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06/11/2018 O Marxismo, crítica da economia política ou economia política?

O Marxismo, crítica da economia política ou economia


política?
por Rémy Herrera [*]

O marxismo é uma das armas teórico-


práticas mais poderosas – senão a mais
poderosa – de que as classes
trabalhadoras dispõem para travar as suas
lutas. Isso explica simultaneamente a sua
presença marginal nas esferas
académicas e intelectuais, onde essas
classes não estão (ou quase não estão)
representadas e onde a influência
ideológica da burguesia é asfixiante, e
também o facto de o marxismo não
desaparecer, apesar de sinais evidentes de declínio e das esperanças dos seus inimigos –
incluindo os sociais-democratas. No entanto, a sua relação com a economia, enquanto
disciplina científica, não é evidente. Primeiro, porque a economia dita "política", que
apareceu na Europa ocidental entre os séculos XVI e XVIII, é um subproduto da evolução
histórica do sistema capitalista.

A fórmula escolhida por Jean-Baptiste Say para definir a economia como a ciência que
estuda a forma como "se formam, se distribuem e se consomem as riquezas" [1] ,
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transmite a impressão de que isso acontece a estas últimas "se não por si só, pelo menos,
duma forma independente da vontade do homem", segundo escreveu Léon Walras, que
acrescentou: "o que seduziu os economistas para esta definição [a definição dada por
Say], é precisamente esta cor exclusiva de ciência natural que ela dá a toda a economia
política. Este ponto de vista ajudava-os especialmente na sua luta contra os socialistas.
Qualquer plano de organização da propriedade era rejeitado por eles a priori e, por assim
dizer, sem discussão". [2] O marxismo vai mais longe, mostrando, como sublinhava
Engels, que "a economia não trata de coisas, mas de relações entre pessoas e, em última
análise, entre classes; mas essas relações estão sempre ligadas às coisas e aparecem
como coisas". [3]

As ideologias dominantes do capitalismo consolidaram-se com as mutações deste campo


disciplinar que se transformou lentamente de "economia política" em "economia pura".
"Economia política" é a forma sob a qual ela nasceu por volta do século XVII, graças a
autores como Antoine de Montchrestien e William Petty [4] , traduzindo a predominância
da economia sobre a política consecutiva à afirmação do capitalismo: depois sob a que foi
aperfeiçoada a partir do século XVIII, por Adam Smith, David Ricardo e as contribuições
clássicas. "Economia pura" é o que pretende passar a ser a partir do final do século XX, e
cada vez mais neste início do século XXI. A parte central do tríptico cronológico que é
representado pela formulação duma "economia política pura" (a teoria walrasiana do
equilíbrio geral dos mercados) nos últimos decénios do século XIX, num momento em que
a disciplina se tinha autonomizado (da filosofia e do direito, e depois da ciência política e
da sociologia) e já estava solidamente institucionalizada.

É certo que o marxismo, primeiro que tudo, é uma crítica a esta economia política. Marx e
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Engels têm uma conceção histórica do capitalismo e criticaram aqueles que o consideram
uma interpretação "fetichista", atribuindo um poder a simples objetos materiais. Insistem
nas relações sociais. O capital é uma relação social de produção, ligado a uma
determinada estrutura social e historicamente determinada. São os meios de produção
monopolizados por uma parte da sociedade, e que comandam, numa relação de domínio
e de exploração, os trabalhadores que vivem dos seus salários. Criticaram os clássicos
que identificaram "leis económicas" sem perceberem que estas são históricas e exprimem
as contradições da sociedade e as tendências para mudanças profundas nessa
sociedade.

Mas o marxismo, dado ser uma crítica, também é o fundamento dos conceitos chave dum
saber científico autêntico, radicalmente alternativo, em economia política. É com Marx e
Engels, no quadro duma conceção materialista da história, que vão ser determinadas as
características do modo de produção capitalista, vão ser articuladas as forças produtivas e
as relações de produção, vão ser traçados os contornos dos antagonismos de classes,
vão ser desvendados os segredos da exploração, incluindo os movimentos complexos do
capital, vai ser medida a gravidade das suas crises – e, na prática, vão ser abertos os
horizontes das revoluções proletárias que estavam a chegar.

Na altura dos processos de transição socialista, o recurso aos instrumentos duma


planificação baseia-se numa ciência económica própria destes sistemas, adaptada ao seu
funcionamento para a propriedade social, o papel dos mecanismos dos mercados, a
organização institucional, etc. O ciclo é iniciado pelo objetivo de atingir a melhor satisfação
possível das necessidades do conjunto da população. Já não é o poder de compra dos
agentes que é determinante, mas a opção de satisfazer as necessidades sociais e o
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desenvolvimento. As atividades produtivas devem ser efetuadas com uma eficácia


crescente, graças a este novo "cálculo económico". Mobilizam-se termos bastante
semelhantes aos utilizados no capitalismo (excedentes, custos…), mas o seu conteúdo é
distinto dada a especificidade das relações em que se inserem. Os espaços ocupados
pelo mercado estão condicionados pela predominância de critérios sociais e pelo objetivo
de crescimento compatível com a solidariedade. A lógica que guia a reprodução alargada
da economia já não é a do lucro e da exploração.

