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I.I. O IHR e a extrema-direita estadunidense.

O que foi o IHR entre 1978 e 2002? Essa pergunta não é inédita. Ela já foi
formulada de diferentes formas, por diferentes pessoas e em diferentes circunstâncias. O
mesmo vale para as perguntas que a ela foram oferecidas. Dispersas, uma e outras podem
ser agrupadas em quatro conjuntos que se relacionam de maneiras diversas. Há então o
primeiro conjunto que é, por assim dizer, aquele das imagens nativas do IHR. Outro é o
formado pelos resultados das análises realizadas por historiadores ou outros cientistas
sociais que em algum momento tiveram que lidar com a organização enquanto tratavam
das manifestações do negacionismo. O terceiro conjunto é aquele das narrativas
produzidas e circuladas por organizações civis que combatem o IHR. Finalmente, há um
quarto conjunto que incorpora as imagens jornalísticas sobre organização. Exemplo de
narrativas que compõem cada um desses conjuntos é são os que se seguem.

David McCalden, diretor do IHR e editor do seu Journal for Historical


Review (JHR) em 1980, quis fazer ver a organização como um grupo de “acadêmicos
objetivistas”1. Essa referência atravessou diferentes momentos da operação da
organização. Tanto é que em 1994, enquanto ocupava a posição ocupada por McCalden
na primeira data, Mark Weber deu a ver o IHR como “o centro de uma rede mundial de
especialistas e ativistas que trabalhavam para separar da propaganda fictícia os fatos
históricos”2.
O historiador Pierre Vidal-Naquet ficou conhecido por ter sido, entre outras
coisas, um estudioso e um combatente público do negacionismo. Pelos idos da década de
1980, enquanto tratava da manifestação do fenômeno na França e olhava para sua
dispersão institucional fora do hexágono, ele viu o IHR como uma espécie de
“Internacional” negacionista3. À esteira do historiador francês, em 1993 Deborah Lipstadt
descreveu o instituto como a “coluna vertebral” do movimento e como um
“conglomerado de antissemitas, neonazistas e nativistas” disfarçado de organização
acadêmica4. Algum tempo depois, o historiador Stephen Atkins não viu outra coisa

1
BRANDON, L. (David McCalden). A note from the editor. [Editorial]. The Journal for Historical Review,
v. 1, n. 3, pp. 197-198, set./out./nov. de 1980.
2
WEBER, M. From the editor. [Editorial]. The Journal for Historical Review, v. 13, n. 4, pp. 2-4, jul./ago.
de 1994.
3
VIDAL-NAQUET, P. Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o
revisionismo. Campinas: Papirus, 1988, p. 129.
4
LIPSTADT, D. Denying the Holocaust: the growing assault on truth and memory. Nova York: Plume,
1993, p. 14-24.
quando explicou o IHR como uma espécie de fórum de articulação internacional do
negacismo5. Antes dele, o cientista político Robert A. Cahn percebeu o IHR como o centro
do negacionismo nos EUA6.

A Anti-Defamation League (ADL) foi um dos principais objetos e sujeitos da


oposição do IHR. Organizações civis como a ADL existem nos Estados Unidos em
quantidade e variedade significativas. Lá elas são chamadas de watchdogs (vigilantes) e
não raro são incluídos na categoria dos grupos de pressão (pressure groups) ou dos grupos
de defesa (advocacy groups) As principais atividades desenvolvidas pela ADL e por
organizações de seu tipo são a produção de materiais e campanhas educativas, a
elaboração e a proposição de políticas públicas, educacionais e legislativas, a condução
de investigações para fins de inteligência, a produção e a publicação de relatórios sobre a
atividades de determinados grupos e organizações extremistas. Geralmente, e no limite
de suas prerrogativas civis, essas práticas visam combater e neutralizar as manifestações
desses grupos, e specialmente os crimes de ódio que caracterizam legalmente as ações
violentas cometidas pelos mesmos7.Os agentes da ADL concentram suas ações sobre
manifestações do antissemitismo e consideram que a negação do Holocausto seja uma
delas. Em um de seus pareceres recentes, a ADL tratou do IHR como uma organização
pseudo-acadêmica (“pseudo acadêmic enterprise”)8. O rabino Maryin Hier, decano de
uma organização parecida, o Simon Wiesenthal Center (SWC), em 1981, viu que o IHR
era o primeiro “grupo pseudo-intelectual organizado para defender a ideia de que o
Holocausto não teria acontecido”. O Southern Poverty Law Center (SPLC) é outra
proeminente organização que funciona nos moldes da ADL. Seu programa e suas práticas
são mais gerais, visam combater e prevenir violações e crimes de ódio relacionados a
manifestações do racismo, homofobia, desigualdade de gênero e desigualdade social. A

5
ATKINS, Stephen. Holocaust Denial as an international movement. Westport: Praeger, 2009, pp. 163-
192
6
KAHN, Robert A. Holocaut denial and the law: a comparative study. Nova York: Palgrave McMillan,
2004, p. 23.
7
MICHEL, G. Right-wing extremism in the land of free: repression and toleration in USA. In: EATWELL,
R. Western democracies and the new extreme-right challenge. Nova York: Routledge, 2004, pp. 172-192.
8
ANTI-DEFAMATION LEAGUE. Origins of the Denial Movement. In: Holocaust Denial: an online guide
to exposing and combating anti-semitic propaganda. Disponível em
http://archive.adl.org/holocaust/origins.html#.WBySmiT8vp4, acessado pela última vez em 07/03/2016.
percepção dos agentes dessa organização sobre o IHR era e é a mesma da ADL e do
SWC9.

Em maio de 1985, enquanto noticiava um suposto atentado contra a residência


de uma pessoa ligada ao IHR, um jornalista da equipe do Los Angeles Times apresentou
a organização como um “grupo de historiadores”10. Mais tarde, neste mesmo diário de
grande circulação na Costa Oeste dos Estados Unidos, o IHR apareceu como o “think-
tank líder internacional do negacionismo”11. Em 1981, quando pela primeira vez o IHR
deu no New York Times, ele foi dado como uma “organização de direita”12. No biênio de
1992-1994, os agentes do IHR foram atrações de diversos programas televisivos de
grande audiência nos EUA. Nos auditórios do The Fill Donnahue Show ou no
sensacionalista Montel Willians Show, os agentes da organização foram entrevistados e
foram apresentados, eles e o movimento, como uma única mesma coisa exótica13.

Esses conjuntos de imagens diversas e as vezes divergentes que compõem as


narrativas sobre o IHR percebem e descrevem a organização como uma unidade. Em
quaisquer que sejam as narrativas, nelas o IHR sempre aparece ou é dado a ver como uma
espécie de instituição para-acadêmica. Se os conjuntos se encontram nessa definição
substantiva do IHR, eles se afastam quando o que está em jogo é a referência adjetiva da
organização. Enquanto no primeiro conjunto o IHR é uma instituição legítima, isto é, que
produz, que comunica um conhecimento sobre o passado válido e socialmente aceito
como passado, o contrário é verdadeiro no segundo e no terceiro conjunto. Neles, a
fachada organizacional do IHR serve apenas para tornar socialmente palatáveis as
manifestações dos agentes. Essas formas de percepção ou de auto-percepção são de

9
SOUTHERN POVERTY LAW CENTER. Institute for Historical Review. In: Hate/extremist files.
Disponível em https://www.splcenter.org/fighting-hate/extremist-files/individual/willis-carto, acessado
pela útlima vez em 07/03/2016.
10
JALON, Alan. In Northridge: Holocaust doubster is blast target. Los Angeles Times, Los Angeles, 16 de
maio de 1985.
11
OWEN, M. Susan. Embezzlement Suspect Claims Raid on Home Was Illegal : Courts: Former head of
Costa Mesa group that claims Holocaust accounts exaggerate is being investigated in connection with
missing $7.5 million. Los Angeles Times, Los Angeles, 16 de junho de 1995.
12
NEW YORK TIMES, California Judge rules Holocaust did Happen. The New Yor Times, 10 de out. de
1991. O artigo cobre os desenvolvimentos do processo judicial envolvendo o IHR e Mel Mermelstein.
Durante a primeira IHR-IRC, Carto lançou uma espécie de concurso: o IHR pagaria um prêmio de U$
50.000,00 a quem provasse através de “evidências físicas” que o Holocausto aconteceu. Mermelstein, um
sobrevivente que então residia na região da sede do IHR, participou do concurso e uma comissão interna
do IHR considerou suas evidências inválidas. Sobre o processo, c.f.: KAHN, R., 2004.
13
Gas chambers deniers. The Fill Donahue Show. Nova York: Sindicalizado, 1994. (Talk-Show, programa
de TV); Fred Leuchter. The Fill Donahue Show. Nova York: Sindicalizado, 1992. Holocaust discussion
with David Cole & Mark Weber. Montel Williams Show. Los Angeles: Sindicalizado; Paramount
Domestic Television, 1994.(Tabloid Talk-show, programa de TV).
diferentes formas confundidas nas narrativas que compõem o quarto conjunto e, assim,
não é raro que elas criem ou reproduzam os exotismos que caracterizam as manifestações
públicas do movimento e da organização.

O caráter turbulento e fragmentado dessas imagens indica pelo menos duas


coisas. Antes de mais nada, ele deixa entrever o relevo acidentado do terreno no qual se
está prestes a entrar. Outra coisa é a de que uma imagem unívoca e unitária do IHR pode
não ser uma imagem justa ao real do IHR. Se é assim, neste capítulo a minha intenção é
a de começar a devassar este terreno a partir da objetivação do mundo do IHR.

Vou começar fazendo isso descrevendo e explicando as condições sociais que


permitiram a existência do IHR. Vou me ater a duas dessas condições que penso serem
decisivas para o estudo do caso. Essas duas condições são necessariamente relacionais e
definidoras das fronteiras do IHR. Quando falarei da primeira, estarei me referindo a um
estágio da produção e da circulação de narrativas públicas sobre o Holocausto nos EUA;
a minha sugestão é a de que fora desse estágio, os agentes da casa não teriam os
referencias negativos através dos quais se definiam. A outra condição é a situação do IHR
e de seus agentes em um campo político. Aqui eu gostaria de elaborar e demonstrar a
proposição de que o IHR não poderia ter funcionado sem efeitos de ou sobre um ambiente
institucional da extrema-direita estadunidense.

Para demonstrar como essas variáveis funcionam no caso em estudo, no


primeiro nível deste capítulo eu realizarei algo que como uma genealogia do IHR. Esse
procedimento me dará condições de entrar no IHR através de seus agentes. A entrada no
espaço relativamente fechado da organização será feita através da objetivação de sua
estrutura organizacional e funcional. Mas o que que a estrutura organizacional de uma
instituição negacionista pode nos dizer sobre o sentido das práticas negacionistas? A
princípio, é possível dizer que pode se saber alguma coisa sobre as pessoas que eram os
sujeitos dessas práticas. Podemos saber como e em que circunstâncias elas se
relacionavam no interior da organização. Aqui eu sigo a orientação de Max Weber e,
como ele, considero que as relações sociais associativas são dotadas de sentidos
cientificamente interpretáveis14.

14
WEBER, M. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, pp. 4-35.
Por isso mesmo há mais coisas que podemos ficar sabendo através da
estrutura organizacional e do funcionamento do IHR. É possível sugerir que esses móveis
podem fornecer indícios sobre os princípios mais ou menos regulares que informam as
relações entre os agentes e as práticas negacionistas. Além do mais, e talvez por causa
disso, saber como era organizado e funcionava o IHR levou este trabalho de pesquisa em
direção às circunstâncias ou ao universo em que essas práticas se sedimentaram,
adquiriram sentidos e durabilidade. E aí eu chegarei no último módulo deste capítulo em
que tratarei das relações entre os agentes ao redor do IHR.

Sabe-se tão pouco dessas relações como se sabe do seu mundo. E talvez seja
mesmo impossível saber muito sobre cada qual. As fontes públicas são escassas e de
difícil acesso fora dos EUA. Grande parte das que assim existem e que foram por mim
coligidas e transformadas em um arquivo digital para esta pesquisa nunca foi
sistematicamente explorada pela historiografia do negacionismo que até agora não quis
produzir uma análise sistemática sobre os intelectuais negacionistas, sobre o IHR ou sobre
as organizações negacionistas. De qualquer forma, essas fontes me permitiram tirar o IHR
do vazio social em que ele aparecia tanto nos trabalhos que buscaram captar grandes
linhas de continuidade nacional do movimento15, quanto naqueles que quiseram
sistematizar o caráter internacional do movimento através de histórias de engajamentos
pessoas nacionalmente subscritas e isoladas16.

A pergunta e as respostas possíveis sobre o sentido das práticas negacionistas


só podem ser bem formuladas se elas mirarem para as relações de que tais práticas são
produtos e se essas variáveis variantes forem devolvidas ao mundo social sobre o qual
elas produzem e têm sentido. O que equivale a dizer, parafraseando Loïc Wacquant, da
mesma forma como não se pode compreender uma religião instituída sem que estude os
detalhes da estrutura e o funcionamento das organizações que a sustenta, não se pode
elucidar os sentidos do negacionismo sem que se examine o feixe de relações sociais e
simbólicas que se construíram no interior e em torno das organizações negacionistas, ou
do IHR, como aqui é o caso17.

15
LIPSTADT, 1993.
16
ATKINS, 2003.
17
WACQUANT, L. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de box. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 2002, p. 31.
I.I- O preludio: a negação e o “revisionismo”.

Alguns jovens se reuniram no centro de convenções de um hotel situado nos


arredores de Pittsburgh, na Pensilvânia, durante um final de semana de janeiro de 1969.
Eles se encontraram lá para ouvir ou falar sobre o futuro de uma organização que fazia
pouco eles integraram e que logo se tornaria conhecida como National Youth Alliance
(NYA). Em certa altura das atividades, o mestre de cerimônias anunciou o lançamento de
um livro. Era a primeira edição de The Myth of the Six Million18.

Esse livro contava uma história do tratamento institucional dados “aos


judeus” pelo III Reich para apresentar, como tese, a proclamação de que o extermínio
pelos nazistas seria uma mentira, uma “difamação deliberada” e o produto “sem
precedentes” de uma conspiração contra a Alemanha – e que as evidências arroladas ali
e no geral atestariam isso. Sua premissa era a de que “os judeus” teriam sido inimigos
declarados de Hitler e da Alemanha e que, desde o início, “eles” conspiraram contra o
governo nazista e, depois, pelo começo da II Guerra Mundial19.

