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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE TECNOLOGIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – DTCS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ECOLOGIA HUMANA
E GESTÃO SOCIOAMBIENTAL - PPGEcoH

ROBSON MARQUES DOS SANTOS

CRIANÇAS NOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ DO


SERTÃO

JUAZEIRO/BA

2018
ROBSON MARQUES DOS SANTOS

CRIANÇAS NOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ DO


SERTÃO

Dissertação apresentada a
Universidade do Estado da Bahia –
Campus III - para o exame de defesa
do Título de Mestre em Ecologia
Humana e Gestão Socioambiental.

Orientador: Prof. Dr. Luciano Sergio Ventin Bomfim (UNEB)

Coorientador: Prof. Dr. Marcelo Silva de Souza Ribeiro (UNIVASF)

JUAZEIRO/BA

2018
Maria de Fátima Santos de Lima
Bibliotecária – Documentalista
CRB – 5ª / 1801

S237c Santos, Robson Marques dos

Crianças nos Terreiros de Candomblé do Sertão/ Robson Marques dos


Santos. Juazeiro, BA, 2018.

67 f.: il.

Orientador: Prof. Dr. Luciano Sergio Ventin Bomfim (UNEB).


Coorientador: Prof. Dr. Marcelo Silva de Souza Ribeiro (UNIVASF).

Dissertação (Mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental)


Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Tecnologia e Ciências
Sociais – Campus III, 2018.

Título em Inglês: Children in the Candomblé Territories of Sertão

1. Crianças e Adolescente do Candomblé. 2. Pai e Mães de Crianças de


Terreiro. 3. Lideranças Religiosas. 4. Candomblé e Ecologia Humana do Sertão.
I. Universidade do Estado da Bahia. II. Bomfim, Luciano Sergio Ventin. III.
Título.

CDU: 299.6
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE TECNOLOGIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – DTCS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ECOLOGIA HUMANA
E GESTÃO SOCIOAMBIENTAL - PPGEcoH

Diretor do Departamento

Prof. Dr. Jairton Fraga Araújo

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Prof. Dr. Carlos Alberto Batista Santos

JUAZEIRO/BA

2018
BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Luciano Sergio Ventin Bomfim


Professor Orientador – UNEB

Prof. Dr. Elton Moreira Quadros


Membro Interno– UNEB

Profa. Dra. Silvia de Oliveira Pereira


Membro Externo – UFRB

Prof. Dr. Juracy Marques dos Santos


Membro Interno Suplente – UNEB

Prof. Dr. Marcelo Silva de Souza Ribeiro


Membro Externo Suplente - UNIVASF

JUAZEIRO/BA

2018
Dedicatória

Às Comunidades Tradicionais do Nordeste, ao Povo de Terreiro do Sertão e às


Crianças de Candomblé de todo o Brasil.
Epígrafe

As construções, interpretações e (re) elaborações infantis, próprias do contexto


histórico marcantes do povo negro, ratificam que as Crianças de Candomblé do Sertão
são Folhas Pequenas que nos ensinam grandes lições.
(Robson Marques)
Agradecimentos

Quero agradecer, nestas poucas linhas que escrevo, todo o carinho, amor e atenção
daqueles que abraçaram e conduziram comigo este projeto. Inicialmente as Forças e
Energias dos Encantados, Caboclos, Nkisi, Orixás e Espíritos que se movimentam no
espaço e movem o Universo. Ao Povo de Terreiro de Candomblé do Sertão, mais
particularmente ao Babalorixá Adeilson (Pai Dedé), às Yalorixás Idjemim (Mãe Edneusa)
e Maria da Paixão (Mãe Maria de Tempo); à Mãe kota Nadiane, ao Ogã Antônio, à Yaô
Euziane e à Yalaxé Gessiane; também às crianças Kerlen, Naian e Davi e; à adolescente
Letícia. Aos meus familiares (pai e mãe, filho, irmãos, cunhados, cunhadas, sobrinhos e
sobrinhas, em especial a Kerly pelo empréstimo da máquina fotográfica). Aos colegas e
amigos Talles Cerqueira e Aline Sampaio também pelo empréstimo dos gravadores de
voz. Aos amigos André, Paulo Wataru e Alzeni Tomaz pelo apoio logístico, cuidados e
acolhimento em Paulo Afonso. Às amigas e conselheiras Rosa e Daniela que tanto
corroboraram e me ajudaram ora na proa ora no leme, mas sempre dispostas a navegarem
comigo. Ao amigo Duda (Luiz Eduardo) pela irmandade e empréstimo das armaduras de
couro e de consciência quando da necessidade de atalhar as novilhas endiabradas por
entre os garranchos e urticante vegetação das veredas da vaidade acadêmica. Ao amigo
Antônio Jairo (Tom) pela amizade e colaboração cartográfica de localização dos terreiros.
Aos colegas do IF Baiano Campus Senhor do Bonfim, em particular aos da Coordenação
de Assuntos Estudantis pela cooperação. Aos docentes, discentes e à Coordenação do
PPGEcoH, em especial ao Prof. Carlos, a Secretária Stéfane e a estagiária Laiane pela
atenção, paciência e comprometimento profissional. Ao professor Walter Sá pela
colaboração na tradução do artigo Folhas Pequenas: Crianças nos Terreiros de
Candomblé do Sertão do Brasil. Ao vizinho e conselheiro Rubão da Serra dos Morgados
pela companhia também na interação com os bichos, com as plantas e as terras da Serra.
À Lilian, pelo companhia, parceria e cuidados. A Juracy, Jozete e Maria Ribeiro pelos
abraços e beijos amorosos e de proteção nos dias mais frios ou mais fervorosos da minha
existência. E aos Professores Doutores Luciano Bomfim (orientador) e Marcelo Ribeiro
(Coorientador) pelas orientações.
Sumário

Introdução ................................................................................................................................ 13

Proposição ......................................................................................................................16

Área de Estudo ...............................................................................................................18


Artigo 1 - LIDERANÇAS RELIGIOSAS E AS CRIANÇAS NOS TERREIROS DE
CANDOMBLÉ DO SERTÃO DO BRASIL ..................................................................20
Artigo 2 - FILHOS NOS TERREIROS COM AS BÊNÇAOS DO PAI E DAS MÃES
.................................................................................................................................................... .38

Artigo 3 - FOLHAS PEQUENAS: Crianças nos Terreiros de Candomblé do Sertão do


Brasil .......................................................................................................................................... 51

Resultados e Discussão ..................................................................................................63


Considerações Finais.................................................................................................... 66
Referências da Introdução e dos Resultados e Discussão ..........................................67
Apresentação

As escritas que seguem neste trabalho consideram as experiências das


Cartografias Sociais dos Terreiros de Candomblé e Umbanda no Sertão (Paulo
Afonso/BA, Jaguarari/BA, Petrolina/PE e Juazeiro/BA), que têm como objetivo dar
visibilidade à identidade dos povos de terreiro do nordeste do Brasil. Para as bandas do
Sertão as atividades são coordenadas pela Sociedade Brasileira de Ecologia Humana
(SABEH), pelo Núcleo de Pesquisa da Bacia do São Francisco e pelo Núcleo de Estudos
em Povos e Comunidades Tradicionais e Ações Socioambientais (NECTAS/UNEB).
Esta é uma pesquisa de dissertação de mestrado que revela o dinâmico processo
de apreensão e compreensão dos saberes e conhecimentos da religião Candomblé no
Sertão, também enquanto espaço informal de ensino, sob três perspectivas descritivas
diferentes acerca da participação de crianças nos terreiros que convergem e sintetizam os
valores semânticos também da Ecologia Humana do e nos terreiros.
Toda a pesquisa foi organizada em 8 (oito) capítulos que formatam esta
dissertação. O capítulo inicial é o da introdução que contempla a razão motivadora para
o estudo/ questão da pesquisa e os objetivos. O segundo capítulo evidencia a proposição
e os processos metodológicos envolvidos. Já o terceiro capítulo apresenta todo o escopo
da área de estudo e a descrição dos instrumentos utilizados para a coleta dos dados.
O capítulo quarto traz o artigo 1 – LIDERANÇAS RELIGIOSAS E AS
CRIANÇAS NOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ DO SERTÃO DO BRAIL, que
apresenta o resultado da análise de conteúdo das falas das entrevistas realizadas com duas
Yalorixás e um Babalorixá descrevendo como se estabelece a participação, a iniciação e
as relações de aprendizagem dos saberes religiosos, humanos e ecológicos na iteração
entre as crianças e os adultos em seus terreiros.
O quinto capítulo trata do artigo 2 – FILHOS NOS TERREIROS COM AS
BÊNÇÃOS DO PAI E DAS MÃES, com as descrições do pai de uma criança Ogã, da
mãe de uma criança Iakekerê e da mãe de uma adolescente Abiã acerca da participação
de seus filhos no candomblé e que incorpora os sentidos da Ecologia Humana do e nos
terreiros, bem como os valores comunitários e de aprendizagem nas inter-relações.
O sexto capítulo apresenta a relevância da análise de conteúdo das narrativas de
três crianças e uma adolescente que vivenciam a religiosidade nos terreiros de candomblé
em duas cidades do interior da Bahia e em uma cidade do interior pernambucano no artigo
3 – FOLHAS PEQUENAS: Crianças nos Terreiros de Candomblé do Sertão do
Brasil. As discussões são apresentadas no capítulo sete e as considerações finais
abordadas no oitavo capítulo e que antecede as referências utilizadas.
Resumo

A apreensão das primeiras faculdades inerentes aos processos de aprendizagem, motora,


cognitiva e/ou de socialização comumente acontece ainda nas fases iniciais de
crescimento e desenvolvimento. A participação de crianças em rituais religiosos assume
uma particular condição de interação social, cultural e educativa que impreterivelmente
relaciona a moralidade, a ética e o respeito. Particularizando a participação de crianças
em religiões de fundamentação histórica e de manifestações culturais do povo negro este
trabalho teve como principal objetivo compreender como se dá a participação de crianças
em três Terreiros de Candomblé no Sertão do Brasil a partir da análise de conteúdo das
falas de duas Yalorixás (Mães de Santo), um Babalorixá (Pai de Santo), três crianças e
uma adolescente de terreiro, uma mãe de uma adolescente de terreiro, uma mãe de
crianças de terreiro e de um pai de crianças de terreiro. Trata-se de uma pesquisa
etnográfica que utilizou como estratégia o estudo de caso como recorte da realidade em
questão – a participação e iniciação de crianças de terreiro no Candomblé. A partir da
sistematização, os conteúdos das falas dos (as) entrevistados (as) foram analisados,
categorizados tematicamente e organizados em três artigos científicos que compõem esta
dissertação e que descrevem os saberes dos povos de três terreiros de candomblé em três
cidades do sertão nordestino brasileiro: Paulo Afonso/BA, Juazeiro/BA e Petrolina/PE –
evidenciados pelas publicações das suas Cartografias Sociais (Candomblé e Umbanda no
Sertão). Os resultados das análises revelaram as relações destes povos com os elementos
da natureza humana e não humana, bem como processos de ensino e processos de
aprendizagem pelas vivências de iniciação religiosa e participação de crianças no
candomblé sertanejo nordestino brasileiro.

Palavras-chave: Crianças e Adolescente. Pai e Mães de Crianças de Terreiro. Lideranças


Religiosas. Iniciação Religiosa. Candomblé do Sertão. Ecologia Humana.
13

Introdução

Para Berno e Santos (2010) forças espirituais e divindades, chamadas por algumas
culturas de Orixás e por outras Nkisi cruzaram o Atlântico e enraizaram-se em terras
brasileiras e não mais saíram daqui. Em alguns cantos elas se misturaram e deram vida às
novas formas de cultos, às vezes chamadas de Umbanda, de Candomblé, de Caboclo, de
Giro, entre outras.
Prandi (2006) aponta que a religião dos Orixás foi refeita no Brasil por africanos
ou descendentes que, no século XIX, viviam nas grandes cidades costeiras, ocupando-se
em atividades urbanas, fossem eles escravos ou livres.
Para Marques e Novaes (2015) são múltiplas as definições e os sentidos atribuídos
ao candomblé e à umbanda em nosso país como são infinitos os sentidos experimentados
pelos sujeitos que vivenciam essas religiões de fortes relações com a história do povo
negro. Segundo os pesquisadores, no semiárido brasileiro essas realidades ganham
contornos bem particulares.
A participação de crianças nos rituais do candomblé no Brasil é um assunto que,
pela particularidade, tem-se mostrado como tabu. A experiência vivida por centenas de
pessoas que integram as religiões de matrizes africanas se mostra muito mais carregada
de mistérios e desconhecimentos para quem não vive a religião. No Sertão do Brasil
pouco se fala sobre a iniciação de crianças nestes espaços que relacionam ancestralidades,
processos de resistência, de resiliência, questões socioambientais/ecológicas, crenças e
educação informal.
Stela Guedes Caputo, em seu livro “Educação nos Terreiros e como a escola se
relaciona com crianças de Candomblé,” publicado em 2012, indaga e suscita curiosidades
que a levaram aos terreiros da Baixada Fluminense no Estado do Rio de Janeiro,
inicialmente para mapear os terreiros como pauta de reportagem e depois observando e
ouvindo as práticas de crianças e adolescentes que frequentam terreiros de candomblé,
entendendo os terreiros como espaços de educação e, consequentemente, também
observando e ouvindo a escola para saber como ela se relaciona com essas crianças.
Oliveira e Almirante (2017) no artigo “Criança, terreiro e aprendizagem: um olhar
sobre a infância no candomblé” discorrem sobre a interface entre a Antropologia da
Educação, da Criança e da Religião, visando investigar o que é ser criança no Candomblé
e a forma como se constituem os processos de aprendizagem das crianças no terreiro,
14

como na recorrência à brincadeira e à ludicidade nesses processos, na cidade de


Maceió/AL.
Higino (2011) se deteve a conhecer a prática social desenvolvida no espaço
escolar em que a criança candomblecista interage, inferindo que esta criança traz de sua
comunidade uma experiência pedagógica que difere da praticada nas escolas de educação
formal, que invariavelmente, não leva em conta os legados herdados dos antepassados
africanos que contribuíram no desenvolvimento da cultura afro-brasileira e cujas
tradições perpetuam através da oralidade e da transmissão de saberes dos mais velhos
numa dimensão educativa.
A pesquisa “Crianças nos Terreiros de Candomblé do Sertão” considera como de
fundamental importância atentar para as similaridades ou diferenças no âmbito das
realidades e dos contextos geográficos e sociais em que as crianças de candomblé se
encontram, seja no sudeste seja aqui no sertão; bem como as várias facetas apresentadas
enquanto instrumentos de construção e reelaboração identitária e educativa, seja nas
instituições de ensino formal, por exemplo, a escola, ou nos espaços informais de
aprendizagem, particularmente os terreiros de candomblé do sertão.
Esta pesquisa buscou fazer um recorte da realidade dos Terreiros de Candomblé
do Sertão dedicando empenho na temática Crianças nos Terreiros de Candomblé do
Sertão na busca interpretativa e analítica dos conteúdos das falas de entrevistas realizadas
com quem vivencia a religião cotidianamente, consoante com Oliveira (2008) que assente
que a pesquisa qualitativa vem se consolidando, em especial, nas ciências humanas ou
sociais e se propõe a estudar relações complexas, sem o isolamento de variáveis, buscando
compreender e interpretar os fenômenos em seu contexto natural no qual o pesquisador
interpreta e participa.
Ainda ampara-se em Lakatos e Marconi (2011), enquanto estudo etnográfico, no
qual o investigador convive, em grande parte, com as pessoas (sujeitos-agentes de
estudo), entrosando-se com elas, vivendo do mesmo modo que elas e atentando com muita
responsabilidade, dando importância para a investigação ao se interessar em descobrir e
interpretar a caracterização do grupo em um cenário particular.
Nessa perspectiva a pesquisa valeu-se da análise de conteúdo pela categorização
enquanto operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto por
diferenciação e, em seguida, por reagrupamento segundo o gênero (analogia), com os
critérios de valores semânticos previamente definidos, regidos por Bardin (2016).
15

Considerando participação como sendo os processos interativos nas relações de


ensino e de aprendizagem entre crianças e adultos para a manutenção e/ou reelaboração
dos valores e significados das manifestações culturais, ritualísticas, educacionais,
ecológicas e humanas na religião candomblé o principal objetivo desta dissertação de
mestrado foi compreender como se dá a participação e a iniciação de crianças em três
terreiros de candomblé no Sertão Nordestino Brasileiro.
16

Proposição

Para alcançar os objetivos definidos na proposta de estudo, inicialmente cumpriu-


se os ritos de submissão do projeto ao Conselho de Ética e Pesquisa- CEP/UNEB (Parecer
de número 2181721 de 21/07/2017). Depois foram procedidas as técnicas da coleta de
dados indo a campo munido de gravador de voz, máquina fotográfica e cadernos de
anotações para a realização de entrevistas semiestruturadas, registros em imagens e diário
de campo.
A organização metodológica seguiu a seguinte estrutura: foram semiestruturadas
três tipos de entrevistas, uma para as lideranças religiosas, uma para as crianças e a
adolescente e uma para o pai e para as mães de crianças de terreiro, contendo vinte
perguntas cada. Essas perguntas geraram respostas/ descrições que foram agrupadas em
seis eixos temáticos com valores semânticos afins e depois reagrupadas e categorizadas
em tópicos analíticos, estruturantes dos artigos científicos presentes nesta dissertação.

