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MORIN, Edgar. Homem e a morte, O. 2. ed. Portugal: Europa-América, 1970.

322 p.

Em primeiro lugar, quis definir uma antropologia, de acordo com a visão que foi
esboçada, simultaneamente na continuidade e na ruptura com a evolução
biológica. (p.16)

Ainda inocente, não soube que aquela morte à qual dirigiu tantos clamores e
preces não era senão a sua própria imagem, o seu próprio mito, e que, julgando
olhá-la, olhava para si próprio. (p.19)

Assim, a mesma consciência nega e reconhece a morte: nega-a como


aniquilamento, reconhece-a como acontecimento. (p.26)

A decomposição de outrem é ressentida como contagiosa. (p.28)

Quem ousaria lamentar-se na maldição comum? Cada um esconde a sua morte,


a fecha a sete chaves (...) (p.31)

O horror da morte é, portanto, a emoção, o sentimento ou a consciência da perda


da individualidade. (p.32)

Assim, é nos períodos de guerra, quando as sociedades se coagulam, se


endurecem para resistir e vencer, é, em suma, nos períodos de morte, que a
morte se apaga, que os temores da morte desaparecem. (p.41)

Então pode acontecer que as participações caiam, ressequidas, aos pés do


indivíduo solitário e que mais nada o retenha a uma vida que ele sabe voltada
ao aniquilamento. Então, com a deificação de si próprio, nasce o temor extremo
da morte que traz consigo a tentação extrema da morte: o suicídio. (p.47)

Quando o suicídio se manifesta, não somente a sociedade não conseguiu


expulsar a morte, não somente não conseguiu dar o gosto pela vida ao indivíduo,
como também está vencida, negada; nada pode por e contra a morte do homem.
(p.47)

A consciência humana da morte não supõe apenas a consciência do que era


inconsciente no animal, mas também uma ruptura no seio da relação indivíduo-
espécie, uma promoção da individualidade em relação à espécie, uma
decadência da espécie em relação à individualidade. (p.54)

(...) tortura até a morte, espécie de horrível síntese entre o desejo de negar e o
de humilhar outrem, e onde o torturador vai colher os prazeres conjugados do
assassinato e da escravatura. (p.65)

E existe comunicação íntima entre este horror e esta volúpia (...) (p.66)
Arrisca-se a morte por amor, por êxtase, por vaidade, por masochismo, por
loucura, por felicidade... Por amor ao próprio risco (...) (p.68)

(...) não somente o suicídio exprime a solidão absoluta do indivíduo, cujo triunfo
coincide então exactamente com o da morte, como nos mostra que o indivíduo
pode, na sua autodeterminação, ir até aniquilar friamente seu instinto de
conservação, e aniquilara vida que recebeu da espécie, a fim de provar dessa
forma, a si próprio, a impalpável realidade de sua omnipotência. (p.69)

(...) o suicídio, renegação limite da espécie, é o teste absoluto da liberdade


humana. (p.69)

Toda morte evoca um nascimento e, inversamente, todo o nascimento evoca


uma morte. (p.111)

Em resumo: a humanidade arcaica apreende a sua própria lei de morte à imagem


da lei de metamorfoses que reconhece na natureza, onde toda a morte é seguida
de vida nova. (p.124)

Na origem, os espectros não abandonam o espaço dos vivos. Estes sentem-nos


omnipresentes (...) (p.129)

Ainda hoje, e embora os significados “morais” ocultem os significados mágicos,


o negro assinala, o véu isola, o luto enclausura durante o horrível período.
(p.132)

A dor do vivo é talvez sincera, mas o exibicionismo da dor, que vai até a utilização
de carpideiros e carpideiras profissionais, visa acima de tudo a lisonjear a morte,
como o fazem hoje ainda as belas palavras pronunciadas sobre a tumba do
maior dos imbecis, exaltando as suas extraordinárias virtudes e profundas
qualidades. (p.141)

Com estes assassinatos estéticos não se trata apenas de satisfações


inofensivas dadas à agressividade humana, mas sim de uma participação no
ciclo de morte-renascimento, mas sim de verdadeiros sacrifícios que transferem
o mal e a morte para as vítimas literárias, de catarses que fazem jorrar novas
forças de vida. (p.160)

O cristianismo concentrará toda essa culpabilidade no problema da morte e


resgatá-la-á de súbito com a sua salvação. A morte não é mais do que o castigo
do pecado, isto é, do acto sexual. (p.197)

E aí reside uma das grandes verdades antropológicas do cristianismo: o seu ódio


envergonhado ao pecado e à sexualidade é o ódio à morte! (p.197)

Todo o nascimento é uma dor mortal. Todo o nascimento é morte. (p.220)


Como vimos, o risco de morte é participação e a participação é vida. O medo da
vida é o medo da morte e o medo da morte é o medo da vida. Viver é assumir o
risco de morrer. (p.250)

Pelo contrário, só o risco de morte pode justificar aquilo que se quer justificar a
morte, por ser aceito, escolhido ou desejado. É experimentando-o que a
individualidade se experimenta e se prova provando a si mesma a sua liberdade.
(p.251)

A morte não surge no momento da morte, existe desde o nascimento (...) (p.255)

O indivíduo encontra-se sozinho na irracionalidade. Já só se tem a si mesmo. E


será então que no Único, que se enlaça desesperadamente a si mesmo, surgirá
a mais formidável angústia. A ruptura das participações remete para a angústia
da morte e a angústia da morte remete, por sua vez, para a ruptura das
participações. O isolamento atrai a obsessão da morte e a obsessão da morte
torna a fechar o isolamento. (p.265)

