços sagrados individualizados. (PARÉS,
2007, p. 118).

13
O caso do Forte ou Castelo de São Jorge da Mina ou São Jorge D’Elmina é comentado por Parés (2007, p. 27)
e a história do forte por Mariza de Carvalho Soares (2000, p. 45 – 48)
42

Primeiramente ao falar das religiões afro-brasileiras Parés reconhece que o


processo de organização das mesmas é, sobretudo, uma reorganização, ou seja, uma
construção a partir de elementos preexistentes referentes a um sistema já organizado em
determinados locais do continente africano. É a partir desses elementos que religiões dessa
matriz se configuram, em uma reinvenção a partir de uma série de fatores intrínsecos a
formação social, política, econômica e cultural do Brasil de então.
Ao entender que o candomblé passou de nichos locais, em torno de lideranças
carismáticas voltadas para a cura e adivinhação para congregações religiosas hierarquizadas
baseadas em um complexo, Nicolau Parés deixa claro que essa dinâmica não se deu
unicamente pela via da agência dos indivíduos ligados às religiões – as lideranças
carismáticas, por exemplo.
As redes sociais construídas ao longo do tempo pela população negra e mestiça, a
ação do catolicismo não só na conversão, mas também na constituição de uma cultura
religiosa sincrética, o combate por meio da ação repressora da polícia, a abolição e tantos
outros elementos devem ser considerados e dispostos em um arranjo de forma que, em cada
caso pesquisado, seja possível expor como se deu determinada configuração religiosa.
Sem afirmar que a história é fruto da ação cultural ou o contrário, como relações
opostas, mas como a ação dos homens é formatada pela cultura ao mesmo tempo em que esta
última está em condição de sofrer alterações pela ação dos indivíduos em determinado
contexto social, como afirma Marshall Sahlins (2003).
O autor pretende demonstrar que na história, ou seja, na prática humana da
cultura, os elementos culturais não são fixos e imutáveis, podendo sofrer alterações de seus
significados ou mesmo suprimidos como é o caso dos tabus sexuais e das hierarquias sociais.
Duas passagens dos textos de Sahlins podem ser citadas para exemplificação. A primeira diz
respeito ao condicionante da história pela cultura, ou seja.
O interesse coletivo no comércio desenvolvido pela população comum, colocava-a,
enquanto classe social, em oposição a seus chefes, cujos interesses era por bens
políticos e de status, o que criou da parte do povo uma oposição ao sistema de tabu.
Os chefes instituíam tabus para controlar e aumentar o comércio a seu favor [...]
Mas as pessoas comuns mostravam-se dispostas a transgredir tabus de todos os
tipos, sendo que os europeus às vezes às encorajavam nesse desafio.
A bordo dos navios, os marinheiros atraíam as mulheres para suas próprias
concepções de tranquilidade doméstica. Convidavam suas amantes a comerem certas
comidas, como carne de porco, bananas e cocos e, assim fazendo, as mulheres
duplamente transgredirem os tabus havaianos mais estritos, relativos a
comensalidade intersexual. [...] Por outro lado a lógica havaiana do tabu continuava
válida a bordo dos navios ingleses e teve o seguinte efeito: consumir a condição
divina do estrangeiro. Enquanto homens que comiam com mulheres, os britânicos
logo estavam dessacralizados, poluídos, secularizados. Estabeleceu-se entre
havaianos e europeus uma clivagem étnica que não havia sido prevista [...]. E assim
43

o curso da história foi orquestrado pela lógica da cultura. (SAHLINS, 2003, p.


28-29 – grifo meu).

A segunda diz respeito à relação econômica que foi imposta sobre a tradição do
que Sahlins (2003, p. 27) chamou de “amor das mulheres havaianas”.
As mulheres “eram pouco influenciadas por motivos de interesses, em seus
intercursos conosco” diz um apontamento característico em um dos diários, “sendo
que quase usavam de violência para nos forçar aos seus abraços, quer lhes déssemos
algo ou não”. Ainda assim os marinheiros sabiam retribuir os serviços prestados.
Para ser mais preciso, eles reificavam as carícias das mulheres como “serviços”
pagando por elas com presentes. Com transações desse tipo, o comércio erótico
deixou de repetir a tradição e começou a fazer história. (SAHLINS 2003, p. 27 –
grifo meu).

Nesse sentido podemos dizer que uma leitura antropológica das fontes históricas é
um avanço na compreensão do passado. A narrativa que supervalorizava o diacrônico torna-se
mais complexa com as análises sincrônicas, deixando de ser necessariamente atreladas a um
período de tempo, mas valorizando os elementos culturais que dão significado as ações
humanas dentro de um recorte temporal.
Esse tipo de análise, que pode ser chamada de inter ou transdisciplinar, se
desenhou ao longo das pesquisas como uma necessidade de entender as manifestações
religiosas de matriz africana em São Luís do Maranhão na virada do século XIX para o XX. A
partir das informações documentais busquei explorar vários caminhos para entender as
questões relacionadas à temática.

1.1 Uma tentativa de definição

Nessa tentativa de definir o trabalho gostaria de explicar algumas definições que


já estão presentes no título da dissertação. É necessário frisar que essas definições surgiram a
partir de questionamentos e reflexões feitas à própria utilização dos termos para composição
da temática escolhida, como uma espécie de revisão dos sentidos expressados pelas categorias
utilizadas.
A partir da literatura a respeito das manifestações religiosas de matriz africana
várias denominações são conhecidas: Candomblé na Bahia, Xangô em Pernambuco, Batuque
no Rio Grande do Sul, Tambor de Mina no Maranhão, além da umbanda, difundida em todo o
território nacional. Definir cada uma dessas religiões tendo sido tarefa de pesquisadores a
muito tempo e que aos poucos se torna mais complexa devido não só ao crescimento, mas às
variações existentes em cada uma dessas matrizes, se é que assim é possível considerá-las.
44

Para facilitar poderia apresentar a definição do Tambor de Mina para aquilo que
chamo de religiões afro-brasileiras no título, fato este corroborado por estar trabalhando o
recorte espacial do Maranhão e mais especificamente de São Luis, cidade onde se localizam
as duas casas mais antigas onde são oficiados os rituais dessa religião afro-maranhense: a
Casa das Minas e a Casa de Nagô, ambas com fundação em meados do século XIX. No
entanto, essa definição não pode ser tão simples assim.
Não é possível aplicar a denominações conhecidas atualmente para as
manifestações religiosas do passado sem o devido cuidado. Tendo em mente que o projeto de
pesquisa foi elaborado com base nas análises realizadas a partir de pesquisas nos ODS da
segunda metade do século XIX, não seria possível afirmar que as práticas religiosas eram
candomblé, calundu e muito menos a tambor de mina expressões estas não localizadas. A
expressão batuque é utilizada largamente, mas sem uma definição precisa das práticas sob
essa denominação, como aponta Vagner Gonçalves da Silva:
O nome mais frequente para as religiões de origem africana no Brasil até o século
XVIII parece ter sido calundu, termo de origem banto, que ao lado de outros como
batuque ou batucajé designava e abrangia imprecisamente toda sorte de dança
coletiva, cantos e músicas acompanhadas por instrumentos de percussão, invocação
de espíritos, sessão de possessão, adivinhação e cura mágica (SILVA, 2005, p. 43).

As denominações dança de preto e dança de tambor também aparecem nessa


documentação fazendo referência a reuniões de negros, mas sem indicações daquilo que
estavam caracterizando. Segundo Emanuela Sousa Ribeiro (1998) na documentação composta
por requerimentos de licenças para festas entre 1873 e 1933 é somente a partir de 1896 que o
termo Mina vai aparecer como referência a uma manifestação festiva.14
Voltarei aos termos, suas utilizações e significados em capítulos posteriores, por
hora é necessário frisar que utilizar referências atuais para falar das religiões afro-brasileiras
no passado é uma atitude que pode comprometer a capacidade analítica do trabalho, já que
diversas palavras são utilizadas com sentidos diferentes. Dessa forma não é possível trabalhar
muito distante das expressões que aparecem nos documentos, onde prevalece o ponto de vista

14
Emanuela de Sousa Ribeiro em seu relatório de iniciação científica “Requerimentos de Licenças para festas na
secretaria de polícia de São Luís (1873-1933)” de 1998 informa que me suas pesquisas o termo mina aparece
pela primeira vez em 1896, no entanto não posso ratificar esta constatação, por uma série de razões. No período
entre 1891 e 1894 não há documentos arquivados nesta série documental, que podem ter sido extraviados ou
perdidos pela deterioração. No mesmo trabalho a autora apresenta como anexo uma tabela em que traz o registro
de um pedido de 1885, elencado por ela na categoria “Mina”. Localizei em minhas pesquisas registros no ano de
1895 referentes a tambor de mina, documentos estes que de alguma forma não foram pesquisados ou localizados
pela pesquisadora, portanto, anteriores ao que ela afirma como marco temporal do início das referências nesta
série documental. Como não considerei o período anterior a 1889 (devido ao tempo de execução das pesquisas
nos PLF’s) não desconsidero que os pedidos para tambor de mina tenham sido feitos anteriores a 1895, ano dos
primeiros registros localizados em minha pesquisa.
45

de quem escreve ou que ordena a escrita do mesmo, os quais dificilmente tinham contato ou
conheciam esse universo simbólico.
Para maior clareza e especificidade ao trabalhar com as fontes esse critério de
denominação deve ser flexível e os objetos aos quais os nomes se referem devem ser
caracterizados o máximo possível. Assim será possível a compreensão do cenário pesquisado
com certa fidelidade às fontes e aproximação com acontecimentos aos quais elas fazem
referência. Como afirmei anteriormente, ao duvidar das fontes, posso considerar e descartar as
informações obtidas levando em conta o contexto ao qual se refere e a organização do próprio
discurso. É assim que posso afirmar que ao falar de pajelança um delegado estava se referindo
a tambor de mina, ou que a pajelança era utilizada indiscriminadamente como uma
macrocategoria.
Da mesma forma como o antropólogo trabalha com as categorias êmicas em
relação aos grupos pesquisados, as expressões de época devem receber a mesma atenção por
serem chaves de compreensão das relações sociais e da cultura de então, mesmo sabendo que
tais denominações nem sempre condizem com as denominações internas aos grupos religiosos
como indica Nicolau Parés.
Cabe notar que as denominações metaétnicas (externas), impostas a grupos
relativamente heterogêneos, podem, com o tempo, transformar-se em denominações
étnicas (internas), quando apropriadas por esses grupos e utilizadas como forma de
auto-identificação.[...]
Desse modo, os africanos chegados ao Brasil encontravam uma pluralidade de
denominações de nação – umas internas e outras metaétnicas – que lhes permitia
múltiplos processo de identificação. Aqueles africanos não habituados às
denominações metaétnicas já na própria áfrica, uma vez no Brasil, rapidamente as
assimilaram e passaram a utilizá-las pela sua operacionalidade na sociedade
escravocrata, enquanto geralmente reservavam o uso das denominações étnicas
vigentes nas suas regiões de origem para o contexto social mais restrito da
comunidade negro-mestiça. (PARÉS, 2007, p. 26).

Muito embora esteja se referindo basicamente às nações enquanto forma de


classificação dos negros, Nicolau Parés deixa aberta uma possibilidade de compreensão para
outros casos. Pensar que há múltiplas denominações (internas e externas) é uma ressalva útil
ao se tratar das expressões de época acerca das manifestações religiosas afro-brasileiras. No
bojo das denominações atribuídas a grupos, ritos e símbolos as denominações permitem
também refletir acerca das representações que os grupos sociais dominantes tinham acerca
dos negros e sua cultura.
Segundo Roger Chartier ao se falar em representações na história busca-se de
certa forma
46

[...] identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada


realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários
caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que
organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais da percepção
e de apreciação do real. Variáveis, consoante as classes sociais ou os meios
intelectuais, são produzias pelas disposições estáveis partilhadas, próprias do grupo.
São estes esquemas intelectuais incorporados que criam figuras graças, às quais o
presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado.
(CHARTIER, 1990, p. 16-17).

Não é preciso aprofundar muito para mostrar o que são as representações sociais
acerca das religiões afro-brasileiras, pois muitas delas ainda estão vivas na sociedade
atualmente, como a noção de feitiçaria, que está presente na história do Brasil desde a
colonização15 e que marcou profundamente as religiões não católicas.
Laura de Mello e Souza em o “Diabo e a Terra de Santa Cruz” (1986) mostra
como as concepções a cerca de bruxaria e feitiçaria foram utilizadas no Brasil em
decorrências das práticas de europeus, índios e negros, que acreditavam que podiam agir por
meio do sobrenatural para interferir no cotidiano, práticas estas reprovadas e combatidas pela
Igreja e Estado, principalmente por meio da Inquisição
João José Reis retoma uma série dessas representações ao falar sobre a invasão do
candomblé do Accú em 1829, citando o discurso do juiz que determinou a diligência policial
e prisão dos participantes do ritual.
Diante disso, não é de admirar que o Guimarães [juiz] tenha feito imediata relação
entre o candomblé e a quebra da ordem. Ganha também mais coerência sua escolha
da linguagem da ortodoxia católica, de um discurso inquisitorial para definir e
combater a festa de candomblé. Esta seria, para ele, perigosa brincadeira do diabo,
personagem considerado patrono de “feitiçarias” e “supertições” atribuídas aos
africanos desde o início de sua escravização no Brasil. Já no início do século XVII,
o autor dos Diálogos das grandezas do Brasil comentaria a eficácia dos “escravos
feiticeiros” no uso de ervas; em 1728, Nuno Marques Pereira, o Peregrino das
Américas, escrevia sobre “ritos supersticiosos e gentílicos” dos africanos; em 1761,
um ouvidor de Ilhéus mandaria prender “pretos feiticeiros” especialistas em “artes
diabólicas”, de adivinhar e curar; em 1785, quatro africanos seriam presos em
Cachoeira por promoverem “batuques, feitiçarias e ações supersticiosas”. (REIS,
1989, p. 41).

Mundicarmo Ferretti ao falar do processo crime de Amelia Rosa em 1877 também


trabalhou com algumas destas representações, que tomaram parte central no processo judicial.
Em tom de denúncia os jornais reprovaram e condenavam os negros envolvidos nestas
práticas religiosas e exigiam das autoridades atitudes que visassem antes de tudo combater as
práticas de Amelia e não necessariamente puni-la pelo crime em si.

15
Francisco Bethencourt analisa inúmeros relatos da inquisição portuguesa no século XVI para mostrar parte de
uma tradição mágico-religiosa não católica que era partilhada por grande parte da população da Portugal
seiscentista.
47

Assim têm-se a impressão de que não se estava querendo apenas punir os agressores
de Joanna ou botar na cadeia os responsáveis pelo que foi feito nela, mas condenar
Amelia Rosa e pessoas do se grupo, cujos nomes já eram conhecidos da polícia. Isso
explicaria a condenação de réus que não confessaram e cuja participação não foi
comprovada nas sevícias e também, o desinteresse em localizar e/ou processar
outras pessoas que teriam sido igualmente citadas pela ofendida como colaboradores
de Amelia Rosa. (FERRETTI, M., 2004, p. 32).

Do ponto de vista da historiografia esta temática ainda é pouco abordada se


compararmos com a antropologia. No entanto seria um erro afirmar que não há trabalhos no
campo da história. Já citei aqui os trabalhos de João José Reis e Laura de Mello e Souza, mas
ainda é possível destacar os trabalhos de Mariza de Carvalho Soares (2000) e Gabriela dos
Reis Sampaio (2009) a serem considerados dentro desse panorama de produção sobre as
religiões afro-brasileiras que conseguiram avançar para além da ótica da repressão.
Isso é possível também através de um trato diferenciado com as fontes,
questionando-as não só para constatar a perseguição, seus mecanismo e justificativas, mas
também para compreender aquilo que estava sendo perseguindo, ou seja, quais as práticas que
sofriam com as representações negativas e com a repressão. O artigo Acabe com este santo,
Pedrito vem aí... Mito e realidade da perseguição policial ao candomblé baiano entre 1920 e
1942, Angela Lühning é um exemplo da perspectiva de análise que olha para aquele que
proíbe e não para aquele que era proibido de fazer algo.
A autora apresenta uma boa proposta de trabalho ao tentar apresentar a
perseguição aos candomblés a partir da ação de um delegado, que teria ficado conhecido pela
sua truculência a ponto de sua figura ser encarada como um mito que perpassou gerações.
Sua tentativa de separar mito da realidade desconsidera neste trabalho a agência dos grupos
proibidos que resistiam às perseguições e prisões e que consequentemente levavam a novas
ações da polícia. A pergunta “porque resistiam?” quase nunca toma parte nas investigações.
O trabalho citado direciona para outra reflexão acerca de boa parte dos trabalhos
de história: estar preso ao documento como fonte de verdade e não avançar para além daquilo
que está dito. Os historiadores em sua maioria valorizam os documentos com informações
mais completas (como relatórios, processos judiciais, inventários e testamentos) que possuem
um início, meio e fim. A facilidade de obtenção de informação por meio desses documentos é
grande e muitas vezes não há um avanço para além daquilo que está contido no papel,
cabendo ao pesquisador apenas a transcrição e explicação de uma ou outra informação.
Essa é uma das razões pelas quais trabalhar com a cultura popular ainda é difícil.
Não só pelas dificuldades do mito de “inexistência” de registros, mas principalmente pela
falta de interesses de pesquisadores em lidar com as dificuldades desse tipo de pesquisa em
48

que muito esforço é empreendido para reunir informações contidas nas entrelinhas, no
silêncio das fontes e no não-dito.
A história também pode (e deve) “trabalhar com as possibilidades”, ou seja, lidar
com as possíveis interpretações e respostas às questões feitas aos documentos, através da
análise do não dito, do que foi suprimido. Mesmo quando as respostas são parciais ou
incompletas é significativo o fato de que alguma pista pode se desdobrar em um universo de
possibilidades interpretativas.
Ao se falar de religiões afro-brasileiras há uma necessidade de se conhecer uma
tradição quase linear de autores e que é percorrida em boa parte dos trabalhos como uma
obrigatoriedade. Segundo Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio Gomes falar sobre cultura
afro-brasileira no Brasil é de certa forma revisitar essa produção, pois o negro
[...] apareceu como foco de estudo no Brasil na virada do século XIX para o XX,
associado ao Folclore e aos temas da diversidade cultural brasileira. Falava-se em
reminiscência da cultura africana no Brasil. Era necessário classificá-la e também
escolher seus cenários. A África no Brasil teria palcos privilegiados. Estes
guardariam seus mistérios e encantos. Foi um pouco por aí que uma certa
antropologia caminhou numa tradição que – guardadas as especificidades –
percorreu de Nina Rodrigues, a Arthur Ramos, Edson Carneiro, Roger Bastide e
Pierre Verger. (SOARES e GOMES, 2001, p. 3).

Essa exigência define-se por uma caminho que se inicia com essa primeira
tradição que vai até Pierre Verger, período a partir do qual há um crescimento significativos
nas pesquisas surgindo uma nova tradição, com novos objetos, teorias e análises. Kabengenle
Munanga (2009, p. 19) afirma que a obra Os Africanos no Brasil transformou Nina Rodrigues
no primeiro intelectual a pensar a presença dos negros africanos no Brasil.
[...] a obra de Nina Rodrigues prefigura todas as questões com as quais se debruçam
ainda hoje os estudiosos da população negra no Brasil, a saber: a presença africana
no Brasil e suas contribuições; o problema da miscigenação e as relações raciais
entre negros, brancos e mestiços; a mestiçagem como solução para as mazelas
raciais brasileiras e para o processo de construção da identidade nacional no
pensamento de alguns ideólogos, como Oliveira Vianna, Sílvio Romero e João
baptista Lacerda. (MUNANGA, 2009, p. 19).

Vagner Gonçalves da Silva (2009, p. 53) considera que a história da Antropologia


brasileira pode ser divida em duas tradições, a primeira relativa aos estudos indígenas e a
segunda relativa aos estudos afro-brasileiros. Sobre essa segunda tradição informa:
Seu principal fundador, Raimundo Nina Rodrigues, só na última década do século
XIX publicou suas investigações, nas quais o negro era visto tanto do ponto de vista
racial como de suas expressões religiosas. Com a decadência do paradigma racial,
essa tradição acabou por se afirmar principalmente no estudo deste segundo item.
Dois nomes foram, então, seus grandes incentivadores: Arthur Ramos, que procurou
garantir um campo específico para o estudo do negro quando as primeiras
universidades foram criadas na década de 1930, e suas disciplinas oficiais
instituídas, e Roger Bastide, que por meio da análise do tema consolidou de vez esse
49

campo, abrindo as portas para as pesquisas institucionalizadas pelas universidades a


partir da década de 1960. (SILVA, 2009, p. 53).

Beatriz Góis Dantas (1988, p. 19-20) informa que a busca pela compreensão do
Candomblé resultou em muitos estudos num direcionamento para a África, como a origem de
um sistema religioso que permaneceu puro. Compreender que existem modelos de religião
que resistiram ao longo do tempo e não perderam sua essência é um problema de
interpretação que simplifica a compreensão histórica de todos os processos sociais, políticos e
econômicos que influenciaram direta e indiretamente na reorganização das crenças e rituais
em terras brasileiras.
Reginaldo Prandi atenta para essa questão quando afirma que os processos de
mudança foram significativos para as religiões afro-brasileiras
O tecido social do negro escravo nada tinha a ver com família, grupos e estratos
sociais dos africanos nas suas origens. Assim, a religião negra só parcialmente pôde
se reproduzir aqui. A parte ritual da religião original mais importante para a vida
cotidiana, constituída no culto aos antepassados familiares e da aldeia, pouco se
refez, pois a família se perdeu, a tribo se perdeu. [...] Quando as estruturas sociais
foram dissolvidas pela escravidão, os antepassados perderam seu lugar privilegiado
no culto. Sobreviveram marginalmente no novo contexto social e ritual. As
divindades mais diretamente ligadas às forças da natureza, mais diretamente
envolvidas na manipulação mágica do mundo, mais presente na construção da
identidade da pessoa, os orixás, divindades de culto genérico, estas sim vieram a
ocupar o centro da nova religião negra em território brasileiro. (PRANDI, 1995,
p.68)

Beatriz Dantas, consciente das modificações sofridas pelas religiões afro-


brasileiras e da necessidade de se compreender como se configuraram – principalmente em
termos ideológicos – ao longo do tempo, destaca a manipulação das características atribuídas
e auto atribuídas, dos elementos históricos que compõem as narrativas de fundação. Ao falar
do prestígio de determinados terreiros o que a autora observa são os elementos presentes nos
discursos dos sacerdotes e dos fiéis, bem como das ideias construídas pela sociedade em
volta.
Pude perceber ao longo das pesquisas que a religiosidade maranhense, já no
século XIX não pode ser compreendida dentro dessa noção de pureza, de uma comunidade
estática que preservou suas divindades e rituais. Considero a pajelança – prática religiosa de
cura conhecida aqui desde o século XVI pelos relatos dos missionários e depois difundida
entre as comunidades afrodescendentes – atualizada aos problemas sociais da época, como a
falta de médicos e a demanda social pela cura, elementos estes que serão abordados de forma
mais complexa nos próximos capítulos.
Essas manifestações religiosas, principalmente os seus registros precisam ser lidos
antropologicamente, com a finalidade de se compreender de quais religiões estamos falando e
50

de que forma estas se materializam nas vivências dos indivíduos e quais as relações com os
aspectos sociais, cultuais e urbanos que influenciam a estrutura dos sistemas religiosos e que
podem ser pensados através da repressão.
51

2. A REPÚBLICA DOS MALES E DAS CURAS

2.1 A chegada da “coisa pública”.

[...] ruas que fazem a sesta, que ficam paradas,


silenciosas, para não romper o silêncio atávico do
andamento histórico. (LACROIX, 2012, p.313)

Uma ideia adequada para representar a República no final do século XIX é de que
ela finalmente havia chegado. As ideias republicanas estavam presentes no cenário político e
intelectual brasileiro desde o século XVIII e propunham reformas significativas na política e
na sociedade brasileira. Caminhando vagarosamente por todo o século XIX os ideais de uma
mudança contra a monarquia finalmente chegaram ao seu máximo em 15 de novembro de
1889.
Mas, nas três últimas décadas do século XIX, a Monarquia pesou sobre si mesma.
Ano após ano os problemas cresciam ou se renovavam e o pensamento de mudança ganhava
força em determinados meios sociais. A crise econômica, a Igreja Católica, os militares, os
abolicionistas foram alguns dos agentes de deterioração da imagem do Império. Em 1888 a
abolição da escravidão trouxe consigo o agravamento dos problemas econômicos e, no esteio
do pensamento abolicionista, as ideias liberais e positivistas contribuíram para legitimar da
mudança.
No entanto, o momento máximo do republicanismo pode não ter representado
tanto assim do ponto de vista estrutural da sociedade brasileira. É corrente na historiografia
que os governos republicanos não conseguiram por em prática as suas proposições (FAUSTO,
2009; CARVALHO, 1987, 1990; COSTA, 2010). Houve intensa disputa entre os grupos
políticos com posicionamentos ideológicos diferentes e a transição entre modelos de governo
representou um momento de instabilidade e incertezas.
O movimento resultou da conjunção de três forças: uma parcela do Exército,
fazendeiros do Oeste Paulista e representantes das classes médias urbanas que, para
a obtenção dos seus desígnios, contaram indiretamente com o desprestígio da
Monarquia e o enfraquecimento das oligarquias tradicionais. Momentaneamente
unidas em torno do ideal republicano, conservavam, entretanto, profundas
divergências, que logo se evidenciaram na organização do novo regime, quando as
contradições eclodiram em numerosos conflitos, abalando a estabilidade dos
primeiros anos da Republica. (COSTA, 2010, p. 491).

Essas incertezas do período pós-proclamação podem ser reflexos da indefinição


do episódio em si, cuja nebulosidade põe em xeque inclusive a intenção de depor o imperador,
como aponta José Murilo de Carvalho.
52

O que significa o famoso óleo de H. Bernardelli, transformado em versão oficial e


sagrada do momento da proclamação? Deodoro, que posou para o quadro, estaria
naquele momento (saída do Quartel-General, após a deposição do ministério) dando
vivas ao imperador ou a República? Estaria, sem vivas, mandando dar uma salva de
21 tiros pelo êxito da deposição do ministério ou pelo êxito da proclamação? Houve
afinal, algum momento no dia 15 em que Deodoro tenha proclamado a
República? (CARVALHO, 1990, p. 36 - grifo meu)16.

O historiador não deve ser o juiz dos fatos históricos, e deve aprender a lidar com
as mais diversas versões sobre determinado acontecimento, inclusive com aquelas que negam
veementemente os acontecimentos. Essas várias versões representam pontos de vista distintos,
que dão subsídio para compreender as disputas pelo exercício de poder no novo cenário
político brasileiro. Foi a partir dessas disputas que a República foi instituída e, sem consensos,
a administração nacional da virada do século XIX caracterizou-se pela tentativa de
acomodação dos grupos políticos republicanos a partir da atenção às suas demandas.
O problema central a ser resolvido pelo novo regime era a organização de outro
pacto de poder, que pudesse substituir o arranjo imperial com grau suficiente de
estabilidade. Durante quase dez anos de República, as agitações se sucediam na
capital, havia guerra civil nos estados do Sul, percebiam-se riscos de fragmentação
do país, a economia estava ameaçada pela crise do mercado do café e pelas
dificuldades de administrar a dívida externa. Para os que controlavam o setor mais
poderoso da economia (exportação) e para os que se preocupavam em manter o país
unido, tornava-se urgente acabar com a instabilidade política. (CARVALHO, 1987,
p. 32).

Talvez José Murilo de Carvalho não tenha atentado, ao privilegiar as questões de


ordem política, que o desafio do estabelecimento de um novo pacto de poder e parâmetros de
cidadania tenham sido problemáticos porque desde o início os governos republicanos
descuidaram de uma organização política que buscasse diminuir as diferenças que acirravam
tensões. As regiões desenvolveram-se de formas distintas, o arranjo político privilegiou a
concentração de poder e a rivalidade entre grupos políticos, as cidades cresciam sob os ideais
da urbanização e da civilização que nunca conseguiram atingir. Sem conseguir resolver os
problemas de cunho social muitas vezes a violência entrou em cena, mas sem solucionar
questões significativas.
A historiografia converge, no entanto, quando o assunto é a participação popular
nesse processo: a República não teria sido tão pública assim. Segundo José Murilo de
Carvalho (1987) o povo esteve alijado da mudança de poder, figurando mais como público do
que como protagonista. O historiador ressalta que a corrente de pensamento que privilegiava a
vontade popular como princípio norteador da República não obteve espaço no cenário político

16
O quadro ao qual faz o autor faz referência segue no Anexo 1.
53

(1990) e que a maior parte da população não foi atingida pelos benefícios que os republicanos
prometiam.
Diferente da suposta marcha evolutiva, única e mandatória, ocorreu uma
sobreposição de temporalidades e a afirmação de uma modernidade periférica.
Diante de um republicanismo radical – que se manifestou nomeadamente na
primeira década do século –, de uma faxina social nas cidades e da evidência de
novas formas de exclusão, eclodiram várias revoltas e manifestações de cunho
popular, as quais, cada uma à sua maneira, denunciavam as falácias desse processo
que prometia “civilização fácil” (SCHWARCZ, 2012, p. 21-22).

Mas o povo era o cerne da questão política, principalmente no que se refere a


tentativa de um controle eficaz das massas urbanas e dos contingentes de ex escravos. O que
fazer com o povo ou com a grande maioria alijada desse projeto de governo era uma das
grandes questões a serem resolvidas, principalmente pela existência de revoltas, motins e das
resistências cotidianas desses grupos em torno de suas aspirações sociais.
O povo não esteve diretamente envolvido no processo de mudanças de modelo de
governo, não coordenou decisões, muito menos estabeleceu uma agenda a ser defendida e
debatida. Mas os líderes políticos nunca perderam o povo de vista, que estava presente
indiretamente nas ações de controle social justamente pelo seu potencial de questioná-lo e de
subvertê-lo, seja por meio de ações organizadas, seja no cotidiano dos batuques e danças.
As mudanças na organização política do Estado, a partir de seus estatutos não
significaram mudanças nas práticas, ainda mais se considerarmos o teor dessas mudanças.
Desenvolvendo a ideia de José Murilo de Carvalho (1987) é possível afirmar que se a
República teve algo de significativo esse algo foi aquilo que ela não conseguiu ser. Há uma
distância muito grande entre a imagem que o governo republicano construiu de si mesmo, os
objetivos que pretendia alcançar e aquilo que de fato foi realizado.
Essas desconexões entre discurso e prática são objetos de estudo dos
pesquisadores que se dedicam a compreender o período. As análises do contexto político
administrativo são imprescindíveis para compreender porque a República não conseguiu
materializar toda a mudança que havia proclamado, tendo, quando muito, dado
prosseguimento ao ritmo de mudanças tecnológicas e urbanísticas iniciadas desde o governo
de Dom Pedro II que via na modernização uma tentativa para frear os avanços das ideias
republicanas (COSTA, 2010).
O que os grupos republicanos defendiam era justamente essa evolução do pior
(Monarquia) para o melhor (República), esse era o processo era visto como necessário para
que o Brasil pudesse alcançar a civilização. A análise da documentação do período revela que
54

muitas eram as esperanças no modelo republicano e nas projeções sociais, políticas e culturais
de seus governantes.
Os jornais saudavam a República em letras garrafais ou por meio da reprodução
de telegramas vindos de diversas partes do país dando conta da adesão ao governo
republicano. As pessoas foram às ruas em passeatas, fogos e bandas seguiram para
determinados pontos da cidade onde oradores e políticos discursavam, festas foram
organizadas e aos poucos a República foi se espalhando pelo país em tom festivo.
Imagem 2 Capa do Jornal "O Novo Brazil" saudando a República.

As diversas opiniões publicadas nos periódicos viam com bons olhos não só o
momento em si, mas a possibilidade de mudanças reais, no sentido de tornar o Brasil moderno
e civilizado. Cada feito político posterior ao 15 de novembro era visto como a materialização
desse futuro que finalmente chegara e que prometia muito mais a cada dia.
55

Formulou-se um verdadeiro culto à modernidade, que acabou se mostrou contida


e limitada, principalmente nos pontos mais afastados da capital Rio de Janeiro. Aos poucos as
projeções republicanas foram perdendo força, esbarrando em velhos problemas – que não se
acanharam frente à força do progresso prometido – e em novos obstáculos inerentes ao novo
período na história. Os problemas cresceram e se multiplicaram com mesma a intensidade que
os republicanos divulgavam mudanças no sentido de melhorar o Brasil.
Por conta dessas características contraditórias, Lília Schwarcz assim define o
período abordado por um livro de sua organização:
O fato é que no final do século XIX, e a partir de tantas novidades ofertadas por esse
momento de mudanças velozes, reordenava-se a velha tópica do “paraíso terreal”, da
“terra sem males”, dos “trópicos plácidos”; ideário que inundou a imaginação local
e, sobretudo, dos estrangeiros durante tanto tempo. Um país de muitas raças
convivendo em situação de conflito social, moral e político; uma nação dividida por
tantas diferenças regionais e raciais, eis aí as novas polarizações que se enraizavam
no discurso local. De um lado, a cidade, definida pela indústria, pelas oportunidades
de trabalho, pelo mercado, mas também por uma política de exclusão e
distanciamentos. De outro lado, os “demais Brasis”, perdidos nos sertões longínquos
na realidade e na imaginação, ou nas florestas fechadas. Aí estavam “dois brasis”
que eram na verdade um só, mas a conviver de maneira ambivalente e conflituosa.
Talvez por isso, o período largo desse volume tenha ficado conhecido, durante tanto
tempo, como República Velha e não como República Nova, Jovem República, ou
simplesmente República. E o termo “velha” carrega aqui mais adjetivações do que
uma primeira leitura, mais ingênua, possa prever. (SCHWARCZ, 2012, p. 24 - grifo
meu).

A forma de lidar com a maioria pobre da população, as poucas ações de combate a


doenças, cidades sem limpeza e sem perspectiva de urbanização, os desmandos políticos, a
tecnologia que muitas vezes já chegava defasada foram os tópicos centrais das críticas aos
governos republicanos. A desilusão de alguns substituiu as esperanças pouco tempo depois da
proclamação.
Desacreditado, Euclides da Cunha, tomado como ícone dessa reflexão pouco
otimista, resumiu em poucas palavras aquilo que acreditava ser a ação da República sobre o
país. Ao afirmar “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos” o
escritor de “Os Sertões” mostrava como seria o processo ao qual o Brasil estava sendo
submetido como réu. O progresso e a civilização viriam, mesmo que por força da violência,
tendo em vista assegurar um futuro próximo.
Depois da destruição do arraial de Canudos em outubro de 1897 o mesmo autor,
provavelmente traumatizado pelo conflito passou a ver naquele tipo de progresso o nosso
desaparecimento. Ao finalizar a obra reflete sobre a legitimidade e da sanidade do governo,
56

duvidando sobre a origem da loucura, se das ações de conselheiro ou dos agentes legais: “É
que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e crimes das nacionalidades”17.
A República poderia ser o seu próprio algoz na ótica de Euclides da Cunha e de
fato seria para boa parte da população. Formada por pobres, mestiços e ex escravos a grande
maioria da sociedade esteve à margem desses processos de mudança que buscavam articular o
Brasil à modernidade e a civilização.
Tudo parecia sinalizar para uma integração sem obstáculos e barreiras
intransponíveis. Contudo, tal abertura social – experimentada no Brasil no final do
século XIX, mas não apenas – seria freada por novos critérios de alteridade racial,
religiosa, étnica, geográfica e sexual. Marcadores sociais de diferença dos mais
vigorosos porque condicionados por realidades e hierarquias sociais, mas moldados
por critérios considerados racionais e objetivos – porque biológicos -, faziam agora
grande sucesso. Um novo racismo científico, que acionava uma pletora de sinais
físicos para definir a inferioridade e a falta de civilização, assim como estabelecer
uma ligação obrigatória entre aspectos “externos” e “internos” dos homens. Narizes,
bocas, orelhas, cor de pele, tatuagens, expressões faciais e uma série de “indícios”
foram rapidamente transformados em “estigmas” definidores da criminalidade e da
loucura. O resultado foi a condenação generalizada de largos setores da sociedade,
como negros mestiços e também imigrantes, sob o guarda-chuva seguro da biologia.
(SCHWARCZ, 2012, p. 21).

Enquanto uns viviam os novos tempos outros sofriam as consequências de um


progresso excludente, que representou poucas mudanças para aqueles que continuavam a
viver sem eletricidade, sem água encanada, em ruas sem calçamento ou qualquer tipo de
serviço público a não ser a vigilância policial. A polícia, assim como no Império, continuava
sendo o órgão gestor daqueles que compunham a não elite. É nos arquivos dos antigos órgãos
de polícia e nas páginas e manchetes jornalísticas destinadas aos casos policiais que se
encontram os registros históricos das camadas pobres.
Não é por acaso que os aspectos culturais desse mesmo estrato social são
pesquisados a partir desse registro institucional ou das denúncias em que são pedidas
providências às autoridades no sentido de combater aquilo que não era adequado a
civilização. Grosso modo a sociedade brasileira da virada do século era estratificada em dois
grupos, uma minoria de posses e com acesso à coisa pública e uma maioria pobre inserida em
sucessivas tentativas de controle social em que a repressão era parte do cotidiano, bem mais
do que o exercício da cidadania.

17
Henry Maudsley (1835-1919) foi um psiquiatra inglês, seus estudos e escritos pioneiros contribuíram para o
desenvolvimento das ideias sobre a sociopatia (disponível em
http://www.bbk.ac.uk/deviance/biographies/maudsley.htm consultado em 10/08/2013). O cadáver de Antonio
Conselheiro teria sido exumado para que a sua cabeça pudesse ser mostrada como troféu e objeto de estudos
científicos, que o consideraram como louco, segundo informa Euclides da Cunha. A crítica do autor assevera que
a loucura praticada pelo governo no combate a Canudos passaria incólume, já que ninguém a havia estudado.
(CUNHA, 2003)
57

As esperanças na República aparentemente não conseguiram antecipar toda a


expectativa de mudanças da virada do século XIX para o XX. Os discursos de que a
mudanças deveriam acontecer permaneceram mesmo após a consolidação do governo
republicano18. Essa insatisfação, que muitas vezes assumia a forma de críticas e apelos nos
jornais são indicativos do quão lento e atabalhoado foi o processo de implantação do novo.
Em 1893 o Diário do Maranhão publicou artigos referentes às sessões da Câmara
Municipal sobre a votação ou não de um novo Código de Posturas. Em uma sessão surgiu a
proposta de manutenção do código de 1866, compreendendo que este satisfaria as exigências
da cidade, alguns vereadores se posicionaram contra por acreditar que era função da Câmara
propor de fato um novo código modificado e atualizado. (DMA 21-24/01/1893). Essa
discussão deixa claro que três anos após a mudança de modelo governamental ainda discutia-
se sobre as posturas municipais. Naquele momento o posicionamento da Câmara a favor da
manutenção das posturas antigas deixava claro que nada de tão substancial havia mudado na
cidade de forma a exigir novas regulamentações.
Talvez este tenha sido o cenário preponderante em boa parte das cidades
brasileiras em que concepções acerca do novo e do velho faziam com que a população ficasse
situada em uma zona intermediária entre Monarquia e República.
Como salta aos olhos, nessa cidade [São Luís], o fausto convive com o fastio, porém
tensos e conflituosos. Das janelas dos sobrados olham-se os cortiços, dos quais
passam ao largo o luxo e as francesias. Em tudo outro é o seu modo de viver, o que
arrepia os valores e etiquetas cultivadas no alto dos sobrados. Ainda assim, eles
eram muitos, principalmente porque a população da cidade havia aumentado, mas o
casario quedara-se na mesma, como anotou criticamente Fran Paxeco, já entrado o
século XX. (CORREIA, 2006 p. 46 - grifo meu).

Entre os anos de 1872 e 1890 a população de São Luís teve um decréscimo de


mais de dois mil habitantes, tendência essa seguida por boa parte das capitais das províncias
do norte e nordeste. Belém, Fortaleza, Natal e Recife19 registraram também decréscimos
influenciados pelas transferências de escravos para as fazendas de café no sudeste do país.20
No período entre 1890 e 1912 a população de São Luís quase que duplicou,
passando dos 53 mil habitantes. Em duas décadas (1890-1910) houve um acréscimo de
24.176 habitantes na população total. Esse crescimento deve-se em muito pela migração em
decorrência dos fugitivos da seca (CORREIA, 2006, p. 46) e pela industrialização do período.

18
Durante o intenso debate sobre os rumos do governo republicano, estabeleceu-se por meio da constituição a
proibição de retorno ao modelo monárquico ou a substituição do governo republicano por outro. Assim a
República começou a trabalhar no sentido de minar as resistências ou vozes e projetos dissonantes, boa parte
destes favoráveis ao monarquismo. (FLORES, 2008).
19
Estas cidades tiveram decréscimo respectivamente de 11.933, 1.556, 6.667 e 5.115 habitantes.
20
ANUÁRIO ESTATÍSTICO BRASILEIRO (1916, v.1, p. 256)
58

As fábricas chegaram a ocupar 600 operários, como o caso da Companhia Fabril


Maranhense (LACROIX, 2012, p. 301) e todos esses empreendimentos mudaram
consideravelmente o perfil da ocupação urbana a partir da década de 1890.
As fábricas contribuíram para a expansão demográfica, formando bolsões operários,
verdadeiros elementos de ocupação da zona urbana de São Luís. Essas unidades
fabris, instaladas no Centro – Rua de São João, Rua do Sol, Rua da Viração, Rua dos
Prazeres, Rua da Cruz e Rua de Santana – em locais periféricos – São Pantaleão,
Apicum, Largo de São Tiago – ou mais afastadas – Camboa do Mato, Madre Deus,
Jordoa, Anil e Tamancão, resultaram no alargamento urbano com a criação de bairro
de formação espontânea, com ruas estreitas e tortuosas, ajustando-se às dificuldades
topográficas e a conveniência dos operários, atraídos pela nova oportunidade de
trabalho. (LACROIX, 2012, p. 302-303).

Imagem 3 Bairro do Codozinho21

21
As imagens do bairro do Codozinho foram encontradas na internet em site de imagens de São Luís, como
sendo de um álbum de fotos da cidade do ano de 1904.
59

Imagem 4 Bairro do Codozinho

As moradias eram exemplos da hierarquia social. Parte da população sem


condições de uma moradia adequada acabava recorrendo aos cortiços ou a quartos e
compartimentos nas partes térreas dos sobrados ou os “baixos dos sobrados” tão famosos nos
jornais. Ex escravos, sem recursos financeiros para pagar aluguéis recorriam à áreas livres e
distantes dos olhos reguladores da municipalidade para a construção de casebres, com os
quais não gastavam nada além do esforço e dos materiais provenientes da natureza.
Os casebres com parede de taipa e telhado de palha eram características das áreas
mais afastadas do centro e além da espontaneidade da ocupação mostram a outra cidade,
marcada pelos caminhos tortuoso, dificuldade de acesso, que traduz socialmente a dificuldade
e a distância que esses moradores tinham para ter acesso a cidade civilizada, com ruas
calçadas, postes de iluminação e que a linguagem dos códigos de postura parecia ser a ordem
do dia.
60

Imagem 5 Bairro da Liberdade 1908 (Foto de Galdêncio Cunha – OLIVEIRA, 2012).

Características de uma sociedade dividida, as moradias dos que não tinham posses
demarcavam, para além dos fatores econômicos, as relações de poder que se estabeleciam no
cotidiano. É preciso observar os limites dos ideais de urbanização percebendo quais áreas
eram contempladas e de que forma. São Luís manteve o seu traçado colonial quase sem
modificações durante o século XIX e início do século XX e a urbes dos primeiros anos de
colonização manteve-se a partir da ocupação humana, definindo assim uma área central
(urbanizada) e uma área periférica (“desorganizada”). Esse traçado ainda é perceptível na
atualidade conforme se oberva a configuração das ruas entre o centro e os bairros ao seu
redor, onde as linhas deixam de ser gradativamente retas e passam a assumir um formato
curvilíneo em que o padrão passa a ser a irregularidade das formas.
O cortiço era tido como “ambiente moralmente degenerado”, um problema do
ponto de vista da urbanização (CORREIA, 2012, p. 47) e, portanto, passível da ação do poder
público no sentido de sanar tais problemas.
Por essas e outras tantas, e diante dos anseios por parte de frações das elites
intelectuais e econômicas de se instituírem novos modos de vida e sociabilidade na
cidade, de acordo com o artigo 83º do Código de Posturas Municipais de 1893,
ficava proibido o estabelecimento de cortiços no perímetro urbano, sendo multado
quem infringisse essa postura. Ainda seria obrigado a demolir a construção. Por
outro lado, os cortiços existentes que não oferecessem as mínimas condições de
higiene seriam fechados, estabelecendo-se como condições mínimas a conservação
do “melhor estado de asseio possível; perfeito encanamento para o esgoto das águas
pluviais e ainda caiação das paredes ao menos duas vezes por ano”. Quanto aos
“baixos de sobrados”, determinava que aqueles que não tivessem aberturas nas
61

paredes para renovação do ar estavam proibidos para moradia, de acordo com o 86º.
(CORREIA, 2006, p. 47).

Somente no ano da aprovação do Código de Posturas (1893)22 o jornal Pacotilha


denuncia por mais de uma vez casos de distúrbios em um cortiço na cidade, dando nome e
endereço dos locais. O “rôlo grosso” no cortiço das Larangeiras” no Largo das Mercês (PCT
18/03/1893), o “cortiço da Rua da Saúde” (PCT 03/06/1893) são alguns dos exemplos que
mostravam a distância existente entre a lei e a sua execução.
A familiaridade com a qual os jornais tratavam os cortiços atesta ser pouco
provável que foram fechados ou destruídos e que a ação do estado chegava apenas por meio
da polícia ao efetuar prisões de moradores e diligências aos locais por conta de alguma
eventualidade. É de se suspeitar que os cortiços que funcionavam em velhos casarões fossem
propriedade de “gente grande” da cidade, cujo aluguel era mais uma fonte de renda em
tempos de crise econômica, e que dificilmente receberiam alguma sanção por parte dos órgãos
públicos.
Há que chamar atenção para o fato de que se os moradores de “baixos” e cortiços
brigavam, pedia-se ajuda à polícia e exigindo-se que acionasse sua força repressiva;
e se brincavam, incomodavam da mesma forma ou ainda mais. Tudo porém, leva a
crer que a justificativa para postura tão intolerante quanto ambígua encontrava-se na
tensão existente entre uma cadeia valorativa bipolar, que um rígido maniqueísmo
estabelecera, e as práticas cotidianas vivenciadas nos segmentos populares de moda
mais flexível e mesmo mais transgressor, sem contudo romper radicalmente com
valores e normas, para além de toda a problemática que envolve a “noção de
popular”. (CORREIA, 2006, p. 51)

Os cortiços eram apenas uma das representações do atraso ao qual o país estava
submetido. Retomo aqui a noção de “faxina social” para subsidiar a intenção das elites em, de
fato, efetuar uma limpeza na cidade retirando dela tudo aqui que incomodava ou que se
contrapunha aos ideais de civilização.
As novas gerações da elite intelectual brasileira, com formação militar e
tecnocrática, associadas aos estamentos tradicionais [...] tornaram-se extremamente
sensíveis à abertura do mundo, alavancada pelas transformações proporcionadas
pela belle époque europeia. Utopia difusa ou projeto realizável, o fluxo cultural
europeu apresentava-se capaz de romper de vez com o passado obscuro e vazio de
possibilidades do império escravista, e de abrir um mundo novo, liberal e
cosmopolita, progressista, abundante e de perspectivas ilimitadas. (SALIBA, 2012,
p. 240).

É a partir do discurso da elite que pretendo falar, e de suas construções sobre a


não elite, mas ao mesmo tempo, busco nesses registros históricos retirar possíveis falas e
representações que os sujeitos presentes no Tambor de Mina, na Pajelança ou em outras
manifestações faziam de si próprio.

22
O Código de Posturas de 1893 é referenciado no jornal, mas não foi localizado no APEM, mesmo após várias
buscas junto aos funcionários da instituição.
62

2.2 A cidade: suas gentes e manifestações culturais.

Ao me referir sobre cultura pretendo fugir da dicotomia que reside ao se falar de


popular/erudito, entendendo a cultura de forma bem mais abrangente que engloba
manifestações que são diferenciadas por suas origens e formas. Nisso que pode ser chamado
de complexo cultural localizam-se as manifestações de grupos que também são distintos
devido a sua situação socioeconômica.
Essas diferenças influenciaram no complexo cultural no momento em que
manifestações são vistas como interferências ou empecilhos na tentativa de controle social de
um grupo pelo outro. As manifestações culturais acabam fazendo referência a essa sociedade
estratificada da qual não podem ser desligadas, pois só assim é possível entender a
importância dada ao combate às manifestações culturais das camadas pobres.
Assim não é difícil compreender que dentro desse complexo cultural coexistam
(conflituosamente) as manifestações culturais consideradas eruditas ou das elites e aquelas
ditas populares, ou da não elite, por nesse complexo social estarem convivendo diferentes
tipos sociais.
O crescimento acelerado gerava moradias irregulares e figuras populares inusitadas
transitavam pela cidade: a preta-mina cozinheira, os engraxates mestiços, os
carregadores, as doceiras, os capoeiras, os vendedores de leite em domicílio, o
baleiro ou o cura a oferecer proteção. Todos conviviam com uma nova burguesia
que aos poucos se separava do campo e tinha agora nas cidades seu quartel-general.
(SCHWARCZ, 2012, p. 39).