A primeira edição de The Myth... saiu das prensas da Noontide Press (NP),
uma pequena editora da costa oeste estadunidense que funcionava desde meados da

18
O NYA era uma organização juvenil da extrema-direita direita estadunidense formada a partir de um
comitê organizado para a campanha do ex-governador do Alabama, George Wallace, à presidência dos
EUA pelo American Independent Party em 1968. O comitê criado por Willis Carto funcionou como uma
das bases campanha de Wallace ao lado de outros grupos da extrema-direita da época. A organização tinha
um programa anti-comunista e racista baseado em quatro pontos: a) remoção de organizações estudantis de
esquerda de campi universitários; b) neutralização e destruição de grupos black-power; c) combate à
circulação e ao consumo de drogas nos campi; d) resistência física contra a obrigação do seriço militar
obrigatório no Vietnã. Inicialmente, a organização funcionou como uma seção juvenil relativamente
independente do LL. Problemas administrativos teriam causado confrontos entre a direção da organização
e o LL, que então perdeu o controle sobre o NYA. É possível saber disso e de outras coisas sobre a
organização através de um conjunto de materiais produzidos por investigações conduzidas pela FBI sobre
grupos da extrema-direita que eram considerados como potencialmente subversivos, como foi o caso da
NYA. C.f.: FBI (Federal Bureau of Inteligency). Memorando157-3447-73, Pasta 157-3447, Washington,
D.C.28/06/1969. Uma série de Correspondências entre Carto e Revillo P. Olliver, professor de letras
clássicas na Universidade de Illinois e um destacado formulador da extrema-direita racista estadunidense
do pós-guerra mostram etapas do processo de formação da organização da qual se tornaria conselheiro, c.f.:
CARTO, W. [Carta]. São Francisco, 4/11/1968. [Para]. Revilo P. Oliver, Urbana, 1.f. Em que convida para
reunião secreta e para seção de “Escola Política” e apresenta projeto de organização juvenil; OLIVER, R.
[Carta]. Urbana, 29/11/1968. [Para] CARTO, W. Washington, D.C. 4 ff. Em que dá conselhos sobre
organização e programa da NYA, e também sobre atividades editoriais e organizacionais; um filme
institucional que apresenta a organização e seu programa protagonizado por Oliver em 1969 pode ser visto
em REVILO P. Oliver: 50 years after National Youth Alliance. National Youth Alliance, 1969, 37 min.
(video); disponível em < https://archive.org/details/ReviloOliverAfter50YearsNationalYouthAlliance>,
acessado em 05/03/2017. C.f. também: ZESKIND. ZESKIND, L. Blood and politics: the history of the
White nationalist movement from margins to mainstream. Nova York: Farrar, Strauss & Girroux, 2009, pp.
17-26. Sobre a reunião a que me refiro, c.f.: Idem., p. 15.
19
THE myth of six million. Sausalito: Noontide Press, 1969.
década de 1950 publicando e vendendo materiais racistas e anti-comunistas20 O livro foi
apresentado ao mundo como “uma anatomia” daquela que seria “a grande mentira” do
Holocausto e quem o introduziu foi o seu editor, que, não por acaso, era também o dono
da NP, o organizador daquela reunião e do NYA: Willis Carto.

Carto transitava mais ou menos errante pela extrema-direita estadunidense


desde meados da década de 1950. Depois de passar por grupos libertários,
segregacionistas e nacionalistas, fundar organizações e periódicos de pouca expressão,
em 1969 a situação era outra e mais estável. Havia mais ou menos 10 anos que Carto
operava o Liberty Lobby, um grupo de pressão que finalmente dava sinais de estabilidade
e representava em Washington os interesses de grupos de base (grassroots) da extrema-
direita e combatia seus pares inimigos “minoritários, bem financiados, estrangeiros” e
estranhos ao interesse nacional que, supostamente, haviam sequestrado a política
estadunidense21.

Além do LL, Carto agora atuava por duas frentes coordenadas: na Costa
Oeste, havia os negócios editoriais da NP e da Legion for Survive of Freedon (LSF)22,
uma organização sem fins lucrativos que pertencia a Hoyt Matthews, um amigo de Carto
que, antes de falecer em 1964, havia se tornado o donatário do American Mercury (AM),
uma antes prestigiosa publicação da direita conservadora estadunidense que foi fundada,
em 1924, como uma revista de variedades pelo jornalista H.L. Mencken.; no nordeste, o
LL e o NYA e mais os comitês circunstanciais formados em torno do primeiro,
especialmente. No LL, a lide era com “a grande política”, com as coisas do legislativo e
do estado, e, para tanto, havia um staff que atuava em comissões parlamentares, que
abordava políticos e organizações em busca de aliança, entre outras coisas do tipo, outro
que cuidava da administração da casa e dos recursos, e outros que noticiavam e
propagandeavam essas atividades através do tabloide semanal da organização naquela
época, o Liberty Letter, que contava com cerca de 140 mil assinaturas, ou por boletins
irregulares. A NP continuava sendo o braço editorial e a base de Carto na Costa Oeste,

20
Um catálogo editorial que certamente circulou em meados de 1966 oferecia apenas 17 títulos à venda.
Desse total, 4 eram livros, 3 eram coleções de periódicos, 1 era um boletim e 9 eram panfletos. NOONTIDE
PRESS. Book List, Los Angeles, sem data. Disponível <
21
CARTO, Willis. A Liberty Lobby is needed. Right, set. 1957; _____. Brief History of the Liberty Lobby.
Washington, D.C.: Liberty Lobby, 7/12/1960, mimeografado. Disponível em <
http://willisacartolibrary.com/2017/10/31/liberty-lobby-the-official-history/ > , acesso em 10/01/2018;
FBI. Memorando 105-4222-8. Los Angeles, 1/10/1958, Pasta 105-4222. C.f. ZESKIND, 2009.
22
FBI. Memorando 62-106941-67, Washington, D.C., 28/09/1966, Pasta HQ, 62-106941.
apesar de à época vender volumes já publicados e descontinuados de não mais que dois
periódicos, panfletos e poucos livros, por assim dizer, mais doutrinários, na linha do WD
que, por sinal, acabara de ser descontinuado para dar lugar ao AM. Por essa época, a NP
foi reincorporada à LSF que, além do AM, passou a publicar aquele que era o carro-chefe
da NP: o infame livro neospengleriano de Francis Parker Yockey transformado por Carto
em um tratado doutrinário, Imperium23.

Carto assinou a introdução com o seu pseudônimo douto, o Dr. E. L.


Anderson24. Seu texto tinha o objetivo de fornecer um guia de leitura para o livro. Ele

23
.FBI Memorando 62 -106941-76, Washington, D.C., 7/12/1966, Pasta HQ 62-106941; ZESKIND, 2009.
Yockey era um advogado estadunidense que começou a circular pela extrema-direita estadunidense nos
anos 1930, através do German-American Bund, uma associação de imigrantes alemães simpatizantes do
Nazismo. Em 1946, ele se voluntariou para trabalhar como assistente nos Tribunais Internacionais do Pós-
Guerra na Europa, sendo logo dispensado por suspeitas de colaboração com grupos da extrema-direita –
ele teria enviado documentos secretos a Maurice Bardèche. No final de 1947, ele se instala na Irlanda e
começa a trabalhar em Imperium que, no ano seguinte, é publicado em dois volumes por uma editora da
extrema-direita inglesa. No volume, Yockey pregava que o processo de decadência do ocidente só poderia
ser interrompido através de uma forma transeuropeia de fascismo, capaz de estabelecer “uma reunião
cultural”, um império, e assim derrotar o inimigo estadunidense e soviético. Sua proclamação se baseava
na ideia de que “a cultura ocidental” seria uma unidade espiritual que distinguia qualitativamente e
essencialmente “os europeus” dos demais povos; que o processo de modernização fragmentou essa unidade
em unidades políticas, i.e., criou as nações, e trouxe com elas todo o tipo de elementos degradantes; e que,
por trás desses de todos esses elementos – o racionalismo, a democracia, o capitalismo, o comunismo, a
civilização, entre outras coisas do tipo – estaria “o judeu”: “o elemento estrangeiro” (alien); a substância
disforme e ao mesmo “cultura-estado-nação-raça-povo” (Culture-State-Nation-Race-People of the Jew), “o
organismo hermético dentro de um dilacerado”, “o inimigo infiltrado”, “o parasita cultural”, “o adulterador
cultural” (culture disorter), enfim, “o retardatário cultural”. Seus escritos teriam chamado atenção de
Oswald Mosley e de outras figuras destacadas do fascismo inglês e europeu do entre e do pós-guerra. Em
1948, Yockey já tinha vínculos orgânicos com o nacionalista pan-europeu Union Movement (UM) de
Mosley; pelos idos do ano seguinte, divergências programáticas em torno da retórica anti-comunista e
nacionalista de Mosley teriam levado Yockey a deixar o UM. Logo depois da saída, Yockey e outros dois
dissidentes fundaram o European Liberation Front (ELF). Tanto Mosley quanto os seus dissidentes
visavam implementar um programa fascista transnacional na Europa e relegavam a este caráter a
possibilidade de sucesso do projeto. As formas de implementação desse programa, entretanto, eram
diferentes. Para o primeiro, o fascismo europeu só poderia ser um movimento militante e de massas; para
Yockey e seus parceiros, a coisa só poderia ser se fosse um movimento de elites e, antes de mais nada, um
movimento intelectual. Os escritos doutrinários de Imperium forneceram as bases do programa proposto
Yockey no manifesto que marcou o lançamento do ELF, o The Proclamation of London, que era uma
espécie de panfleto que sintetizava as proclamações de Imperium. YOCKEY, F. P. Imperium: the
philosophy of history and politics. Sausalito, Noontide Press, 1961; Idem. The proclamation of London.
Londres: European Liberation Front, 1949. Disponível em <
https://ia800300.us.archive.org/22/items/TheProclamationOfLondon/Proclamation.pdf>, acesso em
13/02/2017. C.f.: KOOGAN, K. Lost Imperium: the European Liberation Front (1949-1954). Patterns of
prejudice, vol 36, n.3, 2002.
24
Carto usou este pseudônimo entre os anos 1950 e 1960 para assinar textos pretensiosamente filosóficos e
doutrinários ou correspondências com intelectuais. Um bom exemplar deste tipo de prática é uma série de
artigos originalmente publicados na Right que foram editados em panfleto e apresentados como “um ensaio
de três partes sobre a ‘dinâmica cultural’”. Nesses artigos, através do “Dr. Anderson”, Carto elaborou os
componentes de “uma ciência” e de “uma ética” que pretendiam atualizar o pessimismo cultural
spengleriano. A lógica dessa crença mal apresentada como a ciência ou o sistema de pensamento “da
dinâmica cultural” é a do nacionalismo racista. Ela pressupõe que a raça e a nação são uma “unidade
cultural” que entra em um processo de decadência através do contato com elementos estrangeiros.
Apresentado como “eugenia positiva”, seu método dito progressista deveria coordenar um programa “de
tinha quatro partes que eram atravessadas pela reiterada objetivação do Holocausto como
uma “mentira”; o propósito era, certamente, o de convencer de que dizer “mito” é dizer
única e exclusivamente “mentira” e que era este o caso do Holocausto. Além deste
enunciado que se manifesta em um léxico variado e semanticamente constante, essa grade
de leitura, por assim dizer, fornecia um programa. O texto da introdução abria com uma
apresentação do objeto e de seus supostos efeitos práticos; a seguir, localizava o livro e o
que ele realiza em uma “tradição” e em um esforço historiográfico dissidente (contra “os
historiadores da corte” e a “corte”), o “revisionismo”; logo depois, explicava o anonimato
do autor do livro como um efeito do dito “mito”; e, por fim, apresentava, como mapa de
navegação pelo texto, trechos soltos e não referenciados do Mein Kampf de Hitler que
tratam “(d)o judeu” como um tipo naturalmente conspirador e mentiroso e que reiteram
a premissa do livro25.

É a essa objetivação que atravessa a introdução de Carto que se prendia o seu


programa. Para Carto, só como “(um)a mentira”, como “(um)a lenda”, “como uma
“fraude”, como uma “enganação” e como “(o) mito” o Holocausto fazia sentido: só assim
ele poderia provocar efeitos indesejáveis sobre o mundo e de nenhuma outra forma ele
poderia produzir uma mobilização contra um suposto estado de coisas produzidos através
do mesmo. Os efeitos elencados por Carto extrapolavam aquilo que ele via e quis fazer
ver como a justificativa para a extorsão dos cidadãos alemães em forma de indenizações
recolhidas pelo Estado de Israel ou “(pel)os judeus”, descritos como as individuais desse
estado “espalhadas pelo mundo”. Além disso, e mais grave, o tal “mito” teria imposto
uma espécie de censura generalizada sobre o que falar e o que fazer: ele tornava o
problema da culpa da guerra um dogma e, assim, consubstanciava a vitória daquilo que
seria a “força oculta do sionismo” e de “seu irmão gêmeo”, o comunismo, sobre “o

evolução” racial que consistia em um programa de purificação vagamente definido em termos de


deportações generalizadas. Esse método e aquela dita teoria deveriam informar uma ética que recebeu o
nome de “Evotismo”. Seu fundamento era o de que uma pessoa boa é aquela que contribui “totalmente com
as forças que cooperam para evolução de nossos descendentes” e se “opõem ativamente àquelas que
contribuem para a degeneração” dos mesmos. Nesses artigos publicados entre 1959 e 1960, esse programa
foi apresentado como uma alternativa construtiva a um internacionalismo conspiratório que caracterizava
e amalgamava o marxismo comunista/socialista ao capital financeiro dos liberais. Essa visão e o projeto
são apresentados como se fossem exclusiva e verdadeiramente pluralistas e igualitários, e isso por que
queriam fazer com que cada uma das ditas “unidades culturais” fosse livre para perseguir separadamente o
seu caminho evolutivo sem o risco de contaminação pelos ditos “elementos estrangeiros”. O panfleto foi
publicado por uma “Liga para a Dinâmica Cultural”; o endereço postal dessa liga é o mesmo da Noontide
Press. ANDERSON, E.L. (Willis Carto) Cultural Dinamics. Sausalito: The League for Cultural Dynamics,
1960. FBI. Memorando 105-4222-31, 02/01/1959 apura o uso desse pseudônimo por Carto.
25
ANDERSON, E.L. (Willis Carto). Introduction. In: THE myth of six million. Sausalito: Noontide
Press, 1969, pp. 1-5.
Ocidente”. Como consequência cumulativa e inevitável desses efeitos, o dito “mito” teria
ainda contribuído para o estado degenerado dos EUA de então; os “perpetradores” da
“grande mentira” seriam os responsáveis por permitir e provocar o caos através do
encorajamento do “contato entre negros e brancos em uma mesma sociedade”, e
impediam que uma solução para o problema desse suposto problema fosse elaborada e
proposta na forma de uma política de exclusão racial26.