As civilizações são mortais. A humanidade está condenada à morte. As


civilizações são mortais. A humanidade está condenada à morte. A Terra
morrerá. E os mundos, e os sóis. E o próprio universo, gigantesca explosão lenta.
A morte humana, já vácuo infinito, dilata-se em todos os planos do cosmo, cada
vez mais vazia e infinita. Tudo remete, pois, o indivíduo solitário para uma solidão
cada vez mais miserável no vazio de um nada ilimitado. (p.266)

A morte não é o bicho que rói a fruta; é, como em Rilke, o próprio núcleo da vida.
(p.277)

Assim, a angústia, e por consequência a própria morte, é o fundamento mais


certo da individualidade. Tanto mais que é impossível dividir a sua morte, pô-la
em comum: toda morte é solitária e única. (p.277)

(...) só poderia levar uma vida arruinada, incurável, votada à destruição


inevitável. Em vez de morrer “naturalmente” como indivíduo, conheceria a morte
por fases acidentais, a morte sucessiva dos seus agregados celulares. (p.292)

SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte - Metafísica do amor - Do sofrimento do


mundo. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003. 128 p.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antônio da Costa


Leal, Lídia do Valle Santos Leal. Rio de Janeiro: Eldorado, [19--?]. 177 p., 24 cm.
O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo
falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreto. Sem esses “objetos” e
alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria modelo de
intimidade. (p.70 - capítulo III a gaveta, os cofres e os armários)

O espaço interior do armário é um espaço de intimidade, um espaço que não se


abre à toa. (p.70 - capítulo III a gaveta, os cofres e os armários)

Não há fechadura que possa resistir à violência total. Toda fechadura é um apelo
ao arrombador. Que umbral psicológico é uma fechadura! (p.72 - capítulo III a
gaveta, os cofres e os armários)

Mas, no momento em que o cofre se abre, nada mais de dialética. O exterior é


riscado com um traço, tudo é novidade, tudo é surpresa, tudo é desconhecido.
O externo não significa mais nada. E mesmo, supremo paradoxo, as dimensões
do volume não têm mais sentido porque uma dimensão acaba de se abrir: a
dimensão da intimidade. (p.75 - capítulo III a gaveta, os cofres e os armários)

(...) haverá mais coisas num cofre fechado do que num cofre aberto. A
verificação faz morrer as imagens. (p.76 - capítulo III a gaveta, os cofres e os
armários)

Quem enterra um tesouro se enterra com ele. O segredo é um túmulo e não é à


toa que o homem discreto se gaba de ser o túmulo dos segredos. (p.76 - capítulo
III a gaveta, os cofres e os armários)

(...) todo canto de uma casa, todo ângulo de um aposento, todo espaço reduzido
onde gostamos de nos esconder, de confabular conosco mesmos, é, para a
imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um aposento, o germe de uma
casa. (p.108 - capítulo VI os cantos)

A porta! A porta é todo um cosmos do Entreaberto. Isto é, ao menos uma


imagem-príncipe, a origem de um devaneio onde se acumulam desejos e
tentações, a tentação de abrir o ser no seu âmago, o desejo de conquistar todos
os seres reticentes. (p.164 - capítulo IX a dialética do exterior e do interior)

TOLSTÓI, Liev. A morte de Ivan Ilitch: seguido de senhores e servos. Tradução


de Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. 140 p., 21cm. (Biblioteca
Folha ). ISBN 85-00-11610-2.

Como acontece com toda gente em tais ocasiões, Piotr Ivánovitch entrou sem
saber ao certo o que devia fazer. Mas uma coisa não ignorava: um sinal-da-cruz
é sempre oportuno. Ficou, porém, em dúvida se deveria também se ajoelhar. E,
então, ao transpor a porta, apelou para um discreto meio-termo: persignou-se e
inclinou ligeiramente a cabeça. (p.9)
E a lembrança se afigurou inconveniente a Piotr Ivánovitch, ou pelo menos
pareceu não lhe dizer respeito. Sentiu-se um pouco constrangido e, mais uma
vez fazendo um rápido sinal-da-cruz, virou-se e se encaminhou para a porta,
com uma pressa que fugia às regras da decência, conforme ele mesmo
considerou. (p.10)
A vida, uma série de sofrimentos crescentes, rolava cada vez mais veloz para o
último e mais terrível sofrimento. (p.67)

ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos


perversos. Tradução de André Telles; Revisão de Marco Antonio Coutinho Jorge.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 224 p., 21 cm. (Transmissão da Psicanálise).
ISBN 978-85-378-0081-2.

