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Diversidade ou diferença?

Richard Miskolcidisse:

5 de setembro de 2015

MISKOLCI, Richard. Diversidade ou diferença? Revista CULT, 205, ano 18, set. 2015.

Foi na virada entre as décadas de 1980 e 1990, quando alguns conflitos envolvendo
diferenças culturais ganharam visibilidade midiática, que emergiu a discussão teórica e
política sobre a diversidade e a diferença. Os conflitos raciais renovados nos Estados
Unidos, a ameaça separatista do Quebéc no Canadá devido a sua diferença linguística e
cultural em relação ao resto do país, além de outras formas de conflito na Europa, tudo fazia
refletir sobre a fragilidade dos princípios universalistas do direito e da cidadania no
chamado Primeiro Mundo.

Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema: The politics of recognition, do


filósofo canadense Charles Taylor. Sua reflexão serviu de base para muito do que foi escrito
desde então sobre diversidade, tanto em termos acadêmicos como em políticas sociais. A
noção de diversidade busca – dentro de um enquadramento universalista – abarcar as
demandas por respeito e acesso a direitos por parte de grupos historicamente
subalternizados como negros, povos indígenas, homossexuais, mulheres.
Em sociedades democráticas fundadas no universalismo, como a francesa, é notória a
dificuldade em reconhecer demandas de grupos chamados de “minoritários”. Em uma
ordem republicana universal não há espaço para a diferença, daí medidas como a proibição
de imagens religiosas em repartições públicas e a recusa do uso do véu por estudantes
muçulmanas nas escolas. A rationale universalista exige que o Estado laico seja preservado
à custa do ocultamento das diferentes formas de confissão que nele convivem.

Em países como os Estados Unidos e o Canadá, a concepção política de nação é mais


permeável a demandas diferenciais, por isso o Estado adota medidas de reconhecimento
e/ou políticas como as ações afirmativas que visam, por exemplo, ampliar o acesso de
negros e mulheres às universidades e mesmo aos postos de trabalho. Nesses países, a noção
de diversidade engendrou a de multiculturalismo, uma forma de compreender as diferenças
internas à nação como uma riqueza cultural. Ao mesmo tempo, diversidade e
multiculturalismo se construíram como um adendo ou reforma das instituições sem
problematizá-las mais profundamente, apenas disseminando o valor da tolerância à
diferença. Vale sublinhar que tolerar a diversidade é muito diferente de a acolher, deixar-se
influenciar e se transformar por ela.

No início da década de 1990, começaram a surgir as críticas, dentre as quais destaco a


forma como a diversidade se baseia em uma concepção de cultura frágil e estática assim
como compreende horizontalmente as relações de poder dentro de uma nação. Culturas não
são estáticas tampouco o poder existe sem hierarquias e conflitos, portanto a diversidade e o
multiculturalismo se revelam incapazes de superar a problemática para a qual foram
criados. Eles buscavam materializar o que alguns chamaram – ironicamente – de “política
do arco-íris”: a utopia de uma sociedade que poderia manter suas diferenças lado a lado,
sem conflitos, negociações e mudanças na cultura como um todo.

Intelectuais comprometidos com grupos historicamente subalternizados criticaram a


perspectiva da diversidade e do multiculturalismo enfatizando que as diferenças demandam
reconhecimento que levará – necessariamente – à transformação da ordem institucional.
Não é possível colocar diferenças lado a lado sem intercâmbios e transformações da cultura
como um todo, tampouco ignorar que essas se deem, muitas vezes, de forma conflituosa.
Assim como afirmaram clássicos da teoria social como Marx e Weber, os teóricos das
diferenças reconhecem que o conflito é parte da vida social.

A perspectiva da diversidade não é pacífica, apenas busca contornar o conflito com uma
concepção de sociedade multicultural baseada na expectativa de que o reconhecimento de
grupos subalternizados não modificará as relações de poder e a própria concepção vigente
de justiça e direitos. De forma direta – e um tanto impressionista – é possível dizer que
constitui uma vertente política construída sob a perspectiva daqueles que detêm o poder, já
têm acesso a direitos e propõem estendê-los a outros sem modificar a estrutura institucional
em que se baseiam. Não é mero acaso que boa parte das políticas envolvendo diversidade e
multiculturalismo se apresentam como adendos, programas complementares para “colorir”
o já existente com uma suposta aura “democrática”.

