You are on page 1of 357

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software

http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Universidade Federal da Bahia - UFBA


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos

Valdélio Santos Silva

Rio das Rãs e Mangal


Feitiçaria e poder em territórios quilombolas do Médio São
Francisco

Salvador – maio de 2010


Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
2

Valdélio Santos Silva

Rio das Rãs e Mangal


Feitiçaria e poder em territórios quilombolas do Médio São Francisco

Tese apresentada ao Programa


Multidisciplinar em estudos Étnicos
e Africanos da Universidade Federal
da Bahia – UFBA, como requisito
parcial para obtenção do grau de
Doutor.

Orientador: Prof. Dr. Jocélio Teles


dos Santos

Salvador – 2010
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
3

Aos meus queridos pais, Germínio Nunes da Silva e Emília Santos Silva, in memoriam,
que não terão a oportunidade de assistir ao ritual de instituição de doutoramento do
único filho que ousou ingressar na universidade.

Aos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal/Barro Vermelho, que lutaram e conquistaram
o direito definitivo de ocupar os seus territórios com as armas de suas crenças, por terem
me permitido conhecer uma outra faceta de sua experiência cultural.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
4

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos Ancestrais, Orixás e Caboclos que me acudiram nos momentos de


incertezas, medos e aflições. A proteção dos deuses do universo, da natureza, dos
caminhos, das encruzilhadas, dos segredos e dos acontecimentos imponderáveis, foi
decisiva para superar obstáculos visíveis e invisíveis, sobretudo, após ter mergulhado no
universo opaco da feitiçaria.
Agradeço de coração aos quilombolas de Rio das Rãs pela confiança e o respeito como
me receberam em suas casas; pelo apoio à minha pesquisa e generosidade do tratamento
dispensado e, especialmente, por terem me ensinado um caminho diferente para
entender como eles pensam o mundo e concebem as relações entre os indivíduos e,
sobretudo, como constroem as suas vidas cotidianas. Sem o aporte da filosofia dos
quilombolas não seria possível escrever esta tese.
Agradeço aos meus filhos Juquinha, Edilson, Denise, Luizinho e Addae e a minha neta
Isabele, por respeitarem o meu jeito de pensar e fazer a paternidade e pela compreensão
diante das frequentes ausências. Agradeço a Maia, companheira de tantos anos, pelo
apoio, carinho e as delícias de suas habilidades. A Maria Elena, mãe de parte dos meus
filhos, pela amizade, lealdade e confiança. A Carmem, que sempre foi uma amiga e
incentivadora.
Agradeço aos meus irmãos Valdemir, Valdir, Valfredo e Miriam que, à distância, me
incentivaram com palavras e silêncios. Certamente ficarão orgulhosos de ter um irmão
doutor. A minha tia Teotina, mais de noventa anos, uma das remanescentes de uma
família negra que se dissolveu na invisibilidade e na desagregação da pós-escravidão,
que me encantava quando jogava cartas na minha adolescência para descobrir os
segredos do meu futuro.
Agradeço aos homens, mulheres, jovens e crianças do Terreiro do Cobre, onde sou Ogã
de Xangô, que transmitiram vibrantes energias positivas em minha direção. Distingo
três mulheres de elevada dignidade na história recente do Cobre – todas amigas,
confidentes e generosas mães –, mãe Celina de Oxossi, in memoriam, Valnísia Pereira
de Oliveira, ialorixá, e Aristotelina Fiúza, para saudar e agradecer a torcida dos abiãs,
iaôs, ebomis, ogãs e equedes de minha família religiosa. Aos honoráveis irmãos da
Irmandade de Ojés, Ogãs e Tatas – SIOBÁ, da qual faço parte, pelo carinho, incentivo e
apoio espiritual.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
5