Demoníaco, amaldiçoado, criminoso, devasso, torturador, lascivo, fraudador,


charlatão, delituoso, o pervertedor era em primeiro lugar uma criatura dúbia,
atormentada pela figura do Diabo, mas ao mesmo tempo habitada por um ideal
do bem que ele não cessava de destruir a fim de oferecer a Deus, seu senhor e
seu carrasco, o espetáculo de seu próprio corpo reduzido a um dejeto. (p.10 -
introdução)
Mas a perversão é também criatividade, superação de si, grandeza. Nesse
sentido, pode ser entendida como acesso à mais elevada das liberdades (...)
(p.11 - introdução)
A perversão, portanto, é um fenômeno sexual, político, social, psíquico, trans-
histórico, estrutural, presente em todas as sociedades humanas. (p.12 -
introdução)
Sejam sublimes quando se voltam para a arte, a criação ou a mística, sejam
abjetos quando se entregam às suas pulsões assassinas, os perversos são uma
parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não
cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós
mesmos. (p.13 - introdução)
Em outras palavras a imersão na degradação comanda o acesso a um além da
consciência - o subliminar -, bem como à sublimação no sentido freudiano. E a
travessia do sofrimento e da decadência leva assim à imortalidade, suprema
sabedoria da alma. (p.18 - o sublime e o abjeto)
(...) a salvação do homem reside na aceitação de um sofrimento incondicional.
(p.19 - o sublime e o abjeto)
Em nossos dias, o fetichismo das relíquias é visto como uma patologia ligada à
necrofilia - e, logo, como uma perversão sexual. Quanto à lei, proíbe qualquer
forma de dispersão e comércio de restos humanos. (p.23 - o sublime e o abjeto)
Utilizando-se de chicote, nervo de boi, chibata, bastão, urtigas, cardos, espinhos,
cactos ou de diversos instrumentos de tortura, a flagelação foi, em todas as
épocas e culturas, um dos componentes mais importantes de uma prática
especificamente humana que visava ora punir, ora proporcionar uma satisfação
sexual ou influir na procriação. (p.27 - o sublime e o abjeto)
Infligir-se um castigo significava querer educar o corpo, dominá-lo, mas também
mortificá-lo para submetê-lo a uma ordem divina. (p.29 - o sublime e o abjeto)
Do alto para o baixo, em seguida de Sodoma para Gomorra, a flagelação, a
princípio ato purificador, agora não passava senão de uma prática de prazer,
centrada na exaltação do eu. (p.33 - o sublime e o abjeto)
(...) o que põem em ação é uma vontade de destruir o outro e se autodestruir
num transbordamento de sentidos. (p.46 - sade para e contra si mesmo)
Ou seja, a princípio, o ato sexual perverso, em sua formulação mais altamente
civilizada, e mais sombriamente rebelde - a de um Sade ainda não definido como
sádico pelo discurso psiquiátrico -, é um relato, uma oração fúnebre, uma
educação macabra, em suma, uma arte da enunciação tão ordenada quanto uma
gramática e tão desprovida de afeto quanto um curso de retórica. (p.47 - sade
para e contra si mesmo)
Sade propõe, de certa forma, um modelo social fundado na generalização da
perversão. Nem interdito do incesto, nem separação entre o monstruoso e o
ilícito, nem delimitação entre loucura e ração, nem divisão anatômica entre
homens e mulheres (...) (p.53 - sade para e contra si mesmo)
“Sade não teve em sua vida senão uma ocupação, que definitivamente o
arrebatou, a de enumerar até o esgotamento as possibilidades de destruir os
seres humanos, destruí-los e gozar com o pensamento de sua morte e de seu
sofrimento. ” (Georges Bataille, [A literature e o mal, Porto Alegre, L&PM, 1985]
La littérature et le mal (1957), Paris, Gallimard, col. Folio-Essais, 2004, p.88)
(...) finitude de um corpo fadado à morte e ao imaginário de uma psique
emoldurada pelo real do gozo. (p.73 - sade para e contra si mesmo)
Entretanto, a palavra “onanismo” impôs-se como a denominação científica de
uma prática malsã ou perversa, isto é, como um vício e um desafio lançado à
soberania divina. (p.93 - iluminismo sombrio ou ciência bárbara?)
Rebelde sem causa, sempre à procura de um destino diferente do seu, escrava
sexual e flagelada de seu primeiro amante, inapta a assumir seus deveres de
mãe e esposa, Emma encarna no mais alto ponto esse gozo feminino, essa
loucura do amor desvairado e essa atração pela morte voluntária cujos danos a
ciência médica jamais deixará de apontar sem conseguir domesticá-los. (p.109 -
iluminismo sombrio ou ciência bárbara?)
A meio caminho entre Justine e Juliette, não sabendo escolher entre os
infortúnios da virtude e as prosperidades do vício, a heroína flaubertiana só
encontra seu caminho aniquilando-se a si própria num ato sacrílego. (p.110 -
iluminismo sombrio ou ciência bárbara?)
Dar cabo da perversão. Eis portanto, na atualidade, a nova utopia das
sociedades democráticas globalizadas, ditas pós-modernas: suprimir o mal, o
conflito, o destino, a desmedida, em prol de um ideal de gestão tranquila da vida
orgânica. Por outro lado, não haveria o risco de um projeto desse tipo ser capaz
de fazer ressurgir, no seio da sociedade, novas formas de perversões, novos
discursos perversos? Não seria ele capaz, em suma, de transformar a própria
sociedade numa sociedade perversa? (p.164 - a sociedade perversa)
Uma sociedade que dedica tal culto à transparência, à vigilância e à abolição de
sua parte maldita é uma sociedade perversa. (p.190 - a sociedade perversa)
Nesse contexto, os perversos, portanto, não são mais vistos como perversos a
partir do momento em que a Lei não os define como perigosos para a sociedade
e suas perversões permanecem privadas. E são agora perversos normalizados,
autorizados, despenalizados, despsiquiatrizados que reproduzem por sua vez,
em livros científicos, eróticos, pornográficos, psicanalíticos, sexológicos, o
imenso relato dos prazeres, paixões, transgressões e vícios elaborado desde
Sade pelos escritores ou especialistas em história da psicopatologia. (p.195 - a
sociedade perversa)
Nunca o sexo solitário foi tão valorizado como depois que o culto do narcisismo
tornou-se dominante na sociedade da transparência sexual que é a nossa.
(p.198 - a sociedade perversa)
A propósito, a masturbação combina muito bem com o voyeurismo (...) [: “Infiltre-
se na intimidade de centenas de moças”, diz um e-mail enviado a milhares de
internautas. (p.198 - a sociedade perversa)

SADE, Marquês. Justine ou Os Infortúnios da Virtude. Rio de Janeiro: Saga,


1968. 158p.

