You are on page 1of 20

TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA COM POPULAÇÃO

QUILOMBOLA RESIDENTE NA ESTAÇÃO ECOLÓGICA SERRA


GERAL DO TOCANTINS

Lílian de Carvalho Lindoso

Analista Ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio),


lilian.lindoso@icmbio.gov.br

1. Introdução

No ano em que completa 10 anos de criação, a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins (EESGT) tem a
oportunidade de estabelecer um novo marco na relação entre as Unidades de Conservação e as comunidades do
Jalapão, através da proposta de Termo de Ajustamento de Conduta com comunidade auto-declarada quilombola
em seu interior. A região, considerada prioritária para a conservação por suas características únicas de transição
entre Cerrado e Caatinga, abriga a maior área contínua legalmente protegida do Cerrado brasileiro, composta
pelo Parque (160 mil hectares) e APA Estadual do Jalapão (360 mil hectares), e as federais Estação Ecológica
Serra Geral do Tocantins (716 mil hectares), Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba (730 mil hectares)
e APA da Serra Tabatinga (61 mil hectares, mais de 50% sobrepostos ao Parque das Nascentes do Parnaíba).

Repetindo um padrão comum em todo o Brasil, a criação de Unidades de Proteção Integral na região foi
conduzida sem a realização de estudos sócio-econômicos e sem a previsão de medidas de gestão para os poten-
ciais conflitos com as comunidades aí residentes há mais de um século. Tal situação culminou numa corrida pela
demarcação de territórios quilombolas nas três Unidades de Proteção Integral da região, sendo que em 2011 o
INCRA publicou edital nacional de contratação de profissional para elaboração de laudos antropológicos, dentre
os quais três na região do Jalapão, dois no município de Mateiros, cujos territórios reclamados encontram-se
integralmente no interior do Parque Estadual do Jalapão, e um em São Félix, cuja área reclamada engloba par-
cialmente área do Parque Nacional das Nascentes. Não obstante a demora destes processos, que já tramitam há
cerca de seis anos, é possível inferir que a perspectiva de consolidação territorial destas comunidades teve
influência direta sobre o recente auto-reconhecimento como quilombola da comunidade no interior da EESGT,
que se deu no início de 2010 e ainda aguarda a formalização pela Fundação Palmares.

Nesse cenário, o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério Público Federal no
Tocantins no âmbito do Fórum Estadual Permanente das Questões Quilombolas, a ser firmado por todas as UC
de Proteção Integral e suas respectivas comunidades, é apenas um instrumento paliativo e temporário na
construção da relação entre UC e comunidades, e não obstante, um caminho cheio de percalços. Por fim,
ressalte-se que o ICMBio não reconhece a comunidade reclamante como quilombola, justificando seu
posicionamento pelo fato de não ser competência do órgão tal reconhecimento e o fato de não haver
formalização por parte da Fundação Palmares.

2. Histórico de ocupação da região

Há pouca informação registrada sobre a ocupação do município de Mateiros-TO, emancipado em 1992, quando
era então distrito do município de Ponte Alta do Tocantins, que havia sido, por sua vez, emancipado de Porto
Nacional em 1959. Um dos raros registros dessa ocupação foi elaborado através de diagnósticos participativos
realizados junto às comunidades mais estreitamente ligadas ao Parque Estadual do Jalapão (PEJ), como parte do
Plano de Desenvolvimento Sustentável para o Entorno do PEJ (MMA, 2002). Embora esse estudo apenas cite a
comunidade atualmente localizada no interior da EESGT, por esta situar-se fora da área de entorno da UC
estadual, os relatos das famílias aí instaladas, registrados em memórias de reuniões e relatórios de atividades
(arquivos da UC), dão conta de que partilham um histórico comum. Segundo estes relatos, a ocupação da região
de Mateiros iniciou-se por volta da primeira década do século XX.

Vaquejadores vinham do Piauí e Bahia “vaquerar” nessa região e aqui “arranchavam”, e


muitos ficavam. Segundo dados do SEBRAE/PRODER (2000) os primeiros moradores
eram caçadores vindos do Estado do Piauí. Não se sabe ao certo se o nome de Mateiros foi
originado pela quantidade de veados campeiros com esse nome, que eram encontrados na
região. Alguns documentos e relatos apontam para esta interpretação. Negros e quilombolas
vindos da Bahia também ocuparam essas terras. Implantavam roças de toco, mas não
fixavam residência. 10 a 15 anos depois os filhos voltavam para fazer novas roças. (MMA,
2002, p. 73)

Um dos mais idosos patriarcas dentre as famílias na EESGT, s. Tomé Rodrigues, com mais de 90 anos de idade,
informa ter se mudado da Bahia para a região ainda menino, aos 6 anos de idade. Todos os seus filhos nasceram
e se criaram na mesma área que a família ainda mantém, embora não sejam mais aí domiciliados, situação
recorrente entre as famílias no interior da EESGT, que se intensificou a partir de 1997, quando a prefeitura
municipal propôs que as famílias aí localizadas se mudassem para a sede municipal, com a promessa de
receberem terras, e terem acesso ao atendimento de serviços como educação, saúde etc. Data deste ano o
fechamento da escola que funcionou por mais de 10 anos na localidade, e cujas ruínas ainda podem ser vistas às
margens do rio Novo. Desta forma, atualmente todas as famílias mantém domicílio na sede de Mateiros,
sobretudo para possibilitar o acesso aos estudos de filhos e netos, desenvolvendo na área da UC as atividades que
constituem, para a maioria delas, a principal fonte de subsistência.

Há, no entanto, certa diversidade de situações dentre estas famílias, organizadas a partir do pleito quilombola na
Associação das Comunidades Quilombolas do Rio Novo, Rio Preto e Riachão – Ascolombolas-Rios. Basica-
mente é possível dividi-las em dois núcleos, o núcleo às margens do rio Novo e o outro, às margens do rio Preto.
O Riachão nasce aos pés da Serra da Bocaina, formação mais ao menos ao centro da área (Figura 01), correndo
para o rio Novo. O rio Preto marca o limite da EESGT (linhas amarelas demarcam os limites da UC na Figura
01) no município de Mateiros, correndo paralelamente à estrada que o liga à cidade a Ponte Alta, o que significa
que o acesso a esta área é relativamente fácil. O rio Preto é, portanto, a principal via de acesso à EESGT, sendo
sua travessia realizada a nado, tanto pelas pessoas, gado ou montarias, enquanto os equipamentos e alimentos são
atravessados em rústicas balsas de buriti. Nesta parte da UC há grande pressão por coleta de capim dourado nas
veredas adjacentes ao rio, abundantes em ocorrência da espécie, e também para pastoreio do gado no período da
estiagem, localmente conhecido como refrigério. As famílias das margens do rio Preto, em geral, ocuparam a
área mais recentemente em relação às famílias do rio Novo, entre 40 a 20 anos, não tendo nascido aí, à exceção
da família de Almir Moura. Há também dentre os ocupantes deste núcleo alguns casos de uso da área apenas
para refrigério do gado, sendo que estes detém propriedades em outras áreas. Ressalte-se que as UC do Jalapão
foram criadas sobre áreas tradicionalmente consideradas áreas de uso comum, denominadas Gerais. As famílias
relatam que, antes da emancipação de Mateiros, fazendeiros de Ponte Alta desciam em busca de refrigério com
rebanhos de até mil cabeças, o que foi revertido mediante acordo a partir da separação do território. Desde então,
desconhecemos registros sobre a dinâmica de ocupação da área, a não ser através dos relatos das famílias, que
dão conta de uma grande mobilidade, tendo a área sido mais intensamente ocupada do que hoje.

Figura 1 Áreas familiares no interior da EESGT - Mateiros

Às margens do rio Novo, tem-se a ocupação acontecendo por basicamente dois núcleos familiares, o de s. Tomé
Rodrigues, já citado, e o de s. Silvino Souza. Ambos chegaram ainda crianças na região, e na área hoje
englobada pela EESGT viveram, casaram-se e criaram seus filhos. Os netos destes patriarcas, no entanto, já não
se criaram aí, de maneira geral, sendo que a maioria dos chefes de família são pessoas já idosas ou na casa dos
50 anos. Apenas um dentre os chefes de família no reclamado território quilombola está na faixa dos 30 anos, o
que reflete uma tendência nacional de abandono das atividades do campo pela juventude, que, na região do
Jalapão, busca hoje trabalho junto ao setor do turismo, público ou mesmo saindo do local. Pela declaração das
famílias, a única atividade que eventualmente liga estes jovens à área da EESGT é a coleta do capim dourado.