Diante dessa situação, tanto “o” dito “mito” que o livro supostamente
desmitificava quanto os seus supostos criadores e propagandistas deveriam ser
combatidos. Aquela história contada através de declarações de oficiais nazistas e de Hitler
(e somente essas) processadas ao pé da letra, de supressão sistemática de fontes, de
transposições, omissões e deslocamentos das sequências de eventos e da mistura
sistemática de evidências verdadeiras com outras fabricadas e o livro que a materializava
eram apresentados como armas para este combate. Eles poderiam eliminar a equivalência
entre o projeto de mundo racista de Carto e o nazismo. Tanto esse projeto e o esquema de
percepção de mundo que mutuamente se informavam seriam positivados. Sobretudo, o
livro materializaria os hábitos de pensamento que atravessam um e outro27.

Anos mais tarde soube-se que o autor de The Myth... era, na verdade, David
Hoggan. Na primeira edição, Carto o apresentou como um professor universitário que
teria preferido o anonimato ao ostracismo. Hoggan, de fato, atuou como professor
substituto em algumas universidades nos EUA e era doutor em História por Havard. Sua
tese de doutorado, defendida em 1948, era um histórico das relações entre a Polônia e a
Alemanha nazista nos anos imediatamente anteriores à guerra e, em 1961, foi
transformada e deu corpo a um volume apologético do nazismo que publicado, na
Alemanha, por uma destacada editora da extrema-direita. Lido pela historiadora Lucy
Dawidowicks em 1980, o livro originado da tese de Hoggan “retratava os ingleses como
entusiastas da guerra, os poloneses como os seus reais provocadores e Hitler como o anjo
da paz” 28.

26
Idem.
27
Ibdem.
28
A primeira edição do livro de Hoggan foi publicada pela Verlag der Deutschen Hochschullehner-Zeitung
em 1961. Ele foi traduzido para o alemão por Mabel. E. Narjes e editado por H. Grabert. Narjes foi uma
famosa tradutora da extrema-direita alemã e Grabert um influente editor da cena. Ambos foram
responsáveis pela tradução para o alemão de materiais negacionistas originalmente publicados em inglês.
O livro ficou conhecido dos historiadores estadunidenses através de uma resenha crítica publicada no
periódico especializado The American Historical Review pelo historiador Gerhard L. Weinberg. A
Um dos entusiastas de primeira hora do livro derivado da tese de
doutoramento de Hoggan foi o historiador Harry Elmer Barnes. Barnes experimentou
algum prestígio profissional entre os anos 1920 e 1930, quando transitava bem por
diferentes campos das ciências sociais e da política de esquerda estadunidense. Ao longo
da década de 1930 ele passou a ser conhecido e reconhecido como um ardente
nacionalista, um ferrenho crítico do New Deal e do governo Rossevelt e um apaixonado
anticomunista. Pelos anos 1940 e até sua morte em 1968, com dificuldades para achar
quem publicasse seus escritos, quando não os publicava em pequenas editoras e
periódicos da extrema-direita, ele mesmo o fazia. Dawidowicks escreveu que, nos anos
finais de sua via, Barnes havia se tornado o “pretensioso decano dos historiadores
isolacionistas, o guru de incipientes libertários e o santo-patrono de neo-nazis em busca
de legitimidade acadêmica29”. Escritor prolífico, Barnes dividiu as orelhas da primeira
edição do livro de Hoggan com o seu editor, Herbert Grabert30.

Barnes também assinava um dos cinco artigos que compunham o apêndice da


edição original de The Mith of Six Million pela NP. A seleção dos artigos seguiu alguns
critérios. Todos eles falavam de uma mesma forma sobre “os judeus” e “os” retratavam
como indivíduos coletivos, as vezes equivalentes a uma outra unidade, “o Estado de
Israel” ou “o sionismo”/ “os sionistas”, e sempre como uma única e mesma coisa
essencialmente ruim que conspirava contra o ocidente em função de seus interesses
próprios e, nesses casos, o fazia através de narrativas sobre o passado. Em quatro dos
cinco artigos, essa sanha ou era auxiliar ou informava aquela que caracterizaria “os
comunistas”. Além disso, todos os artigos dessa antologia dada a ler como uma unidade
que fazia coro às proclamações e à premissa do livro haviam aparecido entre 1967 e 1968

referência do livro de Hogan é aquela fornecida por esta resenha. Estas clara e precisa resenha de Weimberg
apresenta a tese, os argumentos e os métodos que Hoggan usou para este livro; quanto aos últimos, eles são
os mesmos que foram usados em The Myth of Six Million.C.f.: HOGGAN, D. Der Erzwungene Krieg: die
Ursachen und Urheber des 2. Weltkriegs. Tübingen: Verlag der Deutschen Hochschullehrer- Zeitung, 1961,
893 pp. Resenha de: WEINBERG, G.L.A. The American Historical Review, vol. 68, n. 1, out. 1962.
Disponível em < https://doi.org/10.1086/ahr/68.1.104 > . Acessado em 18/03/2017. O artigo em que a
historiadora Lucy Dawidowicks situa este livro de Hoggan em relação ao negacionismo, então percebido
como “revisionismo”, pode ser conferido em DAWIDOWICKS, L. Lies about the Holocaust. Commentary
Magazine, Nova York, 1/12/1980. Disponível em <https://www.commentarymagazine.com/articles/lies-
about-the-holocaust/>; acessado em 20/03/2017. O livro foi editado e publicado em inglês pelo IHR após
a morte de Hoggan e recebeu o título de The Forced War: when peacefull revision failed. C.f.: HOGGAN,
D. The Forced War: when the peaceful revision failed. Costa Mesa: Institute for Historical Review, 1989.
Disponível em < https://archive.org/stream/TheForcedWar/HOGGANForcedWar_djvu.txt> ; acessado em
15/02/2017.
29
C.f.: DAWIDOWICKS, L., 1980, op.cit.
30
C.f. .WEINBERG, G.L., 1962, op.cit.
em volumes do AM. Todos esses artigos tratavam de apresentar algum caso em que
alguma verdade ou dado sobre o passado teria sido suprimida ou pelo Estado de Israel,
ou por forças misteriosas por trás dos meios de comunicação que seriam, diretamente ou
indiretamente, linhas auxiliares do comunismo soviético e “dos comunistas”, ou
influenciavam políticos nacionais.

Três desses artigos falavam diretamente sobre o Holocausto. Um deles era o


assinado pelo professor de inglês aposentado, diretor de uma organização nacionalista
alemã nos EUA e conselheiro do NYA, Austin J. App, para quem o “caso dos seis
milhões” seria uma substituição dos fatos pela fantasia e, assim, uma arma de propaganda
“(d)os sionistas” e “(d)os comunistas”31. Os outros dois eram homenagens aos recém-
falecido francês Paul Rassinier; o primeiro, na forma de um obituário, contava uma
história sobre quem foi e o que fez este homem e então o incluía em lugar destacado no
rol dos “historiadores revisionistas”; o segundo, apresentado como uma resenha, fazia o
mesmo comentando um dos trabalhos e as “teses” de Rassinier. Um foi escrito por Herbert
C. Roseman, editor e dono da Historical Review Press32, uma editora nova-iorquina
especializada em literatura “revisionista” e libertária, e, o outro, por Barnes33.

31
APP, A.J. That elusive six million. In: THE myth of six million. Sausalito: Noontide Press, 1969.
Apêndice. Oliver foi um dos cinco “patriotas” veteranos que integraram o conselho da NYA por aquela
época. C.f.: VALENTINE, P. W. Rightist claims cure for college violence. The Los Angeles Times, Los
Angeles, 26/05/1969, anexo a FBI. Memorando 157-3444-73. Nova York, 28/07/1969, Pasta 157-3444,
Série 2. Sobre outras informações a respeito de App, c.f.: LIPSTADT, 1993, pp. 83-102.
32
Sobre Roseman, c.f.: AMERICAN HERITAGE CENTER. Inventory of the Herbert C. Roseman
Papers (1950-1969). Laramie: University of Wyoming, 2013.
33
Os termos libertarianismo/libertário já eram polissêmicos e objetos de disputas simbólicas entre meados
da década de 1950 e, especialmente, ao longo dos anos 1960. Aqui eu me refiro a uma categoria nativa e a
uma rede difusa construída em torno do economista Murray N. Rothbard. Nesse caso, falar de
libertanianismo é falar de uma vertente de um movimento diverso que se apresentava como libertário para
marcar uma ruptura com o liberalismo clássico, com comunismo e com o socialismo – categorias quenão
raro eram homologizadas enquanto formas coletivistas e/ou centralizadoras de pensamento político,
econômico e social. O “revisionismo” dos “historiadores libertários” é aquele do qual Barnes foi
transformado em um fundador e que foi continuado por James J. Martin, Rothbard e seus herdeiros
simbólicos que circularam pelo periódico Left and Right, escrito e editado por Rothbard entre 1965 e 1968,
ou do Libertarian Fórun, editado e publicado entre 1969 e 1984 pelo mesmo, ou, entre outros, a partir dos
anos 1980, pelo Mises Institute. Esse “revisionismo” que continua o de Barnes parte do pressuposto de que
existe uma “história oficial” – uma história feita pelo e para o estado através da cooptação e do recrutamento
destes a quem ele chamou de “historiadores da corte” – que é necessariamente falsa e serve para perpetuar
a dominação do Estado sobre a vida das pessoas. Barnes se tornou atrativo para esses grupos por que suas
revisões da I e da II Guerra Mundial declaravam, no geral, que as guerras e a política externa
intervencionista seriam o ponto alto da ação dominadora e centralizadora do estado e que as tentativas de
“demonstrar” isso seriam continuamente suprimidas e condenadas ao ostracismo. C.f.: ROTHBARD, M.
Harry Elmer Barnes, R.I.P. (Editorial) Left and Right: a journal for libertarian thought, Nova York, outono
de 1968; Idem. The case for Revisionism (and against a priori history) The Libertarian Forun, Nova York,
fev. de 1969; RIGGENBACH, Jeff. Why American history is not what they say: an introduction to
revisionism. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2009; HAMOWY, R. (Org.). The Enciclopedia of
O texto de Barnes era apresentado como uma resenha de Le Drame des Juifs
Européens, livro de Rassinier publicado em 1964 pela Les Sept Couleurs, importante
editora da extrema-direita francesa fundada em 1948 por Maurice Bardèche, negacionista
de primeira hora e importante figura do fascismo francês. Rassinier era um professor de
história do ensino secundário e havia transitado por diferentes posições no campo da
esquerda francesa no entre-guerras. Durante a ocupação nazista, ele fez parte da
resistência ao governo de Vichy e, nessa condição, foi preso e enviado pela Gestapo ao
campo de trabalho de Dora e, logo depois, ao campo de concentração de Buchenwald. No
imediato pós-guerra ele foi eleito deputado socialista e, em 1948, publicou um relato
sobre sua passagem pelos campos com o título de La Passage de la Ligne. Em 1950 ele
expandiu seu relato e, no volume de Mensonge d’ Ulysse, fez generalizações dessa
experiência para tentar afirmar que não houve uma política ou um processo de extermínio
de judeus e indesejáveis do nazismo. O livro que Barnes resenhou foi publicado em 1964,
quando, já havia alguns anos, Rassinier transitava organicamente pela extrema-direita.

Libertarianism. Thousand Oaks: Sage Publications, 2009; Catho Institute; DOHERTY, Brian. Radicals for
Capitalism: a freewheeling history of the modern American Libertanism. Nova York: Public Affairs, 2007.
Carto transitou por esses círculos da direita libertária estadunidense durante a década de 1950 através de
Robert Lefevre, figura que se tornaria um dos pontos nodais daquela rede construída em torno de Rothbard.
Esses vínculos se mantiveram e se aprofundaram, apesar de ele ter deixado e transitar organicamente por
esse terreno já no final daquela década. Seu desligamento relativo pode estar relacionado a questões
programáticas (a defesa do nacionalismo racista) e a questões organizacionais (a falta de apoio para as suas
próprias iniciativas organizacionais). O afastamento se deu no momento em que Carto passou a circular por
grupos segregacionistas de projeção nacional e a buscar apoio nestes. Foi assim que ele se aproximou de
Robert Welch e de sua John Birch Society pelos finais da década de 1950. Em uma carta enviada por este
a Carto em meados de 1959, quando entre os dois se ensaiava um tipo de relação próxima, Welch reproduz
e concorda com o trecho de um artigo de Carto acolhido para publicação em um dos periódicos da
organização em que se lê que “os libertários tendem a seguir suas teorias até o limite de suas lógicas e
conclusões monstruosas”; Welch ainda endossa: “Muitos deles parecem desconsiderar o fato de que nós
vivemos em mundo inteiramente anormal e conspiratório, e não em um em que a lógica normal prevalece”.
C.f. WELCH, R. [Carta] Belmont, 11/06/1959. [Para] CARTO, W. São Francisco, 3 ff. Em que responde
a pedido de informações sobre trabalho e comunica acolhimento de artigo para publicação no American
Opinion. C.f.: FBI. Memorando 105-42221-1. São Francisco, 15/02/1956, Pasta 105-4222; Idem.
Memorando 105-4222-15, São Francisco, 31/10/1956, Pasta 105-4222. De qualquer forma, na década de
1980 o libertarianismo passou a ser para Carto uma difícil e irrealizável síntese entre o anarquismo de
esquerda, o conservadorismo de direita e a defesa do livre mercado, um fundamento capitalista. Assim, o
libertarianismo seria “inviável política e filosoficamente por que é impraticável como o comunismo e
somente pode ser descrito de maneira adequada como uma religião secular. ” C.f.: CARTO, Willis.
Libertarianism. In:_____. Populism vs. Plutocracy: the universal struggle. 2ª Ed. Washington: Liberty
Lobby, 1996, p. 273, Apêndice 1 – A Populist Glossary. Sobre o libertarianismo no geral, c.f.: BRENNAN,
J.; VOSSEN, B. van der; SCHIDTZ, D. (Orgs.). The Routledge Handbook on Libertarianism. Nova York:
Routledge, 2017; MACLEAN, Nancy. Democracy in chains: the deep history of the radical right’s stealth
plan for America. Nova York: Viking/Penguin Randon House, 2017. Sobre Welch e a JBS, c.f.: 33
MULLOY, D.J. The World of the John Birch Society: conspiracy, conservatism, and the Cold War.
Nashville: Vanderbilt University Press, 2014. Ed. Digital.
Agora, depois da sensação e dos efeitos do julgamento de Eichmann 34, e ainda lançando
mão de sua limitada autoridade experiencial dentro e fora dos campos, Rassinier tentava
desacreditar testemunhos, depoimentos e julgamentos, fossem eles de civis, oficiais
nazistas ou de sobreviventes. Além do mais, ele acusava centros de documentação
depositários desses e de outros documentos de tornar públicos esses materiais
supostamente problemáticos e de inflar exageradamente o quadro das atrocidades
nazistas, especialmente aquelas relacionadas ao universo dos campos e do extermínio de
judeus, em função de interesses “sionistas” e/ou “soviéticos”, portanto, essencialmente
“anti-alemães”35.