Quanto à destruição do seu semelhante, fica certa, Sofia, que é puramente


quimérica, pois o poder de destruir não foi dado ao homem mas somente o de
variar as formas, sem poder aniquilá-las. Portanto, fica sabendo que toda forma
é igual aos olhos da natureza, nada se perde no cadinho imenso onde se
executam suas variações, e toda porção de matéria que ali é jogada
incessantemente se renova sob o outro aspecto, e se sobre ela desencadeamos
ua ação esta não a ofende diretamente, não a ultraja e, mesmo que nossas
destruições retomem seu poder de vez em quando, ela mantém sua energia,
nada podendo atenuá-la. E que importância tem para a natureza, sempre
criadora, que essa massa de carne que hoje dá forma a uma mulher, amanhã se
reproduza sob a forma de miríades de diferentes insetos? Ousarias dizer, pois,
que a construção de um indivíduo custa mais à natureza que a de um verme, e
que por isso ela deve ter maior interesse por aquele? Pois, se o grau de
proximidade ou de indiferença é o mesmo, que lhe pode interessar que o que se
chama de crime humano mude alguém em mosca ou alface? (p.55)
Enquanto isto, o Céu, que não permitia que do meu coração surgisse uma só
virtude sem que viesse logo um infortúnio, novamente me roubava a felicidade
em que eu vivia e me fazia mergulhar em novos sofrimentos. (p.72)
Nada é tão insaciável como os nossos gostos, e quanto mais a eles se sacrifica,
mais eles se acendem. Embora seja sempre quase a mesma coisa, deseja-se
cada vez mais novas comidas e no momento em que a sociedade extingue os
nossos desejos com uma, acende a mesma libertinagem com outra. (p.111)
O homem é, pois, naturalmente mau, e o é quase tanto no delírio de suas paixões
como nos seus momentos de calma, e há casos em que os males do seu
semelhante podem vir a ser um prazer abjeto para ele. (p.123)
Para um mundo totalmente corrompido, aconselho-te apenas o vício. Aquele que
não seguir o caminho geral inevitavelmente perecerá, e se chocará com o que
topar pela frente. E como o mais fácil é ele, necessariamente se quebrará. Em
vão as leis tentam estabelecer a ordem e dirigir os homens para a virtude. (p.134)
Agora desejo a morte como um porto seguro onde a tranquilidade voltará a
nascer no seio de um deus bastante justo para permitir que a inocência aviltada
e perseguida sobre a terra não deixe de encontrar um dia, no céu, a recompensa
de suas lágrimas. (p.153)

ÀRIES, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos


tempos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. 288p.