Outro aspecto relevante na conformação deste cenário é a questão fundiária. As terras do Jalapão mantiveram-se
a salvo da fronteira de expansão agrícola, que a cerca tanto pela Bahia quanto pelo Piauí, pela característica
arenosa de seu solo, revelando-se inadequada para exploração em larga escala. Não obstante, na década de 60

Essas terras [região do Rio Novo] foram griladas por americanos, que vieram explorar a
pecuária e agricultura e transportavam areia quartzosa. Em sua passagem pela região
fizeram obras de infra-estrutura como casas, pista de pouso, galpão para máquinas e
estradas. Começaram a criar um rebanho de mais ou menos 2000 cabeças de gado, mas
por falta de conhecimento da região esses investimentos na pecuária e agricultura
fracassaram. Criaram o Loteamento Pioneer Farms e Wagon Wells Farms. “Quando o
Governo do Estado de Goiás descobriu que o que estava havendo era um processo de
especulação imobiliária entrou em demanda e suspendeu as escrituras”. Em 6/10/1976
foram canceladas 1300 escrituras de compra e venda dos lotes por decisão judicial de
Porto Nacional (informação levantada no Cartório de Registro de Imóveis de Ponte Alta).
(idem, ibidem, pp. 73/74)

Logo após, ainda antes dos anos 80, o governo do Estado de Goiás iniciou o processo de desmembramento
destas terras devolutas, vendendo-as em leilão por preços baixíssimos, devido à fraca aptidão para agricultura
das mesmas. As comunidades, já então estabelecidas há algumas décadas, não foram consideradas neste
processo, conforme relato das famílias.

As pessoas mais velhas das comunidades declararam durante as entrevistas que ocorreram
injustiças no processo de regularização das terras, especialmente com relação aos pequenos
agricultores e posseiros. Alguns ocupantes que vivem nas proximidades dos rios e da cidade
não foram beneficiados com o título da terra e se tornaram “posseiros” de quem adquiriu o
título posteriormente. Muitos deixaram de comprar os títulos porque não possuíam nenhum
recurso. Outros possuem os títulos mais ainda não registraram no Cartório de Registro de
Imóveis. Na época, havia agricultores que não possuíam nenhum tipo de documento e
acabavam registrando suas terras em um mesmo título em nome de quem possuía
documento de identidade. Isso ocasionou muitas brigas e barganhas em torno das terras.
(idem, ibidem, pp. 74/75).

Neste sentido, tampouco as famílias localizadas no interior da EESGT foram contempladas com títulos das terras
tradicionalmente ocupadas. A maioria não conhece os detentores dos títulos, que, por sua vez, não conhecem a
região, quase todos, e muito menos têm ciência da presença de ocupantes em seus lotes. O auto-reconhecimento
quilombola é provavelmente encarado pela comunidade como uma possível solução também para este aspecto da
questão, pois as famílias já foram informadas em diversos contatos com diferentes equipes da Unidade sobre a
determinação legal de sua retirada, mediante indenização de benfeitorias e/ou reassentamento em outra área
quando da regularização fundiária. O reconhecimento do território, aparentemente, vem ao encontro de seu
anseio de permanecerem no local, pois sabem que não há no município de Mateiros outras áreas disponíveis que
lhes ofereçam as mesmas condições de subsistência, claramente dependente das veredas. Por outro lado, pouco
se avançou na regularização fundiária da Unidade, por motivos inerentes à burocracia para que os proprietários
possam receber a indenização. Recentemente, em função da demanda quilombola, os processos de regularização
em andamento relativos a lotes localizados nas áreas de ocupação destas famílias foram paralisados, causando
descontentamento entre os proprietários com processos abertos.

3. Por que e para que um TAC?

Para além da admissão de atividades humanas no interior de UC de Proteção Integral, que, embora prevista no
Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), através do § 2o do artigo 42, e regulamentada pelo
artigo 39 do Decreto 4.340/2002, que prevê a assinatura de Termos de Compromisso com populações
tradicionais, transformou-se em verdadeiro “tabu” da conservação no Brasil, a grande questão em jogo neste
processo tem a ver com a própria capacidade do projeto de conservação no Cerrado brasileiro de dialogar com os
modos de vida e produção das comunidades locais, fundamentados na estreita dependência das áreas úmidas
(veredas), tanto mais evidenciada numa região em que o solo arenoso revela-se inadequado ao desenvolvimento
de atividades humanas nos seis meses do ano em que não chove. Das principais atividades econômicas das
populações locais, a criação extensiva de gado e a extração de capim dourado estão ligadas às veredas, sendo o
fogo elemento fundamental no manejo destas atividades. Para o gado, o fogo estimula a rebrota da pastagem
natural. Já conforme o conhecimento local, o fogo estimula a produtividade do capim dourado, assim como
confere maior brilho e resistência à matéria-prima do artesanato mais procurado do Tocantins. Pesquisas
realizadas desde 2004 pela ONG Pequi (SCHMIDT, 2005), confirmam o conhecimento tradicional, embora se
revistam de cautelas uma vez que não foram estudados os impactos deste fogo sobre as demais espécies vegetais
da vereda e sobre os solos. Ressalte-se que o manejo do fogo para o gado e para o capim consorciam-se, na
medida em que a área queimada para o gado em um ano será a área de coleta do capim no ano seguinte.
O argumento que embasa essa resistência ao diálogo é o da ilegalidade, pois a legislação ambiental brasileira
proíbe atividades em Áreas de Preservação Permanente (APP), como é o caso das veredas. No entanto, é
recorrente a utilização destas áreas na agricultura familiar e no manejo tradicional nos diversos ecossistemas do
Brasil, podendo-se entender que o manejo de APP representa uma estratégia de convivência com o ambiente, ou
ainda uma estratégia de adaptação às condições naturais, que permitiram a esses grupos sobreviver sem a
conversão da paisagem. De certa forma, começa-se a reconhecer este fato e a buscar minimizar os conflitos de-
correntes da legislação, o que se reflete na Resolução CONAMA 425/2010, que prevê alguns casos de utilização
de APP por populações tradicionais, inclusive o pastoreio extensivo tradicional em campos de altitude, em que o
fogo é elemento central. A previsão de medidas mitigadoras dos impactos nestes documentos lembra que há
impactos a serem observados; a questão não é pretender ausência deles, mas colocar em perspectiva os vários
elementos implicados na decisão por uma ou outra técnica de manejo, considerando, sobretudo, se as alternativas
tecnológicas disponíveis são viáveis e menos impactantes do que as já desenvolvidas tradicionalmente.

Em tal contexto, a pior decisão parece ser a falta de gestão do conflito. No cenário analisado, chegou-se a um
patamar de insustentabilidade tanto social quanto ambiental, pois, de um lado, as famílias, para não serem fla-
gradas pela fiscalização, ateiam fogo e não o acompanham, perdendo inclusive a capacidade de manejo de sua
própria área; por outro, as UC, que estão entre as de maior ocorrência de incêndios no país, não conseguem ter
efetividade no controle do fogo, sendo possível perceber a recorrência de um ciclo trianual de grandes incêndios.
Nesse sentido, a previsão da queima controlada dentro do TAC, polêmica que é um dos principais pontos de re-
sistência à assinatura do documento, foi proposta como uma medida, dentre tantas outras necessárias, de pré-
venção de incêndios, no mesmo movimento em que cria espaços de diálogo entre as UC e as comunidades lo-
cais, abrindo caminho para a gestão participativa e a inclusão social no universo da conservação no Jalapão.

4. Histórico do Processo

O primeiro registro de uma iniciativa no sentido de regulamentar a relação entre a UC e a comunidade residente
em Mateiros, que doravante denominamos Mata Verde, como é localmente conhecida uma região específica
próximo ao Córrego do Jorge, afluente do rio Novo, e por algumas famílias estendida à localidade como um
todo1, é de 2003. No processo então aberto consta uma minuta de Termo de Compromisso que basicamente
previa as autorizações para desmatamento e para queima controlada. O processo passou meses circulando de
setor em setor, com distintos pareceres girando em torno da necessidade de cadastramento das famílias, da
impossibilidade de autorização de queima controlada em Estações Ecológicas e, por fim, a última movimentação
orienta o aguardo da conclusão da regularização fundiária da Unidade para, somente após isso, adotar alguma
medida de relação com as famílias – paralisando o processo. Destaque-se que em um dos despachos, a gestão da
UC foi orientada a autorizar as queimas “informalmente”, solução extremamente frágil, que transfere todo o
ônus para o gestor exclusivamente, tirando da Instituição qualquer responsabilidade pela medida.

A partir de então, distintas gestões se sucederam e, apesar de permanente diálogo com a comunidade, não
conseguiu-se avançar em termos de formalização do reconhecimento das atividades destas famílias. Em todos os
relatos, consta que tal situação de insegurança as levou a suspender algumas atividades e/ou diminuí-las, ante o
temor da fiscalização. Sendo a ESEC Serra Geral do Tocantins uma das UC que mais queimam no país,

1
É de notar-se que não há uma nomenclatura formalmente reconhecida pelas famílias, o que se reflete no próprio nome da Associação, que
se refere aos rios mas não lhe confere um nome. E mais, refere-se a comunidades e não a uma comunidade.
eventualmente também construiu-se informalmente calendários de queima controlada para garantir o
acompanhamento das mesmas pela Brigada da Unidade, entendendo-se que era melhor realizar tal investimento
do que depois ter de ir combater os incêndios.