Quadro 1. ESTRUTURA DA PESQUISA


QUESTÃO DO ESTUDO
Como se dá a Participação de Crianças nos Terreiros de Candomblé do Sertão do Brasil?

ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS COM VINTE


PERGUNTAS

EIXOS TEMÁTICOS

Identificação, Elementos da Crianças nos Instrumentos sociais


identidade e natureza e a relação terreiros: o que e e legais para
particularidades da como humano e o como fazem? iniciação de crianças
religião. sagrado. nos terreiros.

Preconceito, discriminação e Memórias e iniciação nos


intolerância. terreiros.

TÓPICO ANALÍTICO I TÓPICO ANALÍTICO II

QUE CONSENTE A IDENTIDADE E QUE DESCREVE COMO A VIDA


PARTICULARIDADE DO CANDOMBLÉ RELIGIOSA É INICIADA E OS SENTIDOS
NO SERTÃO E SUAS ECOLOGIAS DA PARTICIPAÇÃO DE CRIANÇAS NO
CANDOMBLÉ DO SERTÃO

ARTIGOS CIENTÍFICOS

Por fim, enquanto proposição, buscou-se com a pesquisa, além da compreensão


dos processos que envolvem a participação e iniciação de crianças em terreiros de
17

candomblé, evidenciar, pelos sujeitos-agentes envolvidos (três crianças e uma


adolescente, três lideranças religiosas, um pai e duas mães de crianças de terreiro) a
expressividade e a descrição, segundo suas próprias vivências, dos processos ritualísticos,
culturais e educativos do candomblé, possíveis de serem expostos, para melhor descrição
e compreensão da história dos saberes e dos conhecimentos, mais particularmente, acerca
da participação de crianças nos Terreiros de Candomblé do Sertão do Brasil.
18

Área de Estudo

A escolha das áreas para imersão na pesquisa baseou-se nas publicações sobre os
povos de terreiros de Paulo Afonso/BA, Jaguarari/BA, Juazeiro/BA e Petrolina/PE
realizadas pelo Núcleo de Estudos em Comunidades e Povos Tradicionais e Ações
Socioambientais (NECTAS/UNEB), pela Sociedade Brasileira de Ecologia Humana
(SABEH), pelo Projeto Nova Cartografia Social do Brasil e pela Nova Cartografia Social
da Bacia do São Francisco. Desde 2009 são realizadas pesquisas etnográficas com esses
povos e como resultado a publicação de livros que dão voz a Babalorixás, Yalorixás e
Filhos de Santo de Terreiros.
Dessas experiências buscou-se o recorte da participação e iniciação de crianças
nos terreiros de candomblé nas cidades em que, até então, foram feitas as Cartografias.
Com exceção da cidade de Jaguarari, por motivo de desistência de última hora pela
Yalorixá do Terreiro que havia se disposta, as demais compõem as áreas para estudo na
proposição de um terreiro por cidade para a investigação/análise de conteúdo.
Em Juazeiro/BA a permissão dada para a realização da pesquisa no Terreiro
Bandalecôngo, localizado na Rua Padre Cícero, 504 – Palmares I, foi da Yalorixá Mãe
Maria de Tempo.

Figura 1 – Localização do Terreiro Bandalecôngo

Em Petrolina/PE, o espaço sagrado para o estudo foi o Terreiro Ilê Dará Axé Omo
Logum Edé de Pai Adeilson (Pai Dedé), no Bairro Dom Avelar, na Rua do Cobre, nº07.
19

Figura 2 – Localização do
Terreiro Ilê Dará Axé
Omo Logum Edé

Em Paulo Afonso/BA, a Yalorixá Edneusa, permitiu acesso ao Abassá da Deusa


Oxum de Idjemim, na Rua Teofilêndia, nº90 – Barroca - para que a pesquisa fosse
realizada também ali.

Figura 3 –
Localização do
Abassá da Deusa
Oxum de Idjemim
20

Artigo 1

LIDERANÇAS RELIGIOSOS E AS CRIANÇAS NOS TERREIROS DE


CANDOMBLÉ DO SERTÃO DO BRASIL1

RELIGIOUS LEADERS AND CHILDREN IN THE CANDOMBLÉ TERRITORIES


OF SERTÃO DO BRASIL

Robson Marques dos Santos


robsonmarquesambiente@yahoo.com.br
Mestrando em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental
UNEB campus III

Luciano Sergio Ventin Bomfim


lbomfim@uneb.br
Doutor em Filosofia (Universitaet Gesamthochschhule Kassel)
Professor da UNEB campus III

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar os processos educativos na iniciação de crianças nos


Terreiros de Candomblé de três cidades nordestinas no Sertão do Brasil: Juazeiro/BA
(Terreiro Bandalecônco de Mãe Maria de Tempo), Petrolina/PE (Ilê Dará Axè Omo
Logum Edé de Pai Adeilson) e Paulo Afonso/BA (Abassá da Deusa Oxum de Idjemim)
sob a ótica de duas Yalorixás (Mães de Santo) e um Babalorixá (Pai de Santo). Consiste
em uma pesquisa etnográfica, valendo-se de análises de conteúdo das entrevistas das
autoridades religiosas e como isso repercute numa ecologia dos terreiros na feitura dos
ritos e conexões entre os planos da materialidade e a espiritualidade associado as
representações dos orixás com os reinos e elementos da natureza. Além disso, apreende-
se o aporte existencial na participação infantil nos terreiros, caracterizando um processo
social de aprendizagem e transmissão dos saberes para a manutenção ou reelaboração das
tradições culturais religiosas que passam dos mais velhos para os mais novos.

Palavras-chave: Crianças. Processos Educativos. Yalorixás. Babalorixá. Terreiros de


Candomblé. Ecologia Humana.

ABSTRACT

The objective of this article is to analyze the educational processes in the initiation of
children in Candomblé Terreiros of three Northeastern cities in the Sertão of Brazil:
Juazeiro / BA (Terreiro Bandalecônco Mother Mary of Time), Petrolina / PE (Ilê Dará
Axè Omo Logum Edé de Father Adeilson) and Paulo Afonso / BA (Abassá of Goddess
Oxum de Idjemim) from the perspective of two Yalorixás (Mothers of Santo) and one
Babalorixá (Father of Santo). It consists of an ethnographic research, using analyzes of

1Este artigo foi submetido e publicado na REVASF, Petrolina-PE, vol. 7, n.14, p. 89-107, dez., 2017
ISSN : 2177-8183
21

the content of the interviews of the religious authorities and how this has repercussions
in a ecology of the terreiros in the making of the rites and connections between the planes
of materiality and the spirituality associated with the representations of the orixás with
the kingdoms and elements from nature. In addition, there is an existential contribution
to children's participation in terreiros, characterizing a social process of learning and
transmission of knowledge for the maintenance or re-elaboration of religious cultural
traditions that pass from the oldest to the youngest.

Keywords: Children. Yalorixás. Babalorixá. Terreiros of Candomblé. Human Ecology.

INTRODUÇÃO

Ouvir as histórias de Mães e Pais de Santo (Yalorixás e Babalorixás) faz parte do


cotidiano dos povos de terreiros e acaba se firmando como ritual de aprendizagem dos
fundamentos do Candomblé pelos Filhos de Santo, também por conta da oralidade ter-se
mantido como o principal meio de partilha dos conhecimentos nas religiões de matrizes
africanas.
Prandi (2001) conta-nos em suas narrativas mitológicas que, um certo dia, nas
terras dos Povos Iorubás, um mensageiro chamado Exu, depois de muito procurar e ouvir
conselhos para as soluções dos problemas que assolavam a todos, tanto os homens quanto
os Orixás, reuniu 301 histórias e deu todo o seu saber a um adivinho de nome Orumilá,
que o transmitiu aos seus seguidores, Babalaôs ou Pais do Segredo. Apreendendo essa
rica narrativa, pretende-se, neste trabalho acadêmico, ouvir das autoridades de terreiros,
seus relatos quanto a participação de crianças no candomblé do Sertão.
Para os pesquisadores acaba sendo um privilégio acessar esses saberes, pois são
acolhidos em templos sagrados com as energias dos Orixás, Nkisis, Caboclos e
Encantados. É verdade que o encanto tem sua outra face: a peleja da missão, que é a
responsabilidade da resistência para a manutenção dos cultos nos Terreiros de
Candomblé. Soma-se ainda as obrigatoriedades peculiares dos rituais e os julgamentos
externos que resultam, em muito, em preconceitos, discriminação e intolerância.
O presente estudo imerge em um aspecto social que envolve crença e
aprendizagem nos processos de iniciação e participação de crianças em terreiros de
candomblé com a intenção de descrever as concepções humanas e ecológicas de três
lideranças religiosas em terreiros de cidades do interior no nordeste brasileiro. Os
conteúdos analisados são os de Mãe Maria de Tempo, do Terreiro Bandalecôngo, na
cidade de Juazeiro/BA; o do Babalorixá Adeilson Gomes, do Terreiro Ilê Dará Axé Omo
22

Logum Edé em Petrolina/PE e; da Yalorixá Edneusa Santos Souza (Mãe Edneusa), do


Abassá da Deusa Oxum de Idjemim.
É importante esclarecer que este trabalho também se apresenta como uma
reelaboração do artigo “A pele do orixá: infância, educação e ecologia nos terreiros de
candomblé e umbanda de Petrolina(PE) e Juazeiro(BA)2”, que discute processos de
aprendizagens e suas relações com a ecologia experimentados por crianças em terreiros
de candomblé e umbanda em Petrolina-PE e Juazeiro-BA, Sertão do Brasil e que foi
apresentado no II Congresso Internacional de Ecologia Humana em Paulo Afonso no ano
2014.

Figura 4 – Lideranças Religiosas - Em primeiro plano da esquerda para a direita: Mãe Maria de Tempo, Pai Dedé e
Mãe Edneusa (Arquivos do Autor, 2017)

MÉTODO: CAMINHOS DO CAMINHANTE

O estudo desenvolvido neste trabalho traz à tona a vivência dos candomblés como
um elemento da religiosidade popular que, ao longo do tempo tem sido estereotipado pela
visão colonialista como uma negação que invisibiliza o direito dos praticantes dessa
religião de exercerem-na como tal.
Partindo desse ponto inicial, a pesquisa etnográfica foi adotada como viés para o
desenvolvimento da investigação por aproximar o pesquisador da realidade em estudo,
mediante a experiência, demonstrada por Macedo (2015) como algo que não sucede, que

2Autores: Juracy Marques, Joaquim Novaes, Iva Miranda Pires, Kerly Mariana Marques Xavier, Wellington Amâncio
da Silva, Alzení de Freitas Tomáz, Robson Marques
23

nos implica e, portanto, nos afeta, nos toca, nos mobiliza e também nos impõe,
comprometendo-nos. Para ele a experiência nunca nos deixa indiferentes e a experiência
e a subjetividade não se separam na sua constituição.
Nesta perspectiva foram acessados três terreiros de Candomblé (Bandalecôngo
em Juazeiro/BA, Ilê Dará Axé Omo Logum Edé em Petrolina/PE e Abassá da Deusa
Oxum de Idjemim em Paulo Afonso/BA). As entrevistas realizadas com um Babalorixá
e duas Yalorixás foram do tipo semiestruturadas, com vinte perguntas que, em síntese,
indagam sobre a identificação e a identidade pessoal e dos terreiros, sobre particularidades
da religião, preconceito e discriminação, elementos da natureza e suas relações com o
humano e o sagrado, sobre o que fazem as crianças nos terreiros, instrumento sociais e
legais de iniciação e memórias da iniciação.
A incursão em campo, considerando os primeiros contatos, passou pela
permissão/autorização para a pesquisa e a efetividade das gravações das entrevistas,
observações dos rituais com registros em diário de campo e fotografias, compreendendo
um período de janeiro de 2017 a março de 2018.
Tomou-se por estratégia o estudo de caso, visto tratar-se de uma questão ainda
pouco explorada na região e pelo contexto do estudo que faz um recorte para evidenciar
a participação de crianças no candomblé do Sertão (OLIVEIRA, 2008). O fechamento
metodológico para as inferências deu-se pela análise de conteúdo, seguindo as possíveis
categorizações descritas por Bardin (2016). Especificamente, as respostas das entrevistas
foram organizadas em seis eixos temáticos pelos valores semânticos dos conteúdos. Estes
eixos estruturam os tópicos analíticos que fundamentam os resultados e a discussão do
estudo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para Pires e Craveiro (2014) a Ecologia Humana surge da necessidade de produzir


conhecimento para compreender a relação do homem com o seu ambiente e para
responder a interrogação de qual lugar o humano ocupa na natureza. Dizem ainda que
essa interrogação desafia também o pensar ético de um compromisso ecológico e
sustentável entre a espécie humana e as outras espécies, os recursos naturais e as formas
de ocupação do território, por eles implantadas.
Os encontros dos elementos dos cultos africanos com as particularidades das
gentes brasileiras, florescem nas pessoas que vivenciam os elementos da religiosidade do
24

candomblé no Sertão uma identidade própria e com múltiplas maneiras de manifestar-se.


Como o povo se porta perante os reinos animal, mineral e vegetal, bem como se relaciona
socialmente, incorre em consequências que vão além da crise ou estabilidade ambiental,
perpassando o comprometimento das ecologias e, particularmente, as ecologias humanas.
As Cartografias Sociais dos Terreiros de Candomblé e Umbanda do Sertão,
publicações do Projeto Nova Cartografia Social do Brasil e Nova Cartografia Social da
Bacia do São Francisco, que dão visibilidade aos Povos Tradicionais do país e estas,
especificamente, dos Povos de Terreiros de Paulo Afonso, Jaguarari e Juazeiro na Bahia
e Petrolina em Pernambuco, mostram também em imagens, crianças participando nos
ritos de dança, músicas, partilhas de alimentos e imolações de animais.
Para o Povo de Terreiro do Sertão esse envolvimento firma-se como manutenção
e/ou reelaboração da cultura, mas também como desafio de superação e resistência
perante as constantes críticas que partem principalmente daqueles que não são do
candomblé, mas que questionam a “maturidade infantil” para acessar as particularidades
ritualísticas da religião.

A Ecologia Humana nos Terreiros de Candomblé do Sertão

Marques (2014) considera a Ecologia Humana como uma Ecologia que coloca
gente nos ecossistemas, estuda suas relações e reflete suas consequências. Nos Terreiros
do Sertão Nordestino brasileiro essa relação se particulariza e Mãe Maria de Tempo,
Yalorixá do terreiro Bandalecôngo, nos apresenta uma associação religiosa dos homens
com seus deuses intrinsecamente relacionada aos elementos do meio ambiente e a
natureza, dizendo-nos que tem tudo a ver porque o Orixá é a natureza e que:

Sem a natureza, sem as plantas, a gente não vive! Sem os animais, sem
o canto dos pássaros... A gente tem que cuidar. E no candomblé a gente
tem que saber a hora de fazer um banho. Tem que saber a hora de colher
aquela folha que vai precisar para aquele banho, se naquela hora exata
tá podendo pegar aquela folha ou não. Tem folha, tem ervas que a gente
planta lá na beira do rio. Planta aquela erva que é pra estar ali sempre
que a gente procurar. Se a gente não tem espaço dentro do terreiro, tem
que ir lá e plantar que é para quando a gente for procurar, precisar
daquela erva, a gente ter. Eu tenho costume de fazer isso com meus
filhos. A gente planta lá na beira do rio porque, destá, a natureza cuida.
Então a ligação é muito forte do Candomblé com as ervas e com os
animais. O Candomblé sem as ervas e sem os animais não é nada. Acho
que as pessoas sem as ervas, sem o candomblé, elas não existiriam,
porque tem tudo à ver (MÃE MARIA DE TEMPO, 22/07/17).
25

Para essa perspectiva de interação parece pertinente ouvir Pires e Craveiro (2014)
que assentem que a Ecologia Humana surge da necessidade de produzir conhecimento
para compreender a relação do homem com o seu ambiente, para responder a interrogação
de qual o seu lugar na natureza. Os autores julgam que essa interrogação desafia também
o pensar ético de um compromisso ecológico e sustentável entre a espécie humana e as
outras espécies, os recursos naturais e as formas de ocupação do território.
O Babalorixá do Ilé Dará Axé Omo Logum Edé, Adeilson Gomes (Pai Dedé),
também faz suas associações sobre a relação homem, natureza, religião e meio ambiente,
discorrendo que antigamente fazia muitos trabalhos em lugares como cachoeira, rios e
beira de mar, deixando, além das oferendas, também utensílios de vidro, barro e até metal,
mas que atualmente reflete, corrige sua conduta e tece suas criticas a este respeito:
Tem pessoas que levam balaios com vidros de perfumes, garrafa de
champanhe dentro dos balaios e jogam dentro do rio e eu não concordo
com esse tipo de atitude de alguns Babalorixás, Mães de Santo, etc. Eu
gosto de fazer minhas oferendas e lá eu coloco, mas os utensílios que
são usados, que são de metais ou de barro ou de vidro eu trago de volta.
Todas as vezes que eu vou na beira do rio que eu vejo alguma coisa lá
que eu vejo que a natureza vai passar centenas de anos para destruir, eu
pego e trago de volta para a minha casa. Não sei quem colocou, mas eu
trago de volta. Porque os peixes irão comer a comida, as sementes
cozidas, tipo, feijão. Alí, as criaturas que estão lá dentro, os seres vivos
que estão lá dentro, vão comer aquela comida que eu depositei lá,
simbolizando os Orixás e tudo. Agora vidro, perfume, sabonete eu não
gosto de colocar dentro dos rios. Não gosto de acender velas em matas
porque é um perigo. Eu peço Agô3 e tento fazer o possível para não
fazer esse tipo de coisa porque eu sei que existem muitos incêndios e
acabam com a natureza e tudo enfim (PAI DEDÉ, 26/07/17).