Que o marxismo é simultaneamente crítico da economia política e da economia política


alternativa, e confirmado pela própria trajetória da ciência económica moderna. A corrente
neoclássica, atualmente hegemónica, apanhou o hábito de se apresentar como a herdeira
dos pensadores clássicos. Ora, as roturas que foi obrigada a fazer, em relação a estes
últimos, foram decisivas e necessárias, perante os desenvolvimentos marxistas,
destruidores e criadores, simultaneamente: parentes tão próximos das reflexões clássicas,
mas levando, pelos caminhos que Marx descobriu, à teoria da extorsão da mais valia.

Estas roturas, que os neoclássicos escondem, são visíveis a nível metodológico, teórico e
conceptual. i) No método: com o individualismo metodológico desaparece do pensamento
burguês toda a visão sócio-histórica do capitalismo, bloqueando as análises em termos de
classes sociais e de tendências a longo prazo. ii) No plano teórico: dada a fixação sobre a
utilidade, que abandona a realidade social dum conjunto de homines œconomici , quebra-
se a ponte entre a teoria do valor e a da exploração e, ao mesmo tempo, uma certa
ligação da economia com a política. iii) Nos conceitos: dada a substituição de um
equilíbrio a curto-prazo por ajustamento dos preços por um equilíbrio a longo-prazo por
ajustamento das quantidades, fica condenada a compreensão dos ciclos, e sobretudo das
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crises.

Atualmente, estas roturas (entre clássicos e neoclássicos) são apresentadas de modo


falacioso pela corrente predominante, como continuidades que permitem transformar a
correspondência ideológica entre "harmonia universal" das teorias (históricas, sociais) dos
clássicos e "o equilíbrio ótimo" dos pseudo-teoremas (a-históricos, a-sociais) dos
neoclássicos num contínuo puramente teórico. Ou como pô-los em comunhão uns com os
outros – com exceção de Marx! – numa visão apologética unificada de um capitalismo
considerado como o único concebível na teoria e no horizonte inultrapassável da história.
Essa corrente predominante, em apoio das suas pretensões a ciência, a riqueza das suas
"teorias novas", quando a investigação que controla já não fornece, segundo a opinião de
alguns dos seus eminentes representantes [5], o mínimo resultado inovador. [6] Daí
advém uma disciplina económica fictícia "apolítica", mas esmagada por uma corrente
hegemónica dogmática que a faz pender para o que eu chamo uma "ciência(ficção)
económica". [7]

O marxismo a que me refiro aqui é um pensamento liberto do economismo e do


determinismo em que muitos "ortodoxos" encerraram esta corrente depois de Marx. [8]
Este último, sobretudo no final da sua vida, em investigações consagradas
nomeadamente às formações sociais pré-capitalistas e comunitárias agrárias, insistiu na
necessidade duma visão da história não linear, sobre análises inovadoras em que as
relações de produção se interligassem noutras relações, a fim de engrossar o exame das
formas de propriedade, de domínio e de exploração e, portanto também sobre a
multiplicidade das vias possíveis de passagem ao socialismo.

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Para aprofundar: algumas referências do autor:


HERRERA (R.), "Critique de l'économie 'apolitique' ", L'Homme et la Société, n° 135, p.
87-104, Paris, 2000.
— "Y a-t-il une 'Pensée unique' en économie politique?", La Pensée, n° 325, p. 99-111,
Paris, 2001.
— "The 'New' Development Economics: A Neoliberal Con?", Monthly Review, vol. 58, n° 1,
p. 38-50, New York, 2006.
— "The Hidden Face of Endogenous Growth Theory", Review of Radical Political
Economics, vol. 38, n° 2, p. 243-257, New York, 2006.
— "A Critique of Mainstream Growth Theory: Ways out of the Neoclassical Science(-
Fiction) and Towards Marxism", Research in Political Economy, vol. 27, n° 1, p. 3-64, New
York, 2011.
— "Neoclassical Economic Fiction and Neoliberal Political Reality", International Critical
Thought, vol. 3, n° 1, p. 98-107, Londres, 2013.
— "A Marxist Interpretation of the Current Crisis", World Review of Political Economy, vol.
5, n° 2, p. 128-148, Londres, 2014.
— Penser les crises, (dir.) (avec A. Casanova), Le Temps des Cerises, Paris, 2014.
Notas:
[1] SAY J.-B., Traité d'économie politique, Chapelet, Paris, 1803.
[2] WALRAS L., Œuvres économiques complètes, tome 8, Economica, Paris, 1988.
[3] MARX K. et ENGELS F., Études philosophiques, Éditions sociales, Paris, 1977.
[4] L'expression "économie politique" est arrivée avec le Traicté de l'œconomie politique (1615) de Montchestien.
[5] MALINVAUD E., "Pourquoi les économistes ne font pas de découvertes", Revue d'économie politique, vol. 106, n° 6,
p. 929-942, 1996.
[6] HERRERA R., La Maladie dégénérative de l'économie: le "néoclassicisme", Delga, Paris, 2015.
[7] HERRERA R., "Dépenses publiques et croissance économique - Pour sortir de la science(-fiction) néoclassique",
L'Harmattan, Paris, 2010.
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[8] HERRERA R., Friedrich Engels Karl Marx - Sur le colonialisme, Éditions critiques, Paris, 2018

[*] Investigador do CNRS (Centro de Economia da Sorbonne),


remyherrera.com/index.php/fr/
Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


07/Out/18

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