No entanto, o gado introduzido na área da UC não é exclusivamente o destas famílias. Em toda a área da
Unidade, e inclusive em Mateiros, proprietários e posseiros no entorno da UC continuavam (e alguns ainda
continuam) conduzindo seus rebanhos para os Gerais no período da estiagem, razão pela qual em 2008 foi
realizada operação ostensiva de retirada do gado, o que generalizou o temor entre os locais, inclusive entre os
residentes que, embora não tenham sido obrigados a retirar seus rebanhos, pequenos no caso da maioria das
famílias (variando entre 10 a 35 cabeças), não tinham segurança em relação à permanência do tratamento
diferenciado. Em 2009 a equipe da EESGT retomou o processo de cadastramento para assinatura de Termo de
Compromisso com o núcleo de residentes na Mata Verde, com a intenção de estendê-lo posteriormente ao outro
principal núcleo de residentes, a comunidade dos Prazeres, na porção baiana da Unidade. No final de agosto
deste ano, foi realizada uma reunião, onde se trabalhou a Linha do Tempo, para conhecer o histórico de ocupação
da área, o Calendário Sazonal de Atividades, para melhor entender a dinâmica produtiva local, e o Mapa falado,
para compreender a distribuição da ocupação e possibilitar o agendamento das visitas locais. Na ocasião, a
comunidade explicitou que não assinaria um documento que proibisse o uso do fogo, e informou que estava se
organizando em termos de auto-reconhecimento como quilombola. A vistoria de campo ocorreu no final de
setembro, limitando-se a entrevistas com as famílias do rio Novo, em função das dúvidas suscitadas em relação
às diferentes características do núcleo rio Preto, já explicitadas. A consulta jurídica realizada pela UC sobre estas
questões nunca chegou a ser respondida. No mesmo ano, criou-se no ICMBio a Coordenação de Gestão de
Conflitos Territoriais, com grande foco nos Termos de Compromisso com populações tradicionais no interior de
UC de Proteção Integral, mas também com a atribuição de normatizar os procedimentos de gestão compartilhada
em áreas de sobreposição com Territórios Indígenas. A partir de 2010, esta Coordenação passou a ter papel ativo
na condução do processo.

Já em fevereiro de 2010, a EESGT participou da primeira reunião junto ao Fórum Permanente das Questões
Quilombolas do Tocantins, no âmbito do qual foram negociados os termos do TAC proposto inicialmente para
ser firmado entre os dois órgãos gestores (Naturatins e ICMBio) e as comunidades, mas que foi desmembrado
para cada UC. Ao longo do ano foram realizadas seis reuniões, em que se discutiu a proposta de atividades apre-
sentada pelas comunidades. Com a entrada em cena do Fórum, a comunidade sentiu-se mais segura com o instru-
mento proposto pelo MPF, tendo o ICMBio perdido a oportunidade de um maior protagonismo na ação, pas-
sando ao cumprimento de um papel reativo, sob a observância do MPF. Na última versão do TAC da EESGT,
negociada com a comunidade, ficam permitidas a abertura de roças (de toco ou esgoto, técnica tradicional de
plantio sobre a vereda), a criação de gado, a coleta de capim dourado, a pesca com anzol, utilização de madeira
para consumo próprio, a reforma e ampliação de estruturas, desde que se abdique da pretensão de indenização
futura; e ficam proibidos a caça, o turismo (não permitido pela categoria de UC e não desenvolvido tradicional-
mente pela comunidade), a expansão dos rebanhos, a não ser pelo aumento natural, e a mecanização dos cultivos.

O TAC, enquanto documento genérico, a ser firmado pela Ascolombolas-Rios, terá como complemento os
Termos de Adesão, a serem assinados por cada família. Nele, constarão as informações necessárias à autorização
das queimas controladas e os desmatamentos para abertura de roças. Nesse sentido, nova vistoria foi realizada,
em duas etapas, em fevereiro e maio de 2011, desta vez percorrendo as áreas produtivas, marcos das áreas
familiares, bem como outros caracterizadores relevantes da ocupação (túmulos, taperas de antigas ocupações
etc), gerando as coordenadas geográficas que possibilitarão o monitoramento do cumprimento das autorizações e
dos impactos causados pelas atividades. Também refinou-se nessas entrevistas o histórico de ocupação da área,
buscou-se uma melhor caracterização dos conhecimentos tradicionais (ervas medicinais, espécies de fauna e
flora encontradas na região etc); sendo elaborados ainda calendários de atividades por família.

Paralelamente, ampla articulação foi sendo realizada tanto intra quanto interinstitucionalmente, de forma a
viabilizar o desenvolvimento de um componente de monitoramento que permita a produção de informações
necessárias para o aperfeiçoamento da normatização das práticas tradicionais, compatível com a realidade local.
No processo de articulação interna, em abril de 2011 a pré-análise dos dados levantados nas vistorias de campo,
com a comparação dos distintos regimes de queima declarados pelas famílias bem como de áreas médias de
queima por cabeça de gado, levou a que a minuta do TAC negociada com a comunidade passasse por várias
alterações, como a indicação de limite máximo de área a ser autorizada para queima por família, numa média de
dois hectares por cabeça de gado, a observância da impossibilidade de autorização de queima para veredas
próximas aos locais onde tenha sido constatada a presença do Pato Mergulhão (Mergus octasetaceus), espécie
criticamente ameaçada de extinção que ocorre justamente no rio Novo, e inclusive tendo sido registrada próximo
aos ranchos de algumas destas famílias e a inclusão no texto do documento da obrigatoriedade de
monitoramento, o que já vinha sendo discutido, mas não constava na minuta proposta.

Após o acordo realizado na oportunidade, foi necessária a formalização de um documento assinado pelas três
diretorias finalísticas do ICMBio, atestando que aceitariam a celebração do TAC nos termos discutidos na
referida reunião. Após isso, veio parecer jurídico favorável ao processo, mas a falta de definição de
procedimentos tem gerado receios por parte das equipes técnicas quanto à viabilidade do encaminhamento do
processo. Somente em outubro surgiu um indicativo de continuidade, e espera-se até o final do ano ter pelo
menos uma minuta definitiva, em acordo com a Ascolombolas-Rios. Emblemático da grande dificuldade em
avançar no assunto é a paralisação da minuta de Instrução Normativa sobre Termos de Compromisso que, após
realização de Seminário sobre a temática em Novembro de 2010, e consulta interna junto aos servidores da casa,
não foi ainda aprovada para publicação. Nesse sentido, já em outubro de 2011, com praticamente todas as
atividades levantadas nas vistorias já realizadas (ou não, mediante a situação de insegurança ainda existente, e
reforçada por duas multas aplicadas a associados envolvidos na negociação do TAC), trabalha-se para que 2012
seja o marco zero desta nova etapa.

No nível interinstitucional, a segunda etapa da vistoria, realizada em maio de 2011, contou com a participação de
instituições envolvidas no processo, de forma a que estas pudessem dimensionar melhor o desafio representado
pelo TAC, bem como garantir maior transparência ao processo. A idéia foi a de que este núcleo de instituições
envolvidas constituísse espécie de embrião do Grupo Interinstitucional de Monitoramento, previsto na minuta do
TAC. O referido grupo viria a ser uma instância de gestão participativa, no sentido de compartilhar a
responsabilidade pelas decisões, e em princípio, poderia vir a ser transformado numa Câmara Técnica do
Conselho Consultivo da Unidade, cujo processo de criação deve ser concluído até o final do corrente ano. A
criação do componente de monitoramento do TAC, que envolve tanto a formação do Grupo Interinstitucional
quanto a elaboração participativa do Programa de Monitoramento, são objeto de projeto aprovado em chamada
interna da Coordenação de Educação Ambiental e Capacitação Externa (CEAC) do ICMBio, porém sua
concretização em 2011 está ameaçada pela demora no andamento do processo.

5. Sustentabilidade regional e UC de Proteção Integral: uma discussão

O desafio que está posto é não apenas o estabelecimento de um novo marco para a sustentabilidade da região do
Jalapão, mas sobretudo como se dará essa construção. Optar-se-á pelo caminho do comando e controle baseado
unilateralmente no (des)conhecimento científico, ou será pensada a partir de uma perspectiva em que as
comunidades serão centro e foco da construção, dialogando em condições de igualdade com a ciência, e
contando com a parceria de distintos atores sociais e governamentais – sem ignorar suas necessidades
prementes? A questão é complexa, e encaminhá-la não é competência exclusiva das UC. No entanto, estas têm
uma clara contribuição a trazer, seja porque através delas, o estado e o governo federal se fizeram presentes na
região, com atuação e investimentos diretos, seja porque seus processos de criação alteraram de maneira brusca a
dinâmica local, na medida em que não houve consulta às comunidades, estudos sócio-econômicos que
identificassem a intensidade de sua presença antes da criação das UC e muito menos adoção de medidas efetivas
para gestão e/ou minimização dos conflitos.