No fluxo ideológico no qual, holisticamente, integramos um organismo em


interação constante, a relação entre o comportamento humano no Universo, suas
consequências e o Candomblé é descrita por Mãe Edneusa, do Abassá da Deusa Oxum
de Idjemim, como uma condição que passa despercebida a percepção de muitos seres
humanos, porém que ela enxerga a natureza como fundamental para a sua religião. O olha
da Yalorixá é o de que:

De todos os elementos da natureza o homem precisa, o homem não


sobrevive sem, mas tem uma visão errada sobre a natureza. Às vezes a
ignorância cega as pessoas e você não vê que aquilo que você menos dá
valor é o que tem grande importância: a mata é importante porque a
gente já tem os nossos Orixás que pertencem às matas e temos as nossas
oferendas, que a gente precisa da mata e que a força que a gente precisa
vai buscar dentro dela. A gente precisa deste lugar para se abastecer,

3Agô é um termo em ioruba que significa pedir licença ou permissão.


26

para nos fortalecer. Tem vários Orixás das matas: tem os caboclos, tem
os encantados, tem Ossaim, que é das matas, tem Oxossi. Tem deles
que pertencem tanto às águas quanto às matas, q’nem Logum Edé que
é um que pertence ao rio e pertence às matas. Eu, na minha teoria, digo
que todos pertencem a todos os elementos, mas só que tem aqueles que
são o foco. Muitas coisas eu associo à medicina. Digamos: tem o
cirurgião que ele é para tudo, mas tem deles que é especialista só
naquilo. Tem Orixá que é especialista só nas matas, mas isso não deixa
de ele pertencer aos outros locais (MÃE EDNEUSA, 15/07/17).

Vale recorrer a compreensão de Tomaz (2014) quando nos diz que os terreiros de
candomblé e outras vertentes religiosas não são apenas locais de ritos espirituais, mas
também, tradicionalmente, áreas de cultivos de ervas medicinais e por isso os movimentos
afrorreligiosos entram, ainda, na luta pela preservação ecológica.
As vozes das lideranças do Sertão são irmanadas ao discurso de Mãe Palmira de
Yánsàn, Yalorixá do Terreiro Ilé Omo Oya Leji, na Baixada Fluminense – RJ, dizendo
que o Candomblé vai contra a lógica que destrói o planeta e que esta religião lida com os
quatro elementos da natureza (ar, fogo, terra e água) e com os três reinos (vegetal, mineral
e animal), formadores da força dinâmica que tudo move e que tudo anima, o Axé
(CAPUTO, 2012).
Essa conexão de diálogos reelabora sentidos que podem ser entendidos como uma
cooperação de esforços na tentativa de estabelecer um ecossistema em equilíbrio,
particularmente nas práticas ritualísticas do candomblé no Sertão, visto os cuidados
dispensados aos elementos da natureza, presentes nos conteúdos das falas aqui analisadas,
contemplando a essência de uma ecologia humana que, pela especificidade da relação
também com os orixás e caboclos, pode assumir uma concepção de Ecologia Humana dos
Terreiros.

Crianças nos Terreiros e a (re) elaboração dos sentidos da sua participação no


candomblé do Sertão

Corsaro (2011) nos diz que crianças são agentes sociais, ativos e criativos que
produzem suas próprias culturas infantis, enquanto, simultaneamente, contribuem para a
produção das sociedades adultas. Este mesmo autor infere que a infância é uma forma
estrutural, num período socialmente construído, possibilitando que as crianças vivam suas
vidas e que, enquanto forma estrutural, a infância é uma categoria ou uma parte da
sociedade, como classes sociais e grupos de idade nos quais são membros ou operadores
de suas infâncias. Ele ainda nos revela que para a própria criança a infância é um período
27

temporário, mas que, para a sociedade, a infância é uma forma estrutural permanente ou
categoria que nunca desaparece, embora seus membros mudem continuamente e sua
natureza e concepção variem historicamente.
As Yalorixás e o Babalorixá nordestinos imergiram nas delicadezas e intimidades
de suas vidas para descreverem as histórias das suas missões ritualísticas e ancestrais até
chegarem a condição de Mães e Pai de Santo, em situações que se assemelham às histórias
e às condições de iniciação porque passam (ou passaram) seus Filhos de Santo ainda
crianças, numa elaboração infantil muito particular das religiões afro-brasileiras, neste
caso, nos terreiros de candomblé do Sertão Nordestino.
Dizendo-nos que sua relação com a espiritualidade, mais especificamente com o
Orixá Tempo, teve início aos sete anos de idade ao vivenciar sensações estranhas sem
causa aparente e incompreendidas pelos familiares, com tonturas e desmaios constantes,
inclusive em sala de aula, Maria da Paixão (Mãe Maria de Tempo) descreve como acessou
pela primeira vez o seu guia de cabeça:

Eu tinha sete anos, só que meu pai não sabia o que era. Antes de
completar quatorze anos, o som do atabaque me chamou. Fui fazer uma
visita no antigo Abassá de Xangô, hoje é o Onyndancor, e nesta visita
foi o meu começo de tudo. Eu, como criança, já ouvia o povo falar e,
do nada, com o som do atabaque a me chamar, esse Orixá me jogou no
chão e saiu bolando4 o chão todinho. Quando eu cheguei lá tomei a
bênção ao meu padrinho e me sentei. Ele começou a cantar lá os
negócios dele, e quando começou a cantar para Tempo, dizem que eu
não pulei, eu voei de lá do lugar que eu estava e fui cair num canto
bolando. Desse tempo para cá ele não me deixou mais (MÃE MARIA
DE TEMPO, 22/07/17).

Kileuy e Oxaguiã (2011) relatam que a iniciação no candomblé exige do iniciado


muita abnegação, amor e tolerância, para seguir a religião que escolheu para guiar e reger
a sua vida. Contam também que o orixá do iaô5 é convocado no ritual denominado bolonã
(bantu), odaê (ioruba) ou adarrum (fon), num momento delicado, pois o iaô até então não
entrara em transe e por isso se sente melindrado e até meio assustado com o desconhecido.
Ele (iaô) está sensível, já induzido pelos vários preceitos realizados, com o corpo
preparado física e divinamente, tornando assim mais fácil a possessão do orixá.

4 Momento em que a divindade incorpora naquele que escolhera para reger a vida, normalmente não esperado por
quem é acometido, mas que sinaliza o início de uma relação do humano com o sagrado.
5 O Iaô é um/uma iniciado/a que se comprometeu em aprender e seguir as normas de conduta e orientação da religião

dos orixás
28

É importante destacar que nos terreiros desta pesquisa a expressão mais comum
é “bolar no santo” e que das análises dos conteúdos das falas dessas lideranças religiosas
do Sertão, extrai-se que a inserção na religião deu-se, inicialmente, de forma inesperada,
indesejada e/ou pela busca da cura de enfermidades/doenças que os acometiam.
Da Cartografia Social dos Terreiros de Candomblé e Umbanda de Petrolina/PE e
Juazeiro/BA6, publicada em 2015, foi acessada a história em que Pai Dedé, além de relatar
as incertezas iniciáticas, descreve suas sensações enquanto criança:

Eu não sabia, ao certo, se ia ser Babalorixá. Há muita gente que escolhe


ser Babalorixá e outros são escolhidos. A primeira visão minha foi
muito novinho, acho que eu tinha sete anos. Tinha uma Mãe de Santo
aqui chamada Mãe Cisinata, em Petrolina, e eu fui assistir uma festa de
Cosme e Damião; me colocaram nessa mesa eu pequenininho e, depois
dessa mesa, uma das divindades lá me levantou e me rodou, eu lembro
nitidamente, e falou algo para pessoa responsável que tinha me levado
e aí me despertou a vontade de começar a frequentar, mas eu só vim
fazer minha cabeça7 em 1995. Dei minha cabeça pra Logum Edé num
Axé lá de São Paulo, num terreiro de Ketu. (MARQUES e NOVAES,
2015, p.183-184)

Também a Yalorixá Edneusa, filha de Oxum com Oxossi e Yansã, cuja a djina8 é
Idjemim9, nesse ciclo em que as autoridades religiosas descrevem suas experiências
iniciais, enquanto crianças e também tendo os sete anos como idade ápice dos
acontecimentos, resume a história do seu processo de iniciação relatando que achou sua
infância difícil porque sua mãe sempre foi médium e desta mediunidade fazia muitas
travessuras. E conta-nos que:

Eu comecei a criar do candomblé um arripuno porque se candomblé


fosse aquilo, eu não ia gostar de candomblé. Então foi uma infância que
foi meio cheia de altos e de baixos também porque eu tinha um Egún10
Exu que queria sempre estar me dominando. Quando ele (Egún)
chegava que me dominava, eu saía de mim. Aí ele dominava os meus
sonhos. Quando ele chegou em mim, eu tinha sete anos de idade, ele
queria me dominar e ser meu dono. Depois de sete anos de eu feita

6 Publicação da série Candomblé e Umbanda no Sertão, realizado pela Editora SABEH em 2015 do Projeto Nova
Cartografia Social do Brasil e Nova Cartografia Social da Bacia do São Francisco
7 Iniciar na religião seguindo os ritos de recolhimento e feitios para apreender os ensinamentos e fundamentos religiosos

do candomblé sob a orientação de divindades, orixás específicos que o regerá.


8 O novo nome dado pelo Orixá depois do nascimento/feitura no candomblé.
9 Este é o nome da Yalorixá no candomblé.
10 Caputo descreve Égún – Egun – como sendo espíritos ancestrais (mortos) que, em cultos específicos, assumem

formas corporais (CAPUTO, 2012).


29

apareceu a Jurema11 e eu também já tinha uns preparos. Aí eu fiz um


quarto, comecei em casa e depois eu não abandonei o candomblé. O
primeiro começo do Abassá não foi com a Oca12 da Jurema. Eu comecei
brincar no relento, mas a mentora de tudo, mesmo sem Oca, foi a
Jurema (MÃE EDNEUSA, 15/07/17).

A pesquisadora Estela Guedes Caputo, da sua dedicação aos estudos que


relacionam crianças, educação e terreiros no Rio de Janeiro, diz-nos que nas comunidades
de terreiro existem inúmeras crianças e adolescentes e que:

Elas ou são da família do pai ou da mãe de santo ou estão ligadas aos


filhos e filhas de santo dos terreiros. Assim como os adultos essas
crianças são iniciadas no candomblé, desempenham funções
específicas, recebem cargos na hierarquia dos terreiros e manifestam
orgulho de sua religião (CAPUTO, 2012, p. 33).

Para este estudo buscou-se também, das lideranças religiosas, a descrição dos
sentidos que marcam o envolvimento, bem como os processos de aprendizagens, aqui
chamado de participação, das crianças iniciadas em seus terreiros. No Terreiro
Bandalecônco a pertença é marcada também pelos laços familiares, pois a Yalorixá Maria
de Tempo é mãe de Naian – criança de dez anos, iniciado aos seis anos - e avó paterna
de Kerlen, de oito anos de idade e iniciada aos setes anos.
O pai de Naian e esposo de Mãe Maria de Tempo não é iniciado, mas convive
harmoniosamente com os fundamentos e vivências da religião, visto que todos os seus
filhos (duas mulheres e dois homens, incluindo a criança Naian) são diretamente
envolvidos. Também os pais e a avô materna de Kerlen são de terreiro: o pai é Ogã, a
mãe é Mãe Kota a avó Mãe Pequena do Bandalecôngo. Constata-se, portanto, uma
religião caracterizada pela extensão da família e que naturalmente têm este espaço como
um lugar de aprendizagem e educação informal, pois Mãe Maria também costura, cozinha
e faz uso das ervas em comunhão familiar.
No Ilê Dará Axé Omo Logum Edé, de Pai Adeilson, foi possível constatar muito
da presença familiar como uma condição natural em que os ensinamentos são
transmitidos pela oralidade dos mais velhos para os mais novos ,numa cadeia contínua e
hierárquica onde o pai Ogã estende seu ofício ao filho, ensinando-o os toques nos
atabaques e como lidar com os animas durante os rituais de imolação e as mães também

11 Mãe Edneusa descreve a Jurema como sendo uma cabocla muito considerada, cheia de muito Axé, sagrada e de
muita caridade.
12 Espaço sagrado onde estão os fundamentos da Jurema e onde acontecem os ritos de atendimento.
30

às suas filhas quando dos cuidados com a limpeza, o preparo dos alimentos e os
ensinamentos dos fundamentos e as danças, enquanto Ekedi, Mãe Kota ou Mãe Pequena.
Também no Abassá da Deusa Oxum de Idjemim é marcante a presença de famílias
participando das atividades. Da família da Yalorixá, com exceção de dois filhos e o
esposo que não são iniciados, todos os seus outros três filhos (e também os filhos de santo
que inclui a adolescente Letícia – Abiã e filha de Euziane, Iaô do terreiro) a acompanham
na religião aprendendo os seus ensinamentos.
A Yalorixá do Terreiro Bandalcôngo revela-nos:

Eu deixo a diretora do colégio bem a par do que é aqui, o que significa.


Ela já veio fazer uma prova com uma pessoa aqui dentro do terreiro.
Então eu deixo bem ciente do que faço e o que não faço aqui dentro.
Algumas coisas que eu posso dizer a ela. Então quando vai acontecer
qualquer coisa, eu explico pra ela, porque meu menino Naian já chegou
falando, tanto ele quanto Kerlen, minha neta, que as crianças chamam
eles de macumbeiros. “Não encoste perto dele porque ele é
macumbeiro13. Eu vi Naian lá na casa da mãe dele, ele é macumbeiro”.
Kerlen raspou a cabeça, foi para a escola de toquinha e sempre
perguntavam por que ela não tirava a touca. Então ela foi e disse: não,
não tem problema não, vocês querem ver? Aí foi e tirou: “olha aí ó, não
tem nada demais. Aqui é cabelo, cabelo um dia vai crescer. Vai ficar
tudo de novo, meus cachinhos vão voltar todos de novo” (MÃE
MARIA DE TEMPO, 22/07/17).

O Babalorixá Adeilson (Pai Dedé) já havia dado, em 2015 na Cartografia do


Terreiro de Petrolina, um testemunho sobre discriminação:

Já sofri várias. Algumas famílias de pessoas evangélicas e católicas não


aceitam, por ignorância, por eles não saberem praticamente nada sobre
o candomblé, eles acham que a nossa religião é voltada pra maldade,
pro negativo. E fica difícil a gente discutir o candomblé com pessoas
que não sabem o que ele é, porque a gente vai falar uma coisa e eles vão
interpretar outra, então, pra discutir candomblé tem que estudar
candomblé. Eu não discuto candomblé com evangélico, com católico,
com pessoas que não entendam (MARQUES e NOVAES, 2015, p.194).

E Mãe Edneusa evidencia um fato ocorrido na sua casa:

Meu menino Edmilson, que toca, é Ogã, o Alabê, ele nunca deu valor a
preconceito. Ele ia para escola, o povo xingava e ele não ligava. Mas
em compensação o outro filho meu que entrou, que era mais velho do
que ele, não gostou porque ele sentia vergonha quando o povo xingava
que eu era macumbeira: “filho de macumbeira!” Aí então ele terminou

13Termo utilizado, com frequência, como práticas das religiões afro-brasileiras pejorativamente (CAPUTO, 2012).
31

saindo. Ele saiu tinha doze anos de idade. Ele era Ogã de Oxum. Eu
ainda fui lá mais Alzeni, nós dissemos coisas: que isso não era certo,
que a escola não era para ensinar a ter preconceito. Então nós fomos e
a diretora garantiu que não ia mais acontecer. Mas quando garantiu, o
menino até a escola largou. Não queria ir mais. E tocava bem viu!?
Tocava melhor do que o outro. Agora se você me chamar: “vamos para
um debate sobre a discriminação!?” O que eu puder fazer eu faço, eu
vou. Eu gosto mais de debate porque se eu puder dar uma palavrinha,
mostrar para as pessoas que o Candomblé não é esse bicho que as
pessoas pintam e que elas têm a oportunidade de ver para poder falar,
eu falo e abro as minhas portas para elas verem o que é a religião
Candomblé (MÃE EDNEUSA, 15/08/17).