Barnes fez dessas declarações a tese do livro de Rassinier. No seu comentário,


a ideia de que elas diziam mais sobre o presente do que sobre o passado era reitera. Para
ele, Rassinier e seu trabalho eram dignos da consagração revisionista não só por que
lidavam “com fatos, figuras e documentos cuidadosamente examinados”, mas por que
lançavam luz sobre o presente de uma suposta propaganda sionista e de outra, comunista,
movidas através de documentos e interpretações problemáticas sobre o passado que
impediriam o reestabelecimento da Alemanha e a mantinha refém do Estado de Israel e
da URSS36.

Não há evidências de que tenha sido Barnes quem introduziu o tal


“revisionismo” a Carto. Mas, enquanto se corresponderam entre os finais dos anos 1950
e meados dos 1960, Barnes manteve Carto informado sobre quem o que acontecia nesse
mundo e naquele dos ainda parcos e incipientes escritores e escritos sobre o dito “mito
dos seis milhões”. Barnes indicava pessoas e apresentava autores desse campo a Carto e
foi assim que um fez o outro saber e se interessar por Rassinier. Durante1965 os dois se
corresponderam e se frequentaram para tratar da publicação de artigos do negacionista
francês em inglês. Para preparar o material, Barnes esperava ficar sabendo alguma coisa
através de intermediários que incluíam um recluso, reticente e impenetrável Hoggan.
Parece que as fontes de informação arroladas por Barnes se desencontraram no tempo ou

34
C.f.: Sobre o julgamento, c.f: ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004; sobre os efeitos públicos, c.f.: NOVICK, P. The Holocaust and
collective memory. Londres: Bloomsburry, 2001, pp. 127-145.
35
Sobre Rassinier e o negacionismo francês, c.f.:BAYARD, F. Comment l’idée vint à M. Rassinier:
naissance du révisionnisme. Paris: Fayard, 1996. [Coleção Pour une histoire du XXº siècle]; MORAES,
L.E.S. Negacionismo: a extrema-direita e a negação da política de extermínio nazista. Boletim do Tempo
Presente, n. 4, agosto de 2013. RASSINIER, P. Le Drame des Juifs Européens. 2. Ed. Paris: La Vieille
Taupe, 1984.
36
BARNES, H.E. Zionist Fraud. In: THE myth of six million. Sausalito: Noontide Press, 1969. Apêndice.
não tiveram um tiveram um contato atravessado com Rassinier; afinal, em 1965, elas
informam que Rassinier ainda era um socialista e ignoravam o fato de ele ter trânsitos
orgânicos pela extrema-direita francesa e alemã daquele tempo. Quando soube dessa
forma do socialismo de Rassinier, Barnes não hesitou em escrever para Carto
aconselhando-o de que, apesar disso, seus escritos seriam bons para o WD37.

É possível que Carto tenha tido contato com o livro de Hoggan através de
Barnes38. E é igualmente provável que Carto tenha publicado o volume sem a permissão
de Hoggan. Logo depois da publicação de The Myth... Hoggan moveu um processo contra
Carto reclamando seus direitos autorais sobre o livro. O imbróglio se estendeu até 1973
e terminou com a retirada da queixa por parte de Hoggan. Ele e Carto podem ter celebrado
algum tipo de acordo. Afinal, uma nova edição de The Myth... sairia pela mesma prensa
da NP em 1974 sem que seu autor fosse creditado39.

Não de qualquer forma, o revisionismo de Barnes, e também aquele de seus


continuadores e discípulos libertários, não eram aquele que consagrava o programa
fornecido pela de introdução de Carto à primeira edição de The Myth e a objetivação do
Holocausto que ela incorporava e assim atravessava aquele texto e seus componentes.

37
BARNES, H.E. [Carta] Malibu, 20/01/1965. [Para] CARTO, W. Washington, D.C., 1 f. Em que descreve
tentativas de saber da filiação política de Rassinier através de terceiros e se compromete em enviar uma
resenha sobre “o último livro” do autor, referindo-se provavelmente a Le Drame des Juifs Europeens;
BARNES, H.E. [Carta] Malibu, 23/01/1965. [Para] CARTO, W. Washington, D.C., 1 f. Em que comunica
pedido a editor para remessa de livro de James J. Martin que provaria que a decisão pela entrada dos EUA
na guerra teria sido afetada por uma conspiração entre comunistas e liberais, em que recomenda que artigos
sobre esse livro fossem escritos para serem publicados no Western Destiny; BARNES, H.E. [Carta] Malibu,
6/03/1965. [Para] CARTO, W. Washington D.C., 1 f. Em que fornece informações sobre a trajetória de
Rassinier e fornece conselho para a editoração e publicação de artigos do negacionista francês no Western
Destiny; BARNES, H.E. [Carta] Malibu, 04/07/1965. [Para] CARTO, W. Los Ageles, 1 f. Em que se
propõe a arranjar encontro entre Carto e James J. Martin, em que recomenda Martin Larson e Ralph
Townshend para trabalho no LL.
38
Em uma “História do Revisionismo” Carto diz que após ter terminado o manuscrito de The Myth...,
Hoggan havia o enviado para “amigos” e pessoas que talvez pudessem se interessar pelo material. Entre os
destinatários do primeiro tipo estavam Barnes, James J. Martin e Ralph Townshend; entre os do segundo
tipo estava um Tom Serpico, “editor de impressos católicos e históricos em Hawthorne, Califórnia ”.
Serpico, “que não conhecia Hoggan”, teria feito o livro chegar até Carto. Esta história escrita por Carto foi
publicada em um livro coletivo que, apresentado como um manual, fazia um balanço e representava o
estado da arte do campo negacionista pelos anos 1990. A edição original do livro foi organizada por Germar
Rudolf e publicada pela Grabert em 1994. C.f: RUDOLF, G (Org.) Ein Handbuch über strittige Fragen des
20. Jahrhunderts. Tübingen: Grabert Verlag, 1994. Em 2003, por sua própria editora, Rudolf publicou o
livro em inglês como o primeiro volume de uma coletânea de ditos manuais e, para tentar polemizar com a
historiadora Deborah Lipstadt, deu a ele o título de Dissecting the Holocaust. The Growing Critique of
‘Truth’ and ‘Memory’. Eu me refiro a esta edição. C.f.: RUDOLF, G. (Org.). Dissecationg the Holocaust:
the growing critique of ‘truth’ and ‘memory’. Chicago: Thesis and Dissertations Press, 2003. Holocaust
Handbooks Series, V. 1.
39
DAWIDOWICKS, L., 1980, op. cit
Apesar dos trânsitos, das referências e da retórica conspiracionista comuns, a lógica de
um e de outro só são formalmente parecidas.

No primeiro caso, a crença que justifica “o revisionismo” como programa e


como disciplina dissidente, portanto legítima, é a de que determinadas representações e
interpretações do passado dominantes são instrumentos e meios de dominação do estado.
Isso só evidente em si mesmo para os iniciados e isso depende de uma forma de perceber,
dessa mesma forma, “o Estado” como uma entidade unitária, substantiva e
essencialmente dominadora. Aqui, os praticantes de tal revisionismo querem liberar um
passado do estado40.

No caso de Carto, a operação é outra e depende de uma visão racista da


história. E essa visão, tal como foi materializada na introdução àquela primeira edição de
The Myth..., foi elaborada em outra infame introdução-programa: a que abria as edições
de Imperium por Carto editadas e publicadas desde 1963. Lá e aqui, as supostas visões
dominantes sobre o passado só são assim por que são dominadas; e elas são assim como
manifestação de um estado de coisas decadente provocado pelos ditos “elementos
estrangeiros”, corruptores, degenerados e degenerantes, essencialmente inimigos do
ocidente: “os judeus”. Na sua introdução a Imperium, Carto atualizou anti-moderno o
anti-americanismo, o anti-comunismo e o anti-semitismo do “eurofascismo” anti-
moderno de Yockey em seu nacionalismo racista. E o dispositivo que faz funcionar essa
atualização é o que Carto chamou de uma “filosofia da história” que deveria orientar a
ação política para a realização desse projeto.

Essa dita filosofia nada mais é que a visão de um passado como uma
conspiração continuada contra “o Ocidente” e os valores que o distinguiriam como
“unidade cultural/racial”, de um presente como mobilização pela sobrevivência dessa dita
unidade e contra a degeneração causada pelos agentes dessa conspiração, e, finalmente, a
crença em um futuro como vitória sobre esse estado de coisas. Sem essa “filosofia”, e
fora das relações entre os agentes em posições diferenciadas e diferenciadoras no campo
da extrema-direita estadunidense, o Holocausto enquanto “mentira” não poderia ser
concebido como uma ideia-força. Sua eficácia, entretanto, dependeria de condições
externas que, naquele tempo e naquele mundo, ainda não haviam se manifestado.

40
C.f.: nota 33.
I.II- A formação do IHR.

Em meados da década de 1970 a política estadunidense parecia não ser aquela


do final dos anos 1960. O professor e crítico literário Timothy Brennan lembrou que,
“naquela época, uma certa visão socialdemocrata do passado recente foi banida das
discussões públicas e as crenças políticas mudaram vigorosamente”41. E, ainda que na
lembrança da ressaca não caibam os longos e relativamente estáveis processos que dão
na arrebentação, a situação, pelo menos na superfície, era mesmo acidentada e cambiante.
Aquele era o mundo do fim do dito consenso liberal e da ruína dos arranjos instaurados
pelo New Deal que mantiveram parcelas da população estadunidense em uma espécie de
bem-estar social, e, ainda que aparente e seletivamente, garantiram a afirmação dos
direitos civis para negros e impulsionaram movimentos pela extensão desse mesmo tipo
de garantias a outras minorias sociais42.

Essas e outras mudanças não foram sem efeitos para a extrema-direita. Nesse
campo minado agora cabiam organizações e grupos mais esotéricos e de retórica violenta
como o National Alliance e as milícias rurais e suburbanas de survivalists que se
organizavam e se armavam contra uma espécie apocalipse multirracial visto por seus
agentes como algo eminente nos EUA de então; nele se movimentava tranquilamente e
com algum sucesso a versão repaginada dos Cavaleiros da Ku Klux Klan de colarinho
branco de David Duke que, quando pensavam nos EUA, viam uma nação exclusivamente
branca e usavam gabinetes políticos, não tochas ou rifles, para viabilizarem seu projeto;
esse terreno era o mesmo onde proliferaram os think-tanks, as organizações, os grupos,
as “universidades” e as igrejas da Nova Direita e da Direita Religiosa, os quais

41
BRENNAN, T. Wars of Position: the cultural politics of left and right. Nova York: Columbia University
Press, 2005, p. 10.
42
Sobre o conjunto geral dessas mudanças, c.f. HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa
sobre as origens da mudança cultural. 17 ed. São Paulo: Loyola, 2008. Sobre esses grupos e organizações,
c.f.: WEINBERG, L. Violence by the far right: the American experience. In: TAYLOR, M.; HOLBROOK,
D.; CURRIE, P.M. (Orgs.) Extreme right wing political violence and terrorism. Londres; Nova York:
Bloomsbury, 2013; LOWNDES, J. E. From the New Deal to the New Right: race and the Southern origins
of modern conservatism. New Haven: Yale University Press, 2008; UTTER, G. H.; STOREY, J.W. The
religious right: a reference handbook. 2. Ed. Santa Bárbara: ABC Clio, 2001; SCHÄFER, A. R.
Countercultural Conservatives: American Evangelicalism from the postwar revival to the New Cristian
Right. Madison: The University of Winsconsin Press, 2011; ANSEL, A.E. New Righ, New Racism: race
and reaction in the United States and Britain. Londres: Macmillan, 1997; MCGIRR, L. Suburban Warriors:
the origins of the New American Right. Princeton; Oxford: Princeton University Press, 2001; BRENNAN,
2005.
substituíram a raça pela cultura e/ou pela fé em seu léxico e fizeram ostensivas campanhas
anti-feministas, anti-LGBT’s, anti-impostos, anti-laicização do Estado e da educação,
entre outras, e que foram bem incorporadas ao governo Reagan. O que unia esses e outros
grupos e organizações diversas era a crença de que uma sociedade multirracial e/ou
multicultural era ameaçadora e indesejável. Essa crença, que não era nova, era um
elemento constitutivo das ações políticas de Carto pelo menos desde a década de 1950.
Entretanto, alguma coisa havia mudado43.

Os valores nacionalistas e racistas que informavam a crença de que grupos de


pressão “estrangeiros” que representavam minorias haviam sequestrado a política
estadunidense e a de que esses grupos eram alheios aos interesses nacionais continuavam
sendo o leitmotif do programa que atravessava as iniciativas organizacionais de Carto.
Agora, porém, elas não estavam mais restritas aos a grupúsculos esotéricos. Entre o fim
do fim da Guerra do Vietnã e o começo do governo Reagan, os agentes do LL começavam
a colher os resultados dos esforços mobilizados contra seus rivais espalhados pelo
espectro político estadunidense. A organização estava consolidada e tinha alcance
nacional. Centenas de milhares de pessoas assinavam o seu tabloide semanal, Spotlight,
e ficavam sabendo sobre a organização através de um programa radiofônico retransmitido
diariamente para o país inteiro, desde 1974, por cerca de 400 emissoras, o This is the
Liberty Lobby. Além do alcance e da afirmação da organização, sua apresentação também
havia mudado44.

Em 1975, durante a convenção anual do Comitê de Política do LL, Carto fez


um longo discurso sobre como sobreviver naqueles dias perigosos. Carto via e quis fazer
que o perigo daqueles dias se manifestava na forma da integração racial e na infiltração
comunista – ele seria o mal resultado das “fracassadas políticas internacionalistas e
liberais do passado”, mas não só isso. Carto acreditava que aqueles que ignoravam,
conscientemente ou não, as causas do perigo também tinham culpa ou por omissão ou por
cumplicidade tácita. Eles eram “os milhares de conservadores americanos que pensavam
que a forma de combater a conspiração armada contra eles mesmos era votar no Partido
Republicano”. Antes “os conservadores” eram objeto da crítica de Carto por eles terem
falhado em resolver “o problema racial”, por darem suporte à política externa

43
C.f.: ZESKIND, 2009.
44
Idem.
intervencionista estadunidense e por serem defensores do livre-comércio. “Eles” agora
eram inimigos e deveriam ser combatidos pelo LL45:

O Liberty Lobby consolidou a tese de que o conservadorismo está morto nos


nos EUA, literal e politicamente extinto como um pássaro dodô, e que os
patriotas devem ajustar seu pensamento para a sobrevivência [racial] e para o
nacionalismo, longe das infrutíferas direções a quais eles têm sido levados já
há alguns anos por uma diversidade de pessoas, algumas das quais sinceras e
outras não, umas honestas e outros simplesmente oportunistas46.