Agradeço ao meu orientador, Jocélio Teles dos Santos, conhecido pelo rigor de suas
avaliações acadêmicas, que se mostrou ao longo da nossa convivência uma pessoa
atenta, sensível, disciplinada e justa, sem deixar de ser rigoroso, pela incalculável
contribuição ao processo de construção da tese. Aos professores, administradores,
alunos e servidores do Pós-Afro pelo ambiente acolhedor de reflexão e discussão. Aos
colegas da turma de 2006 de mestrado e doutorado. A professora Maria Rosário de
Carvalho, uma mestra na arte de ensinar, pela leitura e revisão do projeto de pesquisa
para o doutorado. A Maria Nazaré Mota de Lima, por revisar de maneira profissional,
meticulosa e engajada o texto final da tese.
Agradeço aos professores, alunos e servidores do DCHT/UNEB Campus XVII de Bom
Jesus da Lapa, que aceitaram a minha transferência para o Departamento de Educação
do Campus I de Salvador, confiando em minha palavra de cursar o doutorado. Ao reitor
da UNEB, amigo Lourisvaldo Valentim, pelo incentivo à formação dos professores da
UNEB e aprovação da Bolsa PAC/UNEB. Aos alunos, colegas e administradores do
DEDC/UNEB Campus I, que me acolheram e me liberaram das atividades docentes. Ao
atual diretor, professor Antonio Amorim, pela compreensão e aceitação da prorrogação
por três meses de minha licença. Aos colegas professores, técnicos e servidores do
CEPAIA-CEEC/UNEB, na pessoa do atual diretor, professor Wilson Matos, pelo apoio
da infra-estrutura. Especialmente a Nelson da Mata, Celene, Mabel, Pinheiro e Manoel,
colegas e amigos de longa jornada no CEEC/CEPAIA, pelas proveitosas discussões
sobre o Projeto Roda Baiana e outros temas conexos, pelo carinho, incentivo e
tolerância. À coordenação do Projeto Geografar/UFBA, na pessoa da professora
Guiomar Germani, pela elaboração e a doação dos mapas de Rio das Rãs e Mangal e
dos municípios que compõem a minha área de estudo. A Leonaldo
Carvalho/CODEVASF que, gentilmente, desenhou a outra parte dos mapas de Rio das
Rãs e do território quilombola do Médio São Francisco. À colega pesquisadora Sandra
Oliveira, pelas fotos da Marujada e disponibilidade da dissertação, ambas muito válidas
para o estudo do quilombo do Mangal. Ao amigo Miguel Teles, pelo belo trabalho de
transcrição das fitas.
Agradeço aos que me apoiaram e me incentivaram com sugestões, contribuições
teóricas, parcerias técnicas, orientações, palavras de carinho e lealdade, em Bom Jesus
da Lapa, Paratinga, Carinhanha e na cidade de Salvador. Muito obrigado a Maria Silva,
amiga leal, amável e sempre com soluções sábias; a Shirley Pimentel, que compartilhou
comigo a descoberta do discurso da feitiçaria como um problema antropológico; a
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
6

Denise Silva, minha filha, e à amiga Queziane Martins, pela contribuição na digitação e
na sistematização das genealogias; ao filho Luizinho, pelos socorros no meu
computador; a Maurício e Cláudio Pereira, amigos e notáveis acadêmicos, pelo apoio
moral e valiosas sugestões bibliográficas; a Josemar Purificação, amigo, irmão e
confidente sobre os segredos e mistérios das mulheres, pelo apoio irrestrito; a Cláudio,
Elaine, Wilma Braga, Leonaldo, Ana Josefina, Vadinho, João, Hélio, Jonilson, Luis,
Adma e Suely, Primo de Carinhanha, Claudinéia de Paratinga, amigas e amigos
queridos, grandes operadores da logística de minha pesquisa de campo; aos antigos
colegas professores do Departamento de Lapa, Dinalva, Marinalva, Kelli, Fabiana,
Robson, Fábio, Rita, Sandra, Luciana, Sandra Célia e Otávio, pelo incentivo, apoio e
carinho. A Nara, Eneuma, Tetê e Auricélio, pelos divertidos saraus nos dias de solidão
na Lapa; a Norma Neide e Lourdinha, do antigo Programa Rede UNEB 2000, pela
confiança e apoio com as passagens de ônibus; aos amigos, amigas e confidentes
Lindinalva, Jandira, Eliane, Silvinha, Esmeralda, Samuel, Washington, Eraldo e
Ednaldo, pelo incentivo; a Marizete e Paulinha, pelo apoio moral; pela torcida constante
e amizades históricas, sinceras e alentadoras de Jônatas, in memoriam, Antonio Olavo,
Rita Brito, Clóvis Caribé, Damião, Vera, Geny, Nilo Rosa, Florentina, Valdemarina,
Edmilton, Edson Carvalho, Luiz Paulo, Menezes, Norberto, Marlene, Ivete, Iron, Ana
Célia, Austílio, Jussara, Luiz Alberto, Luíza Bairros, família Lima, Elias e Magali.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
7