Para Oliveira e Almirante (2017) há um intenso processo de aprendizagem no


terreiro que é pensado principalmente como uma forma de “transmissão cultural” dos
adultos para as crianças, baseados no que diz o Babalorixá Valmir Mitaquassy, sujeito de
sua pesquisa, pois para este Pai de Santo o terreiro também é uma escola e que tem tempo
para aprender tudo e o que se tem para fazer cada um vai fazer, incluindo desde o cuidado
com a mobília e com os objetos do terreiro, aos afazeres domésticos e religiosos.
Os mesmos autores evidenciam que, na percepção dos adultos, as crianças são
seres em transição, e que para que essa transição se faça completa é necessário que um
adulto guie a aprendizagem das crianças, sem embargo, resultando num intenso processo
de aprendizagem horizontalizado entre as crianças.
Para as bandas do Sertão as crianças que vivenciam a musicalidade, as danças, os
ritos de preparação de alimentos e de acesso à espiritualidade, numa conexão entre o ser
consciente e o sagrado e que reelabora seus sentidos, portanto, que participam da
religiosidade dos terreiros de candomblé e que aprendem nestes espaços informais de
ensino também brincando, têm na leveza das suas infâncias, a atenção e o cuidado das
autoridades religiosas.
Mãe Maria de Tempo nos relata que a criança dentro do terreiro “representa muita
alegria e que ela tem que estar bem educada, tem que estudar”. Evidencia uma infância
adulta quando nos relata que ela (a criança) “tem que saber a hora de brincar e tem que
ter um pouquinho de responsabilidade”. E cria expectativa quando projeta nesta criança
o adulto que, pelos estudos, “um dia vai se formar e ajudar o próprio terreiro”. E acerca
dos cuidados, fala-nos que não é de todos os rituais que as crianças podem participar e
que o sacrifício de animais é um deles:
O sacrifício de animais a gente não faz para a criança ver porque a gente
tem o medo. Pelo menos aqui no meu terreiro. Porque no sacrifício dos
32

animais tem o sangue, que o sangue é a força. O sangue é a vida, a vida


de tudo. A gente usa o sangue dos animais em tudo no Axé14. Então este
sangue é que a gente não passa na criança totalmente. A gente pega uma
folha e é por cima da folha que a gente bota esse sangue pra não botar
em cima da criança e ela se assustar (MÃE MARIA DE TEMPO,
22/07/17).

A Yalorixá retrata-nos as condições de participação das crianças Naian e Kerlen,


respectivamente filho e neta no seu terreiro, alertando-nos que os papeis das crianças
ainda não estão bem definidos, mas a convivência com os ritos e fundamentos (o processo
de ensino e aprendizagem nos terreiros) os conduzirão para seus cargos:

Para Naian eu joguei15 (búzios) e vi que futuramente ele ia precisar.


Então eu já comecei. Conversei com meu marido, e Naian é o xodó.
Aqui ele faz tudo. Ele ajuda, ele toca. Se ele quiser entrar no Xirê16 e
quiser dançar e participar da dança ele pode dançar, se ele quiser cantar
o Xirê ele pode cantar. Então Naian é o faz tudo. E a netinha é porque
tinha tendência mesmo. Kerlen é adrenalina pura. Ela está sendo
preparada para, mais tarde, ser a Mãe Pequena17 Geral do Terreiro que
hoje o cargo é da avó materna dela. Em Naian e Kerlen a gente não
colocou faixas neles porque, em algum momento, futuramente, o Orixá
pode vim a incorporar neles (MÃE MARIA DE TEMPO, 22/07/17).

Foi preciso atenção e muito cuidado ao analisar os conteúdos das falas das
autoridades para não incorrer em generalizações, pois mesmo em se tratado de uma
mesma religião, cada terreiro apresenta suas particularidades e especificidade ritualística
na condução quando da participação de crianças (ensino e aprendizagem dentro dos
terreiros). Atentos a esta condição do Babalorixá Adeilson (Pai Dedé) ouviu-se que “em
Petrolina e em São Paulo, na casa de meu Pai Cido de Oxum é comum, pois a mãe é mãe é feita,
o pai é feito, aí os filhos acompanham” e que no seu terreiro:

Uma filha de santo minha incorporou quando ela era criança. Quando
foi iniciada, ela não manifestava e eu falei para todo mundo: “gente,
futuramente esta menina vai manifestar, ela vai entrar em transe. Olhei
no meu jogo de ifá e eu tenho certeza que ela vai incorporar
futuramente”. Porque quando uma pessoa não manifesta, muitos
Babalorixás, Mãe de Santo, Pai de Santo, iniciam como Ekedi ou Ogã.

14Trata-se da força, do poder, da energia considerada nos terreiros. (CAPUTO, 2012).


15
Referindo-se ao ifá, ao jogo de búzios. Ela jogou os búzios para ver o destino de Naian no candomblé.
16 É comum empregar a palavra Xirê como sinônimo de Gira. (Disponível em:
http://paipedrodeogum.blogs.sapo.pt/21407.html).
17 Mãe Maria de Tempo explica que a Mãe Pequena no terreiro orienta, aconselha, guarda os segredos da Yalorixá.
Diz ser a pessoa de total confiança do terreiro. E que Kerlen um dia assumirá esta responsabilidade.
33

E aí não deu outra. Passaram três anos de iniciação e incorporou de


Iemanjá (PAI DEDÉ, 26/07/17).

Para Pai Dedé “a participação de crianças e velhos na religião cria um pouco mais
de respeito e credibilidade”. Para ele “onde tem criança e idoso, pode escrever que lá é
um lugar sério”. Quanto aos cuidados para que os fundamentos do candomblé sejam
aprendidos de forma sadia pelas crianças é enfático aos relatar que os adultos devem
servir como modelo e discorre:

Existem festas de Pomba Gira e Exu que gira muita bebida alcóolica e
cigarros, muito fumo. Então para uma criança, presenciar essas atitudes,
dessas entidades, eu acho que prejudica. É como se estivesse induzindo
a criança a ser futuramente uma pessoa alcóolatra, a beber, a fumar e aí
eu não sou muito de acordo. Eu acho que se tiver uma festa de Pomba
Gira, de Exu, entidade, a gente tinha que evitar que as crianças
participassem, mas não é porque ia fazer mal espiritualmente, mas no
sentido de, talvez, induzi-las futuramente. Então tem que ter este lado
de educação mesmo desde criança (PAI DEDÉ, 26/07/17).

E o Babalorixá sintetiza o sentido da participação da criança no Candomblé


sertanejo dizendo-nos que:

A religião não pode parar, então quando a gente inicia crianças é sinal
que futuramente vai passa de geração para geração. Eu acho que é uma
continuidade para o futuro porque se a gente não tiver criança no
candomblé, na religião, ela vai se acabando. E eu acho que a gente tem
que passar alguns ensinamentos para elas para que as coisas não se
percam como já se perdeu muito. Que a religião era muito escondida,
muitos segredos. Todas as crianças que vão na minha casa presenciam
Borí18, Orôs, que são as imolações dos animais na casa e eles veem isso
com toda naturalidade, não têm medo de nenhum animal, nenhum
cabrito, nenhum pato, nenhuma galinha. Eles amam (PAI DEDÉ,
26/07/17).

Ficam claras as distinções, principalmente quanto ao acesso aos ritos de


imolações, sacrifícios de animais e contato com o sangue entre as concepções das duas
autoridades religiosas (Mãe Maria de tempo e Pai Dedé). Porém respeitadas sua
particularidades vê-se que em comum está o cuidado e a atenção à criança e sua infância,
para que possa participar/aprenderem salutarmente.

18É a obrigação primeira para a iniciação (SANTOS; FERNANDES, 2009).


34

Ainda no propósito da (re) elaboração dos sentidos da participação de crianças nos


terreiros de candomblé do Sertão, sob o olhar das lideranças religiosas, a Yalorixá
Edneusa fala que suas filhas de santo levam suas crianças par o Abassá e que é bom vê-
las crescerem no candomblé brincando e aborrecendo, pois, as crianças:

Conversam e copiam tudo que as mães fazem. É engraçado. O que eu


passo para as meninas é que as crianças têm que vim, as crianças têm
que participar, agora as mães têm que cuidar das suas crianças porque
tem momento na religião que as crianças não podem estar presentes. E
isso, as mães têm de tomar de conta. Na hora de Exu as crianças têm
que sair do barracão, não podem ficar no barracão porque é o momento
de Exú e ele não gosta muito de criança. Tem curas que as crianças não
podem participar. Tem momentos que a gente tem que proteger, que eu
vejo isso como uma proteção.

Eu acho que um líder cria seu povo, a sua fé. Então eu vejo e passo para
os meus filhos de santo que a criança tem que vim, mas você não tem
que obrigar ela a ser aquilo que ela não quer ser. Eu acho que ela só
pode decidir quando ela estiver adulta. Se ela ver que essa religião que
ela frequentou é boa para ela, tudo bem, ela fica. E outra coisa que eu
não gosto é quando a mãe induz a criança a fazer aquilo. Eu acho que
ela tem que fazer espontânea, se ela quiser (MÃE EDNEUSA,
15/08/17).

Faz-se pertinente retomar Oliveira e Almirante (2017) quando eles destacam, da


sua pesquisa, que no candomblé ocorrem processos não formais de aprendizagem, numa
dimensão lúdica como elemento central na prática educativa das crianças do terreiro e
que essas crianças, ainda que bastante invisibilizadas pela literatura que aborda as
religiões afro-brasileiras, são sujeitos ativos, agenciadores e produtores de cultura.
Também que o agenciamento dos adultos não direciona completamente os processos de
aprendizagem, nem mesmo os comportamentos das crianças no espaço dos terreiros e que
a brincadeira, que é compreendida como uma oposição às “coisas sérias do santo”, não
se opõe na agência infantil.
Respeitadas as particularidades e como cada liderança lida com a participação de
crianças em seus terreiros nas cidades de Paulo Afonso/BA, Juazeiro/BA e Petrolina /PE,
vê-se que, em comum, há nos ritos do candomblé o processo educativo de
formação/aprendizagem nesses espaços não formais de ensino e que podem ser acessados
tendo a alegria das brincadeiras como parte de todo o processo educativo e religioso.
35

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O acesso às experiências religiosas de povos tradicionais, particularmente os de


terreiro do Sertão, através do contato direto, indo a campo, entrevistando e realizando
análises de conteúdo tornou possível inferir que as lideranças/autoridades religiosas
sertanejas consideram as relações ecológicas dos terreiros estudados como resultado da
interação com o meio ambiente quando da realização de trabalhos/rituais em ambiente de
matas, águas, encruzilhadas, dentre outros, mas que deve-se atentar para o uso de matérias
e utensílio que não poluam, degradem ou provoquem incêndio ou outros danos, a
exemplo, de garrafas de vidro ou plástico, bem como redobrar a atenção quando da
necessidade de acender velas nas matas.
Foi possível também considerar a sacralidade do sangue quando do sacrifício de
animais e que os rituais e as manifestações aparecem como necessários para estabelecer
as conexões e relações entre o estado humano comum e consciente e o transe, ligando
mundos e deuses de planos distintos numa espécie de sincronização de energias e forças
na representatividade dos Orixás em cada elemento da natureza como aporte humano
subjetivo de poder. Por exemplo, a pessoa que incorpora Oxossi tem uma relação direta
de poder e cuidado com as matas e a caça; aquele (a) que acessa Oxum se conecta com
as forças e energias das águas e da fertilidade; já em Xangô, é o poder do fogo e da justiça
que o arrebata; e com Ossaim a ligação se dá também pela cura com as ervas e as folhas.
A participação de crianças nos Terreiros de Candomblé no Sertão Nordestino
brasileiro é considerada pelo Babalorixá e pelas Yalorixás das cidades de Juazeiro/BA,
Petrolina/PE e Paulo Afonso/BA, aqui entrevistados, como de fundamental importância,
por se tratar de um fenômeno social, comunitário e familiar natural para a manutenção,
renovação e/ou reelaboração das tradições religiosas de um povo. E que não haveria
espetacularidade nas iniciações de crianças nos terreiros se não fossem os olhares
distorcidos dos que julgam, discriminam e são intolerantes.
E que essa participação incorpora um sentido que vai além do estar presente e
assume, portanto, uma condição de possibilidade de aprendizagem pelo acesso aos
fundamentos da religião que envolvem elementos como instrumentos musicais (tocar os
atabaques, agogô), confecções de roupas, paramentas e contas (costurando e/ou reparando
as vestimentas), o movimento (expressão corporal pela dança), preparo de alimentos (da
imolação aos cuidados na feitura das comidas típicas), dentre outras formas que tão
36

particularmente são possíveis nos terreiros que se firmam como espaços informais de
educar.
Por fim, deve-se considerar que o trabalho aqui realizado não dá conta das
demandas incorporadas pela temática Lideranças Religiosas e as crianças nos Terreiros
de Candomblé do Sertão do Brasil, o que pressupõe mais empenho em novas empreitadas
e com mais profundidade.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.


CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros e como a escola se relaciona com
crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: PALLAS, 2012.
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Iorubá e Fon. BARROS, Marcelo (org.). Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

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experienciais. Curitiba-PR: CRV, 2015.
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SERTÃO: Cartografia Social dos Terreiros de Candomblé e Umbanda de
Petrolina/PE e Juazeiro/BA. Paulo Afonso: SABEH, 2015.
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candomblé e umbanda de Petrolina(PE) e Juazeiro (BA). II Encontro Internacional de
Ecologia Humana. Paulo Afonso/BA, 2014.
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aprendizagem: um olhar sobre a infância no candomblé. Estudos de Religião, v. 31, n. 3
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PIRES, Iva Miranda; CRAVEIRO, João Lutas. Ética e Prática da Ecologia Humana:
Questões introdutórias sobre a ecologia humana e a emergência dos riscos ambientais. In:
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PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia da Letras, 2001.
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TOMAZ, Alzeni de Freitas. Direito e Ecologia dos Povos e Comunidades


Tradicionais: Ensaio sobre o Etnodireito. In: MARQUES, Juracy (Org.). Ecologias
Humanas. Feira de Santana: UEFS Editora, 2014, 393-417.
38

Artigo 2

FILHOS NOS TERREIROS COM AS BÊNÇÃOS DO PAI E DAS MÃES

Robson Marques dos Santos19


Luciano Sergio Ventin Bomfim20
Marcelo Silva de Souza Ribeiro21

Figura 5 – Pai e Mães de Crianças de Terreiro com seus respectivos filhos - Da esquerda para a direita: Euziane
(mãe) e Leticia (filha), Antônio (pai) e Davi (filho), Nadiane (mãe) e Kerlen (filha) (Arquivos Robson Marques).

RESUMO

Este artigo descreve como se dá a interação entre pais e filhos nos processos de ensino e
de aprendizagem dos saberes e conhecimentos religiosos (participação) de duas crianças
e uma adolescente de três Terreiros de Candomblé em três cidades do interior do Sertão
do Brasil, sob a perspectiva do pai de uma criança Ogã, da mãe de uma criança Iakekerê
e da mãe de uma adolescente Abiã, que vivenciam a cultura religiosa afro-brasileira no
nordeste. O presente trabalho é fruto de uma pesquisa etnográfica, que se valeu da análise
de conteúdo de entrevistas semiestruturadas. Para sua execução foi empreendido um
estudo de caso com anotações em diários de campo, gravações em áudio e registros
fotográficos. Após análises e categorização das falas dos entrevistados, inferiu-se que o
pai e as mães compreendem as vivências que seus filhos acessam nos terreiros como
processos estruturantes de ensino e aprendizagem imbricados de valores éticos, morais,
ecológicos, ambientais e humanos.

Palavras-chave: Crianças e adolescente. Terreiro de Candomblé. Pai e Mães de Crianças


de Terreiro. Saberes. Ecologia Humana.

19 Mestrando em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – PPGEcoH/UNEB Campus III. Servidor Público –
Assistente de Alunos no IF Baiano campus Senhor do Bonfim/BA. E-mail: robsonmarquesambiente@yahoo.com.br
20 Prof. Orientador do Programa de Mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – Doutor em Filosofia

pela Universitaet Gesamthochschhule Kassel.


21 Prof. Coorientador do Programa de Mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – Doutor em Ciências

da Educação – Université du Québec à Chicoutimi/ Université du Québec à Montréal.


39

ABSTRACT

This article describes how the interaction between parents and children in the process of
teaching and learning the knowledge and religious knowledge (participation) of two
children and one adolescent from three Candomblé Terreiros of three cities in the
hinterland of the Sertão do Brasil, from the perspective of a father of a child Ogan, a
mother of a child Iakekerê and a mother of a teenager Abiã, experience the Afro-Brazilian
religious culture in the northeast. The present work is the result of an ethnographic
research, which was based on the content analysis of semistructured interviews. For its
execution a case study was carried out with notes in field diaries, audio recordings and
photographic records. After analysis and categorization of the interviewees' speeches, it
was inferred that the father and the mothers understand the experiences that their children
access in the terreiros as structuring processes of teaching and learning imbricated of
ethical, moral, ecological, environmental and human values.

Keywords: Children and adolescents. Terreiro de Candomblé. Father and Mother of


Children of Terreiro. You know. Human Ecology.