Mesmo como inimigos, os conservadores, e todo o hall dos oponentes do


projeto de Carto, seriam apenas títeres de um outro maior e absoluto. Aquela força
misteriosa e essencialmente conspiradora que caracterizava o passado de sua filosofia da
história agora ganhava nomes e aqui se manifestava como “grupos de pressão
estrangeiros”, “os judeus”, ou que para ele daria no mesmo, “os sionistas”, as “forças
ocultas da Finança Internacional”, “os plutocratas”, “pelos bancos”, os “super-ricos”,
os “capitalistas monopolistas”, “os Rothschild”, a elite política e econômica do grupo
Bilberg, entre outros – todos vistos e dados a ver como um único e mesmo organismo
essencialmente mal, conspirador e inimigo do ocidente47.

Além de ganhar nomes, essa vertente pública e publicada do antissemitismo


de Carto espalhada por suas organizações, pelo menos em determinadas situações, não
precisava de um pseudônimo para ser articulada e comunicada. No programa populista
que passou a caracterizar a imagem do LL a partir daqueles anos, e que mais tarde foi
incorporado e nomeou um partido, Carto declarava abertamente que o problema dos EUA
seria a “sanguinária besta de três cabeças do internacionalismo: o capitalismo
internacional, o comunismo internacional e sionismo internacional”. Não bastasse ser a
causa do problema, ele proclamava que essa mesma entidade impedia uma solução efetiva
para o problema. E essa solução, sob a forma de um “retorno à tradição estadunidense”
que Carto nomeou como populismo, era uma inusitada síntese de racismo à guisa de um

45
CARTO, W. Discurso. Convenção Anual do Board of Policy do Liberty Lobby, Washington, D.C, 1975.
Disponível em < http://willisacartolibrary.com/2017/12/19/speech-to-the-liberty-lobby-convention-
march-9-1975/> ; acessado em 03/05/2018.
46
Idem. Tradução minha de “Liberty Lobby has advanced the that conservatism in America is dead, literally
and politically dead as a dodo bird, and that patriots would have to adjust their thinking toward survival
and nationalism and away from the fruitless directions in wich they have been led over the years by an
assortment of people, some of them sincere and some of them not, some of then honest and some of them
pure confidence artists.”
47
Ibdem.
programa de “integridade racial” e de um nacionalismo extremo capaz de colocar “a
América em Primeiro plano” e livrá-la dessas “forças internacionalistas”48.

Outras vezes, Carto e seu pessoal eram menos enigmáticos, por assim dizer,
em vociferar esse rumor conspiracionista. Nesses casos, as “forças internacionalistas” e
“os grupos de pressão estrangeiros” eram a ADL, o American Jewish Committee (AJC)
ou outras organizações do tipo que, para eles, eram essencialmente iguais. Em 1974,
quando This is Liberty Lobby começou a ir ao ar, o pessoal da ADL fez uma massiva
campanha para alertar emissoras e ouvintes sobre a natureza da organização que o
produzia e impedir sua transmissão. E até aquele momento, essa não tinha sido a única
iniciativa da ADL contra o LL ou outras organizações de Carto. Como resposta, o LL
publicou um volume que denunciava e documentava a atuação da ADL em uma
“conspiração contra a liberdade” nos EUA. O livro, que teve autoria atribuída ao staff do
LL e a edição a Carto, era parecido com aquele infame e paradigmático do antissemitismo
político: Os Protocolos do Sábio de Sião49.

48
Willis. Populism vs. Plutocracy: the universal strugle. Washington: Liberty Lobby, 1982, p. 192. Este
livro é composto por uma série de perfis biográficos de políticos estadunidenses e de outras figuras
destacadas que teriam feito a história do populismo de Carto. Além dessa coleção de perfis que
originalmente apareceram no Spotlight ao longo do final da década de 1970, o volume contava com uma
introdução, uma conclusão e um “glossário populista”; a introdução e a conclusão forneciam o programa
do populismo de Carto que mais tarde, em meados da década de 1980, daria corpo ao seu Partido Populista
(Populist Party – PP). O termo populista e os seus derivados circulam em ambientes acidentados e, por
conta disso, são polissêmicos, polivalentes e objetos de disputas simbólicas que têm suas histórias. Para
não entrar no terreno das definições substantivas e polêmicas, aqui eu me refiro a uma categoria nativa.
Nesse sentido, falar do populismo do LL e do PP é falar de um programa político baseado em um
nacionalismo racista, anti-elitista, anti-capitalista, anti-liberal e anti-comunista, que, segundo Carto, era o
“o único sistema social, econômico e político capaz de deter os efeitos degenerativos e destrutivos da
moderna sociedade industrial sobre a família, sobre a nação, sobre a raça e sobre a cultura (...) uma força
para a estabilidade, criadora de uma sociedade tranquila na qual o crescimento individual e cultural possa
ocorrer sem que o progresso seja ameaçado ou explorado pelas forças estrangeiras promotoras da distorção
cultural”. Dessa forma, o populismo de Carto também era apresentado como uma fronteira e uma
diferenciação entre “os conservadores” e como a continuidade e a herança dos movimentos supremacistas
raciais que se manifestaram durante a dita “era dourada” (Gilded Age) que teria se seguido à Restauração
no século XIX: o chamado populismo sulista que teve sua expressão institucional no Peoples’ Party. Idem,
p. 9. Sobre o populismo, c.f.: LACLAU, E. Towards a theory of Populism. In______. Politics and ideology
in marxist theory: capitalismo, fascism, populismo. Londres: NBL, 1977; MUDDE, C.; KALTWASSER,
C.R. Populism: a very short introduction. Nova York: Oxford University Press, 2017. Sobre o partido de
Carto, c.f.: ZESKIND, L. Origins of the Populist Party and the break with Reaganism. Blood and Politics:
the history of the White nationalist movement from the margins to the mainstream. Nova York: Farrar,
Strauss and Giroux, 2009. Cap. 12. Ed; sobre o populismo sulista, c.f.: HAHN, Steven. The roots of
Southern Populism: Yeoman farmers and the transformation of Georgia Upcountry, 1850-1890. Nova
York: Oxford University Press, 1983; LESTER, C.L. Up from the mudsills of hell: the Farmers’ Alliance,
Populism, and Progressive Agriculture in Tennesse, 1870-1915. Athens: University of Georgia Press, 2006.
49
CARTO, W. (Org.) Conspiracy against freedom: a documentation of one campaign of the Anti-
Defamation League against freedom of speech and thought in America. Washington, D.C.: Liberty Lobby,
1982. Sobre Os protocolos...c.f.: BRONNER, S.E. A rumor about the jews: reflections on antisemitism and
the Protocols of the Learned Elders of Zion. Nova York: St. Martin Press, 2000.
Os dois visavam contar uma história da uma suposta conspiração orquestrada
por uma elite de judeus através de documentos. As diferenças formais se deviam pelo fato
de o livro do LL ter sido apresentado como um relatório técnico; e, mesmo assim, elas
eram sem prejuízo para a tese, por assim dizer, que articula um e outro. Dessa forma, ao
invés de apresentar os documentos da conspiração de uma só vez – no caso dos
Protocolos, as minutas de uma reunião de anciãos judeus e aqui as minutas e materiais de
propaganda ou educativos da ADL – o pessoal do LL contava primeiro uma história dos
EUA como sendo a realização da luta de um povo pela liberdade de propriedade e de
expressão e que, em algum momento, depois de “ondas violentas de imigração” essa
liberdade teria se tornado restrita; logo depois situa as partes, aquela que incorpora os
valores “americanos” de liberdade de expressão, o LL, e o seu oposto estrangeiro e
censurador, a ADL, nesse processo; dispõe uma seleção de roteiros do programa de rádio
e de materiais editoriais do LL para mostrar que a defesa daqueles valores era o que movia
a oposição da ALD; e finalmente exibe documentos que seriam minutas executivas e
outros materiais da organização que teriam sido obtidos através de processos judiciais
movidos pelo LL contra a ADL e que, inclusive, constam no apêndice da edição de
Carto50.

Enquanto as disputas corriam em Washington, D.C., os trabalhos na Costa


Oeste não pararam. Por meados da década de 1970, quando a segunda edição de The
Myth... saiu das prensas da NP, Carto já tinha conseguido imprimir o seu nacionalismo
racista na linha editorial do AM. Desde o final dos anos 1960, não era raro encontrar nas
páginas da revista artigos sobre a tal conspiração sionista-internacionalista-comunista-
capitalista perpetrada contra os EUA branco com o aval “(d)os conservadores”, ou ainda
peças que questionavam a autoridade do Diário de Anne Frank, ou outros que
proclamavam que dos “seis milhões” apenas dez por cento teriam morrido e isso mais
como consequência do estado de guerra do que pelas mãos de nazistas – como aqueles do
apêndice da primeira edição de The Myth... . Além disso, a circulação do AM cresceu
significativamente. Quando Carto começou a trabalhar de maneira quase caseira com a
ex-secretária e então herdeira do AM, a senhora LaVonne Furr, o periódico tinha cerca
de seis mil assinaturas; agora o número de assinantes beirava a casa dos vinte mil51.

50
CARTO, 1982.
51
ZESKIND, 2009, p. 55-56.
Por aquela época, além da segunda edição de The Myth pela NP, apareceram
na Inglaterra outros dois livros que negavam o Holocausto. O primeiro, de 1974, era uma
síntese panfletária do livro de Hoggan e dos de Rassinier; o outro, que saiu em 1976, era
um volume pretensiosamente crítico e propositivo, escrito em uma impecável linguagem
acadêmica. Um tinha autoria creditada a Richard Harwood, apresentado como
especialista em história diplomática da II Guerra com passagem pela Universidade de
Londres e que na verdade era Richard Verrall, editor de um órgão de imprensa da Frente
Nacional Britânica (NF); outro era o livro de Arthur Butz, um professor de engenharia
elétrica estadunidense. Did Six Million Really Die e The Hoax of 20th. Century,
respectivamente, saíram pela mesma editora, a Historical Review Press, do destacado
publicista neonazista inglês Anthony Hancock. Ambos foram dados a ver como trabalhos
científicos. Verral inclusive fez com que exemplares de seu panfleto chegassem a
professores e pesquisadores. As reações dos destinatários causaram alguma comoção
pública na Inglaterra. E essa e outras estratégias de propaganda garantiram que o panfleto
gozasse de uma boa circulação. Este não foi o caso do livro do Dr. Butz, pelo menos não
naquele momento52.

Butz teria notado a existência da Historical Review Press lendo o panfleto de


Verrall. É possível que ele tenha decido publicar o livro pela editora inglesa para não
comprometer sua carreira nos EUA. Os estadunidenses que souberam da existência do
livro negacionista de Butz antes de 1977, por certo, ficaram sabendo através de
publicações da extrema-direita ou através do catálogo da NP, já que a editora de Carto foi
a única que vendeu The Hoax... no país53. Em janeiro daquele ano os estudantes que
trabalhavam no Daily Northwestern, o diário de notícias do campus de Evanston, ficaram
sabendo do livro de Butz através de uma matéria publicada no Jerusalen Post. O conteúdo
da matéria do Post baseou outra que foi publicada no Daily que, por sua vez, informou à
comunidade acadêmica sobre o negacionista da casa. A exposição provocou impactos no
campus. Alguns professores e estudantes cobraram respostas e retaliações firmes da

52
LIPSTADT, 1993; ATKINS, 2009.
53
Uma resenha de página inteira de três colunas foi publicada na Instauration de outubro de 1976. A resenha
trata Butz como um Giordano Bruno do séc. XX e apresenta seu livro como um “modelo de sabedoria,
pesquisa e erudição”. A Instauration foi importante mensal da extrema-direita racista estadunidense e foi
publicada regularmente entre 1975 e 2000. Seu diretor e editor, o escritor Wilmot Robertson, foi parceiro
de Carto. THE hoax of twentieth century. Instauration, v. 1, n. 11, Cabo Canaveral, out. 1976, p. 9. Sobre
a Instauration e Robertson, c.f.: BERBIER, M. Impression management for the thinking racist: a case study
of intellectualization as stigma transformation in contemporary white supremacist discourse. The
Sociological Quartely, v. 40, n. 3, verão de 1999, pp. 411-433.
administração superior e exigiram a demissão de Butz, mas as demandas não deram em
muita coisa senão na organização de cursos e simpósios sobre o Holocausto – o que àquela
altura vinha se tornando, por assim dizer, uma tendência54. Dois anos antes de seu livro
ser publicado, Butz foi sido efetivado como professor titular de uma cadeira do
Departamento de Engenharia Elétrica e Computacional e, dessa posição, removê-lo não
era sem custos para a universidade. Defendendo-se das acusações, um Butz surpreso com
as reações disse que o livro era resultado de uma “trabalhosa pesquisa”, que não via
motivos para o estardalhaço e que havia publicado o livro na Inglaterra por que não teria
encontrado editores para ele nos EUA. Quando ele se referiu à distribuição do livro pela
NP, ele relacionou à editora ao AM, e não ao LL, que na época já era famoso como uma
robusta organização antissemita55.

A opção de Butz por relacionar seu livro ao AM e não ao LL não foi, por
suposto, um acaso. Além de o LL ser conhecido publicamente como uma organização
antissemita, ele era uma organização estritamente política e, talvez mais que o primeiro,
esse caráter não era adequado às imagens de Butz e de seu livro como especialista e
trabalho especializado. O AM, entretanto, tinha um passado glorioso, apesar de ter sido
transforado em um meio do nacionalismo racista de Carto. E Carto tentava de todo jeito
se vincular a esse passado e legitimar sua visão de mundo e seu programa excludente. Por
um lado, ele tentava fazer ver que que ele teria salvo o AM da desgraça e que agora o
periódico estava no caminho que Menken, o seu fundador, havia vislumbrado, por outro,
ele tentava se esquivar do peso das imagens públicas de Hitler e do nazismo positivando-
os. O editorial do volume que comemorava os 50 anos da revista, por exemplo, traçava
uma linha de continuidade não só uma continuidade estilística, mas também, e sobretudo,
política e ideológica, entre Memken e Carto: os dois eram heróis e os dois eram inimigos
intransigentes do “internacionalismo”, “dos “corrompedores culturais” (“culture
distorters”, i.e., “os judeus”) e defensores “do Ocidente”. Hitler, outro herói de Carto,
aparecia constantemente dotado desses mesmos atributos nas páginas do AM. Na edição
do verão de 1978 do AM, Carto assinava um texto em que pretendia apresentar uma
imagem justa de Hitler; uma imagem diferente, portanto, daquelas que, segundo ele, eram
fornecidas pelos mais de 50 mil títulos sobre o nazista e o nazismo publicados desde 1975.