“Porque de tudo nesse mundo existe. Não tem nada


nesse mundo que num exista, né? Tudo nesse
mundo, Deus deixou um é a face boa e [o outro] a
face ruim, né? Agora, a boa, a gente quer pegar.
Quem não quer se liga à ruim. Porque de tudo
existe. Eu sei. Num existe não? Existe.” (Francisco
Ferreira de Magalhães, 77 anos, do quilombo de
Rio das Rãs)

“Tudo tem que ter. Eu digo assim, no mundo o que


tem de bom tem de ruim. Então Deus fez as coisas
tudo certo. Deus não fez nada de errado não. Tem
aí um problema aí entre os Evangélicos e nós
católicos, né? Ah não pode beber, não pode fumar,
não pode não-sei-o-quê. Deixe de besteira. Tudo o
que Deus deixou no mundo foi pro homem. Agora
não pode é exagerar. O que não pode é abusar. Mas
se ficou no mundo, foi pra o homem. Tudo o que
tem no mundo, ele vai ter uma serventia. Acho que
o bom combate com o bom e o mau combate é com
o mal.” (Egídio Gomes Pereira, 61 anos, de
quilombo de Mangal)
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
8

RESUMO

Os estudos sobre a feitiçaria e o poder foram realizados nos quilombos de Rio das Rãs e
Mangal/Barro Vermelho, situados na região do Médio São Francisco no Oeste da Bahia.
Nos dois quilombos, a feitiçaria é vista como a capacidade atribuída a alguém de
provocar voluntária ou involuntariamente o mal a outrem. Do ponto de vista
antropológico, a feitiçaria é considerada um discurso capaz de orientar o sentido da ação
dos sujeitos nas relações sociais. Mas, por ser um fenômeno complexo e, sobretudo,
ambivalente, a feitiçaria pode se configurar em diferentes modalidades e, com isso, ser
empregada com discrepantes objetivos. De todo modo, a sua influência molda a
personalidade dos indivíduos, organiza e estrutura as representações e possibilita a
construção de estratégias de relacionamentos entre os sujeitos. O discurso da feitiçaria,
além de ser um influente constituinte presente nas relações sociais, produz
conhecimentos e especializa saberes. Por essa razão, ele engendra um espaço de
relações no âmbito das sociedades quilombolas. Esse espaço é designado como universo
da feitiçaria. Este é constituído de regras e uma ética especifica e nele circulam
informações, conhecimentos, produtos, objetos de troca e, por isso mesmo, têm uma
economia própria. Os detentores de capitais simbólicos nesse campo de relações
acumulam poder. Nessa medida, a feitiçaria é entendida como um discurso que
engendra relações assimétricas de poder.

Palavras-chaves: feitiçaria, religiosidade, relações sociais, conhecimento e poder.


Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
9

ABSTRACT

Studies on witchcraft and power were made in the quilombos of Rio das Rãs and
Mangal/Barro Vermelho, situated in the Middle Francisco in West of Bahia. In the two
quilombos, witchcraft is seen as the capacity assigned to someone cause voluntary or
accidentally hurt others. Anthropological point of view, witchcraft is considered a
speech capable of guiding the direction of action of the subject in social relations. But,
because it is a complex phenomenon and, above all, ambivalent witchcraft can
configure in different modalities and, therefore, be employed with disparate goals.
Anyhow, its influence wraps the personality of individuals, organizes and structure
representations and enables the construction of strategies of relationships between
subjects. The discourse of witchcraft, in addition to being an influential constituent
present in social relations, produces expertise and specialized knowledge. For this
reason, it is creating an area of relationships within societies quilombolas. This space is
designated as the universe of witchcraft. This consists of rules and ethical specifies and
circulating information, knowledge, products, exchange objects and therefore have an
economy itself. Symbolic capital holders in this field of relationships accumulate power.
To that extent, witchcraft is understood as a speech that involve asymmetric relations of
power.

Keywords: witchcraft, religion, social relations, knowledge and power.


Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
10

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 13

1.1 O aparecimento do discurso da feitiçaria e a reorientação da pesquisa de campo: os sujeitos da


pesquisa, o poder da ciência e os novos caminhos da etnografia 15

1.2 O poder e o discurso da feitiçaria nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal 24

1.3 A referência ao discurso da feitiçaria na bibliografia dos quilombos contemporâneos 26

1.4 Breve referência à literatura dos quilombos contemporâneos 29

1.5 O universo da investigação e os instrumentos adotados na pesquisa etnográfica 35

1.6 Estrutura da tese 37

2 CAPÍTULO I – OS QUILOMBOS DE RIO DAS RÃS E MANGAL NO MÉDIO SÃO


FRANCISCO 39

2.1 Breve notícia sobre a história dos conflitos pela posse da terra nos quilombos de Rio das Rãs e
Mangal 40

2.2 O vale do São Francisco na História da Bahia 45

2.3 Evidências sobre a presença negra nos sertões da Bahia 48

2.4 A crise econômica e a conformação de uma nova paisagem social e étnica no Vale do São
Francisco 50

2.5 Resistência política e obstáculos: visibilidade dos negros na história do Vale do São Francisco 55

2.6 Perfil dos municípios no entorno dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal 62

3 CAPÍTULO II – ECONOMIA E AS PRÁTICAS CULTURAIS NOS QUILOMBOS DE


RIO DAS RÃS E MANGAL/BARRO VERMELHO 68

3.1 A localização histórica de Rio das Rãs e Mangal/Barro Vermelho no território quilombola do
Médio Francisco 68

3.2 A economia nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal 78

Agricultura de sequeiro 79
Agricultura de vazante 80
Criação 87
A pesca 93
3.3 Outras atividades econômicas nos quilombos 101

Educação e economia quilombola 103

O impacto nos quilombos dos programas federais de transferência de renda 108


A migração dos jovens quilombolas para o trabalho assalariado 111
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
11

3.4 As relações sociais entre parentelas no território quilombola de Rio das Rãs e Mangal: a idéia de
que tudo é uma só parentage em Rio das Rãs e em Mangal 119

3.5 As formas de sociabilidade entre os parentes: solidariedade e conflitos 127

3.6 A deferência social com os mais velhos 132

3.7 O lugar das mulheres na vida social dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal 135

4 CAPÍTULO III – RELIGIOSIDADE, FEITIÇARIA E PODER NA ÁFRICA E NO


BRASIL 148

4.1 Elementos do pensamento e religiosidades africanas 151

4.2 Religiosidades afro-brasileiras, feitiçaria e poder 157

4.3 Continuidade e transformações da feitiçaria na África e no Brasil 165

4.4 A incidência do discurso da feitiçaria no Vale do São Francisco 177

4.5 Sentidos de religiosidades africanas e afro-brasileiras 183

5 CAPÍTULO IV – FEITIÇARIA E PODER E O PODER DA FEITIÇARIA EM RIO DAS


RÃS 186

5.1 Revelações e surpresas 186

5.2 A representação da feitiçaria no quilombo de Rio das Rãs 190

5.3 A feitiçaria: um fenômeno social generalizado em Rio das Rãs 193

5.4 A feitiçaria, os pastores e os fiéis das igrejas evangélicas 205

5.5 A feitiçaria e os adeptos dos Centros de Jurema 214

5.6 As acusações de feitiçaria em Rio das Rãs 226

5.7 Histórias de feiticeiros e de feitiçarias 234

5.8 Os caminhos para a cura percorridos pelos enfeitiçados e a proteção contra a feitiçaria 241

5.9 O discurso da feitiçaria e as ambigüidades médicas nos diagnósticos das doenças e nos sistemas
de cura 249

5.10 Feitiçaria e poder no quilombo de Rio das Rãs 259

6 CAPÍTULO V – ESCRAVIDÃO, RELIGIOSIDADE, PODER E O ESTIGMA DA


FEITIÇARIA NO QUILOMBO DE MANGAL/BARRO VERMELHO 269

6.1 Os discursos sobre a meia légua de terras doadas em promessa a Nossa Senhora do Rosário e os
conflitos pelo poder 269
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
12

6.2 Os desentendimentos sobre a chegada da imagem de Nossa Senhora do Rosário ao Mangal:


religiosidade e luta pelo poder 276

6.3 A religiosidade no quilombo de Mangal 285

6.4 Os caminhos tortuosos da etnografia para investigar os relatos sobre a feitiçaria em Mangal 281

6.5 A origem da representação de que o quilombo de Mangal é uma “terra de feiticeiros” 296

6.6 As acusações de feitiçaria contra os mangazeiros e os impactos políticos e psicológicos 301

6.7 A influência do estigma da feitiçaria e das religiosidades afro-brasileiras na vida cotidiana dos
quilombolas de Mangal 316