(...) a morte é esperada no leito. (p.37 - Primeira parte: as atitudes diante da


morte - I. a morte domada)
(...) a morte é uma cerimônia pública e organizada. (p.37 - Primeira parte: as
atitudes diante da morte - I. a morte domada)
O quarto do moribundo transformava-se, então, em lugar público, onde se
entrava livremente. (p.37 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - I. a morte
domada)
(...)sem caráter dramático ou gestos de emoção excessivos. (p.38 - Primeira
parte: as atitudes diante da morte - I. a morte domada)
A partir de então, não houve mais diferença entre a igreja e o cemitério. (p.41 -
Primeira parte: as atitudes diante da morte - I. a morte domada)
Cemitério: (...) um local destinado ao comércio, à dança e aos jogos,
simplesmente pelo prazer de se estar junto. (p.45 - Primeira parte: as atitudes
diante da morte - I. a morte domada)
Estavam tão familiarizados com os mortos quanto com sua própria morte. (p.47
- Primeira parte: as atitudes diante da morte - I. a morte domada)
O moribundo está deitado, cercado por seus amigos e familiares. Está prestes a
executar os ritos que bem conhecemos. (p.51 - Primeira parte: as atitudes diante
da morte - II. a morte de si mesmo)
A decomposição é o sinal do fracasso do homem, e neste ponto reside, sem
dúvida, o sentido do macabro, que faz desse fracasso um fenômeno novo e
original. (p.57 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - II. a morte de si
mesmo)
O homem do fim da Idade Média, ao contrário, tinha uma consciência bastante
acentuada de que era um morto em suspensão condicional, de que esta [a vida]
era curta e de que a morte, sempre presente em seu âmago, despedaçava suas
ambições e envenenava seus prazeres. (p.59 - Primeira parte: as atitudes diante
da morte - II. a morte de si mesmo)
A morte tornou-se o lugar em que o homem melhor tomou consciência de si
mesmo. (p.59 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - II. a morte de si
mesmo)
No espelho de sua morte, cada homem redescobriria o segredo de sua
individualidade. (p.63 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - II. a morte
de si mesmo)
Quanto à morte: Exalta-a, dramatiza-a, deseja-a impressionante e arrebatadora.
(...) a morte romântica, retórica, é antes de tudo a morte do outro (...) (p.64 -
Primeira parte: as atitudes diante da morte - III. a morte do outro)
A partir do século XVI, e mesmo no fim do século XV, vemos os temas da morte
carregarem-se de um sentido erótico. (...) cenas ou motivos inumeráveis, na arte
e na literatura, associam a morte ao amor. (...) aproxima as imagens da agonia
e as do transe amoroso. (p.65 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - III.
a morte do outro)
Como o ato sexual, a morte é, a partir de então, cada vez mais acentuadamente
considerada como uma transgressão que arrebata o homem de sua vida
quotidiana, de sua sociedade racional, de seu trabalho monótono, para submetê-
lo a um paroxismo e lançá-lo, então, em um mundo irracional, violento e cruel.
(p.65 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - III. a morte do outro)
Essa noção de ruptura nasceu e se desenvolveu no mundo das fantasias
eróticas. (p.66 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - III. a morte do outro)
A simples ideia da morte comove. (p.67 - Primeira parte: as atitudes diante da
morte - III. a morte do outro)
(...) o fascínio mórbido da morte exprime, sob uma forma religiosa, a sublimação
das fantasias erótico-macabras do período precedente. (p.68 - Primeira parte: as
atitudes diante da morte - III. a morte do outro)
O objetivo do testamento era (...) obriga-los [família, padre, monges...] a respeitar
as vontades do defunto. (p.69 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - III.
a morte do outro)
Por outro lado, o luto tinha também o efeito de defender o sobrevivente (...)
contra os excessos da dor, pois impunha-lhe um certo tipo de vida social, as
visitas de parentes, vizinhos e amigos que lhe eram feitas no decorrer das quais
a dor podia ser liberada sem que sua expressão ultrapassasse, entretanto, um
limite fixado pelas conveniências. (p.71 - Primeira parte: as atitudes diante da
morte - III. a morte do outro)
(...) um retorno às formas excessivas e espontâneas (...) lutos histéricos. (p.71 -
Primeira parte: as atitudes diante da morte - III. a morte do outro)
A morte temida não é mais a própria morte, mas a do outro. (p.71 - Primeira
parte: as atitudes diante da morte - III. a morte do outro)
Reprovava-se a Igreja, por ter feito tudo pela alma e nada pelo corpo (...) (p.74 -
Primeira parte: as atitudes diante da morte - III. a morte do outro)
(...) os vivos deviam testemunhar aos mortos, através de um verdadeiro culto
leigo, sua veneração. (p.74 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - III. a
morte do outro)
(...) a sociedade é composta ao mesmo tempo de mortos e vivos, e que os mortos
são tão significativos e necessários quanto os vivos. (p.76 - Primeira parte: as
atitudes diante da morte - III. a morte do outro)
O culto dos mortos é hoje uma das formas ou uma das expressões do
patriotismo. (p.77 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - III. a morte do
outro)
Mourning pictures: pequeno túmulo portátil. (p.80 - Primeira parte: as atitudes
diante da morte - III. a morte do outro)
Em suma, a verdade começa a ser problemática. (p.83 - Primeira parte: as
atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
(...) sentimento diferente, característico da modernidade: evitar não mais ao
moribundo, mas à sociedade, mesmo aos que o cercam, a perturbação e a
emoção excessivamente fortes, insuportáveis, causadas pela fealdade da
agonia e pela simples presença da morte em plena vida feliz, pois, a partir de
então, admite-se que a vida é sempre feliz, ou deve sempre aparentá-lo. (p.83 -
Primeira parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
Já não se morre em casa, em meio aos seus, mas sim no hospital, sozinho. (p.83
- Primeira parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
Vamos ao hospital não mais para sermos curados, mas precisamente para
morrer. (p.84 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
(...) tornou-se inconveniente morrer em casa. (p.84 - Primeira parte: as atitudes
diante da morte - IV. a morte interdita)
A morte é um fenômeno técnico (...) (p.84 - Primeira parte: as atitudes diante da
morte - IV. a morte interdita)
A morte foi dividida, parcelada numa série de pequenas etapas dentre as quais,
definitivamente, não se sabe qual a verdadeira morte (...) (p.84 - Primeira parte:
as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
(...) pequenas mortes silenciosas (...)(p.84 - Primeira parte: as atitudes diante da
morte - IV. a morte interdita)
Uma morte aceitável é uma morte que possa ser aceita ou tolerada pelos
sobreviventes. (p.85 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte
interdita)
(...) é a emoção o que é preciso evitar, tanto no hospital quanto na sociedade de