Incontáveis manifestações podem ser alocadas, para efeito de análise, em


determinados espaços que podem ser entendidos como subculturas, no sentido de subdivisões
desse complexo maior. Em outras palavras, a cultura ludovicense do recorte temporal
estudado incluem os bailes e soirées como também os batuques e bumbas-meu-boi, mas cuja
manifestação diz respeito a estratos ou grupos sociais diferenciados, mas não particulares aos
mesmos, impressão esta que uma compreensão superficial de “cultura popular” ou “cultura da
elite” possam dar entender.
Feita essa ressalva evita-se pensar a cultura em tom valorativo, mesmo que os
termos erudito e popular continuem sendo usados, ou que cultura são apenas as manifestações
letradas e universais23 (também no sentido de abrangente) e que a cultura popular seja restrita

23
A cultura letrada pode não ser universal se considerarmos os índices de alfabetização para o período entre
1889 e 1910. Para efeito de exemplificação o sistema eleitoral republicano manteve a exigência da alfabetização
como requisito para o eleitorado. Em 1910 do universo de 657.453 maranhenses apenas 32.774 estavam aptos a
63

e indique para um meio infinitamente menor e sem importância. Se a cultura popular era
manifesta entre os grupos que não faziam parte da elite, seria impossível pensar em uma
cultura restrita, já que a maioria da população era “popular”, logo suas manifestações não
estariam restritas a um universo em particular.
As manifestações populares, no entanto, também são universais no sentido de
possuírem uma complexidade que faz parte do cotidiano de vários indivíduos, servindo de
códigos que norteiam as relações socais e quase impossíveis de serem completamente
compreendidos em sua complexidade por estarem difusos nas ações dos seres humanos, ou
seja, enquanto “documentos de atuação” como define Geertz (2011, p. 8).
Embora uma ideação, não existe na cabeça de alguém; embora não física, não é uma
entidade oculta. O debate interminável, porque não-terminável, dentro da
antropologia, sobre se a cultura é “subjetiva” ou “objetiva”, ao lado da troca mútua
de insultos intelectuais (“idealista!” – “materialista!”; “mentalista!” –
“behavorista!”; “impressionista!” – “positivista!”) que acompanha, é concebido de
forma completamente errônea. Uma vez que o comportamento humano é visto como
ação simbólica [...] – uma ação que significa, como a fonação na fala, o pigmento na
pintura, a linha na escrita ou a ressonância na música, – o problema se a cultura é
uma conduta padronizada ou um estado de mente ou mesmo as duas coisas juntas,
de alguma forma perde o sentido. [...] O que devemos perguntar é qual é a sua
importância: o que está sendo transmitido com a sua ocorrência e através da sua
agência, seja ela um ridículo ou um desafio, uma ironia ou uma zanga, um deboche
ou um orgulho.
Isso pode parecer uma verdade óbvia, mas há inúmeras formas de obscurecê-la.
Uma delas é imaginar que a cultura é uma realidade “superorgânica” autocontida,
com forças e propósitos em si mesma, isto é, reificá-la. Outra é alegar que ela
consiste no padrão bruto de acontecimentos comportamentais que de fato
observamos ocorrer em uma ou outra comunidade identificável – isso significa
reduzi-la. (GEERTZ, 2011, p. 8).

Para uma compreensão mais acurada da cultura popular é importante ter em


mente o contexto sociocultural no qual ela se manifesta. O fato de preponderar entre os
estratos mais pobres da população, o povo, não justifica apenas a sua nomenclatura
(“popular”). O próprio ato de nomear, definir e atribuir valores faz referência a esse contexto
social no qual está contida a agência desses indivíduos culturalmente diferentes.
A elite e a não elite distinguiam-se não unicamente por sua condição econômica.
As manifestações culturais eram tomadas como signos dessa distinção que marcava o
cotidiano da cidade, reforçando-a e delineando com traços mais marcantes a estratificação
social. Enquanto sinais da diferença o popular e o erudito situavam-se em um cenário de
diálogo e conflito.
Ainda que as situações conflituosas prevalecessem não eram suficientes para que
uma cultura se sobrepusesse à outra. Embora sendo minoria social a cultura da elite estava em

votar. Os 4,9% da população que podia votar é um dos indicativos dos baixos níveis de alfabetização, um dos
meios pelos quais a cultura erudita era difundida.
64

um lugar de poder dominante o que garantia a expansão de suas manifestações em uma


tentativa de controle social amplo. Como destaca Peter Burke (2010) a cultura popular
embora fosse maioria, era objeto de uma minoria que buscava se expandir a partir da
imposição de suas formas e normas.
Se todas as pessoas numa determinada sociedade partilhassem a mesma cultura, não
haveria a mínima necessidade de se usar a expressão “cultura popular”. Essa é, ou
foi, a situação de muitas sociedades tribais, tais como foram descritas pelos
antropólogos sociais.
[...]
No entanto, é evidente que esse modelo não se aplica a maior parte da Europa do
nosso período [1500-1800]. Na maioria dos lugares, existia uma estratificação
cultural e social. Havia uma minoria que sabia ler e escrever, e uma maioria
analfabeta, e parte dessa minoria letrada sabia latim, a língua dos cultos. Essa
estratificação cultural faz com que seja mais adequado um modelo mais complexo,
que foi apresentado nos anos 1930 pelo antropólogo social Robert Redfield. Em
certas sociedades, sugeriu ele, existiam duas tradições culturais, a “grande tradição”
da minoria culta e a “pequena tradição” dos demais. (BURKE, 2010, p. 50-51)

A noção de “grande ou pequena tradição” é adequada à perspectiva da dominação


e da tentativa de imposição de uma cultura sobre a outra. Nos termos de Redfield tomados por
Peter Burke não é a condição numérica que prevalece nas relações culturais, pois o local e os
meios de dominação de um grupo social se destacam, atenuando a sua condição quantitativa
inferior. O grupo social menor definiu um padrão ao qual toda a sociedade deveria se adequar,
nem que para isso a violência (física ou simbólica) fosse necessária.
No entanto, os padrões não foram tão bem definidos assim. Como Geertz destacou
não podemos considerar a cultura encerrada em um grupo, sob o risco de reificá-la, portanto,
reafirmo que não podemos pensar a cultura de um grupo encerrada em si, caso contrário não
haveria essa expansão da cultura letrada, a modificação de aspectos da cultura popular ou, em
termos mais amplos, os processos de modificação pelos quais passam as culturas ao longo do
tempo.
Entendendo que certas manifestações culturais preponderam em um grupo e não
em outros se torna mais fácil entender como a minoria conseguiu que suas manifestações
fossem aceitas ou assimiladas pela maioria ou, nas palavras de Redfield e Burke, como a
grande tradição da minoria acabou se destacando em relação a tradição da maioria.

O modelo de Redfield precisa ser modificado, e pode ser reformulado da seguinte


maneira: existiram duas tradições culturais nos inícios da Europa moderna, mas elas
não correspondiam simetricamente aos dois principais grupos sociais, a elite e o
povo comum. A elite participava da pequena tradição, mas o povo comum não
participava da grande tradição. Essa assimetria surgiu porque as duas tradições eram
transmitidas de maneiras diferentes. A grande tradição era transmitida formalmente
nos liceus e universidades. Era uma tradição fechada, no sentido em que as pessoas
que não frequentavam essas instituições, que não eram abertas a todos, estavam
65

excluídas. Num sentido totalmente liberal, elas não falavam aquela linguagem. A
pequena tradição, por outro lado, era transmitida informalmente. Estava aberta a
todos, como a igreja, a taverna e a praça do mercado, onde ocorriam tantas
apresentações.
Assim, a diferença cultural crucial nos inícios da Europa moderna (quero
argumentar) estava entra a maioria, para quem a cultura popular era a única cultura,
e a minoria, que tinha acesso à grande tradição, mas que participava da pequena
tradição enquanto uma segunda cultura. Essa minoria era anfíbia, bicultural e
também bilíngue. Enquanto a maioria do povo falava apenas o seu dialeto regional e
nada mais, a elite falava e escrevia latim ou uma forma literária do vernáculo, e
continuava a saber falar em dialeto, como segunda ou terceira língua. (BURKE,
2010, p. 56)

O modelo analítico de Burke/Redfield pode ser reformulado para se adaptar


melhor ao contexto da virada do século XIX. Burke afirma que o povo não participava da
grande tradição (ou da cultura da elite) na Europa moderna, no entanto as constantes
tentativas de “civilizar” o povo por parte da elite acaba aproximando a pequena da grande
tradição. A exigência do letramento, as adaptações das manifestações culturais acabam
fazendo com que uma tradição absorva elementos da outra, assim o povo buscava “civilizar-
se” para que suas manifestações não fossem combatidas.
O contato entre pequena e grande tradição e as trocas de elementos, trabalhadas
por Ginzburg em O queijo e os vermes exemplificam o que Peter Burke quer dizer quando
afirma que a minoria era bilíngue, no entanto, demonstra que a maioria também poderia ser,
ao conhecer, reconhecer e partilhar de uma tradição ou elementos de uma tradição que não é
específica de seu grupo social, como o caso de Menocchio.
A tentativa de se civilizar ou adaptar-se aos padrões sociais aceitos era uma forma
que certos grupos tinham de tentar se articular com a sociedade, de forma mais geral, ao passo
que tentavam adaptar o seu modo de vida para não perdê-lo por completo. Os pedidos de
licença, o reconhecimento da autoridade policial e ao respeito às normas e limites impostos
são exemplos de como os terreiros buscaram se adaptar a essa lógica de organização da
cidade, para que, dentro daquilo que era permitido, praticar os seus rituais. A negação dessa
lógica poderia representar o acirramento das tensões sociais, o agravamento das perseguições
e consequentemente atrapalhar de maneira significativa o funcionamento dos terreiros.
Entre 1889 e 1910 quase todos os pedidos de licença para Tambor de Mina
presentes na documentação da Chefatura de Polícia exemplificam o argumento acima
exposto. As perseguições religiosas dos séculos anteriores ao período republicano não
findaram por conta do 15 de novembro. Mesmo com o decreto da liberdade religiosa24 e da
impossibilidade do Estado não poder regular o exercício dos cultos religiosos as religiões

24
As referências legais sobre a relação entre Estado e Religiões encontra-se no Anexo 2.
66

afro-brasileiras continuaram a ser objeto de ação da polícia, como veremos de maneira


detalhada no próximo capítulo.
Para que uma determinada festa, divertimento, espetáculo ou eventos em geral
pudessem acontecer era preciso da autorização da polícia e os promotores dos mesmos tinham
que submeter um requerimento ao Chefe de Polícia para que fosse dada ou não a autorização.
Os requerentes de autorização para realização de Tambor de Mina evitam trabalhar com a
noção de que se tratava de manifestações religiosas, sob o risco de terem o pedido negado ou
sofrerem repressão policial. Mesmo quando os requerimentos passaram a ser aprovados
mediante o pagamento do selo25, os pedidos continuavam “escondendo” a relação entre a festa
e a religião, apresentando o Tambor de Mina como “dança de minas” ou como simples
divertimento.
A obediência a uma norma externa ao contexto sociocultural de um grupo e a
consequente adaptação das manifestações culturais é também uma forma de trocas culturais,
levadas a cabo, nesse caso, por meio de uma imposição alterando uma determinada ordem
cultural por meio de outra. A obediência a esses padrões resultavam em sua incorporação até
como uma das formas possíveis de manutenção dos rituais religiosos.

No que diz respeito à ordem, entretanto, tudo indica que os conjuntos e seus séquitos
procuravam mantê-la a partir de iniciativa própria, a qual terminava por enquadrá-
los, mais ou menos, nos marcos daquilo que se configurava como um novo ideal de
civilidade, o que em outros termos quer dizer que seu comportamento talvez não
significasse mais do que o resultado de um amplo processo de circularidade cultural,
por meio do qual ideais das elites haviam sido apropriados e internalizados por
frações das camadas populares, isto porque a Polícia não parecia dispor de força
bastante e nem demonstrar empenho suficiente para que fosse mantida, uma vez que
os próprios soldados deixavam seus postos, para acompanharem os Bois.
(CORREIA, 2006, p. 124).

Renato Ortiz também destaca que a umbanda teria surgido a partir desse processo
de incorporação de elementos fora do mundo afro-brasileiro após a década de 1930.
A sociedade global aparece então como modelo de valores, e modelo da própria
estrutura religiosa umbandista. Isto faz com que as transformações do mundo
simbólico afro-brasileiro se realizem sempre em conformidade com os valores
legítimos da sociedade global. Valores como a moral católica (noção de bem e de
mal), a racionalização, a escrita, se integram a um outro tipo de moral e
racionalidade, características estas dos cultos afro-brasileiros. (ORTIZ, 2005, p. 15)

25
É necessária uma investigação pormenorizada de toda a série documental dos Pedidos e Licenças para Festas
para compreender a lógica de deferimentos e indeferimentos. Aparentemente a partir de 1895 os pedidos passam
a receber deferimento sem maiores problemas, o Bumba meu Boi que sempre foi alvo de críticas dos jornais e
perseguido pela polícia teve licenças aprovadas após 1895. Reitero que para esses casos seria preciso uma
análise mais detida em todos os pedidos, incluindo uma distribuição geográfica das festas, a identificação dos
requerentes com os respectivos motivos, a figura do chefe de polícia como individuo apto a autorizar ou não o
pedido.
67

O Tambor de Mina – e as outras manifestações culturais populares – também


passaram por esse processo, mas de forma distinta e com graus de modificação relativos a
determinados períodos de sua história. Nina Rodrigues no final do século XIX já chamava
atenção para esses processos de modificações culturais, que chamou de “ilusões da catequese
no Brasil”.
A exigência de um requerimento por escrito e a consequente aquiescência dos
parâmetros da chefatura de polícia não devem ser pensados unicamente como uma imposição.
Essas determinações, com o passar do tempo tornam-se internas ao grupo, sendo adaptações
necessárias às práticas culturais, mesmo que em menor nível do que aquelas apresentadas por
Ortiz em relação a umbanda.
A síntese umbandista pôde assim conservar parte das tradições afro-brasileiras; mas
para estas perdurarem, foi necessário reinterpretá-las, normalizá-las, codificá-las.
Foi este o trabalho dos intelectuais umbandistas: canalizar uma situação de fato para
constituir uma nova religião. Mas quem eram estes intelectuais? Brancos e mulatos
de “alma branca”, que reconstituíram as antigas tradições com os instrumentos e os
valores fornecidos pela sociedade. (ORTIZ, 2005, p. 15).

A temática da liberdade religiosa deve ser retomada para que sejam entendidas as
relações entre essa tentativa de controle e as manifestações das religiões afro-brasileiras.
Alguns tópicos merecem atenção. Desde o período colonial as manifestações religiosas não
católicas sofriam perseguições por parte do Estado. Nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia (1707) constam as primeiras regulamentações acerca das práticas
religiosas não oficiais, ou seja, aquelas não professadas e defendidas pela Coroa Portuguesa.
As leis religiosas influenciavam diretamente no que poderia ser chamado de
administração civil do Estado, que sendo confessional, reconhecia o poder eclesiástico como
um dos mecanismos reguladores da sociedade, as leis da Igreja tinham validade na esfera
política e vice-versa. No Livro Quinto das constituições do arcebispado estão presentes uma
série de regulamentações sobre práticas heréticas que são consideradas crimes. O Títulos III,
IV e V26 do mesmo livro são dedicados à práticas largamente conhecidas como feitiçaria,
cabendo à Igreja punir os praticantes com penas que variam de pagamento de multas,
penitências e até a condenação de galés27

26
Os referidos títulos encontram-se no Anexo 3.
27
A condenação às galés era uma das penas mais severas e comuns ao império marítimo português. Segundo
SILVA (2011) o tipo de trabalho desenvolvido nas galés resultava em graves sequelas para aqueles que
conseguiam sobreviver à pena estipulada, ou como informa o mesmo autor:
A partir do século XVI, muitos portugueses foram condenados pela Inquisição a servir nas galés por períodos
que variavam de três a dez anos. Este também foi o destino de vários homens nascidos no Brasil. O Tribunal do
Santo Ofício, instituído em Portugal em 1536, se valeu desse tipo de pena para castigar quem não seguisse os
padrões morais e doutrinários por ele estipulados. Além dos tribunais eclesiásticos, as leis do reino também
68

Durante o período imperial as perseguições às manifestações religiosas não


oficiais continuaram. Embora Luis Alberto Couceiro (2008) e Yvonne Maggie (1992)
afirmem que durante o Império não havia legislação que punia feitiçaria assim como houve na
Colônia e na República, na legislação imperial havia sim mecanismos reguladores da vida
religiosa. A feitiçaria aparece claramente e diretamente apenas nas leis do período colonial,
enquanto nos demais períodos havia outras formas de criminalizar as práticas que não
seguiam as regras sociais e políticas da época, mas de forma indireta por meio da associação
com outros crimes.
Se expandirmos a noção de feitiçaria ou substituirmos pela ideia de religiões não
oficiais, é possível sim identificar as ações legais do Estado Brasileiro sobre as religiões de
matriz africana entre 1822 e 1889. Nos códigos de leis do Império observa-se a estreita
relação que é traçada entre feitiçaria e criminalidade, sem que haja legalmente um artigo do
código criminal que regule esta prática enquanto um crime.
A criminalização ocorre por meio de um discurso que associa os sacerdotes e suas
práticas a outros crimes previstos em lei, que denomino aqui como crimes correlatos. Segundo
João José Reis (2008) na Bahia do século XIX:
[...] quando as autoridades rotulavam os sacerdotes africanos de feiticeiros e
promotores de superstições, isso não tinha efeito legal positivo, constituía discurso
de desqualificação social, cultural e étnica, embora com conseqüências para os assim
desqualificados. Pois não faltavam meios de punir os negros que desviavam da
religião oficial e dos costumes convencionais, sobretudo meios para perseguir a
liderança de religiões como o candomblé (REIS, 2008, p. 142).

Entre estes meios para punir, estão a associação com os crimes correlatos, como
roubar objetos para pagamento de trabalhos, insurreições, resistências inclusive mortes. No
código penal do Império, esses crimes estão regulados respectivamente nos artigos 6º
parágrafo 1º, 113, 116 e 182. Levando em consideração tais fatos, podemos inferir que não
haveria sequer a necessidade de um único dispositivo legal para incriminar os indivíduos que
praticassem feitiçaria, pois um inquérito policial cedo ou tarde levaria à descoberta de que o
feiticeiro denunciado estava cometendo algum tipo de crime. Os crimes correlatos eram peças
fundamentais para o combate à feitiçaria. Através destes, era possível a polícia identificar os
feiticeiros como criminosos, pois um sacerdote poderia utilizar-se de suas funções enquanto
líder religioso para divulgar ideais de revolta e combate à escravidão.
Nestes casos, a denúncia de um crime é sempre feita com base na relação deste
com questões religiosas, que serviam como prova para as suspeitas levantadas pelas

puniam delitos relacionados à fé. Entre os criminosos na esfera civil que foram condenados ao degredo nas
galés havia muitos que “blasfemavam de Deus ou dos Santos”. (SILVA, 2011.)
69

autoridades sobre a feitiçaria enquanto atos para camuflar crimes e sobre os feiticeiros
enquanto indivíduos perigosos. A repressão aos terreiros, batuques ou qualquer tipo de
reunião de negros trabalhava com a concepção de que muitos crimes tinham origem nas
práticas religiosas ou se utilizavam de artifícios religiosos em sua execução.
Assim não seria necessário um dispositivo direto e claro como havia no período
colonial, muito embora alguns artigos do Código Criminal de 1830 versassem diretamente
sobre a religião, tais como:
Art. 191. Perseguir por motivo de religião ao que respeitar a do Estado, e não
offender a moral publica.
Penas - de prisão por um a tres mezes, além das mais, em que possa incorrer.
[...]
Art. 276. Celebrar em casa, ou edificio, que tenha alguma fórma exterior de Templo,
ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra Religião, que não seja a do
Estado.
Penas - de serem dispersos pelo Juiz de Paz os que estiverem reunidos para o culto;
da demolição da fórma exterior; e de multa de dous a doze mil réis, que pagará cada
um. (Código Criminal do Império Brasileiro – 1830)

No caso do artigo 191 do código acima se destaca que os indivíduos que


respeitassem a religião do Estado não deveriam ser perseguidos e que também não seriam
perseguidas as religiões que não ofendesse a moral pública. Ocorre que a noção de moral
pública é muito ampla e estava muito próxima de qualquer manifestação cultural da
população negro-mestiça. A proximidade entre as acusações de ofensa a moral e aos bons
costumes era tanta que os artigos a respeitos desses objetos vêm logo em seguida ao Artigo
191, fazendo parte do mesmo capítulo intitulado OFFENSAS DA RELIGIÃO, DA MORAL, E
BONS COSTUMES 28.
O artigo 276 do Código Criminal retoma um argumento presente na constituição
de 1824, que determinava que o culto de outras religiões era permitido desde que os locais de
culto não possuíssem a forma de templo. Os parâmetros de respeito a constituição religiosa do
Estado e as ofensas à moral também já estavam incluídos na constituição, conforme trechos
abaixo.
Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do
Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.
[...]

28
Os referidos artigos são:
Art. 279. Offender evidentemente a moral publica, em papeis impressos, lithographados, ou gravados, ou em
estampas, e pinturas, que se distribuirem por mais de quinze pessoas, e bem assim a respeito destas, que estejam
expostas publicamente á venda.
Art. 280. Praticar qualquer acção, que na opinião publica seja considerada como evidentemente offensiva da
moral, e bons costumes; sendo em lugar publico.
Art. 281. Ter casa publica de tabolagem para jogos, que forem prohibidos pelas posturas das Camaras
Municipaes.
70

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros,
que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida
pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
[...]
V. Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do
Estado, e não offenda a Moral Publica. (Constituição do Brasil de 1824)

Outros artigos ainda tratavam da religião católica, como os de número 103, 106 e
141 em que autoridades eram obrigadas a jurar manter a fé católica em suas atividades. Todos
esses artigos refletem que o Império não só incluiu elementos da religião católica como
integrantes da estrutura do Estado como reforçou o exercício dessa fé por meio das ações do
Estado.
A legislação republicana não se furtou ao trato com a religião, no entanto de
forma diferente. Como apresentado acima, nos ideais republicanos estava contido o
sentimento contra a igreja. Tida como uma marca do atraso devido ao seu envolvimento com
os assuntos políticos foi responsabilizada por parte dos gastos públicos que com a ascensão
dos governos republicanos foram cortados29.
Nesse mesmo escopo anticlerical decretou-se o fim do estado confessional30 e a
obrigação do estado em garantir a liberdade de culto ao passo que não subvencionaria
nenhuma religião bem como não impediria o seu exercício. Mas, como é sabido, há uma
distância muito grande entre a letra da lei e o seu cumprimento e uma lei por si só pode não
garantir uma mudança social significativa, ou mesmo não surtir efeito.
O fim do estado confessional e a laicidade são discutíveis. Muito embora a lei
fosse categórica fica claro que as práticas indicam para outra interpretação e é necessário
pensar relacionalmente os referenciais dessa laicidade presentes nas leis. Não houve o fim do
estado confessional, que continuou regulando sobre assuntos religiosos, dessa forma é mais
adequado afirmar que as relações entre Estado e Religiões a passaram a se realizar em um
nível de maior complexidade, em que o apoiar ou criticar não significava necessariamente
isso.

29
No decreto nº 7 de 23 de dezembro de 1889, já citado em nota acima os artigos restantes dizem respeitos a
suspensão dos gatos do Estado com a Igreja.
Art. 2º - Ficam desde já extinctos os subsídios até hoje prestados ao Asylo de Santa Thereza e ao Seminario, e
abolido o dote de 800$000 reis estabelecido para as educandas do referido Asylo que contrahem matrimonio,
respeitados os direitos das que já casaram e ou não receberam ainda.
Art. 3º - Fica igualmente extincta a verba – Culto Público –, suspensos quaesquer pagamentos que por ellas se
hajam fazer.
Art. 4º - São dispensados dos seus empregos ou comissões os padres ou sacerdotes em quaesquer repartições ou
corporações deste Estado servem de confessores e capellães e bem assim os chamados sachristães.
30
O fim do estado confessional brasileiro e a sua laicidade são discutíveis. Fica claro que a legislação criou
novos formatos dessa relação.
71

A religião católica não deixou de ser preponderante, muito menos de ser parte do
ethos das elites dominantes. O catolicismo não deixou de influenciar as relações sociais e nem
de tomar parte em vários discursos. Seguramente não é possível afirmar que houve um
completo desligamento entre Estado e Igreja, muito embora tenha havido animosidade e
diálogos entre as duas instituições. Talvez apenas o discurso de parte dos intelectuais e
defensores do positivismo tenha pintado com tintas fortes um cenário que não se concretizou
de fato, o Estado pode ter deixado de ser confessional, mas não católico.
Portanto, nesse contexto em que a expressão política da civilização é a República,
positivista e anticlerical; em que o professo e a expressão concreta da ciência que,
por princípio representa a superação das “irracionalidades” e do “mito” contidos no
princípio da fé, as manifestações de religião e religiosidade, particularmente as
oriundas das camadas inferiores da população, dando visibilidade e reafirmando
práticas do tempo do Imperador, serão objeto de frequentes denúncias e ardorosa
reprovação. De modo que, nesse contexto palavroso marcado por uma compulsão
pelo novo – que aliás, deveria ser construído a partir do nada, posto que do antigo
tudo se nega – os questionamentos e críticas que, teoricamente, se voltariam para
todas as manifestações religiosas jamais estariam isentos de uma concepção
hierárquica das religiões, porque hierárquico era o olhar que era pousado sobre os
fiéis. Em outros termos, estarão sempre marcados por conceitos estabelecidos em
torno do sagrado e profano, confirmando uma perspectiva dominante [...].
(CORREIA, 2006, p. 159).

Como assevera a autora, as críticas que deveriam ser destinadas à todas as


manifestações religiosas foram direcionadas preponderantemente sobre as manifestações
populares, reproduzindo uma visão de mundo herdada das concepções sociais e religiosas
católicas. É nesse contexto de perseguição de longa duração que a República vai atualizar as
práticas de perseguição.
A magia brasileira, desde a Colônia, dispõe de mecanismos reguladores das
acusações a bruxos e feiticeiros nos terreiros e locais de Culto; e diferentemente de
muitas sociedades onde é forte a crença na feitiçaria, aqui não se pune os feiticeiros
com a morte. Foi a partir da República, no entanto, com o decreto de 11 de outubro
de 1890, que o Estado criou mecanismos reguladores de combate aos feiticeiros,
instituindo o Código Penal. No código introduziram-se três artigos referentes à
prática ilegal da medicina, à prática da magia, e à proibição do curandeirismo. [...].
O Estado imiscuiu-se, dessa forma, nos assuntos da magia e interveio no combate
aos feiticeiros regulando acusações, criando juízos especiais e pessoal especializado.
À medida que os anos se passavam, instituições iam sendo criadas na polícia para
regular o combate, identificar e punir os produtores de malefícios. (MAGGIE, 1992,
p. 22-23).31

Os artigos 156, 157 e 158 trazem nova forma de abordar às religiões populares. A
ciência passa a fazer parte das reflexões quase como em substituição às concepções religiosas
que antes se apresentavam no discurso das instituições e passa a ser preponderante um

31
Argumento novamente contra a ideia da exclusividade republicana no combate direto e regulamentado contra
a feitiçaria. A partir do que já foi apresentado, desde o período colonial as manifestações religiosas não católicas
sofreram perseguições que de alguma forma estavam contidas ou respaldadas por dispositivos legais.
72

discurso de cunho médico e higienista contra a pequena tradição da maioria, para reutilizar
os termos de Redfield e Burke.
CAPITULO III
DOS CRIMES CONTRA A SAUDE PUBLICA
Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou a
pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo
animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos:
Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.
Paragrapho unico. Pelos abusos commettidos no exercicio ilegal da medicina em
geral, os seus autores soffrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas
aos crimes a que derem causa.
Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e
cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de
molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade
publica:
Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.
§ 1º Si por influencia, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao
paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas:
Penas – de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.
§ 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da profissão por tempo igual
ao da condemnação, incorrerá o medico que directamente praticar qualquer dos
actos acima referidos, ou assumir a responsabilidade delles.
Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso
interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer
dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado
curandeiro:
Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.
Paragrapho unico. Si o emprego de qualquer substancia resultar á pessoa privação,
ou alteração temporaria ou permanente de suas faculdades psychicas ou funcções
physiologicas, deformidade, ou inhabilitação do exercicio de orgão ou apparelho
organico, ou, em summa, alguma enfermidade:
Penas – de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.
Si resultar a morte:
Pena – de prisão cellular por seis a vinte e quatro annos.
(Código Criminal da República, 1890 - grifo meu).

Os códigos são reflexos da valorização da ciência como parâmetros de


organização da sociedade, tais artigos encontram-se no capítulo referente à saúde pública e
fazem parte de um total de oito artigos que buscam regular as práticas médicas e atentados
contra a saúde da população. São também exemplos da crença no poder do feitiço, como
destaca Yvonne Maggie.
A crença na magia e na capacidade de produzir malefícios por meios ocultos e
sobrenaturais é bastante generalizada no Brasil desde os tempos coloniais, De
acordo com a crença, certas pessoas podem usar consciente ou inconscientemente
esses poderes sobre os outros, para atrasar a vida, fechar caminhos, roubar amantes,
produzir doenças, mortes e uma infinidade de outros males. Essa crença enche e
encheu desde a Colônia as casas dos curandeiros, centros, terreiros, benzedeiras,
espíritas e médiuns de todas as espécies. Norteou também a atuação de juízes,
promotores, advogados, e policiais.
[...]
Ao serem instituídos, os artigos [do código penal republicano] revelaram, da parte
dos autores, temor dos maléficos e necessidades de se criar modos e instituições para
o combate a seus produtores. (MAGGIE, 1992, p. 22).
73

Em uma sociedade marcada pela religiosidade e que desde sua formação acreditou
no potencial sobrenatural do bem e do mal agindo no cotidiano, não poderia se distanciar de
suas crenças, inclusive na feitura de suas leis. A defesa da religião católica entre 1500 e 1889
não se fazia apenas pela ótica das relações institucionais, mas por uma crença real nos
benefícios da religião católica.
Era muito comum, em todo este vasto período anterior a 1889, as autoridades
justificarem sua impotência diante das epidemias, principalmente as de varíola,
afirmando serem aquelas moléstias “importadas”.
[...]
Apoiavam-se, no entanto em argumentação frágil, entre elas a da potencia natural da
terra maranhense, atributo que a tornava, por um do talvez divino, imune em si
mesma, aos males das epidemias.
Observou-se na verdade ao longo desse período (isso até mais ou menos a metade do
século XIX, coincidindo com o momento em que o poder público iniciou, de forma
até certo ponto ordenada, as primeiras gestões para a produção de serviços públicos
de infra-estrutura urbana) o emprego generalizado da fé religiosa como o recurso
profilático por excelência no enfrentamento da insalubridade pública. Não são
poucos os registros históricos que revelam um povo aflito recorrendo sempre,
durante as grandes epidemias, à “misericórdia divina”. Era muito comum, nos
momentos de grandes surtos, o viático sair até 5 ou 6 vezes por dia para socorrer
vítimas de moléstias epidêmicas, que depositavam suas esperanças na misericórdia
dos santos. O povo, verdadeiramente, não via necessidade de recorrer ao poder
público por uma razão também muito simples, é que o próprio poder público, via de
regra, também se valia daquela mesma fonte salvadora. Eram comuns os ofícios da
Câmara Municipal aos presidentes de Província, e ora destes à Câmara, pedindo a
bispos e às igrejas que rezassem missas e organizassem procissões para que os
flagelos epidêmicos abandonassem a cidade. A rigor, por ironia da sorte, todos
preferiam confiar muito mais nos milagres de São Sebastião, que na ação “Laica” do
poder público local. (PALHANO, p. 147-148).

Yvonne Maggie não desconsidera a influência da crença no poder das religiões na


elaboração das legislações, inclusive no estado laico republicano. O Estado brasileiro não
podia legislar em favor de uma religião em detrimento de outras e a Igreja não mais
participava das funções administrativas civis, no entanto, não podemos desconsiderar o
sentimento religioso nas ações dos indivíduos desse Estado, ou mesmo a crença (consciente
ou inconsciente) desses mesmos agentes, reflexo de um medo quase institucionalizado na
ação negativa dos curandeiros, pais e mães de santo e pajé.
A tensão estado laico x estado religioso pode ser obervada a partir da
documentação analisada. Entre os anos de 1889 e 1910 não há nenhum pedido relativo a
festas da Igreja Católica, as festas nos largos das igrejas e as procissões não são alvos de
regulamentação da polícia, enquanto as procissões do Divino Espírito Santo precisam ser
autorizadas além de, em alguns casos, terem o seu percurso demarcado pelas autoridades
policiais.
Yvonne Maggie chama atenção para o decreto 119 que muito embora
estabelecesse liberdade para todas as confissões religiosas, “este não estabelecia o que era
74

‘confissão religiosa’ e o que não era” (Maggie, 1992, p. 42). A Festa do Divino Espírito
Santo é apresentada nos pedidos de licença como religiosa, envolvendo a devoção a terceira
pessoa da santíssima trindade. Nesse caso a autoatribuição religiosa deve ser levada em
consideração na caracterização de determinado evento como religioso e não há nada na
documentação policial que negue essa característica.
Muito embora apareçam reclamações nos jornais, há uma relação estreita entre a
referida festa e o catolicismo. O objeto de críticas muitas vezes era o barulho causado pelos
promotores das festas e os próprios promotores da festa, em sua maioria pessoas pobres e “de
cor”, sendo a que própria igreja não legitimava a devoção e a estética da festa.
Com base nessas informações é válida a afirmação de que havia uma
característica religiosa reconhecida na Festa do Divino e que sua “liberdade” não era
plenamente garantida pela lei e estava condicionada a liberação policial, objeto da qual a
religião católica não fazia parte. Havia uma tendência valorativa da religião católica e de
forma oposta uma tendência pejorativa em relação às manifestações religiosas populares.
A laicidade do Estado brasileiro da virada do século XIX era marcada por um
favorecimento do catolicismo que, se não foi subsidiado pelo governo, ao menos não sofreu
os mesmos percalços que as demais religiões, tendo o seu culto gozado de plena liberdade
após 1889. Nesses termos a ruptura com o catolicismo deve ser relativizada, pois as suas
visões de mundo continuavam influenciando a organização da sociedade e também do Estado,
no momento em que conferia ao credo católico um status diferenciado em relação às demais
manifestações.
O fim da escravidão e o decreto de liberdade religiosa podem ter surtido efeitos na
expansão das práticas religiosas de matriz africana. Ainda assim não é possível aferir o peso
desses dois eventos para os aspectos religiosos da sociedade, principalmente se pensarmos
que a repressão religiosa permaneceu no período republicano.

2.3 Ciência, saúde e religião na cidade.

Com base nas pesquisas seria precipitado afirmar que houve uma maior liberdade
de culto, isto seria acreditar em uma execução plena da lei, algo que não ocorreu. Se os laços
com a igreja católica não foram quebrados e sim reconfigurados em um novo arranjo de
forças, não seria forçoso dizer que as religiões afro-brasileiras ainda permaneciam em sua
“ilegalidade”.
75

Para entender a relação entre crimes contra a saúde pública, exercício ilegal da
medicina e religiões afro-brasileiras é preciso atentar para dois fatores: a relação entre a
religião e as práticas de cura e a valorização da medicina no contexto sociopolítico da época.
Analisarei por hora apenas o segundo fator, deixando o primeiro para o capítulo seguinte em
que abordarei de maneira mais detida a pajelança enquanto uma prática de cura.
A valorização das ciências e não só da medicina é um processo que acompanhou o
desenvolvimento das ideias republicanas no país. A partir de 1870 o republicanismo começa a
se difundir, divulgando novas ideias políticas e um novo projeto de sociedade para o Brasil
que ganhou força devido ao desgaste do poder imperial.
Nesse mesmo período “introduzem-se no cenário brasileiro teorias de pensamento
até então desconhecidas, como o positivismo, o evolucionismo, o darwinismo”.
(SCHWARCZ, 1993, p43). Essas teorias tomam parte nesse projeto de Brasil em que a
ciência passa a ser responsável por instituir novas visões de mudo e formas de organização
das relações sociais.
A segunda metade do século XIX vê despontar a ciência como a forma de
conhecimento capaz de modificar a sociedade em vários aspectos, buscando principalmente
superar os problemas do passado e enfrentar os novos tempos, para os quais as velhas teorias
já não mais se aplicavam. O homem enquanto espécie animal passa a ser objeto de estudo
dessa nova intelectualidade, cujo pensamento vai se desenvolver em várias áreas a partir de
concepções biológicas.
A partir de meados do século XIX a hipótese poligenista transformava-se em uma
alternativa plausível, em vista da crescente sofisticação das ciências biológicas e,
sobretudo diante da contestação ao dogma monogenista da Igreja. Partiam esses
autores da crença na existência de vários centros de criação, que corresponderiam,
por sua vez, às diferenças raciais observadas.
A versão poligenista permitiria, por outro lado, o fortalecimento de uma
interpretação biológica na análise dos comportamentos humanos, que passam a ser
crescentemente encarados como resultado imediato de leis biológicas e naturais. [...]
Recrudescia, portanto, uma linha de análise que cada vez mais se afastava dos
modelos humanistas, estabelecendo rígidas correlações entre conhecimento exterior
e interior, entre a superfície do corpo e a profundeza do espírito. (SCHWARCZ,
1993, p. 48-49).32

Em uma comparação superficial e arriscada entre República e Império pode-se


levantar a hipótese de que a ciência teria assumido o papel da religião (católica) na
constituição dessas visões do mundo social. Comparação superficial porque a Igreja Católica
não deixou de influenciar a sociedade durante o período republicano, arriscada pois seria

32
Sobre a monogenia e a poligenia Lília Schwarcz (1993, p. 48) indica que a primeira encarava que a origem do
homem seria uma fonte comum, sendo a humanidade una. Essa teoria tinha suporte na religião católica e por
muito tempo foi utilizada por diferentes autores.
76

necessária uma inversão de paradigmas ou uma completa substituição no sistema de crenças


da sociedade. Mas, ainda assim, uma pesquisa acerca da influência dos ideais científicos
poderia dar subsídios para compreender em que medida se expandiram pela sociedade e não
só pelos órgãos públicos ou até mesmo de que forma esses ideais científicos tomaram o lugar
que antes era o dá religião.
De qualquer forma, o discurso científico começa a tomar parte nos jornais, passa a
ser publicado em livros e revistas e difundido entre a sociedade letrada e aos poucos se
tornando o parâmetro das ações políticas, chegando a um lugar de destaque após 1889,
quando os governos elaboraram os símbolos dos novos tempos ao que o Brasil chegara por
ocasião da República.
A medicina é um dos vários ramos que vai atuar nessa organização social
tomando parte nesse arcabouço teórico que ficou conhecido como “darwinismo social”
Denominada “darwinismo social” ou “teoria das raças”, essa nova perspectiva via de
forma pessimista a miscigenação, já que “não se transmitiriam caracteres
adquiridos”, nem mesmo por meio de um processo de evolução social. Ou seja, as
raças constituiriam fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo cruzamento,
por princípio, entendido como erro, As decorrências lógicas desse tipo de postulado
eram duas: enaltecer a existência de “tipos puros” – e portanto, não sujeitos a
processos de miscigenação – e compreender a mestiçagem como sinônimo de
degeneração não só racial como social. (SCHWARCZ, 1993, p. 58).

A difusão dessa teoria e consequentemente de sua influência em outros saberes foi


fundamental para construir uma nova concepção de sociedade, baseada na hierarquização das
raças, da classificação dos indivíduos, da elaboração de uma previsão de futuro e também de
solucionar problemas vigentes e futuros. Essas ideias estavam lado a lado com os ideais de
civilização e progresso, a serem atingidos a partir da ciência.
Em meio a esse projeto grandioso, que pretendia retirar a diversidade humana do
reino incerto da cultura para localizá-la na moradia segura da ciência determinista do
século XIX, pouco espaço sobrava para o arbítrio do indivíduo. Da biologia surgiam
os grandes modelos e a partir das leis da natureza é que se classificavam as
diversidades.
Certamente essa não era a única versão que explicava, naquele momento, as
sociedades em seu comportamento. É possível dizer, no entanto, que os modelos
deterministas raciais foram bastante populares, em especial no Brasil. Aqui se fez
um uso inusitado da teoria original, na medida em que a interpretação darwinista
social se combinou com a perspectiva evolucionista e monogenista. O modelo racial
servia para explicar as diferenças e hierarquias, mas, feito certos rearranjos teóricos,
não impedia pensar na viabilidade de uma nação mestiça. (SCHWARCZ, 1993, p.
65).

Havia uma preocupação muito grande com a organização da cidade e da


população e nesse quesito residia boa parte do intento civilizador. A medicina não se afastou
desse projeto, incluindo as questões de saúde no rol de elementos das políticas públicas. Com
77

a sua competência legitimada pelo ideário político do momento o médico passou a ser não
somente o especialista do corpo individual, mas do social também.
A condição de especialista parece ser fundamental para o entendimento acerca do
processo social de legitimação da competência médica, ela faz parte dos atributos
portados pelo médico, daqueles atributos são tomados como critério ao exercício do
poder, não apenas no que tange àquelas relações mais propriamente referidas ao
campo médico: - a hegemonia das técnicas de controle dos corpos, ou a disputa pela
condição hegemônica, habilita ao médico a tomar não apenas o corpo humano como
objeto de intervenção, mas, mediante raciocínio analógico, é a condição de sua
capacidade para intervir no “corpo social”, para criar e controlar práticas referidas à
vida em sociedade. Diante da hegemonia das ciências naturais, sobretudo no século
XIX, a “sociedade” é interpretada como guardando semelhanças com o “indivíduo”.
Logo, um especialista na resolução dos problemas deste é também considerado
como um especialista nos problemas referidos a organização social.
O monopólio sobre certo código, regras e preceitos, referido à vida e à morte, à
saúde e à doença das “populações” permite atualizar formas de controle e
dominação sobre os corpos dos indivíduos, e parece constituir-se em atributo que
permite ao médico intervir na organização social: - erudição e especialidade
apresentam-se como atributos possíveis de serem aventados ao se buscar refletir
acerca das condições de possibilidades para o exercício do poder, por parte dos
médicos, em distintos lugares referidos à estrutura de poder.
[...] A sua condição de especialista no que tange aos “males” que afligem aos corpos
confere poder e autoridade para atuar sobre a própria sociedade, exercendo
atividades nos mais variados planos da organização social. (NUNES, 2000, p. 61-
62).

Como asseverado pela autora o que estava em jogo não era unicamente a
competência do médico enquanto profissional que lida com saúde/doença do indivíduo, mas
também do conjunto destes. Contempla-se assim porque a medicina passou a ser tão
valorizada no fim do século XIX e como o conhecimento médico tomou lugar em uma ampla
lista de ações que visavam sanar certos problemas sociais.
Ainda assim não é possível falar em um lugar social da medicina, pois a
influência na administração pública não significava necessariamente que as medidas sociais
fossem eficazes. A existência de códigos e regulamentações de caráter sanitário não significa
que a sua ação seja de fato eficaz.
O Serviço Sanitário do Estado do Maranhão criado por lei em 9 de Junho de
190433 pode ser tomado como exemplo do respaldo que a ciência gozava na República e da
amplitude da ação de caráter médico. Essa lei possuía 213 artigos e era complementada por
um Código Sanitário de 364 artigos. Esses dispositivos regulavam sobre as residências,
hospitais, bares, açougues, cemitérios, farmácias entre outros espaços.
Segundo a referida lei
Art. 2º O serviço sanitario estadual comprehende:
1 – O estudo scientífico de todas as questões relativas á Hygiene.

33
Lei n. 358 de 9 de Junho de 1904 - Organiza o Serviço Sanitário do Estado. Coleção de Leis e Decretos do
Estado.
78

2 – O estudo da natureza, etiologia, tratamento e prophylaxia das molestias


transmissiveis que, por sua natureza possam tornar-se endemicas ou epidemicas,
enzooticas ou epizooticas.
3 – As pesquizas bacteriologicas, chimicas e bromatologicas que interessem á saude
publica.
4 – A execução em todo o território do Estado de quaesquer providencias de
natureza aggressiva ou defensiva que tenham por fim impedir a importação de
molestias transmissiveis e a diminuição das preexistentes.
[...]
6 – A fiscalisação do exercício da medicina, da pharmacia, arte dentaria e
obstetricia. (Código do Serviço Sanitário do Estado do Maranhão, 1904).

Essa fiscalização era praticada por um departamento específico denominado


Polícia Sanitária, que possuía inspetores, delegados e subdelegados cuja função era realizar
visitas regulares a casas e estabelecimentos para verificar o cumprimento das leis e aplicar as
penalidades respectivas à possíveis transgressões. Era de responsabilidade da polícia a
verificação das práticas médicas ilegais e agir junto ao corpo de polícia militar no combate
aos terreiros, que comprometiam a saúde pública ao oferecer serviços de cura à doenças não
oficiais.34
O capítulo XIV da lei do serviço sanitário trata especificamente da prática médica,
dividida entre a legal e a ilegal, retomando as bases do código criminal de 1890. A
fiscalização do exercício da medicina e da farmácia era feito da seguinte forma:

Art. 151. Só é permitido o exercício da arte de curar em qualquer dos seus ramos, e
por qualquer de suas fórmas:
I ás pessôas que se mostrarem habilitadas por título conferido pelas Faculdades de
Medicina da Republica dos Estados-Unidos do Brasil;
II ás que, sendo graduadas por Escolas ou Universidades estrangerias, officialmente
reconhecidas, se habilitarem perante as ditas Faculdades, na forma dos respectivos
estatutos;
III ás que tendo sido ou sendo professores de Universidade ou Escola estrangeira,
officialmente reconhecida, tenham conseguido licença da Directoria Geral de Saúde
Publica para o exercicio da profissão;
IV ás que, sendo graduadas por Escola ou Universidade estrangeira officialmente
reconhecida, provarem que são autoras de obras importantes de medicina, cirurgia
ou pharmacologia e tenham conseguido licença da Directoria Geral de Saude
Publica para o exercicio da profissão.
§ Unico. Os que praticarem o espiritismo, a magia, ou annunciarem a cura de
molestias incuraveis, incorrerão nas penas do artigo 157 do Codigo Penal, além além
da privaçao do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação, se forem
medicos, pharmaceuticos, dentitas e parteiras.
Art. 166. São expressamente prohibidos o annuncio e a venda de remedios secretos,
bem como a venda de drogas ou preparados medicamentosos em estabelecimentos,
que não estejam devidamente licenciados nas vias e logradouros públicos. (Código
do Serviço Sanitário do Estado do Maranhão, 1904).

34
Infelizmente não houve possibilidade de localizar documento referente ao Serviço Sanitário para acompanhar
a ação dessa polícia sanitária. Nos diários oficiais era registrado apenas o número de visitas realizadas pelas
autoridades do serviço sanitário, sem detalhes dessas ações.
79

Esta parte do código sanitário retoma o que já estava estabelecido pelo código
criminal de 1890, mas apresenta regulamentações mais específicas acerca da proibição do
exercício da medicina por profissionais não habilitados. Isso garantia o monopólio dos
profissionais formados em faculdades de medicinas reconhecidas e ratificava a importância de
sua ação na sociedade.
Mas a ação médica estava longe de ser abrangente e de fato conseguir atingir os
propósitos aos quais se destinava. Muito embora fosse valorizada como expressão do
progresso e da civilização, a medicina legal também sofreu percalços, principalmente pela
inoperância do poder público em materializar as propostas na área da saúde. Não são poucos
os registros que dão conta dos problemas de saúde e da falta de medidas ou mesmo de
medidas ineficazes para saná-los, como indica Raimundo Palhano.
O antigo regime realmente havia deixado uma herança maldita: as condições
sanitárias das cidades brasileiras eram verdadeiramente precaríssimas. As estatísticas
sobre mortalidade indicam, por exemplo, que no período entre 1860 – 1889 as
pessoas morriam muito cedo nas principais cidades do Brasil. Não se pode dizer que
a República tenha começado dando alguma prioridade a este problema. Basta ver
que a disseminação de vacinas só se iniciou efetivamente entre 1902-1903 e isso
graças ao avanço das epidemias, que ameaçavam exterminar a população, pondo em
risco as camadas mais aquinhoadas da sociedade. Pior ainda era a situação das
moléstias endêmicas, aquelas atingiam a especialmente as camadas pobres, pois
continuavam recebendo atenção inteiramente insatisfatória. (PALHANO, 1988, p.
152).

Esta “herança maldita” viria a se somar aos novos problemas ocasionados pelo
aumento populacional das cidades: as péssimas condições de moradia e de serviços públicos
de higiene (oferta de água própria para consumo e recolhimento de lixo e dejetos). Assim
poder público tinha que lidar com um problema estrutural relativo a organização da cidade,
bem como tratar os problemas de saúde já existentes e prevenir novos. Em outras palavras os
governantes deveriam ao mesmo tempo limpar, curar e vacinar a cidade.
O certo é que, só depois de superados os impasses fundamentais à consolidação do
novo regime, o que se deu por volta de 1902, principalmente a partir do governo
Rodrigues Alves (1902-1906), é que os crônicos problemas das condições de
salubridade urbana e da escassez de serviços públicos começaram a despertar o
interesse real do estado brasileiro. Até então, não era só a Capital do Maranhão que
estava pesteada; a Capital da República também o estava – o Brasil todo era um país
pestilento. (PALHANO, 1988, p. 152).