Questões de fundo interferem na tomada de decisões que optem por este caminho da negociação, que Sachs
denomina “gestão negociada e contratual da biodiversidade” (2009). Talvez a principal delas seja a crença, ainda
muito arraigada no campo das Unidades de Conservação, no que Diegues (2006) denomina “o mito moderno da
natureza intocada”, segundo o qual as áreas naturais precisam estar apartadas da presença humana para
permanecerem “puras” e cumpridoras de suas funções ecológicas. Ignora, este olhar, o fato de que “o que
acreditamos ser floresta virgem é uma realidade que tem sido profundamente alterada e, por vezes, enriquecida
pela presença do homem, conforme documenta a pesquisa arqueológica na Região Amazônica” (SACHS, p. 68,
2009). Ao estender ao conjunto geral da humanidade a responsabilidade pelas graves alterações nos
ecossistemas, desconsiderando a grande diversidade da experiência humana, perde esta visão de mundo a
oportunidade de perceber que o discurso ambientalista e preservacionista é, ele também, uma construção
humana, carregada de significados e opções civilizacionais, e não o porta-voz da natureza como parece pretender
ser. A biologização do campo ambiental escamoteia as dimensões cultural e política do ambientalismo, ao
mesmo tempo em que dissocia a história de exploração comercial da natureza da exploração dos próprios seres
humanos por alguns outros seres humanos, que culminaram com a situação de grave crise ambiental atual, que
Porto-Gonçalves prefere denominar como crise civilizacional (2004).

Mas antes de enveredarmos pelas implicações desta dicotomia, considerando o contexto local em que está em
jogo outra questão que complexifica ainda mais a discussão, a saber, o auto-reconhecimento quilombola, parece
importante refletir um pouco sobre o tema.

5.1. A questão quilombola nas fronteiras da sociedade brasileira

Um dos principais questionamentos ao reconhecimento do direito das famílias no interior da EESGT é


justamente quanto ao seu caráter quilombola. Em que pese que a situação geradora do direito à continuidade do
desenvolvimento de suas atividades até o arranjo definitivo, conforme previsto no SNUC, não tem relação direta
com o pleito quilombola, mas sim com o fato de já estarem lá há cerca de um século antes da criação da UC, no
nosso entendimento o que está em jogo são duas questões principais, das quais decorrem outras tantas, conforme
o observador: de um lado, as imprecisões conceituais, até certo ponto naturais em função do pouco acúmulo
histórico no país de ações afirmativas que visem à reparação de injustiças históricas no processo de formação do
Brasil, e, de outro, o baixo nível de preparo dos técnicos da área ambiental para o trato de questões sociais.

Considerando que ambas as questões se intercruzam, gerando desdobramentos complexos que não pretendemos
aqui enumerar ou esgotar, nos deteremos a um olhar histórico sobre a questão quilombola e suas implicações na
atualidade para a gestão pública, uma vez que a questão hoje é muito mais problemática na medida em que
demanda respostas institucionais nas mais variadas esferas de atuação, levando a situações de “crise” de valores
e de missão inerentes aos processos de mudança.

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição de 1988, reconheceu o
direito das comunidades remanescentes de quilombos em terem suas terras tituladas pelo Estado brasileiro. Sem
dúvida, o conceito de quilombo aí adotado remetia ao fato histórico, situado no tempo, de formação de
comunidades de negros fugidos dos empreendimentos escravocratas. No entanto, que critérios norteariam a
definição de tais comunidades? Os registros históricos contemporâneos à escravidão certamente não poderiam
ser uma referência absoluta, na medida em que muitos quilombos se localizaram em lugares ermos – o que se
revelou, pela pesquisa historiográfica como não sendo um padrão, já que os negros fugidos necessitavam manter
contato em busca de víveres e informações (FIABANI, 2005) – mas, independente deste fato, pela própria
dinâmica da luta quilombola, que torna o fenômeno de difícil sistematização – a alta taxa de mortalidade, o baixo
nível de natalidade, a instabilidade locacional, e mesmo a destruição destes, com a recaptura de escravos.

Nesse sentido, os laudos antropológicos é que deveriam evidenciar os dados históricos que ligassem às
comunidades ao período escravista. Outra não foi a preocupação do Decreto 3912/2001, que condicionou a
demarcação de territórios quilombolas às áreas que “I - eram ocupadas por quilombos em 1888; e II - estavam
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988”. A medida que os
primeiros estudos antropológicos eram realizados, caracterizava-se a dificuldade em encontrar grupos que se
encaixassem na definição de quilombo prevista. Num dos primeiros estudos realizados no Brasil, que culminou
com a demarcação do território quilombola do Rio das Rãs, na Bahia, em 2000, o antropólogo José Jorge de
Carvalho, citado por Adelmir Fiabani (2005, p. 363) esclareceu que

[...] “uma das nossas principais dificuldades é justamente o perfil geográfico dispersivo das
comunidades e a conseqüente dificuldade em se fazer um levantamento demográfico
consistente e exaustivo”. No Brasil, o caráter violento da repressão senhorial, aliado à
dispersão populacional quilombola, não teria forjado comunidades arrojadas, independentes
e perfeitamente identificáveis por suas características próprias. Ao contrário, dominou a
fragilidade do quilombo brasileiro.

O estudo constatou que não havia, nas redondezas da comunidade, algum empreendimento escravista ao qual os
“fujões” pudessem estar ligados. No entanto, em se considerando a antiguidade da ocupação (primeira metade do
século XIX), como determinar se eram ou não remanescentes de quilombos? Em artigo escrito em parceria com
Siglia Dória, Carvalho aponta que

“não há referência de que haja sido egressos da destruição de algum tipo de


empreendimento escravista registrado na região. Na verdade, trata-se de um grupo social
descendente de negros que viviam livres no interior da ordem escravocrata – quilombolas
escapados de uma região mais distante, num período muito provavelmente anterior ao da
ocupação da área – e que aí chegaram e aí demarcaram o seu território e a sua autonomia”.
(apud FIABANI, 2005, p. 367)
Em função do choque entre a disposição constitucional e a realidade concreta, aliados à complexidade do
fenômeno da resistência negra à escravidão, foi que, segundo Adolfo Neves de Oliveira Jr (apud FIABANI,
2005, pp. 368/369), “membros da comunidade acadêmica, de comunidades rurais negras, de movimentos negros
por todo país, em conjunto com o Ministério Público Federal [foram levados] a buscar uma definição de
‘remanescentes de comunidades de quilombos’ que fosse aplicada aos casos concretos porventura existentes”.
Tal movimento culminou numa re-significação do conceito de quilombo, que procuraria dar conta não apenas
das comunidades formadas pelos negros antes e após a abolição da escravatura, embora estes últimos, apesar de
formalmente livres, encontravam-se destituídos de quaisquer outros meios para se inserir com dignidade na
sociedade, mas também daquelas comunidades forjadas ainda durante a escravidão através de outros caminhos
(terras de santo, propriedades herdadas ou compradas etc).

Para Ilka Boaventura Leite (apud FIABANI, idem, p. 377) quilombo seria “qualquer forma de organização, de
luta, de espaço conquistado e mantido através de gerações”. Arruti (idem, ibidem, p. 374) sustenta que o
quilombo não acaba com a abolição da escravidão porque

“a realidade das atuais comunidades remanescentes vem chamar nossa atenção é justamente
[para] o fato de o desaparecimento legal não ter representado sempre o desaparecimento
real daquelas formas de posse e de organização social. Elas parecem ter continuado
existindo de formas mutantes, permanentemente adaptadas aos novos contextos legais e
regionais, sustentadas em laços comunais ou em compromissos precários com aqueles que
eram os próprios expropriadores”.

A Associação Brasileira de Antropologia manifestou-se sobre o assunto nos seguintes termos:

O termo quilombo tem assumido novos significados na literatura especializada e também


para grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha um conteúdo histórico, o mesmo
vem sendo ‘ressemantizado’ para designar a situação presente dos segmentos negros em
diferentes regiões e contextos do Brasil. [...] [hoje] quilombo não se refere a resíduos ou
resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também
não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma
forma, nem sempre foram construídos a partir de movimentos insurrecionais ou
rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas
cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus próprios modos de
vida característicos e na consolidação de um território próprio. (apud FIABANI,
ibidem, p. 390, grifo nosso)

Apesar de tantas citações, Fiabani é, na verdade, contra essa ressemantização do conceito de quilombo, por
entender que

[...] a singularidade histórica do quilombo era que a luta se dava, essencialmente, pela
liberdade da força de trabalho, e não pela terra. No presente, no meio rural, no caso de
descendentes de quilombolas, 13 de maio, de caboclos negros etc., a luta é, ao contrário,
essencialmente pela posse da terra, meio de emancipação relativa do trabalho no seio da
ordem capitalista. Fenômenos históricos diversos, de tempos diversos, que devem ser
tratados, necessariamente, com categorias diversas (ibidem, pp. 395/396).