um modo geral. Só se tem o direito à comoção em particular, ou seja, às
escondidas. (p.85 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte
interdita)
Uma dor demasiado visível não inspira pena, mas repugnância: é um sinal de
perturbação mental ou de má educação. É mórbida. (p.85 - Primeira parte: as
atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
Só se tem o direito de chorar quando ninguém vê nem escuta: o luto solitário e
envergonhado é o único recurso, como uma espécie de masturbação (...) (p.85
- Primeira parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
(...) a morte tornou-se um tabu (...) substituiu o sexo como principal interdito.
(p.87 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
Quanto mais a sociedade relaxava seus cerceamentos vitorianos ao sexo, mais
rejeitava as coisas da morte. (p.87 - Primeira parte: as atitudes diante da morte
- IV. a morte interdita)
(...) na literatura macabra reaparece a mistura do erotismo e da morte (...) (p.87
- Primeira parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
(...) a necessidade da felicidade, o dever moral e a obrigação social de contribuir
para a felicidade coletiva, evitando toda causa de tristeza ou de aborrecimento,
mantendo um ar de estar sempre feliz, mesmo se estamos no fundo da
depressão. Demonstrando algum sinal de tristeza, peca-se contra a felicidade,
que é posta em questão, e a sociedade arrisca-se, então, a perder sua razão de
ser. (p.87 - Primeira parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
(...) recusa em admitir a morte (...) (p.92 - Primeira parte: as atitudes diante da
morte - IV. a morte interdita)
(...) a morte se vai tornando objeto de comércio e lucro. (p.92 - Primeira parte:
as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
Para vender a morte, é preciso torná-la atraente (...) (p.92 - Primeira parte: as
atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
Enterros: objeto de consumo, um sabonete ou uma religião. (p.93 - Primeira
parte: as atitudes diante da morte - IV. a morte interdita)
Durante velórios: O caráter definitivo da ruptura é apagado. A tristeza e o luto
foram banidos desta reunião apaziguante. (p.94 - Primeira parte: as atitudes
diante da morte - IV. a morte interdita)
(...) é pela morte que o Destino se revela (...) (p.96 - Primeira parte: as atitudes
diante da morte - V. a morte interdita)
Cortejo: envolvia-se o corpo em um lençol ou mortalha, deixando muitas vezes
o rosto descoberto (...) (p.106 - Segunda parte: itinerários - VI riqueza e pobreza
diante da morte na Idade Média)
O túmulo visível não é, portanto, o signo do lugar do enterro, mas a
comemoração do defunto, imortal entre os santos e célebre entre os homens.
(p.119 - Segunda parte: itinerários - VI riqueza e pobreza diante da morte na
Idade Média)
(...) intolerável solidão e abandono da alma. (p.125 - Segunda parte: itinerários -
VI riqueza e pobreza diante da morte na Idade Média)
(...) a hora da morte como uma condensação da vida inteira (...) (p.129 - Segunda
parte: itinerários - VI riqueza e pobreza diante da morte na Idade Média)
(...) um amor apaixonado pelo mundo aqui da Terra e o sentimento amargo e
desesperado de sua fragilidade (...) (p.132 - Segunda parte: itinerários - VII
Huizinga e os temas macabros)
Artes moriendi: manuais de preparação devota para uma boa morte. (p.133 -
Segunda parte: itinerários - VII Huizinga e os temas macabros)
Decomposição: (...) se quer mostrar o que não se vê, o que se passa debaixo da
terra e que é, na maioria das vezes, escondido dos vivos. (p.134 - Segunda parte:
itinerários - VII Huizinga e os temas macabros)
(...) pede-se à arte que substitua a realidade bruta. (p.138 - Segunda parte:
itinerários - VII Huizinga e os temas macabros)
Sobre santas de Bernini: seu êxtase mortal tem toda a aparência deleitada e
cruel da excitação amorosa. (p.140 - Segunda parte: itinerários - VII Huizinga e
os temas macabros)
Chamamos mórbido ao gosto mais ou menos perverso, mas cuja perversidade
não é declarada ou consciente, pelo espetáculo físico da morte e do sofrimento.
(p.141 - Segunda parte: itinerários - VII Huizinga e os temas macabros)
(...) a literatura erótica do século XVIII - à qual acrescentaria a do século XVII -
aproximou duas transgressões da vida regular e ordenada da sociedade: o
orgasmo e a morte. (p.143 - Segunda parte: itinerários - VII Huizinga e os temas
macabros)
(...) a morte foi considerada, no fim do século XVIII, assim como o ato sexual,
uma ruptura ao mesmo tempo atraente e terrível da familiaridade quotidiana.
(p.148 - Segunda parte: itinerários - VII Huizinga e os temas macabros)
(...) o erotismo macabro não deixou de passar para a vida quotidiana (...) através
da atenção dada à beleza física do morto. (p.149 - Segunda parte: itinerários -
VII Huizinga e os temas macabros)
Os mortos tornaram-se belos na vulgata social quando começaram a realmente
ser motivo de medo, um medo tão profundo que não se exprimia senão por
interditos, ou seja, por silêncios. (p.149 - Segunda parte: itinerários - VII Huizinga
e os temas macabros)
(...) mistura de erotismo, religiosidade e morte. (p.154 - Segunda parte: itinerários
- VII. O tema da morte em Le Chemin de paradis, de Maurras)
A morte não é apenas um tema de reflexão, é uma linguagem (...) (p.155 -
Segunda parte: itinerários - VII. O tema da morte em Le Chemin de paradis, de
Maurras)
A solidão do homem diante da morte é o espaço onde ele toma consciência de
sua individualidade (...) (p.178 - Segunda parte: itinerários - X. do moderno
sentimento de família nos testamentos e nos túmulos)
Os casos de morte aparente tornam-se objeto de interesse apaixonado, assim
como as ambiguidades, por vezes eróticas, da vida e da morte. (p.192 - Segunda
parte: itinerários - XI. Contribuição ao estudo do culto dos mortos na época
contemporânea)
Assimilado tanto pelas igrejas cristãs quanto pelo materialismo ateu, o culto dos
mortos tornou-se hoje a única manifestação religiosa comum aos crentes e aos
descrentes de todas as confissões. (p.201 - Segunda parte: itinerários - XI.
Contribuição ao estudo do culto dos mortos na época contemporânea)
Era hábito reunir-se à volta dos mortos e - a expressão era banal, mas tornou-
se obsoleta - “assisti-los durante a agonia”. (p.207 - Segunda parte: itinerários -
XII. A vida e a morte para os franceses da atualidade)
Tudo se passa como se ninguém soubesse que alguém vai morrer (...) (p.207 -
Segunda parte: itinerários - XII. A vida e a morte para os franceses da atualidade)
Chega, então, o momento em que não se tem mais necessidade de encenar, em
que o moribundo realmente perdeu os sentidos e a consciência, continuando a
respirar. (p.207 - Segunda parte: itinerários - XII. A vida e a morte para os
franceses da atualidade)
(...) e a espera dura, dura, até que num belo dia ou numa bela noite a vida
estanca quando menos se espera, quando já não há mais ninguém em volta.
(p.207 - Segunda parte: itinerários - XII. A vida e a morte para os franceses da