54
Ver número de simpósios publicados no anotated bibliography.
55
KING, S.S. Professor causes furor by sayng nazi slaying of jews is a myth. The New York Times, Nova
York, 28/01/1977. Disponível em < https://www.nytimes.com/1977/01/28/archives/professor-causes-
furor-by-saying-nazi-slaying-of-jews-is-a-myth.html >; acesso em 16/04/2017. C.f. ATKINS, 2009, p. 159-
160. Sobre a caracterização do LL nesse período, c.f.: MICHAEL, G., 2003.
Para Carto “Hitler era assinado dia após dia pela mídia”, e seu “nome era tão
ridicularizado que nada era tão vil para se associar a ele”. E isso impedia que o “Hitler
correto”, o filósofo e o homem de ação spengleriano, aparecesse. Mas Carto via que a
situação estava mudando; aqueles que acreditavam que Hitler “estava correto não
estavam mais mudos” – eles estavam escrevendo e lendo histórias que “expunham as
mentiras que antes” acreditava-se que “fossem verdades”56.

Apesar do exagero retórico, pelo menos em uma coisa Carto estava certo.
Naqueles anos falava-se mesmo muito e de diferentes formas sobre Hilter. O historiador
William Carr viu uma “onda Hitler” varrer o espaço público europeu e estadunidense por
aquela época. O interesse no führer e no nazismo deixaram de ser uma coisa de
historiadores profissionais para se tornar também o de cineastas, produtores de TV, gente
de teatro e escritores. Hitler foi transformado em um fenômeno pop. E, para Carr, isso era
o efeito de duas coisas intimamente relacionadas: as transformações geopolíticas que se
seguiram a queda do III Reich e ao fim da Guerra que ainda eram sentidas e, naquele
período, o Holocausto. Para Carr, falar dos fantasmas do nazismo, das peripécias daquele
que foi transformado por uma miríade de biógrafos no “grande homem”, ou então de seus
subalternos mais ou menos infames, sem falar do Holocausto era mesmo impossível em
meados da década de 197057.

A “onda Hitler” veio junto com aquilo que, no início dos anos 1980, foi
batizado por jornalistas da Newsweek como Holocaustomania. Pelo menos nos EUA, o
nome e o veículo são representativos desse tempo em que os jornalistas começaram a
cobrir eventos relacionados ao Holocausto e dar ênfase a aspectos polêmicos relacionados
ao extermínio nazista. Isso a que os jornalistas do Newsweek tratavam como uma
sensação, era na verdade, um ponto do desenvolvimento de um processo que começara
antes. Já no início da década de 1970 escolas públicas passaram a ensinar o Holocausto e
ao longo da década, a prática foi incorporada a currículos escolares no país inteiro. Nas
universidades acontecia o mesmo: depois que a primeira catédra de estudos sobre o
Holocausto foi criada na Universidade de Yeschiva, em 1976, a Universidade da
Califórnia em Los Angeles logo fez o mesmo, e assim, ao longo da década de 1980 os
centros de estudos, os institutos, as cátedras, os simpósios, enfim, haviam proliferado

56
CARTO, W. Hitler: the greatest spenglerian. American Mercury, Sausalito, verão de 1978. Disponível
em < willisacartolibrary.com/2018/03/28/hitler-the-greatest-spenglerian >; acesso em 13/08/2017.
57
CARR. W. Historians and the Hitler Phenomenon. German Life and Letters, v. 34. N.2, jan. de 1981, pp.
260-272.
pelos campi estadunidenses. E essa dispersão não foi sem conflitos. Alguns, como o
historiador Saul Friedlander, chefe da cátedra da UCLA, viam no crescimento da
especialização uma forma de melhorar o ensino do Holocausto; outros pensavam que que
o ensino não era suficiente, outros argumentavam que era demais e que o ensino regular
poderia trivializar ou banalizar o extermínio nazista, outros diziam que o ensino seria
pouco necessário e até mesmo prejudicial58.

Organizações civis, intelectuais e lideranças judaicas não estavam alheios a


esse processo; ao contrário, eram parte ativa dele. A ADL, por exemplo, acompanhou a
aprovação e assessorou ao longo da década de 1970 a implementação de conteúdo sobre
o Holocausto no currículo das escolas públicas de Nova York. Em 1977 um Teachers’
Guide to the Holocaust foi publicado pela organização para marcar o resultado e
apresentar uma síntese desses esforços que, naquela altura, já havia se espalhado pelo
país. O manual recomendava a inclusão de “uma unidade dedicada ao estudo do
Holocausto” nos currículos escolares com a justificativa de que isso poderia ser “uma
contribuição para a sociedade” e fornecer “um bom caso de estudo da interação humana”
e ainda “contribuir para um aprimoramento educacional efetivo”59. Antes, em 1975, o já
famoso professor e escritor Ellie Wiesel publicou um artigo no New York Times em que
relatava suas experiências em sala de aula ensinado sobre o Holocausto. Wiesel via e
falava do Holocausto com um marco ontológico exclusivo, como um evento-limite
inacessível e inexplicável mesmo para aqueles que, como ele, estiveram lá. E pensava
também que ensinar sobre o Holocausto, como ele fazia – contando interativamente
histórias sobre o fenômeno e produzindo o que chamou de “uma meditação cooperativa”
e não uma simples comunicação de conhecimento – era mostrar que, nesse caso, o como
e o porquê eram fugidios e, para salvaguardar o sentido metafísico que nunca poderia ser
sistematizado, era ou deveria ser como a atividade de “um missionário” ou de “um
mensageiro”. Apesar dessa ausência, e mesmo por causa dela, a experiência era produtiva
e merecia ser replicada, afinal, ele via seus alunos terminarem seus cursos transformados,
“mais humanos e também mais angustiados”60.

58
Sobre as disputas em torno do ensino do Holocausto nos EUA, c.f.: FALLACE, T.D. The emergence of
Holocaust education in American schools. Nova York: Palgrave, 2008, pp. 3-5, 93-97.
59
NICK, A.L. A teachers’ guide to the Holocaust. Nova York: Anti-Defamation League of B’nai Brith,
1977, 5 ff.
60
WIESEL, E. Survivors’ children. New York Times, 16 de Nov. de 1975, seção 11, p. 36. Para uma boa e
sistemática explicação da posição de Wiesel em relação ao Holocausto e sobre o seu método de ensino, c.f.:
FALLACE, 2008, pp. 71-74.
O estado do campo de pesquisas sobre o Holocausto não ficou imune a esse
fenômeno. Um dos pioneiros e um dos cânones nesse terreno, o cientista político e
historiador Raul Hilberg falou do desenvolvimento dos estudos sobre Holocausto como
em fases qualitativamente distribuídas e integradas a um processo que começou com o
tempo da pesquisa incipiente, da organização dos documentos e dos centros de
documentação, seguido pelo da pesquisa organizada e então pela fase da complexificação.
Por meados e finais da década de 1970, os pesquisadores e as pesquisas sobre o
Holocausto estavam, por assim dizer, em um ponto de transição entre a segunda e a
terceira fase. Com a distância de tempo, com o volume e com a diversidade do material
coligido, os estudiosos puderam aprofundar as análises e com isso novos problemas
puderam ser formulados e vieram os debates: era o Holocausto um fenômeno exclusivo
da história judaica ou não? Quem poderia explicá-lo melhor, os sobreviventes ou os
documentos da burocracia nazista? O Holocausto podia mesmo ser explicado? O
extermínio esteve desde sempre no horizonte de expectativas de Hitler, ou a participação
do führer no processo foi circunstancial e o extermínio foi sendo executado de maneira
mais ou menos difusa pela burocracia nazista e no calor dos momentos? 61

De certa forma e no geral, os debates sobre essas questões dividiam


historiadores, intelectuais e figuras públicas entre a universalidade e a excepcionalidade
do Holocausto; entre aqueles que defendiam que o extermínio não poderia nunca ser
explicado por ter sido um evento limite e aqueles que pensavam que, apesar de suas
dimensões, o Holocausto tinha sentidos que poderiam e deveriam ser elucidados e
comunicados; entre os historiadores intencionalistas, que viam a “solução final” como
projeto e programa sistematizado já em 1919 e os funcionalistas, que explicam as causas
e a execução do extermínio na confusa estrutura de poder do III Reich e na conjuntura da
guerra, entre outras coisas. Essas e outras questões e respostas, por essa mesma época,
extrapolaram o universo dos simpósios e da literatura especializada, dos distritos
escolares e dos comitês de ensino, dos centros de pesquisa e deram no New York Times,
no Washington Post e, ente outros, foram assuntos daquele texto da Newsweek que
nomeou e transformou em efeméride a “Holoaustomania”. Em 1978 essas discussões
foram atravessadas e propulsionadas por uma outra sensação. Era a transmissão da

61
HILBERG, R. The develpment of Holocaust research. In: BANKIER, D. ; MICHMAN, D. (Orgs.).
Holocaust Historiography in context: emergence, challenges, polemics, and achievments. Jerusalém; Nova
York: Yad Vashen; Berghahn Books, 2008. Sobre a repercussão midiática dessas e de outras questões
relacionadas c.f.: FALLACE, 2008, pp. 30-42.
minissérie de 4 capítulos produzida pela National Broadcasting Company (NBC):
“Holocausto” (Holocaust)62.

“Holocausto” foi ao ar no horário nobre dos domingos de abril de 1978. O


programa foi um fenômeno de audiência e crítica. Estima-se que cerca de 120 milhões de
pessoas assistiram o drama que contava uma história do processo de exclusão e
extermínio dos judeus europeus através das peripécias de duas famílias fictícias: os Weis,
judeus alemães assimilados, e os Dorf, alemães “arianos” que tinham como pai e esposo
um oficial da SS. A minissérie baseada no romance best-seller homônimo de Gerald
Green foi muito elogiada e recebeu poucas, mas vigorosas críticas negativas. Wiesel foi
um dos críticos de primeira hora e dos mais duros. Um dia depois da estreia do programa,
em um artigo no New York Times, ele criticou a série por trivializar o Holocausto. Para
Wiesel, a transformação de um evento como o Holocausto em uma “novela” (soap-opera)
exibida através de um meio de comunicação de massas significava uma violação ao
caráter ontológico e metafísico do extermínio e, dessa forma, um insulto aos que
morreram e aos que, como ele, sobreviveram63. Apesar disso, a série foi bem aclamada
nos jornais, nos programas de TV e de rádio. A coroação veio mais tarde, em setembro.
A série bateu um recorde ao levar 12 prêmios Emmy, a mais importante premiação da
indústria televisiva.

Poucos foram os que fizeram coro a Wiesel. As questões que ele levantava
tiveram pouca importância fora dos círculos acadêmicos e não desencorajaram as
atividades que promoveram a minissérie ou foram promovidas através dela. Organizações
judaicas distribuíram materiais educativos para a informar, no geral, o olhar dos
telespectadores sobre o programa e a história que ele representava. O rabino Marc
Tannenbaum, diretor da AJC, assessorou a NBC na produção da minissérie. Quando o
programa foi ao ar, Tannenbaum e o seu pessoal já tinham produzido e feito circular uma
enorme quantidade de material educativo sobre a série e o evento que ela representava.
Da mesma forma, a ADL produziu e distribuiu milhões de cópias do seu Record, um
almanaque editado como um tabloide que contava uma história do Holocausto, com uma
cronologia e um glossário para os mesmos fins. Uma coalização nacional formada por

62
Sobre o intencionalismo e o funcionalismo, c.f.: MARRUS, M.R. A solução final. In: ______. A
assustadora história do Holocausto. Rio de Janeiro: Prestígio/Ediouro, 2003, cap. 3, pp. 79-102. Sobre os
debates em torno da exclusividade, c.f.: idem. Holocaust in perspective. IN:______. Holocaust in History.
Hanover; Londres: Brandeys University Press; University Press of New England, 1987, pp. 18-25.
63
cerca de cinquenta organizações judaicas, a National Jewish Interagency Project (NJIP)
produziu um estudo sistemático para ser distribuído para professores e alunos das escolas
elementares de todo o país64.

A comoção pública foi mesmo generalizada e catapultada de diversas formas


e por diversos agentes. O domingo da estreia da série foi comemorado como o “Domingo
do Holocausto” e atividades ecumênicas se espalharam pelo país. Católicos, protestantes
e judeus comemoram juntos naquele ano o Yom HaShoah. Pastores, padres e rabinos
falaram sobre o Holocausto e mencionaram a minissérie em seus sermões. Políticos
fizeram o mesmo em seus discursos públicos. Governadores e prefeitos decretaram
“semana(s) do Holocausto” enquanto a série era exibida, enquanto outros decretaram a
inclusão do ensino do Holocausto nos currículos escolares65.

Em torno e além dessa comoção, o sociólogo Robert Wuthnow viu na


minissérie o caso de um grande “ritual público”. O programa colocava em evidência as
ansiedades e as incertezas sobre o que era percebido, expresso e sentido como uma crise
generalizada dos valores e das instituições “americanas”. Vista dessa forma, a minissérie:

“não apenas atraiu a atenção de milhares de estadunidenses, ela os moveu


emocionalmente, influenciou suas atitudes e os envolveu em discussões sobre
o Holocausto com amigos, com a família, nas escolas e nas igrejas. Nesse
sentido, ela foi mais importante do que uma mera série televisiva. Ela mexeu
com questões morais profundas que já vinham sendo o objeto de interesse e
debate na cultura estadunidense. (...) ‘Holocausto’ foi um evento ritual que
dramatizou os males sociais e o caos moral. E esses temas pareciam fazer
sentido especialmente para pessoas que percebiam a desordem se instalando
na sua própria sociedade. Em resumo, o Holocausto era um símbolo do caos
contemporâneo, um alerta e uma lembrança do passado pernicioso. ” 66

Também para o historiador Perter Novick a minissérie não foi um evento


qualquer. Ela teve a dimensão de um marco, estava situada e situava um tempo e um
espaço. “Holocausto” fazia parte do processo difuso e problemático que, em
circunstâncias diferenciadas, envolveu diversos agentes na transformação dos discursos
sobre o Holocausto nos EUA. No imediato pós-guerra e ao ongo dos anos 1950, se falava
pouco e negativamente sobre o extermínio nazista tanto entre judeus estadunidenses

64
Fallace; Novick
65
Novick, 2001, pp. 207-209.
66
WUTHNOW, R. Ritual and moral order. In:_____. Meaning and moral order: explorations in cultural
analysis: BerKeley: University of California Press, 1987, pp.127-129.
quanto entre os estadunidenses no geral. Pelos anos 1960, especialmente após o
julgamento de Eichmann e a Guerra dos Seis Dias, os discursos sobre o Holocausto
passaram, de algumas formas e entre outras coisas, a articular a vida de judeus nos EUA.
Durante a década de 1970, e definitivamente depois da minissérie, os discursos sobre o
Holocausto haviam se tornado públicos EUA se tornaram públicos. Novick não via uma
narrativa nacional sobre o Holocausto nos EUA; na verdade, para ele nenhuma outra
narrativa sobre o Holocausto no EUA era possível como era, de diferentes formas, em
Israel e na Alemanha, por exemplo. Mas ele demonstrou como a cacofonia de discursos
sobre o Holocaustos e seus usos foram atravessados e atravessaram a exibição da
minissérie da NBC e, mais que isso, não foram sem efeitos políticos. Nessa altura, Novick
argumentava, o Holocausto “havia se tornado em um teste de Rorschard moral e
ideológico” passou a fornecer lições que, sem o que fossem, agora tinham seus sentidos
disputados no espaço público67.