6.8 Os sinais nem sempre visíveis de acusações de feitiçaria na vida cotidiana de Mangal 321

7 CONCLUSÃO 328

8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 341


Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
13

INTRODUÇÃO

Ao pesquisar em Rio das Rãs, comunidade negra rural situada no município de


Bom Jesus da Lapa, no Oeste da Bahia, pretendia investigar as relações políticas e de
poder como um caminho para entender outras dimensões da vida social em um
quilombo. Esta opção não implicava desconsiderar outros aspectos importantes da vida
comunitária que deveriam ser observados na pesquisa, a exemplo da circulação de
discursos étnicos veiculados pelos indivíduos mais jovens do quilombo, após a
conquista definitiva da terra; as relações assimétricas de gênero; a influência das classes
de idade no processo de hierarquização das posições sociais no quilombo e, também,
como estas e outras dimensões da vida social influenciavam na distribuição do poder
entre os atores sociais. Tinha consciência de que esse planejamento prévio não
garantiria, necessariamente, êxito na investigação empírica, visto que o planejamento da
pesquisa de campo não passa de uma operação abstrata do pesquisador sobre o que, a
priori, se considera o caminho mais adequado para responder às perguntas formuladas
no projeto.
A finalidade de uma pesquisa é racionalizar as ações do pesquisador em sua
atividade de investigação. Metodologicamente, serve como instrumento para definir um
padrão de relacionamento com os sujeitos do mundo real e orientar a escolha de técnicas
apropriadas à pesquisa.
Com muita propriedade, Cláudio Pereira classifica a pesquisa etnográfica como
“uma situação complexa...” Segundo ele, o que se pretende com essa modalidade de
pesquisa é reunir provas sobre a validade “de uma determinada verdade com respeito à
realidade.”1 Embora se possa imaginar ser tal exercício algo simples – supostamente
pelo fato de o pesquisador conhecer o campo de pesquisa com os seus próprios olhos,
sendo orientado pela experiência teórica da antropologia –, os muitos relatos sobre a
experiência etnográfica indicam exatamente o contrário.
A idéia de poder apresentada no projeto para o doutorado do Programa
Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia,
baseada em grande parte nas concepções de Max Weber, foi entendida como a
“capacidade que um indivíduo ou um grupo possui de exercer um constrangimento para

1
PEREIRA, Cláudio. Relação teoria x trabalho de campo: observações críticas para antropólogos que
pactuam com o pensamento insubordinado. Digitado, s/d.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
14

obter do outro alguma coisa ou algum ato que ele deseja.”2 Para os objetivos da
pesquisa, tal concepção era postulada como a mais operatória.
No decorrer da primeira parte da pesquisa de campo, concentrada em Rio das Rãs,
e com a incursão de uma semana nas comunidades negras rurais de Pau
D’arco/Parateca, Barra da Parateca e Tomé Nunes, todas vizinhas de Rio das Rãs e
situadas no Médio São Francisco no Estado da Bahia, fui obrigado a alterar a minha
compreensão sobre a referida noção de poder adotada para fundamentar a hipótese de
trabalho contida no projeto de pesquisa.
A partir da identificação em campo da ocorrência de outras modalidades de poder
imbricadas nas relações sociais no quilombo de Rio das Rãs, que não coadunavam com
a concepção weberiana adotada para orientar a pesquisa, as mudanças se tornaram
inevitáveis. Com isso, fui obrigado a estender a concepção de poder a outras dimensões
sociais que não envolviam diretamente relações políticas stricto sensu, sobretudo, após
a descoberta de que o discurso da feitiçaria em Rio das Rãs é um parâmetro
fundamental para se entender os sentidos das relações sociais no quilombo. Antes de
explicar de que maneira surgiu o discurso da feitiçaria na experiência etnográfica, é
importante justificar por que a escolha da noção de poder contida no projeto de pesquisa
estava vinculada ao meu interesse em verificar as mudanças ocorridas no quilombo.
Um longo e violento conflito pela posse da terra, envolvendo os quilombolas de
Rio das Rãs e fazendeiros da região, durou 18 anos e provocou alterações nas relações
sociais entre os quilombolas e profundas mudanças na organização política e na
distribuição do poder no quilombo. Por serem obrigados a se relacionar com instituições
públicas, os quilombolas tiveram que criar uma representação jurídica que atendesse às
necessidades institucionais decorrentes desse conflito.
Com isso, os indivíduos mais jovens passaram a ter mais destaque na
representação política, deslocando o poder, antes concentrado nas lideranças mais
tradicionais. Com a criação da Associação Quilombola de Rio das Rãs, passaram a
adquirir carros e bens de uso domésticos que os distinguiam do restante da população
do quilombo.
A investigação desse novo cenário nas relações institucionais de poder, portanto, é
o que norteou a definição de prioridade para orientar a pesquisa de campo.