atualidade)
Hoje é vergonhoso falar da morte e do dilaceramento que provoca, como
antigamente era vergonhoso falar do sexo e de seus prazeres. (p.208 - Segunda
parte: itinerários - XII. A vida e a morte para os franceses da atualidade)
O decoro proíbe, a partir de então, toda referência à morte. É mórbida, faz-se de
conta que não existe; existem apenas pessoas que desaparecem e das quais
não se fala mais - e das quais talvez se fale mais tarde, quando se tiver
esquecido que morreram. (p.208 - Segunda parte: itinerários - XII. A vida e a
morte para os franceses da atualidade)
(...) o público dos leitores de jornais começa a se interessar pela morte, de início
talvez como uma coisa proibida e um tanto obscena. (p.213 - Segunda parte:
itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das atitudes diante da morte nas
sociedades ocidentais)
(...) apesar da multidão que se comprimia em torno do leito, o moribundo estava
só. (p.216 - Segunda parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das
atitudes diante da morte nas sociedades ocidentais)
Só era dono de sua vida na medida em que era dono de sua morte. (p.218 -
Segunda parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das atitudes diante
da morte nas sociedades ocidentais)
Morre-se, portanto, quase às escondidas, mais só do que Pascal jamais
imaginou. (p.220 - Segunda parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança
das atitudes diante da morte nas sociedades ocidentais)
(...) a discrição aparece como a forma moderna da dignidade. (p.221 - Segunda
parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das atitudes diante da morte
nas sociedades ocidentais)
Ousar falar da morte, admiti-la nas relações sociais, já não é como antigamente
permanecer no quotidiano, é provocar uma situação excepcional, exorbitante e
sempre dramática. (p.222 - Segunda parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a
mudança das atitudes diante da morte nas sociedades ocidentais)
(...) morte que deixa os sobreviventes embaraçados. (p.223 - Segunda parte:
itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das atitudes diante da morte nas
sociedades ocidentais)
Existem, portanto, duas maneiras de morrer mal: uma consiste na busca de uma
troca de emoções e a outra, na recusa em comunicar-se. (p.223 - Segunda parte:
itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das atitudes diante da morte nas
sociedades ocidentais)
Ocorre também que alguns doentes virem-se para a parede e não se mexam
mais. (p.224 - Segunda parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das
atitudes diante da morte nas sociedades ocidentais)
A presença da mulher, aliás, em nada mudava a reclusão do luto; inteiramente
coberta de negro, mater dolorosa, aparecia aos olhos do mundo apenas como o
símbolo da dor e do desconsolo. (p.229 - Segunda parte: itinerários - XIII. A morte
invertida: a mudança das atitudes diante da morte nas sociedades ocidentais)
A toalete fúnebre é um rito tradicional, mas seu sentido mudou. Outrora
destinava-se a fixar o corpo na imagem ideal que se tinha então da morte, na
atitude do jacente que espera, com as mãos cruzadas, a vida do século que virá.
Foi na época romântica que se descobriu a beleza original que a morte impõe ao
rosto humano, e os últimos cuidados tinham por objetivo libertar essa beleza das
impurezas da agonia. Em ambos os casos, era uma imagem de morte que se
visava fixar: um belo cadáver, mas um cadáver. (p.233 - Segunda parte:
itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das atitudes diante da morte nas
sociedades ocidentais)
Não é um morto o que vocês irão encontrar, mas um quase vivo. (...) Está livre
da fealdade da agonia (...) mantém a sedução da vida, permanece atraente,
lovely. (p.233 - Segunda parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança
das atitudes diante da morte nas sociedades ocidentais)
A toalete fúnebre tem por objetivo, a partir de então, mascarar as aparências da
morte e conservar no corpo os ares familiares e alegres da vida. (p.234 -
Segunda parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das atitudes diante
da morte nas sociedades ocidentais)
A sociedade inteira se comporta como a unidade hospitalar. (p.239 - Segunda
parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das atitudes diante da morte
nas sociedades ocidentais)
Hoje, a reclusão tem o caráter de uma sanção análoga àquela que se abate
sobre os desclassificados, os doentes contagiosos e os maníacos sexuais.
(p.239 - Segunda parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das
atitudes diante da morte nas sociedades ocidentais)
(...) os monumentos e os jardins da morte para a felicidade dos vivos. (p.248 -
Segunda parte: itinerários - XIII. A morte invertida: a mudança das atitudes diante
da morte nas sociedades ocidentais)
(...) crescente repugnância em admitir abertamente a morte (...) (p.261 - Segunda
parte: itinerários - XIV. O doente, a família e o médico)
Como convém, então, morrer em nossa sociedade? (p.266 - Segunda parte:
itinerários - XV. Time for dying)
O moribundo é apenas um objeto privado de vontade e, muitas vezes, de
consciência, mas um objeto perturbador, e tanto mais perturbador quanto mais
recalcada é a emoção. (p.267 - Segunda parte: itinerários - XV. Time for dying)
A morte recuou e deixou a casa pelo hospital; está ausente do mundo familiar de
cada dia. O homem de hoje, por não vê-la com muita frequência e muito de perto,
a esqueceu; (...) (p.267 - Segunda parte: itinerários - XV. Time for dying)
No modelo que lhes apresenta a sociedade americana e que caracteriza o
interdito da morte, os autores distinguem uma parte que aceitam, the death, e
uma parte que contestam, the dying. (p.271 - Segunda parte: itinerários - XVI.
The dying patient)
A sociedade, em sua sabedoria, produziu os meios eficazes para se proteger
das tragédias quotidianas da morte, a fim de ficar livre para prosseguir em suas
tarefas sem emoções nem obstáculos.
Portanto, uma vez morto, tudo vai bem, no melhor dos mundos. Em
contrapartida, é difícil morrer. (p.271 - Segunda parte: itinerários - XVI. The dying
patient)
Naturalmente, na verdade nunca foi fácil morrer, mas as sociedades tradicionais
tinham o hábito de rodear o moribundo e de receber suas comunicações até seu
último suspiro. Hoje, nos hospitais e clínicas em particular, não há mais
comunicação com o moribundo. (p.272 - Segunda parte: itinerários - XVI. The
dying patient)
Os moribundos não têm mais status e, consequentemente, não têm mais
dignidade. (p.272 - Segunda parte: itinerários - XVI. The dying patient)
A diminuição das crenças religiosas e nas religiões da salvação, o
obscurecimento da escatologia, teriam tirado toda a credibilidade nos disparates
de um homem já quase anulado. (p.273 - Segunda parte: itinerários - XVI. The
dying patient)
Assim o papel do doente só pode ser negativo - o do moribundo que finge que
não vai morrer. (p.275 - Segunda parte: itinerários - XVI. The dying patient)