No ano em que a minissérie foi ao ar, uma das mais emblemáticas dessas
disputas teve lugar em Washington, D.C. Enquanto o programa ainda era exibido, no dia
20 de abril, o presidente Carter esteve cumprindo agenda oficial em Chayenne, no
Wyoming. Durante um encontro com políticos locais, o presidente fez um discurso
comemorando a Páscoa e evocando “o sentido” universal do feriado. Ele declarava que,
como as lembranças do Holocausto e da resistência arquetípica do Gueto de Varsóvia, o
a comemoração renovava “em judeus e não judeus” a ideia de que “ a luta pela liberdade
e contra a opressão devem continuar para sempre”68. Poucos dias depois, no primeiro de
maio, o presidente Carter recebeu na Casa Branca o primeiro-ministro israelense,
Menahem Begin, e uma comitiva de lideranças judaicas nacionais. O presidente e o
primeiro-ministro protagonizam uma cerimônia em que se comemorava os trinta anos do
Estado de Israel. Na ocasião os laços cooperativos e de “amizade” entre os dois chefes de
estado e seus respectivos países foram também atualizados. A recepção oficial de Carter
incluiu um comovente discurso no Gramado Sul da Casa Branca. A fala do presidente
começou com uma história da diáspora, do anti-semitismo e da “busca compartilhada de
um povo” por uma nação (“homeland”) ao longo dos últimos dois mil anos. Essa história
terminava há trinta anos atrás e “às sombras do Holocausto” - “a maior e mais trágica
desumanidade do homem contra o homem” que não teria sido apenas o resultado da

67
68
Office of the Federal Register. Puplic papers of the Presidents of the United States: Jimmy Carter.
Washington, D.C. United States Government Printing Office, 1979, Livro I, p. 776.
“barbárie nazista”, mas também o da negligência de todo o mundo que teria “preferido
virar as costas durante aqueles os anos de sofrimento”. O fim significava o começo de
outra laboriosa, mas feliz história: a do Estado de Israel e a de suas relações com os EUA.
Para celebrar essa história recente e reparar aquela outra, e para “garantir que os EUA
nunca a esqueceriam”, em certa altura de seu discurso o presidente Carter fez um anuncio.
Ele nomearia de imediato uma comissão que deveria “indicar uma forma apropriada para
a construção de um memorial (...) aos seis milhões que foram mortos no Holocausto”69

O estabelecimento e o funcionamento da Comissão Presidencial sobre o


Holocausto não se deram sem efeitos políticos. Tão pouco foram pacíficos. O projeto para
a comissão foi preparado por uma equipe de assessores de Carter e logo depois foi
encaminhado ao Congresso, sendo aprovado na câmara de deputados e no senado. Em
novembro a comissão foi instituída. Wiesel foi empossado como presidente do órgão. Sob
a sua coordenação trabalharam juntos sobreviventes, historiadores, técnicos de diferentes
áreas, burocratas, clérigos de diversas orientações religiosas e lideranças políticas. Para
cumprir seu objetivo de fornecer as bases para a criação de “um memorial adequado”, a
Comissão deveria fornecer antes uma imagem adequada do Holocausto. As discussões
sobre essa imagem atravessaram todo o processo e foram acaloradas. O ponto nodal da
querela pública foi a dimensão numérica tida como definidora do Holocausto e isso,
inevitavelmente e em um terreno particular. Para Novick, o jogo dos números importava
pouco nessas circunstâncias. O cerne da questão era o que a dimensão quantitativa dizia
em relação à exclusividade ou à universalidade do Holocausto. Duas definições
substantivas estavam em jogo. Uma estabelecia o Holocausto como o extermínio de 11
milhões de pessoas, entre as quais, seis milhões de judeus; outra estabelecia a
exclusividade do extermínio de seis milhões de judeus. No ano seguinte, quando o
relatório com os resultados do trabalho da Comissão foi entregue e a sua proposta para a
criação do Conselho para a Memória do Holocausto (Holocaust Memorial Council) foi
acatada, a decisão executiva do presidente, que não foi a consensual e nem a final, foi
sobre a definição do Holocausto “como o extermínio sistemático de seis milhões de
judeus – e de outras cinco milhões de vítimas do Nazismo”70.

Outros sentidos e usos estavam em circulação, em disputa ou como


instrumento de disputa no espaço público estadunidense. Para a direita anti-comunista, o

69
Idem, p.
70
Novick, 2009, pp. 216-220.
Holocausto teria sido causado por um “totalitarismo” como aquele que igualaria o
nazismo ao comunismo soviético. Para certos conservadores, o extermínio nazista
revelava a natureza pecadora da humanidade; outros viam nele o resultado drástico de
governos transformadores, ou o sinal de que os alemães da Alemanha nazista tinham
abandonado os laços com deus e com a família. Para alguns setores da esquerda, a
incomplacência nacional com as vítimas do extermínio durante a guerra mostrava a
falência do liberalismo; para outros, o Holocausto ensinava sobre o mal de um mundo
sem diversidade. No geral, o Holocausto “havia se tornado em um ponto de referência
moral” e, sobretudo, era usado “para demonstrar a diferença entre o velho e o novo mundo
e para celebrar o ‘modo americano de vida’ exibindo aquilo que seria sua negação”71.

Burocratas do serviço diplomático e de inteligência da RDF lotados nos EUA


acompanharam de perto esses eventos que atravessaram a década de 1970 e as que se
seguiram. Nesse mesmo período, uma espécie de acerto de contas com o passado
integrava o programa do primeiro ministro Helmut Kohl. Esse programa visava
transformar o passado em uma referência positiva para uma identidade nacional e isso
implicava em certas formas de se lidar publicamente com “as sombras do passado nazista”
e com a “fixação sobre o Holocausto”. Os agentes envolvidos na execução desse
programa temiam que a proliferação dos discursos sobre o Holocausto nos EUA pudesse
de alguma forma comprometer a imagem da RDF e colocar em risco a relação entre os
dois países. Para evitar que “uma ansiedade sobre o Holocausto” (Holocaust angst)
provocasse efeitos nocivos, políticos conservadores, oficiais do governo, representantes
de organizações privadas se organizaram em torno do primeiro ministro Kohl. As práticas
e os efeitos dessa coalização foram sentidos tanto na RDF quanto nos EUA. E elas foram
igualmente atravessadas por disputas sobre o passado e as interpretações do passado72.

O pessoal do Consulado Geral da RDF em Nova York relatou uma variedade


desse temor veiculada por representantes de associações nacionalistas ou de imigrantes e
descendentes de alemães nos EUA. Um dos casos que eles coletaram foi o de Werner
Barbye, diretor de uma seção regional do Congresso Nacional Germano-Estadunidense
(German American National Congress - GANC). Ao longo de 1977, Barbye encorajou
os membros de sua associação a se oporem manifestadamente à inclusão do Holocausto

71
Idem, p. 13-14.
72
Eder sistematiza esse processo complexo em EDER, J.S. Holocaust angst: The Federal Republic of
Germany and the American Holocaust memory since the 1970’s. Nova York: University of Oxford Press,
2016, p. 3.
nos currículos escolares. Para ele, a comoção em torno da inclusão do ensino do
Holocausto seria o resultado da “falta de representantes germânicos” nos quadros
diretores das secretarias de educação. E o caso de Barbye não era isolado. O pessoal do
Consulado Geral da RDF em Nova York percebeu que diversos representantes de
associações étnicas expressavam o mesmo tipo de ressentimento. Algumas lideranças
situadas no mesmo terreno de Barbye declaravam publicamente que o Holocausto “nunca
tinha sido provado”; outras chamavam para o contra-ataque à comoção em torno do
Holocausto, que seria mais uma das investidas da “judaria internacional” contra os
alemães e a Alemanha. Essas e outras organizações foram monitoradas pelos oficiais da
RDF nos EUA. Consul-Geral entre 1975-1979, Werner Ungerer acompanhou de perto os
elementos moderados desse campo e conseguiu fazer com que eles aderissem à diretriz
extra-oficial de “não disputar com os judeus o direito de ter sua própria história étnica
ensinada nas escolas”. Com as organizações mais radicais, não houve reservas. Por
exemplo, Ungerer recomendou que Georg Pape, presidente do Comitê Germano-
Americano da Grande Nova York, se desligasse do seu cargo depois de ter declarado em
um artigo no New York Times que “não havia provas de que o Holocausto realmente
tivesse acontecido”. Pape seguiu a recomendação de Ungerer e retirou publicamente a
sua declaração. Em pouco tempo ele acabou perdendo o apoio e caindo no ostracismo em
sua organização73.

Descontentes ligados a organizações como essas monitoradas pelos


burocratas da RDF encontraram um canal aberto em publicações da extrema direita. Um
dos desses canais foi Instauration, revista mensal do editor e escritor Wilmont Robertson,
uma figura bem quista nos círculos de Carto. Em uma nota no número de fevereiro de
1978 de sua revista, Robertson anunciava o lançamento de uma publicação que para ele
distinta: The Voice of German-American. Ele chancelava a publicação antes de mais nada
por que os seus produtores estariam corretos em ir contra a corrente e “pensar
racialmente”. Para Robertson era isso que fazia de The Voice... um bom meio entre “as
mais respeitáveis” de seu tipo. A linha editorial da publicação saudada por Robertson
seria uma expressão dessa tal forma de pensamento. Apresentada de igual maneira como
auto-evidente, essa linha se caracterizaria pela denúncia ao que, referindo-se ao
Holocausto de forma interdita, Robertson se referiu como a “a maior calúnia racial – a

73
Idem, p. 27-28.
notável mentira dos seis milhões”. Robertson não disse nada sobre quem seriam os seus
venturosos parceiros, mas terminou endossando uma de suas práticas: um boicote à
Holocaust, que estava então em vias de ser lançada74.

Quando Robertson fez esse anuncio, fazia pouco mais de dois anos que sua
revista circulava. Seu primeiro número saiu no final de 1975 e, até 1978, os artigos sobre
o Holocausto eram raros. As vezes o tema aparecia em formas de resenhas e/ou
propaganda de livros e notícias sobre o que acontecia no mundo dos escritores que
tentavam afirmar o Holocausto como uma fraude, como uma arma de propaganda sionista
ou como uma conspiração judaica contra “os alemães” e contra a “maioria branca”. Os
temas não variavam quando, a partir de então, a presença de textos Holocausto passou a
ser regular e intensa nas páginas de Instauration. Agora era raro não haver
correspondências, artigos ou notas que se dedicassem ao tema75.

Na seção de cartas da edição de maio, um dos leitores de Robertson


denunciava o que percebia como a seletividade da liberdade de expressão nos EUA. A
percepção do leitor missivista era embasada em um suposto embargo à participação de
Butz em um programa de rádio. Entre os seus, o leitor se queixava de haver algo errado
na censura a um a um “especialista” e na promoção massiva de Holocaust. Para ele, de
maneira auto-evidente, a série “destilava racismo contra os alemães” e, assim, indicava
que nos EUA “só os sionistas e outros não-brancos” teriam o direito de serem “racistas
fanáticos” (race-hating bigots)76. No mês seguinte, em uma das notas da seção de
“variedades” de sua revista, o próprio Robertson falava sobre esse estado de coisas, dessa
vez epitomizado por ele nas práticas de um professor da Univesidade da Estadual da
Califórnia. Segundo Robertson, esse professor estava oferecendo dois cursos naquele
semestre, um sobre o Holocausto e outro sobre “a psicologia social da
Homossexualidade”. Robertson acusava tal professor usava essa cursos e a universidade
como plataforma para acusar de “nazista” a campanha anti-LGBT “Salvem nossas
crianças” (Save our Children), que tinha a estrela country Anita Bryant como porta-voz77.

74
ROBERTSON, W. German Americans fight back. Instauration, v.3, n.3, Cabo Canaveral, fev. de 1978.
75
CORRESPONDÊNCIA. Instauration, v. 3, n.6. maio de 1978, p. 3.
76
CORRESPONDÊNCIA. Instauration, v. 3, n.6. maio de 1978, p. 3.
77
A campanha “Save our Children” foi lançada em 1977 por uma coalizão formada por organizações
religiosas e políticas formadas em torno do combate a aprovação de leis contra a discriminação de gays e
lésbicas. Os organizadores da campanha recrutaram Bryant para ser a porta-voz pública da ação e
conseguiram uma enorme visibilidade e aderência. Bryant se apresentava como uma mãe zelosa, que se
esforçava para criar seus filhos segundo os preceitos da bíblia e de sua fé batista, e se sentia que seu esforço
educativo poderia ir por água a baixo de as leis anti-discriminação fossem aprovadas. Bryant temia que as
E esse professor, vociferava Robertson, não estaria sozinho: “um jornalista do Los
Angeles Times” teria feito o mesmo: “a mídia” e “o ensino”/ “a educação” estavam
degenerados pelo controle “dos judeus”. Disso Robertson concluía proclamando que
naquele estado, “a história do mundo se reduzia a apenas um ponto: o Holocausto. Todas
as ideias, comportamentos, a política, o aprendizado, e a vida no geral logo serão pesados
por uma balança anti-nazi”78.

[refazer] agora em um longo artigo na Instauration de julho, Robertson


retratou o Holocausto como parte central de uma estratégia de propaganda e como uma
arma de guerra: “a mais letal de todo o arsenal do século XX”, o maior e o mais efetivo
dos “mitos de atrocidades” já produzidos e circulados. Para ele, a “história dos seis
milhões” destruía as mentes e a objetividade dos fatos, provocava e intensificava
conflitos, e sobretudo, era retroalimentada por ódio. Para Robertson, isso era uma espécie
de espelho da política externa e militar de Israel, e, assim, do “comportamento do
Sionismo e da Judaria Internacioanl”79.

