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06/11/2018 A mercantilização e a esfera pública

A mercantilização e a esfera pública


por Prabhat Patnaik [*]

Para o liberalismo é central uma distinção entre duas


esferas: a do mercado (ou mais geralmente da economia)
onde indivíduos e firmas interagem para trocar suas
mercadorias e a do discurso público onde indivíduos
interagem como cidadãos de uma sociedade organizada
para debater e determinar as acções do Estado. A
importância que os liberais concedem a esta segunda esfera
foi sublinhada no século XIX por Walter Bagehot, o ensaísta
britânico da persuasão liberal, o qual louvou a democracia
como "governo pela discussão". Ele enfatizou com isso dois
princípios políticos liberais de base, nomeadamente o papel
do discurso público e a necessidade de o Estado de ser a
ele receptivo.

Não importa de que tendência do liberalismo estamos a


falar, esta distinção permanece sempre crucial. Em matérias
económicas, por exemplo, podem-se distinguir entre duas
tendências diferentes de liberalismo, nomeadamente o
liberalismo de John Maynard Keynes e seus antecessores Alfred Marshall e A.C. Pigou
(todo os quais são geralmente abrangidos pela expressão "a Escola de Cambridge") e o
liberalismo de pessoas como F.A. von Hayek.
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Estes últimos acreditavam que o Estado não deve interferir na economia, uma vez que
esta funciona muito bem se deixada aos seus próprios esquemas, ao passo que os
primeiros acreditavam que o funcionamento do mercado é enviesado e que há
necessidade de o Estado intervir no mesmo. Mas ao querer a intervenção do Estado para
rectificar os males da economia de mercado, a Escola de Cambridge considerava como
garantido que o Estado representava uma racionalidade "social" extrínseca do mercado.
Uma tal impregnação do Estado com "racionalidade social", que estava implícita na sua
percepção, só era possível através da existência do discurso público.

Os liberais hayekianos também acreditavam na necessidade do discurso público, mas


como um meio de impedir o Estado de intervir no funcionamento suave do mercado.
Todas as tendências de liberalismo enfatizavam a necessidade tanto de ter uma economia
de mercado como de ter uma esfera de discurso público que ou corrigiria o Estado dos
seus viéses ou impediria o Estado de desorientar-se com isto.

Esta visão liberal da sociedade, a qual se supunha apoiada por uma economia de
mercado e uma esfera de discurso público activo, pode ser criticada a partir de uma
perspectiva marxista de dois modos distintos. Uma, que é bem conhecida, chama a
atenção para o carácter de classe do Estado. Longe de ser uma corporificação da
"racionalidade social" como Keynes assumira, o Estado representa deliberadamente – ou
(no caso de um governo "reformista" subir ao poder) é a isso constrangido – os interesses
dos capitalistas. (A visão hayekiana da economia de mercado não precisa deter-nos aqui
uma vez que está errada: ela ignora a anarquia do capitalismo, como a tradição
keynesiana tem destacado, para não mencionar a tradição marxista que fez isso desde o
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princípio).

Mesmo quanto à eliminação do desemprego involuntário, o qual Keynes havia


considerado ser de importância primordial, o Estado é incapaz de actuar da maneira
exigida. Esta proposição tem sido tão claramente demonstrada em tempos recentes
quando, no meio a uma crise prolongada, o Estado parece absolutamente impotente para
adoptar quaisquer remédios orçamentais, seja na forma de despesas estatais maiores ou
de uma distribuição de rendimento mais igualitária – mantendo-se a fustigar uma política
monetária débil e ineficaz – que ninguém precisa insistir mais nesse ponto.

Entretanto, há uma segunda crítica à visão liberal a partir da perspectiva marxista que é
menos frequentemente mencionada mas cuja validade está a ser justificada diante dos
nossos olhos. Uma das mais profundas percepções do marxismo quanto ao
funcionamento do capitalismo é que é um sistema "espontâneo" conduzido pelas suas
próprias tendências imanentes. E uma destas tendências "espontâneas" importante é a da
progressiva mercantilização de todas as esferas da vida. O que hoje estamos a
testemunhar é a destruição da esfera pública através destas tendência imanente rumo a
uma difusão generalizada da mercantilização.

Uma esfera activa de discurso público tem vários requisitos, dentre os quais dois são
importantes: um sistema de educação que esclareça seus estudantes sobre questões
sociais expondo-os a uma variedade de percepções; e a existência de media impressos e
electrónicos que escrupulosamente desempenhem o papel de fornecer informação
correcta e um leque de opiniões. Estas duas instituições estão a ser minadas pela
mercantilização.
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A propriedade e o controle corporativo sobre os media já avançaram um longo caminho na


subversão do seu papel de fornecer elementos autênticos para o discurso público, ao
converterem-se em porta-vozes do capital corporativo. Além disso, a mercantilização
efectuada através de vários outros meios avançou ainda mais nessa direcção.