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Martin Claret, 2012. 255p.

IX - O mau monge - p.36 - Spleen e Ideal


Minha alma é um túmulo que, mau celibatário,

Desde sempre percorro e habito solitário;

Nada enfeitou jamais este claustro sem Deus.

XXVII - p.49 - Spleen e Ideal

XVIII - O ideal - p.42 - Spleen e Ideal


Jamais serão essas vinhetas decadentes, Belezas pútridas de um século plebeu, Nem borzeguins
ou castanholas estridentes, Que irão bastar a um coração igual ao meu. Concedo a Gavarni, o
poeta das cloroses, Todo o rebanho das belezas de hospital, Pois nunca vi dentre essas pálidas
necroses Uma só flor afim de meu sangüíneo ideal. O que me falta ao coração e o que o redime
Sois vós o Lady Macbeth, alma afeita ao crime, Sonho de Ésquilo exposto ao aguilhão dos ventos;
Ou tu, Noite por Miguel Ângelo engendrada, Que em paz retorces numa pose inusitada Teus
encantos ao gosto dos Titãs sedentos!
XX - A máscara - p.43 - Spleen e Ideal
Contempla esse perfil de graças florentinas; Na sóbria ondulação do corpo musculoso Excedem
Força e Proporção, irmãs divinas. Essa mulher, fração de um ser miraculoso, Divinamente forte,
amavelmente pobre, Criada foi para no leito arder em gozo, Saciando os ócios de um pontífice
ou de um nobre. - Repara-lhe o sorriso fino e voluptuoso onde a vaidade aflora e em êxtase
perdura; Esse lânguido olhar oblíquo e desdenhoso, Esse rosto sutil, na gaze da moldura, Cujos
traços nos dizem com ar vitorioso: "A Volúpia me chama e o Amor cinge-me a testa!" Ao ser que
esplende assim com lúbrica realeza Vê que encanto febril a formosura empresta! Chega mais
próximo e circunda-lhe a beleza. Ó que blasfêmia da arte! Ó que assombro fatal! A divina
mulher, que ao prazer nos enlaça, Lá no alto se transmuda em monstro bifrontal! - Não! É uma
máscara, uma sórdida trapaça, Essa face torcida e de esquisito aspecto, E, repara, também
crispada ferozmente, A cabeça concreta, o rosto circunspecto Oculto por detrás do semblante
que mente. Ó mísera beleza! O magnífico rio De teu pranto deságua ao pá de meus abrolhos;
Teu embuste me embriaga, e minha alma sacio Nessas ondas que a Dor faz jorrar de teus olhos!
Mas por que chora enfim a beleza absoluta Que a seus pés tem o ser humano submetido, Que
misterioso mal lhe rói o flanco em luta? - Ela chora, insensata, por haver vivido! E por viver ainda!
E o que ela mais deplora, O que a faz ajoelhar-se em frêmito feroz, É que amanhã há de estar
viva como agora! Amanhã e depois e sempre! - como nós!

XXI - Hino à Beleza - p.44 - Spleen e Ideal


Vens tu do céu profundo ou sais do precipício, Beleza? Teu olhar, divino mas daninho,
Confusamente verte o bem e o malefício, E pode-se por isso comparar-te ao vinho. Em teus
olhos refletes toda a luz diuturna; Lanças perfumes como a noite tempestuosa; Teus beijos são
um filtro e tua boca uma urna Que torna o herói covarde e a criança corajosa. Provéns do negro
abismo ou da esfera infinita? Como um cão te acompanha a Fortuna encantada; Semeias ao
acaso a alegria e a desdita E altiva segues sem jamais responder nada. Calcando mortos vais,
Beleza, a escarnecê-los; Em teu escrínio o Horror é a jóia que cintila, E o Crime, esse berloque
que te aguça os zelos, Sobre teu ventre em amorosa dança oscila. A mariposa voa ao teu
encontro, ó vela, Freme, inflama-se e diz: "Ó clarão abençoado!" O arfante namorado aos pés
de sua bela Recorda um moribundo ao túmulo abraçado. Que venhas lá do céu ou do inferno,
que importa, Beleza! Ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo! Se teu olhar, teu riso, teus pés
me abrem a porta De um infinito que amo e que jamais desvendo? De Satã ou de Deus, que
importa? Anjo ou Sereia, Que importa, se é quem fazes - fada de olhos suaves, Ó rainha de luz,
perfume e ritmo cheia! - Mais humano o universo e as horas menos graves?

XXIX - Uma carniça - p.51 - Spleen e Ideal


Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos Numa bela manhã radiante: Na curva de um
atalho, entre calhaus e ramos, Uma carniça repugnante. As pernas para cima, qual mulher
lasciva, A transpirara miasmas e humores, Eis que as abria desleixada e repulsiva, O ventre
prenhe de livores. Ardia o sol naquela pútrida torpeza, Como a cozê-la em rubra pira E para o
cêntuplo volver à Natureza Tudo o que ali ela reunira. E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir. O fedor era tal que sobre a relva escassa Chegaste quase a
sucumbir. Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço, Dali saíam negros bandos De larvas,
a escorrer como um líquido grosso Por entre esses trapos nefandos. E tudo isso ia e vinha, ao
modo de uma vaga, Que esguichava a borbulhar, Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar. E esse mundo emitia uma bulha esquisita, Como vento ou água
corrente, Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita E à joeira deixa novamente. As formas
fluíam como um sonho além da vista, Um frouxo esboço em agonia, Sobre a tela esquecida, e
que conclui o artista Apenas de memória um dia. Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela Em
nós fixava o olho zangado, Aguardando o momento de reaver àquela Carniça abjeta o seu
bocado. - Pois há de ser como essa coisa apodrecida, Essa medonha corrupção, Estrela de meus
olhos, sol da minha vida, Tu, meu anjo e minha paixão! Sim! Tal serás um dia, ó deusa da beleza,
Após a bênção derradeira, Quando, sob a erva e as florações da natureza, Tornares afinal à
poeira. Então, querida, dize à carne que se arruína, Ao verme que te beija o rosto, Que eu
preservarei a forma e a substância divina De meu amor já decomposto!

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