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Do Modernismo ao Contemporâneo
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Doutoranda em Estudos Literários – Unesp/Araraquara.
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Será utilizada a 4ª edição, de 2005 (Record).
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Será utilizada a 4ª edição, de 2002 (Record).
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concepção foi sem maiores alardes, ninguém ouviu os gritos da jovem poesia que
despontava para ecoar, mais tarde de maneira incontestável, todo seu poder de sedução.
Dividido em quatro partes delimitadas por títulos repletos de metáforas
(“Cabeludinho”, “Postais da cidade”, “Retratos a carvão” e “Informações sobre a
musa”), Poemas concebidos sem pecado trouxe ao tablado do papel a irreverência, o
humor, o diálogo com grandes nomes da Literatura Nacional e Internacional. O
nascimento de Cabeludinho foi a la Mário de Andrade, longe dos matos românticos de
Iracema. A heroína alencariana segue seu destino como guerreira lendária e mítica. Já o
anti-herói macunaímico, possui a preguiça como diretriz e vive a cansativa sina de um
herói sem nenhum caráter. Cabeludinho, também protagonista de uma saga
considerável, encontra em sua natureza a rebeldia de quem desafia Deus ao matar
Amassa barro e desaprende o que lhe é ensinado.
A trajetória do jovem que se descobre poeta caminha nas lembranças do
Pantanal, em meio às recordações eróticas. Manoel de Barros sente necessidade de si e
se despedaça em vários eus-líricos. Sua poética é repleta de encontros e desencontros,
cuja proposta salienta a fusão conturbada entre a memória e o corpo entre a linguagem
rasgada e a pudica palavra.
A crítica social era premissa de qualquer poeta que se correspondesse com seu
entorno, com o momento pelo qual passava o país e base para todos os textos
modernistas. Para Candido (1989, p. 182),
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pente./A gente pagava pra ver o fenômeno./A moça cobria o rosto
com um lençol branco e deixava/pra fora só o pelego preto que se
espalhava quase até pra/cima do umbigo./Era uma romaria
chimite!/Na porta o pai entrevado recebendo as entradas.../Um senhor
respeitável disse que aquilo era uma/indignidade e um desrespeito às
instituições da família e da Pátria!/Mas parece que era fome.
(BARROS, 2005, p. 51).
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2005, p. 53).
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a produção metricamente perfeita dos Parnasianos:
Carta acróstica:
“Vovó aqui é tristão
Ou fujo do colégio
Viro poeta
Ou mando os padres ...”
Nota: Se resolver pela segunda, mande dinheiro para
comprar um dicionário de rimas e um tratado de versificação de Olavo
Bilac e Guima, o do lenço. (BARROS, 2005, p. 21).
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Disponível no site:<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=653&sid =249>,
site oficial da Academia Brasileira de Letras, acesso em 04 mai. 2009.
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presentes na poesia de Manoel de Barros, o que demonstra um denominador comum
entre os processos composicionais dos dois autores, tais como: a) o poder da palavra,
isto é, o verbo demiúrgico, pelo qual se recria e transcria o mundo; b) a representação
cultural do espaço poético; c) o emprego de palavras que vão do erudito ao popular; d) o
neologismo.
O lugar-comum não encontra descanso na narrativa manoelina. A trajetória de
Cabeludinho, alter-rego de Manoel de Barros, não termina no fechamento da obra. Na
verdade, ela anuncia o que depois se tornará a “pura inauguração de um outro universo”
(BARROS, 2002, p. 23). Sob a luz de um novo projeto estético-literário nasce o Livro
de Pré-Coisas.
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nascer, a palavra no instante inaugural, pelo estado “pré” das coisas. Abre-se, nesse
contexto, um terceiro espaço discursivo, natural, imagético, um lugar ainda não pensado
pelo leitor, embrionário do acontecimento, nem palpável nem visível, apenas um estado
em si. Tudo está por acontecer. Há um equilíbrio ainda inerte, sem movimento, apenas
“arquétipos” e previsões.
Nesse sentido, destaca-se a noção de “razão transversal” estipulada pelo
filósofo Wolfgang Welsch e discutida por René Ceballos (2007). Esse conceito
considera a multiplicidade das divergências e estabelece um “entrelaçamento de
distintas práticas discursivas (discursos literários e científicos) sem uniformizar nem
igualar sua heterogeneidade e pluralidade, senão permitindo-lhes deslizar para um
terceiro espaço para criar um novo campo operativo.” (CEBALLOS, 2007, p. 36,
destaque do autor).
Vive-se em uma sociedade cujo centro vibrante é uma relação que se sustenta
na desigualdade natural: a cultura se apresenta dessa forma, a economia se baseia neste
princípio, a dissimetria está no social e em todas as relações. Bauman (2007, p. 43),
concordando com Sartre, diz que a identidade é um “projeto para toda a vida”, um
construto que combina vários elementos que consolidam uma identidade – um
reconhecimento do que é cada um de nós. A identidade e os limites da arraia – peixe
que pode gerar e expelir miniaturas de si, peixe com aparência circular e achatada,
nadadeiras que parecem asas – são corrompidos: ora matriarca e útero fértil, ora
mercadoria que dá e bebe sangue, ora corpo que acolhe seres diferentes, identidades
desiguais, estados incompletos. É o que se verifica no fragmento abaixo:
Seu corpo deu sangue e bebeu. Na carne ainda está embutido o fedor
de um carrapato. De novo ela caminha para os brejos refertos. Girinos
pretos de rabinhos e olhos de feto fugiram do grande útero, e agora já
fervem nas águas das chuvas.