INTRODUÇÃO

Para Caputo (2012) um terreiro é construído de muitos espaços cheios de


significados em que é possibilitado ao pesquisador entrar em alguns, mas não em todos.
No curso deste trabalho alguns espaços sagrados foram acessados e deles foram feitos
registros em imagens e realizadas entrevistas e anotações em diários para descrever as
manifestações das realidades que envolvem a participação de crianças e adolescentes no
candomblé do sertão.
Na cidade de Juazeiro, norte da Bahia, distante aproximadamente 500 km da
capital Salvador, o espaço sagrado e que permitiu a incursão para a pesquisa foi o Terreiro
Bandalecôngo de Mãe Maria do Tempo, no Bairro Palmares I. Neste templo de
divindades em que o Orixá Tempo é o regente maior, a entrevista foi realizada com
Nadiane, Mãe Kota e mãe da criança Kerlen Vitória de oito anos de idade.
Em Petrolina, cidade pernambucana separada de Juazeiro pelo Rio São Francisco
e unidas pela Ponte Presidente Dutra, do Terreiro Ilê Dará Axé Omo Logum Edé de Pai
Adeilson, no Bairro Dom Avelar, a análise de conteúdo foi realizada sobre a entrevista
concedida por Antônio, Ogã e pai da criança Davi Neto de sete anos.
E da cidade de Paulo Afonso, polo de concentração de hidrelétricas, a colheita de
informações deu-se da entrevista realizada com Euziane, Yaô do Abassá da Deusa Oxum
40

de Idjemim (Mãe Edneusa), situado na Rua Teofilândia, Bairro Barroca. Euziane é mãe
da adolescente Leticia Maria de treze anos de idade.
Objetivamente a intenção deste trabalho foi descrever as interações entre
pais/mães e filhos/filhas religiosos para a compreensão de como se estabelecem os
processos de participação e iniciação de crianças em terreiros de candomblé no Sertão do
Brasil sob o olhar de um pai e duas mães de duas crianças e de uma adolescente
candomblecistas.

MATERIAIS E MÉTODO

Para a análise e a compreensão do contexto que envolve a infância, a cultura


ritualísticas da religião candomblé, os aspectos sociais e ambientais das relações
interpessoais entre crianças e adultos, família, educação, aprendizados e saberes, foram
realizadas entrevistas semiestruturadas com um pai e duas mães de duas crianças e uma
adolescente que vivenciam as manifestações religiosas em terreiros de candomblé de duas
cidades do interior da Bahia e uma do interior de Pernambuco.
É importante destacar que a realidade pretendida para análise – a participação de
crianças nos terreiros de candomblé no Sertão Nordestino sob a descrição dos pais (um
pai e duas mães) – não se mostra estática, mas em constante interação socioambiental e
religiosa e que essa dinâmica requereu uma inserção e interação investigativa que
possibilitou a vivência direta com tal realidade.
Como parte integrante de uma sociedade compartimentada em camadas e classes
e ainda considerando as particularidades dos povos de terreiro com sua religiosidade,
intrinsecamente ligada às matrizes africanas, tornou-se pertinente a investigação pela
etnografia para interpretar, sem interferência, os dados e a dinâmica de caracterização do
grupo em um cenário particular e natural (LAKATOS e MARCONI, 2011).
Para as considerações analíticas seguiu-se Bardin (2016), com a categorização das
falas que resultaram numa análise de conteúdo com função heurística enriquecedora da
tentativa exploratória, ou seja, uma análise para a compreensão do discurso também “não
dito”, ou o das entrelinhas.
Concebe-se, portanto, ao contexto da materialidade e de métodos que este trabalho
consolida-se num estudo de caso que faz o recorte da realidade de terreiros de candomblé
do sertão com o objetivo de descrever como se dá os processos interativos pertinentes a
participação e iniciação de crianças nestes espaços, sob o olhar descritivo de um pai e
41

duas mães de pessoas (duas crianças e uma adolescente) que vivenciam a religiosidade
candomblecista no sertão nordestino do Brasil.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Da proposta à realização, a estrada percorrida pelos pesquisadores na labuta para


escrever este artigo, após as análises categóricas, fora bifurcada em caminhos por conta
dos valores semânticos assumidos nas falas dos entrevistados. Como resultado, as
discussões enveredaram para o campo das humanas ecologias no Candomblé do Sertão e
também no tocante aos cuidados nos Terreiros.

Humanas Ecologias no Candomblé do Sertão

O povo do Sertão Nordestino carrega consigo saberes, conhecimentos e ciências


que transcendem a cientificidade, quando não é a própria epistemologia. Os autores de A
Ecologia Humana e as Gentes do Sertão Nordestino descrevem que:

As populações sertanejas do nordeste brasileiro estão inseridas em


territórios socioambientais estruturantes da sua existência que envolve
Semiárido e Caatinga, Nordeste e Sertão, e apresentam várias
significações e importância nas suas vidas (AMÂNCIO; ANDRADE e;
MIRA, 2016, p. 37)

A análise de conteúdo aqui realizada buscou a compreensão da socialização dos


conhecimentos entre as pessoas que interagem nos espaços de cultos afro-brasileiros, bem
como a relação destas com os elementos constitutivos dos ambientes na natureza para
uma possível descrição da forma como os pais partilham com seus filhos os
comportamentos e princípios socioambientais e, dentro das particularidades do
candomblé no Sertão.
A senhora Nadiane, filha de Oxum com Ogum, mãe da criança de terreiro Kerlen
e Mãe Kota do Terreiro Bandalecôngo de Mãe Maria de Tempo fala sobre as relações que
envolvem o candomblé, os animais, as plantas e a sociedade:
No caso dos Orixás, muitos deles são da natureza. Então a gente
defende muito a parte da natureza, dos animais. A gente preserva muito.
Apesar de que tem alguns que a gente usa nos nossos rituais, mas não
quer dizer que a gente vai sair matando a torta e à direita qualquer tipo
42

animal. A gente preserva, a gente cuida e, diante da sociedade, a gente


tenta mostrar o nosso trabalho. Que a gente pode ajudar as pessoas
também (NADIANE, 23/07/17).

Antônio, Ogã do Terreiro Ilê Dará Axé Omo Lgum Edé e pai biológico de Davi,
criança de sete anos, também relaciona seus Orixás com a natureza e a interação
homem/divindade:
Desde que eu passei a me aprofundar no Candomblé, passei a estudar
que a pessoa vê: Oxalá representa a pomba da paz; Oxum e Iemanjá
representam a água doce, os rios e o mar. Xangô, os raios, a justiça.
Iansã, é os ventos, as tempestades. Tudo faz parte da natureza. Quando
a gente quer resolver alguma causa, que a gente quer justiça, sempre se
entrega a Xangô (ANTÔNIO, 26/07/17).

E também na mesma perspectiva a Yaô do Abassá da Deusa Oxum de Idjemim,


senhora Euziane, mãe da adolescente Leticia, relaciona seus Orixás, os elementos da
natureza e o homem:
O Logum Edé, que é filho de Oxum e Oxossi, segundo os mitos, as
lendas e a história deles contada, vivia nas águas com a mãe Oxum e
nas matas com o pai Oxossi. Acho que um processo importante para
todos nós é que cultuar os nossos encantos tá totalmente ligado a relação
com a natureza, com a preservação, com o respeito à esses espaços. A
água é vida, as matas é alimento, fartura. A caça é onde abriga a fauna
e a flora. Então, para mim, é de grande importância. Hoje a gente
percebe que não há tanto essa consciência porque os recursos naturais
viraram mercadoria, então para mover o lucro e a indústria é preciso
destruir a natureza e o meio ambiente. E muitas vezes esses encantos
ficam sem os seus espaços. A gente fica sem os espaços de achá-los, de
estar com eles, de cultuá-los.
Omolu é como o tempo, a vida, a morte, uma relação, de vida, de
doença, de cura, de que o tempo cura. Omolu é um dos orixás mais
velhos também. A gente olha com um olhar também para a nossa
terceira idade. Isso é importante: a sabedoria, a vivência.
E o Ogum é de uma relação com o mar, com o ferro, com o aço - um
outro elemento importante. De temperamento não muito fácil. Eu
acredito que um não viva sem o outro, que somos parte. Estamos muito
ligados. Que tudo é uma relação muito ligada. Eu acredito que tem que
ter o respeito com a encruza, com o rio. A gente tem que preservar e
cuidar porque se a gente quer achar Oxum, é lá (no rio) que a gente
acha. Por mais que a gente dance e incorpore aqui, mas a força dela vem
de lá. Se a gente precisa se renovar, a gente precisa ir lá. Então acredito
muito nessa ligação dos elementos. Que o terreiro não existe sem esses
elementos e que ele (terreiro) também não existe sem o homem
(EUZIANE, 14/08/17).

Inferimos das falas desses conteúdos uma elaboração das relações com o sagrado
e a natureza que estruturam as Ecologias Humanas dos terreiros do sertão numa
concepção muita semelhante a que muitos teóricos acadêmicos publicam. Para muitos
43

Ecólogos Humanos são essas relações carregadas de sentidos e valores de pertencimento


que substaciam epistemologicamente, mas principalmente na prática, a concepção de
Ecologia Humana. Marques (2014), por exemplo, assente que ecologia humana é aquela
que bota gente dentro dos ecossistemas. Também Araújo (2014) nos diz que, como um
ramo científico, a Ecologia Humana estuda as relações e as interações entre os seres
humanos (ou a sociedade) e os seus meios ambientes: o natural, seres abióticos e bióticos
e o humano (ou artificial).
Portanto compreendemos que é na intensidade e dedicação das relações que são
estabelecidas nos terreiros de candomblé do sertão que uma Ecologia Humana se
apresenta com particularidade: nos cultos religiosos ao sagrado, a lida e cuidado com os
animais, os vegetais e os minerais, elementos constitutivos e fundamentais na e para a
religião, possibilitam comunicações entre as manifestações físicas, químicas, orgânicas,
biológicas e psíquicas dos humanos e as manifestações metafísicas, espíritas, e místicas
dos Caboclos, Encantados, Orixás e Nkisi, não mais num duelo, mas na interação entre
homens e Deuses.

Cuidados nos Terreiros de Candomblé do Sertão

Mãe Beata do terreiro Ilé Omiojuaro, no Bairro Miguel Couto, Nova Iguaçu- RJ,
conta-nos que em seu terreiro todas as diferenças são respeitadas e que partilham essa
conduta com suas crianças para que as elas cresçam partilhando o amor, as coisas de seu
Egbe22 e aprendem, fundamentalmente, a respeitar a ancestralidade (CAPUTO 2012).
Cosaro (2011) nos diz que as crianças criam e participam de suas próprias e
exclusivas culturas de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de
informações do mundo adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações,
mas que mesmo desempenhando um papel ativo na produção de rotinas culturais com
adultos, elas geralmente ocupam posições subordinadas e são expostas a muito mais
informações culturais do que elas podem processar e compreender.
Para Kileuy e Oxaguiã (2011) iniciar-se no candomblé é renascer para um novo
mundo como uma pessoa mais segura e mais forte religiosa e psicologicamente e também
estabelecer uma ligação da sua vida física com a vida sagrada, surgindo assim uma nova

22Egbé significa Sociedade: designa a Sociedade dos Espíritos Amigos e se refere, simultaneamente, a um orixá e a
uma irmandade ou corporação de seres espirituais: trata-se de Èré igbó ou Aráagbó, que significa Habitante da floresta
ou Habitante do além. (fonte: http://yorubabrasil.wixsite.com/yorubabrasil/egb).
44

aliança, uma nova união. Para os autores, depois da iniciação, as pessoas têm a capacidade
e a possibilidade de ajudar a conduzir melhor o seu destino permitindo que seu orixá aja
permanentemente no seu dia-a-dia, ajudando na construção de uma vida mais harmoniosa
e próspera.
Nadiane, Mãe Kota do Terreiro Bandalecôngo, aquela que cuida transmitindo os
saberes/conhecimentos para os que se iniciam, descreve as circunstâncias que a levaram
aos cuidados e a cuidar dos Orixás:

Eu comecei a participar com doze anos e me iniciei com quinze. O meu


chamado foi quando eu estava em casa, brincando normalmente como
toda criança brinca de boneca, e aí veio a minha vó paterna e conversou,
através do jogo de búzios, com minha Mãe Maria (Yalorixá Mãe Maria
de Tempo). Conversou e disse que eu tinha que seguir a linha dela. O
que ela começou e não terminou (NADIANE, 23/07/17).

Ela (Nadiane) se mantém compreensiva quanto às experiências de não aceitação


vividas por ela e por sua filha Kerlen, por serem de candomblé, dizendo-nos que “eu não
posso forçar ninguém a acreditar no que eu acredito”, numa situação em que uma pessoa
que não é de terreiro a julgou, mas que para Nadiane “a pessoa só queria relutar e mandar”
nela e que com sua filha a experiência vivenciada foi com uma colega da escola que não
aceitava a religião, mas que Kerlen fez a opção dizendo: “ah coleguinha, eu não posso
deixar de ser do candomblé pra ser sua amiga, então não seremos mais amigas”.
Nadiane relata que faz dois anos que sua filha Kerlen (oito anos de idade) foi
raspada e que ela participa de todos os rituais seja um Ebó ou uma iniciação e ainda que:
A preparação dela é tipo o braço esquerdo ou direito da Mãe de Santo.
Qualquer iniciação ela tem que tá na frente, junto com a Mãe de Santo.
Ela tá com esta atribuição. Só não recebeu o cargo ainda porque a
pessoa que tem o cargo dela ainda é viva, mas ela seria a herdeira do
cargo e seria a minha mãe23 porque ela seria a Mãe Pequena da casa.
A Mãe pequena é a segunda pessoa da Mãe de Santo. Caso a Mãe de
Santo não esteja, a Mãe Pequena fica encarregada de jogar, tirar um Ebó
e resolver tudo (NADIANE, 23/07/17).

Ainda sobre quando essa missão fora revelada e como se deu seu processo de
iniciação, Nadiane descreve que Kerlen tinha três anos de idade, mas que só aos sete foi
feita sua iniciação:
Ela ficou nessa preparação vinte e um dias recolhida pra iniciar e depois
de iniciada ela passou mais três meses que são o resguardo, que a gente
chama, as restrições de várias coisas. Depois dos três meses ficou
restringida mais um ano para que tudo que foi feito na iniciação dela
não desse errado. Aí por conta disso tem essas restrições como não

23 A mãe de Nadiane, portanto avó materna de Kerlen, é a atual Mãe Pequena (Iakekerê) no Terreiro.
45

vestir preto e vermelho durante um ano, não ir na beira do rio, não ir ao


cemitério, nem ver defunto, não comer frutas carregadas tipo graviola,
abacaxi e caju. Ela até relutou um pouquinho na primeira semana de ir
para a escola: “ah! maínha, eu tô careca, vão mangar de mim”. Eu disse:
é normal. Depois eles vão se acostumando. Não tem nada diabólico!
Que os colegas diziam: isso é coisa do demônio. Mas você tem que
mostrar para seus colegas que você é diferente. Seu cabelo vai crescer!
É raiz (NADIANE, 23/07/17).

Para a mãe Nadiane esse cuidado faz parte de uma escolha que não foi só da parte
dela, pois a princípio ela não queria, mas que depois de conversar com Kerlen e ouvir da
filha “oxe mãe, eu quero! É bonito, eu quero participar, quero ajudar a vovó24”, resolveu
seguir as orientações dos Orixás. A Mãe Kota e mãe revela que hoje Kerlen ajuda na parte
da preparação e organização dos fundamentos, que seu Orixá de cabeça é Iansã e o ajuntó
Oxossi. Também que a raspagem da cabeça significa renovar os pensamentos, para uma
nova consciência de um novo ciclo que se inicia tanto na vida religiosa quanto na vida
social e que ela só não participa de trabalho braçal e pesado porque, apesar de tudo, ela
ainda é uma criança, “Kerlen na sociedade é uma criança normal: brinca, corre... Em casa
é uma menina preguiçosa, não quer fazer nada, só quer dormir. E aqui (no terreiro) ela é
bem ágil”.
Segundo Antônio, pai e ogã, o candomblé “é uma religião que você é escolhido”.
E acerca da sua iniciação nos diz que quando chegou no Ilé Dará Axé Omo Logum Edé,
há quatorze anos, e num cenário bastante diferente do atual no qual a casa ainda não era
rebocada e apenas coberta de palha de coco, uma “coisa” lhe disse que era ali que ele se
firmaria e que Ossain seria seu mentor, mesmo ele acreditando que seria filho de um outro
Babalorixá de Petrolina.
Afirmando que a condição de estar no candomblé nem sempre é uma escolha e
que, por conta do gênero, a discriminação pode ser mais acentuada, Antônio assegura que
o seu filho Davi não amargou a discriminação da mesma forma que a sua filha, pois para
ele:
Homem pode raspar de boa e não tem problema. Já a minha filha sofreu
discriminação a ponto de ter que mudar de escola. Ela teve que mudar
de umas duas escolas porque ela tinha o cabelão bem grande, aí quando
ela raspou, apareceu do nado com o cabelo pequeno. Aí sofreu, de certo
modo, discriminação. Como as pessoas não entendiam, uns diziam que
ela estava doente, depois que ela falou que era do candomblé algumas
pessoas, mesmo assim discriminavam (ANTÔNIO, 26/07/17).