No entanto o autor reconhece que com a Disposição Transitória apenas “escancarou-se o problema fundiário
brasileiro, no que se refere às comunidades rurais afro-descendentes. São grupos sociais que pleiteiam a titulação
das terras e viram na brecha da lei a possibilidade para tal” (ibidem, p. 373). Nesse sentido é que propomos a
reflexão sobre o que realmente está em jogo na questão quilombola. Por todos os argumentos trazidos pelas
pesquisas antropológicas, na lida direta com a realidade destes grupos sociais, o anseio de suas representações
organizadas é realmente pelo reconhecimento constitucional da necessidade de reparação de uma injustiça
histórica que atingiu a todos os negros do Brasil, independente de terem se refugiado em quilombos ou não. O
reconhecimento e identificação das comunidades que realmente se possa comprovar serem estritamente
descendentes de antigos quilombos tem interesse histórico, cultural e, por que não, reparador, mas não dá conta
da complexidade da grande dívida social oriunda da escravidão.

A grande questão, portanto, não pode se ater a disputas conceituais, que de resto vêm sendo trabalhadas sob forte
pressão e participação dos movimentos negros no país. Parece legítimo batalhar pela titularidade de terras num
país em que a reforma agrária mais bem se poderia chamar “contra-reforma agrária”, e essa indefinição
historicamente se estabeleça em favor de grileiros, latifundiários e grandes empreendimentos, sujeitando essas
populações a versões atualizadas de violência, e outras nem tão atualizadas assim 2. O respaldo constitucional é,
sem dúvida, grande aliado. Infelizmente, os detratores do alargamento do conceito de quilombo não propõem
alternativas; o que poderia implicar simplesmente um retrocesso das conquistas dos negros no país. Por outro
lado, tal falta de alternativas ou o interesse explícito em acabar com esse tratamento especial (diga-se de
passagem, não apenas para os negros), apenas reforça os caminhos que vêm sendo apontados, e que inclusive se
refletiram na revogação do Decreto 3912/2001 pelo 4887/2003, no qual as comunidades quilombolas são
definidas como “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria,
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência
à opressão histórica sofrida”.

Outra polêmica introduzida pelo novo decreto é a autodefinição. Embora por trás dela esteja toda uma proposta
de fortalecimento comunitário e orgulho étnico, sobre o qual não nos ateremos aqui, no nível prático das relações
políticas locais, tal brecha tem possibilitado inegavelmente a ação oportunista, reforçada pela situação de
abandono e de injustiça consolidada, que facilita em muito essa atuação interessada. Portanto o desafio é
gigantesco, o que reforça nosso entendimento de que o não enfrentamento dos conflitos o quanto antes só tende a
agravá-los e complexificá-los, não devendo os desafios de hoje ser justificativa para a inoperância, ou mesmo
para a revogação de direitos – que uma sociedade democrática deve buscar sempre ampliar, e não reduzir – sob
pena de apenas aprofundar a injustiça e tornar cada vez mais dispendiosa, finaceira, social e politicamente, a
instauração de uma sociedade com iguais oportunidades para todos.

No caso da população auto-declarada quilombola no interior da EESGT, percebe-se que, além da grande
diversidade de situações no interior da própria comunidade, que inclusive se auto-denomina como comunidades,
no plural, conforme já descrito, não há muita clareza sobre o que seja ser um quilombola. Um de nossos
entrevistados informou identificar-se como quilombola pelo fato de seu avô ter sido proprietário de escravos.
Durante a negociação, os associados colocavam que não poderia haver restrições às suas práticas ou ao aumento
de suas estruturas produtivas pelo fato de serem quilombolas. Por outro lado, a falta de gestão da situação de
conflito latente pela existência das famílias desde antes da criação da UC, sem dúvida, foi decisiva no
acirramento do conflito, e inclusive deu abertura para o livre arranjo entre as famílias, independente de haver
situações de direito concreto ou não. A Associação ganhou, com o atraso da resposta, em margem de negociações
políticas que não necessariamente representam o interesse da maioria das famílias que, no entanto, aceitam o
acordo por perceberem que ele lhe traz mais benefícios do que ficar à mercê da gestão da UC. Sob essa

2
Para dados, ver Conflitos no Campo Brasil 2010. Canuto, Antônio; Luz, Cássia Regina; Wichinieski, Isolete (orgs.). Goiânia: CPT, 2010.
perspectiva, parece claro que evitar o acordo ou tentar miná-lo apenas agravará a situação, não gerando ganhos
para nenhuma das partes e, sobretudo, negando o direito de uma maioria de filhos daquela terra que, em sua
maioria, não dispõem de alternativas mais interessantes do que as oferecidas pela coleta do capim dourado, com
apoio das atividades tradicionais de subsistência.

5.2. Reflexões sobre Natureza x Cultura: uma perspectiva para a questão da sustentabilidade

É justamente a complexidade da sociedade brasileira, que não se dá apenas em termos de classes, mas de
etnicidades, na medida em que convivemos, ainda hoje, com outras formas de sociedade, embora já bastante
amoldadas ao relacionamento subalterno a que foram submetidas à força (física ou simbólica) com a nossa
sociedade, o imperativo de um novo olhar sobre as diferentes formas de relacionamento com a natureza ou
recursos naturais (a opção por uma ou outra expressão já é, ela mesma, denunciadora de uma visão de mundo),
gerando a necessidade de aplicação de políticas diferenciadas para dar conta desta diversidade. Outra razão não
teve o recente reconhecimento pelo Estado brasileiro (ou seria, por ora, apenas iniciativa de um determinado
governo?) das comunidades e populações tradicionais como atores sociais diferenciados dentro da sociedade
brasileira, e portadores vivos de uma outra relação homem X natureza digna de esforços de manutenção em
benefício destas e de toda a sociedade, materializado no Decreto 6040/2007, que estabelece a Política Nacional
de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) 3. Não se trata de idealizar as
populações tradicionais, nem atribuir a elas uma “missão” a qual não se propuseram abraçar, e menos ainda de
transformá-las em porta-vozes de um paraíso perdido que estaríamos buscando resgatar. Waldman (2006) alerta:

Mas como recorda Juan Martinez Alier, “nenhuma civilização foi ecologicamente
inocente” [1992]. Pelo que poderíamos aquilatar [...] que uma sociedade ecológica está por
ser instaurada e não restaurada. Cabe recordar que as sociedade tradicionais, ao contrário
do que está estipulado pela concepção de “paraíso perdido”, engendraram sua própria
versão de crise ambiental, que eclodia com base em mecanismos históricos, sociais e
culturais específicos destas. [...] o fato é que as sociedades de outrora raramente tiveram no
esgotamento do ambiente natural uma seqüela de seu colapso. (pp. 59-61)

Trata-se, contudo, de perceber uma outra racionalidade intrínseca, contrapondo-se à sociedade contemporânea,
no sentido de que “o mundo da tradição pautou-se por uma convivência com a esfera do natural, e não pela sua
exclusão” (WALDMAN, 2006, p. 71).

O homem do mundo da tradição era um observador acurado do seu espaço de vida, atuando
a fim de maximizar o aproveitamento da complexidade do ambiente natural, combinando
usos diversificados dos sistemas ecológicos. Essa ponderação contribui para a
compreensão, por exemplo, das manifestações de um aproveitamento sazonal dos recursos
naturais, implicando deslocamentos e mudanças quanto às técnicas de obtenção de
alimentos (idem, ibidem, p. 75)

Desta forma, é através da cultura, construção humana, que a natureza ganha distintos significados, exerce papéis
diferenciados, demarcando uma clara diferenciação entre as sociedades, e mesmo no interior destas.

3
Interessante observar a grande semelhança entre o conceito de população tradicional deste Decreto e a própria definição de comunidades
quilombolas, já referida: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. Questiona-se que o conceito é demasiado
abrangente, possibilitando que praticamente todas as comunidades rurais sejam consideradas tradicionais. Nosso entendimento é o de que
apenas no enfrentamento da questão é que será possível aperfeiçoar o mecanismo. Nesse sentido, o autoreconhecimento é fundamental pois o
estatuto de tradicional implica concordar com certas condições de reprodução social conflitantes com os modelos produtivos reforçados pelas
políticas e programas rurais hegemônicos.
No passado, a intervenção do homem no meio natural refletia não uma negação ou
contradição com os ritmos do espaço-tempo da natureza, mas sim sua apropriação sutil,
assimilando fluxos, dinâmicas e sequências do entorno ambiental. [...] Cabia à dimensão da
cultura o papel determinante de discriminar as potencialidades e as modalidades de
apropriação do meio natural, quesito particularmente fundamental quando, em tese, o
ambiente seria o “mesmo” para diferentes etnias. [...] Exatamente por essa razão podemos
postular que aspectos culturais induziram que o meio ambiente tenha se revestido no
passado de papéis como os da solidariedade, do compartilhamento e do intercâmbio, por
intermédio dos quais as populações mantinham contato entre si, com vistas a obterem
recursos que complementavam seu modo de vida. (idem, ibidem, pp. 77-79)

Trata-se, ainda, por fim, de considerar que essas distintas temporalidades convivem ainda hoje no seio da
sociedade moderna ocidental, embora obviamente não exatamente como no passado, pois a cultura é dinâmica,
mas dentro da margem de negociações e estratégias necessárias à própria continuidade do grupo como tal, o que
nos remete à materialidade da dimensão política da questão ambiental, em que diferentes projetos de sociedade
disputam, na grande arena da democracia formal, o reconhecimento e a legitimidade de suas visões de mundo.
Esses diferentes projetos inserem-se nos distintos lugares sociais construídos pela história de nossa formação
colonial em sua diferentes etapas ao longo dos séculos, gerando relações cada vez mais complexas e difíceis de
ser apreendidas por uma abordagem estereotipada, crente na supremacia do saber científico sobre os demais,
racionalidade esta que está por trás justamente dos grandes problemas ambientais que se pretende enfrentar. Para
solucionar os problemas criados pela apreensão racionalista e materialista do mundo, propõe-se o
aprofundamento dessa racionalidade e desse materialismo como solução – a racionalidade técnico-científica.
Outra não é a crítica de Porto-Gonçalves ao próprio conceito de desenvolvimento sustentável.