A perspectiva das diferenças reconhece que os dilemas das nações contemporâneas são
resultado de conflitos entre as instituições estabelecidas e a emergência de demandas dos já
citados grupos sociais, portanto ela aponta para a necessária renegociação política e cultural
que pode criar sociedades mais justas. Ao reconhecer conflitos históricos, os pensadores
dessa linha também consideram salutar a transformação institucional para negociá-los.
Sobretudo, questionam a possibilidade de apenas estender direitos sem problematizar a
própria concepção vigente de cidadania, a qual contribuiu para disseminar desigualdades.
Greve das Mulheres pela Igualdade (Women’s Strike for Equality) em Nova York, 29 de agosto de
1970 (Foto Diana Davies)
Do universalismo às diferenças
O universalismo pautou a construção de democracias em termos políticos em que a
cidadania foi pensada como única porque projetada em uma sociedade imaginada como
homogênea. A grande encarnação dessa comunidade imaginada foi a nação, um construto
histórico, político e cultural que – segundo historiadores – ganhou protagonismo a partir de
fins do século 18. Não por acaso, no mesmo período em que se inicia a era contemporânea e
sua promessa de superação das hierarquias do Velho Regime.

Algumas das primeiras feministas, como Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft,


apontaram já naquela época que o liberalismo político se associou ao econômico na
afirmação de valores universais, como o de que todos são iguais perante a lei, já definindo o
cidadão como homem. Assim, a universalidade e sua promessa de igualdade começou
criando modalidades de cidadania ao relegar as mulheres a uma posição inferior, pois não
tinham acesso à educação, direito ao voto, ao patrimônio ou qualquer forma de autonomia
individual, mesmo porque eram tuteladas do nascimento até a morte.

Os países em que a democracia universalista começava a ser construída também tinham


outras contradições para lidar, como o colonialismo e a escravidão em suas colônias. Na
primeira república moderna, os Estados Unidos da América, em 1848, um grupo de
feministas e abolicionistas criou um manifesto conjunto intitulado “Declaração de
Sentimentos”. Suas demandas de direitos iguais sublinhavam o caráter servil que a nova
ordem política reservava às mulheres e aos negros evidenciando que a democracia na
América ainda tinha um longo caminho a construir.

Mundo afora, movimentos anticolonialistas, feministas e abolicionistas problematizaram os


ideais universalistas assentados no imperialismo, na dominação das mulheres e na
escravidão. Infelizmente, tal história não entrou para os livros, tampouco teve a atenção
devida antes da década de 1960, quando tais movimentos se reconfiguraram e ganharam
adesão massiva. Foi nessa época que emergiu o movimento pelos direitos civis nos Estados
Unidos, a chamada “segunda onda” do feminismo e o movimento homossexual. Tais
movimentos tinham em comum a demanda de reconhecimento social e legal de suas
diferenças, uma nova forma de clamar por igualdade.

O movimento feminista, por exemplo, em sua primeira onda era predominantemente


igualitarista. Do século 19 à primeira metade do século 20, seus principais sloganseram o
direito à educação e ao voto, os mesmos que já eram garantidos aos homens. Alcançadas
essas demandas na maior parte do mundo, a partir da década de 1960, a agenda feminista é
renovada e volta-se para direitos que exigem reconhecer diferenças. Um deles é o da
autonomia corporal, o direito de escolha sobre a contracepção. Em outras palavras, o
movimento – desde então – tornou-se um feminismo da diferença.

A luta pelo direito ao aborto assim como a do movimento homossexual pela


despatologização e descriminalização do desejo por pessoas do mesmo sexo contribuíram
para fissurar o mito da nação como uma comunidade reprodutiva. A sociedade que, desde a
invenção da pílula, começara a separar o sexo da reprodução e cujas demandas políticas de
negros envolviam o direito ao casamento inter-racial, se deparava com um cenário novo na
esfera das relações de gênero, sexualidade e, inclusive, étnico-raciais. Desde então, o mito
da homogeneidade cultural e política não cessou de ser cada vez mais problematizado, e não
apenas nos países centrais.