É a pura inauguração de um outro universo. (BARROS, 2002, p. 22)
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“outro universo”, um novo espaço de convivência entre seres diferentes, linguagens
outras. Há, na Contemporaneidade, um descolamento dos sentidos e dos discursos.
Segundo Célia Pedrosa (2008, p. 41),
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O ventre materno abriga outros seres e gemina inaugurações. A poética
manoelina nasce dessa multiplicidade, da desconexão com o habitual, da
indeterminação proveniente de novos seres e de novas linguagens. Para Filho (2006, p
7), “a marca da poesia brasileira, desde os anos 1970, é a multiplicidade de tendências.
Configura-se o que me permito chamar de „movimento de dispersão‟”. Embora essa
marca sinalize uma dispersão também de propósitos, de temas e de perspectivas, a
produção poética contemporânea evidencia um emaranhado de linguagens e formas que,
segundo Hollanda (1998, p. 11), demonstra uma inquestionável pluralidade de vozes.
Sendo assim, há uma perspectiva que caminha no sentido da indefinição como projeto
estético.
O discurso respira por si, fala por si, narra por si. No caso do “Agroval”, têm-
se rastros mínimos quanto à presença do autor ou narrador, marcado apenas nos três
primeiros parágrafos pela palavra “penso”. A transgressão das categorias narrativas
ressalta o narrador diluído na tessitura textual, sendo a percepção do objeto entendida
pela decomposição do próprio objeto. O peixe arraia decompõe-se em inúmeros outros
seres, em outras vidas e incompletudes. Assim:
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Barros quebra a perspectiva fechada cuja conceituação se fixa nos gêneros, em que a
prosa é contrária à poética. Segundo Paz (1984, p. 12), “[a] prosa é um gênero tardio,
filho da desconfiança do pensamento ante as tendências naturais do idioma. A poesia
pertence a todas as épocas: é a forma natural de expressão dos homens”. Tem-se como
senso comum que o lirismo está direta e indissociavelmente ligado ao puro
sentimentalismo. No entanto, já não se pode afirmar que o espírito do poeta divaga
livremente pelo discurso, recebendo das Musas a inspiração divinal. Há uma medida de
“razão” ordenadora que ressalta o mundo como significado.
Interligados pelo fio da continuidade, corpos e sistemas tornam-se recipientes
cujas noções de experiências, transformações e invento se fundem numa só perspectiva.
Nesse sentido, o desassossego provoca mudanças significativas sob todos os aspectos
observáveis de um processo, o que ressalta a estrutura de uma nova possibilidade
narrativa. E o poeta a faz.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Transitando por entre as gerações literárias desde 1937 até 2010 (ano da
publicação de “Menino do mato”), o poeta dialoga com as mudanças instauradas nos
campos sociais, culturais e artísticos e trava conversação direta e indireta com o terreno
discursivo da transitoriedade, do incompleto, do estado provisório – assim como se
apresenta a Literatura Contemporânea, que é transformação, que é pluralidade,
inconcluso e permanente mutação.
A saga autocrítica da poética de Manoel de Barros – como surge no poema
narrativizado “Agroval” – passeia pelo metafórico, faz alusão ao fantástico, transmuta
seres, subverte o linear, engana os olhos argutos dos leitores mais ávidos de surpresa.
É nesse sentido que a Literatura Contemporânea caminha: na inquietude, na
pluralidade dos discursos, oscilando entre a contestação e a constatação, sempre
mediada pelo mercado e/ou pela mídia. Para Secchin (1996, p. 110), poesia
contemporânea é “[m]últipla, oscilando entre a vanguarda, a tradição e a contradição,
assim tem sido a poesia brasileira das últimas décadas.”
A poética de Manoel de Barros não fala da coisa em si. Ela aniquila o objeto
para aproximá-lo de sua essência, elevando a linguagem ao status de indispensável. Não
expõe o discurso poético à naturalidade da expressão. No discurso poético manoelino, a
dessubstancialização ou a desconstrução desenvolve uma ruptura com a primeira
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existência própria da linguagem, proporcionando uma (re)significação do entendimento
narrativo.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Frederico. Poeta elabora a gramática das coisas inúteis. Folha de São
Paulo, São Paulo, 01 dez. 1990.
BARROS, Manoel de. Matéria de poesia. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
BARROS, Manoel de. Livro de pré-coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
BARROS, Manoel de. Poemas concebidos sem pecado. 4. ed. Rio de Janeiro: Record,
2005.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2007.
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CAMARGO, Goiandira de F. Ortiz. A poética do fragmentário: uma leitura da poesia
de Manoel de Barros. 1996. 299 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira. Faculdade
de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo: Editora
Ática, 1989.
FILHO, Domício Proença (org.). Concerto a quatro vozes. Rio de Janeiro: Record,
2006.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Esses poetas: uma antologia dos anos 90. 1.
ed. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1998.
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MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema: ensaios de críticas e de estética. 2. ed.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
SECCHIN, Antônio Carlos. Poesia e desordem. Rio de Janeiro: Top Books, 1996.
SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. 2. ed.
revisada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
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