24 A Yalorixá do Terreiro Bandalecôngo, Mãe Maria de Tempo, é avó paterna de Kerlen .


46

Enquanto Ogã e de Terreiro, Antônio reforça que a condição de ser do sexo


masculino dá-lhe mais comodidade quanto a não perceber ou ignorar a discriminação ou
preconceito dirigidos a ele e relata-nos o processo de iniciação e aprendizagem de seu
filho Davi:
Eu acho que pela minha idade, sou homem, já sou adulto, formado e
quando eu falo que sou do Ketu, do Candomblé eu sei onde me colocar,
sei para quem falar. Às vezes eu omito, não acho necessário falar para
todo mundo: ah! eu sou do Ketu, eu sou do Candomblé. Dependendo
onde você trabalha, pessoas de outras religiões vão, tipo, discriminar,
mas eu nunca passei nenhum preconceito. Tenho seis filhos no
candomblé: quatro homens e duas mulheres. Com menos de doze anos
tem quatro. A função de Davi também é tocar, ele já foi raspado, foi
feito e sabe-se que ele é Ogã. Ele foi iniciado com quatro anos. A
escolha foi totalmente dele. Ele ficou recolhido uma semana, passou
pelo processo de raspagem, Bori, tirou os Ebós e aí teve a saída. Ele
ainda está no processo de aprendizagem. Eu sou Ogã, Mida, seu tio, é
Ogã e a gente tenta sempre estar passando alguma coisa para ele de
forma visual, falando, mostrando para ele como são os toques
(ANTÔNIO, 26/07/17).
Antônio ainda descreve que Davi é de Oxumarê e Iansã e que para cada Orixá tem
um ponto diferente, uma música diferente, emitindo sua percepção sobre os sentidos da
participação de crianças nos terreiros de candomblé:
Criança é o futuro porque eles se espelham nos adultos. Nós/eu me
espelho neles. A força deles, a vontade de aprender, o jeito deles e a
gente vê, que aqui eles são novos, não têm obrigação, não tem ninguém
pegando no pé deles (ANTÔNIO, 26/07/17).

Por fim a análise de conteúdo das entrevistas revela-nos que, salvo as


particularidades, os processos de aproximação com o terreiro, de iniciação nos
fundamentos do candomblé e a incorporação da religião nas vidas da mãe Euziane (Yaô)
e da filha Letícia (Abiã), firmam suas condições enquanto resistentes a discriminação, o
preconceito, a intolerância, mas também enquanto seres de cuidados.
Euziane descreve que foi conhecer o Abassá pela Jurema25 e que ao entrar para a
consulta, sentiu uma mudança, pois ouviu algo da sua vida que só ela mesma sabia e que
ela tinha sangue de caboclo, que precisava se cuidar. A partir de então os
autoquestionamentos a deixavam mais inquieta, o que fez desse período um doloroso
processo de aprendizagem que a levou a realizar bori e uma série de limpezas até a
organização do primeiro barco26 para a sua primeira obrigação de raspada:

25Cabocla e mentora do Abassá.


26Uma organização para a iniciação coletiva. Mais de duas pessoas são recolhidas no Honkó (camarinha) para
apreender os fundamentos da religião pela iniciação.
47

Entre os meus problemas espirituais, além da corrente27, de ser uma


corrente que não tava trabalhada, que não tava desenvolvida, também
tinha Egum, que era um espírito que me acompanhava, Exu, enfim. As
limpezas eram para que pudesse realmente começar a trabalhar a
corrente. Limpar o corpo para começar a trabalhar e desenvolver a
corrente. É um processo bem de entrega e de desafio constante, você
tem que estar vigilante a cada passo que você dá (EUZIANE, 14/08/17).

A Yaô do Abassá da Deusa Oxum de Idjemim (Euziane) fala-nos com muita


clareza e entusiasmo que sua filha Letícia participa desde sempre, mesmo não indo ao
terreiro, pois vivenciava os ritos da mãe em casa como o branco que vestia, a vela que
acendia, a imagem e o copo com água, dentre outros cuidados.
Euziane assegura que o despertar de Leticia para frequentar o terreiro começou
entre os nove e dez anos de idade e que, além do processo de brincar e vivenciar com as
outras crianças, ela (Letícia) tem uma rotina muito parecida com da mãe: ajudar na
alimentação, na limpeza do barracão e em outras tarefas no Abassá. Diz ainda que:
Ela é filha de Xangô e já incorpora sim. Já se desenvolve. Tá no
processo de desenvolvimento. Até o momento Letícia tem participado
de todos os rituais com a gente (EUZIANE, 14/08/17).

Quanto ao preconceito e à discriminação, Euziane relata que se puder fazer um


contraponto àquilo que lhe dizem, ela faz, senão prefere não tencionar e descreve-nos
uma situação:
Quando eu raspei minha cabeça, que eu apareci de cabelo curto, então
uns olhavam, achavam que eu estava doente já pra morrer, outros não
queriam ficar perto. Em Aracaju eu ouvi um comentário em um ponto
de ônibus: “esse povo de terreiro, de macumba, só sabe fazer o mal”. E
foram destrinchando e fazendo o crochê em torno disso. Para mim foi
muito forte. Eram três enfermeiras. Eu fiquei só ouvindo, não tinha o
nível para eu debater. Era mais para sair no tapa, então foi melhor ficar
quieta. E Letícia nunca me comentou nada quanto a preconceito ou se
foi discriminada (EUZIANE, 14/08/17).

Quanto aos cuidados com sua filha, Euziane diz que tem falado muito com Letícia
a respeito da sua obrigação (obrigação de feitura que será realizada brevemente, previsto
para dezembro de 2017) e como tal situação poderá impactar suas relações na escola:
Às vezes ela falta na primeira quinta-feira do mês para vir para a Jurema
e a gente diz: “ah! porque vou sair com o teatro28, vou para uma
apresentação, vou ao médico, vou fazer alguma coisa...”, mas ela me
disse: “mãe, eu vou dizer para onde eu vou”. Ai eu perguntei se ela tava
preparada porque ela não sabia como os outros iam aceitar ou o que ela
ia ouvir. Então a gente dialoga muito com ela neste sentido. Mas ela

27As forças, as energias que orientam o equilíbrio. Uma ordem de Orixás e/ou Caboclos que compõem uma sequência
hierárquica como dos elos que formam uma corrente.
28
Euziane e Leticia compõem uma companhia de teatro da cidade em que moram.
48

disse que na sala dela alguns professores sabem que ela é do Candomblé
(EUZIANE, 14/08/17).

Os discursos convergem para os cuidados nos terreiros e o pai e as mães


apresentam algumas semelhanças com seus filhos, ou o/as filho/filhas com ele/elas,
quando do processo de iniciação, que vão muito além das coincidências, perpassando o
preconceito e a discriminação por serem parte de um povo que tem como essência
religiosa os cultos aos Orixás, Nkisi, Caboclos e Encantados.
Os terreiros de candomblé no Sertão nordestino, firmando-se enquanto família,
comunidade , sociedade e espaços informais de educação, segundo as descrições,
cumprem religiosa e humanamente as condições de relacionamentos interpessoais onde
saberes, conhecimentos e atitudes andam de mãos dadas com o respeito e o cuidado
consigo, com o próximo e com o sagrado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A organização das sínteses dos conteúdos das falas de um pai e de duas mães de
crianças e da adolescente de terreiros, e que também são homem e mulheres do candomblé
no Sertão constitui um exercício que provoca também a análise das análises, vistos todos
os sentidos envolvidos: da família à sociedade; da coletividade ao individual, mas
principalmente pela ótica da religiosidade que foge aos olhos da razão para fazer morada
na subjetividade das existências dos seres humanos e não humanos.
A Ecologia Humana no terreiro Bandalecôngo, segundo Nadiane, vai além da
relação com os animais que alimentam as energias (Orixás, Caboclos, Encantados e
Nkisi) com seu sangue, estendendo à comunidade com movimentos e atitudes de
solidariedade (ajuda). E quanto à iniciação da sua filha Kerlen, Nadiane, dá-nos o
entendimento de que estar e ser integralmente de candomblé exige comprometimento e
muita dedicação, mas que apesar de tamanha responsabilidade atribuída a Kerlen depois
da iniciação, Nadiane nos assegura que ela (Kerlen), na sociedade, é uma criança normal:
brinca, corre é preguiçosa e ágil.
Do Ilé Dará Axé Omo Logum Edé, Antônio relaciona a Ecologia Humana com as
forças presentes na natureza associando a representatividade dos Orixás a tais elementos,
dando como exemplo Xangô pela justiça e Oxum e Iemanjá, Orixás presentes na água
doce e na água salgada respectivamente. Ele é objetivo ao relatar que ser de candomblé
nem sempre é uma escolha, mas uma orientação divina.
49

Porém nas entrelinhas do seu conteúdo discursivo lacunas se apresentam para,


senão negar, pelo menos omitir em algumas circunstâncias, que é do candomblé quando
fala que “às vezes eu omito, não acho necessário falar para todo mundo [...] Dependendo
onde você trabalha, pessoas de outras religiões vão, tipo, discriminar, mas eu nunca passei
nenhum preconceito”.
Euziane faz uma síntese da relação entre os Orixás, os reinos e os elementos da
natureza e incorpora, no seu conteúdo, uma conceituação ecológica e humana
apresentando o homem e a natureza como partes do mosaico holístico universal da crença
e do respeito ao dizer que acredita que tem que ter o respeito com a encruza, com as águas,
com a fauna e a flora pela ligação dos elementos como fundamentais para a existência
dos terreiros.
Também Euziane enfatiza as vivências da fé nos terreiros pelas crianças “a partir
da própria idade e compreensão delas”. Diz-nos que, diante das realidades da infância, os
adultos devem estar atentos à manutenção e valorização da cultura e dos ritos como
processo de educação, inclusive pelo contexto familiar, muito peculiar das organizações
dos terreiros (espaços de cuidados humanos e não humanos também) no Sertão.
Portanto o assunto não deve ser considerado acabado, mas e principalmente, como
um quebra-cabeça que tem os terreiros do Sertão como forma, imagem e/ou o desenho
principal, mas que apenas uma peça das incontáveis que são precisas para a sua montagem
foi evidenciada: as inferências dos conteúdos das falas de um pai e duas mães de duas
crianças e uma adolescente de terreiros sobre os sentidos da participação de crianças nas
religiões afro-brasileiras, mais particularmente o candomblé, no Sertão Nordestino do
Brasil.

REFERÊNCIAS

AMÂNCIO, Wellington; ANDRADE, Maria José Gomes de; MIRA, Feliciano José
Borralho de. A ECOLOGIA HUMANA E AS GENTES DO SERTÃO
NORDESTINO. In: NOGUEIRA, E. et. al.(Orgs). OS SABERES POPULARES NO
VIÉS DA ECOLOGIA HUMANA. Paulo Afonso: SABEH, 2016, 30-53.
ARAÚJO, Sergio Murilo Santos de. A Natureza na História do Homem:
Considerações sobre a contribuição da Geografia na Ecologia Humana e na História
Ambiental. In: MARQUES, Juracy (Org.). ECOLOGIAS HUMANAS. Feira de
Santana: UEFS Editora, 2014, 313-322.

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad.: Luiz Antero Reto e Augusto Pinheiro. São
Paulo: Edições 70, 2016.
50

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros e como a escola se relaciona com
crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: PALLAS, 2012.
CORSARO, William A. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. O candomblé bem explicado: Noções Bantu,
Iorubá e Fon. BARROS, Marcelo (org.). Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

LAKATOS, Eva Maria. MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Científica. ed.


6.São Paulo: Atlas, 2011.
MARQUES, Juracy. Ecologia Humana no Brasil. In: MARQUES, Juracy (Org.).
ECOLOGIAS HUMANAS. Feira de Santana: UEFS Editora, 2014, 09-42.
51

Artigo 3

FOLHAS PEQUENAS: Crianças nos Terreiros de Candomblé do Sertão do


Brasil29

Robson Marques dos Santos30


Luciano Sergio Ventin Bomfim31
Marcelo Silva de Souza Ribeiro32
RESUMO

Este estudo firma-se como um recorte das realidades experienciadas por três crianças e
uma adolescente de três Terreiros de Candomblé nas cidades de Juazeiro/BA,
Petrolina/PE e Paulo Afonso/BA (Sertão Nordestino Brasileiro), cujo principal objetivo
foi descrever, sob suas próprias percepções, como se estabelecem suas relações no
processo de participação (iniciação, ensino e aprendizagem dos saberes) nesses espaços
de cultos religiosos afro-brasileiros. Pela pesquisa etnográfica foram entrevistadas duas
crianças no Terreiro Bandalecôngo de Mãe Maria de Tempo, em Juazeiro/BA; uma
criança no Terreiro Ilé Dará Axé Omo Logum Edé de Pai Adeilson, em Petrolina/PE e;
uma adolescente no Abassá da Deusa Oxum de Idjemim, em Paulo Afonso/BA. Os
discursos foram interpretados a partir da Análise de Conteúdo, segundo Bardin (2016).
Concluiu-se que as relações envolvendo criança, infância, religião, família e comunidade
são fundamentais para a construção e (re) elaboração de conhecimentos e saberes no
processo de ensino e de aprendizagem dentro e fora dos terreiros.

Palavras-chave: Crianças e Adolescente. Terreiros de Candomblé. Participação e


Iniciação. Saberes. Sertão do Brasil

ABSTRACT

This study is a reflection of the realities experienced by three children and one adolescent
from three Temples of Candomblé in the cities of Juazeiro / BA, Petrolina / PE and Paulo
Afonso / BA (Sertão Nordestino Brasileiro), whose main objective was to describe, under
their own perceptions, how their relationships are established in the process of
participation (initiation, teaching and learning of knowledge) in these spaces of Afro-
Brazilian religious cults. Two children were interviewed by ethnographic research in
Terreiro Bandalecôngo de Mãe Maria de Tempo, in Juazeiro / BA; a child in the Terreiro
Ilé Dará Axé Omo Logum Edé of Pai Adeilson, in Petrolina / PE and; a teenager in the
Abassá of the Goddess Oxum de Idjemim, in Paulo Afonso / BA. The method used was
that of Content Analysis, according to Bardin (2016). It was concluded that the
relationships involving children, childhood, religion, family and community are
fundamental for the construction and (re) elaboration of knowledge and to know in the
process of teaching and learning inside and outside the temples.

29
Artigo apresentado na XXIII International Conference Society for Human Ecology “Navigating complexity: human-
environmental solutions for a challenging future” – Lisboa, Portugal, July 7-10, 2018.
30
Mestrando em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – PPGEcoH/UNEB Campus III. Servidor Público –
Assistente de Alunos no IF Baiano campus Senhor do Bonfim/BA. E-mail: robsonmarquesambiente@yahoo.com.br
31 Prof. Orientador do Programa de Mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – Doutor em Filosofia

pela Universitaet Gesamthochschhule Kassel


32 Prof. Doutor em Ciências da Educação – Université du Québec à Chicoutimi/ Université du Québec à Montréal
52

Keywords: Children and Adolescents. Temples of Candomblé. Participation and


Initiation. To know. Backwoods of Brazil.