As incipientes medidas tomadas até então não foram capazes de atenuar os


problemas de saúde da população, que sofria as consequências da falta de organização dos
serviços públicos. As estatísticas de óbitos por conta de doenças exemplificam o quanto as
pestes eram preocupantes. No ano de 1908 uma epidemia de varíola matou 229 pessoas na
80

cidade de São Luís35 aproximadamente 0,4% da população da cidade enquanto Rio de Janeiro,
São Paulo, Salvador e Recife possuíam taxas de 1%, 0,6%, 0,02% e 0,4%36.
A capital do estado do Maranhão possuía índices próximos a de cidades com
maior população37. A defasagem nos serviços de prevenção e atendimento às vitimas fazia da
morte o fim quase certo daqueles que fossem acometidos de doenças graves por boa parte do
século XIX e início do século XX.
De acordo com um diagnóstico realizado pela Sociedade Philomática sobre as
condições sanitárias da cidade, naquele ano de 1847 em que formula, havia nos
quadros da municipalidade apenas “um médico para curar a pobreza”, mantendo-se
esse dado inalterado pelo menos até 1893, quando, sob pomposo nome de
Repartição de Higiene Pública, passaram a constar da folha de despesas do
município 1 inspetor, 1 ajudante e 1 secretário como sendo o efetivo da referida
repartição. Contudo, indicando uma indefinição ou absoluta falta de diretrizes para
uma política de saúde pública pela Lei n. 15 de junho de 1896, foi a referida
repartição extinta, ao mesmo tempo em que era criado o cargo de “médico da
municipalidade” Nesse ano, o manto largo e pesado da febre amarela se estendeu
sobre a cidade. Tratava-se de alguma surpresa? Sim e não, é o que considera Fran
Paxeco, tendo em vistas as condições de saúde, nada merecedoras de lisonja, que
apresentava a cidade, as quais se chocavam seus devaneios de capital civilizada.
Afinal, com maior ou menor intensidade, todos os anos presenciava-se a mesma
mortandade, conservando-se a pena e mudando somente o carrasco. Revezando-se
em sua sanha devastadora, numa feita era a vez da varíola; noutra, do beribéri, por
repetidas vezes a febre amarela se encarregava de o fazer, até que a peste bubônica
assumiu o posto. (CORREIA, 2006, p. 74-75).

Sem médicos e com medidas pouco eficazes no combate e prevenção das doenças
as “alternativas” à medicina oficial acabavam sendo a saída para a maioria da população que
não tinha acesso aos consultórios ou medicamentos legitimados pela ciência. A defasagem do
serviço era grande e cidades no Maranhão sofriam mais ainda pela completa falta de estrutura
para lidar com tais problemas como mostra a notícia abaixo:
Cartas vindas de Guimarães, uma das quaes nos foi facultada, informam como
irrompeu a variola naquella villa, para onde ja seguiu um enfermeiro, levando
medicamentos e lypha vaccinica conforme noticiamos.
Sabemos que o governo do Estado autorisou a colletoria a entregar a municipalidade
de Guimarães a quantia de quinhentos mil réis, para as despezas de tratamento dos
enfermos.
A carta que acima nos referimos narra que apparecera em Guimarães uma variolosa
ida aqui da capital, sendo removida para fóra do perimetro da villa e instalada numa
casa, que se improvisou de isolamento. Falecendo a doente, foi a casa queimada.
No logar Lago appareceu, posteriormente, outro caso procedendo-se de modo
identico ao primeiro. (PCT, 27 de julho de 1908).

35
Números registrados pelo Anuário Estatístico Brasileiro. Essa estatística oficial deve ter sido feita com base
nos registros do Serviço Sanitário levando em consideração pacientes internados ou que tiveram sua morte
comunicada às autoridades e não o número real de óbitos.
36
O Rio de Janeiro possuía uma população 16 vezes maior que a de São Luís, São Paulo 6 vezes, Salvador 5,8
vezes e Recife 3,4 vezes. (Anuário Estatístico Brasileiro – 1908-1912).
37
O ANEXO 4 apresenta uma tabela comparativa entre as cidades citadas e os números absolutos referentes ao
surto de varíola de 1908.
81

Pela notícia é possível inferir que a cidade de Guimarães no oeste do Estado do


Maranhão não tinha profissionais aptos a lidar com a varíola e se tinham faltava estrutura apta
para tal. Não havia vacinas, que estavam sendo levadas da capital por um enfermeiro, e o
tratamento consistia basicamente no isolamento do doente, que sem a perspectiva de ser
medicado, era destinado à própria sorte.
Não se trata de um problema restrito às vilas, cidades ou localidades do interior,
em São Luís a situação se repetia. Na falta de uma solução para o problema o isolamento era
quase sempre o fim dos variolosos. No ano de 1883 a varíola atacava a cidade pela sexta vez e
o Inspetor de Higiene, o Barão de Grajaú registrava o problema como indica Glória
Guimarães Correia.
De acordo com o relatório do Barão, sabe-se, por exemplo, que fora autorizada a
reabertura de uma enfermaria para variolosos; que ficava situada no “extremo sul da
rua de São Pantaleão” e que ela era destinada a atender, particularmente, a “classe
baldada de recursos”; que era para essa enfermaria que a Inspetoria de Higiene
ordenava a “imediata transferência” de qualquer um dos membros da dita classe,
logo que se manifestasse algum sinal da doença, pois transferindo esses variolosos
para a enfermaria da Madre de Deus”, o mal ficava circunscrito àquele localidade,
servindo ela, portanto, como um cordão de isolamento.
[...]
Quanto ao recolhimento, ou mais precisamente, ao isolamento dos acometidos pelo
mal, essa também era uma medida difícil de ser executada, uma vez que as famílias
se recusavam a notificar a suspeita de incidência do mal sobre qualquer dos seus
membros, pois a doença efetivamente isolava, não apenas no recolhimento da
instituição para pestosos, mas, acima de tudo, socialmente, através do preconceito
contra os doentes que o medo da contaminação ensejava. (CORREIA, 2006, p. 76-
77).

O tratamento médico para doenças ou a falta dele é uma das justificativas para a
pajelança ter conseguido se manter ao longo dos anos, mesmo com toda a perseguição e
legislação contra. Por ser uma prática que envolve tratamentos contra doenças e males em
geral conseguiu manter sua influência sobre aqueles que não tinham acesso à medicina legal
ou cujo tratamento tivesse sido ineficaz.
Assim a pajelança além de ser um sistema de crenças religiosas desenvolveu uma
característica terapêutica muito devido a demanda pela cura de doenças e principalmente
pelas falhas do aparato médico científico, que já sofria críticas à época. A cura pela magia ou
pela subscrição de medicamentos ou substâncias q.ue não fosse por um profissional habilitado
para tal, tornava a pajelança alvo direto da polícia e das fiscalizações do serviço sanitário da
cidade, mas também espaço de tratamento para quem a medicina alternativa era a principal
medida e daqueles que não tiveram seus problemas resolvidos pela ciência.
No entanto, esta notícia deixa claro que a medicina havia estagnado, perdendo
espaço para a pajelança que realizava as funções dos médicos, mas de forma ilegal. Essa
82

constatação é uma reclamação presente em diversas noticias e artigos de jornais do fim do


século XIX e início do século XX. A defasagem na medicina e a falta de médicos era um
problema social grave que propiciava a ação dos pajés, que se espalhavam pelas cidades do
estado.
A perseguição à pajelança não deve ser vista unicamente sob a ótica da política
sanitarista. Como foi possível observar ao longo deste capítulo os serviços públicos
oferecidos à população foram muito mal estruturados e assim não foi diferente em relação à
medicina. Sem conseguir alcançar o patamar que se propunha no plano do discurso a ciência
médica não materializou a organização social que se propunha. Com a tentativa de controlar e
extinguir as práticas médicas ilegais não foi diferente, sem conseguir dar conta dos problemas
médicos mais urgentes como as pestes e vacinações o serviço público de saúde não haveria de
conseguir dar fim aos pajés.
Proibida por ser entendida como curandeirismo a pajelança sofreu com a
repressão, mas que nem sempre era apresentada como tentativa de controle de uma prática
terapêutica irregular. Muito antes da República a pajelança e os “cura-feitiço” já eram
perseguidos pelas autoridades policiais de forma que a legislação republicana viera apenas
com corolário de toda a visão negativa que caia sobre os pajés.
As prisões de pajés e pais de santo poderiam não guardar uma relação direta com
os códigos de lei da República, mas acabaram sendo respaldadas legalmente a partir de 1889,
mas sem perder a relação com o período anterior do qual herdara as concepções e visões de
mundo religiosas que relegavam a um plano inferior às outras manifestações religiosas. A
ação dos pajés se expandiu de forma conjunta aos problemas de saúde da população.
83

2ª Parte
84

3. NAVEGANDO EM DUAS ÁGUAS: religiões afro-maranhenses em São Luís no fim do


século XIX e início do XX.
“[...] o ‘Brinquedo de Cura’ (ritual público e festivo
da cura/pajé), embora tenha uma estrutura bem
diferente da encontrada no Tambor de Mina e
independa da mina, possui vários pontos de
intersecção com ela, pois diversas entidades
espirituais não africanas (caboclo e gentis/nobres)
recebidas no Tambor de Mina passam na Cura/Pajé
ou ‘navegam nas duas águas’ – salgada (mina) e
doce (cura/pajé) [...]” (FERRETTI, M., 2011).

3.1 Religiões Afro-Brasileiras.

De toda a influência africana no Brasil, a religião é o aspecto de nossa cultura que


mais guarda relação com o continente africano. Por não ter sido assimilada ou naturalizada
pela maioria da população brasileira como foi a feijoada ou o samba, as religiões afro-
brasileiras ainda não ganharam o status de nossa cultura. A revelia de todo esforço das
entidades religiosas representativas de tais grupos e comunidades afrodescendentes, de
intelectuais do meio acadêmico ou da divulgação turística de nossa afro-brasilidade, tais
religiões ainda permanecem estranhas aos olhares da maioria.
Os preconceitos são de difícil combate, pois na história de nossa formação
sociocultural ainda não houve o momento em que as manifestações religiosas não cristãs
alcançaram um lugar de legitimidade ou passaram a ser afirmadas como elementos de nossa
cultura, ou mesmo foram manipulados no sentido que Peter Fry apresenta a feijoada e o soul
food:
Está claro que a origem do prato é a mesma nos dois países [Brasil e Estados
Unidos], pois em ambos este item da cultura culinária foi elaborado pelos escravos
utilizando as sobras do porco desprezadas por seus senhores. A diferença está no
significado simbólico do prato. Na situação brasileira, a feijoada foi incorporada
como símbolo da nacionalidade, enquanto nos Estados Unidos se tornou símbolo de
negritude, no contexto do movimento de liberação negra. (FRY, 1982, p. 47 - grifo
meu).

No mesmo texto Fry identifica que outros elementos também foram assimilados,
mas com variação de grau, caso esse em que o autor inclui o samba e o candomblé (FRY,
1982, p. 47). No entanto, é a variação no grau de assimilação que denuncia os limites dessa
assimilação, reflexo não só da história longeva de perseguições e proibições às manifestações
religiosas afro-brasileiras como de uma problemática ainda não resolvida em nossa sociedade.
Somente muito recente é que os ideais de afirmação religiosa passaram a
substituir o discurso e a postura de “não aparecer” ou “não chamar atenção” que caracterizou
85

os terreiros até a segunda metade do século XX. Com os movimentos de independência de


países da África e a constituição de um novo discurso histórico da pós-colonização é que
começam a surgir no Brasil a partir da década de 1970 um movimento de revitalização da
memória afro-brasileira e de afirmação social das religiões de terreiro, que Raul Lody chama
de reapresentação.
A revisão histórica, social e política expressa nas representações culturais apoia a
construção do rótulo indicativo afro. São reapresentações da vida e do episodio
geradores das culturas africanas no Brasil e diferentes processamentos aculturativos
e deculturativos. Categorizo reapresentação como ação nascente sob ótica étnica,
cujos movimentos são de etnicidade, de atestações de africanismos sob diferentes
nuances e significativos etnograficamente identificados e interpretados. (LODY,
2006, p. 12).

O movimento de africanização ou reafricanização ainda é limitado à entidades e


terreiros de maior destaque ou mais intelectualizados. Não são todas as comunidades ou
grupos que afirmam de maneira deliberada uma identidade africana não sincrética. Josildeth
Consorte em artigo sobre o manifesto das Ialorixás baianas contra o sincretismo, publicado
em 1983, identifica que o movimento encabeçado por Mãe Stella de Oxossi não obteve
adesões de parte dos terreiros de Salvador, indicando assim para o fato do catolicismo fazer
parte desse universo religioso afro-brasileiro. (CONSORTE, 1995).
Não estando dissociados um do outro, as religiões afro-brasileiras e o catolicismo
representam assim duas partes de um complexo religioso que é tão amplo, variado e longevo
que não permite mudanças estruturais radicais. Não há como negar que o sincretismo também
é reflexo de um processo de violência simbólica que aos poucos passou a compor o universo
religioso afro-brasileiro em seus símbolos, ritos e visões de mundo e tal característica não
deve ser excluída do olhar crítico sobre certas leituras feitas do Candomblé, o Batuque,
Tambor de Mina ou qualquer outro tipo de manifestação religiosa que possa ser incluída sobre
a denominação afro-descendente. Negar o sincretismo é de certa forma negar a própria
religião em si.
Sem dúvida essa característica decorre do fato do sincretismo ter sido não
somente uma forma de articulação entre dois universos religiosos distintos, mas uma forma de
articulação social do negro no mundo dos brancos, como destaca Reginaldo Prandi.
Se a religião negra, ainda que em sua reconstrução fragmentada, era capaz de dotar o
negro de uma identidade negra, africana, de origem, que recuperava ritualmente a
família, a tribo e a cidade perdidas para sempre na diáspora era por meio do
catolicismo, contudo que recuperava ritualmente a família, a tribo e a cidade
perdidas para sempre na diáspora, era por meio do catolicismo que, contudo, que ele
podia se encontrar e se mover no mundo real do dia-a-dia, na sociedade do branco
dominador, que era o responsável pela garantia da existência do negro, ainda que em
condições de privação e sofrimento, e que controlava sua vida completamente.
Qualquer tentativa de superação da condição escrava, como realidade ou como
86

herança histórica, implicava primeiro a necessária inclusão no mundo branco. E logo


passava a significar o imperativo de ser, sentir-se e parecer brasileiro. Os negros não
podiam ser brasileiros sem ser ao mesmo tempo católicos. Podiam preservar suas
crenças no estrito limite dos grupos familiares – muitas vezes reproduzindo
simbolicamente a família e os laços familiares – mediante a congregação religiosa,
daí a origem dos terreiros de candomblé e das famílias-de-santo –, mas a inserção no
espaço maior exigia uma identidade que refletisse o conjunto geral da sociedade
católica em expansão. (PRANDI, 1995, p. 96-97).

Reginaldo Prandi é muito feliz ao demonstrar de maneira objetiva um processo


tão complexo (a inserção do catolicismo no mundo religioso africano). No entanto, suas
afirmações totalizadoras podem sufocar algumas exceções à regra apresentada por ele. São
essas variações em termos históricos que permitem pensar que dominação e resistência não
podem ser abordadas em termos tão ajustados, principalmente quando falamos de uma
sociedade ainda em formação, que padecia de todo tipo de instabilidade e que hora ou outra
negava a si mesma para poder sobreviver em tempos de dificuldade, cenário este quando são
observados indivíduos da elite buscando resolver seus problemas juntos a curandeiros, pais e
mães de santo, que na maior parte das vezes eram combatidos.
Diferentes expressões religiosas entrelaçaram-se desde o início da formação social
brasileira e nesse sentido Prandi consegue compreender quão imbricadas estão, no entanto,
sua análise carece de um olhar que também consiga perceber certas especificidades da
religiosidade brasileira como um todo e que fogem dessa perspectiva de análise tão fechada,
que não permite ao negro outra forma de expressão religiosa que não ligar-se diretamente ao
catolicismo.
O sincretismo não é unicamente uma amarra. Paradoxalmente, sujeitar-se às
limitações impostas pela religião católica libertava o negro para o exercício de sua
religiosidade. Ainda que de forma limitada as religiões afro-brasileiras eram praticadas dentro
da lógica católica e ao mesmo tempo contra esta, algo que Nina Rodrigues já chamava
atenção desde o fim do século XIX ao falar de ilusão da catequese.
A relação ocorria em uma via de mão dupla, as religiões dos africanos e seus
descendentes recebiam influência do catolicismo ao passo que também influenciavam as
concepções religiosas cristãs por meio do contato cultural rico. O médico maranhense, citado
acima, também já descrevia essa situação.
O animismo fetichista africano, diluído no fundo supersticioso da raça branca e
reforçado pelo animismo incipiente do aborígene americano, constitue o sub-solo
uberrimo de que brotam exuberantes todas as manifestações ocultistas e religiosas
da nossa população. As crenças catholicas, as praticas spiritas, a cartomancia, etc.
todas recebem e reflectem por igual o influxo da feitiçaria e da idolatria fetichista do
negro. (RODRIGUES, 1897; 2006)
87

Dentro desse arranjo católico as religiões afro-brasileiras se expressavam contra


toda a ortodoxia católica influenciando esse catolicismo que já era moreno38 nos termos de
Eduardo Hoornaert.
Durante o período colonial havia-se formado no Brasil um catolicismo distante do
europeu oficial, que corresponde ao modo de ser mestiço num país colonizado e com
a ‘arte’ de se ‘virar’ numa sociedade cheia de contradições e oposições sociais
extremas, numa convivência diária entre senhores e escravos. (HOORNAERT,
1990, p. 19).

O europeu que aqui chegou também não era nenhum exemplo de retidão em
termos de sua moral religiosa. Vale lembrar, se não for demais, que a feitiçaria já era velha
conhecida (temida e creditada) dos europeus e que migrou junto com os colonizadores. Assim
antes de qualquer influência dos povos “bárbaros” o europeu já reconhecia a influência de
forças sobrenaturais e dela já fazia uso no seu cotidiano como informa o historiador português
Francisco Bethencourt ao analisar os processos inquisitoriais de Portugal do século XVI.
Os testemunhos que recolhemos dão-nos conta dos poderes atribuídos ao homo
magus e das técnicas por ele utilizadas. Em primeiro lugar, a comunicação com os
espíritos (almas, demônios, anjos e santos,), obtida por revelação – v.g. aparições,
sonhos e vozes incorpóreas – ou por ato de vontade, que implica o conhecimento de
técnicas específicas de invocação – v.g. conjuros, transes, fervedouros. A vidência,
virtude inata ou revelada, exercia-se geralmente sobre superfícies elementares, como
a água e a terra, prescindindo, em certos momentos, de qualquer suporte (o
conhecimento do passado, do presente, e do futuro podia ser alcançado através de
visões e sonhos). As capacidades taumatúrgicas raras vezes se assumiam
abertamente, permanecendo envolvidas pela manipulação formal de algumas
técnicas tradicionais de cura: bênçãos, unções, rezas, mezinhas, emplastros,
unguentos e lavatórios. A adivinhação, que obedecia em geral a um questionário de
lógica binária, processava-se através do lançamento de sortes (preferencialmente de
chumbo derretido na água) e da consulta às estrelas. O encantamento podia ser
obtido por conjuros proferidos na presença da vítima, fervedouros, feitiços,
amuletos, ou ainda pela manipulação de imagens representando a pessoa visada. O
embruxamento decorria do mau-olhado e do lançamento de feitiços.
(BETHENCOURT, 2004, p. 164).

A responsabilidade por fazer a população aprender e obedecer às regras religiosas


era parte da atividade de clérigos que muitas vezes pecavam tal e qual o homem comum39. O
controle da Igreja Católica era limitado e esse foi um dos fatores a partir dos quais as práticas
religiosas não cristãs conseguiram se difundir largamente por todo o Brasil. Não é exagero

38
Mesmo com toda problemática em torno da palavra “moreno”, como forma de classificação ou adjetivação, o
que o autor busca mostrar é que no processo de mestiçagem o catolicismo ganhou formas particulares de
expressão que se distanciam de um modelo ortodoxo e se aproximam muito de outras formas de crença.
39
O clero católico do Maranhão também possuía as suas falhas e não era exemplo de obediência à própria
religião que representavam. Em sua tese de doutorado, Pollyanna Mendonça trabalha os desvios dos clérigos no
século XVIII e identifica uma série de processos da justiça eclesiástica em que o bispo buscava moralizar a ação
de seus subordinados a partir da punição de crimes como concubinato, assassinato, envolvimento com jogos,
sodomia, negligência sacerdotal, ministrar sacramentos ilegalmente, agressão e brigas, uso excessivo de bebidas,
incesto, sacrilégio, simonia entre outros num total de “147 acusações contidas nos 96 processos crime contra
clérigos, 66 dizem respeito a casos que maculavam o bom exercício do sacerdócio e não eram condizentes com a
condição de clérigos.” (MUNIZ, 2011, p. 247-248)
88

afirmar que em certo sentido foi o catolicismo que resistia ao avanço da religiosidade popular
e mestiça. As regras religiosas de conduta social e as punições a quem não as seguia são
exemplos claros de que a dominação religiosa se deu à muito custo por parte da Igreja
Católica.
Se pensarmos que o catolicismo que aqui chegou já tinha os seus problemas e que
era circundado por outras atividades religiosas – que corriam paralelas à religião oficial –
inspiradoras da credulidade popular, a nossa mestiçagem em termos de crença é tão antiga
quanto a nossa história e que a influência das tradições religiosas africanas e indígenas veio
apenas a somar em um panorama heterodoxo em práticas, símbolos e ritos. A umbanda e a
pajelança são apenas dois exemplos de manifestações religiosas cujo sincretismo se evidencia
com maior clareza e que as referências a tradições distintas são mais fortes do que a afirmação
de apenas uma ou outra.
Falarei mais detidamente sobre a pajelança no último capítulo. Por hora faço a
ressalva de que se os africanos não encontraram ambiente propício para reproduzir a sua
religião tal e qual o seu lugar de origem, tiveram, ao menos um espaço propício para a sua
adaptação tendo em vista o complexo cenário social que aqui se desenvolveu ao longo do
tempo, causa das várias manifestações culturais observadas desde o período colonial.
É necessário retomar o argumento de Marshal Sahlins (2003) já trabalhado no
início desta dissertação. A ideia de que a cultura pode ser alterada ou influenciada pela
história, ou seja, pelos acontecimentos que não são controlados pelos indivíduos, faz muito
sentido para o que busco descrever aqui. Se entendermos que a organização das religiões afro-
brasileiras dependeu de aspectos que não necessariamente internos às mitologias e visões de
mundo das diversas etnias escravizadas torna-se mais fácil identificar como o panorama sócio
cultural do Brasil ao longo do tempo afetou a religião e porque não houve uma reprodução
dos cultos africanos aqui.
Roger Bastide também refletiu de forma semelhante sobre esta condição, mas
fazendo uso do referencial marxista de infra-estrutura e superestrutura. Para ele o “encontro
entre deuses africanos e espíritos indígenas” resultou na incorporação ritual das entidades dos
índios por parte dos descendentes de africanos por uma série de fatores.
As infra-estruturas também intervêm naturalmente, e primeiro as de ordem
demográfica. Nos lugares, como o Nordeste, onde há uma grande maioria de pessoas
de cor, mulatos e negros, no litoral, e uma maioria de camponeses mais ou menos
mestiços de índios na direção do interior, os dois tipos de culto tendem a coexistir
lado a lado sem se fundir, já que cada um deles se dirige a populações separadas.
Um pouco mais para cima no Maranhão, as misturas começam a aparecer: um culto
aos voduns puro (Casa das Minas), cultos africanos sincréticos, com voduns fons e
89

orixás, e enfim – principalmente quando nos embrenhamos interior adentro – culto


mistos com Voduns, Orixás e Caboclos. (BASTIDE, 2006, p. 231-232).

Segundo Bastide a demografia foi responsável por colocar em contato negros e


índios de forma que houve também a junção de suas crenças em determinadas regiões e como
fator externo às religiões, foi responsável por estruturar novas formas de culto. Cabe a
consideração de que as informações de Bastide são imprecisas com relação a especificidade
dos cultos.
Seria impossível a compreensão de todas as formas da religiosidade da população
negro-mestiça e por isso é realizada uma série de generalizações apresentadas de forma
categórica. Esse problema é perceptível desde o livro “As Religiões Africanas no Brasil”
(1971) em que o autor afirma que não havia pajelança no Maranhão e o daomeano
predominou com sua religião pura.
É muito provável que Bastide tenha feito referência à pajelança indígena como
predominante na região entre a Amazônia e Pernambuco, no entanto uma observação mais
atenta revelaria ao autor que a esses cultos mistos aos quais faz referência no texto de 1973
citado acima (O encontro entre deuses africanos e espíritos indígenas) são também conhecidos
por pajelança, mas não a pajelança do tipo indígena e sim uma espécie de “pajelança
afrobrasileira”, a respeito da qual dedicarei mais atenção em tópico a seguir. Bastide talvez
não tenha dado conta ou se interessado detidamente nessas religiões mistas, por estar
preocupado em observar as religiões africanas – ou puras para utilizar termos seus.
A especificidade da cultura afro-brasileira é decorrente do meio social econômico
e cultural no qual as populações africanas foram situadas ao longo do tempo. As
contingências desse cenário social também foram responsáveis pelas modificações na
estrutura das religiões. Fatores como a etnia e o número de escravos em uma dada região, a
influência em maior ou menor grau do catolicismo e das culturas nativas, bem como a
repressão policial não podem ser descartados ao se falar de organização das religiões de
matriz africana.
Isso justificaria a imensa variação de estruturas religiosas envolvendo matrizes
africanas desde o início da introdução de africanos escravos no Brasil e também exclui a ideia
de pureza trabalhada por Bastide. Segundo o autor a cidade de São Luís do Maranhão era uma
ilha de resistência em que o Tambor de Mina figurava como uma sobrevivência dos cultos
dahomeanos e que o distanciamento com esse local de resistência significava um
distanciamento dessa religião africana. (1971, p. 256).
90

Em meio a esta zona de influência indígena existe uma ilha de resistência africana,
mais especificamente daomeana, a cidade de São Luís do Maranhão e em torno dela
uma zona de transição onde o catimbó e o Tambor de Mina abandonam-se às mais
estranhas uniões. (BASTIDE, 1971, p. 256).

Gostaria de frisar, novamente, que Bastide estava preocupado em encontrar as


sobrevivências, expressões da cultura africana conservadas no Brasil, ao passo que toda
manifestação religiosa sincrética era encarada com desconfiança40. A mudança na estrutura
religiosa é vista pelo autor como um enfraquecimento desse caráter africano, dando lugar a
elementos nativos, guardando pouca, ou nenhuma, relação com o continente Africano e que
por isso não figuravam entre as “religiões africanas”.
No entanto, por mais que seja possível pensar em graus de influência africana, não
seria possível falar de jejes e nagôs puros, já que ambas sofreram influência direta do
catolicismo, que está presente na estrutura religiosa de ambas as casas consideradas
fundadoras dessa religiosidade que nasceu afro-brasileira ou mais especificamente afro-
maranhense. Sua matriz africana, porém sobressai-se em relação às demais influências
religiosas o que lhe daria esse aspecto de pureza, mas são observadas outros elementos, como
nos mostra a professora Mundicarmo Ferretti ao relacionar o Candomblé Nagô e o Tambor de
Mina Nagô.
É possível que uma das razões da diferença existente entre a Casa de Nagô e os
candomblés nagô tradicionais resida no fato que ela, além de integrar elementos jeje,
o que também ocorre com aqueles, incorpora elementos cambinda e integra
entidades espirituais não africanas (gentis e caboclas), o que parece ter acontecido
desde a sua fundação ou desde o tempo em que esteve sob o comando de africanas.
Algumas características da Casa de Nagô mostram bem a sua distância do “nagô
puro” da Bahia [...] (FERRETTI, M. 2001, p. 78).

Seria possível falar de religiões afro-brasileiras logo no início do processo de


introdução de escravos? Acredito que não há como pensar em comunidades religiosas ou
terreiros, mas sim na ação de agentes religiosos africanos presentes nesses grupos
transportados da África e que aos poucos criaram redes de relação em torno de sua ação
religiosa, mas sempre com influência de outros elementos religiosos.
Tudo indica que a organização das religiões negras no Brasil deu-se tardiamente.
Uma vez que as últimas levas de africanos trazidos para o Novo Mundo nas últimas
décadas do século XIX, período final da escravidão, foram fixadas sobretudo nas
cidades e em ocupações urbanas, os africanos desse período puderam viver no Brasil
em maior contato uns com os outros, física e socialmente, com maior mobilidade e,
de certo modo, liberdade de movimentos, num processo de interação que não
conheceram antes. Esse fato propiciou condições sociais favoráveis para a

40
O interesse pela pureza religiosa faz Bastide considerar os trabalhos de Oneyda Alvarenga a partir dos
resultados da Missão Folclórica de Mário de Andrade (1938) como passíveis de precaução, já que informam
sobre religiões que não eram africanas e sim degeneradas como o próprio autor informa em nota de rodapé
(1971, p. 257), já que, muito embora com influências, tais religiões não eram dahomeanas.
91

sobrevivência de algumas religiões africanas, com a formação de grupos de culto


organizados. (PRANDI, 1995, p. 66).

No entanto, não é somente o fim do século XIX que verá a organização das
religiões afro-brasileiras e sim todo esse período. A existência das religiões não pode ser
confundida com o aumento no número de referências históricas (seja documentos escritos ou
mesmo a memória oral que remete a um período ainda mais limitado), como informa João
José Reis.
Um problema é a escassez e a natureza das fontes. A clandestinidade a que as
práticas religiosas africanas foram empurradas e a própria natureza secreta de muitos
dos seus rituais reduziram sua visibilidade e, portanto, seu registro sob, digamos,
condições normais de existência. (REIS, 1988, p. 57).

Durante o século XIX o crescimento das cidades foi responsável pelas mudanças
nas relações sociais e culturais dos grupos de escravos e seus descendentes. A dinamização da
vida urbana representou maiores possibilidades de contato entre os indivíduos e a formação de
grupos ligados por laços étnico-culturais e sem dúvida facilitou a formação de comunidades
religiosas em torno de lideranças ou mesmo de terreiros já organizados, o que não era tão fácil
em outros espaços em que o tempo e o deslocamento dos escravos eram controlados mais de
perto41, como no caso das fazendas.
Essa mesma condição urbana e social que facilitou o agrupamento de indivíduos
em torno da religião deu maior visibilidade às manifestações culturais da população negro-
mestiça, que passaram a tomar parte nos jornais sob a forma de denúncia e recheadas das mais
diversas críticas. A publicização das religiões de matriz africana a partir da segunda metade
do século XIX não significa que é somente a partir desse período que se organizaram.
João José Reis em artigo de 1988 publica o artigo “Magia Jeje na Bahia: A
Invasão do Calundu do Pasto de Cachoeira, 1785” apresentando análise de uma
documentação sobre a invasão de uma casa em que se realizavam rituais religiosos.
No dia 16 de fevereiro, portanto, em pela estação de embarque do fumo, entre 11
horas e meia noite, os ventenários Manoel Ferreira Morais e Serafim dos Anjos
Pacheco faziam ronda com outros oficiais de justiça na rua do Pasto. Aparentemente
já haviam recebido denúncia de que ali, numa casa de morada de africanos, se
faziam cerimônias de calundu. Mas tudo era silêncio quando lá chegaram. Um dos
membros da ronda deixa escapar em seu depoimento que a porta da casa fora
arrombada, assim como as portas de três quartos [...]. (REIS, 1988, p. 67)

41
As posturas municipais tentavam sem muito sucesso restringir a mobilidade dos cativos, impondo limites às
atividades que não fossem relacionadas ao trabalho ou o atrapalhassem de alguma forma. Há uma noção de
regime de comportamento que tais normas buscavam construir e que destinava ao escravo um espaço reservado
ao trabalho, limitando outros tipos de atividades.
92

Já no final do século XVIII, muito tempo antes do marco estabelecido por Prandi,
é possível falar de grupos religiosos estabelecidos em torno de suas manifestações religiosas,
como informa o autor.
O documento aqui analisado é uma devassa, um inquérito policial, em que um grupo
de pessoas é acusado de práticas de batuque, feitiçaria e superstições. A data, 1785,
é sugestiva do ponto de vista da história da perseguição religiosa no Brasil colônia.
Mott sugere que já em meados do século XVIII a Igreja foi negligente na repressão a
um terreiro mineiro. Outros historiadores da Inquisição parecem concordar que o
último quartel do século XVIII viu um afrouxamento em relação às práticas da
religião popular. (REIS, 1988, p. 62).

Esse é apenas um caso de organização religiosa de matriz africana que pode ser
citada como exemplo. Laura de Mello e Souza (1986) trabalha com outros casos dessa
religiosidade popular em que a população negro-mestiça aparecia como acusados de
feitiçarias. Mariza de Carvalho Soares (2000) identifica uma série de grupos étnicos que
buscavam reproduzir a partir de suas festividades elementos das relações sociais do continente
africano, em tais grupos e suas festivas poderiam estar contidas manifestações ou ideias
religiosas imbricadas na devoção católica42, como fala Nicolau Parés.
[...] com muita frequência, as irmandades encobriam práticas que não se ajustavam
aos cânones e regras da teologia católica: os calundus. As redes socais dos negros
que se articulavam nas irmandades católicas eram provavelmente as mesmas que
podiam garantir a organização de batuques e outras práticas religiosas que aos olhos
dos africanos possuíam tanta eficácia – e para alguns até mais – quanto a devoção
aos santos católicos. A dupla participação de muitos africanos e crioulos nos desfiles
e procissões das irmandades e nos calundus ou danças “supersticiosas” não era
vivida, como já foi dito, como uma contradição, mas como uma justaposição
benéfica de recursos conceituais para lidar com a adversidade do cotidiano. O
sincretismo afro-católico do Candomblé contemporâneo encontra as suas raízes
nessa duplicidade de práticas surgidas ainda no século XVII e que se desenvolveram
principalmente no século XVIII. (PARÉS, 2007, p. 111).

Essa religiosidade popular complexa e sincrética era de difícil percepção para os


agentes repressivos da época, por essa razão é que há uma dificuldade em se identificar as
religiões afro-brasileiras a partir das pesquisas nos arquivos. A noção de batuque, já citada no
início desta dissertação, pode ser tomada como exemplo dessa compreensão pouco específica
e que era utilizada amplamente.
A palavra é largamente utilizada para designar qualquer manifestação festiva em
que o a utilização de tambores ou outros instrumentos percussivos assumem um lugar de
destaque. É essa mesma noção ampla que vai ser utilizada pelos códigos de posturas do século

42
As obras O Diabo e a Terra de Santa Cruz e Devotos da Cor respectivamente de Laura de Mello e Souza e
Mariza Carvalho Soares representam ideias seminais para quem deseja compreender de maneira mais profunda
esse complexo cenário cultural das crenças e práticas religiosas populares não só no período colonial, visto que
algumas considerações podem ser estendidas para outros períodos.
93

XIX para criminalizar as manifestações culturais dos negros43 e que não permite a
diferenciação entre uma manifestação lúdica e uma de caráter religioso.
A dificuldade em se identificar as religiões de matriz africana também não deve
ser tomada como fator de sua inexistência. Dentro do batuque poderiam estar incluído o
Tambor de Mina, a Pajelança, o Candomblé e outros rituais religiosos. As fontes nem sempre
são claras ao se tratar dessas manifestações, assim muitos registros de festas e divertimentos
encontrados em documentos podem ser a respeito de rituais religiosos que dificilmente serão
identificados.
A partir da citação de Nicolau Parés fica claro que desde o século XVII africanos
praticavam a sua religião, por meio do sincretismo com a religião católica, algo que
Reginaldo Prandi já havia alertado acima. As comunidades de terreiros, tal como conhecemos
hoje, talvez não tenham tido lugar na sociedade colonial no mesmo grau que tiveram durante
o período do Império.
As formas rituais das religiões afro-brasileiras mudaram ao longo do tempo
assumindo aos poucos o formato que encontramos hoje, esse sim, já se fazia presente nas
cidades no final do século XIX. Se quisermos identificar a religiosidade afro-brasileira nos
séculos anteriores deveremos estar atento a essas manifestações de caráter lúdico e aos grupos
que não são identificados imediatamente como praticantes de “feitiçarias e superstições”
como as confrarias e irmandades. Foi a partir desse imbricado processo que Nicolau Parés
chama de “acumulação de recursos espirituais diferenciados” (2007, p. 111) que se deu a
organização das comunidades de terreiros.
Não é possível afirmar que os terreiros se formaram apenas no fim do século XIX.
No entanto não podemos também afirmar que os terreiros no formato atual existiam desde o
período colonial. Da mesma forma como devemos atentar para os processos de mudança nas
religiões é necessário observar a sua variedade em termos de rituais, símbolos e crenças.
Trabalhando com as especificidades tonasse possível dirimir falhas interpretativas de certas
análises que, ao generalizar, perdem a sua capacidade de abordar o problema de maneira mais
completa.
O desenvolvimento das religiões afro-brasileiras não obedeceu a uma única
lógica. Devido às diversas razões aqui expostas podemos descrever o processo, de forma
resumida, a partir da citação de Carlos Eduardo Moreira.

43
O artigo 36 do Código de Posturas de 1842 pretendia assegurar que os batuques fossem combatidos,
proibindo-os nas ruas da cidade e em horário de silêncio, Já nas posturas de 1866 os batuques estavam
“liberados” para que se realizassem em locais autorizados previamente pela polícia (Artigo 124 – Código de
Posturas de 1866).
94

Em pequenos casebres, salas quartos diminutos, em espaçosos


espaçoso terreiros, ou mesmo
nos casarões senhoriais, muitos africanos e seus descendentes procuraram, a todo
custo, celebrar seus deuses e antepassados. Nesses locais sagrados, espalhados pelas
cidades negras, recriavam redes culturais peculiares, de diferentes tradições
religiosas vivenciadas por eles mesmos, ou por seus pais e avós. Algumas
reinventadas deste lado do Atlântico. Dos milhares de africanos que aqui chegavam,
encontramos alguns sacerdotes que, ao desembarcarem em novas terras continuavam
exercendo suas atividades religiosas. (MOREIRA, et. al., 2006 p. 123)

Espalhados pela cidade, muitos eram os lugares em que se tornava possível a


prática das religiões afro-brasileiras.
brasileiras. Casebres
asebres ou quartos de casarões já abandonados,
abandonados em
locais nos subúrbios,, ainda coberto por mata, serviam de locais de consulta ou culto, restritos
ao conhecimento de muita gente, mas acessível àqueles que sabiam buscar por pais e mães de
santo ou pajés em busca da solução de problemas.

Mapa 1 Comparativo das “duas cidades”.

As áreas do subúrbio eram a outra cidade, dos caminhos tortuosos e de difícil


acesso, como foi possível observar em imagens anteriores. A outra cidade fugia do traçado
colonial e teimava em fugir da civilização e da ordenação elitista. É por essa razão que os
sons e as festas vindos de longe incomodavam e por tal razão exigia-se
exigia a ação da polícia,
mesmo onde, aparentemente, o poder público não deveria se incomodar com tanto.
95

No mapa acima é possível ver como o traçado das ruas muda ao se comparar a
área 1 correspondente ao antigo traçado colonial e as áreas 2 e 3, subúrbios de formação
distinta da organização pretendida pelos projetos urbanísticos. Muito embora o mapa seja
atual verifica-se como esse traçado não retilíneo foi mantido e como há uma diferença entre a
configuração de áreas. As duas cidades não levam em consideração somente o traçado urbano,
mas como as diferenças sociais tinham relação com a constituição do espaço urbano.
Nos capítulos seguintes irei tratar do Tambor de Mina e da Pajelança como
manifestações religiosas de matriz africana cuja existência também está ligada aos processos
acima relatados. Ainda que em um recorte temporal limitado (virada do século XIX para o
século XX) o olhar sobre essas religiões não está desligado de todo o contexto histórico do
qual fizeram e ainda fazem parte.
Lançarei mão de categorias de análise das ciências sociais e de etnografias sobre
religiões afro-brasileiras como forma de compreender melhor a estrutura dessas religiões no
passado, conhecimento esse que ainda incipiente causa dúvidas e mantém lacunas no meio
acadêmico. Inspirado em Burke proponho certas relações entre momentos históricos distintos
com a finalidade de entender a religião em si, fugindo da narrativa das práticas repressivas,
ponto central de muitos trabalhos.
Para entender qualquer item cultural precisamos situá-lo no contexto, o que inclui
seu contexto físico ou cenário social, público ou privado, dentro ou fora de casa,
pois esse espaço físico ajuda a estruturar os eventos que nele ocorrem. Na medida
em que a cultura popular era transmitida em casa, dentro do lar, ela praticamente
escapa ao historiador interessado nesse período. Apenas projetando
retrospectivamente as descrições das “ocasiões de conto” apresentadas pelos
folcloristas modernos e justapondo-as a alguns relatos de ficção sobre os século XVI
e XVII é que poderemos imaginar o cenário das narrativas tradicionais: o contador
de estórias em sua cadeira – se havia alguma – ao pé do fogo numa noite e inverno,
ou grupo de mulheres reunidas numa casa para fiar e contar estórias enquanto
trabalhavam. (BURKE, 2010, p. 153).

É com base nesse contexto social, cultural e urbano que pretendo analisar as
religiões afro-maranhenses, sempre que possível apresentando o maior número de detalhes
possíveis sobre essas manifestações religiosas e, quando não for possível, buscar outras
formas de compreender os silêncios e as lacunas que a documentação deixa. Seja por meio da
memória oral, de comparações ou de conjecturas a partir de pequenas pistas deixadas pelos
registros históricos como ressalta Ginzburg.
Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a
reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama,
ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos, plumas emaranhadas, odores
estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas
infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas
com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de
ciladas.
96

Gerações e gerações de caçadores enriqueceram e transmitiram esse patrimônio


cognoscitivo. Na falta de uma documentação verbal para se por ao lado das pinturas
rupestres e dos artefatos podemos recorrer às narrativas de fábulas, que do saber
daqueles remotos caçadores transmitem-nos às vezes um eco, mesmo que tardio e
deformado. (GINZBURG, 1989, p. 151)

A falta de determinadas informações podem ser suprimidas com base em


pequenas pistas deixadas no contexto ou de informações contidas em outro documento. Da
mesma forma como um antropólogo pode perguntar e não obter respostas o historiador se vê
em situações em que o documento não lhe permite avançar. Ao antropólogo é permitida a
observação de determinados acontecimentos algo impossível ao historiador, no entanto
pequenas pistas ao longo de um documento ou de séries documentais permitem ao menos
elencar algumas possibilidades que resolvam o problema proposto.

3.2 Os Pedidos de Licença para Festas (PLF)

Os Pedidos de Licença para Festas (PLF) eram documentos com estrutura simples
e fixa. O requerente (aquele que pedia; usualmente também chamado de suplicante ou
peticionário) apresentava-se, indicando o seu endereço e o objetivo do seu pedido de licença
(a festa em si) dando detalhes do que ocorreria e em alguns casos justificando o seu pedido.
No fim do documento quase sempre o requerente dava garantias de que manteria a ordem e os
bons costumes encerrando com a assinatura de seu nome ou com a assinatura de uma pessoa a
rogo.
Abaixo segue transcrição de dois pedidos, para efeito de exemplificação:
TRANSCRIÇÃO 1 44:

Illustrissimo e Excelentissimo Senhor Doutor Chefe de Policia

Indeferido. Secretaria de
Policia do Maranhão. 4 de julho de 1889.

Olympio Raimundo de Freita Vianna, diz que


precisa que Vossa Excelencia lhe conseda licença para sahir
com uma brincadeira denominada - o Caipora,
obrigando-se o supplicante a observar em todos os pon
tos os preceitos da lei e da moral.

44
A sigla ERMce no documento é a abreviatura de Espera Receber Mercê, suplica de quem espera um benefício
por parte de uma autoridade do Império. Com a República esse tratamento foi substituído pelo Pede Deferimento
(ou simplesmente P.D) ou E. Justiça, forma reduzida de Espera Justiça, mas em datas posteriores e próximas à
proclamação da República ainda é possível observar alguns documentos com esse tratamento. Da mesma forma
o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Chefe de Polícia também foi substituído, em alguns casos por
Cidadão Chefe de Polícia ou Cidadão Doutor Chefe de Polícia.
97

Nestes Termos
ERMce

Maranhão 4 de julho de 1889


A rogo de Olympio Raymundo de Freita Vianna
José Luiz da Costa Leite.

TRANSCRIÇÃO 2:

Ao cidadão Doutor Chefe de Policia d'


este Estado.

Não. Maranhão 8 de Fevereiro


de 1890. Muniz Varela

Domingos Gustavo da Silva Maya


cidadão brasileiro desejando dar ama
nham um baile em casa ed sua resi
dencia, á rua do Norte, sob nº 52,
vem requerer-vos que, por vosso respeitavel
despacho, vos deguineis de conseder-lhe
a necessaria licença.
O suplllicante compromette-se a man
ter a bôa ordem e o respeito devido a mo
ral e bons costumes, durante a sua brin
cadeira, sujeitando-se as penas da lei
E Justiça
Maranhão 7 de Fevereiro de 1890
Domingos Gustavo da Silva Maya

Pouquíssimos pedidos apresentam variações das formas acima que deviam seguir
algum modelo estabelecido à época. Alguns requerentes davam maiores informações sobre o
objeto de licença e outros não (como nos dois pedidos acima), na tentativa de justificar ou
convencer a autoridade policial a atender o seu pedido. Outros se resumiam às informações
básicas como as já descritas acima. O anexo 05 apresenta dois PLF digitalizados, para
exemplificação.
De qualquer forma não era necessariamente o conteúdo do documento que
garantia a licença. Muitos elementos estavam em jogo para que os pedidos fossem aceitos ou
não. A idiossincrasia do Chefe de Polícia pode ser destacada como um dos maiores entraves
às licenças. Um mesmo chefe de polícia poderia apresentar posturas diferentes.
Em 16 de agosto de 1889 Domingos Gustavo da Silva Maya solicitou licença para
fazer umas "brincadeiras dançantes" em sua casa, pedido este que foi aceito pelo chefe de
polícia Francisco da Cunha Machado. No dia 9 de novembro do mesmo ano o requerente
98

Marcelino de Jesus Pereira da Silva pediu licença para realizar o mesmo tipo de festa em sua
casa ao que obteve resposta negativa do mesmo chefe de polícia.
A mudança entre chefes de polícia poderia representar a mudança de postura em
relação aos pedidos de licença. No ano de 1890 o requerente Domingos Gustavo da Silva
Maya, já apresentado acima, teve duas licenças negadas, uma em 24 de janeiro de 1890 e
outra em 7 de fevereiro do mesmo ano pelo Chefe de Polícia Muniz Varella, que teve como
característica indeferir todos os pedidos que passaram pela sua mão.
Não é possível relacionar nenhuma causa externa às diferentes posturas dos
Chefes de Polícia, que possa justificar porque certos pedidos eram deferidos por uns e por
outros não ou porque pedidos semelhantes recebiam respostas distintas. O que fica claro a
partir da documentação é que o responsável pela Chefatura de Polícia tinha grandes poderes
de deliberar sobre tal assunto e a sua ação estava condicionada prioritariamente por sua
opinião. No mesmo ano em que Muniz Varella nega licenças para bailes, outro chefe de
polícia liberava o mesmo tipo de divertimento.
Para melhor compreender e classificar os PLF foi preciso elaborar uma tipologia
das fontes, em que se classificou os documentos em grandes grupos, a saber:
a) Brincadeiras;
b) Bailes;
c) Tambor de Mina;
d) Festa do Divino;
e) Bumba Meu Boi;
f) Tambor;
Essa classificação leva em consideração todos os mais de 500 pedidos
digitalizados de onde se extraiu os dados para esta dissertação. Os PLF não trabalhados
diretamente que estão no arquivo sem dúvidas, passam da casa dos mil documentos somente
no período entre 1889 e 191045. Não estão incluídas aí as licenças que envolvem
apresentações teatrais, circenses e de viagens para fora do estado.
A categoria brincadeiras é utilizada para os pedidos que assim se caracterizam e
geralmente envolvem manifestações respectivas ao período carnavalesco (mas não
exclusivamente) nas quais grupos saiam pelas ruas em períodos festivos. Brincadeira é uma
categoria ampla, que pode aparecer relacionada com manifestações que fazem parte de outras
categorias listadas acima.