[refazerUma nota na publicada na seção de variedades da Instauration que


saiu agosto de 1979 noticiava um evento parecido com aquele de “The Voice”, há pouco
mais de um ano. Nela Robertson anunciava um evento inédito e disrruptivo. No final
daquele mês e “pela primeira vez na história”, “os mais destacados historiadores
revisionistas” se reuniriam para “atacar e revelar a verdadeira natureza da propaganda de
atrocidades (atrocity-monering) dos historiadores do sistema (establishment)”. O evento
era nada mais que a primeira Convenção Revisionista do IHR 80. [refazer] Wilmont
Robertson, que reproduziu um convite para o evento em sua Instauration de agosto,
prometia a seus leitores que o evento iria

“reunir pela primeira vez, se não todos, os mais destacados historiadores


revisionistas de nossa era - uma espécie em extinção (a fast desapearing breed)
que tem cumprido a ingrata tarefa de atacar e desmascarar a da defesa da
atrocidades produzida pelos historiadores do sistema (stablishment
historians)81.

leis anti-discriminação iriam permitir a exposição das crianças à homossexualidade e que elas violariam “
o meu [dela] direito e o de qualquer outro cidadão honesto, decente e moral, independe de sua raça ou
religião” de criar seus filhos de maneira adequada. Sobre isso e o processo que envolveu esses e outros
agentes nas disputas públicas em torno de direitos civis para LGBT’s nos EUA ao longo da década de 1970,
c.f.: FEJES, F. Gay rights and moral panic: the origins of America’s Debate on Homossexuality. Nova
York: Palgrave Mcmillan, 2008.
78
79
ROBERTSON. W. The Holocaust strategy. Instauration, v. 3, n.8, Cabo Canaveral, Julho de 1978.
80
Idem., v. 4, n. 9., agosto de 1979, p. 28.
8181
ROBERTSON, W. Stirrings – Los Angeles. Instauration, v. 4, n. 9, agosto de 1979, p. 28.
Fazia mais ou menos um ano desde que Carto publicara aquele artigo sobre
Hitler no A.M. Quando ele o fez, o periódico já passava por sérios problemas. Parece que
os leitores não responderam bem à linha editorial adotada por Carto nos últimos anos. A
ênfase em “histórias interessadas” do nazismo e da II Guerra Mundial fez com que o
número de assinaturas e vendas da revista caísse drasticamente. Carto deve ter pensado
que poderia resolver o problema contratando um editor profissional, afinal de contas ele
publicou um anuncio para o preenchimento de uma vaga desse tipo nos classificados do
Spotlight. Entre os que responderam ao anuncio de Carto estava David McCalden, um
jovem irlandês que transitava pela extrema-direita inglesa como escritor e editor de
órgãos da cena82.

McCalden foi contratado e, já instalado na Costa Oeste, começou a trabalhar


como assistente de Carto e LaVonne Furr na NP e no AM. Apesar da crise da complicada
situação do periódico, McCalden teria notado que havia um nicho que não poderia ser
explorado através dele, que, no final das contas, parecia estar condenado. McCalden teria
visto que os campeões de vendas no catálogo da NP eram títulos sobre o Holocausto.
Pelos idos de 1978, já circulavam pela NP a segunda edição de The Myth..., a primeira
edição de The Hoax... panfletos e coletâneas sobre o dito “revisionismo”. Neste mesmo
ano saíram pela editora uma nova edição do livro de Butz e uma coletânea mais ou menos
aleatória de excertos de textos de Rassinier traduzidos para o inglês e integrados como
uma única peça ao volume de “Debuking The Genocide Myth: a study of A Study of the
Nazi Concentration Camps and the Alleged Extermination of European Jewry”83. A
especialização nesse nicho parecia ser promissora. Carto teria acredita nessa visão e então
vendido o AM para concretizá-la. Em julho de 1979 eles e o quadro administrativo do
LSF se reuniram para tratar da fundação da fundação do IHR.

Mas como e por que agora e não 1969 ou 1974, e por que como um dito centro
de pesquisa? Para Leonard Zeskind, as transações que deram no IHR foram

82
LIPSTADT, ATKINS, ZESKIND.
83
RASSINIER, P. Debuking the genocide myth: a study of nazi concentration camps. Trad. Adam Robbins.
Los Angeles: Noontide Press, 1978. Uma tradução de Drame des Juifs Européens atribuída a Barnes saiu
em 1975 pela Stepping Stones Publications. C.f.: _____. The Drame of European Jews. Trad. Harry E.
Barnes. Silver Spring, 1975. A edição da NP foi resenhada para o Spotlight por James J. Martin em outubro
de 1978, c.f.: MARTIN, J.J. Reflections on a death. (Carta ao Editor). The Journal for Historical Review,
v. 12, n.2, Costa Mesa, verão de 1992.
respectivamente o resultado de um tino acertado para negócios editoriais e
organizacionais de McCalden e Carto. Para Lisptadt aquele era um ponto de um processo
mais ou menos teleológico. O mesmo serve para Atkins, para quem o IHR é o produto
cumulativo da trajetória com começo, meio e fim de Carto. A primeira dessas respostas é
vaga. As fontes consultadas por Zeskind só permitem esse tipo de intuição se elas forem
consideradas como indícios autossuficientes e só funcionam assim em uma história de
empreendedorismo político, por assim dizer84. Além do mais, se a ênfase no tal
“revisionismo” foi a causa da crise no AM, a solução, fosse ela restauradora ou inovadora,
deveria ser pela diversificação e não pela especialização. O que estava em jogo não eram
dividendos propriamente financeiros, pelo menos não era essa intenção imediata. A
resposta fornecida pela poderosa interpretação de Lipstadt se perde entre generalizações
e intuições. Ela se situa em algum ponto da intenção da historiadora em mostrar o
negacionsimo funcionado e produzindo impactos na cultura estadunidense e na realização
dessa intenção através de uma história de movimento ascendente. Tal história começa em
um beco mais ou menos obscuro para chegar, inevitavelmente, à praça pública bem
iluminada. Segundo Lipstadt, esse caminho foi pavimentado por um conjunto de
estratégias de dissimulação e não poderia ter sido fora de “um clima intelectual (...) em
que grande parte da história parecia estar aberta (up for grabs)” e em que “os ataques à
tradição racionalista ocidental” teriam se tornado “um lugar comum”85. Para Lisptadt o
aparecimento do IHR representa o clímax desse processo. A explicação de Atkins é
igualmente problemática porque vai nesse sentido e o extrapola. Para ele, o que faz o
negacionismo e o IHR acontecer são as histórias de vida dos agentes. Não seria para tanto
se essas histórias não se materializassem na descrição contínua e contígua de
engajamentos e de feitos que definem unilateralmente a vida dos agentes e, por essa via,
o negacionismo – sua tipologia de agentes produtores-divulgadores-consumidores só
pode funcionar como uma intuição dessa forma de compreender e descrever vidas e
feitos86. Eu gostaria de propor uma outra interpretação.

Até aqui minha exposição tem sido descritiva. Eu contei uma história muito
limitada através de duas genealogias igualmente limitadas: uma do negacionismo e outra
dos discursos públicos sobre o Holocausto nos EUA. Fiz isso com a intenção declarada

84
A intuição de Zeskind veio de declarações posteriores, retrospectivas e polêmicas de McCalden
fornecidas em juízo e/ou em seu Revisionist Newsletter, então rival do IHR. C.f.: ZESKIND, 2009, p. 56.
85
Lipstadt, p. 17
86
ATKINS, intro, IHR.
de chegar aos contornos do mundo do IHR para então desenvolver esta interpretação
como teste da hipótese que apresentei como articuladora desde capítulo: a de que as
fronteiras do mundo do IHR são mutua e retroativamente definidas através dos feixes de
relações entre agentes de um campo da extrema-direita estadunidense e através das
disputas públicas sobre os sentidos do Holocausto. Essa interpretação não inédita. Nas
interpretações que eu acabei de elencar, a primeira variável é um elemento explicativo
importante. A segunda, entretanto, está implícita, interdita, tímida ou latente e nunca
elaborada. Em outros lugares, essa interpretação foi mencionada como possibilidade
explicativa do fenômeno negacionista, mas não desenvolvida87. É nessa vaga que situo
minha interpretação. Dessa forma, as duas variáveis variantes que compõem a
interpretação estão intimamente relacionadas. Me refiro primeiro aos discursos públicos
sobre o Holocausto nos EUA e às disputas igualmente públicas e políticas em torno desses
discursos.

Quando saíram os textos que compuseram a primeira edição de The Myth, não
fazia muito que se falava sobre o Holocausto como “unidade autônoma e distinta dos
outros crimes nazistas”. Como demonstrou Novick, isso foi um dos efeitos mais
duradouros do julgamento de Eichamann sobre o processo de transformação dos
discursos públicos sobre o Holocausto nos EUA. Mas esses e outros efeitos foram pouco
sentidos fora do mundo das organizações judaicas e dos jornais e revistas de grande
prestígio que cobriram o julgamento como um acontecimento. Não foi possível apurar
em que medida os círculos da extrema-direita estadunidense estiveram atentos ou
receberam esse discurso. Mas ele não foi sem efeitos sobre esse campo. Eu digo isso por
que a ideia que articula os textos que compuseram aquela primeira edição de The Myth...
não poderia existir e funcionar sem essa forma de perceber o Holocausto como unidade
distinta, enunciado que não estava elaborado, por exemplo, no grande sucesso
multimidiático que foi o Diário de Anne Frank ao longo da década de 1950, nem em The
Rise and Fall of The Thrid Reich de William Shearer, um fenômeno de vendas que, em

8787
Em um balanço sobre o campo de estudos sobre a memória coletiva na França, Jean Pierre-Rioux
mencionou de passagem as relações problemáticas entre a negação do Holocausto, o processo de Klaus
Barbie, as memórias sobre o Holocausto e os efeitos retroativos desses sobre o trabalho histórico. C.f.:
RIOUX, J.P. A memória coletiva. In: _____; SIRINELLI, J.F. Para uma história cultural. Lisboa: Editorial
Estampa, 1998. Da mesma forma, Novick deixou indicado que as práticas negacionistas poderiam ser
explicadas através das disputas públicas pelos discursos sobre o Holocausto nos EUA. C.f.: Novick, 2009,
pp. 13; 156.
1960, teria colocado “o nazismo e II Guerra Mundial no mapa cultural estadunidense”,
só para ficar nos acontecimentos paradigmáticos, por assim dizer.

A proclamação do Holocausto como uma mentira na introdução-programa de


Carto ao The Myth... era como como uma espécie de comentário negativo e polêmico ao
discurso sobre o Holocausto como evento distinto e único. A transubstanciação do
revisionismo dos círculos libertários operada por Carto para preencher as condições
institucionais da existência desse comentário apresentado como dissidente e legítimo
acusa a sua suposta interdição e, acusando-a, quer falar contra o poder e pelo poder de
definir o Holocausto como uma única unidade autoevidente como “a grande mentira”.
Em parte, era pela definição dessa unidade discursiva que se lutava, ou melhor, se
provocava. Apesar dos lances com o tal revisionismo, os oponentes não se encontraram
na arena porque, afinal de contas, ela ainda não estava preparada.

As condições discursivas para a proclamação do Holocausto como uma


mentira existiam já em 1969 e eram praticamente as mesmas em 1974 e em 1976.
Entretanto, a eficácia dessa proclamação era pequena e restrita a círculos esotéricos da
extrema-direita estadunidense. Em 1978 o cenário era alguma coisa diferente,
especialmente depois da exibição de Holocaust e da instituição da Comissão Presidencial
sobre o Holocausto. Para falar como Michel Pollack, esses eventos foram como
“sobressaltos bruscos e exacerbados” das memórias e dos discursos sobre o passado que
“em tempos de crise” “afloraram” dos subterrâneos como o resultado de um mais ou
menos longo e silencioso processo de subversão88. A política e o processo de exclusão e
extermínio nazista se tornaram uma matriz de significados plurais mediados social,
cultural e politicamente, i.e., por valores, por intenções, por programas, projetos e práticas
políticas, por linguagens e por instituições. Sem essa mediação multilateral e sem a
manifestação da diversidade dos sentidos que circulavam pelo espaço público naquela
situação cambiante dos EUA dos final da década de 1970, “a pluralidade fragmentada das
memórias” e dos discursos sobre o Holocausto, inclusive o negacionista, não poderiam
ser objetos e instrumentos de lutas simbólicas e políticas como foram no caso em
questão89.

88
89
Me refiro ao caráter público e às condições sociais das memórias e dos discursos sobre o passado, tal
como tratadas em: PORTELLI, A. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944)
mito e política, luto e senso comum. In: FERREIRA, M.M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da história
oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, pp. 126-7.
As circunstâncias de The Myth ajudam a compreender como assim e por que
assim e não de outra forma. E aqui eu toco na segunda variável e passo a me referir aos
diferentes feixes de relações entre agentes da extrema-direita estadunidense. A descrição
que fiz na primeira parte deste capítulo mostra a configuração de uma rede em potencial
em que se reitera as relações entre esses agentes de diferentes formas e em diferentes
níveis. Aqui mais uma vez essas circunstâncias atravessam e são atravessadas por essa
rede em potencial.

Hoggan teria começado a trabalhar no texto-base do livro em 1962, um ano


após o julgamento de Eichmann. Depois de completo, ele fez o manuscrito circular entre
seus pares e editores da extrema-direita; através desse trânsito e de um intermediário, o
livro chegou a Carto. Nessa altura, Carto já sabia de um informante privilegiado sobre
quem era quem e o que acontecia no mundo dos então auto-proclamados “historiadores
revisionistas” que se reuniam em torno de Barnes. Desse convívio vieram os artigos
originalmente publicados no AM entre 1967 e 1968 e, por certo, sem essa socialização,
as categorias usadas por Carto na introdução talvez não tivessem sido incorporadas. A
crença de que o passado e as interpretações sobre o passado eram controlados por
dominantes enigmáticos (“o Estado”, “os poderosos” ou “os judeus” “os sionistas” etc.)
que sempre interditariam alguma ou a verdade sobre o passado para se manterem no poder
foi bem incorporada ao nacionalismo racista de Carto, que via “os judeus” como o
elemento estrangeiro, corruptor, como os agentes naturais de uma conspiração continuada
contra o ocidente ou contra os EUA.

A retórica conspiracionista que envolvia e atravessava essas duas crenças era,


entretanto, direcionada a convertidos. Ela só poderia produzir efeitos através de um
acordo tácito e do reconhecimento de seus leitores de que “ isso foi assim e não de outra
forma” e que “isso” é auto-evidente. O lançamento do livro no palanque da convenção de
uma organização juvenil relativamente fechada é outro bom indício disso. Os textos de
The Myth... eram direcionados e só faziam sentido para convertidos. E o mesmo valia
para The Hoax ou Debuking..., ainda que eles tivessem vindo ao mundo como alguma
formalidade acadêmica como, aliás, também veio The Myth....

O tempo do “afloramento” da diversidade e da cacofonia de discursos sobre


o Holocausto nos EUA foi o tempo de um trabalho reiterado, complexo e especializado
de justificação que envolveu diferentes agentes e meios na produção da credibilidade, da
aceitação e da organização desses discursos. Foi o tempo de um “trabalho de
enquadramento”, para falar mais uma vez como Pollack. E foi também um tempo de
disputas por esse trabalho, pelos seus materiais, por sua matéria prima e também pelos
seus resultados e pelos seus limites. Fora desse tempo, talvez o IHR não fosse possível.

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