A dependência dos media de receitas ganhas a partir de publicidades do governo tem


servido para atenuar a liberdade de imprensa e dessa forma levado a uma
mercantilização implícita dos media. Mas agora o processo de mercantilização prosseguiu
ainda mais longe. "Notícias", assim parece, já podem ser plantadas nos media, e agendas
particulares promovidas, simplesmente pelo pagamento de um montante adequado de
dinheiro. E se qualquer nova prova disto fosse necessária, então a "operação ferrão" (
"sting operation" ), executada recentemente pelo portal Cobrapost sobre todo um conjunto
de importantes jornais e canais de TV indianos, demonstra-o claramente.

Além disso, a mercantilização da educação – a qual torna-se completamente incapaz de


fornecer aos estudantes os recursos para se envolverem em qualquer discurso público
activo e que valha a pena – tem prosseguido rapidamente sob o regime neoliberal. A
recente decisão do governo indiano de dar "autonomia" financeira às 60 melhores
universidades e instituições de ensino superior do país, dentre as quais estão as cinco
universidades de topo que incluem Jawaharlal Nehru University, Hyderabad University,
Aligarh Muslim University, Banaras Hindu University e English and Foreign Language
University, dá um enorme impulso a este processo.

Estas universidades a partir de agora levantarão seus recursos por si próprias, isto é, a
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partir do "mercado" para o qual elas terão de dar cursos "comercializáveis" ("marketable")
e atrair estudantes dispostos a pagar enormes taxas. Isto não só exclui os estudantes
socialmente e economicamente destituídos como também assegura que os produtos
deste sistema de educação são auto-centrados, indivíduos egocêntricos e totalmente
alheios tanto à realidade social em torno deles como do esplendor do mundo do
conhecimento.

A mercantilização está portanto a destruir a esfera pública, cujos debates supostamente


informam a política do Estado, ao negar esta esfera suas contribuições essenciais. Mas, o
que é mais grave, a mercantilização também está a entrar directamente na esfera da
política. As enormes despesas incorridas na disputa de eleições resultam tanto da
dominação de instituições políticas representativas pelos ricos como da utilização de tais
instituições para "ressarcirem-se" dos investimentos que fizeram.

Em suma, o gabinete de um representante do povo torna-se uma mercadoria, e cara, o


que garante que ela é comprada só pelos que podem pagá-la. Alternativamente, aqueles
que não podem se dar ao luxo de comprar tais cargos, fazem-no na base do dinheiro
fornecido por alguns estabelecimentos corporativos e então utilizam o seu gabinete a fim
de permitir que os seus doadores possam "recuperar" o dinheiro que eles haviam
investido.

CAMBRIDGE ANALYTICA

As coisas, entretanto, foram ainda mais longe como sugere o episódio recente da
Cambridge Analytica. Aquela firma foi contratada ostensivamente para gerar dados para o
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seu cliente disputar eleições; mas desde que ignoremos a insensatez acerca de como
"dados" assim gerados podem ser úteis para combates eleitorais, está claro que o papel
de tais firmas é essencialmente executar certos "truques sujos" que funcionariam a favor
do seu cliente, em troca de uma soma adequada de dinheiro. Isto também não é outra
coisa senão mercantilização da política.

Portanto, a visão liberal, de uma sociedade capitalista onde a esfera do mercado é distinta
de, e coexiste com, uma esfera de discurso público, com tal discurso a informar a política
do Estado para rectificar as distorções do mercado, é fundamentalmente indefensável. É
indefensável não só por causa dos constrangimentos colocados pelas relações de
propriedade sobre as acções do Estado, como também porque uma das duas esferas, o
mercado, "espontaneamente" intromete-se na outra, a esfera pública, através da sua
tendência imanente rumo à mercantilização.

Sem dúvida esta destruição da esfera pública tem prosseguido com uma rapidez
surpreendente por todo o mundo, incluindo a Índia, com a ascendência da direita. Mas
isso acontece porque a direita tem promovido a mercantilização com muito maior vigor do
que antes. Os sintomas do problema, entretanto, eram claramente evidentes desde muito
mais antes.

O liberalismo, porque ele ignora as tendências imanentes do sistema económico, e mais


geralmente do papel do factor económico na vida política de uma sociedade, é incapaz de
apreciar a razão porque a sua própria visão não pode ser aceite. Quando confrontado com
o facto do fim trágico desta visão, ele recorre a explicações que na melhor das hipóteses
apenas reafirma o problema de um modo diferente, mas dificilmente explicam alguma
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coisa.

Segue-se portanto que a existência autêntica de uma esfera pública exige uma
ultrapassagem das tendências imanentes do capitalismo, isto é, uma transcendência do
capitalismo. Mas o facto de a democracia e a instituição de uma esfera pública só
poderem ser realizadas sob o socialismo não significa que não combatamos por ela
agora. Ao contrário, este mesmo combate é um meio de avançar a luta pelo socialismo.

01/Abril/2018

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2018/0401_pd/commoditisation-


and-public-sphere .
Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


05/Abr/18

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