A principal crítica que até então [anos 50-60] havia sido feita ao desenvolvimento provinha
do marxismo, que assinalava o caráter necessariamente desigual em que se fundava o
desenvolvimento capitalista. Assim, havia a crítica à desigualdade do desenvolvimento, e
não ao desenvolvimento como tal. [...] Todos parecem ter direito ao desenvolvimento, que
se transforma em uma imposição, em vez de opção. (2004, p. 25)

E dessa imposição do desenvolvimento, decorre, segundo o autor, uma ameaça à diversidade cultural:

Aqui se confundem duas questões diferentes, com graves consequências para a superação
dos problemas contemporâneos, entre eles o desafio ambiental: a idéia de igualdade parece
só poder ser contemplada com o desenvolvimento – todos temos direito à igualdade -, sem
que nos indaguemos acerca dos diferentes modos de sermos iguais, como as diferentes
culturas e povos que a humanidade inventou ao longo da história atestam. Assim, vemo-nos
diante de um desses paradoxos constitutivos do mundo moderno-colonial, em que a
superação da desigualdade se transforma, na verdade, numa busca de igualdade para
todos... segundo o padrão cultural europeu norte-ocidental e norte-americano. Pareceria até
mesmo absurdo dizer que todos têm direito a serem iguais... aos ianomâmis, ou aos
habitantes da Mesopotâmia (Al Iraq, em árabe). Entretanto, o aparente absurdo só o é na
medida em que a colonização do pensamento nos fez crer que há povos atrasados e
adiantados, como se houvesse um relógio que servisse de parâmetro universal. (ibidem, pp.
25/26, grifos do autor)

Acompanhando essa crítica, poderíamos pensar, como já propôs a Carta da Terra, elaborada pela articulação
paralela de ONG e movimentos sociais na Rio 92, em Sociedades sustentáveis, ao invés de desenvolvimento
sustentável, na medida que este conceito visibiliza esta dimensão cultural e política que o conceito de
desenvolvimento sustentável não deixa tão explícita. Sachs, embora entrincheirado no front do desenvolvimento
sustentável, atribui certas dimensões à sustentabilidade que nos parecem interessante apontar:
Muitas vezes o termo [sustentabilidade] é utilizado para expressar a sustentabilidade
ambiental. Creio, no entanto, que este conceito tem diversas outras dimensões [...]:
- a sustentabilidade social vem na frente, por se destacar como a própria finalidade do
desenvolvimento, sem contar com a probabilidade de que um colapso social ocorra antes da
catástrofe ambiental;
- um corolário: a sustentabilidade cultural;
- a sustentabilidade do meio ambiente vem em decorrência;
- outro corolário: distribuição territorial equilibrada de assentamentos humanos e
atividades;
- a sustentabilidade econômica aparece como uma necessidade, mas em hipótese alguma é
condição prévia para as anteriores, uma vez que o transtorno econômico traz consigo
transtorno social, que, por seu lado, obstrui a sustentabilidade ambiental;
- [...] é soberana a importância da sustentabilidade política na pilotagem do processo de
reconciliação do desenvolvimento com a conservação da biodiversidade (2009, pp. 71/72)

O interessante em se pensar a questão ambiental da perspectiva da sustentabilidade é não perder de vista o ser
humano como parte do meio ambiente, lembrando, aliás, que toda essa preocupação com as questões ambientais
tem uma história, a qual não se pode negar em nome de um bem maior, pretendendo despolitizar a questão
ambiental – o que implicaria manter as estruturas (desiguais) de poder entre os seres humanos, como se isso não
estivesse profundamente imbricado nos problemas ambientais que hoje se notabilizam. Analisando a estruturação
da gestão ambiental brasileira, Henri Acselrad (2004, p. 77) assim coloca a questão:

As lutas pela terra, pela água, pelos seringais etc. precederam, por certo, a questão
ambiental. Tratava-se, no entanto, desde seu início, de lutas por modos alternativos de
apropriação da base material da sociedade. O discurso ambiental veio posteriormente
incorporar essas lutas num novo todo, dando margem a que diferentes percepções e
estratégias fossem elaboradas, novos argumentos e projetos surgissem no debate público.
Tais lutas, juntamente com as preocupações de parte das elites mundiais com a questão dos
“limites do crescimento”, terminaram por estimular o surgimento, também no Brasil, de um
discurso ambiental em nível governamental.

O autor aponta que a delimitação burocrática do setor ambiental do governo basicamente dividiu o território
nacional segundo três modalidades: regiões dotas de vocação natural para inserção no mercado nacional e global;
áreas ricas em recursos genéticos, consideradas “natureza a ser preservada” para possíveis usos futuros; e áreas
residuais economicamente deprimidas, desprovidas de interesse para o capital (p. 80). Para o autor

Tal redução da dimensão ambiental das políticas públicas, ao que alguns chamam de
mecanismos simbólicos de “administração das representações de Natureza” abdica,
portanto, de considerar o caráter integrado entre os processos sociais territorializados, a
dinâmica reprodutiva dos ecossistemas e a construção dos direitos ambientais da população.

Consequentemente, ainda segundo Acselrad,

O “conservadorismo dinâmico” – ou seja, a estratégia caracterizada pela aceitação inicial


do discurso da preservação ambiental, seguida de sua contenção e de seu isolamento no
interior de uma máquina burocrática sem poder (GUIMARÃES, 1992, p. 66-67) – que
orientou a montagem do arcabouço institucional das políticas ambientais brasileiras refletiu
o duplo esforço de absorção governamental das primeiras lutas sociais autonomeadas
“ambientais” e de montagem de um pacto intragovernamental de gestão política das
grandes transformações materiais em curso no território nacional. (p. 80)

Nesse cenário, que se agrava ante as políticas de encolhimento do Estado e se reinventa nas recorrentes
adequações da legislação e das instituições ambientais aos interesses do grande capital, Acselrad atribui grande
importância às lutas socioambientais, na medida em que estas “opõem inelutavelmente diferentes modos de
apropriação da natureza” (ibidem, p. 88), além de evidenciar seu caráter potencialmente democrático.

Lutando contra sua remoção ou fixação compulsória, ou contra a inviabilização de sua


permanência em territórios fundamentais à sua identidade, tais grupos procuram assegurar
seus direitos a pastagens, florestas, recursos hídricos, caça, coleta, pesca e agricultura. [...]
Os atores territorializados assim constituídos se engajam na luta por se tornarem sujeitos de
seus ambientes, em um movimento que vem abrangendo gradual e crescentemente setores
do sindicalismo rural e urbano, assim como do movimento dos sem-terra, que passam a
elaborar coletivamente os critérios de uma reforma-agrária ecológica. (pp. 89/90)

Arrematando nossas discussões nesse tópico, Acselrad aponta o tipo de desenvolvimento resultante de uma
compreensão socioambiental desse processo histórico:

Um tal desenvolvimento, para a construção do qual políticas ambientais integradas


concorreriam, democratizando a base material da sociedade, apoiar-se-ia nas possibilidades
oferecidas pela variedade de biomas, ecossistemas e demais configurações territoriais, ou
seja, na diversidade de saberes dos sujeitos sociais que se referenciam a esses territórios.
Poucos países, como o Brasil, detêm tal potencial de combinações socioambientais. Mas
caberá conceber projetos de desenvolvimento, desta feita, sob novas bases sociais, que não
impliquem a concentração da propriedade sobre os recursos territoriais nem a
desestabilização sociocultural das populações que estabeleceram laços históricos de
conhecimento e construção identitária com seus respectivos territórios. (p. 95)

5.3. Implicações para a negociação de Acordo com População no interior da EESGT

É muito fácil obrigar populações locais isoladas, sem poder político, a aceitar as unidades
de conservação que exigem sua expulsão e a desorganização de seu modo de vida em prol
da “natureza” e em benefício da “sociedade nacional”. Essa sociedade nacional é, com
razão, identificada pelas populações locais, prejudicadas com a chamada “conservação”,
com os grupos da elite econômica urbanizada ou residente em áreas agrícolas monocultoras
atualmente prósperas porque destruíram as florestas e plantaram soja, cítricos e, por isso,
são ricos e detêm poder. [...] Ao contrário, para as comunidades tradicionais a conservação
dos recursos significa sua própria sobrevivência [...]. Isso não implica uma visão bucólica
dessas comunidades, que geralmente são obrigadas a “burlar a lei” usando de forma
inadequada os recursos naturais das áreas protegidas para assegurar sua sobrevivência.
(DIEGUES, 2004, pp. 120/121)