45
A série documental corresponde ao período de 1873 a 1933.
99

Bailes aparecem na documentação como festas particulares, que ocorrem dentro


de residências e que ora podem aparecer como partida dançante ou como brincadeira de
dança. Brincadeira de Dança pode aparecer também como parte da categoria brincadeira, o
que vai diferenciar um do outro é a estrutura do pedido e a comparação com outros
documentos solicitados pelo mesmo requerente.
Tambor de Mina é uma categoria exclusiva para os pedidos que envolvem o
termo mina, como dança de minas (mais recorrente), tambor de mina ou brincadeira de
minas. Nesta categoria estão inclusos os pedidos da Casa das Minas, Casa de Nagô e de
outros terreiros que serão identificados a seguir. É possível que pedidos referentes a tambor de
mina estejam incluídos de maneira “disfarçada” em outros pedidos, não sendo possível, a
partir dos dados constantes nos documentos, classificá-los como tal.
A categoria Festa do Divino e Bumba meu Boi também são bem específicas. A
primeira envolve tanto a festa por completo quanto momentos desta, como o ato de angariar
donativos (esmolar), buscamento e levantamento do mastro, cortejos e toque de caixas. A
segunda diz respeito às manifestações apresentadas como brincadeiras de bumba meu boi ou
simplesmente brincadeira de bumba, as licenças são para ensaios e para percorrer localidades
da ilha principalmente durante os festejos juninos.
Há um número relativo de pedidos de licença para Bumba meu Boi, inclusive no
período do carnaval. Ao iniciar as pesquisas tinha em mente a ideia clara das proibições
generalizadas em torno do Bumba meu Boi, mas o que os pedidos indicam é que havia um
tipo de proibição muito específica que era direcionada a áreas mais próximas ao centro da
cidade. Nos arrabaldes e subúrbios a brincadeira era permitida e como boa parte delas
localizava-se nessas áreas os pedidos eram atendidos pela chefatura de polícia.
Na categoria Tambor estão incluídos pedidos referentes ao Tambor de Crioula,
mas é possível que alguns pedidos sejam referentes ao Tambor de Mina já que as descrições
são insuficientes para precisar do que tratam certos documentos. De todo modo a categoria
tambor foi utilizada principalmente para encaixar os pedidos que envolvem o tambor
enquanto elemento central ou o objeto da licença.
A resposta ao pedido era escrita no próprio documento, que ficava de posse da
polícia – nos pedidos acima transcritos a resposta do Chefe de Polícia está localizada entre o
cabeçalho e o início do pedido em que se observa a rubrica da autoridade policial, algumas
sendo legíveis outras não. Após o despacho da autoridade policial elaborava-se uma portaria
que era passada ao requerente com um número e a descrição do que estava sendo autorizado.
100

A portaria poderia ser solicitada pelos policiais responsáveis pela vigilância do


distrito para verificar se determinada festa tinha licença policial para a sua realização. Estes
tinham poder de cassar as licenças caso fosse constatado algum tipo de descumprimento das
determinações da chefatura de polícia, como a existência de distúrbios e infração da ordem e
os bons costumes.
Não foi localizado nenhum registro policial que informe sobre a cassação de
licenças, que seria fundamental para entender quais as justificativas que eram dadas para a
suspensão de uma portaria. Com o conhecimento da justificativa de cassações seria possível
entender melhor a lógica de limites impostos aos divertimentos. A possibilidade de cassação
mostra que conceder ter aprovação da Chefatura de Polícia não era suficiente para realização
da festa, já que poderia haver a vigilância da polícia.
Novamente é necessário frisar a relevância do entendimento da autoridade policial
para tais assuntos. Assim como em um determinado período pesquisado é possível observar
diferentes opiniões e julgamentos dos Chefes de Polícia, os policiais poderiam acionar
critérios – os quais poderemos nunca saber – para julgar se uma festa estava ou não dentro dos
limites permitidos.
As respostas são tão importantes quanto os pedidos, pois indicam claramente as
limitações impostas às manifestações culturais. Em alguns documentos o despacho do chefe
de polícia traz algumas informações relevantes, em outros apenas as determinações da
autoridade policial: “deferido”, “indeferido”, “não”, “passe-se portaria”, “nego a licença”
entre outros.
Figura 6 Autorização do Chefe de Polícia (1899)

Não há registro de cópias das portarias passadas aos requerentes. Nos documentos
é possível observar apenas a informação respectiva ao registro em algum livro da chefatura de
polícia em que eram listadas entrada de documentos ou expedição de portarias. Localizei
apenas algumas licenças expedidas para uma requerente da Casa de Nagô, que anexou em três
de seus pedidos portarias anteriores concedidas pela chefatura. Essa era uma forma de mostrar
ao Chefe de Polícia que seus pedidos já haviam obtido autorizações anteriores e que estas não
101

haviam sido cassadas pela polícia, indicando que suas festas mereciam novas licenças pois
mantinham-se dentro do que determinava a polícia.
Embora uma licença fosse concedida pela Chefatura de Polícia, não significava
que o objeto da solicitação seria atendido em sua totalidade, em alguns despachos é possível
observar as limitações impostas pela autoridade policial. Mesmo naqueles em que há uma
liberação não é possível precisar se a licença atendia a tudo que estava sendo solicitado pelo
requerente. A emissão da portaria era apenas o início de uma cadeia de etapas e de possíveis
interdições pelo qual o documento e o requerente deveriam e/ou poderiam passar.
A portaria era emitida por um escrivão que já conhecia as limitações que deveriam
ser impostas a cada tipo de pedido. Os próprios chefes de polícia às vezes escreviam nos
documentos: “passe-se a licença em conformidade com os meus despachos anteriores”, sem
que fosse necessário explicitar em todos os pedidos as suas determinações. Essa lógica de
funcionamento interno da instituição, que não é totalmente desconhecida, deixa claro que
havia uma espécie de senso generalizado nas liberações e proibições das licenças que davam
entrada na chefatura, sem que o chefe de polícia fosse obrigado a emitir um parecer completo
em cada documento.
Depois de emitidas, as licenças deveriam ser apresentadas aos subdelegados,
autoridades policiais dos distritos. Era a função deles passar o visto na portaria como forma de
se mostrarem cientes do que ocorreria em termos de festa nos distritos sob sua
responsabilidade, bem como preparar diligências para verificar se estavam ocorrendo em
observância às determinações da chefatura.
A aprovação por parte da polícia se fazia também por meio do pagamento do
tributo municipal. Logo nos primeiros documentos do ano de 1889 podem ser observados
comprovantes de pagamento dos emolumentos municipais46. Depois de determinado período
o recolhimento do imposto passou a ser feito através do pagamento do selo que deveria ser
colado no documento.

46
Não é possível definir se essa forma de recolhimento de taxas diz respeito ainda a uma lógica de tributação do
tempo Imperial. Os poucos registros de pagamento não permitem identificar como funcionava esse sistema e os
valores envolvidos.
102

Figura 7 Selo dos documentos (1909).

O imposto do selo cobrado para tais licenças variava conforme o período, sendo
cobrado, via de regra, entre 200 e 300 réis no fim do século XIX e cerca de 600 réis no século
XX. Havia ainda a taxa de expediente no valor de 1 réis coletado pela expedição da portaria
(ver imagem 07, p. 98). A variação nestas cifras correspondia muito mais a problemas de falta
de selos do que devido a valores cobrados especificamente para cada tipo de festa que pedia
licença.
É a partir desta documentação que discorrerei acerca de alguns elementos em
torno do Tambor de Mina na cidade de São Luís do Maranhão na virada do século XIX para o
XX, visto ser esta um dos poucos registros que se tem acerca dessa religião. As referências
dos jornais são bem menores e quase inexistentes, sendo muito mais destacada a presença dos
pajés na cidade e que será trabalhada posteriormente.
103

4. TAMBOR DE MINA.

O Tambor de Mina é a denominação da manifestação religiosa afro-brasileira


característica do Maranhão. Sua origem remonta ao século XIX e mais especificamente à
Casa das Minas e a Casa de Nagô, tidos como os terreiros mais antigos da cidade. Não posso
afirmar que se trata da manifestação religião afro-maranhense mais antiga, pois, como
trabalhado anteriormente, é possível que certos elementos religiosos africanos tenham se
formatado a partir de outras expressões religiosas, como irmandades, confrarias, ou na ação
específica de especialistas na cura.
A reatualização parcial de práticas religiosas de origem africana, com a sua longa e
variada tradição no âmbito da cura, ou do que hoje chamaríamos trabalho
assistencial, tornou-se assim inevitável. Não foi por acaso que as práticas de
“curandeirismo” e os rituais funerários foram alguns dos aspectos religiosos
africanos que com mais persistência se reproduziram nas Américas. (PARÉS, 2007,
p. 110)

A referência mais antiga encontrada nos arquivos sobre as atividades religiosas de


negros na cidade de São Luís é de março de 1835. A Guarda Municipal Permanente fez um
levantamento das casas habitadas por escravos para saber se estes possuíam a licença
obrigatória para morar fora da casa de seus senhores. No mapa elaborado com os dados
obtidos há uma coluna intitulada observações, nas quais foram descritas as atividades
realizadas pelos escravos e como realizavam o pagamento de seus aluguéis. Chama atenção
para duas negras de nome Ana Therida (sic) e D. Leopoldina cuja atividade relatada foi Cura
de Feitiçaria, descrição essa atribuída aos especialistas em curas religiosas, que mais tarde
viriam a ser chamados quase que exclusivamente de pajés.
No mês seguinte a Guarda Municipal elaborou novo registro em que são
relacionadas às casas habitadas por negros libertos e que deveriam ter a atenção da polícia, ao
todo eram 24 libertos e 13 endereços. Em uma casa chegavam a habitar até cinco pessoas o
que para as autoridades era matéria de preocupação, visto a possibilidade de revoltas. Ao lado
do mapa há a seguinte descrição das casas e das pessoas que habitavam no primeiro distrito da
cidade.
Primeiro Districto. Pelas feitas do anno, e mesmo em alguns Domingos e Dias
Santos, costumão-se em Cazas que se alugao’ ou pedem emprestadas, alguns
molatos e pretos escravos e mesmo libertos pela maior parte Alfaiates, e ahi dao’ os
seus festins em cujas occazioens mutuamente se saudao’ e destinguem com os
apellidos de seus Senhores: algumas destas cazas são’ decentemente mobiladas
porem parece que semelhantes homens não’ tem por ora outro fim mais de que o de
divertirem-se; se bem que algumas se tornam notaveis pelos moveis, e vestuário do
que as compoem e que seguramente demandao’ gastos superiores as suas
possibilidades. (Guarda Municipal Permanente, 1835)
104

Não há menção a tambores ou qualquer outro tipo de instrumento, mas o


comandante da Guarda Municipal, que assina o documento, informa que nestes “festins”
realizados aos domingos e dias santos reuniam-se escravos e libertos que se saudavam pelo
apelido de seus senhores. Tais “apelidos” podem ser nomes de origem africana, mas não
identificados por aqueles que assistiram ou que deram informações sobre essas reuniões.
A própria noção de senhor pode estar relacionada com as entidades espirituais dos
indivíduos – chamados de senhores ou senhoras na linguagem das comunidades de terreiro e
saudadas de maneira especial quando “baixam” nas festas – e não necessariamente aos
senhores de escravos, já que haviam libertos em tais “festins”, como o próprio documento
descreve.
Preocupado mais com a possibilidade de revoltas do que com qualquer outra coisa
o oficial informa que aparentemente não há outra finalidade senão o divertimento deixando de
fora uma possibilidade de investigação mais minuciosa que poderia revelar maiores detalhes
sobre tais festas. Apesar dos indicativos de possuírem aspectos da religiosidade, não há
maiores informações que possibilitem compreender de fato do que se tratavam tais festins.
Essa incerteza não se restringe somente a essa documentação, já que as manifestações
religiosas poderiam ser confundidas com festas na medida em que estas eram uma das formas
de expressão religiosa afro-brasileira.
Dessa forma é possível identificar logo na primeira metade do século XIX a
existência de práticas de cura e a possibilidade de reuniões possivelmente religiosas que pela
documentação pesquisada não podem ser consideradas como Tambor de Mina ou qualquer
outra denominação específica, podendo ser, no entanto, modalidades como as que foram
apresentadas por Parés e já citadas acima.
Não podemos confundir ou relacionar a existência do Tambor de Mina
exclusivamente à Casa das Minas e à Casa de Nagô, muito embora estas tenham sido
responsáveis por uma espécie de institucionalização de um modelo religioso. Pela falta de
subsídios históricos esses dois terreiros podem ser tomados como responsáveis pela
formatação dessa religião, mas não necessariamente como fundadores ou os representantes
mais antigos da religiosidade afro-maranhense.
Segundo Mundicarmo Ferretti
Tambor de Mina é uma religião de matriz africana organizada no Maranhão na
primeira metade do século XIX. Equipara-se ao Candomblé de Salvador (BA), ao
Xangô de Recife (PE), ao Batuque de Porto Alegre (RS) e a outras denominações
religiosas afro-brasileiras tradicionais. Como aquelas, apresenta variações de acordo
com a nação de suas fundadoras ou fundadores africanos (jeje, nagô e outras), ou
105

adotada por fundadores de terreiros abertos posteriormente. (FERRETTI, M., 2008,


p. 95)

Segundo Sergio Ferretti


No século XIX, negros e forros começaram a organizar grupos de culto religiosos.
No Maranhão receberam o nome de tambor de mina ou casas de mina, equivalentes
a candomblé, xangô ou batuques de outras regiões. O termo mina refere-se ao forte
português de S. Jorge da Mina, antigo entreposto de escravos no atual Ghana e
também ao nome de grupos étnicos existentes na região, próxima ao antigo Reino do
Daomé. Casas de mina antigas desapareceram, dando origem a novos grupos hoje
existentes, sendo ainda conhecidas em São Luís três que se dizem fundadas no
século XIX. [...]
Entre as casas antigas, duas foram fundadas provavelmente na primeira metade do
século XIX: a Casa das Minas e a Casa de Nagô. Esta, de tradição iorubana, deu
origem a vários grupos atuais. A Casa das Minas Jeje, de origem fon, do antigo
Reino do Daomé, não possui grupos que lhe sejam filiados. Em torno destas casas,
implantou-se no Maranhão e na Amazônia um culto religioso afro-brasileiro, com
modelo de organização que se diferencia do de outras regiões, especialmente do
candomblé baiano, mais conhecido no país. As diferenças se evidenciam em
diversos aspectos dos rituais, dos cânticos, da indumentária da mitologia e da forma
de organização. (FERRETTI, S., 2004, p. 198).

A Casa das Minas e a Casa de Nagô são os terreiros mais antigos da capital, em
minhas pesquisas até o momento não consegui relacionar outros ambientes religiosos de
matriz africana, cuja origem seja semelhante às citadas acima. Ambas teriam sido fundadas
em meados do século XIX e com pouca diferença de tempo entre uma e outra, conforme
memória oral coletada por pesquisadores. (BARRETTO, 1977; SANTOS E SANTOS NETO,
1989; SANTOS, 2001).
A Casa das Minas não possui uma data precisa de fundação, como boa parte dos
terreiros antigos em que não há registro ou a memória oral apresenta divergências. Segundo
Sergio Ferretti.
A época da fundação da Casa perdeu-se na memória dos seus participantes. Deve ter
sido fundada antes da metade do século XIX. O documento escrito mais antigo que
se tem notícia seria uma escritura do prédio de esquina datada de 1847, em nome de
Maria Jesuína e suas companheiras. (FERRETTI, S., 2009, p. 54)

Outra documentação sobre a casa me foi passada pelo professor Sergio Ferretti.
Destes documentos o mais antigo é de 20 de novembro de 1878 e se trata da uma doação de
uma casa e terreno pertencente a Hosana Maria da Conceição Ferreira para as “pretas fôrras
de nação mina” Joanna Rita Lopes, Joaquina Rosa de Queiroz e Cordolina Rosa Veloso.
106

Imagem 8 Fachada da Casa das Minas – 1984 (MAD)

Entre os relatos de fundação, a informação de que a casa teria sido fundada por
escravos que entraram no Brasil como contrabando foi passada por Mãe Andressa a Nunes
Pereira e dá pistas do período de fundação. Tendo sido abolido pela primeira vez em 1831, o
comércio de escravos permaneceu de forma ilegal e quase sem alterações visto que em 1850 a
Lei Eusébio de Queirós tinha como objetivo encerrar definitivamente o tráfico, objetivo não
alcançado após 1831.
De qualquer forma levas de escravos continuavam a ser transportados e
introduzidos no Brasil como contrabando. Como a escritura de compra relatada por Sergio
Ferretti data de 1847 é bem provável que os fundadores da casa tenham chegado após 1831,
dessa forma se confiarmos no relato de Mãe Andressa o período de fundação da casa fica
restrito a 16 anos.
Mas há outros relatos. Segundo a memória oral coletada por Sergio Ferretti o atual
prédio teria sido o segundo local de funcionamento do terreiro.
As filhas atuais dizem que esta é uma segunda casa, pois uma anterior funcionou à
Rua de Sant’Ana, num terreno baixo entre a Rua da Cruz e a Godofredo Viana. Mãe
Andressa, quando ia assistir a missa na Igreja do Carmo, passando por ali, mostrava
diversas vezes à Dona Deni o lugar onde as mais velhas diziam que funcionara antes
a primeira Casa. Não se sabe por quanto tempo a Casa funcionou ali. Tiveram que
107

mudar, pois a cidade estava crescendo e, naquele tempo, ainda havia muitos sítios e
47
terrenos vazios na Rua de São Pantaleão. (FERRETTI, S., 2009, p. 54)

No entanto, há um relato quase mítico que se sobrepõe aos demais desarticulando


os marcos temporais acima relatados. Essa possibilidade é apresentada por Pierre Verger
como informa Sergio Ferretti.
Segundo Verger (1952, p. 159), São Luís é o único lugar fora da áfrica onde são
conhecidas e cultuadas divindades da família real de Abomey, afirmação apoiada
por Costa Eduardo (1948, p. 77) e Pollak-Eltz (1972, p. 111). Métraux (1968, p. 24)
afirma que alguns deuses da família real de Abomey foram também levados para o
Haiti. O escritor alemão Hubert Fichte nos informou pessoalmente que, em Trinidad,
há uma casa de culto de origem daomeana, a Dangbé Comé, estudada por Richard
Carr, fundada talvez em 1860, a qual possui voduns conhecidos na Casa das Minas,
alguns talvez da família real. (FERRETTI, S., 2009, p. 55).

No artigo “Uma rainha africana mãe de santo em São Luís” Verger comenta que
coletou em São Luís, junto a Mãe Andressa, nomes de Voduns cultuados na Casa das Minas
para buscar informações sobre os mesmos no continente africano, tendo as encontrado em
Abomé, cidade do atual Benim, de onde destaca um detalhe citado abaixo.
Assim podemos perceber que nenhum dos voduns citados é posterior ao reinado de
Agonglo. Acontece, também, que alguns destes nomes são conhecidos apenas pelos
sacerdotes de Abomé. O fato de eu ter encontrado estes nomes no Brasil significou
para eles a prova de que existiam, no Novo Mundo, descendentes de membros da
família real, mandados fora do Daomé no tempo do tráfico dos escravos. (VERGER,
1990, p. 151)

Segundo Pierre Verger este fato está relacionado com a sucessão do trono no
antigo Reino do Dahomey. Adandozan, filho e sucessor de Agonglo, governou entre os anos
de 1797 – 1818 e nesse período vendeu a rainha Nã Agotimé e parte da família da qual não
fazia parte por ter sido filho do rei com outra mulher.
Adandozan ficou como regente vinte e dois anos e Guezo teve que lhe arrancar o
poder. Expulsou-o do trono pois suas atrocidade e suas injustiças tinham enfastiado
os daomeanos. Adandozan, que era filho de outra mulher de Agonglo, não tinha
hesitado em vender aos mercadores de escravos da costa a mãe de Guezo e uma
parte de sua família. (VERGER, 1990, p. 153)

Verger não relata se a venda da rainha teria sido a causa da deposição de


Adandozan o que não possibilita chegar a uma data mais precisa em que possivelmente foi
realizada a venda de parte da família real do Dahomey. Se pensarmos que este fato tenha sido
o estopim da derrubada de Adandozan pelo seu irmão a rainha teria sido vendida no fim da
segunda década do século XIX.
Há uma série de incógnitas relativas ao que ocorreu após a venda dos escravos e
de fato o único fator que torna possível essa ligação entre São Luís e o atual Benin é o culto

47
Se de fato funcionou anteriormente ao local atual, a Casa deve ter migrado entre os anos de 1831 e 1847.
108

aos voduns da família real. Para serem considerados contrabandos os fundadores da Casa das
Minas teriam entrado no Brasil ou mais especificamente em São Luís após 1851. A logística
do comércio de escravos não permite afirmar que a fundação teria ocorrido após a venda de e
transporte da rainha africana Nã Agontimé.
Segundo PRIORE e VENÂNCIO (2004, p. 42) os navios passavam de porto em
porto na costa da África buscando escravos, esse processo poderia demorar de três a sete
meses, até que o navio fosse completamente carregado (tanto de escravos como de provisões).
A esse período soma-se a viagem que poderia demorar até dois meses. Os escravos poderiam
ainda passar um período nos fortes a espera de um navio para ser vendidos.
Em uma estimativa dilatada entre a captura e a chegada ao Brasil poderia demorar
cerca de um ano, ou um pouco mais dependendo se o destino fosse a área do caribe, de
qualquer modo seria impossível que Nã Agotimé tivesse chegado direto da África após a lei
que proibia o comércio de escravos. Mas duas hipóteses podem ser levantadas para ligar o
período anterior a 1818 ao posterior a 1831.
Considerando que a rainha tenha sido vendida mais de uma vez e tenha migrado
entre territórios na América até se instalar no Maranhão, o hiato no período é preenchido por
esse processo. A segunda possibilidade é que a fundação da casa tenha se dado apenas após a
formação de um grupo que possibilitou a organização religiosa o que poderia ter acontecido
somente após 1831 com a chegada de outros escravos vindos do Dahomey e que se agruparam
em torno da rainha.
Outra interpretação relaciona-se com a possibilidade de que a atual Casa das
Minas seria o segundo ou terceiro local em que o grupo teria instalado seu culto, como aponta
Sergio Ferretti (2009)48. Essa hipótese implicaria em uma “importação” direta da rainha para
São Luís, sem passar por outros lugares.

48
Sergio Ferretti (2009, p. 56-57) apresenta algumas versões dessa mudança do grupo jeje pela cidade de São
Luís, em que a atual casa aparece como um segundo ou mesmo terceiro local de culto, como no caso das
informações do escritor Waldemiro Reis, citadas pelo antropólogo.
109

Mapa 2 Possível Mudança da Casa das Minas (Mapoteca APEM)

Como as versões apontam para caminhos distintos e até mesmo excludentes é


prudente não assumir nenhuma delas, muito embora seja importante apresentá-las por fazer
parte das várias histórias sobre a casa e do esforço de vários pesquisadores em entendê-las.
Parte dessa história será tratada aqui, mas a partir da documentação analisada, que em certos
momentos se aproxima e se distancia da memória que ao longo do tempo foi sofrendo
mudanças.
[...] os membros do grupo afirmam que a Casa foi fundada por Mãe Maria Jesuína,
que adorava Zomadônu. Jesuína seria africana e teria sido “feita” na África, tendo
vinda da Casa anterior. Pode-se supor que Maria Jesuína era a mesma Nã Agotimé
que teria nascido na década de 1770, tendo menos de oitenta anos de idade em 1847,
ano da aquisição do prédio atual. Se não foi a fundadora, Nã Agotimé teria sido a
mãe-de-santo de Maria Jesuína. As filhas da Casa desconhecem o nome de Nã
110

Agotimé e quase nada dizem sobre Maria Jesuína, pois as mais velhas não
conversam sobre a fundadora, cujo nome é um dos segredos perdidos da casa.
Nossas tentativas para obter informações sobre a fundação da Casa das Minas foram
inúteis. Dona Amélia, nascida em 1903, diz que conheceu várias das velhas
africanas. Elas tinham o rosto “lanhado” com marcas tribais. [...] Dona Deni, que
frequenta a Casa desde 1936, diz que ainda conheceu velhas africanas que falavam
mal o português, como Mãe Preta. E que as primeiras velhas deviam já ter vindo da
África preparadas como filhas-de-santo (FERRETTI, S., 2009, p. 55)

Segundo Maria do Rosário Santos em depoimento colhido na casa, Mãe Andressa


conheceu Maria Jesuína que lhe passou os ensinamentos.
Disse-nos D. Denir que Mãe Andresa assumiu a chefia da Casa das Minas no dia 11
de dezembro de 1911. Com a morte de Mãe Hosana, quem deveria assumir a casa
era D. Leocádia, mas, como ela tinha família e não poderia dar assistência integral
ao terreiro, os voduns decidiram indicar D. Andressa, pois tinha conhecimentos,
somados a sua capacidade de tratar as pessoas, e residindo na Casa, foi aclamada
chefa do terreiro. D. Denir acrescentou: “Sem tirar nenhum mérito de Mãe Andressa,
não se pode deixar de cita Maria Jesuína, por se tratar de uma sacerdotisa que já veio
preparada e passou os ensinamentos para as outras, tanto espiritualmente como
materialmente. Ela falava em vários dialetos, dominava o preceito das feitorias e
conhecia o grupo dos voduns.” (SANTOS, 2001, p. 37)

Se Nã Agotimé fosse a mesma Maria Jesuína teria cerca de 100 anos ou mais por
volta da década de 1870, período este em que Mãe Andressa procurou a Casa das Minas para
se tratar e onde teria recebido o seu vodum quando tinha entre 08 e 15 anos. Essas narrativas,
embora incertas, fazem parte dos mistérios e segredos da fundação da Casa e não podem ser
desconsideradas, visto o poder de organizar e dar sentido a realidade vivida pelos indivíduos
cotidianamente.
Segundo Mircea Eliade o mito é um documento vivo, que atua na realidade de
uma determinada sociedade e:
[...] fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo,
significação e valor a existência. Compreender a estrutura e a função dos mitos nas
sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa na história do
pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos
contemporâneos. (ELIADE, 2000, p. 8)

Na Casa das Minas essas narrativas “míticas” de fundação, influenciam de certo


modo a ideia que os indivíduos têm de si o do grupo. O segredo acerca do sagrado e da
origem da casa funciona (ou funcionava visto que a Casa não mais possui iniciados) como
interdições ao conhecimento, reforçando os graus de hierarquia e refletindo as visões de
mundo do grupo, e até mesmo protegendo a existência da casa.
A Casa de Nagô também possui incertezas em sua narrativa de origem, embora
haja uma versão mais conhecida e aceita, em torno da qual há pequenas variações. A
antropóloga Mundicarmo Ferretti destaca que muito embora a Casa das Minas seja mais
conhecida na literatura antropológica é da Casa de Nagô – fundada pouco tempo depois da
111

primeira, conforme memória oral – o modelo ritual seguido pelos terreiros de mina da capital,
fundados por vodunsis que passaram por esta casa. (FERRETTI, M., 2008; 2008a).
Josephina ou Josepha de Oliveira como aparece em documentos seria uma das
primeiras mães da Casa de Nagô, localizada à Rua da Madre Deus como consta na
documentação de polícia49.
A primeira Mãe da Casa de Nagô foi Josefa, que era conhecida por Zefa de Nagô,
africana provavelmente de Angola. Contam que ela tinha sinais tribais, segundo
informação passada por sua sucessora. Abriu o terreiro juntamente com sua irmã,
sendo ajudada por Maria Jesuína, da Casa de Jeje (chefe) (SANTOS e SANTOS
NETO, 1989, p.52)

A Casa de Nagô teria sido fundada com ajuda da Casa das Minas que já era mais
velha cinco ou seis anos. (FERRETTI, M., 2011). No entanto, essa narrativa não especifica se
a fundação da Casa de Nagô acompanhou a Casa das Minas no endereço que está atualmente
ou em um dos locais que teria funcionando antes de 1847. Baseando-se na fundação constante
na data da escritura da informada por Sergio Ferretti, a Casa de Nagô teria, então, sido
fundada já na segunda metade do século XIX.
Com base nos dados de Maria do Rosário Santos (1989) a tabela a seguir
apresenta a sucessão de chefes da Casa de Nagô.
Quadro 4 Chefes da Casa de Nagô (Santos e Santos Neto, 1989)

Nome das Mães Período de Chefia


Josefa (fundadora) ??
Joana Travasso ??
Agostinha 1868 – 1889 (Data aproximada)
Maria Joana do Bem Fica 1890 – 1923
Brígida 1924 – 1938
Onorina Oliveira Pinheiro 1940 – 1961
Cristina 1962 – 1966
Vitorina Tobias Santos (Dudu) 1967 – 1988
Maria Lúcia 1988 – 200850
Dona Domingas 2008 – atual.

Os relatos orais trabalhados por pesquisadores indicam que após a chefia de


Josefa outras três mães de santo africanas ficaram a frente da Casa, a saber, Joana Travasso,
Agostinha e Maria Joana do Bem Fica (SANTOS e SANTOS NETO, 1898). Os autores
indicam que as datas relativas às chefias da casa são incertas, muito embora sejam
reproduzidas em outros trabalhos (CARDOSO JÚNIOR, 2001). A imagem que segue, de

49
Atualmente Rua Cândido Ribeiro, localizada no Bairro da Madre Deus, área central da cidade.
50
À época da escrita do livro Maria Lucia ainda era viva, a data de sua morte foi atualizada com base em
Mundicarmo Ferretti (2011, p. 100).
112

autor e data desconhecidos, reúne vodunsis e os instrumentos de toque da Casa de Nagô,


estaria entre as mulheres da foto alguma das antigas chefes?
Imagem 9 Dançantes e Instrumentos da Casa de Nagô (MAD)

Entre os PLF pesquisados encontra-se o registro da Casa de Nagô em pedidos cuja


requerente é Josepha Seguins de Oliveira51 entre os anos de 1895 e 1902. Nos anos de 1889 e
189052 não há referências sobre a Casa de Nagô. Esse vazio documental não permite saber se
algum nome aparece anterior ao de Josephina o que subsidiaria a afirmação de que seria
Josefa ou Zefa de Nagô, fundadora da Casa, ainda viva no começo do século XX.
A referência a Casa de Nagô só voltará a aparecer na documentação no ano de
1906 em nome de Maria Joana, que seria a quarta chefe na linha de sucessão acima
apresentada, sem que haja nenhuma referência a Joana Travasso na documentação de
polícia53. Maria Amália Barreto a partir de informações de Mãe Dudu, afirma que a casa teria
sido fundada “por malungas54, isto é, segundo explicação que me deu, por africanas com seu

51
Josephina era a grafia mais recorrente nos documentos referidos, mas é possível encontrar Josepha, Sequins ou
Seguins.
52
Não há documentação arquivada entre os anos de 1901 e 1904.
53
Emanuela Ribeiro (1998) localizou no ano de 1912 o nome de Agostinha Silveira da Conceição, solicitando
licença para a polícia.
54
O termo malunga diz respeito a escravos transportados em um mesmo navio, tornando-se assim companheiros
ou irmãos a bordo dos barcos. Essa sociabilidade poderia estar relacionada com a proximidade e origem étnica
113

dote” (1977 p. 112-113) indicando que não foi apenas uma pessoa responsável pelo
assentamento da Casa.
Essa ideia é retomada por Mundicarmo Ferretti (2001, p. 96) ao afirmar que a
fundação teria sido realizada por Josefa e Maria Joana. A partir de informações da mesma
mãe de santo, acima citada, a primeira recebia Xangô e a segunda, Rei Badé.
É possível que algumas das fundadoras ou “vodunsis” mais antigas da Casa fosse de
Abeokutá (Nigéria), pois o pesquisador Nina Rodrigues encontrou em 1896, em São
Luís, residindo nas proximidades de São Pantaleão, onde está localizada a Casa de
Nagô, uma africana nagô de Abeokutá. (FERRETTI, M. 2011, p. 96).

A antropóloga afirma ainda que a relação da Casa com Angola teria sido sugerida
por Maria do Rosário Santos, Nunes Pereira e Pai Jorge Itacy. (FERRETTI, M. 2001, p. 96).
De qualquer modo, os dados apresentados pelos pesquisadores a partir de entrevistas e
informações obtidas na Casa indicam sempre para Josefa como a fundadora, mas não a única
responsável por esse processo, que teria sido participado por outras africanas.
Em nota de rodapé Mundicarmo Ferretti faz uma importante observação sobre as
datas e nome trabalhados por Maria do Rosário e que podem ajudar a pensar a questão da
fundação.
Existe divergência em Boboromina (SANTOS; SANTOS NETO, 1889, p. 50 e 52) e
em Caminho das Matriarcas (SANTOS, 2001, p. 26 e 87) tanto em relação às
entidades recebidas pelas fundadoras da Casa de Nagô quanto a respeito do
sobrenome de Maria Joana, que ora aparece como Travassos, ora como Bem Fica,
sobrenome às vezes atribuídos a Joaninha, outra Joana que chefiou a Casa mais
tarde. (FERRETTI, M. 2011, p. 96).

Com base nos registros de polícia trabalhados não há nenhuma referencia à Joana
Travasso que, a partir das observações de Mundicarmo Ferretti, pode ser a mesma Joana Bem
Fica. Mãe Dudu afirma que sua mãe-de-santo chamava-se Joaninha (SANTOS e SANTOS
NETO, 1988; SANTOS, 2001) e segundo informações de Maria Amália Barretto (1977, p.
114) Mãe Dudu, que na época contava com 84 anos, afirmava que tinha sido “feita” há 60
anos, por vota de 1917, quando Maria Joana do Bem Fica (segundo a tabela acima
apresentada) era a chefe da Casa de Nagô.
Como a memória da Casa foi se perdendo ao longo dos anos não é raro haver
informações desencontradas. Com base na documentação pesquisada apresentarei algumas
hipóteses cruzando os registros históricos com algumas informações da memória oral, sem
necessariamente apresentar uma versão definitiva, visto que há muitas incertezas nos relatos
além da descontinuidade da documentação no recorte temporal estudado.

dos escravos transportados, assim, as fundadoras da Casa de Nagô poderiam ter sido escravizadas na mesma
região, sendo também responsáveis pelos ofícios religiosos em África, já que vieram com os seus dotes.
114

Uma possível explicação para a divergência entre a memória oral e as fontes


históricas poderia estar no fato da Casa ter sido administrada de forma conjunta, como
ocorreu na Casa das Minas, após a morte de Dona Amância, como informa Sergio Ferretti.
Depois disso a Casa passou a ser dirigida por uma equipe. Uma dançante mais velha,
Dona Amélia encarregou-se da direção das coisas dos voduns. Junto com ela, na
direção administrativa, ficou uma dançante mais nova, Dona Celeste, que possui tino
para o cuidado das coisas materiais, e Dona Deni, encarregada dos cânticos e das
cerimônias. (FERRETTI, S., 2009, p. 81).

Se admitirmos que a fundação da Casa teve relação com o fato das “africanas
malungas” terem sido um grupo de sacerdotisas que foram comercializadas juntas há a
possibilidade de fato semelhante ocorrido na Casa de Nagô. Justifica-se o fato de apenas o
nome de Josephina aparecer solicitando licenças à polícia. Ao passo que Joana Travasso e
Agostinha fariam parte dessa administração conjunta, mas responsáveis por outras funções.
Do mesmo modo o período indicado por Maria do Rosário não corresponde ao
período encontrado na documentação. Segundo os PLF Josephina ainda estava a frente da
Casa até 1902, quando seu nome aparece pela última vez na documentação. Sendo a chefe e
fundadora da casa dificilmente o cargo seria passado para a sua sucessora sem que fosse
devido ao seu falecimento.
A existência de outros nomes apresentados como chefes da Casa não significa que
tenham se sucedido linearmente como as datas da tabela sugerem. Outros fatores, como o
falecimento de ambas, podem ter feito com que Joana Travassos e Agostinha não chegassem a
estar a frente da Casa, respondendo pela documentação enviada à Chefatura de Polícia.
Se a tabela elaborada por Maria do Rosário contém informações minimamente
precisas acerca dos nomes, mas não das datas, como já foi possível observar, Joana Travassos
e Agostinha por alguma razão não chegaram a responder legalmente pela Casa, fator este que
justifica uma sucessão da chefia para Maria Joana do Bem Fica – que seria a Joaninha, mãe de
santo de Mãe Dudu, já que não há nenhuma referência específica a esse nome (Joaninha) na
tabela ou em outros autores – e que teria assumido a chefia provavelmente entre 1902 e 1906,
sendo este último o momento em que seu nome começa a aparecer na documentação.
Segundo CARDOSO JÚNIOR (2001, p. 27-28), Mãe Dudu informou a Olavo
Correia Lima que a ordem de chefias da Casa foi a seguinte: Josefa, Joana, Brígida, Honorina,
Cristina e Dudu. Essa ordem está em concordância com a documentação, mas não traz
informações ou mesmo pistas para se pensar porque aparentemente a casa ficou fechada
durante determinado período no início do século XX.
115

O luto poderia explicar esse período de inatividade da Casa. Após a morte de


Josefa (provavelmente após julho de 1902, data do último pedido em seu nome) as sucessões,
com curto período de duração devido a idade avançada das outras chefes (Agostinha e Joana
Travassos?) justificaria mais de 4 anos sem licenças pedidas, motivo pelo qual a Casa não
realizou rituais já que o luto pode durar até um ano dependendo do grau de importância da
pessoa na casa. (FERRETTI, S., 2009; CARDOSO JÚNIOR, 2001).
Imagem 10 Fachada da Casa de Nagô (MAD)

Se Joana Travasso é a mesma Joana do Bem Fica não é possível levantar


hipóteses, com as pistas deixadas pela memória oral, tampouco pela documentação já que o
sobrenome Travasso e Bem Fica (ou mesmo qualquer aproximação ou variações) não
aparecem nos documentos. Suspeito que Joana do Bem Fica seja a mesma Maria Joanna
Izidora dos Santos o simplesmente Maria Joana, que aparece na documentação e que no
período de ocorrência de seu nome corresponde à Joana do Bem Fica (informada pelos
autores) podendo assim, ser apelido ou como era conhecida na Casa.
As informações do arquivo divergem um pouco das apresentadas por Maria do
Rosário e outros autores, mas não significa que ambas são necessariamente excludentes. É
necessário frisar que ao se falar da história da Casa de Nagô ou da Casa das Minas é preciso
atentar que a fundação e funcionamento de ambos os terreiros foi marcada pela perseguição e
repressão policial e que o segredo era tanto parte da estrutura da religião quanto uma
estratégia de manutenção das atividades.
116

Pode-se dizer que a perda de informações ao longo do tempo deve-se a um


processo quase “natural” de fechamento e proteção dos grupos frente às adversidades do meio
sociocultural do século XIX, motivo pelo qual os processos de iniciação também terem sido
prejudicados. Fatores estes, mesmo que sem muito subsídio de informações, devem ser
levados em consideração ao se tentar entender os eventos históricos relativos à Casa de Nagô,
que foi menos estudada do ponto de vista do interesse de pesquisadores.
Por mais que seja tentador colocar um ponto final ou apresentar uma versão muito
justa dos fatos não será possível, como fez Pai Euclides Menezes, chefe da Casa Fanti-
Ashanti fundado na década de 1950 em São Luís, e relatada por Sebastião Cardoso Júnior.
Segundo esta versão a Casa de Nagô foi fundada em 1º de Janeiro de 1792 por
Josefa e Joana. Na época, houve uma grande revolta na cidade, o que impediu
prosseguimento do culto na Casa de Nagô por alguns anos. O povo jêje se implantou
na cidade quatro anos depois na Rua de Santana, em junho de 1796, vindo morar
depois na atual casa na rua de São Pantaleão em terreno indicado pelo povo Nagô.
Na áfrica o nagôs e jêje não se uniam, o que levou os dois, no Maranhão, a
estabelecerem relações amistosas através de um acordo de colaboração. (CARDOSO
JÚNIOR, 2001, p. 27).

O relato acima inverte a versão corrente na Casa de Nagô de que esta teria sido
fundada após a Casa das Minas e com ajuda de sua chefe, Maria Jesuína, além de apresentar
datas que são incompatíveis com outros dados vindos da própria memória de que os
fundadores eram escravos contrabandeados e de outras pesquisas já realizadas. Essa narrativa
relaciona-se com uma tendência ao “envelhecimento dos terreiros”, partilhada pelos autores a
partir dos relatos das pessoas do terreiro. Buscando datas de fundação para legitimar uma
longevidade do Tambor de Mina no Brasil.
Talvez outras pesquisas sobre a escravidão possam fornecer dados preciosos na
tentativa de se compreender os sujeitos históricos que se fizeram presentes na organização das
religiões afro-maranhenses. Esta pesquisa, porém não poderá avançar além daquilo que já foi
informado até o momento em termos de datas e eventos, visto que as informações obtidas por
meio das pesquisas nos PLF são muito resumidas, podendo gerar inúmeras hipóteses ou
complementar as informações já conhecidas ou registradas por pesquisadores.
Nos pedidos de licença para festa o termo mina em referência a Tambor ou Dança
de Minas só vai aparecer com maior frequência em 1895. Não é possível saber de registros em
datas anteriores, pois o período entre 1891 e 1894 não possui documentos arquivados como já
117

informado anteriormente. Emanuela Ribeiro (1998) informa também ter localizado apenas um
pedido referente à Casa das Minas em 188555.
A categoria brincadeira é utilizada amplamente, quase sempre no sentido de
diversão e festa e está presente em boa parte dos documentos. É acompanhada desta noção
que os pedidos de licença para tambor de mina aparecem. Sergio Ferretti informa que as
obrigações religiosas da Casa das Minas e de alguns terreiros são caracterizadas como
brincadeiras.
Um tocador de outra casa nos disse que tocar tambor é uma obrigação para ele, mas
também é uma brincadeira. As festas de terreiro são, pois, uma obrigação realizada
por devoção e promessa, ao mesmo tempo que uma brincadeira em compensação ao
seu caráter penoso de obrigação. (FERRETTI, S., 2009, p. 140).

Compreendo que a utilização da noção de brincadeira para os rituais religiosos


também seria uma forma de apresentá-los sem a conotação religiosa. Nas religiões afro-
brasileiras, assim como no catolicismo, os dias especiais são marcados por um ritual festivo
em que se comemora a data em honra de uma determinada entidade.
Nas festas as obrigações religiosas são realizadas, no entanto os requerentes não
apresentam o caráter religioso do objeto da licença e sim o seu caráter festivo o que dava a
entender à autoridade policial que tudo não passava de um mero divertimento de dança, já
que, como vimos anteriormente as religiões afro-brasileiras inspiravam medo e preocupação
das autoridades.
Segundo Sérgio Ferretti
No Maranhão, obrigação e brincadeira constituem duas categorias ou qualidade
largamente utilizadas nesse domínio. Parecem termos que se opõem, mas na prática
encontram-se inter-relacionados na realidade que estamos estudando. Segundo o
Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, brincadeira implica divertimento,
sobretudo infantil, significa passatempo, entretenimento, festa, diversão, gracejo,
coisa que se faz irrefletidamente ou por ostentação. Obrigação tem, segundo o
mesmo Dicionário, o caráter de imposição, preceito, dever, compromisso. Essas
duas categorias, ao mesmo tempo opostas e complementares, mostram que, no
Maranhão, festas religiosas populares possuem a dupla dimensão de divertimento e
de compromisso, de ritual religioso e festivo.
[...]
Na realidade, estamos estudando, as quatro categorias – sagrado, profano, obrigação
e brincadeiras – podem ser visualizadas simultaneamente num quadro, como
semelhantes e opostas, mas mutuamente inter-relacionadas. O sagrado equivale a
uma obrigação e a brincadeira inclui-se no domínio profano. Mas na realidade, esses
domínios não se isolam em campos distintos. (FERRETTI, S., 2007, p. 93).

A partir das informações obtidas e de quadro apresentado pelo antropólogo


elaborei outro esquema explicativo, em que sagrado e profano, obrigação e brincadeira

55
Como informado em nota de rodapé na página 44, foram encontrados alguns problemas no relatório de
Emanuela Ribeiro, assim não posso afirmar que somente a partir de 1885 é que o registro do Tambor de Mina
começa a aparecer na documentação.
118

aparecem a partir da festa como elemento central que permite as relações entre ambas, sem
que signifique oposições.

Sagrado Obrigação

FESTA

Profano Brincadeira

A festa assume uma posição na qual relações aparentemente opostas podem


ocorrer.. Diferente das visões de mundo cristãs, nas religiões afro-
afro-maranhenses não há
oposição direta entre o domínio do sagrado e do profano, pois é dentro de uma festa
aparentemente profana que são realizados rituais sagrados. Durkheim faz referência
referê a
proximidade entre religião e divertimento.
Ao mesmo tempo que nos fazem compreender melhor a natureza do culto, essas
representações rituais põe em evidência um importante elemento da religião: o
elemento recreativo e estético.
Já tivemos a oportunidade de mostrar que elas são parentes próximas das
representações dramáticas. [...]. Com efeito, elas não somente empregam os mesmos
procedimentos que o drama propriamente dito, como também perseguem como
também perseguem um objetivo similar: estranhas a todo fim utilitário, fazem
homens esquecerem o mundo real, transportando-os
transportando os a um outro em que sua
imaginação está mais a vontade. Elas distraem. Têm inclusive o aspecto exterior de
d
uma recreação: os assistentes riem e se divertem abertamente. (DURHEIM, 1996, p.
413--414)

Na documentação pesquisada essa relação está bem clara, como já foi


especificado aqui. O Tambor de Mina é apresentado como brincadeira porque assim era visto
– e ainda é até hoje –,, e não só como uma espécie de disfarce, muito embora a apresentação
do objeto da licença como dança possa dar entender. É muito óbvio
óbvio que os requerentes sabiam
lidar
ar com as interdições e se utilizavam de artifícios para negociar, ainda que
qu implicitamente,
formas para ter os seus pedidos atendidos.
atendido
Uma destas formas passava pela apresentação ou nomenclatura da festa em si. O
Tambor de Mina era apresentado das seguintes formas:
a) dançar mina;
b) dança de minas;
minas
c) dança das minas;
d) brincadeira de
d minas;
e) brincadeira denominada mina;
f) brincadeira denominada dança das minas;
g) tambor de mina.
mina
119

Essas nomenclaturas repetem-se durante todo o período estudado, mas algumas


particularidades se observam. As expressões em destaque são as mais recorrentes na
documentação. A ocorrência da palavra brincadeira vai diminuindo ao longo do século XIX,
sendo que no século seguinte pouco aparece relacionada com o Tambor de Mina, mas o que
não significa que não tenha havido uma mudança na forma como os terreiros passaram a se
apresentar no tocante aos aspectos religiosos.
Entre 1900 e 1910 há uma recorrência maior nas expressões dança de minas e
tambor de mina, sendo esta última quase que só utilizada a partir de 1901, pois no século
anterior somente duas requerentes pediram licença para realizar Tambor de Mina (Josephina
Seguins de Oliveria “inaugura” o uso do termo em 1897 e Cilistina (sic) Ribeiro de Souza o
utiliza em 1899).
Fora estes dois pedidos o termo tambor irá aparecer em tambor de preto, festa
com toque de tambor entre outras utilizações que não permitem diferenciar se está se tratando
de Tambor de Mina, tambor de crioula ou outra manifestação que envolvesse o uso de
tambores. É provável que as interdições dos códigos de postura referentes aos batuques ainda
fossem o referencial a partir do qual os requerentes pensavam para não informar a policia que
se tratava de uma espécie de batuque.
Tendo em vista a necessidade de organização dos documentos referentes ao
Tambor de Mina, separei os pedidos a partir dos requerentes, identificando assim claramente a
presença de alguns terreiros com certa recorrência em seus pedidos e alguns que aparecem
poucas ou apenas uma vez. As características desses pedidos são as mesmas dos demais,
alguns requerentes apresentam maiores informações do que outros, e a partir dessas pequenas
referências busco compreender um pouco sobre essa manifestação religiosa.

4.1 A Casa de Nagô

A Casa de Nagô pediu entre os anos de 1895 e 1907 dezenove licenças, entre os
terreiros este foi o maior número de pedidos, inclusive em relação à Casa das Minas. Desse
total apenas quatro foram pedidas em nome de Maria Joana e o restante em nome de
Josephina Seguins de Oliveria. Todos os documentos foram passados a rogo já que as
requerentes não sabiam ler e/ou escrever e das assinaturas destacam-se os nomes de Sabino
Saraiva e Antonio Carlos de Araújo Franco por terem assinado vários deles, podendo ser
pessoas pagas para fazer o documento ou mesmo amigas da casa que se disponibilizavam a
fazer esta tarefa que se tornava importante para a realização da festa.
120

Os pedidos indicam um calendário de festas, que era quase sempre obedecido


durante os anos, com incidência no mês de janeiro, junho, julho e dezembro. Não há licença
para os seguintes anos: 1900, 1901, 1903 – 1905, 1908 – 1910. A licença era obrigatória e a
inexistência desta poderia significar a interrupção e até mesmo a prisão dos que fossem
encontrados participando de festas sem a devida permissão policial.
É provável que a inexistência de pedidos indique para a não realização de festas,
ainda mais no caso em que os documentos demonstram que havia um interesse por parte da
chefe da Casa em manter suas festas dentro da legalidade. Sem maiores subsídios esta questão
permanece ainda em aberto, já que é preciso considerar também que a ação policial não era
tão abrangente.
Segundo o calendário ritual da Casa de Nagô (CARDOSO JÚNIOR, 2001, 2001;
FERRETTI, M., 2011, SANTOS, 2001) o ano litúrgico inicia-se em dezembro, com a
comemoração do dia de Santa Bárbara dedicada ao vodum Sobô, realizada no dia 04 do
último mês do ano e acompanhando o calendário católico. Maria do Rosário Santos (2001, p.
51) informa que a festa ocorre nos tem como dias 3, 4 e 5 de dezembro, mas na virada do
século XIX para o XX esses dias podiam variar, pois apenas no ano de 1901 e 1906 há
registros de pedidos especificamente para estes dias.
Por alguma eventualidade os rituais foram transferidos para o mês de janeiro ou
fundidos com outras que deveriam acontecer nesse mesmo mês, pois em alguns anos os
primeiros dias de janeiro foram marcados por festas, como a do Dia de Reis, presente em um
pedido de 17 de dezembro de 1897. Em janeiro a festa que é realizada para São Sebastião,
relacionado com o orixá Xapanã, ocorre nos dias 19 e 20, mas apenas no ano de 1902 foram
realizadas nestes dias. Nos outros pedidos encontram-se festas entre os dias 1 e 7 de janeiro,
mas não para os dias 19 e 20.
Apenas em 1901 realizaram-se festas em fevereiro, mês marcado pelas
comemorações a Iemanjá e pelo ritual da Bancada ou Arrambam56, realizada após o carnaval,
na quarta feira de cinzas. As festas juninas ocorriam com maior frequência nas datas
conhecidas atualmente, 23, 24 e 29 de junho. Dia 24 e 29 comemora-se, no calendário
católico os dias de São João e São Pedro, respectivamente. Na Casa de Nagô as festas são
dedicadas a Badé e a Xangô, entidades donas da Casa, razão pela qual em poucos anos não

56
Ritual dedicado à entidades femininas da Casa, chamadas de meninas ou princesas. No carnaval há a
preparação de comidas e bebidas especiais que são consumidas na quarta feira de cinzas (CARDOSO JÚNIOR,
2001, p. 116).
121

foram realizados rituais em homenagem das entidades centrais do terreiro sendo que em
outros anos apenas estas festas foram realizadas.
É muito improvável que as datas dos rituais tenham mudado com o passar do
tempo. A proximidade entre os dias de festa localizados nos PLF e os registrados pelos
pesquisadores são indícios de que estava sendo efetuado um deslocamento para momentos em
que era possível realizá-las, mesmo que isso significasse mudanças nas datas, em termos de
dias ou meses.
Os autores fazem também o registro da Festa do Divino Espírito Santo que é uma
das poucas festas realizadas na atualidade, no entanto não foi localizado nenhum registro nos
pedidos de licença oriundos da Casa de Nagô. Segundo Sebastião Cardoso Júnior (2001, p.
119), não havia Festa do Divino no calendário Nagô e que só foi iniciada em 1920 devido a
promessa de uma das chefes da Casa. A instituição de uma data comemorativa,
desaparecimento ou modificação são processos que podem ter ocorrido com o passar do
tempo, como no caso do Natal.57
Segundo pesquisas realizadas na casa afirma-se que atualmente, durante o natal,
não ocorre toque, apenas a montagem do presépio (CARDOSO JÚNIOR, 2001) e a visita dos
orixás (SANTOS, 2001), mas as referências históricas indicam que Josephina Seguins pediu
entre 1895 e 1902 três licenças para dança de minas em sua residência no período do Natal.
Maria Joana também solicitou licença para o mesmo período informando tratar-se da
brincadeira Tambor de Minas, ambas indicando haver toque de tambor e danças.
Provavelmente esta tenha sido uma prática que se perdeu ao longo do tempo,
tendo se simplificado até não ocorrer mais toque ou mesmo a vinda de entidades. Sergio
Ferretti (2009) informa que algumas festas da Casa das Minas deixaram de ser realizadas pela
morte das filhas dos voduns e que a diminuição do número de dançantes reduziu o calendário
festivo e a duração das festas.
Pode ser que no período do natal estivessem sendo realizadas outras festas, como
também tenham sido realizadas modificações na estrutura do ritual, como indica um dos
autores sobre a festa de Santa Bárbara.
Antigamente eram realizados três dias de toque. Porém atualmente a doença e a
idade avançada das dançantes levou a se realizar só um dia de toque, sendo realizado
no dia da santa. (CARDOSO JÚNIOR, 2001, p. 91)

Algumas particularidades referentes aos pedidos oriundos da Casa de Nagô devem


ser destacadas. Em alguns documentos Josephina Seguins de Oliveira solicita licenças de

57
Será dedicado um capítulo específico para a Festa do Divino Espírito Santo adiante.
122

longo período envolvendo vários dias, como no pedido de 28 de novembro de 1901 em que
requer autorização para:
[...] divertir-se em casa de sua residencia com a brincadeira denominada "Tambor de
Minas" nos dias 3, 4, 5, 24, 25, 26, 29 de dezembro proximo e nos dias 1, 2, 5, 6,7
do mes de janeiro proximo futuro do ano de 1902. (PLF, 28 /11/1901).