As diferenças no Brasil
Na época em que emergem as discussões teóricas, conceituais e legais recentes para lidar
com os limites do universalismo, o Brasil vivenciava a ruptura com seu passado autoritário
e a expectativa de construir uma democracia baseada na Constituição de 1988. Não tardou
para que a liberdade permitisse que vozes abafadas durante o Regime Militar (1964-1985)
começassem a se articular em torno de demandas de reconhecimento. Refiro-me aqui à
reorganização de movimentos sociais, em especial o feminista, o negro e o que viria a se
denominar de LGBT, os quais criaram novas pautas e formas de atuação. Foram esses
movimentos que pouco a pouco fissuraram mitos sobre a nação brasileira que escondiam ou
minoravam as divergências sobre a representação historicamente construída de que ela seria
conciliatória, pacífica e, sobretudo, justa.

Há décadas era fato mundialmente conhecido de que temos uma das piores distribuições de
renda do mundo, mas até recentemente permaneciam insuficientemente problematizadas
outras formas de desigualdade. Na academia, até a mais evidente, a desigualdade étnico-
racial, tendeu a ser abordada como questão econômica ou de “integração” por muitas
décadas. E, mesmo no presente, gera divergências acaloradas entre intelectuais que insistem
em salvar o mito da democracia racial e aqueles que propõem pensar em outros termos a
forma como a sociedade brasileira efetiva e cotidianamente lida com diferenças étnico-
raciais. As divergências têm pendido para seu reconhecimento em políticas como as ações
afirmativas no ensino superior e em concursos públicos.

A pauta de direitos das mulheres também tem sido bem sucedida. A luta feminista alcançou
vitórias admiráveis, as quais modificaram a ordem institucional, política, mas também
cultural. Há evidências empíricas de melhoras de indicadores de igualdade entre mulheres e
homens, como a aprovação da Lei Maria da Penha que pune a violência contra mulheres,
mas não foi aprovada a descriminalização do aborto. A despeito dos sucessos, a agenda
feminista precisa se manter e incrementar políticas públicas para alcançar seus objetivos, o
que – no ritmo atual – ainda pode levar algumas décadas.
A problemática das diferenças que ainda gera mais resistência é a da sexualidade e do
gênero. As pautas LGBT geram formas flagrantes de desqualificação de setores
conservadores tornando evidente algo que a sociedade brasileira nunca reconheceu: seu
moralismo. O mito da liberalidade sexual esconde não apenas o preconceito contra
expressões do desejo por pessoas do mesmo sexo, mas também de dissidências de gênero
ou de demandas de autonomia contraceptiva. O discurso conservador de suposta defesa da
família mal encobre o desejo de manter os privilégios dos homens assim como a ordem que
os privilegia.

As conquistas e resistências brevemente descritas acima demonstram que, a partir da década


de 1990, nosso país entrou em sintonia com as discussões internacionais. A maioria dos
programas estatais adotaram o termo diversidade e o uso de referências ao
multiculturalismo para descrever iniciativas para lidar com as recentes demandas por
reconhecimento e direitos. Infelizmente, tal adoção vocabular tendeu a ser feita de forma
acrítica e se disseminou, sem o devido debate, até mesmo nos movimentos sociais.

Lutas políticas exigem reconhecer e problematizar o vocabulário em que se dão. No caso,


contrapondo à retórica da diversidade e do multiculturalismo a perspectiva das diferenças,
do reconhecimento da existência de conflitos e desigualdades que exigem a transformação
social e política de nossa sociedade. A perspectiva das diferenças, afinada com as demandas
históricas dos movimentos sociais, propõe repensar a nação brasileira como ainda a
compreendemos e, neste exercício cultural e político, refletir sobre como reformar a
cidadania, de maneira que ela não seja apenas disponível a alguns, antes suficientemente
democrática para abarcar a todos e todas.

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