Os valores subjacentes a esta discussão ganham concretude na resistência, sobretudo, à utilização das veredas,
áreas de preservação permanente, pela população do Jalapão. Nas veredas é que ocorre a utilização do fogo para
rebrota da pastagem para o gado no período da estiagem (refrigério), ao mesmo tempo em que permitirá a coleta
do capim dourado no ano subsequente. Além destas atividades, também a roça de esgoto (técnica tradicional de
drenagem da água para permitir o cultivo, cujo manejo é feito pela abertura/fechamento dos regos) é realizada
sobre a vereda. Disso depreende-se que as veredas têm centralidade nas estratégias de permanência nos Gerais
desenvolvidas pelas comunidades do Cerrado em geral. A necessidade de estabelecimento de novos
regulamentos para dar conta da diversidade de realidades em nosso país continental é prevista no Plano
Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), instituído pelo Decreto 5758/2006, dentro do Eixo
Temático - Governança, Participação, Eqüidade e Repartição de Custos e Benefícios, Estratégias:

a) aprimorar mecanismos e políticas, e promover ajustes na legislação, se necessários,


para garantir o respeito e reconhecimento dos direitos e conhecimentos dos povos
indígenas, comunidades quilombolas e locais nos processos de estabelecimento e
gestão das unidades de conservação e demais áreas protegidas; (grifo nosso)
A proposta do TAC pode representar justamente a possibilidade de preencher, com responsabilidade,
monitoramento, produção de conhecimento e busca de parcerias, a lacuna de conhecimento existente para
garantir que o desenvolvimento das atividades tradicionais seja realizado cada vez com menos impactos, ou até
possibilitar a identificação de alternativas viáveis para estas populações – sem esquecer a possibilidade de que
algumas técnicas tradicionais venham se revelar, ao contrário, estratégicas para a conservação.

Hoje não há consenso entre gestores, pesquisadores e comunidades quanto ao sistema de manejo de fogo mais
adequado para dar conta das atividades tradicionais na região do Jalapão. Segundo o conhecimento das
comunidades, é necessário realizar rotatividade das veredas para garantir a produtividade das mesmas, sendo que
o intervalo de queima mais comumente adotado é o bianual (ano sim, ano não). Os pesquisadores sobre manejo
do capim dourado propõem o aumento desse intervalo para três ou quatro anos como forma de minimizar os
impactos sobre os solos das veredas e as outras espécies vegetais não tão bem adaptadas ao fogo quanto o capim
dourado (SCHMIDT, 2005). Outro ponto de divergência é o tamanho das áreas queimadas para o gado, e o
regime de queima, que se constitui de no mínimo duas queimas anuais, uma ao final das chuvas, e outra ao final
da estação seca, quando a probabilidade de geração de grandes incêndios aumenta consideravelmente, além de
que a ação do fogo sobre o ambiente pode ter as conseqüências negativas amplificadas.

Myers esclarece que, apesar de ser ferramenta de produção utilizada há milênios

Durante o século XX, o fogo passou a ser visto como uma ameaça à população e aos
recursos naturais, e muitos países desenvolveram programas sofisticados de prevenção ao
fogo e criaram organizações de supressão ao fogo para proteger a população e os recursos
naturais. Algumas dessas medidas foram tão eficazes e determinantes na prevenção e na
supressão dos incêndios que a sociedade perdeu a noção da utilidade do fogo como
ferramenta importante para o processo de modelagem da paisagem. O resultado foi o
grande acúmulo de combustível modificando a vegetação e desta forma tornando-se mais
propensa a incêndios mais intensos durante os anos atipicamente secos, associado com a
perda de espécies que evoluíram em paisagens mais abertas que queimavam com mais
freqüência e com menor intensidade. (2006, p. 03)

O autor também traz a tona o conflito campo-cidade que a questão do fogo explicita:

Os governos e as sociedades urbanas também não reconhecem ou compreendem a


necessidade do uso do fogo por diversas comunidades rurais. As políticas e os programas
foram criados com base na premissa de que a população rural é a causa dos problemas do
fogo. No entanto, essas políticas deveriam olhar para as comunidades rurais como parte da
solução, oferecendo-lhes incentivos e tecnologias que possam ser agregados ao
conhecimento tradicional do uso do fogo, e desta forma manejar o fogo de uma maneira
mais eficaz, tanto com as queimadas que são necessárias quanto as que acontecem
naturalmente. (2006, p. 03)

Por outro lado, Myers chama a atenção para a necessidade de estabelecer um modelo de gestão do fogo que leve
em conta “a integração de realidades socioculturais e as necessidades ecológicas com abordagens tecnológicas”
(ibidem, p. 03, grifos do autor), a que ele denomina Manejo Integrado do Fogo. O autor esclarece que, antes de
qualquer decisão sobre o fogo, é preciso conhecer o papel ecológico deste no ambiente. Neste sentido, define
quatro categorias de ambiente conforme seu relacionamento com o fogo: os ecossistemas independentes do fogo
(aqueles em que o fogo normalmente exerce um pequeno papel ou é desnecessário); dependentes do fogo (em
que o fogo é essencial e as espécies evoluíram adaptações para responder positivamente ao fogo); sensíveis ao
fogo (não evoluíram com o fogo como um processo recorrente importante. As espécies nessas áreas não
desenvolveram adaptações como respostas ao fogo, por isso a mortalidade é alta, mesmo quando a intensidade
do fogo é muito baixa) e influenciados pelo fogo (inclui os tipos de vegetação que freqüentemente ficam na zona
de transição entre ecossistemas dependentes do fogo e os sensíveis ao fogo ou independentes do fogo. Neles, as
perturbações com fogo exercem um papel na criação de certos habitats que favorecem a abundância relativa de
certas espécies na manutenção da biodiversidade).

O Cerrado é considerado pelo autor um ecossistema dependente do fogo, o que não quer dizer que qualquer fogo
é benéfico. Encontrar a medida adequada é o grande desafio do Manejo Integrado do Fogo. Sem a pretensão de
enveredar pelos aspectos ecológicos do fogo neste trabalho, ressalte-se que para Myers:

A criminalização do uso do fogo, ao invés de promover queimadas seguras e eficazes pode,


na prática, levar a realização de mais queimadas que fujam ao controle, pois as pessoas irão
atear fogo onde julgarem necessário e sem o devido monitoramento, evitando assim serem
responsabilizadas. As leis deveriam refletir as necessidades das comunidades rurais e a
promoção do uso apropriado do fogo, para prevenção de incêndios indesejados e os que
escapam do controle e do manejo de impactos negativos do fogo como a qualidade do ar.
Portanto a abordagem melhor e mais coerente seria a elaboração do sistema de incentivos,
de sanções, de educação e de parceria entre o governo/comunidade, que estimula o uso
responsável do fogo, que apóia e melhora a ampla variedade de atividades, tais como a
agricultura, a silvicultura, o pastoreio, a caça, o desmatamento, a proteção das bacias
hidrográficas, a manutenção de ecossistemas e as necessidades específicas das espécies
prioritárias. As leis e as políticas devem ser integradas e compatíveis com outras formas de
uso e manejo da terra, e com as políticas ambientais; e, saber lidar efetivamente com os
problemas de posse da terra e da responsabilidade legal. (p. 15, grifo nosso)

Por todo o exposto, tem-se que a questão do fogo no Jalapão é complexa e não se deveria buscar solucioná-la
mediante posicionamentos unilaterais, que de antemão definam como meta sua supressão total, na medida em
que tal proposta pode não ser viável para as comunidades e para os órgãos públicos, que também teriam uma
enorme responsabilidade na manutenção de tal cenário, sem contar que a mesma pode revelar-se ambientalmente
nociva para a conservação do Cerrado. Algumas experiências de construção de acordos em torno do tema
desenvolvidas no município de Mateiros, como o Protocolo do Fogo que foi recentemente ratificado,
demonstram que, apesar dos empecilhos legais para o reconhecimento oficial das queimas controladas na região
e da dificuldade do consenso, há um entendimento geral de que a tônica de um processo de transição do modelo
produtivo tradicional local baseado no diálogo e acordo com as comunidades passa pela adoção da queima
controlada, com ativo apoio das Unidades de Conservação e das prefeituras. Registro importante é a experiência
de “orientação técnica para queima controlada” que o Parque Estadual do Jalapão desenvolveu em 2009 junto às
famílias residentes no seu interior. O relatório de gestão da Unidade para o primeiro quadrimestre daquele ano
indicou alguns tipos de medidas adotadas então, como a restrição de queimas nos meses críticos de agosto e
setembro e apoio da brigada voluntária do município. Não foi possível realizar monitoramento dos avanços
obtidos no processo, pois o mesmo não teve continuidade, em função da fragilidade legal de tal situação.
Recentemente encontrou-se nos arquivos da ESEC Serra Geral do Tocantins “Relatório de Queima Controlada”
realizado pela gestão da UC em 2005 junto a famílias da Comunidade dos Prazeres, na porção baiana da
Unidade. A opção por não se reconhecer o processo não permitiu que se avançasse neste tipo de iniciativas,
sendo que hoje não se dispõe de elementos para indicar se o caminho é factível ou não, do ponto de vista social e
ambiental. Diga-se de passagem que o quadro de ocorrência de incêndios na região não apresentou evolução,
permanecendo o mesmo de quando da criação da UC, há 10 anos.
.Se algo há claramente posto é que qualquer iniciativa de redução dos incêndios na região passa pela negociação
em torno da queima controlada, ainda que como etapa inicial, já havendo registros de experiências nesse sentido
em diversos biomas brasileiros, sobretudo na Amazônia (ALMEIDA, 2005), onde a presença das populações e
comunidades tradicionais é marcante.