Os pedidos podiam envolver meses como no trecho do documento de 08 de junho


de 1898 (abaixo) em que é solicitada licença com validade de seis meses.
[...] a necessaria licença para promover a mesma brincadeira [Tambor de Mina] em
sua residencia rua da "Madre de Deus" nº 205, em noite de sabado e domingo do
corrente; 23 e 24, 28 e 29, vespera e dia de S. Joao' e S. Pedro. Bem assim que a
mesma licença fique em vigor ate 30 de dezembro d'este ano para lá um domingo ou
outro ter lugar a dita brincadeira [...]. (PLF, 8 de junho de 1898 - grifo meu).

Em ambos os casos os pedidos foram aceitos e, dessa forma, a requerente


conseguiu economizar no pagamento do imposto do selo, já que uma mesma portaria poderia
contemplar o período de duas ou mais festas. Requerendo licenças separadamente Josephina
teria que pagar cerca de 900 réis, isso se o serviço de escritura do documento também não
fosse pago, mas fazendo apenas um pedido para um período de várias festas a requerente
pagou 301 réis.
Dois documentos merecem atenção, pois foram pedidos em nome de “Anna Isabel
da Senção Gomes”. A requerente pode ser uma das donatárias da Casa de Nagô conforme
escritura de 191058, de nome Maria Isabel da Assenção Gomes. A doadora cede o imóvel em
condição inalienável para 14 donatários, 12 mulheres e 2 homens, que poderiam ser dançantes
e tocadores da Casa.

58
A cópia do registro cartorial desta doação data de 1985 e me foi cedida pelo professor Sergio Ferretti para que
fosse possível identificar os nomes dos donatários na documentação de polícia.
123

Mapa 3 Mapa São Luís: Centro e Subúrbio (Mapoteca APEM)

A Madre Deus fazia parte do subúrbio, conforme o mapa acima. Abaixo segue um
mapa com a ampliação detalhada da área 2 e a localização da Casa de Nagô e também da
Casa das Minas.
124

Mapa 4 Localização da Casa de Nagô e Casa das Minas (Mapoteca APEM)

A requerente não informa nos dois pedidos o endereço específico da Casa de


Nagô e sim “Rua da Madre Deus, imediações com a fonte do Bispo” e Rua de Santiago, sendo
que ambas as referências são muito próximas ao terreiro, podendo
podendo ser onde a requerente
morava ou a própria Casa com indicações de endereço
endereço diferentes do usual, mas a requerente
não informa que se tratava de tambor ou dança de mina e sim “tambor
“tambor de preto”
preto ou “dança de
tambor”” que poderia ser tambor de crioula e não necessariamente um ritual religioso da Casa
de Nagô.
Dos donatários foi possível
possível identificar apenas o nome de Maria Isabel, que
aparece na documentação como Anna Isabel. Os demais nomes não foram identificados a
partir da pesquisa em arquivo, mas dois deles relacionam-se
relacionam se com a tabela das chefes da casa,
apresentada acima. O nome de
de Joana Travassos aparece na escritura como Joana Maria
Traves e Agostinha como Agostinha Silveira,, que seriam as duas chefes que se seguiram à
Josefa de Nagô pelas informações de Maria do Rosário (2001).
(2001)
Retomando a discussão acerca
ace das chefes, este documento
ento deixam claro que
ambas ainda estavam vivas em 1910, quando foi realizada a doação por Maria Joana e que
Joana Travassos (ou Traves) não assumiu a chefia por alguma razão (doença, idade avançada)
125

ou podendo ter sido apenas vodunsi sem grau de iniciação59 para assumir a chefia e que
Agostinha teria assumido depois de Maria Joana, pois os PLF indicam que quase sempre era a
chefe do terreiro que assumia as “responsabilidades legais” da Casa, pondo o seu nome na
documentação enviada à Chefatura de Polícia.
Como afirmado anteriormente várias eram as formas de negociar a aceitação de
um pedido, como apresentar bons argumentos para convencer o Chefe de Polícia. Josephina
de Oliveira apresentou em três pedidos portarias obtidas por ocasião de licenças já
concedidas, justificando assim que as suas festas mantiveram-se dentro dos padrões legais,
observando a ordem e os bons costumes esperados. Manter a posse de uma licença anterior
que não foi cassada era uma garantia a mais que a requerente fornecia ao passo que cobrava
da autoridade policial a aceitação de seu novo pedido.
Por conta disso consegui um conjunto completo de documentos (pedido e
portaria), que transcrevo a seguir.
PEDIDO – 5 de janeiro de 1897
Ao Cidadao’ Doutor Chefe de Policia

Passe-se a portaria concedendo a licença requerida


Chefatura de Policia
Maranhão 5 de janeiro de 1897
Magalhães Braga

Josepha Seguins de Oliveira vem respeito_


zamente pedir-vos permição de Ella com suas
companheiras divertirem-se em sua caza nº 205
a rua da madre Deus com a brincadeira de minas
nos dias 5, 6 e 7 do corrente mez. A piticionaria garan
te-vos a boa ordem decencia do costume

Maranhão 5 Janeiro de 1897


A rogo da Piticionaria
Joao’ Raymundo de Oliveira

Espera Receber Merce

PORTARIA – 5 de Janeiro de 1897


Nº 18
Concedo a licença que me requereo Josepha
Seguins de Oliveira, para nos dias 5, 6 e 7

59
Na Casa de Nagô as dançantes possuem graus de iniciação e para assumir a Casa era necessário ser vodunsi-
gonjaí, ou seja, ter o maior grau de iniciação ou iniciação completa (CARDOSO JÚNIOR, 2001, p.47). Como
não foram mais realizados rituais para tal grau, as atuais chefes possuem funções religiosas reduzidas, pois não
receberam os ensinamentos mais complexos.
126

do corrente dar em sua caza á rua da Ma_


dre Deus nº 205, a brincadeira denominada
de “Minas”, devendo ser esta apresentada
ao Subdelegado do 4º Districto que a cassa_
ra si necessario for; nao’ excedendo o toque
de tambor das dez horas da noite dos
referidos dias

Chefatura de Policia

Maranhão 5 de Janeiro de 1897


Sebastião Magalhaes Braga.

A portaria foi emitida no mesmo dia em que foi solicitada e pelo seu número uma
das primeiras do ano. É curioso notar que, mesmo sem o toque de tambor ser mencionado no
pedido, é feito referência ao mesmo na portaria. De alguma maneira essa informação foi dada
verbalmente ou já era de conhecimento da chefatura de polícia que tais festividades ocorriam
com toques de tambor.
Entre os anos de 1903 e 1905 não há pedidos referentes à Casa de Nagô. Informei
anteriormente hipótese de que este período poderia ter referência com o luto devido à
sucessão de chefes em curto espaço de tempo, algo que não foi registrado pelos pesquisadores
da Casa. Para se considerar tal possibilidade é preciso trabalhar com as versões sobre as
possíveis chefes africanas que teriam sucedido Josefa de Nagô, algo que não foi possível
identificar na documentação.
Informando sobre esse vazio documental, a antropóloga Mundicarmo Ferretti
disse que poderia se tratar de um período de crise em que a Casa ficou fechada por um tempo,
como pôde verificar na memória da comunidade, em que novos terreiros surgiram a partir da
saída de filhas de santo da Casa. Em nota de rodapé no “Desceu na Guma” faz a seguinte
observação.
Essa “explosão” da Casa de Nagô parece ter ocorrido durante um período de crise da
casa, por motivo pouco conhecido, quando o terreiro esteve de portas fechadas por
dois anos, o que deve ter ocorrido entre 1912 e 1913, uma vez que Mãe Dudu ‘bolou
no santo’ em 1916, no ‘toque’ de abertura da casa. Como a escritura do terreiro é de
1910 e fala-se que a parte da casa fora vendida no passado, por herdeiros, e depois
reconquistada pela ‘irmandade’, acredita-se que a crise que motivou seu fechamento
(em torno de 1912) tenha sido motivada por questões entre herdeiros das fundadoras
do terreiro. (FERRETTI, M., 2001, p. 68).

Os fatos ocorridos em torno deste episódio da Casa de Nagô são incertos, assim
como as datas. É provável que essa crise tenha sido antes e ocorrida após a morte de
Josephina Seguins de Oliveira, que sendo a mesma Josefa de Nagô, fundadora da Casa, gerou
problemas de sucessão ou de relações no grupo, de onde se justifica a saída de pessoas para
127

fundar novos terreiros, como Severa Soeiro, cujos documentos de pedidos de licença
começam a aparecer justamente nesse período (1905).
A escritura referida por Mundicarmo Ferretti e citada acima pode ter sido
elaborada depois para evitar problemas com os familiares dos fundadores da Casa, que já
vinham ocorrendo e não necessariamente ser o deflagrador dos conflitos que vieram a fechar a
Casa. Como os dados são incertos deve-se questionar não só o motivo de fechamento, mas
qual o sentido da palavra utilizada.
O Terreiro do Justino (do qual falarei adiante) foi fundado ainda no século XIX
por uma filha de Santo da Casa de Nagô, Maria Cristina Bayma. Dona Mundica Estrela, atual
chefe do terreiro, informa que a fundadora saiu da Casa de Nagô quando esta fechou, o que
teria ocorrido ainda no século XIX, segundo a memória do terreiro e em parte confirmada
pela pesquisa documental.
Como afirmado anteriormente a Casa passou um período inativa (no início do
século XX) e logo em seguida houve a mudança de nomes nos documentos, indicando para a
mudança na chefia pela morte da chefe anterior e um provável período de luto e reorganização
do terreiro para que os rituais pudessem voltar a acontecer. Assim posso afirmar que houve
‘fechamento’, mas no sentido de interrupção ou suspensão de suas atividades de forma
temporária, o que não era comum entre o grupo no período estudado.

4.2 Casa das Minas.

Outros detalhes sobre o Tambor de Mina no passado podem ser obtidos através da
análise dos documentos referentes à Casa das Minas, que em comparação à Casa de Nagô,
apresenta um número bem menor de pedidos, deixando a impressão de que a casa jeje era bem
menos ativa em termos de festa. No entanto verifica-se a concentração de pedidos para
Tambor de Minas em períodos específicos do ano: dezembro e junho.
Em 5 de dezembro de 1896, aparece o primeiro pedido da Casa das Minas em
nome de Luiza Rosa da Silva, que pede
[...] permissao' para que ela com suas companheiras possao' divertirem-se com a
brincadeira de minas nos dias 5 e 6 do corrente em sua casa a rua de Sao Pantaleao'
nº 199 deste Estado, a petencionaria garante a boa ordem e decencia do costume.
(PLF, 5/12/1896).

Segundo o calendário ritual da Casa nos 3, 4 e 5 de dezembro é realizada a festa


para Nochê Sobô, correspondente à de Santa Bárbara no calendário católico, e marca a
128

abertura do ano litúrgico. (FERRETTI, S., 2009, p. 141). Nochê Sobô é uma das mais
importantes entidades da Casa das Minas, como informa Sergio Ferretti.
É considerada a mãe de todos os voduns de Quevioço. É um guia-astro, representa o
raio e adora Santa Bárbara. É comemorada no dia 4 de dezembro, data de uma das
mais importantes festas do tambor de mina do Maranhão. [...]
Na Casa das Minas afirma-se que a festa de Sobô é uma benção para a Casa. Pede-se
pelo público em geral, pela nação e por todos. Tem-se que pedir proteção para a
cidade onde se encontra a Casa, pois sem isso a Casa não estaria protegida. Na Casa
das Minas, em cima da porta do comé, há sempre um cromo retratando Santa
Barbára. (FERRETTI, S., 2009, p. 121).

O documento acima referido mostra o período específico da festa de Nochê Naé


no fim de ano, muito embora não obedeça às datas específicas informadas pelo antropólogo,
algo que parecia ser comum, como já foi percebido com os pedidos da Casa de Nagô.
Com base na memória oral, a requerente da licença era Mãe Luísa Ferreira,
segunda chefe da Casa das Minas.
Após a morte de Mãe Maria Jesuína, a chefia da Casa passou para Mãe Luísa, que
também carregava Zomadônu, o dono da Casa. Afirmam que Mãe Luísa era muito
enérgica e chefiou a Casa por muito tempo, tendo morrido com mais de 80 anos. Ela
também era africana e teria sido irmã de santo de Maria Jesuína. (FERRETTI, S.,
2009, p.57).

A observação das datas dos documentos junto aos relatos orais permite recompor
parte dessa história aparentemente perdida. Sendo Mãe Luísa a segunda chefe, tendo estado à
frente da Casa por muito tempo e morrido com mais de 80 anos, é possível que tenha sido a
sucessora da primeira chefe após a fundação da Casa atual em 1847 ou antes. Não é possível
afirmar em qual data Mãe Luísa deixou de estar à frente da Casa e consequentemente quando
Mãe Hosana assumiu.
Depois da morte de Mãe Luísa, ocorrida provavelmente entre 1905 e 1910, a Casa
passou a ser dirigida por Mãe Hosana, filha de nochê Sepazim, que a dirigiu por
pouco tempo, até 1914. Morreu com mais de oitenta anos; era crioula e não mais
africana, com as mães anteriores. (FERRETTI, S., 2009, p. 58).

Entre os anos de 1907 e 1910 não há mais pedidos para Tambor de Mina, seja em
nome de Mãe Luísa ou de outra pessoa para o endereço da Casa das Minas. Em 1909, há um
pedido de Mãe Hosana solicitando licença para a Festa do Divino Espírito Santo, mas que não
é suficiente para afirmar que a esta data já chefiando a casa, pois nos anos de 1896, 1899 e
1909 já havia solicitado portarias para esta festa em específico.
Entre os pedidos da Casa das Minas também se identificam os pedidos de longa
duração, que abrangem mais de uma festa no calendário do terreiro. Em 22 de junho o tocador
Gregório José Vieira pede licença para
[...] celebrar na rua de S. Pantaleao' a tradicional brincadeira das minas, desde o dia
23 deste mez, até 30 de dezembro, do corrente anno; sendo que do mez de julho em
diante, a referida brincadeira, será feita em diferentes dias, como seja Domingos ou
129

feriados; vem respeitosamente pedir a V. Exa que se digne conceder a licença para
que tenha lugar o que o supplicante requer, garantindo desde já a bôa ordem que
sempre reinou em dias egaues. (PLF, 22/06/1898)

Nesse pedido que abrange um período de seis meses estão incluídas as seguintes
festas descritas no quadro abaixo.
Quadro 5 Festas incluídas no PLF 22/06/1898

FESTA PERÍODO
Nochê Naé Dias 23, 24 e 25 de junho correspondente a São João
Badé Dias 28, 29 e 30 de junho correspondente a São Pedro e São Marçal
Averequete 2º domingo de agosto correspondente a São Benedito.
Toçá e Tocé 27 de setembro, correspondente a São Cosme e Damião.
Nochê Sobô 3, 4 e 5 de dezembro, correspondente a Santa Bárbara.
Nochê Naé60 24, 25, 26 de dezembro no Natal.
Toquéns61 Último dia do ano.

Diferente da Casa de Nagô em que os pedidos pra Tambor de Mina eram


solicitados por uma pessoa que estava á frente do terreiro, na Casa das Minas, embora
houvesse uma chefe, as funções e responsabilidades pelas festas aparentemente estavam
descentralizadas. Por essa razão é possível encontrar os pedidos de Gregório – que era o
tocador chefe da Casa e devia estar à frente de uma série de funções masculinas – e de Mãe
Hosana responsável pela Festa do Divino e que depois veio a assumir a casa após a morte de
Mãe Luísa, como já informado acima.
Há dois pedidos em nome da vodunsi Cecília do Nascimento Bandeira62, que
segundo memória da Casa era africana e teria sido escrava. (FERRETTI, S., 2009, p. 279)
Seus pedidos de licença são uns dos poucos em que a expressão Tambor de Mina foi usada e
são datados de 21 de dezembro de 1901 e 20 de junho de 1902. No primeiro pedido a
requerente pede licença para o fim do mês de dezembro até o dia 8 de janeiro do ano seguinte,
o que provavelmente corresponderia à festa das tobóssis, segundo informações passadas por
Sergio Ferretti.
Outro grupo de divindades infantis, exclusivamente femininas, que vinha na Casa
das Minas até meados da década de 1960, eram as meninas ou tobóssis. [...] elas só
eram recebidas pelas vodunsis-gonjaí – as que haviam se submetido ao processo
especial de iniciação, o último dos quais foi realizado em 1914. As últimas gonjaí
morreram nos anos de 1970, e as tobóssis não vieram mais. [...]
Elas vinham três vezes por ano, quando havia festas grandes, que duravam vários
dias. Vinham nas festas de Nochê Naé, em junho e no fim do ano e também durante
os dias de carnaval. (FERRETTI, S., 2009, p. 95-96)

60
A festa para Nochê Naé ocorre duas vezes ao ano.
61
São um grupo especial de voduns, conhecidos também como toquenos, caracterizados por serem mais jovens
do que os demais voduns.
62
Cecília do Nascimento Bandeira era avó de Dona Amélia (que chefiou a casa entre 1976 e 1997) e mãe do
tocador Gregório (cujo nome aparece em outros documentos). (FERRETTI, S. 2009, p. 279).
130

A segunda licença é solicitada para o período de 22 de junho a 22 de julho,


período que corresponde às festas juninas em homenagem à Averequete. Sergio Ferretti
informa que as tobóssis vinham em junho e em dezembro, por ocasião das festas grandes. É
provável assim que Cecília do Nascimento Bandeira tenha solicitado licenças que abrangesse
a festa das tobóssis, que poderia ser de sua responsabilidade, assim como a Festa do Divino
estava sob os cuidados de Mãe Hosana desde o fim do século XIX.
Os dois últimos pedidos do recorte estudado estão em nome de Mãe Luísa e são
datados de 23 de junho de 1905 e 28 de junho de 1907 e são bastante semelhantes, pois
envolvem as festas juninas, sendo as datas para as quais são solicitadas as licenças muito
parecidas também. Aparentemente as festas do meio do ano tinham um significado especial
para a Casa e eram “privilegiadas” em detrimento das demais, quando os adeptos reuniam
esforços para que pelo menos ela fosse realizada.
Se somarmos tais licenças aos pedidos para a Festa do Divino teremos um total de
10 pedidos divididos em 8 anos de festa e um período de 7 anos de Casa “fechada” (conforme
quadro abaixo), isso se levarmos em consideração que não eram realizadas festas sem licenças
da polícia.
Quadro 6 Anos de realização de festas na Casa das Minas (1896 -1910)

Ano Realizou Festa?


1896 Sim
1897 Não
1898 Sim
1899 Sim
1900 Não
1901 Sim
1902 Sim
1903 Não
1904 Não
1905 Sim
1906 Não
1907 Sim
1908 Não
1909 Sim
1910 Não

Anos com festa 8


Anos “sem” festa 7

Não foi possível encontrar subsídios para tentar explicar uma atividade
relativamente pequena da casa. As condições materiais dos membros do grupo e os custos
131

envolvidos na realização de uma festa seriam razões que prejudicavam a manutenção rigorosa
de um calendário ritual contínuo, fazia com que estas se realizava quando era possível.
Afirmo novamente que é necessário dar certo “crédito” à documentação e
acreditar que pelo menos a Casa das Minas e a Casa de Nagô só faziam festas com
autorização da polícia. Embora seja perigoso, é possível traçar tal afirmação, pois tendo em
vista todo o trabalho para organização de um ritual a interrupção deste pela polícia não seria
desejada e representaria um grande problema ao grupo.

4.3 Outras Casas.

A intermitência na realização de festas era uma característica geral dos terreiros.


Dos que foram identificados na pesquisa documental, a realização de poucas festas, em
períodos alternados ou períodos de mais de um ano sem realizações não era algo tão raro
assim. Raro, nesse caso, era a Casa de Nagô que realizou pelo menos uma festa em quase
todos os anos do período pesquisado. Filhas de santo desta Casa abriram seus próprios
terreiros em São Luís, reproduzindo, pelo menos em parte, a estrutura do calendário e os
rituais do terreiro de origem. O quadro a seguir apresenta a Casa de Nagô e a sua filiação.
Apenas os terreiros sublinhados foram identificados na documentação pesquisada
e com base nos documentos nenhum deles possui licença solicitada anteriores ao século XIX,
muito embora seja afirmado que foram fundados nesse período, podendo ter funcionado sem
licenças.
Além da Casa das Minas e da Casa de Nagô, consideradas como as casas matrizes,
São Luís teve e ainda tem alguns terreiros fundados no século passado e que, apesar
de sua importância e singularidade, nunca se tornaram objeto de estudo por parte dos
pesquisadores que, até hoje, já enveredaram pelas casas de culto do Maranhão.
(SANTOS E SANTOS NETO, 1989, p. 33).

O quadro foi adaptada de um levantamento realizado Maria do Rosário e Manoel


dos Santos e indica que da Casa de Nagô saíram 7 terreiros, dos quais muitos não existem
mais.
132

Quadro 7 Terreiros filhos da Casa de Nagô (Santos e Santos Neto, 1989)

Casa Mater 1ª Geração 2ª Geração 3ª Geração


Terreiro de Nhá Maria Terreiro de Dona Mundica
Cristina Sarará
(Sítio do Justino - Bacanga) Terreiro de Aniceto
Terreiro de Belém – Vó Terreiro de Maximiliana –
Severa (Severa Soeiro) (João Paulo)
(“João Força” – Apeadouro) Terreiro da Trindade de
Maria Lopes (Olho d’Água)
Terreiro de Rosa do Bom
Piter (Cutim do Padre)
CASA DE NAGÔ Terreiro Viva Rei Nagô – Terreiro da Clarinda Terreiro de Adelite
Nhá Maria Alice (Ponte Terreiro Maria duas Caras
Preta / Km 7)
Terreiro de Rosa Guadamor
(Mata do Batatan)
Terreiro de Dona Santinha
(Belém do Pará)
Terreiro de Maria Protestada Terreiro de Caboco Rocho
Cutim do Padre / Sítio Roma (Basílio do Cruzeiro)
/ Filipinho
Terreiro de Mãe Alta

4.3.1 O Terreiro do Justino

O Terreiro do Justino segundo memória oral teria sido fundado ainda no século
XIX por Maria Cristina Bayma, filha de santo da Casa de Nagô. Muito embora os PLF só
apareçam no final do início do século XX, uma matéria de jornal de 1898 indica o
funcionamento do terreiro no fim dos oitocentos, sendo atualmente o único terreiro do século
XIX ativo, realizando toques de Tambor de Mina já que a Casa de Nagô e a Casa das Minas
atualmente realizam apenas a programação da Festa do Divino Espírito Santo e ladainha em
algumas datas.
133

Mapa 5 Localização do Terreiro do Justino (Mapoteca APEM)

Segundo informações de Mundicarmo Ferretti a Casa de Nagô esteve fechada por


duas vezes, sendo que a primeira vez, por volta dos últimos anos do século XIX coincide com
a abertura do Terreiro do Justino. Não há registros desse fechamento e supõe-se que a partir
deles é que outros terreiros tenham sido abertos. Dona Mundica Estrela, quarta e atual chefe
do Terreiro do Justino, disse em entrevista que a casa completou, no ano de 2013, 117 anos e,
portanto, tendo sido fundada no ano de 1896.
Pelos registros do PLF a Casa de Nagô não esteve inativa nesse período, tendo
realizado festa no começo e meio do ano, como já apresentado. A notícia do jornal indica que
o terreiro já funcionava em 1898, portanto anteriormente aos anos em que a Casa de Nagô
esteve, aparentemente, fechada, muito embora Dona Mundica afirme que a saída de Maria
Cristina tenha se dado em um momento em que a Casa esteve fechada.
As razões da saída de Maria Cristina e a abertura de seu terreiro não foram
informadas, sendo um dos segredos que se perdeu ao longo do tempo. Segundo Dona
Mundica, Maria Cristina teria proibido as chefes do terreiro de irem à Casa de Nagô, muito
134

embora as filhas tivessem permissão para isso. Essa interdição também não tem suas razões
conhecidas, muito embora Dona Mundica desconfie de que tenha houve algum
desentendimento ou descontentamento entre as chefes – o que indica para um desligamento
não amigável entre os dois terreiros – ou por ordem das entidades. A razão da fundação e em
específico essa interdição são os mistérios do terreiro, como indica a atual chefe, “são
palavras que a gente recebe da chefe anterior e não pode descumprir.”
A matéria do jornal Pacotilha informa que na casa de Maria Cristina estavam
acontecendo sessões de pajelança e assim descreve o ritual em tom de ironia e na forma de
versos.

A Maria Christina
Senhor Verequete do mar
O Justino Pilôto
Tocador do Maracá

A Christina accendo o fogo


Para a Malvina difumar
A Santa Barbara de penacho
Dançando no maracá

Olha que isto é feitiço


Olha que isto é feitiço
Não senhor é um basso
Então queres desmentir
A Santa Barbara de penacho

Resposta do Justino para a enfeitiçada.


(PCT, 30/12/1898)

Poderia este ritual estar ocorrendo na Casa de Nagô? Alguns elementos


aproximam os rituais do Tambor de Mina e da Pajelança, como o ato de defumar o ambiente.
Segundo informação cedida por Mundicarmo Ferretti, na Casa de Nagô a cabaça (instrumento
sonoro feito de um fruto seco coberto por uma malha de contas) também é chamada de
maracá. Justino era, provavelmente, tocador ou pessoa de confiança dos terreiros, seu nome
aparece na assinatura dos documentos de licença do Terreiro chefiado por Maria Cristina,
além de aparecer em um pedido da Casa de Nagô, Justino também assina um pedido da Casa
das Minas em 1907.
No entanto, na Casa de Nagô não se realizam rituais de cura (FERRETTI, M.,
2011, p. 99) – praticados por pajés, que eram perseguidos pela polícia e execrados pela elite
135

da sociedade – e o que a matéria indica é que se tratava de algum tipo de ritual ou sessão de
cura já que havia a presença de um “enfeitiçado”, possivelmente uma pessoa em tratamento.

Imagem 11 Dona Mundica Estrela – 2011 (MAD)

Dona Mundica, que chegou a conhecer Maria Cristina, disse que ela era “Pajoa” e
que realizavam rituais de cura e pajelança no terreiro. De fato existem dois ambientes
distintos no Terreiro, um para a Mina e outro para a Pajelança. São Benedito (Averequete) e
Santa Bárbara são os donos do Terreiro, representando as entidades principais cultuadas e
ambos são citados na matéria do jornal. Dona Mundica identificou Malvina, citada na matéria,
como Malbina, uma das dançantes da casa. Todos esses elementos indicam que o ritual não
tenha acontecido na Casa de Nagô e sim já no Terreiro do Justino.
Os versos destacam elementos importantes dentro dos rituais das religiões afro-
maranhenses e deixam entrever que quem o escreveu conhecia de forma próxima a casa, a
devoção a Santa Bárbara e os indivíduos que ali estavam. Descrever em versos, rimados e
musicados demonstra também a importância dessa forma textual como importante fonte de
informações sobre a casa, já que os cantos/orações trazem informações sobre as entidades,
histórias, estruturas de pensamento e de organização da vida dos indivíduos.
136

Imagem 12 Terreiro do Justino - Local para toque de Tambor de Mina (Arquivo Pessoal)

Imagem 13 Terreiro do Justino - Local para ritual de Cura/Pajelança (Arquivo Pessoal)

Praticar pajelança pode ter sido a causa algum tipo de desentendimento entre
Maria Cristina e o pessoal da Casa de Nagô tendo resultado em sua saída da Casa. Ou mesmo
o fato de já estar funcionando paralelamente à Casa de Nagô para rituais de cura, razão pela
qual foi instalado em um local distante. A pajelança era regulada pelo Código Criminal da
República – já apresentado anteriormente – e era considerada prática ilegal de medicina e
crime contra a saúde pública, o que poderia criar problemas entre a Casa de Nagô e a Polícia.
137

Muito embora sejam correntes as lembranças sobre as perseguições às religiões


afro-maranhenses no passado, nos jornais pesquisados não foram localizados nenhum registro
de que a Casa das Minas e a Casa de Nagô tenham sofrido sanções policiais, razão pela qual
acredito que nestes locais eram realizadas festas apenas com a licença da polícia e sempre
tentando obedecer aos padrões sociais que eram considerados adequados.
Em síntese, a Casa de Nagô e a das Minas tentavam se manter na “legalidade”,
por estarem próximas à cidade e portanto bem próximas da ação policial qualquer descuido
poderia significar problemas sérios para a manutenção do culto. Assim, obter licenças,
obedecer às portarias e se afastar de qualquer relação com a pajelança eram os esforços em
contrapartida da possibilidade de manter sua religião.
Diferente poderia ser o caso do Terreiro do Justino, cuja dificuldade de acesso o
distanciavam do “centro da cidade” e limitava a ação da polícia na área. Dona Mundica
relatou que não se lembra de ter havido problemas com a polícia desde que chegou ao terreiro.
A travessia do Rio Bacanga era feita em pequenos barcos ou canoas, descia-se no Piancó63 e
ainda andava-se até chegar ao local, lembra ela.
Mas, ainda assim, Maria Cristina solicitou licença da polícia para realizar Tambor
de Mina, como uma forma de garantir que seus rituais não fossem interrompidos. Nos três
pedidos localizados informa que a “brincadeira denominada Tambôr de Minas” ocorreu no
Sítio Santo Antonio do Monte Alegre (nome oficial da localidade onde funciona o terreiro)
que localizava-se no local chamado Gapara64.
Sendo filha da Casa de Nagô, Maria Cristina reproduziu o calendário ritual do seu
terreiro de origem, tendo incorporado à este os rituais de cura. Os pedidos, semelhantes aos da
Casa de Nagô e das Minas informam sobre festas de junho e fim e começo de ano. A ordem,
datas e descrição dos pedidos seguem listadas abaixo, entre parênteses segue a festa desse
período segundo calendário ritual da Casa de Nagô conforme quadro abaixo:

63
Piancó é uma localidade que divide dois bairros na região da cidade que é conhecida atualmente como área
Itaqui-Bacanga, que começa na margem esquerda do Rio Bacanga, que divide essa área com o centro da cidade.
No outro extremo da área encontra-se o Porto do Itaqui. Na segunda metade do século XIX a área fazia parte do
Distrito de São Joaquim do Bacanga, posteriormente apenas Distrito do Bacanga, que incorporava também áreas
da margem direita do rio de mesmo nome. O distrito era uma área pouco povoada, marcada por sítios e que em
1897, segundo dados da Chefatura de Polícia contava apenas com 17 quarteirões. Nos jornais a área aparece
como um local de pouca ação policial, problemas e conflitos quase nunca eram resolvidos pela Chefatura de
Polícia. Atravessando-se o Rio Bacanga a ação do poder público era menor ainda.
64
Gapara é um dos bairros da Área Itaqui-Bacanga, localizado um pouco distante do Bairro da Vila Embratel,
onde hoje localiza-se o Terreiro do Justino.
138

Quadro 8 Festas no Terreiro do Justino com base nos PLF

Data do Pedido Solicitado Festa


22 de dezembro Licença para os dias Dezembro engloba as festas para Nochê Sobô
de 1905 24 e 25 de e Nochê Naé no natal65 (o primeiro dia de
dezembro e 1º de janeiro poderia ser a continuação dos rituais
Janeiro de 1906. do natal ou a comemoração do Dia de Reis.)
23 de junho de Licença para os dias O período de Junho engloba as festas de
1906 23, 24, 25, 28, 29, Xangô e Badé.
30 de junho.
20 de dezembro Licença para o O período de fim e início de ano encontra-se
de 1907 período do natal até descrito acima, mas neste caso engloba a
20 de janeiro. festa de São Sebastião entre os dias 19 e 21
no calendário ritual recente.

Os rituais de pajelança poderiam estar incorporados ao Tambor de Mina ou


realizados em momentos distintos das festas. A data da matéria do jornal (30/12/1898) e a
proximidade com as datas festivas do calendário ritual mostra que o relato originou-se em
algum momento em que um ritual de cura foi realizado, dentro ou muito próximo às festas do
Tambor de Mina.
Não há registro de PLF para o ritual descrito pelo jornal e em se tratando
realmente de um ritual de cura dificilmente teria licença policial, pois era proibida por lei. Se
a pajelança estivesse presente nos rituais de Tambor de Mina a não existência de pedidos para
estes rituais, poderia ser explicada por uma não necessidade que a chefe do terreiro via em ter
custos com licenças policiais em um local em que não incomodaria ninguém ou que a polícia
não chegaria.
Com o passar do tempo e o crescimento da cidade a área passou a ser mais
povoada, e o terreiro conhecido, assim as licenças passaram a ser uma necessidade para que
os rituais acontecessem. Dessa forma a pajelança passou a ser incorporada nos rituais de
Tambor de Mina para que pudesse ser realizada sem maiores problemas, como informa
Mundicarmo Ferretti.
A perseguição policial obrigou os curadores de São Luís a estabelecerem-se em
sítios afastados e realizarem ali seus rituais. E, segundo os pesquisadores Maria do
Rosário e Manuel dos Santos Neto (1898, p. 119), como a Mina era menos
perseguida, os ‘pajés’ começaram a “mascarar-se” de ‘mineiros’ e a abrir terreiros
com linha de Mina e Cura. É provável que o surgimento desses terreiros tenha sido
também encorajado pela abertura de novas casas de Tambor de Mina por pessoas
ligadas à Casa de Nagô, tanto na cidade como nos subúrbios e em que sítios da zona

65
Nochê Naé nesse caso referente ao calendário da Casa das Minas. Segundo informações de Sergio Ferretti,
Nochê Naé nunca foi cultuada na Casa de Nagô e no Terreiro do Justino, portanto é provável que a festa fosse
algo referente à comemoração do Natal.
139

rural (onde também eram realizados rituais de Cura), o que, segundo Costa Eduardo
(1948), começou a ocorrer por volta de 1910. (FERRETTI, M., 2000, p. 68).

Como vimos Maria Cristina saiu da Casa de Nagô ainda no século XIX, vindo a
fundar o seu terreiro em um lugar afastado da cidade. Assim o processo de expansão da Mina-
Nagô iniciou bem antes do que os pesquisadores registraram (por volta de 1910). A
incorporação da Pajelança no Tambor de Mina inicia-se também nesse período o que justifica
a instalação do Terreiro do Justino em uma área distante e de difícil acesso.

4.3.2 O Terreiro de Vó Severa

O Terreiro de Belém, chefiado por Severa Soeiro, ou Vó Severa, funcionava no


Lugar João Força, no Primeiro Apiador (atual bairro do Apeadouro) referências presentes nos
cinco pedidos de licença encontrados para o período estudado. Se considerarmos que o
primeiro pedido seja referente a primeira festa do terreiro é possível relacioná-lo diretamente
com o período em que suspeito tratar-se do fechamento da Casa de Nagô, já citado
anteriormente.
Maria do Rosário e Manoel dos Santos Neto não especificam se o Terreiro de Vó
Severa está entre os que teriam sido fundados no século XIX, apenas que era filho da Casa de
Nagô. Poucas informações foram encontradas sobre esse terreiro e sua fundadora. Fora os
PLF, o nome “Severa Soeiro” aparece várias vezes em 1908 no jornal Diário do Maranhão,
em uma convocação dos correios solicitando que a mesma vá buscar uma correspondência
contendo valores que fora enviada por ela a uma pessoa no Pará, mas que não foi entregue
sendo devolvida ao local de origem.
140

Mapa 6 Área em que se localizava o Terreiro de Vó Severa (Mapoteca APEM)

Esse aviso foi publicado 15 vezes entre janeiro e abril, quando a correspondência
deve te sido recuperada. Não é possível afirmar que se tratava da mesma pessoa, mas uma
correspondência enviada com valores para o estado vizinho pode ser indicativo de uma
relação entre terreiros de dois estados que se constituiu após a fundação de terreiros no Pará
por filhos de santo de terreiros maranhenses. (SANTOS e SANTOS NETO, 1989).
No Jornal Pacotilha o nome de Severa Soeiro aparece em 1935 em um trecho da
coluna “Na polícia e nas ruas” informando as licenças concedidas para festas em abril do
mesmo ano.
Licenças
Foram dadas pela 1ª Delegacia licenças para festa do Divino E. Santo, ás seguintes
pessôas: Julieta Maria da Paixão, Severa Soeiro, Porfiro Pedro Baptista, Leopoldina
Meirelles, Andreza Souza.
So poderão tocar foguetes pela manhã, ao meio dia, e á noite, por occasião das
ladainhas, conforme consta nas licenças. (PCT, 18/04/1935)

O nome de Mãe Andreza, que chefiou a Casa das Minas entre 1914-1954, aparece
na listagem dos promotores de Festa do Divino Espírito Santo, característica dos terreiros do
141

Maranhão. No mesmo jornal, dois anos depois, foi publicada nota comunicando o falecimento
de Severa Soeiro, que morreu na sexta feira 16 de julho de 1937, aos 98 anos de idade.

Imagem 14 Jornal Pacotilha Terça-Feira, 20 de Julho de 1937 (HDB).

Pela idade comunicada no jornal Vó Severa teria nascido em 1839 e poderia estar
na Casa de Nagô já nas primeiras décadas de seu funcionamento ou mesmo tendo relação com
os fundadores da Casa. A partir dos PLF Vó Severa mantinha o calendário da Casa de Nagô,
repetindo também a concentração dos pedidos nos períodos das principais festas do ano.
Neste caso em particular as festas concentram-se no fim e início do ano como informado no
quadro abaixo.
142

Quadro 9 PLF do Terreiro de Vó Severa

Data do Pedido Período de Licença Solicitado Festa


21 de novembro 3, 4, 5, 7, 8 e 9 de dezembro 3, 4, 5 de dezembro – Santa
de 1905 Bárbara (Nochê Sobô)66
1 de dezembro 2, 3, 4 e dezembro67. Festa de Santa Bárbara
de 1906 (Nochê Sobô.
22 de dezembro 25 a 26 de dezembro (Natal, dedicado a Nochê
de 1906: Naé, na Casa das Minas);
1, 2, 6, 7 de janeiro Festa de Reis
20 e 21 de janeiro São Sebastião (dedicada a
Xapanã na Casa de Nagô)
17 de abril de 1903 18, 19 e 20 de abril ??
20 de maio de 21 e 22 de maio Mês de maio corresponde a
1905 Festa do Divino Espírito
Santo

A Festa do Divino Espírito Santo, não aparece na documentação como pedido


para Tambor de Mina, a própria Severa Soeiro pediu, anos depois licenças para Festa do
Divino conforme indica o jornal, a não ser que neste caso em específico tenha pedido para
fazer Tambor de Mina durante essa festa. Sebastião Cardoso Júnior ao descrever a festa da
Casa de Nagô, não fala em toques de tambor, muito embora afirme que em determinado
momento da derrubada do mastro haja o transe de dançantes.
Como bem observou Maria do Rosário e Manoel dos Santos Neto, os
pesquisadores, ao privilegiarem a Casa das Minas e a Casa de Nagô, deixaram em aberto
enormes lacunas acerca do Tambor de Mina que se desenvolveu fora dessas duas “matrizes”.
Os terreiros de primeira e segunda geração, para utilizar a classificação dos autores acima,
tornaram-se os zeladores da memória de seus pais e mães de santo, que não foram registrados
pelas pesquisas a partir da segunda metade do século XX, e foram se perdendo com o passar
do tempo.
As informações contidas nos documentos e jornais podem não seguir o mesmo
caminho que a memória oral e em certos momentos até negá-la, o que trás riscos à análise
pretendida por pesquisadores que se baseiam em outras fontes para compreender as religiões
afro-maranhenses no passado. Esse seria o caso de Manoel Teu Santo, com terreiro fundado
na área da Madre-Deus, especificamente na Rua do Passeio, ainda no século XIX.

66
Os demais dias poderiam ser referentes a continuação da festa ou pagamento de alguma obrigação.
67
O Chefe de Polícia concedeu a licença, mas para apenas um dia, sem especificar qual.
143

4.3.3 O Terreiro de Manoel Teu Santo

Localizei seis PLF em seu nome e algumas notícias nos jornais (que o apresentam
como pajé), todas restritas ao século XIX. Neste tópico tratarei apenas do Manoel Teu Santo
que pedia licenças para realizar rituais de Tambor de Mina, deixando o pajé para outro
capítulo. Abaixo segue um quadro com as informações dos terreiros originados da Casa de
Manoel Teu Santo, que como a Casa de Nagô, teve uma grande importância na expansão do
Tambor de Mina, de onde saíram importantes terreiros cuja filiação estende-se até o vizinho
estado do Pará.

Quadro 10 Terreiros filhos do Terreiro de Manoel Teu Santo (Santos e Santos Neto, 1989)

Casa Mater 1ª Geração 2ª Geração 3ª Geração


Terreiro de Noemia
Fragoso
Local: Sacavém
Terreiro da Turquia de Terreiro de Manoel
Anastácia Colasso
Local: Belém
TERREIRO Terreiro de Nizete da
DE MANUEL Veneza
TEU SANTO – Terreiro de Pedro
MANUEL Angaço
ZEFERINO Local: Guimarães
DOS SANTOS Terreiro de Severino
Local: RUA Fernandes Badé
DO PASSEIO Local: Sítio Mamão
Nº 72 – Centro Terreiro da Cota do Terreiro de Noêmia das
Barão Quadras
Terreiro de Mãe Ignácia
Terreiro de Mãe Doca
Terreiro de Raimunda Terreiro Tainha Terreiro de
Porca Local: Pão de Açúcar Maria de
Lourdes
Terreira de Rosa
Viveiros

Manoel Zeferino dos Santos, como aparece na documentação de Polícia, pediu


entre os anos de 1896 e 1898, licenças para realização de Tambor de Mina em seu terreiro que
se localizava na Rua do Passeio, nº 72. Com a mudança na numeração das casas não seria
possível localizar o terreiro por meio dos referenciais atuais, mas a partir de informações de
antigas mães de santo, localizava-se onde hoje há um terreno vazio, murado, porém sem
vestígios de construção e que hoje serve de estacionamento rotativo.
144

Os mapas de época ajudam a compreender um pouco da cidade e do seu antigo


traçado. Não somente números e nomes das ruas mudaram, mas a sua própria configuração. A
diferença no arruamento é fundamental para entender porque o terreiro de Manoel teu Santo
ou mesmo a Casa das Minas e de Nagô são ditos como distantes. Ruas sem calçamento,
caminhos tortuosos e casas ainda cercadas por vegetação são algumas das marcas do período,
que definem essa configuração urbana e causam estranheza ao apresentar relações de
distancias diferente das que se tem hoje.

Figura 15 Fonte do Apicum (Álbum 1904)

Na imagem acima, a Fonte do Apicum, localizada em área de mata, com alguns


casebres. Ao fundo, além de alguns casebres de taipa, observa-se o Hospital Português
localizado na Rua do Passeio, indica a proximidade com o centro da cidade. Os acessos a
esses locais, nem sempre ligados por ruas dificultavam o deslocamento e acabam por proteger
a prática do Tambor de Mina e da Pajelança, ainda que fossem praticados bem próximos da
área urbana.
145

Mapa 7 Mapa da área da Madre Deus: Localização do Terreiro de Manoel Teu Santo (Mapoteca APEM)

No mapa vê-se o Caminho da Boiada, por onde passavam os bois a caminho do


matadouro público. Este caminho aparentemente não era de todo calçado ou sua continuidade
se dava de forma irregular por entre a vegetação local, passando próximo à Fonte do Apicum
(imagem 15) que apesar de sua importância para o abastecimento da cidade não possuía
ligação por uma via estruturada como mostra o mapa de 1926, ou mesmo a área do Codozinho
já habitada à época, mas sem nenhuma representação de ruas ou caminhos estruturados no
local.
Mesmo com endereço definido o Terreiro de Manoel teu Santo pode ter se
localizado em uma área dentro desse núcleo considerado como afastado ou distante do centro,
que, ainda era marcada pela presença de vegetação ou com certa dificuldade de acesso. É
preciso lembrar que o arruamento e os endereços mudaram com o passar do tempo e a
localização expressa no documento da virada do século XIX para o XX pode não ser o atual,
mesmo com certa aproximação.
A estrutura religiosa deste terreiro não é conhecida da literatura antropológica,
mas o seu calendário ritual segue, pelo menos em linhas gerais o da Casa das Minas e da Casa
146

de Nagô, o que sugere certa proximidade entre os terreiros, pelo menos neste aspecto. Em
dois pedidos, Manoel Teu Santo pede licença para período que compreende vários meses e
para fornecer o maior número de informações possíveis foi elaborado quadro (Anexo 6)
contendo as informações básicas dos pedidos.
O calendário ritual segue, pelo menos em linhas gerais o da Casa das Minas e da
Casa de Nagô, o que sugere certa proximidade entre os terreiros, pelo menos neste aspecto, e
uma origem semelhante, mas sem possibilidades concretas de afirmar sua africanidade (como
faz Euclides Ferreira, chefe da Casa Fanti-Ashanti).
Nesse sentido o presente livro, ITAN DE DOIS TERREIROS NAGÔ, é uma
pequena contribuição ao resgate histórico destes. O primeiro [Casa de Nagô], sendo
fundado por africanos nigerianos com parcerias de negros de outra procedência
africana e o segundo [Terreiro da Turquia], sendo fundado por Anastácia Lúcia dos
Santos remanescente do terreiro do nigeriano Manoel-Teu-Santo (JOKOBYRA)
(FERREIRA, 2008, p. 23 – grifo meu)68.

Embora os calendários Mina-Jeje e Mina-Nagô sejam muito parecidos, algumas


datas dos pedidos acima apresentados se aproximam mais da Casa das Minas do que da Casa
de Nagô. Sergio Ferretti informou acerca da documentação sobre Manoel Teu Santo que
dançantes antigas da Casa das Minas falavam ele costumava frequentar os rituais da casa jeje
na Rua de São Pantaleão.
Foram localizados ainda doze pedidos referentes Tambor de Mina e alguns em
que o tambor aparece como objeto da licença, mas sem a possibilidade de se descrever como
sendo Tambor de Mina. Dentre os que se tem certeza quanto a serem referem à manifestação
religiosa muito pouco se tem a dizer a partir dos documentos, pois alguns deles não permitem
fazer a menor referência a qualquer informação presente em pesquisas já realizadas. Em
anexo, segue quadro (Anexo 9) contendo os dados desses documentos.
Salvo os pedidos de Andreza Vieira de Jesus, Maria do Rosário dos Santos e
Maria Pretextada dos Prazeres – estas duas filhas da Casa de Nagô – os demais são muito
genéricos e não permitem compreender a partir do calendário, se estão mais próximos dos
jejes ou nagôs, ou elaboraram um calendário ritualístico diferente dos que são conhecidos
atualmente.