INTRODUÇÃO

Corsaro (2011) infere que, pela concepção teórica tradicional, em que grande parte
do pensamento sociológico sobre criança e infância deriva do trabalho teórico sobre
socialização, processo pelo qual as crianças se adaptam e internalizam a sociedade, a
criança é vista como alguém apartada da sociedade, que deve ser moldada e guiada por
forças externas a fim de se tornar um membro totalmente funcional. Ele nos diz que, no
modelo determinista, a criança desempenha basicamente um papel passivo, no qual é,
simultaneamente, uma “iniciante” com potencial para contribuir para a manutenção da
sociedade e uma “ameaça indomada”, que deve ser controlada por meio de treinamento
cuidadoso. Ainda para este autor, no modelo construtivista, a criança é vista como um
agente ativo e um ávido aprendiz, perspectiva na qual a criança constrói ativamente seu
mundo social e seu lugar nele.
Nas suas pesquisas Caputo (2012) informa que, enquanto pesquisadora, tenta
“enquadrar” aspectos da realidade e recortar da imensidão observada uma imensidão
menorzinha, sobre a qual se pode olhar mais detidamente e que o terreiro lhe oferecia o
infinito, mas que focou suas observações conversando, entrevistando e fotografando
especialmente as crianças relacionando-as a comunidade de terreiro como um todo.
Tomando essas concepções como orientação para se chegar a uma possível
descrição/compreensão dos processos que envolvem crianças na aprendizagem e na
socialização dos conhecimentos e saberes das religiões de matrizes africanas, mais
especificamente do Candomblé no Sertão, foram realizadas entrevistas semiestruturadas
com três crianças e uma adolescente de três terreiros de Candomblé em três cidades do
nordeste brasileiro.
Do Terreiro Bandalecôngo (Juazeiro/BA) foram entrevistadas as crianças Kerlen
de oito anos de idade, iniciada no candomblé aos sete anos, e Naian de dez anos de idade,
iniciado na religião quando tinha seis anos; Do Terreiro Ilê Dará Axé Omo Logum Edé
(Petrolina/PE), foi entrevistada a criança Davi de sete anos de idade, iniciado aos quatro
anos e; Do Abassá da Deusa Oxum de Idjemim (Paulo Afonso/BA), o conteúdo analisado
foi o da fala de Leticia de treze anos de idade, iniciada aos dez anos.
53

Figura 6 – Crianças e Adolescente nos Terreiros -


Mapas de localização dos terreiros: Bandalecôngo
com Naian e Kerlen; Ilê Dará Axé Omo Logum Edé
com Davi e; Abassá da Deusa Oxum de Idjemim
com Letícia. (Arquivos dos autores)

MATERIAIS E MÉTODO

A partir da identificação do cenário, a pesquisa adotou como estratégia a coleta


dos dados enquanto estudo de caso, tido por Oliveira (2008) como “estudo inicial de
problemas poucos conhecidos ou quando há poucos ou um único caso disponível para se
estudar”, ou ainda pelo entendimento de GIL (2010) que assente ser uma estratégia para
dados muito numerosos e obtidos de formas diferentes.
De cunho etnográfico, a pesquisa coaduna com a ideia de Macedo (2015) ao
evidenciar que a experiência do outro está colocada na pesquisa com o status de um modo
outro de criação e apreensão de saberes e que esta experiência acontece no “entre-nós”,
no “entre-dois”, proporcionado pelas interações no processo mesmo da pesquisa. Para o
autor, o pesquisador e os atores sociais implicados, via encontros generativos, produzem
a heurística da pesquisa, os modos cognitivos, por muito intuitivamente, para se chegar
às descobertas.
Os dados coletados por entrevistas semiestruturadas foram agrupados,
sistematizados e categorizados em eixos temáticos, depois em tópicos analíticos e por fim
nesta produção científica (artigo). A análise dos dados coletados em campo deu-se pela
vertente da Análise de Conteúdo - AC de linha francesa, com base nos estudos de Bardin
54

(2016), a qual propõe a categorização do conteúdo das falas, como um dos métodos
possíveis de análise.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A Infância na Ecologia Humana dos Terreiros de Candomblé no Sertão

Kileuy e Oxaguiã (2011) discorrem que a palavra “candomblé” parece ter se


originado de um termo da nação Bantu, candombe, e traduzido como dança e batuque,
referindo-se a brincadeiras, festas, reuniões, festividades profanas e também divinas dos
negros escravos, nas senzalas, em seus momentos de folga. Também que trata-se de uma
religião que foi criada no Brasil por meio da herança cultural, religiosa e filosófica trazida
pelos africanos, adaptada às condições ambientais e com a função primordial do culto as
divindades – inquices, orixás ou vuduns - , seres que são a força e o poder da natureza.
Sobre suas atividades no terreiro, Kerlen, criança do Terreiro Bandalecôngo, diz
que ajuda a Yalorixá33 separando as comidas e as coisas das limpezas para passar no corpo
das pessoas quando de algum trabalho de limpeza ou iniciação, e que seu terreiro é de
candomblé. O seu imaginário parece surpreender quando ela elabora sua Ecologia
Humana ligando a África ao Semiárido nordestino ao descrever que gosta de zebras, que
tem dois cachorros e seu paladar é atraído pelo doce gosto da fruta uva.
Já Naian, também criança do Bandalecôngo, afirma que dentro do terreiro faz
muitas coisas: “tocar, quando tem festa, ajudar minha mãe em um ebó34, tirar ebó e a levar
o ebó.” E que ele mesmo se define, diante dessas múltiplas funções, como um
“Keligebó35”. O pequeno candomblecista diz ser também Ogã.
Naian ainda diz ser de Candomblé, inferindo distinção entre este e a Umbanda36:
“É que aqui canta algumas músicas que já é muito diferente na Umbanda.” Ele fala
também que gosta e que cuida da natureza e das plantas e que entre lidar com “bichos” e
com as pessoas, é mais fácil “com os bichos, porque o povo de lá de fora, eles ficam
falando coisas da gente. Criticando”.

33
Autoridade religiosa que conduz o terreiro.
34 Para Kileuy e Oxaguiã (2011) o sentido de “fazer ebó” firma-se em rituais que permitem o fortalecimento da vida
espiritual, como também faz parte dos rituais que ajudam a afastar as forças negativas, que trazem a instabilidade. São
elementos que podem ser ofertados para Exu, eguns e Edus e também para os orixás e demais divindades.
35
Da fala de Naian o sentido apreendido é o daquele que lida com ebó, mas que, segundo a Mãe Kota, ele não exerce
o cargo ainda.
36 Para Prandi (2003), a Umbanda é um ramo afro-brasileiro e se formou no século XX, no Sudeste, e representa uma

síntese do antigo Candomblé da Bahia, transplantado para o Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX,
com o espiritismo kardecista, que veio da França no final do século XIX (MARQUES e NOVAES, 2015, p. 33).
55

Davi, criança do Ilê Axé Dará Omo Logum Edé, afirma que é Ogã37, que gosta de
tocar atabaques e que lida com os animais de forma tranquila. Assume ainda que é de
Candomblé, verbalizando sua defesa conceitual do que diferencia Candomblé de
Umbanda: “Umbanda toca bateria e Candomblé toca atabaque”. Descreve também como
cuida das plantas: “Boto água e deixo no sol.” E o porquê de gostar de cobras e não temê-
las: “porque eu sou de cobras38”, aludindo ao seu Orixá de Cabeça, Oxumaré.
A criança esboça naturalidade ao falar que presencia seu pai e seus tios (que
também são Ogãs) nos rituais e já realiza as imolações para oferecer às divindades. Na
condição de Alabê, Davi auxilia o pai e os tios em funções específicas de Ogã Axogum.
A este respeito Caputo (2012) nos diz que:

Nas comunidades de terreiros existem inúmeras crianças e


adolescentes. Elas ou são da família do pai ou da mãe de santo ou estão
ligados aos filhos e filhas de santo dos terreiros. Assim como os adultos
estas crianças são iniciadas no candomblé, desempenham funções
específicas, recebem cargos na hierarquia dos terreiros e manifestam
orgulho de sua religião (CAPUTO, 2012).

A Abiã39 adolescente do Abassá da Deusa Oxum de Idjemim, Letícia, quando da


resposta acerca do que faz no terreiro, mostrou-se um tanto quanto tímida e/ou tensa a
ponto de limitar-se a responder “sou Abiã no terreiro”. Diz nunca ter ido a um terreiro de
Umbanda, mas com desenvoltura assume ser de Candomblé e segue argumentando:
Para mim o candomblé é uma religião que é igual à Católica. Só que na
Católica os nomes dos santos são outros. Nossa Senhora de Aparecida
é Iemanjá, Nossa Senhora da Conceição é Oxum. É diferente, mas é
igual. E o idioma é diferente, mas é baseada na Igreja Católica. É um
ritual de fé (LETÍCIA,13/08/17).

Ela faz uma associação na relação da religião com a natureza e adverte quanto ao
comportamento ecológico do homem sobre os elementos:
É muito igual porque a cobra, por exemplo, tem um deus que domina
ela, que é Oxumaré. Tem a floresta que quem manuseia é o Oxossi e as
folhas Ossaim. Tem a lama que é a Nanã, tem o rio de água doce que é
a Oxum. Tem a de água salgada que é Iemanjá. Tudo se bate com a
realidade do Candomblé. Eu acho que o candomblé é mais a realidade
da natureza do que a igreja católica.
Mas o homem tem que ter consciência daquilo que ele está fazendo.
Exemplo: tem um deus que vai dizer o que é que ele tem que fazer?

37 Autoridades masculinas, de posto hierárquico abaixo do/a sacerdote/sacerdotisa, e seus auxiliares diretos, assim
denominados pelo povo ioruba. Na nação fon recebem o nome de runtó/huntó e na nação bantu são chamados de
xicaringome/xincarangoma. Estes homens, tal como as equedes, não entram em transe (Kileuy e Oxaguiã, 2011, p. 60).
38
Pai Dedé ratifica que Davi é filho de um Orixá chamado Oxumarê que na religião é uma cobra. Por isso que ele é
apaixonado por cobras.
39 Traz a ideia de inicio, de nascimento, representa o começo, é um pré-iniciado, o primeiro momento do futuro iaô.
56

Não! Tem que partir dele, não é dos outros. Porque cada vez mais a
gente encontra uma floresta desmatada. O povo sempre questiona por
que não chove ou por que ali choveu muito e aqui não choveu. Talvez
onde não choveu era onde estava tudo desmatado e onde choveu é
porque eles preservaram (LETÍCIA,13/08/17).

Corsaro (2011) nos descreve que a reprodução interpretativa encara a integração


das crianças em suas culturas como reprodutiva, em vez de linear. Para ele, nessa
perspectiva reprodutiva, as crianças não se limitam a imitar ou internalizar o mundo em
torno delas. Segundo o autor, elas (crianças) se esforçam para interpretar ou dar sentido
a sua cultura e a participarem dela. Nessa tentativa de dar sentido ao mundo adulto as
crianças passam a produzir coletivamente seus próprios mundos e culturas de pares.
Segundo Tomaz (2014) a relação simbólica estabelecida entre os povos e
comunidades tradicionais e a natureza constitui uma etnoecologia de preservação e de
cuidado e que a vulnerabilidade a qual estão submetidos pode ser entendida pela
construção histórica, na qual esses grupos diferenciados, tiveram que se submeter, desde
o Brasil colônia à contemporaneidade.
Higino (2011) infere que o espaço social do terreiro é um espaço religioso e
também educativo, pois é na convivência que se estabelece a troca de conhecimentos,
uma vez que a herança religiosa traz consigo, no decorrer da história, um contexto de
resistências e opressões sociais que conduzem o negro a exercer sua cidadania e definir
sua identidade e a sua consciência. Para a autora na educação do Candomblé há valores
transmitidos por estarem ligados à espiritualidade e a base de sua existência é a
transmissão de fundamentos e doutrinas, oralmente, pelos mais velhos.
Percebe-se, portanto, nas fala das crianças e da adolescente, uma interação que
relaciona diretamente religião, natureza (meio ambiente), sociedade/comunidade,
símbolos culturais em suas próprias condições enquanto infância numa perspectiva
interpretativa, seguindo Corsário (2011), pois da realidade cultural adulta participam, mas
também reelaboram e ressignificam a sua interação, descrevendo tal relação como a força
motriz que as ligam, nos rituais, também às divindades, mas principalmente a diversão,
como conexão ecológica na representação de Orixás que têm como principal
característica o cuidado e/ou a simbologia com os elementos da natureza, por exemplo,
Oxumarê (cuja representação é a cobra) e/ou Oxossi (guardião das matas), dentre outros,
numa conexão entre o humano e o sagrado.
57

Iniciação no Candomblé: Percepções de Crianças de Terreiro do Sertão do Brasil

Leonardo Boff, ao tratar dos princípios éticos da responsabilidade ilimitada e do


respeito, nos diz que “a responsabilidade, fundamentalmente, tem a ver com a consciência
do ser humano, de ele dar-se conta das consequências dos seus atos” e que o respeito é “a
atitude perante o outro: quando respeitamos garantimos o direito que as coisas existam”
(BOFF, s/d)40.
Em “A Voz do Tempo: os Ventos do Terreiro Bandalecôngo 41” a Yalorixá Mãe
Maria de Tempo diz-nos que a Iniciação é o nascimento para uma nova vida e que nas
casas de nação Keto tem a tradição de raspar a cabeça do iaô durante o processo de feitura
do santo, enquanto a pessoa está recolhida (período que varia entre 14, 21 e 30 dias) a
depender das particularidades da vida pessoal do iniciando. Para ela, a raspagem da
cabeça significa que aquela pessoa está deixando tudo para recomeçar a viver com a
cabeça limpa e puro para receber os ensinamentos que serão regidos pelo o Orixá do seu
Ori42 (MARQUES, ALVES e MARQUES, 2017 ).
Como as crianças e a adolescente dos terreiros do Sertão do Brasil se percebem
enquanto parte de uma religião com muitas marcas de resistência pelo preconceito e
discriminação que ainda são fincados com muita violência nas memórias, nos corpos e
nas inter-relações humanas estabelecidas, inclusive nos espaços formais de ensino
(escolas), e como elas mesmas descrevem suas vivências é o que nos revelam os
entrevistados desta pesquisa.
De Kerlen ouve-se que na escola em que estuda seus colegas sabem que ela é de
terreiro e que, segundo a criança, “eles ficam assim: Kerlen, como é que você dança? Aí
eu fico meio perdida. Aí eu vou logo fazer minha atividade.” A este respeito, faz-se
pertinente que a Yalorixá Mãe Maria de Tempo, que é Mãe de Santo e avó biológica de
Kerlen dê seu testemunho quando da fase em que Kerlen “fez-se” no santo:
Kerlen raspou a cabeça, foi para a escola, foi de toquinha. A gente fez
uma touquinha bonitinha, branca, botou nela e ela foi de touquinha e
sempre perguntavam por que ela não tirava a touca. Então ela foi e
disse: “ não, não tem problema não, vocês querem ver?” Aí foi e tirou.
Que ela conversa demais. Tirou a toca e: “oió, não tem nada demais.
Aqui é cabelo, cabelo um dia vai nascer. Vai ficar tudo de novo, meus
cachinhos vão voltar todos de novo”. Ela é assim (MÃE MARIA DE
TEMPO, 22/07/17).

40 Trata-se de um documentário disponível nas redes e plataformas sociais, que foi acessado no dia 09-02-2018
(https://www.youtube.com/watch?v=6YFTh2yEPlk), mas que não dispõe da data de sua produção.
41
Livro organizado por Juracy Marques, Maria Rosa de Almeida Alves e Robson Marques
42 É o nome da nossa cabeça física para os iorubas; camutuê ou mutuê para os bantus; e tá para a nação fon. O orí é

uma divindade que serve apenas a seu filho, pois é individual e unitário (KILEUY e OXAGUIÃ, 2011).
58

É importante evidenciar que uma das marcas do processo iniciático no candomblé,


também no Sertão, é o rito de raspar a cabeça e o recolhimento em um quarto (Honkó,
camarinha) para o aprendizagem dos fundamentos como saudações, cantos, danças, o que
comer ou deixar de comer para estar em harmonia com o Orixá que regerá a vida do
iniciado a partir da feitura. Esse processo é acompanhado e orientado direta e
constantemente, durante todo o período de recolhimento, por uma pessoa de muito
conhecimento doutrinário dentro do terreiro, chamada de Mãe Kota ou Mãe Cota. E que,
por caracterizar, principalmente nas mulheres de cabelos compridos, uma mudança
radical de visual têm sido descrito como a mais corriqueira forma de preconceito,
discriminação e intolerância por que passam as pessoas de candomblé.
Do seu processo de iniciação na religião o que Kerlen descreve das suas memórias
é que começou aos sete anos de idade, que participou de uma festa dentro do salão do
terreiro, que tinha muita gente e que não estranhou a cabeça raspada porque “o cabelo
cresceu e na escola ninguém falou nada”. Quanto a seus guias de cabeça, revela que são
Iansã e Oxossi.
Naian relata uma situação ocorrida na escola com seu colega quando foi
perguntado se já lhe ocorreu algum problema por ele ser de terreiro:
Se é que aconteceu...? Foi uma vez que eu contei a meu colega da
escola. Só que eu pedi pra ele pra não contar a ninguém. Aí ele pegou e
não gostou da minha religião, que ele era meu melhor amigo da escola.
Aí ele não gostou e disse que eu era macumbeiro, que eu ia fazer
macumba pra ele. Aí eu não gostei. Ai eu peguei e terminamos nossa
amizade. Aí ele foi e jogou uma pedra em mim. Aí eu peguei e fiquei
sem falar com ele (NAIAN, 23/07/17).

E ao ser questionado se seus professores e demais colegas, na escola, sabem que


ele é de terreiro, ele afirma que: “Só minha prima”. Diz ainda que não conta para os
colegas e professores, apenas para a diretora, porque não tem coragem de contar. “Porque
eles ficam me chamando de macumbeiro e eu não gosto. E também eu não gosto de
arrumar muita confusão.”
Porém é quando Naian tenta descrever o sentimento apreendido quando é
chamado de macumbeiro que se percebe uma possível desordem na sua tentativa de (re)
elaboração conceitual e de significado religioso: “Macumbeiro é…não é…Macumbeiro
é a mesma coisa de Candomblé...Não sei explicar muito não.”
Indagado sobre sua inspiração para ser de candomblé ele diz que é “porque eu vi
minha mãe aí eu me incentivei muito. Aí eu quis entrar.” “Pra mim…eu não me lembro,
59

mas eu acho que foi eu que escolhi.” E revela que seus guias de frente são: “Oxossi de
cabeça e Oxalá, Iemanjá e Oxum vem depois.”
Infere-se, do conteúdo das falas de Naian, o quanto a sua realidade religiosa está
em constante conflito com os olhares alheios a sua religião no cotidiano escolar pela
relação relatada com seu colega, mas que é sustentada pela convicção das vivências com
sua mãe biológica e também de santo.
Davi falou apenas que tem um colega que é de um outro terreiro, e que na escola
não percebiam nada de diferente. Ele, com respostas inusitadas e próprias da sua faixa
etária, diz que foi com seu tio Mida que aprendeu a tocar. E, quando é perguntado quais
os métodos que seu tio utilizava para o ensinar ele, verdadeira e infantilmente, responde:
“Ensinando! Eu olhava e aprendia”. Essa fala traduz uma das formas como se dá a
educação nos terreiros: ainda fortemente baseada na tradição oral, as crianças observam,
ouvem e aprendem.
Letícia revela-nos que por ser de Terreiro de Candomblé já foi discriminada, já
passou por alguma situação preconceituosa:
Tem uma colega minha, da escola, que ela é crente. Ela não acredita
nisso e tal. Se eu for com um colar assim eu já sou macumbeira, eu já
sou aquela que faço feitiço para o povo, jogo aquilo no povo e tal. Aí
quando eu chegava lá ela começava a dizer coisas, começava a rir de
mim. Aí, aula de religião, a professora começou a falar do Candomblé
e perguntou quem era do Candomblé. Eu disse que eu era e tinha uma
outra colega que era também. Aí essa menina (crente) foi querendo
inventar coisa e tal. Eu disse a ela: do mesmo jeito que eu respeito a
sua, você tem que respeitar a minha. Eu tenho a minha escolha, você
tem a sua. Eu disse isso para ela e mais nada. E hoje ela é de boa com a
religião. Ela nunca mais disse nada. Vou de colar e tal, nunca mais disse
nada (LETÍCIA,13/08/2017).