De certa forma, há que se reconhecer que o caminho da gestão negociada já vem sendo trilhado na região. A
pesquisa etnobotânica com base na ampla participação das comunidades tem sido o modelo adotado para
normatização do manejo do capim dourado e da seda do buriti, utilizados no artesanato, atualmente uma das
principais fontes de renda locais, onde as pesquisas desenvolvidas pela ONG Pequi fundamentaram a portaria
estadual que regulamenta a coleta destes produtos da sociobiodiversidade. Não obstante, a questão do manejo
com fogo é silenciada na referida normatização, o que indica longo percurso a trilhar ainda. Em Seminário
realizado em julho último, em Palmas, os pesquisadores envolvidos ratificaram a necessidade do manejo do fogo
para viabilização da exploração comercial do capim dourado, no entanto, a questão da legalização de tal manejo
segue sem solução de encaminhamento. É de se notar que, contraditoriamente, o estado tem no artesanato do
capim dourado seu principal cartão postal, um verdadeiro delimitador de identidade local, porém não sinalizou,
até o momento, qualquer esforço relativo à questão do fogo, que continua sendo utilizado sem autorização,
orientação ou acompanhamento dos órgãos ambientais. Nesse sentido, mesmo as propostas de minimização dos
impactos negativos do fogo caem no vazio, pela falta de marcos regulatórios.

6. Conclusão

Mesmo se questionando a legitimidade de UC criadas sobre áreas de populações tradicionais à revelia destas,
fato é que, antes das UC, as comunidades locais viviam situação de total abandono e ausência de órgãos e
políticas públicas, e é justamente com a chegada do turismo e do projeto de conservação que sua situação
começa a mudar, com a visibilidade nacional e internacional, e uma maior atuação dos poderes públicos. Apesar
dos conflitos, a presença das UC também trouxe algumas oportunidades, seja de criação de empregos, de
capacitação, de organização das comunidades, ainda que para enfrentar o conflito gerado pela criação das UC,
que devem ser postos em perspectiva para se apreender a complexidade da situação. Neste cenário, a capacidade
de abertura para o diálogo e a disposição em construir conjuntamente marcos produtivos, que reforcem o caráter
conservacionista das práticas tradicionais locais, aperfeiçoando-as aonde for necessário, podem representar uma
nova era para a região do Jalapão.

Por outro lado, o desafio da sustentabilidade não poderá ser respondido exclusivamente pelas Unidades de
Conservação. O sucesso de tal empreita dependerá de uma inserção justa da população local, considerada em
suas especificidades de comunidades quilombolas e geraizeiras, nas atividades ligadas à conservação, turismo,
artesanato, agricultura e mesmo a pecuária, base de sua economia tradicional, de forma ativa, com políticas
públicas que incentivem as práticas agroecológicas, sustentáveis social, ambiental e economicamente. Nesse
sentido, faz-se necessário também o preparo dos técnicos das instituições públicas para apreender em toda sua
magnitude o desafio da gestão integrada que vem se colocando para a região através da implementação do
Mosaico do Jalapão. O sucesso da empreitada dependerá, em grande parte, do papel estratégico destas
comunidades nesse processo – parceiras ou inimigas, agentes ativos ou mera massa a ser persuadida a um tipo de
atuação pré-concebida em gabinetes e laudos técnicos.
Nesse contexto, a EESGT coloca-se corajosamente – ou por força das circunstâncias - como laboratório para a
sustentabilidade regional, não dissociando seu potencial de pesquisa, que lhe caracteriza como objetivo central,
das necessidades das populações locais, embora ainda não seja presente a discussão da redefinição de limites ou
mesmo de reconhecimento do pleito quilombola. Com muita conversa, persistência e articulação, as resistências
vão sendo neutralizadas. Por outro lado, as comunidades locais passam a enxergar a EESGT com outros olhos,
antes mesmo até da assinatura do TAC, só pela oportunidade de diálogo e fortalecimento da organização popular
que o processo possibilitou, o que vem sendo constatado nas falas dos comunitários nas reuniões realizadas pela
equipe da UC nos últimos meses. Espera-se em breve ter resultados que confirmem a pertinência do caminho
adotado, bem como as evoluções naturais decorrentes da implementação do acordo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACSELRAD, Henri. Políticas ambientais e construção democrática. In: VIANA, Gilney; SILVA, Marina; &
DINIZ, Nilo (orgs). O Desafio da Sustentabilidade. Um debate socioambiental no Brasil. 2ª Ed., São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2004.

ALMEIDA, Júlio César Magalhães de. Uso do fogo por agricultores familiares em Roraima. In:
THEODORO, Suzi Huff (org.). Mediação de Conflitos Socioambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

BRASIL. Decreto 3.912/2001, que regulamentava o procedimento para identificação, reconhecimento,


delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos,
revogado pelo Decreto 4.887/2003. Disponível em: http://www.incra.gov.br/portal/index.php?option=com_
content&view=category&layout=blog&id=252&Itemid=274. Acesso em 07/10/2011.

BRASIL: Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Disponível em:
http://www.incra.gov.br/portal/index.php?
option=com_content&view=category&layout=blog&id=252&Itemid=274. Acesso em 07/10/2011.

BRASIL. Decreto 5758/2006, que institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP). Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5758.htm. Acesso em 24/06/2011.

BRASIL. Decreto 6040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e
Comunidades Tradicionais – PNPCT. Disponível em: http://www.socioambiental.org/banco_imagens/
pdfs/Publicado_no_DOU_de_08fev_PNPT.pdf. Acesso em 07/10/2011.

BRASIL. Decreto 4.340/2002, que regulamenta o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4340.htm. Acesso em 07/10/2011.

BRASIL. Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9985.htm. Acesso em 07/10/2011.

CONAMA. Resolução 425/2010, que dispõe sobre critérios para a caracterização de atividades e
empreendimentos agropecuários sustentáveis do agricultor familiar, empreendedor rural familiar, e dos povos e
comunidades tradicionais como de interesse social para fins de produção, intervenção e recuperação de Áreas de
Preservação Permanente e outras de uso limitado. Disponível em:
http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=630. Acesso em 07/10/2011.
DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. 4ª Ed., São Paulo: Hucitec; Núcleo de
Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras, USP, 2004.

Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins. Relatório de Queima Controlada na Comunidade dos Prazeres,
2005.

FIABANI, Adelmir. Mato, Palhoça e Pilão. O quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes [1532-
2004]. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2005.

Ministério do Meio Ambiente. Plano de Desenvolvimento Sustentável para o Entorno do Parque Estadual
do Jalapão. Brasília: MMA, 2002. 190p.

MYERS, Ronald L. Convivendo com o Fogo. Manutenção dos ecossistemas e subsistência com o manejo
integrado do fogo. Iniciativa global para o manejo do fogo – The Nature Conservancy: 2006. Disponível em:
http://www.conservationgateway.org/sites/default/files/convivendo_com_o_fogo.pdf. Acesso em 18/09/2011.

Parque Estadual do Jalapão. Relatório de Gestão do primeiro quadrimestre de 2009.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. O desafio ambiental. Org: Emir Sader. Rio de Janeiro: Record, 2004.
(Série “Os porquês da desordem mundial – mestrem explicam a globalização).

______________________________. O latifúndio genético e a r-existência indígeno-campesina. Disponível


em: http://www.floresta.ufpr.br/firelab/artigos/artigo376.pdf. Acesso em 07/10/2011.

SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

SCHMIDT, Isabel Belloni. Etnobotânica e ecologia populacional do Syngonanthus nitens: sempre-viva


utilizada para artesanato no Jalapão, Tocantins. Dissertação apresentada e defendida junto ao Programa de Pós-
Graduação em Ecologia da Universidade de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
em Ecologia. Brasília: 2005.

WALDMAN, Maurício. Meio Ambiente e Antropologia. Coord.: José de Ávila Aguiar Coimbra. São Paulo: Ed.
Senac, 2006. (Série Meio Ambiente, vol. 06).

You might also like