68
No mesmo livro, o autor publica uma fotografia (ANEXO 7) que supostamente seria de Manoel Teu Santo,
mas sem citar a origem da imagem. Um homem negro, aparentemente calvo ou com pouco cabelo branco apoia
o queixo em seu braço direito, tendo o ombro esquerdo coberto por um tecido de cor clara.
147

4.4 As Licenças Policiais e o projeto civilizador maranhense

Os PLF em geral apresentam alguns detalhes acerca do contexto sociocultural da


época, algumas palavras frases ou expressões revelam o cotidiano das manifestações
religiosas afro-maranhenses. Além das dificuldades materiais na realização dos rituais – o
pagamento das licenças era apenas uma delas – havia as interdições impostas pelas portarias,
que poderiam afetar diretamente às práticas religiosas.
Em alguns pedidos, a resposta do Chefe de Polícia limita o horário de execução
das “brincadeiras”. O Tambor de Mina e os divertimentos em geral não poderiam exceder às
10 horas da noite, sob o risco de serem interrompidos à força pela polícia. Em outros casos
havia a limitação dos dias em que os objetos de licença seriam liberados, fora as recusas
diretas da Chefatura de Polícia, que se concentraram mais no século XIX.
Aparentemente no século XX o pagamento dos impostos era suficiente para a
liberação por parte da polícia. Com o grande número de festas que ocorriam e eram alvos de
licença por parte da polícia, os pedidos acabavam sendo uma boa fonte de renda para as
finanças públicas. No entanto, o pagamento e a aprovação do Chefe de Polícia não significava
de fato que a festa transcorreria sem perigo de perseguições.
A noção de moral, bons costumes, ordem e decência eram algumas das que
acompanhavam os pedidos e determinavam os limites sociais e culturais que eram impostos.
Essas noções eram codificadas a partir das posturas municipais, mas também difundidas e
vivenciadas entre os grupos sociais, mas sempre postuladas pelos dominantes na busca de
impor suas normas de convivência.
Essa imposição pode ser considerada uma espécie de “difusão da civilização” –
que segundo Norbert Elias (1993, p. 2012) é a disseminação dos padrões de conduta
ocidentais para fora da Europa –, mas em escala menor, ou seja, a partir de padrões de certos
grupos sociais sobre outros. A moral e os bons costumes eram noções amplas e poderiam ser
utilizadas em diversas situações, mas quase sempre no sentido de interdição a certos padrões
de conduta ou comportamento de indivíduos que eram reprovados em determinados espaços e
momentos.
As elites locais viam nas manifestações culturais da população negro-mestiça
motivos a serem regulados por tais noções que poderiam a qualquer momento ser acionadas
para impor uma determinada ordem social (a da polícia) às manifestações religiosas afro-
maranhenses. Uma licença, ainda que concedida, poderia esbarrar logo em seguida nos limites
do que era considerado imoral, indecente e desordenado.
148

Um controle social bem sucedido é aquele que dá lugar ao autocontrole, como


indica Norbert Elias, ou seja, quando os indivíduos passam a operar psicologicamente a partir
de uma forma de sociedade que se estabelece com o passar do tempo.
O estudo desses mecanismos de integração, porém, também é relevante, de modo
mais geral, para a compreensão do processo civilizador. Só se percebermos a força
irresistível com a qual uma estrutura social determinada, uma forma particular de
entrelaçamento social, orienta-se, impelida por suas tensões, para uma mudança
específica e, assim, para outras formas de entrelaçamento, e que poderemos
compreender como essas mudanças surgem na mentalidade humana, na modelação
do maleável aparato psicológico, como se pode observar repetidas vezes na história
humana desde os tempos mais remotos até o presente. (ELIAS, 1993, p. 195).

Ao observar que tais noções são correntes nos documentos e, portanto, na fala dos
requerentes, fica claro que, de certo modo, esse processo civilizador surtiu efeitos. Ao afirmar
que faria de tudo para manter a ordem, moral e decência um requerente assumia que sua
religião poderia em algum momento ultrapassar certos limites e se tornar desordenada, imoral
e indecente, ferindo princípios de uma estrutura social a que deveria se submeter para ter a sua
licença aprovada e não ter a sua licença cassada.
Elias fala de um processo civilizador que não é proposital, ou seja, pensado para
atingir determinados objetivos, mas sim construído a partir da ação dos indivíduos neste
“entrelaçamento social”. O processo civilizador maranhense foge a caracterização de Norbert
Elias pelo fato de não ser articulado a partir das necessidades especificas da sociedade, mas,
sobretudo, por ser um projeto civilizador – muito próximo do que Thompson (1993)
compreende como uma tentativa de reforma dos costumes plebeus –, com objetivos bem
específicos dentre os quais o controle social das manifestações culturais de parcelas da
população.
Nesse aspecto vale destacar que, por se tratar de uma imposição, o alcance desse
projeto era limitado, pois sempre havia resistências que se articulavam para conseguir
ultrapassar os limites impostos. O Bumba-Meu-Boi talvez seja o maior exemplo de
manifestação cultural que conseguiu resistir aos limites impostos até se tornar reconhecido
pelo estado como elemento da cultura e identidade local.
Essa “resistência teimosa” (THOMPSON 1998, p. 13) pode ser ampliada às
demais manifestações culturais, mas sempre é necessário frisar que não se trata de uma
reflexão simples do tipo dual: resistência x subserviência. Pelo contrário, as manifestações
culturais devem ser vistas em cada caso específico com seus graus de resistência e de
subserviência, ou seja, em quais momentos e situações o Tambor de Mina, por exemplo,
incorporou as noções de moral e bons costumes e em quais e de que forma as negou ou até
mesmo quando se mostrou ambígua, como afirma Thompson.
149

É possível perceber no mesmo indivíduo identidades que alternam, uma deferente, a


outra rebelde. Adotando outros termos. Esse foi um problema que preocupou
Gramsci. Ele observou o contraste entre a “moralidade oficial”. Seu “homem-
massa” podia ter “duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória)”: a
da práxis e a “herdada do passado e absorvida acriticamente” (THOMPSON, 1998,
p. 20)

O grande exemplo de incorporação dos limites impostos são os PLF, ou seja, a


necessidade de pedir e pagar uma licença para a realização de rituais religiosos, ou outras
manifestações. Josephina Seguins da Casa de Nagô destacava que só com a “precisa licença”
é que poderia realizar os seus divertimentos, dando entender ao Chefe de Polícia o seu esforço
em manter tudo dentro da legalidade.
O referencial católico presente em algumas licenças é outro indicativo da
incorporação de formas culturais externas ao grupo, com pedir licenças para comemorar o
Natal, Festa de Reis e Santa Bárbara ao invés de simplesmente informar os dias para os quais
a portaria seria válida, como fazia boa parte dos requerentes de licença para Tambor de Mina.
Apresentar os rituais do Tambor de Mina como dança, divertimentos e
brincadeiras, para além de todas as concepções internas às comunidades religiosas, servia
como uma forma de evitar as acusações de pajelança, práticas ilegais de medicina ou de
charlatanismo, mesmo que dentro dos rituais de Mina coexistissem as práticas de pajelança e
que os pais e mães de santo eram também pajés. Contornando por meio das palavras possíveis
más interpretações da polícia, os terreiros conseguiram resistir à repressão ao longo do
período estudado.
A cultura plebeia, que se revestia da retórica do “costume” e que corresponde ao
tema central deste livro, não se autodefinia, nem era independente de influências
externas. Assumira sua forma defensivamente, em oposição aos limites e controles
impostos pelos governantes patrícios (THOMPSON, 1998, p. 17).

Na “disputa” pela licença o requerente argumentava da forma que podia, na


tentativa de se sobressair às normas e valores do costume da elite, que buscava conter
condutas sociais que iam contra os ideais de civilização. O costume era acionado dentro de
um contexto de regras sociológicas que buscava legitimar o PLF e consequentemente forçar o
Chefe de Polícia atender a uma demanda que, mesmo aparentando ser contra o costume da
elite, possuía um lastro social e temporal muito forte e que não poderia ser simplesmente
desconsiderado. Assim o fez a requerente Maria do Rosário em 1906.
Maria do Rosario, pretendendo realizar a dança de Minas, em sua casa, aos fundos
do matadouro público, e, portanto, carecendo da licença que exige essa Illustre
Repartição, para que possa exibir esse costume, que remonta a existência de muitos
annos; vem requerer a Vossa Senhoria para que se digne mandar conceder licença á
brincadeira decente e moral, que não é mais do que uma tradição antiga aos
costumes do Maranhão.
Fiada no alto Critério e justiça que prezidem os actos de Vossa Senhoria.
150

Espera Receber Merce.


(PLF, 27/09/1906).

Gregório José Vieira tocador da Casa das Minas se utiliza do mesmo argumento
da tradição, em pedido de 1898 para celebrar a “tradicional brincadeira denominada das
Minas”. Como o Tambor de Mina não aparentava aos olhos das autoridades ser uma prática
religiosa, e os requerentes se esforçavam para tal, não havia necessidade de apelar tanto à
tradição ou longevidade do objeto da licença para ter aprovação, algo que era recorrente em
alguns pedidos para a Festa do Divino Espírito Santo.
151

5. A FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO

Carlos de Lima (2002a; 2002b) fala de um tipo de festa instituída em torno da


ideia da caridade praticada pelos ricos em favor dos pobres. Afirma também que a festa que
conhecemos hoje possui este formato desde o século XVII, mas que já ocorria desde períodos
anteriores, mas organizada em torno da ideia de realeza e da coroa do imperador, símbolo do
poder e da sacralidade do rei. (LIMA, 2002a)
Esta festa aos poucos foi se espalhando por todo o território de Portugal e
inclusive se popularizando entre as camadas pobres da população. Por conta da expansão
marítima portuguesa teria chegado ao Brasil ainda no século XVI com os colonos
portugueses. Segundo as informações de Carlos de Lima (2002a, p. 17), a festa teria se
popularizado ainda em Portugal, quando passou a ser reproduzida dentro das possibilidades
dos indivíduos pobres, devotos da terceira pessoa da santíssima trindade, sofrendo assim as
primeiras modificações a partir de uma modelo da população rica.
Dentre os PLF pesquisados chama a atenção o grande número de requerimentos
para Festa do Divino Espírito Santo. Entre 1890 e 1910 foram localizados 81 pedidos
envolvendo a festa. Por essa razão é necessário dedicar algum espaço ao tema já que uma das
particularidades da festa em São Luís é a sua realização entre as comunidades de terreiro,
como destaca Sergio Ferretti.
Em São Luís o Divino é praticamente uma festa relacionada à religião de origem
africana e incluída no ritual das casas de culto afro. É realizada em terreiros de
tambor de mina ou em casas de pessoas ligadas a terreiros. Costuma ser oferecida
em pagamento de promessa, em homenagem a entidade sobrenatural que é devota
do Divino e aprecia a realização desta festa. (FERRETTI, S., 1997, p. 2)

Não é possível identificar a partir da maioria dos pedidos se a festa está se


realizando em terreiros ou pela população negra, mas esta característica já está presente pelo
menos desde a segunda metade do século XIX, quando em 1879 o jornal A Flecha publica
uma imagem69 de uma bandeireira, uma das personagens da festa, sobre a legenda Esmola em
Louvor do Divino.

69
A imagem foi extraída de CORREIA (2006, p. 158).
152

Imagem 16 Bandereira - Jornal A Flecha 1879

Nessa imagem a professora Mundicarmo Ferretti observa que o detalhe (destacado


em figura abaixo) do sapato da mulher desenhada seria indicativo de se tratar de uma negra
mina, visto que o seu sapato era menor que o pé, uma das características da vestimenta das
vodunsis do Tambor de Mina.
Imagem 171 Detalhe em destaque da figura 10

Esse detalhe pode ter sido de algo que chamou atenção do desenhista ou até
mesmo uma falha do desenho, mas de qualquer forma é inegável a proximidade entre a
estética da imagem do jornal e a da festa atual. Esta imagem é muito semelhante a que se pode
153

observar em muitas festas de terreiros atualmente. Abaixo seguem duas imagens da Festa do
Divino na Casa das Minas, a primeira sem data precisa70 e a segunda de 2006.
Imagem 18 Festa do Divino, Casa das Minas (MAD)

Imagem 19 Festa do Divino, Casa das Minas – 2006 (MAD)

Ainda sobre a relação entre a Festa do Divino e os terreiros, o antropólogo João


Leal em pesquisas realizadas as Festas do Divino no Maranhão informa que:
Do total de 79 festas recenseadas no cadastro, cerca de 2/3 – isto é, um total de 61 –
são promovidas por terreiros de religiões afro-brasileiras. As restantes 17 resultam
de promessas ou devoções de pessoas individuais. Entre os terreiros, 51 são terreiros
de Tambor de Mina e 10 de Umbanda. (LEAL, 2012, p. 4)

O gráfico ao qual o pesquisador faz referência segue abaixo. Os dados foram


obtidos através de um cadastro realizado pela Superintendência de Cultura Popular, ligada a
Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão.
70
FERRETTI, S. (2009) suspeita que esta foto seja de 1952.
154

Imagem 20 Tipos de Festa do Divino no Maranhão (LEAL, 2012)

A tabela abaixo mostra a distribuição dos PLF referentes à Festa do Divino,


encontrados no recorte estudado. Os dados apresentados são referentes ao registro dos pedidos
na polícia e não necessariamente da realização da festa em si, mito embora seja possível
verificar uma concentração nos meses de março, abril e maio, período em que a maior parte
dos terreiros comemora a data, obedecendo ao fim do período da Quaresma no calendário
cristão bem como a ocorrência de festas em outras datas, o que não é muito diferente do que
ocorre na atualidade em alguns terreiros.
Tabela 1 Distribuição dos PLF Festa do Divino

Ano 1890 1896 1897 1898 1899 1901 1902 1903 1907 1909 1910
Mês

Janeiro 1 1
Fevereiro 1 1
Março 2 1 1 3 1 2
Abril 4 2 4 5 1 3 3
Maio 1 8 3 2 2 3 1 3
Junho 1 1 4
Julho 2
Agosto 1
Setembro 2 1 1
Outubro 1 1 1
Novembro 1 171 2 1
Dezembro 1

A data do pedido não significa necessariamente o período de ocorrência da festa,


pois muitas licenças eram apenas pedidas para realizar o ato de esmolar, ou seja, percorrer as

71
Neste ano um dos pedidos encontra-se deteriorado e não é possível identificar a data, mas pelo número do
registro no livro de portarias seria do mês de novembro.
155

ruas de determinado local angariando fundos entre os devotos do divino como informa Sergio
Ferretti.
A coleta de donativos através de cartas convite é também utilizada em outras festas
na Casa das Minas, e é muito comum em outros terreiros, tendo praticamente
substituído o que corresponderia à Folia do Divino, que percorria ruas e povoados
com esse mesmo objetivo. (FERRETTI, S., 2009, p. 170).

Algumas licenças eram pedidas bem antes da data de realização da festa, visto o
período de organização e preparação que poderia ser de meses. Outros pedidos eram
referentes tanto para o ato de angariar donativos como também para a realização da festa.
Dessa forma a distribuição dos PFL na tabela acima reproduz apenas em parte o período em
que a festa aconteceu. Mas ainda assim é possível observar uma concentração nos meses de
março, abril e maio.
Em muitas das Casas de Culto – em que a homenagem ao Espírito Santo associa-se
a uma outra divindade do seu panteão – é na data comemorativa desta divindade que
se realiza a festa, a exemplo de Senhora Santana (Julho), Dom Luís(Agosto), Nossa
Senhora da Conceição (Dezembro), São Sebastião (Janeiro). E, ainda considerando
os festejos promovidos por devoção individual, particular, pode-se afirmar que, no
“Maranhão, há Divino o ano todo” (CARVALHO, 2010, p. 10).

Dos 81 pedidos apenas 5 foram identificados como de pessoas ligadas a terreiros,


é possível que outros sejam, mas não houve a possibilidade de cruzar os dados desses pedidos
com informações conhecidas sobre os terreiros no século XIX e XX. Mesmo pelo local de
realização não foi possível identificar mais festas que estivessem ocorrendo em endereços de
terreiros. Isso não significa que as festas não tivessem relação com as religiões afro-
brasileiras, pois os festeiros, pessoas convidadas ou devotas do Divino Espírito Santo
poderiam estar pedindo licenças para que as festas tivessem lugar nos terreiros ainda que não
expressos na documentação.
Mãe Hosana, terceira chefe da Casa das Minas aparece como requerente de três
pedidos. A sua entidade espiritual teria sido responsável por dar início a essa comemoração.
Segundo D. Celeste, a festa do Divino foi iniciada, lá por sua dona, nochê Sepazim,
carregada por Mãe Hosana, a terceira chefe, que dirigiu a casa em inícios deste
século, até falecer em 1914, sucedida por Mãe Andressa. É provável que com
poucos, anos de interrupção, venha sendo feita regularmente, desde o fim do século
passado. (FERRETTI, S. 1995, p. 168-169)

Em fevereiro de 1896 foi pedido licença para percorrer a ilha de São Luís
angariando donativos. Os recursos obtidos seriam utilizados no mesmo ano “para auxiliar os
ditos festejos e tocar as respectivas caixas no interior de sua casa nos dias que tiver logar os
ditos festejos” (PLF, 09/02/1896).
No mês de setembro do mesmo ano Mãe Hosana pediu licença para angariar
donativos para a festa do ano seguinte.
156

Osãna Maria da Conceição tendo por devoção festejar todos os annos, o Glorioso
Divino Esperito Santo, em sua caza de residencia a rua de S. Pantaliao', na caza
denominada Caza das Minas, dezejando retira-se para o interior d'este Estado,
angariar donativos pellos fiéis do mesmo Santo, para auxiliar os festejos do anno
proximo vindouro, vem respeitosamente solicitar de Vossa. Senhoria a respectiva
licença. (PLF, 30/09/1896)

O terceiro pedido da Casa das Minas só vai aparecer no ano de 1909. A partir da
documentação estudada apenas 3 festas podem ter sido realizadas, a de 1896, 1909 e
provavelmente a de 1897 para a qual os recursos possivelmente coletados pelo pedido acima
foram aplicados. Mesmo sendo uma festa importante a sua realização dependia
principalmente dessa captação de recursos que serviria para cobrir as despesas da festa e a
intermitência ou interrupção poderia estar diretamente ligada às questões materiais, como já
foi falado no caso das demais festas em terreiros.
Maria Rosa Ferreira Pinho72 pede licença para a festa do Divino em 20 de maio de
1897. Transcrevo abaixo o seu pedido por conter uma série de informações a serem
destacadas.
Illustrissimo Senhor Doutor Chefe de Policia interino
do Estado

Passe-se portaria concedendo a licença requerida, limitan-


do-se o toque de caixas da Estação de Bondes para cima.
Seja esta apresentada ao Cap. Subdelegado de Policia
do 4º Districto d'esta Capital que a cassará se assim en-
tender conveniente a conservação a manutençao' da
ordem. Chefatura de Policia Mar' 20 de maio de 1897
Nunes Lisboa

Maria Rosa Ferrreira Pinho, moradora


nesta cidade no Caminho Grande, perto
dos - Dous Leões - querendo cumprir um
voto que fez ao Divino Espirito Santo de
fazer a sua festividade neste anno, em
casa de sua residencia vem respeitosa
mente pedir a Vossa Senhoria que se digne de con
ceder-lhe licença nao' só para que tenha
logar a mesma festividade com toque de
caixas, como tambem para alvorar o res
pectivo mastro e bandeira com a effigie
do mesmo Divino Espirito Santo, fora da
porta da rua de sua dita casa.
A supplente garante a Vossa Senhoria toda ordem
e respeito durante a festividade, como
tambem durante o divertimento de dan
ças em sua casa
72
Maria Rosa Ferreira Pinho ou Maria Rosa Pereira Pinho, ambos os nomes aparecem no documento.
157

Confia na benevolencia de V. Sa. para ser


attendida
Nestes termos
Pede Deferimento

A rogo de Maria Rosa Pereira Pinho


Antonio Leao'

A requerente possui dois outros pedidos registrados em seu nome, ambos para
Tambor de Mina, um em 1897 e outro em 1889 (Conforme ANEXO 8). A requerente também
informa que haverá danças por ocasião das festas, mas não deixa claro se há uma relação com
dança enquanto ritual religioso ou outras danças, como tambor de crioula, bumba-meu boi ou
de outras manifestações folclóricas (FERRETTI, S., 1995, p. 168).
Na Casa das Minas, como dito anteriormente, há uma relação entre as entidades e
a festa do Divino, inclusive a possibilidade de haver dança dos voduns.
Por ocasião dos festejos é comum a vinda de alguns voduns, como Sepazim, Daco,
Doçu, Bedigá e outros, no buscamento, no levantamento, no dia da festa e no
encerramento. Eles usam toalha, mas não danças. Antigamente, num dos dias da
festa tinha tambor e toque, com dança de voduns. (FERRETI, S., 2009, p. 171)

O local seria marcado com um mastro, um dos símbolos da festa e posto na frente
da casa da requerente, próximo ao Sítio Dois Leões, no antigo caminho grande e marco do
fim da área urbana da cidade no final do século XIX (AMARAL, 2003, p. 69). No mapa
abaixo há uma projeção do que era considerado o Caminho Grande e a possível localização do
Sítio Dois Leões
158

Mapa 8 Projeção do Caminho Grande (Mapoteca APEM)

A festa seria em pagamento de um voto (promessa) feito por Maria Rosa ao


Divino e que por conta disso deveria fazer a festividade naquele ano. Pela forma específica
como se referiu e como não há outros documentos é provável que a festa não tenha se
realizado outros anos. Outro ponto que chama atenção é o despacho do Chefe de Polícia, que
limitava o toque de caixas apenas da Estação do Bonde para cima, ou seja, somente na área
externa a “circunscrição urbana” da cidade.
A festa se localizava em uma área de sítios e chácaras, distante do centro urbano e
pouco povoada, dessa forma não haveria tantas preocupações com o distúrbio que o toque de
caixas provocava, diferente dos demais despachos para festas que estavam dentro da cidade,
quando o chefe de polícia proibia toque de caixas na rua e somente dentro das casas não
excedendo o limite das dez horas da noite.
O último PLF que relaciona Festa do Divino e Terreiros é de Severa Soeiro, que
solicita permissão para “festejar o divino Espirito Santo em Caza de sua residencia” no dia 10
159

de maio de 1910. No pedido, Vó Severa indica que naquele ano a festa foi realizada de 21 a
24 de maio e nos dias 17, 18, 23, 24, 25, 28, 29 e 30 do mês de junho correspondente às festas
do meio do ano dos Terreiros de Tambor de Mina. Neste caso a festa poderia ter sido
realizada de forma conjunta ou a requerente aproveitou um pedido para solicitar licença
contemplando duas festas diferentes.
Os PLF e os respectivos despachos da Chefatura de Polícia permitem pensar uma
lógica de ocupação e organização do espaço urbano pelos diferentes grupos sociais. As
limitações impostas aos espaços em que a festa ou parte desta poderiam ocorrer reforçam os
traços da divisão entre as camadas ricas e pobres da população e a sempre presente tentativa
de civilizar, moralizar e organizar a cidade e a sua gente.
As caixas, instrumentos sonoros que acompanham musicas e orações, são marcas
características das festas demarcam sonoramente essa manifestação do catolicismo popular. O
ato de tocar caixa era o que mais incomodava e preocupava as autoridades, já que eram
recorrentes as interdições aos toques na rua. Os cortejos ou a prática de angariar donativos
não poderiam ser acompanhados de toque de caixas e talvez por isso o desenhista do jornal A
Flecha não tenha desenhado uma representante da festa com uma caixa, já que os batuques
eram proibidos pelo Código de Posturas da Câmara desde 1842.
As matérias de jornais sobre a Festa do Divino Espírito Santo podem ser divididas
em tipos:
a) Convites e Anúncios:
Por ocasião da festa muitas companhias de barcos a vapor anunciavam viagens
especiais para as cidades e vilas do interior onde as festas eram realizadas. São Bento,
Rosário, Cururupu e Alcântara são as mais recorrentes entre os anúncios publicados. Alguns
anúncios também continham informações sobre estadia e também sobre a festa, que muitas
vezes recebia elogios por sua pompa e organização.
160

Imagem 21 Vapores e os respectivos locais de festa. Fonte: Diário do Maranhão

Alguns jornais publicavam convites recebidos ou mesmo a pedido dos festeiros


como o que segue transcrito abaixo.
Da exma. Sra. D. Anna Leonor Fernandes Bogéa, encarregada da festa, e do Sr.
Leonel Fernandes Cogéa (sic) seu esposo, residente na Victória do Baixo Mearim,
recebemos delicada carta de convite para a festa do Divino Espírito Santo, que vai
ali ser celebrada com toda pompa.
Começará no dia 23 de Julho com a elevação do mastro, e terminará a 3ª e ultima
missa, a grande instrumental.
Somos gratos á gentileza e atencioso convite. (DMA, 14/06/1901)

Demais convites eram relativos a outras festas ou a momentos da festa, como a


missa, ladainhas ou almoços. Esse tipo de matéria jornalista fornece alguns dados para se
pensar um pouco sobre as comemorações do Divino Espírito Santo, mas não especificamente
sobre as festas em terreiros ou sobre as opiniões correntes na cidade sobre as mesmas, já que
boa parte desses anúncios era pago pelos festeiros como forma de divulgação, como o que
segue abaixo
Festa do Divino Espirito Santo
Convido a todos os imãos desta devoção que tenhão a bondade de enviar ao Becco
do Seminario casa n. 17, onde reside a encarregada Maria Caias, as joias para os
festejos, visto esta festividade ter lugar no dia 17 de Junho vindouro.
O programma será annunciado antecipadamente.
(PCT, 02/06/1900)

b) Informes sobre a festa.


Tanto o jornal Pacotilha quanto o Diário de Maranhão publicavam informações
sobre o Divino, datas, locais e principalmente as missas que eram rezadas por conta das
festas. Estes informes eram pequenos, em sua maioria contendo apenas três ou quatro linhas e
sem título.
161

Imagem 22 Festa do Divino Espírito Santo (DMA 18/05/1898)

O feriado católico marca o início da Festa do Divino, o que não quer dizer que era
uma festa da Igreja. Embora realizada tendo como referências o catolicismo a festa era “pouco
ortodoxa” reunindo diversos elementos, como tambores e cantos, que não estavam de acordo
com uma conduta ou devoção católica aos olhares das autoridades religiosas e de parte da
população, sendo por isso considerada “profana” pela instituição religiosa, que por muito
tempo criticou e combateu a heterodoxia religiosa de forma aberta e ainda hoje busca
reformar uma série de hábitos religiosos que divergem da doutrina católica.
Algumas das proibições e limites impostos pela polícia no começo do século XX
continuaram por muito tempo, ainda se baseando na relação com a perturbação do sossego
público ou afronta aos ideais de moral social. Moradores antigos do centro da cidade e que
conheciam ou participavam da festa contam que durante os cortejos o toque de caixas era
suspenso quando se passava em frente a uma igreja e as vezes atraindo olhares de reprovação.
As caixas não podiam entrar nas Igrejas e eram deixadas do lado de fora enquanto
ocorria a missa (imagem seguinte). Muito embora não fossem tocadas durante a missa, a
interdição colocava limites na utilização dos elementos considerados profanos e que não
deveriam estar presentes em momentos sagrados da vida religiosa católica. As caixas só
voltavam a serem tocadas durante o cortejo em direção ao local da festa.
162

Imagem 23 Caixas do lado de fora da igreja (MAD)

c) Matérias sobre a festa.


A diferença entre os informes e as matérias eram o tamanho e o conteúdo. As
matérias eram tipos de publicação quase sempre dedicados à crítica das festas ou a questões
envolvendo figuras públicas. Em 1900 uma matéria da Pacotilha informa que o sr. João Costa
ao invés de estar exercendo as suas funções de governador e trabalhando para evitar uma nova
epidemia da peste “divertia-se ‘a tripa forra’ no Rosario” ou esperando talvez do Divino
Espírito Santo “com que se tenha ‘pegado’, o milagre da nossa salvação”.
O jornal Pacotilha sempre apresentava um teor político em suas publicações,
criticando a ação de governadores, intendentes municipais e outras autoridades no exercício
de sua função. Nada escapava aos olhos e ouvidos dos redatores sempre prontos a tecer
críticas e assim não foi diferente com a ausência do governador do estado em um momento
crítico relativo à saúde pública, finalizando assim a matéria.
163

Para mim, porém, o melhor de tudo isto é o serio com que a gente da <<Pacotilha>>,
sem desconfiar que estava pregando no deserto, se tem dirigido ao governo,
lembrando medidas prestando-lhe emfim, mão forte e amiga.
Não é que a censuremos por isso; longe de nós tal pensamento; a gravidade do
momento não comportaria proceder diverso.
Mas chega a ser de um comico a toda prova esses conselhos supplices – para salvar
uma população inteira! – atirados ao vento, quando aos ouvidos do governador só
chegara o plan rataplan plan dos tambores do Divino! (PCT, 06/06/1900)

Segundo o jornal, o governador poderia até pedir um milagre, mas não confiava
muito que isso fosse resolver a situação, visto que o correto era estar ouvindo os pedidos da
população que sofria constantemente com a falta de serviços públicos e não o som das caixas
do divino, que parecia incomodar mais do que qualquer outro elemento da festa.
Ao que parece, as caixeiras do divino não obedeciam aos ditames da Chefatura de
Polícia com relação ao toque de seus instrumentos. O “plan rataplan plan” incomodava
moradores que reclamavam de ter que “suportar” o barulho que vinha das ruas e festas. Em 24
de maio de 1910 uma longa matéria do Diário do Maranhão criticava o som característico da
festa.
Poderá haver couza mais detestável do que o batido descadenciado e sem harmonia
das caixas acompanhado do cantarolar dezajeitado com que, entre nós é festejado o
Divino Espírito Santo?
Haverá ouvido que se conforme com essa algazarra infernal que livremente percorre
as nossas ruas?
É impossível: nem mesmo as pessoas mais chegadas á relijião podem suportal-a,
penso.
Não condeno a festa, absolutamente não a reprovo, mas o que não posso é ouvir essa
cantilena choroza sem que tenha dezejo irrezistivel de furar todos os tambores e
calar a boca clangoroza das festeiras.
Nem temos o direito de estar tranquilos em nossa casa ás vezes quando, mais que
nunca, precizamos do silencio?! (DMA, 24/05/1910).

O autor do texto (não identificado) afirmava que não era contra a festa, mas contra
o som das caixas que, segundo ele, incomodavam ao passar livremente pelas ruas da cidade,
sendo impossível de suportar, mesmo pelas pessoas mais chegadas à religião. Ao expor a sua
opinião o autor busca generalizar para não se mostrar como único incomodado, em uma
tentativa de “falar pelos outros” a partir de fatos que giram em torno de suas experiências com
as caixeiras.
Passava ontem por uma das nossas melhores ruas, quando ouvi ao longe o alvoroço
dos tambores, entremeiado pela mais que infame voz de uma festeira que tentava
com os seus improvizados versos, fazer dezaparecer a humanidade, ou, quem sabe,
calar alguma creança manhoza que lá estrebuxava em gritos, aterrorizando-a.
E era tal a melodia desse concerto que eu, completamente alheio, como sou á
materia de canto, me senti aterrorizado. Vinha-me aos ouvidos a sensação de coaxar
de mil rãs confuzamente com o som que obtemos batendo noutras tantas latas
velhas. (DMA, 24/05/1910).
164

Ao dizer que passava por uma das melhores ruas da cidade ou autor deixa claro
que havia uma divisão dos espaços urbanos e era inadmissível que nos melhores espaços da
cidade fosse possível encontrar esse tipo de costume “antigo, que de nenhum modo lustram o
nosso orgulho de civilizados”. Era permitido então que tais costumes ocorressem nas piores
ruas, por onde não passavam outras pessoas que não aquelas acostumadas ou que também
participavam desse tipo de “algazarra”.
Em nome da civilização o autor defende que estes costumes sejam reformados,
evitando-se as caixeiras nas ruas ou restritas aos espaços em que não incomodem.
Para o estrangeiro que vizita qualquer uma de nossas cidades não pode haver peor
impressão que a cauzada por um desses atrazados festejos, mais próprio para as
região (sic) do Congo do que para o Maranhão, que goza do melhor conceito pela
sua civilização. (DMA, 24/05/1910).

A ligação com a África aparece como argumento contundente para uma reforma
nas estruturas sociais e para que o status de civilizado fosse mantido, assim a África aparece
como parte desse conteúdo ou herança etno-cultural negativa.
Portanto, mãos a obra.
Parte desta tarefa compete, na minha fraca opinião, á igreja e a outra a quem de
dever.
Que dentro de pouco tempo possamos gozar os deleites do sono da madrugada e ter
os ouvidos livres do rufo duradouro dos tambores festivos. (DMA, 24/05/1910).

O autor propõe uma reforma da Festa do Divino, tanto em sua estrutura simbólica
e ritual como na sua ocupação dos lugares públicos, mostrando que a reforma cultural
perpassava pela organização ou definição dos espaços urbanos.
Gostaria de cunhar a expressão “reforma da cultura popular” para descrever a
tentativa sistemática por parte de algumas pessoas cultas (daqui por diante referidas
como “os reformadores” ou “os devotos”) de modificar as atitudes e valores do
restante da população ou, como costumavam dizer os vitorianos, “aperfeiçoá-la”.
(GINZBURG, 2010, p. 280).

É possível falar em reforma da cultura popular, já que de certo modo o autor


conseguiu resumir em algumas linhas um tipo de projeto ou crítica visando imprimir
mudanças na estrutura das formas de expressão da religiosidade e da cultura em geral das
camadas populares ao serem conduzidas tanto pelo poder público civil quanto pela Igreja
Católica.
Os reformadores objetavam particularmente contra certas formas de religião
popular, como as peças de milagres ou mistérios, sermões populares e, acima de
tudo, festas religiosas como os dias de santos e peregrinações. Também objetavam
contra inúmeros itens da cultura popular secular. (GINZBURG, 2010, p. 281)

A festa em si levava ainda a outros problemas segundo o autor.


165

Não raras são as vezes em que nestas festas, onde o alcool corre com profuzão,
regando a guela seca das cantoras e convivas aparecem os disturbios, de onde saem
muitos para o hospital ou para o cemiterio.
No interior ha o arraigado habito do mastro, que já tem esmigalhado craneos na sua
queda vertijinoza. (DMA, 24/05/1910).

Reunindo então uma série de elementos negativos em uma única festa nada mais
normal do que buscar modificá-la em busca da manutenção da própria organização da
sociedade de maneira mais ampla e não unicamente daqueles que participavam das
brincadeiras populares, possuindo assim um sentido moral.
A segunda grande objeção à cultura popular tradicional era moral. As festas eram
denunciadas como ocasiões de pecado mais particularmente de embriaguez,
glutonaria e luxuria, estimulando a submissão ao mundo, à carne e ao demônio –
especialmente à carne. Não escapava aos devotos que o mastro de Maio era um
símbolo fálico, As peças, cantigas e, sobretudo, as danças eram condenadas por
despertar emoções perigosas e incitar à fornicação. (GINZBURG, 2010, p. 286).

Não eram somente as caixas que incomodavam. O mastro, um dos símbolos


centrais da festa, além de todo o simbolismo que o envolve, possibilita a identificação dos
espaços sagrados onde as comemorações acontecem. O mastro do divino era assim um dos
elementos que marcava, no contexto da cidade e de seus gestores, o espaço do profano, do
bárbaro, do feio, da bebedeira e imoralidades e identificava, ao pontear o solo ludovicense, os
focos de resistência ao projeto civilizador.
O Mastro é um dos principais símbolos da Festa. Trata-se de um tronco de árvore,
sem galhos, que geralmente mede de 6 a 7 metros de altura. É previamente coletado
pelo doador em pagamento de promessa e levado para uma casa próxima. Sua busca
constitui um ritual predominantemente masculino, cumprido, por “amigos da casa”
que se reúnem para carregá-lo, ocasião em que não faltam bebidas alcoólicas e
brincadeiras de conotação erótica. (CARVALHO, 2010, p. 11).

A Festa do Divino congregava elementos negativos aos olhos dos grupos


dominantes. Era, ao mesmo tempo, expressão do catolicismo popular – reunindo toda a
heterodoxia religiosa combatida pela igreja – e um batuque de negros – proibidos pelas
posturas municipais desde o ano de 1842. Pelo conjunto de rituais e símbolos a festa assumia
um caráter profanador não só da religião católica – que não sendo oficial era aquela
socialmente aceita – e das normas e morais da sociedade.
Caso não fosse assim a festa não estaria entre os objetos de licenças policiais e
nem recebendo críticas nos jornais, como era no caso dos rituais católicos. As interdições da
polícia e a própria licença oficial para uma festa eram os símbolos de distinção entre a
devoção que era aceita e permitida no espaço público e aquela que não era.
166

6. PAJELANÇA

O principal objetivo desta pesquisa, pensado ainda na elaboração do projeto, era


compreender o Tambor de Mina em São Luís na virada do século XIX, a partir do período
pós-abolição, quando aparentemente maiores liberdades foram dadas a população negro-
mestiça. Não foi previsto nesse mesmo projeto a consulta aos periódicos, visto que a
Biblioteca Pública Benedito Leite, responsável pelo arquivamento dos jornais estava fechada
impossibilitando assim a pesquisa.
Com a disponibilização dos periódicos digitalizados por meio de projeto da
Biblioteca Nacional surgiu a opção de pesquisar nos periódicos maranhenses, alguns destes já
destacados anteriormente, como Pacotilha, o Diário do Maranhão e a Campanha. No entanto
as referências encontradas sobre as religiões afro-brasileiras restringiram-se em sua quase
totalidade à pajelança, ou pagelança, como aparece nos jornais.
A origem da pajelança é atribuída aos rituais xamânicos dos índios da região entre
os estados do Maranhão e Pará. De fato os elementos indígenas se fazem presentes a todo
momento nos rituais, como os maracás, penas e outros. Claude d’Abbeville, missionário
capuchinho francês, faz referência aos rituais indígenas a partir de seu contato com as
populações nativas em 1612.
Estes curandeiros, convem saber, são embusteiros de que se serve o Diabo para ter
os Indios sempre superticiosos. São muito estimados pelos barbaros, que n'elles
muito cree. Dão-lhes o nome de Pagés <<Curandeiro ou Feiticeiro.>>
Predizem a fertilidade e a seccura da terra, e promettem muitas chuvas e todos os
bens, e fizeram persuadir ao povo que quando soprem n'um lugar doente,
desapparece a dor, e por isso quando adoecem os Indios são elles procurados, e
conhecendo o lugar do soffrimento principiam os taes Pagés a soprar, e pondo a
bocca no logar fingem chupar o mal, e depois escarram-no, e fica bom o doente.
As vezes escondem na mão alguns ossos, pedras e pedaços de pau ou de ferro, e
depois de haverem chupado o logar, mostram estas coisas, e persuadem ao doente
havel-as tirado d'ahi.
Assim se curam por imaginação, superstição ou arte diabolica.
(ABBEVILLE, 1874, p 374-375).73

Entre os anos de 1613 e 1614 o padre Yves d’Évreux descreveu uma cerimônia de
cura realizada por índios no Maranhão.

73
Os trechos em que o missionário critica os rituais, acusando-os de supertições e influências demoníacas,
fornecem meios para que os leitores compreendessem do que se tratava a ação dos pajés. Essa compreensão
acompanhou e ainda acompanha boa parte da sociedade brasileira que partilha das ideias cristãs sobre a atuação
de pajés, curadores e pais de santo.
167

Estes bafejos lhes são muito particulares, com cerimonia necessaria para curar os
infermos, porque vós os vedes puchar pela bocca, como podem, o mal, dizem elles,
do paciente, fazendo-o passar para a bocca e a garganta d'elle inchando muito as
bochechas, e deixando d'ellas sahir de um so jacto o vento ahi contido, causando
estampido igual ao de um tiro de pistola, e escarrando com grande força dizendo ser
o mal, que haviam chupado, e fazendo acreditar ao doente.
A este respeito o Sr. de Pezieux e eu passamos um dia alegre na aldeia de Vsaap.
Um pobre moço selvagem estava atacado pela colica do pais.
Veio um d'estes feiticeiros exercer sua attração de espirito sobre o seo ventre,
fazendo muitos tregeitos, e retrahindo-se por diversas vezes vendo-nos prestar-lhe
muita attenção, e apesar de tudo isto o doente continuava a gritar. Veio o feiticeiro
depois procurar-nos e mostrando-nos dois outros pregos nos disse - <<eis, o que lhe
tirei do ventre, cujos intestinos estão cheios d'isto, é preciso tiral-os um por um. Si
eu não os tirasse todos, lhe vravariam as tripas e a garganta.>> (Evreux, 1874, p.
273-274).

O padre não cita pajés ou pajelança neste trecho, muito embora em outras
passagens do livro afirme que os pajés são referidos como responsáveis pelo contato com os
espíritos e oficiantes de outros rituais. Essa é a mesma descrição utilizada por Alfred Métraux
ao falar do tratamento das moléstias entre os Tupinambás e da ação do feiticeiro.
Como todas as moléstias eram causadas por sortilégio, cabia aos feiticeiros o seu
tratamento. Os mesmos conduziam-se exatamente como os médicos-feiticeiros em
geral das regiões equatoriais, da América do Sul, começando por soprar
energicamente o doente, fumigá-lo e em seguida, enfim, “sugar a parte molesta para
extrair-lhe o mal”. (MÉTREAUX, 1979, p. 80 - grifo meu).

Assim fica claro que a ritualística indígena é a matriz da pajelança que se conhece
atualmente, mas que não é realizada por pajés indígenas. Octávio da Costa Eduardo afirma
que os elementos da ritualística indígena foram tomados “emprestados” pelos curadores.
Some curadores engage in the pagelança [sic] dances of Indian origin, this being the
outstanding activity which gives them their name. During the pagelança dances,
which are held outside the city, the pagé is, as mentioned, possessed by an Indian
spirit. Under this state of possession he cures a client by taking from his body, as in
the interior, a small object, a thorn, a needle, fish scales, or a small animal, often a
lizard, placed in him by black magic. The dance in which these practitioners engage
reproduces with very slight changes shamanistic dances among the autochtonous
Indians. (EDUARDO, 1948, p. 102).74

Essa noção de empréstimo é indicativa de que o contato cultural entre as


populações de origem étnicas distintas proporcionou o desenvolvimento de uma pajelança não
indígena, difundida na região Maranhão-Pará. Ruth e Seth Leacock (1975), ao falar dos
batuques em Belém, afirmam que o ritual de cura dessa manifestação religiosa é idêntico à
pajelança. Os autores consideram que há uma distinção entre a pajelança indígena e a cura no

74
Alguns curadores se envolveram nas danças de pagelança originárias dos índios, sendo esta a atividade
excepcional que lhes dá o seu nome. Durante as danças de pagelança, que são realizadas fora da cidade, o pagé,
como é mencionado, é possuído por um espírito indígena. Sob este estado de possessão, ele cura um cliente,
como se tirando do interior de seu corpo, um pequeno objeto, um espinho, uma agulha, escamas de peixe, ou de
um pequeno animal, muitas vezes, um lagarto, colocada nele por magia negra. A dança em que estes praticantes
se envolvem reproduz com ligeiras alterações danças xamânicas entre os índios autóctones. (Tradução livre).
168

batuque (religião afro-brasileira) e que os africanos e seus descendentes tomaram emprestados


elementos do ritual indígena.
Batuque curing is in all essential respects identical with pajelança, the shamanistic
tradition that has thrived in the Amazon Basin since the arrival of the first
Europeans. Pajelança developed when curers among the European colonist
borrowed a number of ideas and procedures from the indigenous Indian shamans,
especially those of the Tupí-speaking tribes. (LEACOCK e LEACOCK, 1975, p.
251).75

Nicolau Parés (2011) fala de uma pajelança pelo menos em três níveis, uma
pajelança indígena, uma cabocla – derivada do ritual indígena e com elementos do
catolicismo popular ibérico – e uma terceira pajelança, mais difundida no caso do Maranhão e
especificamente de São Luís, que teria sido formada a partir da apropriação da pajelança
cabocla pelos negros. Esse processo de apropriação teria sido facilitado pela convergência de
crenças e rituais, como explica o autor.
[...] podemos concluir que a pajelança cabocla, derivada da pajelança indígena, foi
progressivamente apropriada pelos africanos e crioulos e que o processo de
caboclização e crioulização foi favorecido pelo grande número de convergências
existentes entre as tradições tupi-cablocas e as africanas, especialmente no que diz
respeito à ideologia da cura e da feitiçaria. (PARÉS, 2011, p. 125).

Uma definição da pajelança para o passado só pode ser pensada com base em
análises de informações obtidas do período estudado, mas com as restrições ao acesso a
informações sobre a pajelança no século XIX e início do XX talvez não seja possível propor
uma definição e sim descrever e caracterizar a partir daquilo que é dito nos jornais e ainda
assim sem a possibilidade de generalizações, já que há inúmeras variações dentro desse
complexo cultural, como informa Didier de Laveleye.
A "pajelança" refere-se a um conjunto de práticas e rituais e de representações da
natureza e do corpo, típica das populações amazônicas, aplicada principalmente
pelos pajés na cura das doenças e aflições. Habitualmente considera-se, em
Antropologia, que um tal "conjunto" (de ritos e mitos) enraíza-se na cultura de cada
povo. Existem, assim, tantas pajelanças quanto povos diferentes existem no Norte do
Brasil, tanto nas sociedades indígenas quanto no mundo "caboclo" ou camponês. [...]
Assim, uma característica geral da pajelança está nessa flexibilidade cultural,
permitindo uma importante heterogeneidade de conjuntos rituais e míticos, e uma
larga distribuição em todo o espaço social. (LAVELEYE, 2008, p. 113).

A etno-história poderia fornecer importantes elementos para a compreensão das


religiões acusadas de feitiçaria (GINZBURG, 1991) a partir da analogia do inquisidor como
antropólogo e de seu trabalho com os arquivos da inquisição que poderiam fornecer muito
mais informações do que apenas a lógica da repressão.

75
A cura no Batuque é idêntica à pajelança em todos os aspectos essenciais, a tradição xamânica que tem
prosperado na Bacia Amazônica desde a chegada dos primeiros europeus. Pajelança desenvolveu-se quando
curandeiros entre o colono europeu tomou emprestado uma série de ideias e procedimentos dos índios xamãs
indígenas, especialmente aqueles das tribos de língua Tupi. (Tradução livre).
169

A bruxaria passou da periferia para o centro das questões históricas <<válidas>>


(para não dizer em voga). Trata-se apenas de um sintoma de uma tendência agora
comum entre os historiadores, mas já sentida, há bastantes anos, por Momigliano:
estudar determinados grupos sociais ou sexuais, como por exemplo, os camponeses
ou as mulheres, deficientemente representados naquilo a que podemos chamar as
fontes <<oficiais>>. Os <<arquivos da repressão>> dão-nos certamente informação
preciosa sobre esse tipo de pessoas. De qualquer maneira, a relevância que a
feitiçaria nesta perspectiva pode ter deve estar ligada a um fenômeno mais preciso
(mesmo se correlacionado) que é a influência crescente da antropologia sobre a
história. (GINZBURG, 1991, p. 205).

Burke chama atenção para a “distorção” da realidade por meio daquele que a
narra.
A cultura popular dos inícios da Europa moderna é esquiva. Ela escapa do
historiador porque ele é um homem moderno letrado e autoconsciente, que pode
achar difícil entender pessoas diferentes dele próprio, e também porque os indícios a
respeito de suas atitudes e valores, esperanças e temores são fragmentários. [...]
Queremos saber sobre apresentações artísticas, mas o que sobrevive são textos;
queremos ver essas apresentações através dos olhos dos artesãos e camponeses, mas
somos obrigados a enxergá-las com os olhos de forasteiros letrados. (BURKE, 2010,
p. 101).

Conseguir trabalhar com a “distorção”76 das informações presentes nos


documentos, permite a utilização de certas informações como elementos para uma
caracterização mais sistemática da pajelança pressupõe decifrar os códigos utilizados para
caracterizar determinado fato ou acontecimento no passado. É isso que Carlo Ginzburg
propõe ao falar das pistas e de suas interpretações ao trabalhar com o paradigma indiciário e o
que Serge Gruzinski alerta ao se trabalhar com informações modeladas a partir de uma
relação entre culturas diferentes.
Sem pretender que se tenha contornado o obstáculo das filtragens e das
interferências, talvez seja possível, ao contrário, valer-se delas. Com duas condições.
A primeira é reter como objeto de estudo as inflexões e até as distorções que os
índios produziram em suas formulações para corresponder às exigências espanholas,
em vez de enveredar pela busca sistemática de material pré-hispânico. A segunda,
correlata da primeira, é aceitar que a investigação espanhola não se reduzia a um
jogo mais ou menos complicado de perguntas e respostas. Nela se desenvolviam
também enfrentamentos, tão sutis e tão subterrâneos que escapavam ao conjunto dos
protagonistas. Pois a investigação ao mesmo tempo requisitava informações, que os
índios podiam dar ou não, e impunham um conceito de saber que talvez não fosse o
que os índios privilegiavam. (GRUZINSKI, 2003, p. 117).

A pajelança aparece na documentação em situações de denúncia e a partir da visão


ajustada à religião católica, aos ideais de civilização e ao combate às expressões culturais da
população pobre. É necessário compreender em que termos a mediação cultural foi se
processando ao seja, a partir de que representações sociais, culturais e econômicas, como

76
A noção de distorção trabalhada pelo autor não faz referência a uma falseabilidade do documento e sim à
interpretação das informações e a reprodução dos ideais e referências de quem o escreveu.
170

destaca Robert Darnton: “Para penetrar nessa consciência, precisamos concentrar-nos mais
nos modos de descrever do que nos objetos descritos” (DARNTON, 1986, p. 144).
E somente a partir do conhecimento dessas “formas de ler o mundo” que seria
possível utilizar as matérias dos jornais para conhecer a pajelança sem o risco de falar
somente da perseguição, reafirmar as ideias correntes na época ou mesmo excluir as
possibilidades de trabalhar com fontes que são aparentemente contaminadas pela distorção do
olhar de quem narra.
Para se pensar essa pajelança também foi necessário utilizar a ferramenta da
análise regressiva, da qual faz referência Peter Burke.
Para evitar mal-entendidos, gostaria de dizer logo o que não é o método regressivo.
Ele não consiste em pegar descrições de situações relativamente recentes e supor
despreocupadamente que elas se aplicam da mesma forma a períodos anteriores. O
que defendo é antes um uso mais indireto do material moderno, para criticar ou
interpretar as fontes documentais. Ele é particularmente útil para sugerir ligações
entre elementos que podem ser documentados para o período de estudo ou para dar
sentido a descrições que são tão alusivas ou elípticas que por si sós não fazem
sentido. (BURKE, 2010, p. 123).