Para Leticia uma situação de discriminação enfrentada na escola, não a fez se


sentir vitimizada, pelo contrário, ela usou da situação em sala de aula para declarar-se de
terreiro e fazer com que sua colega a respeitasse como tal. Pela sua declaração Letícia
parece estar firme quanto a sua escolha religiosa e dar-nos uma boa lição: não calar-se
diante do opressor e orgulhar-se daquilo que faz com amor e devoção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finaliza-se este trabalho considerando que, pela categorização que direcionou as


falas para as análises e conforme valores semânticos em comum, no tópico da Infância
das Ecologias Humanas dos terreiros no Sertão, assente-se que as crianças e a adolescente,
com suas interpretações e (re) elaborações da realidade descrevem-nos suas atividades
60

nos terreiro mantendo a ingenuidade e a pureza peculiares das suas idades firmando suas
infâncias no contexto da religiosidade e também enquanto seres ativos e criativos.
Kerlen e Davi economizaram na verbalização das respostas, mas se mostraram
muito atentos e encantadores pelo desprendimento na reelaboração das suas realidades.
O conteúdo das falas de Davi, em especial quando relata que “Umbanda toca bateria e
Candomblé toca Atabaque”, parece evidenciar um afastamento do argumento adulto de
que são as entidades, os ritos, os toques, as músicas, as oferendas e, mais genericamente,
o rito de raspar ou não raspar a cabeça o que representa esse diferencial (distinção entre
candomblé e umbanda), ratificando sua autêntica interpretação.
Naian também envolve a musicalidade quando se dispõe a distinguir Candomblé
de Umbanda, o que é muito pertinente, visto sua condição também de Ogã. E que muito
provavelmente a discriminação vinda das pessoas externa à sua religião, o faz se entender
melhor com os seres que não o julgam: os animais não humanos, “os bichos”.
É preciso considerar também ainda que Letícia define Candomblé como sendo um
ritual de fé sincretizado no Catolicismo (religião Cristã)43. Associando os elementos da
natureza com os orixás, em seu discurso, ela compara sua religião com a igreja católica
emitindo que o candomblé vivencia mais a realidade ambiental e também relativiza as
responsabilidades sinalizando que, na hierarquia de cuidados, tá faltando muito da parte
dos humanos.
A respeito dos sentimentos dos seus processos de aprendizagem e iniciação, as
crianças e a adolescente de terreiros do Sertão do Brasil descrevem o quanto de
brincadeira, beleza, saberes e conhecimentos há em tocar atabaques, cantar, dançar,
auxiliar nos preparos ritualísticos, bem como se conectar em planos distintos (o terreno e
carnal com o ancestral e divino) reelaborando e ressignificando, dentro das suas
perspectivas infantis, as realidades culturais e religiosas do candomblé compartilhadas
com os adultos.
Pode-se inferir da fala de Kerlen que da parte de seus colegas há mais curiosidade
que discriminação quando pedem para vê-la dançando, mas nem as perguntas nem as
respostas dão conta de argumentos capazes de um desfecho conclusivo. De Naian, infere-
se o quanto é violento para ele ser rotulado de macumbeiro a ponto de não ter coragem
de contar para os colegas e professores que é de Candomblé, temendo maiores retaliações

43
A este respeito a Yalorixá Mãe Maria de Tempo diz-nos que, no inicio, lá quando começou tudo para a sociedade
aceitar um pouquinho o candomblé, precisou-se esconder muita coisa. Então tiveram que comparar o Orixá que
incorporava na pessoa com o Santo da igreja católica.
61

o que pode estar colocando-o, como muitos de terreiro, numa posição de invisibilidade
religiosa.
E o sentimento de pertencimento de Leticia é ratificado por toda a sua história de
dedicação e reciprocidade quando dos seus aperreios serem devidamente cuidados dentro
dos ritos da sua religião. Crianças nos terreiros, para Leticia, ganha sentido de uma
realidade com liberdade e espontaneidade nesses espaços pelos comportamentos
naturalmente vivenciados, o que faz do seu discurso uma pérola visto a autonomia e
autenticidade das suas descrições.
Por fim destacamos quão importante foi escutar as próprias crianças e a
adolescente a respeito das suas vidas, das suas escolhas e das suas participações no
candomblé. Suas falas são ventos fortes contra toda a montanha de preconceitos,
discriminações e intolerâncias estruturados contra o candomblé e, particularmente, sobre
a iniciação de crianças em religiões afro-brasileiras. As construções, interpretações e
(re)elaborações infantis próprias do contexto histórico marcantes do povo negro ratificam
que as crianças de candomblé do Sertão são Folhas Pequenas que nos ensinam grandes
lições.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad.: Luiz Antero Reto e Augusto Pinheiro.
São Paulo: Edições 70, 2016.

BOFF, Leonardo. Ética e Ecologia: desafios do século XXI. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=6YFTh2yEPlk. Acesso em : 09-02-2018
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros e como a escola se relaciona com
crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: PALLAS, 2012.
CORSARO, William A. Sociologia da Infância. Tradução: Lia Gabriele Regius Reis. 2.
ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.

GIL, Antonio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 5. ed. São Paulo: Editora
Atlas, 2010.
HIGINO, Mônica Estela Neves. As relações da criança candomblecista no espaço
social da escola. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) –
Universidade do Estado da Bahia, Salvador. 2011. 43f.
62

KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. O candomblé bem explicado: Noções Bantu,
Iorubá e Fon. BARROS, Marcelo (org.). Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

MACEDO, Roberto Sidnei. Pesquisar a Experiência. Compreender/mediar saberes


experienciais. Curitiba-PR: CRV, 2015.

MARQUES, Juracy; NOVAES, Joaquin (org.). CANDOMBLÉ E UMBANDA NO


SERTÃO: Cartografia Social dos Terreiros de Candomblé e Umbanda de Petrolina/PE e
Juazeiro/BA. Paulo Afonso: SABEH, 2015. 406p.
OLIVEIRA, Valéria Rodrigues de. Desmistificando a Pesquisa Científica. Belém:
Editora Universitária UFPA, 2008.
TOMAZ, Alzeni de Freitas. Direito e Ecologia dos Povos e Comunidades
Tradicionais: Ensaio sobre o Etnodireito. In: MARQUES, Juracy (Org.).
ECOLOGIAS HUMANAS. Feira de Santana: UEFS Editora, 2014. 393-417.
63

Resultados e Discussão

Enquanto resultado a pesquisa revela descrições sobre os processos de


aprendizagens e também de ensinos dentro do contexto religioso do Candomblé no Sertão
onde as crianças vivenciam os rituais numa interação com os adultos e dessas experiências
constroem e até reelaboram suas realidades.
Stela Guedes Caputo, tomando como referência seus registros, diz entender os
terreiros de candomblé como espaços de circulação de conhecimento, de saberes e de
aprendizagens:
O terreiro também é o mundo. O mundo de muitos meninos e meninas
que também estão na escola. No cotidiano das casas de Òrìsà e nas casas
de Égún se aprende e se ensina com as ervas, as comidas, a confecção
das contas, as músicas, as oferendas votivas, as cores, os cheiros, as
danças, os panos, as artes, as roupas, os artefatos, a vida, a morte
(CAPUTO, 2012).

Na Cartografia Social dos Terreiros de Petrolina/PE e Juazeiro/BA (2015), Pai


Dedé relata que quando um pai é iniciado, a mãe é iniciada, as crianças tendem a seguir
o pai ou a mãe. Diz que sempre pergunta ao pai e à mãe se estão de acordo a iniciar seu
filho porque ele (criança) não está sabendo praticamente de nada, mas futuramente pode
ser que não queira acompanhá-los e conclui externando que:

Pra gente é uma alegria danada, ela não tem maldade com nada, a
criança não tem maldade, é uma coisa que realmente passa pra gente
que é uma coisa pura. Muito emocionante ver uma criança
manifestando, dá alegria. Dá uma forte emoção e eu acho muito legal
(MARQUES e NOVAES, 2015).

Numa entrevista feita por Maria José Quados, publicada no Jornal O Globo Pierre
Verger fala que o candomblé é admirado e respeitado também pelos brancos, e isso faz
com que se tenha um certo orgulho de ser negro e que do ponto de vista psicanalítico o
candomblé é muito importante, com uma grande vantagem: na psicanálise há o
psicodrama, as pessoas são levadas a representar publicamente o que está escondido em
sua personalidade, mostrar seu lado mais vergonhoso, enquanto que no candomblé é
o contrário, isso ocorre em clima de festa, a gente pode mostrar o que é e ser admirado,
porque afinal de contas não é a pessoa que está fazendo ou dizendo aquelas coisas, é o
orixá (VERGER, 16/08/92).

Na perspectiva da descrição de Verger foi recorrente ouvir das autoridades


religiosas, dos pais de crianças de terreiro e também das próprias crianças e da adolescente
64

o estado de satisfação em poder “emprestar” seus corpos os orixás, caboclos e encantados


para as manifestações com danças, cantos e orientações espirituais nos rituais do
candomblé do Sertão.

Tomaz (2012) discorre que as sociedades tradicionais, índios, quilombolas, povos


de terreiros pescadores artesanais, ciganos, entre tantos outros, possuem, na sua
organização social, sistemas complexos de interação com tudo que existe. Segundo a
autora, sua ecologias determinam forma e sentido. Entendidos como distinção de duas
partes marcadas pela diferença que o sistema engendra. Ela (a autora) ainda infere que a
Ecologia Humana possui um forte conteúdo biológico por abordar a Ecologia Cultural, a
Etnobiologia, a Sociobiologia, a Ecologia Aplicada e os modelos de subsistência e de
transmissão cultural, entre outros, com o propósito de compreender a relação do ser
humano com a natureza e que, a isso, dá-se o nome de Etnoecologia.

A este respeito as falas dos povos de terreiro convergem sempre para o sentido da
lógica da preservação, conservação e manutenção dos ambientes naturais como as
cachoeiras, os rios, as matas, os oceanos dentre outros elementos que se constituem como
moradas sagradas dos seus Orixás, Caboclos, Nkisi e Encantados, pois nas relações
ritualísticas a interação é indissociável.

Corsaro (2011) infere que as crianças foram marginalizadas na sociedade devido


a sua posição subordinada e às concepções teóricas de infância e de socialização. Para ele
é comum que os adultos vejam as crianças de forma prospectiva, isto é, em uma
perspectiva do que se tornarão – futuros adultos, com um lugar na ordem do social e as
contribuições que a ela darão. Raramente as crianças são vistas de uma forma que
contemple o que são – crianças com vidas em andamento, necessidades e desejos. Como
resultado, as crianças são empurradas para as margens da estrutura social pelos adultos,
(incluindo teóricos sociais), mais poderosos, que se concentram, muitas vezes, nas
crianças como potencial e ameaças para as sociedades atuais e futuras.

Ainda para Corsaro (2011), quando aplicada à sociologia da infância, as


perspectivas interpretativas e construtivistas argumentam que as crianças, assim como os
adultos, são participantes ativos na construção social da infância e na reprodução
interpretativa da sua cultura compartilhada.
65

Também nos terreiros do Sertão a visão adultocêntrica se faz presente, mas, em


considerável medida, a concepção construtivista se manifesta com mais frequência e
intensidade, pois há situações em que uma criança é detentora de cargos e funções regidas
pelos Orixás, Caboclos, Nkisi e Encantados que superam, hierarquicamente, muitos
adultos. Um exemplo é a condição de Iakekerê de Kerlen (crianças de 8 anos de idade) e
também dos Ogãs Naian (10 anos de idade) e Davi (7 anos de idade) em relação aos
cargos de Abiãs e Yawôs adultos.

Portanto, perante as contribuições teóricas nos campos da participação e iniciação


de crianças nos terreiros de candomblé do Sertão é possível inferir que enquanto partes
de um universo religioso que possibilita vivências capazes de construções e reelaborações
sociológicas, históricas, culturais e de cognição esta pesquisa satisfaz os anseios
primeiros da compreensão dos processos que envolvem a participação e iniciação de
crianças nos terreiros de candomblé do Sertão.
66

Considerações Finais

Pelos olhares atentos e imersões sutis da religiosidade do Babalorixá e das


Yalorixás enquanto lideranças religiosas; pelas considerações cuidadosas e afetivas do
pai e das mães de crianças de terreiro; bem como pela a ingenuidade e espontaneidade na
arguição das próprias crianças e da adolescente envolvidas neste trabalho, a pesquisa
chega ao seu final compreendendo que tantos as lideranças religiosas, quanto os pais de
crianças do candomblé e mesmo as próprias crianças elaboram uma ecologia dos terreiros
do sertão como sendo a consequência do comportamento humano sobre o ambiente em
que atuam e que essas relações se estabelecem com muita afinidade e intensidade durante
os rituais e culto para os Orixás, Caboclos, Nkisi e Encantados.
Também foi possível considerar a importância da ecologia quando dos rituais que
envolvem o sacrifício de animais, pois para o povo de terreiro é nesta prática que são
estabelecidas as conexões entre os planos da materialidade consciente e a espiritualidade
quando da associação das representações dos seus orixás com os reinos e elementos da
natureza (terra, fogo, ar, água, vento, plantas, etc.), servindo de aporte existencial para a
espécie humana e que a participação infantil nos terreiros caracteriza, naturalmente, um
processo social de aprendizagem e transmissão dos saberes entre gerações, mas que as
crianças também dão seus próprios sentidos ressignificando e reelaborando as suas
relações com os adultos e com a religião.
Já em relação às inferências sobre os conteúdos do pai e das mães das crianças de
terreiro, acerca das participações de seus filhos nos terreiros de candomblé, foi possível
constatar que os mesmos (pai e mães) compreendem esses processos como vivências que
seus filhos acessam e que servem como bases estruturantes de ensino e de aprendizagem
imbrincados de valores éticos, morais, ecológicos, ambientais e humanos e que para as
próprias crianças e a adolescente os valores apreendidos, tanto numa perspectiva
ecológica quanto mais especificamente das suas crenças, firmam-se no exemplo familiar,
pois o caminho a ser percorrido na sua trajetória religiosa em muito já percorrido ou está
sendo construído por seus pais ou mães, ou avós, e por eles mesmos na perspectiva lógica
do sagrado, mas também do social, do educacional e do infantil.
Admitindo-se, contudo, a simplicidade investigativa desta pesquisa para dar conta
de uma questão ampla, complexa e de muito valor humano e religioso que é a participação
de crianças em terreiros de candomblé aqui no sertão, deseja-se que esta dissertação possa
servir de instrumento para novos projetos e estudos sobre a temática.
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Referências da Introdução e dos Resultados e Discussão

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad.: Luiz Antero Reto e Augusto Pinheiro. São
Paulo: Edições 70, 2016.
BERNO, Alfredo Wagner; SANTOS, Juracy Marques (org.). CANDOMBLÉ E
UMBANDA NO SERTÃO: Cartografia Social dos Terreiros de Candomblé e Umbanda
de Jaguarari/BA. Manaus: EUA, 2010. 212p.
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros e como a escola se relaciona com
crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: PALLAS, 2012.
CORSARO, William A. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

HIGINO, Mônica Estela Neves. As relações da criança candomblecista no espaço


social da escola. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) –
Universidade do Estado da Bahia, Salvador. 2011. 43f.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Técnicas de Pesquisa:
planejamento e execução de pesquisa, amostragens e técnicas de pesquisa,
elaboração, análise e interpretação de dados. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MARQUES, Juracy; NOVAES, Joaquin (org.). CANDOMBLÉ E UMBANDA NO
SERTÃO: Cartografia Social dos Terreiros de Candomblé e Umbanda de Petrolina/PE e
Juazeiro/BA. Paulo Afonso: SABEH, 2015. 406p.
OLIVEIRA, Valéria Rodrigues de. Desmistificando a Pesquisa Científica. Belém:
Editora Universitária UFPA, 2008.
PRANDI, Reginaldo. MITOLOGIA DOS ORIXÁS. São Paulo: Companhia da Letras,
2006.
QUADROS, Maria José. Candomblé com sotaque francês. Entrevista com Pierre
Verger. Jornal O Globo, 1992. Disponível em: www.pierreverger.org.br. Acessado em:
29/08/2018.
TOMAZ, Alzeni de Freitas. Direito e Ecologia dos Povos e Comunidades
Tradicionais: Ensaio sobre o Etnodireito. In: MARQUES, Juracy (Org.). Ecologias
Humanas. Feira de Santana: UEFS Editora, 2014, 393-417.

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