O Pajé do século XIX é um agente religioso da cura e da interferência imediata no


cotidiano. Suas ações terapêuticas estavam direcionadas a atenuar problemas cotidianos da
população, nesse sentido a cura passa a ter um sentido mais amplo, pois acaba englobando
não só os problemas fisiológicos, mas também de outras ordens. Segundo Gustavo Pacheco.
A pajelança maranhense pode ser definida como um conjunto heterogêneo de
práticas e representações que reúne elementos do catolicismo popular, das culturas
indígenas, do tambor de mina, da medicina rústica e de outros componentes da
cultura e da religiosidade populares do Maranhão. Caracteriza-se, entre outros
aspectos, pela ênfase no tratamento de doenças e perturbações, por um transe de
possessão característico, com “passagem” de diversas entidades espirituais em uma
mesma sessão, e pela presença de certas práticas como o uso de tabaco e outras
substâncias para defumação. Esses elementos associam a cura ou pajelança
maranhense a outras manifestações encontradas no Norte e no Nordeste brasileiros,
como o catimbó, a jurema, o toré e especialmente a pajelança cabocla encontrada em
diversas regiões da Amazônia e descrita, entre outros, por Eduardo Galvão (1975) e
Heraldo Maués (1990). (PACHECO, 2004, p. 3-4)

Por essa razão não é possível dispensar a definição de Gustavo Pacheco, pois se
torna útil para dar sentido ao que Burke chama de “descrições elípticas”, como será visto no
decorrer das análises em que serão usados vários referenciais contemporâneos para situar os
elementos rituais e simbólicos da pajelança no recorte estudado. As notícias dos jornais
associam o pajé a outras atividades que não só curar doenças, como informa o jornal Pacotilha
ao comparar a pajelança à medicina, sendo esta última limitada em relação a primeira ou nos
termos do redator da notícia: “A pagelança tem outras virtudes: - dá e tira uma fortuna, arranja
e desmancha amisades, faz apparecer as cousas perdidas e...”.
171

Os três pontos no final da matéria servem para complementar a ideia de que a


pajelança fazia muito mais que a medicina, que estava estacionada, conforme a matéria que
segue abaixo.
Ao passo que a sciencia medica conserva-se entre nós estacionaria, limitando-se ao
simples expediente do receituario aconselhado pela experiencia e os mestres, a
pagelança vae operando factos maravilhosos e registrando nos seus anaes curas
estupendas, capazes de causar assombro a uma academia de doutores, ainda os mais
sabios.
E tudo isto sem gastar annos e mais annos em faculdades, sem queimar as pestanas
sobre efadonos (sic) livros, nem pesquisar segredos da natureza; naturalmente,
assombrosamente, com o axílio unicamente de meia duzia de palavras mysterioras,
algumas bensidellas e outras tantas defumações etc. (PCT, 11/07/1890).

Para além da discussão acerca de uma medicina oficial e outra ilegal fica claro
que pajés e médicos disputavam o mesmo espaço, muito embora os agentes ilegais
oferecessem uma gama maior de serviços. A matéria pode ser interpretada de duas formas
completamente diferentes, mas não excludentes. A primeira é que se constitui uma crítica à
pajelança que por meio de certas práticas não convencionais promete a cura e a resolução de
problemas cotidianos.
A pajelança sempre era criticada nos jornais, principalmente por meio da
descrição de seus rituais como o caso que narram na mesma matéria.
Mas no caso que vamos relatar não entra esta especie de pagelança. É um facto real,
de pura sciencia. N'este negocio entra somente a pagelança-medica, essa que desde
tempos immemoriaes cose carne-aberta e nervo-torto, com pasmo e inveja do mundo
sabio, fazendo as vezes canceiras à policia com sua intuição inimiga da sciencia do
fundo.
Eis o caso, fresquinho, tal qual nos chegou ao conhecimento:
Norberto, carreiro, sentido o corpo adoentado, cheio de dores de cabeça, recolheu-se
á casa disposto à entrar em remedios, porem consultando conhecidos, gente de sua
feição, entre ellas uma tal Eugenia e sua companheira, todos foram de parecer que a
doença era obra de mondongo e disseram sentenciosamente:
- É feitiço, home de Deus; você está enfeitiçado.
O misero sentiu candeias na vista ao ouvir tão peremptoria revelação e, cabisbaixo,
descoroçoado, julgou-se cahir das nuvens; e pediu, então, que o livraseem de
semelhante mal; que o puzessem bom. E condoidos metteram mão á empreitada de
curar o doente, que nesse mesmo dia foi submettido as amarguras de certas
beberagens e as acres exhalações de insupportaveis defumadores.
Resignadamente, cheio de fé, exhortado constantemente por Eugenia, Norberto ha
cerca de um mez supporta tudo quanto a estupidez de sua alma acceita das mãos
criminosas das suas curandeiras.
Ante-hontem alguns amigos foram-n'o visitar e encontrando magro, cadaverico,
bestificado, quizeram chamar um medico.
-Não; não! atalharam as de casa.
O que elle tem, doutor não cura.
E Eugenia, para dar todo o cunho de verdade á affirmativa, foi apressada buscar um
embrulho, e, apresentando-o aos circumstantes, disse:
- Vejam; isto com umas defumações que so está fazendo sahiu hontem à noite da
cabeça delle.
E desenrolando o panno deixou ver uma cobra de duas cabeças, uma ratazana morta,
unhas de bizouro, espinhas de peixe e outras miudezas.
- Isto é impossivel, disseram os amigos de Norberto.
172

- Impossivel! oras quaes! Não é com essa; bradaram as curandeiras. Todo mundo já
veio aqui ver e està ahi p'ra quem quizer examinar.
E Norberto, animalisado, garantiu por sua sua vez aos amigos que tudo era certo.
Aquelles bichos sahiram do seu corpo.
E ninguém ousou convencel-o do contrario.
Aqui fica estampado o caso em mais pormenores.
Quem duvidar da sciencia de Eugenia e suas companheiras, procure-as no Becco do
Monteiro, que é onde se esta passando este acontecimento tão maravilhoso.
A policia também pode ir.
A entrada lhe será franca, supomos.
(PCT, 11/07/1890).

Norberto estava se curando de feitiço, mal diagnosticado pelos seus conhecidos


que indicaram o tratamento com as curandeiras, apresentadas como sinônimos pajés, e que
por conta disso suportava o tratamento feito por meio de garrafadas (beberagens) e
defumações que eram praticadas, como a retirada de cabeças de cobra, unhas de besouro,
espinhas de peixe, uma ratazana morta e outros objetos que foram retirados da cabeça do
paciente.
Diversos autores (Hambly 1934; Turner 1968; Janzen 1978) tem identificado, em
várias partes da África central, a técnica terapêutica da que consiste na aplicação no
corpo do paciente, de chifres que atuam como ventosas (cupping-horn technique).
Entre os cokwes no nordeste de Angola, por exemplo, quando o adivinho (tahi)
diagnostica uma pessoa com possuída por um ancestral enfurecido (hamba), o
curador (mbuke) é responsável pelo exorcismo. Do mesmo modo que na pajelança,
o agente patogênico extraído do corpo é materializado simbolicamente na forma de
um dente ou algum outro elemento. [...] O uso, na África central, da técnica do
chifre como ventosa corresponde a técnica do chupar com a boca praticada pelo
pajé. As duas se baseiam no princípio da sucção como método para a extração do
objeto simbólico que representa a doença. (PARÉS, 2011, p. 120).

São esses objetos que representam o mal ao qual a pessoa está acometida e que
por sua origem espiritual não poderiam ser tratados pelo médico comum, como asseveraram
as curandeiras.
Embora seja de uso corrente o reconhecimento de um domínio específico para a
atividade do pajé - ou seja, perturbações que só ele pode tratar - sua esfera de ação
não se limita a este domínio, mas estende-se sobre uma área muito ampla e nem
sempre incompatível com a esfera de ação dos médicos. (PACHECO, 2004, p. 152)

A questão toda era assim perpassada pela disputa entre conhecimentos e técnicas
diferentes. Ambos defendiam as suas habilidades ao mesmo tempo em que criticavam e
excluíam do outro o domínio dos meios de cura dos demais. Configurando assim o que até
hoje se conhece como a distinção entre os problemas do domínio do pajé e de domínio dos
médicos.
Contrariamente às ideias correntes no meio médico e, em geral, entre “as pessoas
esclarecidas”, ou seja, essencialmente nas classes superiores e numa parte das
classes médias, que veem na procura do curandeiro o resultado de uma “mentalidade
mágica” e de uma atração irracional pelo obscuro e o misterioso, parece que um dos
principais méritos que os membros das classes populares reconhecem ao curandeiro,
reside, principalmente, no fato de que ele explica ao doente a doença que ele sofre.
173

Além disso, o curandeiro utiliza uma linguagem imediatamente acessível aos


membros das classes populares e fornece explicações que contêm representações da
doença que despertam alguma coisa no espírito dos membros das classes baixas: as
representações da doença que o curandeiro tem, são efetivamente próxima das
representações latentes das classes populares, sendo as diferenças entre umas e
outras mais de ordem quantitativa do que qualitativa, caracterizando-se
essencialmente as representações do curandeiro pelo seu mais alto nível de
elaboração e verbalização. (BOLTANSKI, 2004, p. 49).

Na notícia acima se ressalta que as técnicas de cura empregadas pela pajelança


eram desacreditadas por alguns envolvidos, mas não pelas curandeiras e tampouco pelo
doente, que não via impossibilidade na retirada de objetos de seu corpo.
As técnicas empregadas para tratar dos diversos tipos de perturbação que afligem os
clientes são variadas. O curador pode benzer o cliente, dar-lhe conselhos, defumá-lo
com um cigarro de tabaco ou de tauari e também lhe receitar uma gama muito
variada de remédios, desde medicamentos industrializados até produtos da
farmacopéia popular, com destaque para os laxantes e purgantes e também para os
banhos, líquidos preparados com plantas maceradas e eventualmente outras
substâncias, tais como perfumes. É frequente também a utilização de procedimentos
como a lavagem de peças de roupas com substâncias diversas, e principalmente a
retirada de substâncias - feitiços, malofícios, porcarias - do corpo do doente, com
copos, xícaras ou com sucção feita com a boca. (PACHECO, 2004, p. 79).

O cenário conflituoso entre a medicina reconhecida como legal e a medicina


considerada ilegal pode ser vista dentro da lógica de capitais culturais diferentes presentes em
grupos sociais distintos. Parte da população partilhava das mesmas crenças que o pajé – ou
acreditava na eficácia das práticas dos pajés (LÉVI-STRAUSS, 2012) – e via nele o indivíduo
legítimo para lidar com determinados tipos de problema que não estavam dentro da
competência do modelo biomédico.
Uma segunda forma de interpretar a matéria era uma crítica à própria medicina da
época. Por mais que a fala tivesse um tom satírico ou irônico o redator, ao afirmar que, em
comparação a pajelança, a medicina pouco avançou, não necessariamente queria dizer que os
médicos eram piores em termos de conhecimento e técnica que os pajés, mas de não terem
conseguido se sobrepor e oferecer meios para extinguir a pajelança que tomava o lugar da
medicina “convencional”.
No entanto, é impossível falar de um lugar da medicina, enquanto instituição
responsável pela saúde e que conseguia atender satisfatoriamente como indica Paula
Monteiro.
O número reduzido de profissionais, o baixo prestigio social da profissão que
facilitava seu acesso a negros e mulatos, a falta de recursos técnicos e sua extrema
simplicidade foram fatores que fizeram da medicina ibérica uma terapêutica muitas
vezes preterida, com relação a medicina popular.
Finalmente, o baixo nível de medicalização da sociedade colonial e o amplo recurso,
em todas as camadas da população, aos meios e agentes terapêuticos não-
profissionais, podem ser ainda compreendidos a partir do ponto de vista da
organização administrativa da saúde no Brasil colônia.
174

[...]
A fiscalização não tinha por objetivo promover a saúde, mas sim coibir abusos e
práticas ilegítimas. Seu objetivo não era portanto a sociedade em geral, mas a
própria medicina. Esse modelo transplantado para o Brasil não pôde levar a cabo
seus objetivos, quer pela própria inexistência de físicos e cirurgiões-mores no país,
quer pela ineficiência de uma estrutura administrativa fortemente centralizada pela
metrópole e destinada a exercer atividades num território de tão grandes dimensões.
Por ser frágil, fragmentaria e ocasional em suas ações, essa estrutura político-
administrativa foi incapaz de cumprir as funções punitivas a que se destinava e
deixou um campo aberto as práticas terapêuticas, forjadas no seio de outros
patrimônios culturais, legitimadas e tornadas hegemônicas pela ausência de um
saber médico oficial atuante na sociedade colonial. (MONTEIRO, 1985, p. 28-29)

Desde a colônia, desenvolveu-se aqui, a partir dessa defasagem médica, a ação


desses agentes de cura. No entanto, não se trata apenas da ação terapêutica focada nos males
fisiológicos. Sua ação era bem mais ampla assim como a noção de cura, que poderia ser
aplicada a solução de outros problemas relativos ao cotidiano.
Nicolau Parés, para falar da ação desses agentes religiosos, retoma a noção de
“fortuna-infortúnio” para caracterizar o cenário em que podemos situar a pajelança.
[...] pesquisadores da África central propuseram, nos anos 1960-1970, o modelo
teórico conhecido como “complexo fortuna-infortúnio” ou “ventura-desventura”,
segundo o qual a atividade religiosa tem por objetivo não só “a prevenção do
infortúnio”, mas também a “maximização da boa sorte”. Perante os conflitos e os
“tempos de experiência difícil” (i.e., doença, esterilidade, fracasso, destruição, morte
etc.), almeja-se propiciar “saúde, fecundidade, segurança psíquica, harmonia, poder,
status e riquezas”. (PARÉS, 2007, p. 103).

Parés afirma que este modelo também é compatível também com as religiões afro-
brasileiras e com o catolicismo popular. É possível encaixar nesse complexo a pajelança, que
assume uma posição de destaque na sociedade do fim do século XIX, em que a desarticulação
do sistema escravista forçou parcela da população a se acumular em certos pontos da cidade,
nos cortiços, e casebres dos subúrbios, com poucas possibilidades de trabalho e renda e
principalmente sem nenhuma perspectiva de serviços públicos que pudessem garantir a
mínima qualidade de vida (dentre estes o serviço de saúde).
As disputas e conflitos em tono da ação terapêutica legítima estão no cerne das
perseguições religiosas de 1889 em diante já que o código criminal republicano passa a versar
diretamente sobre essa temática, formatando a partir de alguns artigos a perseguição que já
vinha sendo praticada desde muito tempo. Falar da pajelança no século XIX sempre é muito
complicado, as indefinições e generalizações presentes nos documentos são sempre um risco a
uma análise mais complexa e que possa extrair um número razoável de informações para
compor minimamente um quadro descritivo, do tipo etnográfico em que se possa afirmar do
que se tratava a pajelança.
175

Segundo Carlo Ginzburg o historiador, ao trabalhar com documentações


semelhantes a da inquisição, estaria tomando como fonte dados antropológicos “registrando
assim um trabalho de campo levado a cabo há alguns século atrás” (GINZBURG, 1989, p.
203). O historiador também se assemelha ao antropólogo que baseia suas análises apenas na
observação, já que não é possível interlocução com os agentes culturais.
Sempre faltarão alguns dados e as dúvidas prevalecerão em determinados
momentos, principalmente quanto mais se recua no tempo. Isso é o que fica bem claro no
Processo Crime de Amelia Rosa, transcrito e publicado na íntegra em livro organizado por
Mundicarmo Ferretti. Amelia Rosa foi presa em quinze de novembro de 1877. Nesta data
chegou ao conhecimento da polícia que uma escrava de nome Joanna sofreu graves sevícias
por parte de Amelia. A partir desse momento duas versões conflitantes são arroladas ao
processo, porém ambas afirmavam que Amelia Rosa fazia curas.
Ainda que longo, o processo é composto por depoimentos que giram em torno das
mesmas descrições e de uma tentativa de confirmar que Amelia feriu gravemente outra pessoa
por conta de suas práticas.
No processo de Amelia Rosa, pode se constatar, também, o preconceito e a
animosidade existente na época contra a pajelança. Algumas vezes fica-se sem saber
o que esta sendo julgado e condenado: se as sevícias em Joanna (motivo da
acusação) ou a nigromancia e prática de pajelança de Amelia Rosa.
[...]
Assim têm-se a impressão de que não se estava querendo apenas punir os agressores
de Joanna ou botar na cadeia os responsáveis pelo que foi feito nela, mas condenar
Amelia Rosa e pessoas do se grupo, cujos nomes já eram conhecidos da polícia. Isso
explicaria a condenação de rés que não confessaram e cuja participação não foi
comprovada nas sevicias e também, o desinteresse em localizar e/ou processar
outras pessoas que teriam sido igualmente citadas pela ofendida como colaboradores
de Amelia. (FERRETTI, M., 2004, p. 32)

Tanto a pajelança quanto os maus-tratos à escrava são centrais no processo, não é


a toa que em diversos momentos fazem questão de descrever os objetos encontrados na casa
de Amelia, bem como afirmar que ela se tratava de uma pajé conhecida na cidade. Mas o fato
de ser pajé tornava-se um agravante de sua situação enquanto ré do processo ao mesmo tempo
em que era um alerta ou confirmação de que a pajelança era um problema social grave por se
tratar de um crime ou por estar relacionada com situações criminosas.
Todas as matérias de jornais ou registros policiais sobre a pajelança e também
sobre as religiões afro-brasileiras em geral são decorrentes desse conflito social em que ser
pajé ou buscar um pajé para se tratar deslocava o indivíduo de um plano da normalidade, da
civilização e da moralidade, tornando-o assim passível de ações corretivas no sentido de
176

reintegrar a sociedade ao seu estado de organização e de equilíbrio, tanto almejado pela elite
dominante, mas que nunca foi alcançado, como destaca Aldrin Figueiredo.
De fato, existia uma tensão constante entre os órgãos públicos que cuidavam da
saúde e da ordem civil e as pessoas que exerciam ou frequentava as sessões de
pajelança, mas isso de modo algum impedia que os pajés continuassem exercendo a
sua “função” e fossem muito procurados pelos clientes. As dificuldades existiam,
assim, tanto para os pajés como para aqueles que procuravam por seus trabalhos ou
ainda frequentavam seus consultórios. (FIGUEIREDO, 2003, p. 279, grifo meu).

A demanda pelos serviços dos pajés criava um ambiente de disputa pela ação
legitima sobre a doença, mas que estava ligado a um contexto mais amplo de reforma social e
urbana. Os termos desse conflito eram bem claros, de um lado a ação dos órgãos de higiene e
saúde pública – propondo uma organização racional e cientifica da sociedade que para atingir
o grau de civilizada deveria ser saneada – e de outro a ação corretiva de outros órgãos e
instituições (como a Igreja Católica) – propondo uma organização baseada em termos de
moral e bons costumes.
A partir das notícias dos jornais a pajelança não pode ser refletida unicamente pela
via do debate em torno das questões de higiene pública, o repretório de representações
negativas em torno dos pajés está muito mais ligado à moral e aos bons costumes. É possível
que no período posterior a 1910 esse cenário tenha sofrido modificações, mas até esse ano
fica claro que a pajelança é, sobretudo, um problema moral e não um problema de saúde
pública.
É preciso observar primeiramente o impacto do serviço sanitário do Estado,
organizado em 1904 pela lei nº 358, para só então ter em mente se as medidas do Código
Sanitário surtiram algum efeito no que tange a tentativa de controle sobre a ação dos pajés e
se o intervalo de tempo entre a proclamação da república e o fim da primeira década do século
XX tenha sido um período de transição entre esses tipos de justificativa.
Ao se falar de uma medicina “convencional” e de uma “alternativa” podemos
estar criando uma divisão que não poderia ser tão abrangente assim na virada do século XIX
para o XX. A cura por meio da religião está relacionada a aspectos culturais que organizam e
dão sentido a vida de indivíduos, é também uma relação entre linguagens e saberes distintos
como indica Maria Andréia Loyola.
[...] assim como a difusão da linguagem das sensações mórbidas obedece ao modo
de hierarquização dos diferentes saberes no campo da oferta de serviços de cura,
também as representações e que a clientela tem do corpo (em função das quais
percebe e classifica as doenças) intervém constantemente, na relação que mantém
com este sistema de ofertas terapêuticas: tanto na maneira como se cuida, quanto na
escolha que faz entre uma ou outra categoria de especialistas. (LOYOLA, 1984, p.
162).
177

Nesse sentido a escolha por um ou outro serviço terapêutico tem relação com as
noções de doença/cura que um indivíduo possui. A relação entre uma medicina convencional
e outra alternativa só é lógica quando para aqueles que reconhecem ambos os modelos
terapêuticos. Uma medicina só poderia ser alternativa se o indivíduo que a busca
reconhecesse fora dela outra prática terapêutica legítima.
No entanto, para alguns a medicina “alternativa” era aquela reconhecida como
eficaz na resolução dos problemas vividos o que não quer dizer necessariamente que a
medicina dita convencional era uma opção. Ao se falar do pajé como um agente religioso da
cura estou me referindo a um indivíduo que junto a outros partilham de um mesmo sistema de
crenças, ligados a uma teia cultural que creditava na pajelança ou na cura religiosa a
capacidade de resolver os problemas vividos.
Frente a todos esses infortúnios, que desestabilizavam a vida de muitas pessoas, a
oferta de serviços religiosos que prometiam reverter tais situações se encaixava perfeitamente
na demanda social. É por esse viés que Renato Ortiz analisa a umbanda na década de 1930.
É interessante notar que a formação da Umbanda segue as linhas traçadas pelas
mudanças sociais. Ao movimento de desagregação social corresponde um
desenvolvimento larvar da religião, enquanto que ao movimento de consolidação da
nova ordem social corresponde a organização corresponde a organização da nova
religião. [...] A umbanda não é uma religião do tipo messiânica, que tem uma origem
bem determinada na pessoa do messias, pelo contrário, ela é fruto das mudanças
sociais que se efetuam numa direção determinada. Ela exprime assim, através de seu
universo religioso, esse movimento de consolidação de uma sociedade urbano
industrial. (ORTIZ, 2005, p. 32).

A pajelança, assim como a umbanda é fruto das mudanças e condições sociais,


que levaram ao desenvolvimento de um sistema de crenças adaptado a determinada realidade
e partilhada pelo menos de três maneiras por boa parte da população, entre aqueles que viam
no pajé o único agente capaz de curar, entre os que não tinham outra opção senão os seus
serviços e entre os que não contemplados pelas saídas convencionais (medicinais ou
religiosas) optavam pela pajelança.
[...] a eficácia da magia implica a crença na magia, que se apresenta sob três
aspectos complementares: primeiro, a crença do feiticeiro na eficácia de suas
técnicas; depois, a do doente de que ele trata ou da vítima que ele persegue no poder
do próprio feiticeiro; e, por fim, a confiança e as exigências da opinião coletiva, que
formam continuamente uma espécie de campo de gravitação no interior do qual se
situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que enfeitiça. (LÉVI-STRAUSS,
2012, p. 239)

As notícias dos jornais dão conta de que a pajelança não estava circunscrita aos
meios pobres da população. Certas narrativas que indicam para a relação entre indivíduos da
elite em busca dos pajés. O Jornal A Campanha em sua coluna Traças e Troças publicou
entre 1902 e 1903 uma série de textos sugerindo que o governador e pessoas ligadas a ele
178

estivessem frequentando a pajelança. A Pacotilha publica uma notícia parecida no ano de


1899 informando que alguém da Chefatura de Polícia utilizava o espaço policial para
consultar pajés e que isso teria se tornado um fato recorrente.
Em ambos os casos é difícil compreender de quem se trata e se de fato não são
textos que visam criticar a política e os administradores ao ligá-los à rituais de pajelança.
Muito embora alguns nomes sejam apresentados não é fácil identificar quem são as pessoas
em questão e quais são os cargos ocupados. É de desconfiar também os diálogos muito
elaborados e detalhistas dando a entender que foram criados e não aconteceram.
Os textos revelam a possibilidade de haver uma ligação entre elites e pajés o que
seria uma falta grave de acordo com os padrões sociais da época, já que os administradores
públicos não deveriam encorajar e sim combater as práticas atrasadas que prejudicavam a
sociedade civilizada. Mas essa possibilidade revela a distância que havia entre os ideais
sociais e as práticas cotidianas, e que os limites socioculturais são fluídos e podem ser
moldados ou ultrapassados de acordo com as contingências.
Se não era uma denúncia aberta ou acusação direta falar que o governador tinha
consultados os espíritos e tenha sido criticado por acreditar em pajelança, pelo menos era uma
crítica aberta àqueles que assim agiam. O jornal poderia se utilizar de linguagem figurada e
indireta para criticar os políticos, figuras “públicas” ou mesmo agentes da lei em tipos de
factoides.
Por ser proibida com base no código criminal a pajelança não possuía licenças
para ser praticada, salvo apenas um caso em que uma requerente obteve licença para a
“brincadeira de toque de maracá” por um período de seis meses. (PLF, 22/04/1910). Pena e
Maracá é uma das denominações que os rituais de cura, recebem e é utilizado analogamente à
pajelança (PACHECO, 2004, p. 3) essa nomenclatura ressalta o uso do maracá, instrumento
sonoro de origem indígena e que é utilizado pelo pajé marcando os momentos dos rituais.
Em pesquisas desenvolvidas nos arquivos de polícia e nos jornais maranhenses
fica claro que tal manifestação religiosa é tão antiga quanto o Tambor de Mina e que ainda no
século XIX a pajelança dividia espaço com o culto aos voduns, constatação a partir da qual
levanto a hipótese de existir desde o século XIX existir uma Mina de Pajé ou Mina de
Caboclo.
Como citado anteriormente, a pajelança teria se “mascarado de mina” de para
ocultar ou deixar menos visível todos esses elementos que a caracterizavam. O maracá, o
penacho e a defumação foram aos poucos cedendo espaço ao tambor de forma a possibilitar
que licenças fossem obtidas da polícia e que a distância entre a pajelança (proibida) e o
179

tambor de mina (permitido) diminuísse e assim pajés pudessem oficiar seus rituais com um
risco menor de serem presos.
Manoel Zeferino dos Santos, ou simplesmente Manoel Teu Santo conseguiu, entre
1896 e 1898, seis licenças para realizar Tambor de Mina (conforme trabalhando em capítulo
anterior), mas que era conhecido por ser pajé. Os jornais pesquisados são unânimes em
criticar os rituais de Manoel Teu Santo, também chamado depreciativamente de grande
sacerdote, sumo pontífice, santíssimo, sumo sacerdote, taumaturgo e chefe supremo da
pajelança. Boa parte dos registros são notícias sobre a ocorrência de rituais bem como de suas
prisões – que teriam sido cerca de quatro entre os anos de 1895 e 1899, mas que
provavelmente foram mais, pois uma notícia de 1895 informa ser Manoel Teu Santo velho
conhecido da polícia – como descreve a notícia transcrita abaixo do Diário do Maranhão.
Hontem pelas onze horas da noite o sr. delegado de policia em louvavel atividade,
auxiliado pelos inspectores de quarteirão alferes Gastão Lopes Varella e Antonio
Furtado e praças do Piquete de Cavallaria, deu um cerco em casa do conhecido pagé
Manoel de tal vulgo <<Teu Santo>>; encontrando-o em adorações ao seu idolo fel-o
, recolher á cadeia.
Apprehendeu diversos utensilios do officio, os quaes foram levados para a chefatura
de policia.
Entre os obejctos aprehendidos destacam-se duas cartas, que dizem-nos vão ser
publicadas, e quantidade de rozarios de contas esquisitas e variadas cores.
Foi uma boa diligencia que recommenda o zelo da auctoridade e a actividade dos
seus auxiliares. (DMA, 20/05/1895)

Primeiramente o redator elogia a atividade do delegado, relatando a prisão do pajé


e a apreensão de objetos que provavelmente foram levados à chefatura de polícia. Não são
citados tambores ou maracás, apenas alguns rosários como elementos rituais conhecidos
atualmente, mas ainda assim Manoel Teu Santo é apresentado como pagé.
Em outra notícia, desta vez da Pacotilha, sob o título Manoel Teu Santo, relata-se
um pouco do seu ritual e da organização do terreiro.
Manoel teu Santo
Com este nome existe na rua do Passeio, em frente a a Boiada uma nova casa de
minas ca da terra dirigida por um tal Manoel teu santo que se emprega a fazer
felicidade que para este fim juntou meia duzia de vadias que o ajudavam para tal
bandalheiras.
O tal papai Mané auxiliado por um tal fiscal do mercado, servem-se aos
instrumentos: tambor, lata, cabaça, contas e reque, para baterem todos os dias a
procurado e felicidade de modo que os batuques dos taes instrumentos para a
dormida dos moradores da vizinhança e para este fim chamamos atençao das
illustres auctoridades para que façam concluir taes abusos não obstante dizer o dito
papai achar-se auxiliado por altas patentes da milicia civil (PCT, 07/08/1895)

Tambor, lata, cabaça, contas e reques eram os instrumentos tocados todos os dias
em rituais que se buscava a felicidade segundo o redator, que também afirma ser sua casa uma
nova “casa de minas ca da terra”. Esta ideia remete à origem africana da Casa das Minas que
180

provavelmente não era a mesma do grupo de Manoel Teu Santo por ser originário de São
Luís. Fica difícil de saber se o redator da notícia estava se referindo a uma relação entre a
Casa das Minas e Manoel Teu Santo ou indicando que havia diferenças claras entre um e
outro em termos de elementos rituais ou simbólicos.
Seria esta a razão pela qual Manoel Teu Santo era constantemente chamado de
pajé? Seria esta razão pela qual a Casa das Minas e a Casa de Nagô não aparecem nas páginas
policiais por lá não haver rituais de pajelança? Embora não seja possível responder com
precisão às perguntas, visto a limitação das fontes, fica claro que algo diferenciava os
terreiros. Enquanto Manoel Teu Santo prometia felicidade a Casa das Minas cultuava Santa
Bárbara e talvez resida nesse pequeno detalhe a razão de ser conhecido como pajé, mesmo
antes de obter licença para rituais de Tambor de Mina.
Seria exagero afirmar que a polícia conhecia uma distinção clara entre pajelança e
Tambor de Mina, (1889 – 1910) mas é perceptível a diferença nas relações entre polícia e
certos terreiros no período estudado. Não há registro nos jornais acerca de prisões relativas a
pessoas da Casa das Minas ou Casa de Nagô, que aparentemente realizavam seus rituais
dentro de certo padrão aceitável pelas autoridades policiais, buscando afastar-se dos outros
terreiros, tidos como de pajés.
Na notícia anterior Manoel Teu Santo não é apresentado como pajé, mas sim
como praticante do Tambor de Mina, visto como bandalheira e reunião de pessoas vadias,
que sofria da mesma repressão que a pajelança. Os instrumentos não fazem referência aos
rituais praticados pelos pajés, não se fala em maracá ou qualquer outro elemento que indica
para uma pajelança propriamente dita.
Em uma terceira notícia, Manoel Teu Santo não é caracterizado nem como
“mineiro” nem como pajé, mas ressalta-se a existência do maracá e pandeiro, instrumentos
que acompanham os rituais oficiados pelos pajés. Assim informava o jornal.
O summo Pontifice Manoel Teu Santo teve no sabbado ultimo motivo de serio
desgosto.
Com o maior desacato a sua alta personalidade, foi a sua residencia cercada pela
policia, sem que a diligencia tivesse sido por elle requisitada.
O conclave estava reunido. O maracá e o pandeiro troavam, animando a dansa, que
dentro do Vaticano de Manoel Teu Santo se desenvolvia com verdadeiro
enthusiasmo.
Com o espirito entregue aos folgares, mal pensava o Pontifice da rua do Passeio, que
tao grande disabor lhe estava sendo preparado.
Manoel Teu Santo, na frente dos dansantes puxava a fieira, á toada dos seus
instrumentos predilectos, quando a policia appareceu e pretubou-lhe o socego.
Resultado: foram todos recolhidos ao xadrez.
Consta que a diligencia foi occasionada por queixa que dera a mãe d'uma criança
que havia sido espancada na porta do templo, por uma das sacerdotisas. (PCT,
17/02/1896)
181

Na primeira matéria chama-se Manoel teu Santo de pajé sem que pareça que
realizava um ritual de pajelança, na segundo chamam o seu terreiro de casa de minas sem
falar da pajelança apenas informando sobre a presença de tambor e na terceira não nenhuma
referência direta ao modelo ritual daquele momento, a não ser a existência de maracás e
pandeiros, instrumentos característicos da pajelança, como informa Gustavo Pacheco.
Enquanto no tambor de mina há uma dança coletiva das diversas dançantes ou
filhas-de-santo, na pajelança o curador quase sempre dança só. No que diz respeito
ao acompanhamento musical, na mina nagô a orquestra consiste geralmente em um
par de tambores horizontais chamados batás ou abatás, um sino de metal chamado
ferro ou gã, e algumas cabaças (chocalhos feitos de cabaças envoltas por uma malha
de contas); na grande maioria dos terreiros maranhenses existe ainda um longo
tambor vertical chamado tambor da mata. Na mina jeje, também se usa gã e cabaças,
mas em lugar dos dois batás e do tambor da mata há um conjunto de três tambores
chamados hum (o grande), humpli (o do meio) e gumpli (o menor). Essas formações
instrumentais contrastam com a da pajelança “tradicional”, em que as curas não
eram acompanhadas com tambores, mas apenas com pequenos pandeiros, palmas e
às vezes cabaças, como até pouco tempo atrás se via em São Luís [...] (PACHECO,
2004, p. 51-52).

Manoel Teu Santo iniciou outras pessoas no Tambor de Mina, conforme tabela já
apresentada acima, o que não torna estranha a existência das referências ao tambor, mina e à
dança coletiva. São os elementos da pajelança que chamam atenção nesses casos indicando
para um Manoel Teu Santo pajé e para a existência de uma Mina que já tinha incorporado
elementos da pajelança desde o século XIX.
Contudo, embora os rituais com tambor realizados por curadores a partir do século
XX fora da capital maranhense (denominados aqui Tambor de Curador) e os rituais
de cura/pajé realizados em terreiros de mina e de umbanda de São Luís (conhecidos
por Brinquedo de Cura) apresentem elementos da mina, do terecô, da umbanda e
também da pajelança indígena ou cabocla, são bastante diferentes deles e diferem
também das “sessões de mesa branca” (espíritas) realizados em alguns terreiros.
Essa constatação tem contribuído também para reforçar a nossa hipótese sobre a
existência de uma pajelança de matriz africana, com características próprias, daí
porque apesar da possibilidade de sincretismo com aqueles outros sistemas, não
pode ser reduzida a nenhuma daquelas manifestações terapêutico-religiosas.
(FERRETTI, M., 2011, p. 94).

Ao que tudo indica Manoel Teu Santo se encaixa nessa tipologia proposta pela
antropóloga. Os elementos presentes nas matérias destacam um modelo que cruza duas
“matrizes” culturais diferentes nessa “pajelança de matriz africana” que engloba tanto as
sessões de pajelança quanto os rituais da mina, como é possível observar na matéria que
segue.
No templo em que pontificava o summo sacerdote Manoel Teu Santo, houve hontem
estrondosa ceremonia, comparecendo as sacerdotisas toda enfeitadas e prolongando-
se até tarde o batuque.
As musicas executdas na festa erão todas de composição do summo Pontifice
Manoel Teu Santo que também é compositor musical !!!...
182

E nos que suppunhamos que o thaumaturgo das immediações do Cemiterio ainda


estava em villegiatura pelo sul!... (PCT, 16/06/1896)

A existência do batuque indica que não se tratava de um ritual de pajelança e a


“sacerdotisas” paramentadas (toda enfeitadas) mostram ser uma cerimônia coletiva na qual
Manoel Teu Santo não estava. No mesmo jornal, meses antes havia publicado uma nota
assinada por um indivíduo chamado Thomaz Teu Santo comunicando a viagem do chefe do
terreiro.
Da ordem do santissimo Papai Manoel Teu Santo, faço publico que seguindo para o
Estado da Bahia no paquete <<Planeta>>, em serviço da ordem, encarrega do cargo
de presidente interino da mesma santidade a nossa distincta e adestrada irmã Canuta
Rocha Teu Santo, e a quem dá plenos e illimitados poderes. A todos abençoa.
2 de março de 96.
O secretário
Thomaz Teu Santo Rocha (PCT, 04/03/1896)

Em outro momento o mesmo Thomaz já havia publicado uma nota referente a


prisão que se sucedera no dia 17 de fevereiro do mesmo ano. Explicava que não teria havido
espancamento nenhum na frente da casa de Manoel e que a polícia teria ido em busca da
mulher, que participava dos rituais e que não teria sido liberada por Manoel Teu Santo,
conforme segue abaixo.
Da ordem do Santissimo Papai Manoel Teu Santo, faço publico que a noticia dada
hontem neste jornal do triste acontecimento que a noticia dada hontem neste jornal
do triste acontecimento de sabbado no seu templo, sobre o espancamento da criança,
não foi na porta do referido templo, porque esse lugar é muito <<respeitado>> e sim
na porta de minha residencia á rua da Cotovia, pela minha querida Canuta que não
contava com tão energica punição. Quando todos se achavam reunidos para as
devoções, (com exepção de mim que me achava em urgente serviço particular),
foram surprehendidos pela policia que procurava a minha referida Canuta, e como
esta lhe era indispensavel para o culto ja em principio, recusou entregal-a, resultando
d'ahi o disturbio, que foram todos dormir no palacete de S. João, d'onde só foram
postos em liberdade no dia seguinte ás seis horas da manhã; agradecendo a dois
amigos que toda noite trabalham para esse fim visto que no sabbado nada
conseguiram. Continuamos sem alteração com as nossas devoções.
O secretario
Thomaz Teu Santo (18/02/1986)

Ter um secretário que se responsabilizava pelas publicações de respostas indica


um nível de organização e hierarquia características do Tambor de Mina, ao passo que mostra
também que Manoel Teu Santo não buscava manter segredo sobre os seus rituais ou sobre o
funcionamento de seu terreiro. Talvez seja exagero informar que se tratava de um homem
público, mas não o é dizer que tinha certas formas de se afirmar enquanto praticante de outra
religião, informação esta que não mantinha escondido.
Manter rituais públicos, não tentar manter segredo ou discrição e não seguir as
ordens policiais com relação aos limites sobre as festas tenha sido o motivo para que as
prisões. A exposição talvez tenha transformado o Terreiro de Manoel Teu Santo em um alvo
183

da polícia, que em sua busca por pajés acabou vendo nele a possibilidade ou mesmo a
comprovação de seus rituais de pajelança.
Os textos do jornal A Campanha, citados anteriormente podem ter sido escritos a
partir de situações reais, não literalmente as que descrevem, mas de políticos ou pessoas
influentes da elite que mantinham relações com os pajés ou pais de santo de forma a
possibilitar uma margem ou espaço social para que se defendessem ou pudessem se afirmar
enquanto uma prática religiosa, que teriam continuidade apesar da ação policial.
Em todas as matérias já trabalhadas até aqui fica claro que o tom depreciativo é
constante e é preciso depurar essa fala sobre a os pajés para conseguir compreender um pouco
da pajelança em si, como tentei fazer acima a partir da relação entre esta e o Tambor de Mina.
Isso nem sempre é possível, pois algumas referências não tratam especificamente de uma
descrição de rituais ou indicação/denúncia da existência de pajés.
Os jornais noticiam casos de intriga entre vizinhos, acusações de roubos e
suspeitas de comportamentos inadequados em que a pajelança aparece como uma
característica negativa que é atribuída a quem é acusado. Chamar alguém de pajé era uma
ofensa grave e mesmo que os casos não tivessem relação alguma com rituais de pajelança o
pajé era aquele que enganava, sem escrúpulos ou capaz de roubar.
A pajelança também podia incluir toda a forma de manifestação religiosa afro-
brasileira, inclusive o Tambor de Mina como é possível ver nas matérias que seguem.
Na casa á rua de S. Pantaleão n. 199, está installada a nova sala de audiencia do
chefe supremo da pagelança n'esta cidade, o conhecido da policia -- Manoel teu
santo.
A affluencia de partes, muitas até desinteressadas, tem obrigado o Juiz a dar
audiencias, á noute, o que não é prohibida pelas leis da feitiçaria.
Hontem após os trabalhos, por alvitre lembrado pelo chefe -- Manoel teu santo --,
formou-se um samba grosso, no meio do qual, alli pelas tantas o pao rolou devéras,
sendo precisa intervenção do juiz para acalmar os animos.
O nosso informante ignora se depois do rôlo, ainda continuou a festança. (DMA,
05/12/1895).

O endereço acima citado é o da Casa das Minas e foi informado erroneamente por
alguém que fazia referência direta ao que estava acontecendo na Casa das Minas
confundindo-a com o local de culto de Manoel Teu Santo ou mesmo fazendo referência e
estes rituais praticados por este último, mas sem saber ao certo onde estava ocorrendo, já que
ambas as casas eram próximas.
O “samba grosso” ao qual faz referência tem relação com o divertimento e com os
sons característicos dos batuques e das reuniões festivas, vistos pelos jornais como um
problema do ponto de vista da organização urbana e social, visto que o samba (não com o
184

mesmo sentido do samba atual) e outros divertimentos populares acabavam em desavenças e


confusões.
Tendo em vista as informações erradas o Jornal corrigiu a notícia da seguinte
forma.
Disseram-nos hoje que na casa á rua d S. pantaleão n 199 reside a mulher Luiza
Rosa da Silva e não o thaumaturgo - Manoel teo santo.
Ali, affirmou-nos o nosso informante, houve uma festa de santa Barbara, com previa
licença da policia, e não deo-se facto algum desagradavel.
E' possivel que no mesmo dia o heroico Manoel teu santo celebrasse uma das suas
conferencias milagrosas, no lugar em que mora ou outro qualquer e que se
confundisse a casa dos milagres com a dos devotos de S. Barbara. (DMA,
06/12/1895)

Houve um tratamento diferenciado, algo que não era comum. Provavelmente por
ter sido informado ao jornal que se tratava de uma festa de Santa Bárbara e que havia licença
da polícia o redator da notícia mudou o tom ao falar da festa que estava dentro da legalidade,
enquanto Manoel Teu Santo, chefe supremo da pajelança e já conhecido da polícia não
mereceria palavras diferenciadas das que já haviam sido antes publicadas.
Mas nesse caso o que chama atenção não são os ocorridos em si, pois pode ser
que tenha havido apenas uma confusão de endereços, uma denúncia com base em dados
errados, mas sim o fato da notícia não citar ou mesmo ignorar que no endereço tratava-se da
Casa das Minas e de uma comunidade religiosa e que as festas eram marcadas pelo som dos
tambores.
A correção pode ter sido feita por alguém de dentro da Casa das Minas, que
relatou inclusive o nome da chefe, para se defender da “acusação” veiculada pelo jornal e uma
tentativa de não chamar atenção das autoridades policiais para a possibilidade de ali
desenvolver-se rituais religiosos que viriam a ser considerados como pajelança.
É preciso lembrar que a pajelança era perseguida e que os pajés sofriam sanções
policias quando descobertos, como foi o caso de Amelia Rosa, já citado acima. Assim os
mineiros buscavam se distanciar dos pajés e da possibilidade de serem caracterizados como
tal.
Como notou Heraldo Maués, os pajés não reivindicam uma identidade "pajelística"
(Maués 1995). No entanto, um pajé pode tocar Mina usando tambores e cabaças ou
trabalhar sozinho em frente de uma mesa ou unicamente com o seu maracá. De
qualquer forma, ele será sempre identificado como "curador" e pajé pelos clientes
doentes; talvez isso seja o mais importante para ele. Como notou também Maués, a
denominação "pajelança" não é usada em zona rural (Maués, idem), mas sim na
circunvizinha dos terreiros de Mina que querem se distinguir um pouco dessa prática
de curador. Então, a posição de um com o outro não é simétrica: Mina, Umbanda,
Espiritismo e Catolicismo são ortodoxias que afirmam se submeter a autoridade de
uma tradição fixada, coletiva, particular e assim nomeada. Quanto ao pajé, a
ausência de evocação da autoridade de uma tradição reconhecida e nomeada, um
185

tanto pouco fixada, consciente ou não, indica que ele se posiciona no "mercado dos
bens simbólicos" (LAVELEYE, 2004, p. 116-117)

O uso do termo acusação diz respeito à utilização da palavra pajelança como


forma de acusação ou de denegrir alguém – brigas entre vizinhos, disputas entre políticos,
pessoas suspeitas por suas atitudes eram mediadas pela acusação de pajelança. Assim fica-se
na dúvida sobre o que de fato a notícia tratava, se sobre o Tambor de Mina, sobre a pajelança
ou até mesmo sobre qualquer outro assunto em que a pajelança estivesse minimamente
associada, mas que acabava assumindo um papel importante na narrativa dos fatos.
Dessa forma a pajelança aparece com uma macrocategoria social, que acaba
abrangendo uma série de práticas, como destaca Aldrin Figueiredo sobre o Pará.
Apesar da legislação municipal ser clara e taxativa em relação à prática da pajelança
como exercício ilegal da medicina, não havia, de fato critérios muito bem definidos
quando da realização das buscas e flagrantes em diligências policiais. Qualquer
pessoa que estivesse realizando uma “função” suspeita, pensada aqui num largo
campo que aproximava feitiçaria, curandeirismo e pajelança, poderia ser presa por
contravenção ao capítulo 7 do Código de Polícia, acerca do “exercício da medicina”.
(FIGUEIREDO, 2003, p. 279).

Algo semelhante se repete no cenário de São Luís em que muitas vezes a


pajelança era utilizada como acusação em caso de qualquer atividade suspeita, como no caso
que segue abaixo.
Será pagé?
Um morador da rua da Praia de S. Antonio pede por nosso intermedio, providencias
a policia e á hygiene, para umas casas da dita rua, de onde escorre agua putrida e
uma fumaça por demais encommoda. Lembramo-nos do pagé, e á hygiene e á
policia ahi fica feito o nosso pedido. (PCT, 19/03/1902).

Segue-se a esse tipo de suspeita outras descrições que acabam reunindo


informações em que a pajelança aparece de forma análoga a outras práticas, mas que é
utilizada pois faz parte de um vocabulário comum que serve para situar o leitor nas
descrições.
La pelas bandas do Anil existe permanentemente ou se reune de vez em quando uma
confraria de feiticeiros, sendo a casa em que celebrão as suas sessões conhecida por
<<casa de minas>>.
Essa confraria ao que parece não é uma reunião de velhas bruchas, mas, pelo
contrario, de raparigas que não são desprovidas de encantos.
Deu-lhes a telha para serem minas, isto é, bruchas e quis a boa ou má sorte d’um
latagão de nome Evaristo rapaz bem apessoado e de uns vinte e tantos annos, que
tendo noticia das sessões dessa pajelança lhe visse o desejo de conhecel-a.
E la foi o Evaristo em procura da casa das minas. (PCT, 03/09/1900).

A referência à Casa das Minas aparece ou como uma espécie de comparação ou


como “desinformação” de quem passou os detalhes sobre as sessões que ocorriam no Anil.
Esses casos dificilmente esclarecem alguma coisa, já que seu objetivo era denunciar a
pajelança, ainda que sem muita certeza do que se passava ali. De todo modo esse tipo de
186

notícia deixa claro a existência da pajelança, negras minas ou confraria de feiticeiros eram
largamente conhecida na cidade.
O que os jornais faziam, na maior parte das vezes, era alertar a população e
chamar atenção da polícia, isso fica claro quando avisos são dados à polícia no fim de
matérias ou quando o redator da notícia sugere que havia necessidade de ação da chefatura de
polícia. Os jornais estavam atentos, tanto para avisar sobre a existência de pajés enquanto um
problema, quanto para comunicar a prisão dos mesmos, quase em tom comemorativo.
Official.

Governo do Estado.
Secretaria de Policia.
Registro Policial
Dias 1, 2 e 3.
A' ordem do sr. subdelegado de Policia do 1º districto foram recolhidas á cadeia as
mulheres Capitolina Muniz, Ignez Maria da Conceição, Antonia Francisca Nogueira,
Candida Soares dos Santos, Raymunda Pereira da Silva, Luiza Carolina Correia,
Maria Thereza de Aguiar e Francisca Maria d'Oliveira todas por terem sido
encontradas nos baixos do sobrado nº 9, á rua da Palma fazendo pagelança e
imoralidades.(DMA 05/09/1905)

As referências aos locais em que eram encontrados os pajés possibilitam uma


reflexão acerca da ocupação da cidade pelos pajés. Enquanto registra-se um processo de
periferização dos terreiros – iniciado ainda no fim do século XIX – em busca de locais mais
afastados e longe do raio de ação da polícia ou das denúncias de vizinhos, os pajés ainda
permaneceram no centro da cidade, entre os baixos de sobrados ou em casebres espalhados
pelos distritos.
187

Imagem 24 Realização de um ritual de pajelança nos baixos de um sobrado. (Desenho de Raiama Portela)

A estratégia de se afastar da área central da cidade, junto à incorporação de


elemento do Tambor de Mina, considerado mais como diversão do que como manifestação
religiosa visava diminuir a possibilidade de uma batida policial, o que não era garantia, visto
que em alguns casos os policiais foram até as áreas mais distantes como o Cutim ou Anil em
busca dos pajés77, como é relatado na notícia abaixo.
Os pagés

Trazem nos a noticia de que a policia fez a noute passada uma excellente colheita, lá
para o Cutim, agarrando os devotos de ambos os sexos que tanta credulidade
mostravam pela maravilhosa cura do grande chefe. Sobe a 12 o numero de tão
felizes mortaes.
Bem será que esta caça seja seguida de outras, e com o mesmo resultado.
Remettidos pelo subdelegado Pinto deram hoje entrada em S. João os 12 crentes,
com o chefe Silvino Jose de Britto, e 2 creanças.
Amanhã daremos outros pormenores. (DMA 10/12/1896)

Silvino Jose de Britto foi preso junto com 12 pessoas que participavam de um
ritual de cura. Na notícia o redator deixa claro que os pajés abusavam da credulidade das
pessoas, uma caracterização que acompanhou por muito tempo os pajés como ressalta
Antonio Evaldo Barros.

77
No Mapa 7 (página 156) é possível observar onde se localizavam o Cutim e o Anil, distritos afastados do
centro da cidade.
188

Vistos de modo indistinto, pajé, curandeiro(a), macumbeiro(a), feiticeiro(a) e


bruxo(a), de um lado, eram acusados de conduzir artes diabólicas e, de outro, eram
vistos como marreteiros, chantagistas, desajustados, cachaceiros, doentes sexuais e
feios. (BARROS, 2009, p. p.148)

Alguns são esclarecedores da estrutura dessa manifestação religiosa como no


caso da continuação da notícia acima, publicada no dia seguinte pelo mesmo jornal.

Em complemento á noticia, que hontem demos, da vinda dessa celebre gente, abaixo
inserimos o officio com que a auctoridade policia do Cutim a fez apresentar ao Dr.
Chefe.
Na policia foram recebidos, pertencentes a essa cafila de mulheres preguiçosas e
especuladoras, e de homens, que só se entregam a vida de ladroeira e devassidão,
estes objectos:

1 cesta com roupas do uso nas festas.


9 rozarios de contas de côres
1 dito de conta douradas e de cores.
1 cordão de ouiro com bugigangas.
1 broche de ouro ordinaria.
1 cabaça pequena.
1 dita grande
1 quadro com os retratos coloridos de todos os Papas.
1 turbante feito de paninhos cor de roza e azul.
1 Estola comprida da mesma fazenda.
1 especie de chocalho.

A policia deu prompto emprego a esses vadios, emprego que deve continuar, e
expôl-os aos olhos do povo para assim envergonhal-os. Ha muita rua a limpar,
largos a capinar, e pedras a carregar, emprego muito decente e diverso desse, a que
se entregam, e onde tem entrada todos os vícios.
É este officio, a que nos referimos, e pelo qual o leitor fará ideia da importancia dos
figuroes e figuronas, sacerdotiza, Papas etc.:

SUBDELEGACIA DE POLICIA DO CUTIM.


Maranhão, 10 de Dezembro de 96.
Illmo. Sr. Doutor Chefe de Policia.
Doze vagabundo, 3 homens e 9 mulheres, faço comparecer escoitados a vossa
presença.
Essa canalha em nº aproximado a cem, reune-se diariamente, ora no logar arêal, ora
no logar Filipinho, onde a meia noute de hontem os achei reunidos em solemne
sessão de pagé essa detestavel profissão que tanto prejudica a nossa sociedade,
directa e indirectamente.
O mulato de nome Cesar, é o Chefe supremo, pelo que é conhecido por seus
vassallos por - <<Dom Martins>>
O preto Martiniano, secretário d'aquelle, typo que V. Sª, conhecerá de gatuno, com
toda malicia e perversidade, é tambem, conhecido e tido por Sinhásinha.
Os outros dez, são pessoas auxiliares etc. etc. e morão, segundo dizem:
Catharina Belfort, na rua de Santa anna.
Claudina Carmos, rua Formoza.
Amelia Cascaes, rua da Cruz.
Filomena Quadro, rua da Cotovia.
Joanna, (mas chama se Martinha) rua de Sant'-anna
Henrique Clemente de Souza, mora no Felippinho.
Victoria Maria e Isabel Porto, no mesmo logar.
Andreza Vieira Jesus, moradora na praia de Santo Antonio.
189

V. Sª recto como é no cumprimento de seus deveres, de certo que tomará energicas


providencia, para que de uma vez para sempre deixem essas pessoas de continuar
com a vida que até hoje tem seguido.
Faltão, e V. Sª mande-os vir a sua prezença.
Thomaz Araujo, preto que foi açougueiro - chamado <<Rei de Pombal>>
Filomena, mulata, gorda, chamada. <<Don Floriano>> e mora na calçada do
açougue.
O Subdelegado de Policia
José Pinto Dias de Souza
(DMA, 11/09/1896)

O interesse pela pajelança enquanto assunto ou temática corrente no jornal e na


cidade reflete-se na extensão da matéria. Em alguns casos as colunas preenchiam um bom
espaço das páginas, pois o jornal não se resumia a informar com especificidade “o que”,
“quando” e “onde”. Sempre havia espaço para uma opinião sobre a pajelança e para mostrar o
seu lado negativo, como nesse caso em que o redator da notícia afirma que os pajés são
vadios, que ganham a vida enganando as pessoas e que por isso deveriam ser expostos ao
público para que fossem envergonhados e mudassem o seu modo de vida.
A notícia traz uma lista de objetos encontrados nos rituais que são conhecidos no
universo religioso afro-brasileiro, como rosários, cabaças e as roupas (paramentos) utilizadas
pelas pessoas que participavam, o chocalho poderia ser uma espécie de maracá, utilizado
pelos pajés, como dito anteriormente, assim como a estola, que poderia ser parte dos
paramentos de alguma entidade. Abaixo segue uma imagem retirada da tese de doutorado de
Gustavo Pacheco (2004) em que um pajé aparece com o seu encantado usando uma faixa de
pano ou toalha, semelhante a uma estola.
190

Imagem 25 Pajé com encantado (PACHECO, 2004)

O turbante também poderia ser parte dos paramentos utilizados pelo pajé ao
receber determinado encantado de origem nobre, conhecidos no meio religioso afro-
maranhense como gentis78 afirma Mundicarmo Ferretti.
Os gentis recebidos no Tambor de Mina são, geralmente, ‘donos do poder’,
representantes da nobreza de países cristãos de ‘além-mar’ que têm alguma relação
com o Brasil Colônia. São, por exemplo, portugueses (colonizadores) como D.
Manuel e D. João ou franceses (fundadores da cidade de São Luís), como D. Luis.
Os caboclos mais antigos da Mina (ao contrário do que se diz os que são recebidos
no Candomblé de Caboclo), não tem origem indígena mas pertencem a grupos
combatidos ou não controlados pelos portugueses e pela igreja católica (como os
turcos ou mouros). Assim, o caboclo Guerreiro de Alexandria lutou contra os
cristãos no tempo das cruzadas e seu irmão Tabajara, além de ser filho de turco com
cigana, casou-se com uma índia paraguaia.

78
Segundo Mundicarmo Ferretti (2000, p. 73-74) as entidades espirituais do Tambor de Mina podem ser
divididos da seguinte forma:
Voduns e Orixás: entidades de origem africana e geralmente associados a santos católicos; Gentis: nobres,
geralmente europeus, as vezes confundidos com orixás e também associados a santos católicos; Gentilheiros:
fidalgos classificados como caboclos e que não pertencem a cristandade europeia; Caboclos: protetores
espirituais cuja origem não remete à África, porém podendo ter origem nobre, mas com vida terrena ligada a
grupos fora do mundo nobre; Índios e Selvagens: entidades de origem nativa brasileira e que não seguem as
normas do mundo civilizado; Meninas: entidade femininas e infantis que não participam dos rituais, sendo
homenageadas separadamente.
191

Os caboclos da Mina representam não apenas a população nativa brasileira (índios),


mas também os mais diversos segmentos sociais formadores da sociedade brasileira
marginalizados do poder (camadas populares). Muitos dos que são ali recebidos têm
origem nobre ou são nobres que, ao contrário dos gentis ou fidalgos, afastaram-se
dos palácios (ou do poder) e, misturando-se ao ‘povinho’ (ou ‘povão’), ‘entraram na
mata’ e passaram a vir na Mina como caboclos e não como nobres. (FERRETTI, M.,
2000, p. 77-78).

Não foi possível localizar o fim que era dado aos objetos apreendidos,
provavelmente eram destruídos ou jogados fora e não devolvidos aos donos, para dificultar a
reutilização em novos rituais. Em todo caso a cultura material dos terreiros do período não
demonstrava grande riqueza de objetos, muito embora o valor ritual e simbólico superasse o
seu valor material.
Imagem 26 Cultura material de um ritual de pajelança (Desenho de Raiama Portela)

No ofício do delegado de polícia, transcrito na matéria encontra-se a seguinte


informação: “O mulato de nome Cesar, é o Chefe supremo, pelo que é conhecido por seus
“vassallos” por - <<Dom Martins>>”. César, Pai César, Papai César, Mestre César ou Dom
César aparece em outras matérias como sendo um conhecido pajé da cidade e da mesma
forma como outros pajés, era tratado de maneira irônica com títulos e honraria.
O nome de Papai César ou Papa César é lembrado por uma vosunsi da Casa das
Minas, como informa Sergio Ferretti.
192

Na Casa, preserva-se a história guardando nome de pessoas, de suas entidades


protetoras e de alguns de seus familiares, mas não se guardam datas dos
acontecimentos. Dona Amância, por exemplo, dizia que a Casa tinha perto de
quatrocentos anos, o que evidentemente, não é possível, pois a própria cidade de São
Luís foi fundada em 1612. Em fevereiro de 1992, Dona Enedina nos informou que o
primeiro homem na Casa das Minas foi Manassém; em janeiro de 1993, poucos
meses antes de completar oitenta anos, a mesma Enedina nos disse que o fundador
da Casa foi um homem chamado Papa César, e quem batizou o terreiro foi Manacás.
(FERRETTI, S., 2009, p. 58).

Ele era conhecido ou chamado por seus filhos-de-santo de Dom Martins, provável
nome de sua entidade no momento do ritual. Outras três pessoas presas tiveram o nome de
suas entidades relatadas: O “preto Martiniano” que seria secretário (ou segunda pessoa na
hierarquia do grupo) de Pai César era conhecido por “Sinhásinha”, Thomaz Araujo era
chamado “Rei de Pombal” e “Filomena, mulata, gorda” era conhecida por “Don Floriano”.
Dos quatro nomes apenas Dom Floriano foi localizado em uma lista de entidades
espirituais de alguns terreiros de São Luís e do interior do Estado elaborada por Mundicarmo
Ferretti (2000). Dom Floriano, conhecido também por “Dom José Floriano” é entidade
conhecida na Casa de Nagô, mas também de outros terreiros. Como inúmeras entidades são
conhecidas na encantaria maranhense tais nomes podem vir a ser encontrados em algum
terreiro.
Novamente não fica bem claro se a matéria faz referência a um ritual do Tambor
de Mina, embora tudo indique que sim, a existência do maracá deixa aberto para hipóteses de
se tratar de um tipo de terreiro ou casa de culto em que se praticava ambas as linhas ou
“águas” como informa Mundicarmo Ferretti.
Nos terreiros de São Luís que se definem como mina, mas realizam Brinquedo de
Cura, a cura ou pajé é ali apresentada como uma obrigação contraída no passado
pelo pai ou mãe-de-santo (como ocorre no de Mãe Elzita). Nesses terreiros o
“Brinquedo de Cura” (ritual público festivo da cura/ pajé), embora tenha uma
estrutura bem diferente da encontrada no Tambor de Mina e independa da mina,
possui vários pontos de intercessão com ela, pois diversas entidades espirituais não-
africanas (caboclos e gentis/nobres) recebidas no Tambor de Mina passam na
Cura/Pajé ou “navegam nas duas águas” – salgada (mina) e doce (cura/pajé) – e às
vezes são muito conhecidas e procuradas como curadoras, como é o caso da cabocla
Mariana, filha do encantado conhecido por Rei da Turquia. (FERRETTI, M. 2011,
p. 97).

Refiro-me nesse caso não a entidades que navegam nas duas águas, mas aos
próprios terreiros ou comunidades que se organizaram em torno dos dois modelos rituais e de
crença, independente desta realidade ter ligação direta com a perseguição, que como afirmado
anteriormente, teria forçado alguns pajés a enveredarem pelo Tambor de Mina, mais como
uma necessidade de salvaguarda do culto do que como um movimento “natural” de
sincretismo.
193

Seria esse o caso de Manoel Teu Santo e Pai César? As fontes levam a pensar que
este tipo de sistema religioso tenha se desenvolvido derivado de um sistema africano em
contato com outras expressões de crenças religiosas – catolicismo e religiões indígenas – e
não necessariamente do Tambor de Mina Maranhense seja da Casa das Minas e de Nagô e
que provavelmente tenha se desenvolvido pari passu ao tambor de mina e semelhante a este
por resguardar certa raiz africana.
Por essa razão é que se destaca nos casos noticiados a característica de pajelança
ao mesmo tempo em que se fala sobre a presença dos negros mina em alguns casos, ligando a
essa etnia uma manifestação religiosa característica dos terreiros em geral. Assim são as
notícias que envolvem Pai Cesar.
Em plena sessão de pagelança foi surprehendida á noite passada no seu templo, á rua
da Mizericordia, o pagé Francisco Cesar, todo entregue aos seus altos mysterios e
com as vestes do rito.
Nú da cintura pra cima, nos braços e pescoço voltas de buzios, n'uma das mãos um
cachimbo comprido com o taquary envolto de missangas e na oitra um grande
maracá de cabaça envolvida em malhas presas com contas de varias cores, achava-se
D. Cesar pontificando, quando a policia foi perturbar-lhe as funcções.
Rodeavão-no, vestidos de camisolas as sacerdotisas, que com elles se preparavam
para a procissão que a seita effectuava n'essa noite, depois da ceremonia das flores.
A casa que fica quasi na esquina da rua de S. João foi cercada cautelosamente,
dirigindo a diligencia o sr. subdelegado Alfredo Silva, que zombando do poder de D.
Cesar e da devoção de suas sacerdotisas e fieis, não teve medo dos esconjuros e
amuletos do chefe-pagé.
Uns por devoção e poucos por curiosidade estavão assistindo os tregeitos do zambá
sem que a alguem ocorresse o receio de que fosse a festança perturbada pela policia,
quando esta, tomadas as providencias que assegurassem o exito da diligencia,
apresentou-se e tangeo sacerdotes, sacerdotidas e assistentes para a estação de S.
João.
Foi isso pelas onze horas da noite, mais ou menos.
Forão todos como estavão, sendo recolhidos pela auctoridade os maracás,
cachimbos, voltas, agulhetas, carteiras com cartão de visita e etc. etc.
O facto divulgou-se logo pela manhã e a garotagem promptificou-se a prestar as
honras aos crentes da pagelança, quando sahião da detenção.
Foi uma manhã cheia para a garotagem, a de hoje.
Subião a 25 pagés e seus devotos. (PCT, 10/12/1898)

Os elementos do ritual possivelmente encaixam-se no que é conhecido como


brinquedo de cura, ritual de pajelança com uma função diferenciada da sessão de cura.
As pajelanças realizadas em terreiros de São Luís, como já vimos, são
tradicionalmente chamadas de brinquedo de cura. Essa expressão é às vezes usada
para assinalar uma importante diferença funcional entre a pajelança de São Luís
hoje, de um lado, e a pajelança de antigamente e também a pajelança realizada no
interior, de outro, em que a prática dos pajés poderia ser melhor caracterizada como
um trabalho de cura. Enquanto a pajelança de antigamente, assim como a pajelança
de Cururupu, tem seu foco principal na ação terapêutica, a pajelança hoje realizada
em terreiros de tambor de mina perdeu quase completamente essa função, tornando-
se apenas diversão. (PACHECO, 2004, p. 254).

Pai César, diferente de Manoel Teu Santo, não aparece entre a documentação de
licenças para Tambor de Mina pesquisada, mas as notícias de jornais apresentam pequenas
194

pistas de que seus rituais não se tratavam unicamente da pajelança do tipo cura, em que o pajé
ou curador oficia tudo só, ao som de seu maracá e de palmas ou pandeiros na extração de
feitiços de pessoas doentes, semelhante a um caso já relatado e muito menos que estava
restrito unicamente a este tipo ritual, já que poderia ser algo semelhante ao brinquedo de cura
ao mesmo tempo em que praticava o Tambor de Mina.
Esses terreiros possivelmente não atingiram o mesmo grau de organização da
Casa das Minas, Casa de Nagô e do Terreiro do Justino, que conseguiram ultrapassar cem
anos e que, por ter mantido os rituais de pajelança de maneira mais aberta e clara aos olhos da
polícia, tenham sofrido mais perseguições do que os terreiros de Mina, principalmente a partir
do final do século XIX quando o crescimento urbano aproximou as localidades e a ação da
polícia e de outros órgãos de controle social, como a Junta de Higiene, passaram a trabalhar
de forma mais sistemática, mesmo com os problemas da administração pública.
Nesse sentido é possível afirmar que a Casa das Minas e a Casa de Nagô tenham
sido menos perseguidas em relação aos demais terreiros e não que o Tambor de Mina, pelo
menos no período estudado, em si foi menos perseguido. De alguma forma os terreiros acima
citados conseguiram se articular de forma a não serem vistos como manifestações religiosas
próximas da pajelança e sim festividades, brincadeiras.
Essa seria uma das razões pelas quais ambas as Casas não aparecem nos
noticiários, somente em raras exceções e nunca ligada à pajelança, fora o caso em que foi
confundida como o local de culto de Manoel Teu Santo. É possível que tenha havido um
esforço também de não tornar as Casas públicas, buscando formas de contornar a presença
nos noticiários e a proximidade com a pajelança ou mesmo com os rituais de terreiros
“híbridos”, já que poderiam também ser consideradas como terreiros de pajé e sofrer as
mesmas sanções que a pajelança sofria.
Já os terreiros em que se realizava a pajelança ou rituais de “mina-pajé” tiveram o
seu funcionamento prejudicado justamente pela atenção que era dada pela polícia e pelo jornal
tornando pública a sua existência, muitas vezes por meio de denúncias, que tratavam de
indicar à polícia onde se localizavam.
É provável que tenham sido fundados casas e terreiros sincréticos nos quais era
efetivamente difícil saber onde começava e terminava o que se denominava
Pajelança ou Tambor de Mina, macumba/magia ou diversão. Entretanto, a
indistinção proposta pela imprensa consistia, antes de tudo, numa estratégia que
visava legitimar a perseguição policial a todas e quaisquer expressões cognoscitivas,
terapêuticas e religiosas ligadas especialmente aos mais pobres e negros, reduzindo-
as a práticas ilegais e imorais. (BARROS, 2009, p. 158)
195

Não era a simples introdução do tambor e dos rituais de mina que fariam com que
a polícia deixasse de perseguir, já que a pajelança não possuía uma definição muito precisa na
forma como era operada pelas autoridades, assim muitos mineiros foram presos acusados de
estar realizando rituais de pajelança.

Imagem 27 Ritual de "Mina-Pajé": a cura acompanhada do tambor e da assistência. (Desenho de Raiama


Portela)

O nome de Pai César aparece ligado a três endereços diferentes e essa mudança
poderia se uma forma de fugir da ação policial que ao prendê-lo acabava recolhendo também
os objetos rituais, prejudicando assim o funcionamento do culto o que influencia diretamente
na perpetuação dos terreiros, hipótese esta corroborada pelas poucas referências existentes no
espaço de tempo pesquisado.
A manutenção da pajelança, seja em seu formato mais próximo da cura, seja por
sua relação com o Tambor de Mina conseguiu avançar no tempo mesmo com toda a
perseguição. A demanda social pela cura e a obrigação em manter a religião criou um
ambiente propício para que a pajelança se difundisse ao mesmo tempo em que esbarrava na
ação da polícia.
196

Durante o século XIX e início do século XX pajés enfrentaram sérios entraves,


mas que não foram suficientes para interromper a sua ação. Por essa razão é que o jornal a
Pacotilha em uma matéria avisa à polícia que não perca de vista os pajés.
Pagés

Ainda uma scena de pagés


O sr. subdelegado Miranda, que valha a verdade, toma a sério a sua funcção de
auctoridade, descobriu ante-hotem um ninho de pagés no pavimento terreo do
sobrado á rua da Cruz, n. 61.
Estavam as santas creaturas entregues aos encantos dos maracás etc. em torno d'uma
creança, a quem curavam, quando a policia as surprehendeu.
Entre os outros, erão estes os curandeiros: Maria da Conceição Gonçalves, Celestina
Ribeiro Souza, Joanna de tal, Henriqueta Anastacia, Benedicto Jose Frazão,
Filomeno Ribeiro, Raymundo Praxedes e Noé, pescador.
Todos foram catrafilados e postos debaixo de coberta enxuta d'onde sairam para...
amanhã ou depois se entregarem de novo á pagelança.
A policia que os não perca de vista. (PCT, 13/10/1897).

Esse seria um ritual de cura em que uma criança era submetida ao tratamento de
algum problema de saúde ou espiritual. Todas as pessoas envolvidas foram presas e, depois
que saíssem da cadeia, voltariam a praticar a pajelança, segundo o jornal. Em outras palavras
o jornal deixava claro que os pajés eram em muitos casos reincidentes em suas atividades,
sendo que a prisão poderia representar um grande obstáculo, mas que era contornado para que
o maracá voltasse a ser usado novamente.
197

CONCLUSÕES: a brincadeira de toque de maracás e o universo complexo das religiões


afro-maranhenses.

Entre os PLF pesquisados, um chamou atenção por conta do objeto de licença


pedido: brincadeira de toque de maracá. No fim da série documental e depois de muito
pesquisado e escrito um documento apresentava novos questionamentos às situações de
proibições à pajelança no período estudado. O maracá, objeto ritual característico dos rituais
de pajelança/cura aparece na documentação como elemento central do pedido e que em muito
se assemelha aos de Tambor de Mina pelo uso do termo brincadeira.
Pode ser perigoso afirmar que se tratava de um pedido para rituais de pajelança,
mas a forma que o requerente utilizou para se expressar difere completamente da maioria,
inclusive colocando como objeto de licença um elemento característico dos rituais que a
polícia combatia. Abaixo segue a transcrição de trecho do pedido.
Raimunda Francisca da Paz, rezidente no lugar Furo, do termo de S. Joaquim do
Bacanga vem respeitosamente solicitar de Vossa Excelência que lhe concedais a
licença que precisa, para que possa d'entro destes seis mezes, a contar do dia de
amanhã, sabado, incluzive, ter lugar uma sua brincadeira de toques de maracás em
sua dita rezidencia.
Nestes Termos
Espera Deferimento
Maranhão 22 de abril de 1910
(PLF 22/04/1910)

O chefe de polícia concedeu a licença informando que na portaria constassem as


limitações devidas. Sem o documento que libera a realização da “brincadeira” é impossível
saber especificamente quais as limitações impostas pelo chefe de polícia, mas suspeito de que
pudesse se tratar de questões relativas aos horários e dias permitidos, já que o pedido previa
uma licença para seis meses.
A autorização da festa pode ser vista com uma exceção que confirma a regra de
proibições, ou seja, era apenas uma liberação frente a tantas interdições e perseguições. No
entanto, o fato de ter sido liberada indica que as formas de combate a pajelança na virada do
século XIX para o XX contavam com um elemento crucial, o entendimento do que era a
pajelança para aquele que a combatia.
Nesse caso o chefe de polícia desconhecia, ignorava ou fez “vistas grossas” ao
fato de que ali poderiam estar sendo liberados possíveis rituais de cura, o que era proibido
pelo código criminal e pelo código sanitário, demonstrando que o discurso policial não era
unívoco e que o “sistema opressor” possuía falhas que permitiam aqui e ali a manifestação
daquilo que tanto combatiam.
198

Quando os jornais reclamavam a ação da polícia, muitas vezes acabavam


reclamando da inoperância desta, já que os pajés ao serem denunciados ou presos eram
apresentados com grande familiaridade da maioria, mas não das forças policiais cujas
limitações impediam atuação no combate a diversos crimes ou mesmo nos locais mais
distantes, como no caso do documento acima.

Mapa 9 Localização do Lugar “Furo” em relação ao centro da cidade de São Luís (Mapoteca APEM)

Mesmo com a distância entre o centro da cidade e o lugar em que ocorreria a


brincadeira, a duração da mesma poderia fazer chegar aos ouvidos da polícia que ali se
realizava uma pajelança, como costumavam ser denunciadas na maioria dos casos as
manifestações religiosas ou lúdicas que não possuíam relação com os padrões aceitáveis à
época.
Isso mostra que aqueles que pediam licença tinham consciência dos limites
impostos, de como não transgredi-los e do perigo de serem interpretados com transgressores
pela polícia. As relações baseadas na lei guardavam ainda uma pessoalidade latente, nos casos
199

em que a opinião da autoridade policial e a forma como se apresentava os requerentes


acabavam tendo um peso significativo para serem ou não permitidas.
Essa pessoalidade favorece o diálogo ou a negociação por meio de um complexo
processo de resistência que se processava internamente aos limites impostos e também
rompendo com os mesmos. Essa forma muito irregular de resistência ou que se desenvolve de
maneira quase invisível faz com que seja muito mais claro à primeira vista a constatação da
força da perseguição e não dos que eram perseguidos.
É possível que o discurso do tempo de terror tenha sido construído pelo fato de não
se visualizar, nem individualmente nem no conjunto das ações dos pajés, um
movimento revolucionário, uma resistência capaz mesmo de subverter a ordem das
relações sociais. Mas o fato de não terem sido revolucionárias não implica que essas
ações tenham deixado de produzir transformações. De fato, quatro critérios têm sido
exigidos para a “verdadeira” resistência: tem de ser coletiva e organizada, e não
privada e desorganizada; deve ser fundamentada e altruísta, em vez de oportunista e
egoísta; deve ter consequências revolucionárias; deve negar em vez de aceitar a base
da dominação. Mas essa é uma noção de resistência que deve ser questionada, pois
há “formas cotidianas de resistência”, isto é, práticas privadas e isoladas de
resistência, uma espécie de resistência velada que nunca se arrisca a contestar as
definições formais de hierarquia e poder. Para a maioria das classes subordinadas
que tiveram poucas perspectivas de melhorar seu status, essa forma de resistência
tem sido a única opção. (BARROS, 2009, p. 164).

Assim, dentro do universo da repressão e dos limites impostos pelas licenças


(horários, dias, locais, valores) os terreiros de Tambor de Mina conseguiram se manter
controladores do seu tempo, mantendo um calendário, organizado de acordo com a estrutura
ritual e simbólica de cada casa. A pajelança, apesar da perseguição, conseguiu atender a
demanda pelos serviços religiosos e terapêuticos da população.
A pesquisa é um procedimento que reserva mudanças sensíveis no seu desenrolar
e muitas vezes o pesquisador é obrigado a mudar seus planos de trabalho para poder dar
continuidade para o que já iniciou. No caso do trabalho apresentado a pesquisa documental
mostrou uma rica fonte (qualitativa e quantitativamente) de informações sobre as
manifestações culturais no passado, mas infelizmente apenas parte desta série pôde ser
pesquisada, já que ao percorrer parte do recorte temporal pretendido um grande volume de
dados já havia se acumulado.
Lidar com um volume grande de informações exige do pesquisador não só tempo,
mas esforço para poder contemplar o maior número de informações e detalhes diferentes que
surgem após cada nova leitura. As informações também surgem a partir de formas de
classificação trabalhadas, agrupar os dados por uma temática ou período podem gerar novas
indagações que merecem um novo esforço de análise.
200

A posse dos dados e das informações necessárias seria uma etapa que, concluída
satisfatoriamente, tornaria fácil a escrita do trabalho em que as análises são apresentadas, mas
um novo esforço foi empreendido. Situar a pesquisa em um espaço acadêmico exigiu atenção
ao referencial teórico e metodológico para legitimar a cientificidade das considerações
apresentadas.
O primeiro capítulo deste trabalho resulta, sobretudo, de um esforço para situar ou
criar um espaço apto para que um trabalho de história fosse aceito e praticável dentro das
exigências das ciências sociais, sem que fosse necessário unicamente apelar para o discurso
de uma origem comum das áreas. Foi preciso ir além e mostrar como dentro de epistemes
específicas seria possível articular elementos para tornar possível ler um objeto da história
dentro das ciências sociais e ai a noção de ler antropologicamente os textos históricos,
trabalhada por Sahlins (2003) se mostrou adequada e capaz de imprimir uma identidade a
perspectiva aqui trabalhada.
No segundo capítulo, historiográfico, propriamente dito, o trabalho passa a se
dedicar necessariamente ao objeto ao retomar aquilo que já foi produzido sobre a temática não
somente para situar a fala sobre o objeto, mas também identificar possíveis elementos a serem
utilizados, discutidos e refutados. O contato com o que já foi produzido sobre o tema forneceu
ferramentas de análises úteis para compreensão de uma série de fatores que estão presentes no
trabalho e que merecem atenção por ser pertinente a análise pretendida.
O período entre 1889 e 1910 representa um momento de incertezas e indefinições
no plano político e econômico nacional. A adaptação a um novo modelo de governo e a
reorganização das instituições e órgãos administrativos foi fundamental para a elaboração de
um tipo de Brasil que viria a se constituir após a proclamação da República. Os autores são
unânimes em mostrar o quão intenso foi o período no que tange as mudanças, mas alguns
poucos preocupados em demonstrar que tais mudanças devem ser matizadas já que se
distribuíram irregularmente ao longo do espaço.
De certa forma este é o cenário que tenho em mente ao trabalhar questões
culturais no período republicano em que dois Brasis se encontram no ambiente urbano, de um
lado a tentativa de reforma social e urbana e do outro uma resistência às ações dos órgãos
públicos. Essa resistência, no entanto, nada tem relacionada com a intenção de resistir
racionalmente e arquitetadamente contra a ação do poder público, mas é uma resistência que
se constitui nas práticas cotidianas, na ação dos agentes culturais que nesse momento de
indefinições aproveitam para reelaborar suas formas de expressão, seja lúdica, religiosa ou
artística.
201

O Tambor de Mina ou a Pajelança são apenas dois, dos vários objetos regulados
por órgãos públicos que visavam construir um cenário urbano propicio ao desenvolvimento de
uma sociedade articulada a partir de um modelo que excluía as formas populares de
expressão. Por serem manifestações religiosas da população pobre e principalmente negra e
mestiça eram vistas ainda como exemplo de um tempo passado, do atraso e da barbárie que
impediam a civilização de se desenvolver.
A ação dos órgãos de higiene tinha na pajelança, enquanto exercício ilegal de
medicina, uma de suas inimigas. Mas não foi unicamente a ação dos ideais de higiene e saúde
pública que viriam a se constituir como combatentes dos pajés, um longo histórico de
perseguições, que também eram religiosas, ainda ecoavam nas ações do estado laico.
Dentro dessas formas de reinventar-se e de manter-se viva, seja pela demanda
social pelos serviços dos pajés, seja pelas obrigações religiosas e pela devoção, a Pajelança e
o Tambor de Mina, foram aos poucos dando lugar a uma religiosidade característica desse
espaço sincrético e mestiço. Ainda no século XIX é possível observar uma relação muito
próxima entre o Tambor de Mina e a Pajelança, que merece ser bem mais explorada, tendo em
vista que não são tão distantes assim uma da outra.
202

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Permanente.
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Jornal Diário do Maranhão
Jornal A Campanha.
3. Legislação:
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
Código de Postura de São Luís- 1866
Código Criminal do Império – 1830
Constituição do Império do Brasil - 1824
Constituição da República do Brasil – 1891
Lei 358 de 1904 – Organiza o serviço sanitário do Estado.
4. Diversos:
Levantamento Censitário - 1872
Anuário Estatístico Brasileiro – 1908
Museu Afro-Digital (www.museuafro.ufma.br)
209

ANEXOS
210

ANEXO 1

Quadro de Henrique Bernardelli representando o momento em que Deodoro da Fonseca


derruba o chefe do Gabinete Imperial e é ovacionado como proclamador da República.
211

ANEXO 2

Decreto sobre a proibição de intevenção do Estado em assuntos religiosos.

O decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890 declara que o estado é proibido de intervir em


assuntos religiosos conforme artigos abaixo.
Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis,
regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e
crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do
orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.
Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu
culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou
publicos, que interessem o exercicio deste decreto.
Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, sinão
tabem as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o
pleno direito de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua
disciplina, sem intervenção do poder publico.
Conforme a constituição republicana de 1891 a liberdade religiosa tornava-se um direito do
cidadão e os assuntos sobre essas religiões não competiam ao Estado desde que não
infringissem o direito comum conforme artigos abaixo.
Art. 11 - É vedado aos Estados, como à União:
1 º ) criar impostos de trânsito pelo território de um Estado, ou na passagem de um para
outro, sobre produtos de outros Estados da República ou estrangeiros, e, bem assim, sobre os
veículos de terra e água que os transportarem;
2 º ) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;
Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu
culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito
comum.
No caso do Maranhão um dos decretos do Governador do Estado foi determinar o livre
exercício dos cultos religiosos, conforme trecho do Decreto nº 7 de 23 de Dezembro de 1889.
O Bacharel Pedro Augusto Tavares Junior. Governador do Estado do Maranhão, por
nomeação do Governo Provisorio da Republica dos Estado-Unidos do Brazil.
Considerando que a liberdade de consciencia é uma das maximas fundamentaes do regimen
republicano;
Considerado que é da essência d’esse immortal direito do pensamento e da razão a perfeita e
mais completa igualdade dos diversos cultos: e Considerando que este Estado não pode e
nem deve demorar a declaração do salutar principio e sua sincera applicação.
RESOLVE:
Art. 1º - E´ reconhecido e garantido a todas as seitas e religiões o pleno exercício dos seus
cultos, podendo edificar seus templos com a forma interior e exterior que bem convier ou
parecer aos interessados, salva qualquer futura deliberação dos poderes federaes a respeito.
212

ANEXO 3

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: Trecho referente às regulamentações


acerca da magia e outras práticas religiosas.

TITULO III

DAS FEITIÇARIAS, SUPERSTIÇÕES, SORTES, E AGOUROS.


Como serão castigados os que usarem de Arte Magica

894 Assim como com todo o cuidado, e vigilancia devemos procurar por todos os meios, a
conservação, e augmento de nossa Santa Fé Catholica, e Religião Christã, assim somos
obrigados a trabalhar por extingir os pecados, que por algum modo offendem a sua puresa, e
santidade, entre os quaes é usar de Arte Mágica. Por tanto, em satisfação de nosso Pastoral
Officio, ordemanos, e mandamos, que toda a pessoa que fizer alguma cousa conhecidamente
procedida de arte Magica, como é formar apparencias fantasticas, transmutações de corpos, e
vozes, que se oução, sem se ver quem falla, e outras cousas que excedem a efficacia das
cousas naturaes, incorrerá em pena de excomunhão maior ipso facto a nós reservada. E sendo
plebeo, em que caiba pena vil, será posto á porta da Sé em penitencia publica com uma
carocha na cabeça, e vela na mãe em um Domingo, ou dia Santo de guarda no tempo da Missa
Conventual, e será degredado para o lugar que parecer. E cahindo segunda vez fará a mesma
penintencia e sera degradado para algum lugar de Africa; e se for convencido terceira vez,
será degradado para galés pelo tempo que parecer, conforme a qualidade da culpa, e mais
circunstancias, que concorrerem.
895 E sendo a pessoa nobre, em que não caiba pena vil, pagará pela primeira vez, sendo
convencido, cincoenta cruzados; pela segunda cem; e pela terceira duzentos, e será degradado
para algum dos lugares de Africa. E se for Clerigo de Ordens Sacras, haverá a mesma pena
com suspensão de suas Ordens e será ultimamente privado de todos os Beneficios, e pensões
que tiver, e continuando nas taes culpas lhes serão accrescentadas as penas na fórma que
parecer conveniente.

TITULO IV

QUE NEM-UMA PESSOA TENHA PACTO COM O DEMONIO, NEM USE DE


FEITIÇARIA; E DAS PENAS EM QUE INCORREREM OS QUE FIZEREM.

896 Fazer pacto com o Demonio contêm em si grave malicia, assim pela inimisade, que Deos
no principio do mundo poz entre elle, e os homens, como tambem porque é fazer concerto
com u inimigo de Deos. Por tanto ordenamos, e mandamos, que o que fizer pacto com o
Demonio, ou invocar para qualquer effeito que seja, ou usar de feitiçarias para mal, ou para
bem, principalmente se o fizercom pedras de Ara, Corporaes, e cousas sagradas, ou bentas, a
fim de legar, ou deslegar, conceber, mover, ou parir, ou para quaesquer outros effeitos bons
ou máos, incorrerá em excomunhão maior ipso facto. E sendo Clerigo o comprehendido em
alguma dessas cousas será pela primeira vez suspenso das Ordens, e degradado pelo tempo
que nos parecer, e condemnado em vinte cruzados para as despezas da Justiça, e accusador; e
sendo mais vezes comprehendido se lhe aggravarão as ditas penas conforme a qualidade da
pessoa, e circunstancias da culpa.
897 E se for leigo nobre, alem da dita pena de excommunhão, e dinheiro, será degredado pela
primeira vez por dous annos para fóra do Arcebispado; e sendo mais vezes comprehendido se
lhe agravarão as penas conforme sua culpa pedir. E sendo plebeo fará penitencia pública na
213

Igreja em um Domingo, ou dia Santo à Missa Conventual, e pagará dous mil reis, apllicados
na maneira sobredita. E não podendo pagar a pena pecuniaria se lhe commutará na corporal
que parece; e se reincidir na culpa, será degradado para S. Thomé, ou Benguella.
898 E nas mesmas penas de excommunhão, pecuniarias, e corporaes respectivamente,
incorrerão aquelles, que consultarem feiticeiros, ou usarem de feitiarias conhecidas por taes, e
tiverem ou lerem seus livros, ou de supertições, e advinhações, ou usarem de cartas de tocar,
ou fizerem quaesquer outras coisas semelhantes a estas: e os que apremderem, ou ensinarem
publica, ou secretamente todas, ou cada uma dellas.

TITULO V

DAS PENAS DOS QUE USAM DE CARTAS DE TOCAR , E DE PALAVRAS, OU


BEBIDAS AMATORIAIS, OU COUSAS SEMELHANTES

899 Prohibimos estreitamente a todos os nossos subditos, que usem palavras, cartas de tocar,
e de cousas, que affeiçoem, e alienem os homens de suas mulheres, e as mulheres de seus
maridos, e de medicamentos, que tirem o juizo, ou consumão os corpos. E fazendo alguem o
contrario haverá as penas impostas no titulo precedente, provando-se que as taes cousas
tiveram effeito: porque em tal caso se fica concluido, que as taes palavras e obras procedem
de algum commercio, familiaridade, e pacto com o Demonio. Porem se por outra via se
mostrar, que as taes palavras se dizem, e as taes obras se fazem por engano, e fingimento sem
algum effeito, e só a fim de ganhar dinheiro, serão os delinquentes castigados arbitrariamente
com penas pecuniarias, e corporaes, de modo, que semelhantes desordens se atalhem.
900 E pelo mesmo modo serão castigado, e julgados os que advinharem cousas secretas, e
casos futuros, ainda que se faça juízo e levantem figuras pelos movimentos do Sol, Lua,
Estrellas, e quaesquer outras cousas, salvo se forem aquellas, que pedem do movimento dos
Ceos, e suas influencias, força dos elementos, e efficacia das cousas naturaes, como são bom,
ou máo tempo para as sementeiras, fructos, navegações, saude, doenças, e outros effetios
semelhantes, sem que se intromettão nos sucessos que dependem do livre alvedrio, e
consquencias delles: porque estas pertencem á judiciária, condemnada pelos Summos
Pontifices, que suppoem commercio, familiaridade, e pacto com o Demonio.
901 E porque destes delictos, ha outras desordens de algum modo a elles semelhantes, como
são: rezar á Lua, e ás Estrellas; fazer deprecações aos Santos com certas ceremonias para taes
effeitos, e ainda bons, assentando, que sahirão infaliveis; ter por certaes as cousas que se
representão em sonhos; fazer observações dos dias para bons, e máos sucesso, pelas vozes, e
encontro dos animaes, ou pelo cantar ou voar das aves, e outras, supertições semelhantes, as
quaes ainda que regularmante procedão de simplicidade, sempre tem algum genero de
malicia, e fraqueza na Religiã. Por tanto mandamos, que todos aquelles, que as ensinarem, e
usarem com escandalo, sejão castigados com as penas, que parecer a nossos Ministros. E
encarregamos muito aos Confessores reprehendão a este vicio nas Confissões, e os Pregadores
no pulpito, para que de todo o modo se extingua a este ressabio do gentilismo neste nosso
Arcebispado, no qual cada da entrão gentios de varias partes.
902 E ainda que Deos em sua Igreja deixou graça para curar a qual se póde achar não somente
nos jstos, mas ainda nos pecadores; com tudo, porque no modo com que se costuma usar desta
graça se podem introduzir perniciosas supertições, e peccaminosos abusos, estreitamente
prohibimos, sob pena de excomunhão maior ipso facto incurrenda, e de vinte cruzados, que
ninguem em nosso Acerbispado benza gente, gado, ou quaesquer animaes, nem use de
ensalmos, e palavras, ou de outra cousa para curar feridas, e doenças, ou levantar espinhela
sem por Nós ser primeiros examinao, e aprovado, e haver licença nossa por escripto. E sob a
214

mesma pena prohibimos, que nem-uma pessoa secular intente deitar Demonios fora dos
corpos humanos.
903 E quando as ditas feitiçarias, sortilegio, e supertisções envolverem manifestamente
heresia, ou apostasia na Fé, avisarão nossos ministros com todo o segredo, e recato aos
Inquisidores do Santo Officio, para que no dito Tribunal se ordene o que se ha de fazer, pois a
elle pertence o castigo deste crime. E mandamos a todos os parochos que ao menos tres vezes
cada anno leião este titulo a seus freguezes.
215

ANEXO 4.

Quadro contendo os números relativos ao surto de varíola em algumas cidades do Brasil no


ano de 1908.

Cidade População Total Número de Mortes Porcentagem da


População Total
Rio de Janeiro 825.812 9.046 1,00 %
Recife 173.120 787 0,40 %
São Luís 49.584 229 0,40 %
São Paulo 300.000 183 0,60 %
Salvador 292.181 85 0,02 %
216

ANEXO 5
Pedido de Licença Para Festa.
O pedido abaixo em nome de Osana Maria da Conceição (Mãe Hosana da Casa das Minas).
Este documento possui certo detalhamento sendo mais extenso em comparação aos demais.
217

Pedido de Licença Para Festa em nome de Francisco Xavier das Chagas. O pedido é bem
objetivo informando os dias e o endereço e para que solicita licença.
218

ANEXO 6

Calendário Ritual do Terreiro de Manoel Teu Santo em comparação aos calendários da Casa
das Minas e Casa de Nagô

Data do Período da Festa Calendário Casa de Nagô79 Calendário Casa das Minas80
Pedido (Solicitado para licença) (Festas Compreendidas no (Festas Compreendidas no
Período) Período)
24, 25, 26 de dezembro: Nochê
Dezembro: Natal. Naé (Natal)
31 de dezembro: Tóquens
21/ 12/ 25 de dezembro a 24 de 1e 2 de janeiro: Zomadônu (Ano
1896 janeiro Novo)
5, 6, 7 de janeiro: Doçu (Festa de
Reis)
19 e 20 de Janeiro: São 19 de janeiro: Davice (Queimação
Sebastião (Xapanã). de Palhinhas)
20 e 21 de janeiro Tói Acossi (S.
Sebastião; S. Lázaro e S. Roque).
21/ 06/ 23 ao dia 30 de junho (S. 24 de junho: S. João (Xangô e 23, 24, 25 de junho: Nochê Naé
1896 João, S. Pedro e S. Marçal) Badé) (S. João);
[1]
30 de junho: S. Pedro (Pedro 28, 29, 30 de junho: Badé. (S.
Angasso) Pedro e S.Marçal)
13 e 27 de maio; Maio: Festejo do Divino Maio: Festejo do Divino Espírito
Espírito Santo 81 Santo
12/ 06/ 6, 13, 17, 23, 24, 25, 29 e 24 de junho: S. João (Xangô e 11, 12 e 13 de junho: Poliboji (S.
1897 30 de junho [2] Badé) Antônio)
30 de junho: S. Pedro (Pedro 23, 24 e 25 de junho: Nochê Naé
Angasso) (S. João).
25 de julho [3] 2º Domingo de agosto: S. 2º Domingo de agosto:
Benedito Averequete (S. Benedito)
15 e 31 de agosto 25 de Agosto: S. Luís Rei de Julho: Tambor de Choro.
França.
8 e 19 de setembro [4]
15 e 31 de outubro [5] 27 de Setembro: Cosme e 27 de Setembro: Toçá e Tocé
Damião (S.Cosme e Damião).
1º de novembro [6]
24, 25 e 31 de dezembro Dezembro: Natal. 24, 25 e 26 de dezembro: Nochê
Naé (Natal)
21/ 12/ Janeiro: Festa de Reis e 1, 2 de janeiro: Zomadônu (Ano
Queimação de Palhinhas82 Novo)

79
Calendário baseado em: SANTOS (2000); CARDOSO JÚNIOR (2001), organiza a sua descrição do
calendário da Casa de Nagô a partir das efemérides católicas, não apresentado em todos os casos quais as
entidades afro-brasileiras que estão presentes na festa.
80
Calendário baseado em FERRETTI, S. (2009).
81
Como informado anteriormente, as festas para o Divino Espírito Santo não aparecem como Tambor de Mina
nos pedidos. Como se desconhece a estrutura ritual do terreiro de Manoel Teu Santo fica difícil afirmar como a
festa era organizada ali.
82
Cerimônia em que se desmonta o presépio e as folhas de murta que servem de adorno são queimadas.
219

1897 5, 6, 7 de janeiro: Doçu (Festa de


1, 5, 6 e 20 de janeiro Reis)
19 e 20 de Janeiro: São 19 de janeiro Davice (Queimação
Sebastião (Xapanã). de Palhinhas)
20 e 21 de janeiro Tói Acossi (S.
Sebastião; S. Lázaro e S. Roque).
2 de fevereiro: Iemanjá; Fevereiro: Torração e Arrambã
21/ 02/ 23 de fevereiro a 20 de Arrambã.
1898 julho [7] Maio: Festejo do Divino Maio: Festejo do Divino Espírito
Espírito Santo Santo
24 de junho: S. João (Xangô e 11, 12 e 13 de junho: Poliboji (S.
Badé); Antônio)
30 de junho: São Pedro (Pedro 23, 24 e 25 de junho: Nochê Naé
Angasso) (S. João)
Dezembro: Natal. 24, 25, 26 de dezembro: Nochê
Naé (Natal)
20/ 19 e 20 de Janeiro: S. Sebastião 31 de dezembro: Tóquens;
12/ 23 de dezembro a 25 de (Xapanã).
1898 janeiro. 1 e 2 de janeiro: Zomadônu (Ano
Novo)
1º de Janeiro: Festa de Reis e 5, 6 e 7 de janeiro: Doçu (Festa de
Queimação de Palhinhas Reis)
19 de janeiro Davice (Queimação
de Palhinhas)
20 e 21 de janeiro Tói Acossi (S.
Sebastião; S. Lázaro e S. Roque).
[1] Referenciais Católicos como foram apresentados no pedido.
[2] Os dia 06 e 17 de junho não apresentam relações com os calendários das Casas.
[3] Essa data não aparece no calendário ritual das Casas.
[4] Não foi possível estabelecer relação com o calendário das Casas e os dias do pedido.
[5] Não foi possível estabelecer relação com o calendário das Casas e os dias do pedido.
[6] Não foi possível estabelecer relação com o calendário das Casas e os dias do pedido.
[7] O período poderia incluir a Festa do Divino Espírito Santo, mas não foi descrito no pedido.
220

ANEXO 7
Suposta fotografia de Manoel Teu Santo, publicada por Euclides Ferreira em um livro de sua
autoria, sem citar a origem da imagem reproduzida.
221

ANEXO 8
Quadro contendo informações sobre diversos pedidos de licença para Tambor de Mina. Os
mapas abaixo indicam os locais presentes nos pedidos de licença que puderam ser
identificados

Nome Data do Período Solicitado Local Observações


Pedido para Licença
Maria 7/ago/1897 Nos domingos e dias Sitio Dois Leões
Pereira de festa em um (Caminho Grande)
Pinho período de seis
meses a partir da
data do pedido
Maria Rita 1/abr/1898 30 de abril Rua de São Seria uma dançante da
da Pantaleão Casa das Minas,
Conceição solicitando licença?
Claudina 14/abr/1898 17 a 30 de abril. Caminho Grande
Maria do
Carmo
Maria Rosa 8/out/1898 Seis meses a partir Rua da
Ferreira de da data do pedido Misericórdia, nº3
Pinho83
Cilistina 20/jan/1899 Seis meses a partir Itapicurahyba Seria “Mãe Celetrina” do
Ribeiro da data do pedido (Distrito do Terreiro do Engenho, no
Sousa Bacanga) Tirirical, identificada por
SANTOS e SANTOS
NETO, (1989, p. 36)
15/dez/1903 Natal, Anos Bons e Oiteiro da Cruz
Andreza Reis
Vieira de 24, 25 e 31 de
Jesus 20/dez/1906 dezembro Sitio Travasso
1, 5 e 6 de janeiro
1 e 2 de fevereiro
De 30 de maio a 29 Sitio Roma
Maria 29/mai/1903 de junho (Caminho Grande) Filha da Casa de Nagô.84
Pretextada (Festividade de Santa
dos Prazeres Bárbara)
24/dez/1907 24 de dezembro a 26 Filipinho
de janeiro
27/set/1906 Sem datas Fundos do Seria o Terreiro de Rosa
Matadouro Guardamor, Filha da
Maria do 4/dez/1906 Festa de Santa Fundos do Casa de Nagô, que
Rosário Bárbara 4 de Matadouro segundo SANTOS e
Santos dezembro até o Natal SANTOS NETO, (1989,
31/dez/1906 Licença para Fundos do p. 34) ficava na matas do
continuar a Matadouro Batatã e depois mudou-se
festividade de para o Matadouro.

83
A semelhança no nome das duas requerentes me faz interpretar que é a mesma pessoa, apenas com mudanças
ou erros na grafia do documento, o que era comum. Os locais dos pedidos são diferentes, razão pela qual foram
mantidas separadas.
84
Maria do Rosário e Manoel dos Santos Neto a apresentam como Maria Protestada, cuja localização do terreiro
não foi identificada. (SANTOS e SANTOS NETO, 1989, p. 36.)
222

nascimento em sua
residência. 31 de
dezembro; 1, 5, 6, 19
e 20 de janeiro.

MAPA 1: Localização do Sítio Dois Leões; Filipinho; Matadouro; Itapecurahyba; Caminho


Grande.

MAPA 2: Rua da Misericórdia.

MAPA 3 – Rua de São Pantaleão.


223

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