2
LABURTHE-TOLRA, Philippe. Etnologia, Antropologia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 133
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
15

O meu interesse naquele momento era acompanhar a movimentação desses novos


personagens políticos na vida social do quilombo e compreender a repercussão dos
novos arranjos políticos na estrutura de poder tradicional.

O aparecimento do discurso da feitiçaria e a reorientação da pesquisa de campo:


os sujeitos da pesquisa, o poder da ciência e os novos caminhos da etnografia

Logo no início da pesquisa de campo em Rio das Rãs, em maio de 2007, fui
surpreendido com um evento envolvendo uma grave acusação de feitiçaria. Após o
acontecido, que será descrito em detalhes no capítulo IV, me dei conta da influência
exercida pelo discurso da feitiçaria na vida social dos quilombolas, além de constatar
que esse discurso contém significados relativos à categoria poder, no sentido de que
interfere nas relações cotidianas entre os sujeitos.
A descoberta desse novo caminho obrigou-me a conhecer outras idéias não
convencionais de poder, como a concebida pela antropologia de George Balandier, que
associa o poder à força dos símbolos e das imagens.3 De acordo com essa concepção, o
poder não estaria circunscrito aos conhecidos arbitrários institucionais e do uso da força,
já que ele circularia no interior da sociedade como um fenômeno de múltiplas
dimensões. Assim, as “palavras e os silêncios são uma parte da substância a que recorre
o poder.”4 Relações de poder podem estar contidas tanto nas normas sociais que
impõem obediência, quanto em atos não escritos e, muitas vezes, nem pronunciados
formalmente.
A partir de Michel Foucault, de acordo com a opinião de Paul Rabinow, “foi
seriamente posta em questão a visão de poder que o toma por uma coisa, uma posse,
como um emaranhado [unidirecional] de cima para baixo, ou operando através da
aplicação da força.”5
Na visão de Foucault, “as correlações de forças múltiplas que se formam e atuam
nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de
suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social”6. Isso
significa que relações de poder é um fenômeno fluido, embora persistente, e que se

3
BALANDIER, Georges. O contorno – Poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
4
Op. Cit. p. 100.
5
RABINOW, Paul, Antropologia da Razão. Rio de Janeiro: Relume Damará, 2002, p. 102.
6
MAIA, Antônio C. “Sobre a analítica do poder de Foucault”. São Paulo: Revista Tempo Social, USP,
outubro de 1995, p. 87.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
16

encontra presente em todo tecido social. Portanto, o “que caracteriza o poder que
estamos analisando é que traz à ação relações entre indivíduos (ou entre grupos)”.7
Por ser uma categoria relacional, já que envolve uma multiplicidade de interesses
dos atores em ação, o poder não derivaria exclusivamente do Estado ou de outras
instituições sociais produtoras de regras. Isso define, segundo Elyana Barbosa, de forma
precisa que o “poder passa por relações, está nas relações...”8.
A fala dos meus interlocutores na pesquisa de campo foi igualmente decisiva para
a descoberta das novas facetas do poder no âmbito do quilombo de Rio das Rãs. Por
esse motivo, é importante destacar as mudanças de concepção que fui obrigado a adotar
para dar conta de uma nova maneira de encarar o fazer etnográfico. Uma delas foi a de
valorizar mais ainda a fala dos sujeitos na pesquisa.
A experiência de pesquisa desenvolvida por Malinowski nas Ilhas Trobriand,
considerada por muitos como de fundamental importância para todas as gerações de
antropólogos, modificou estruturalmente o que antes era concebido como o mais
adequado modo de fazer etnografia: “no passado considerava-se que os documentos
eram a matéria prima necessária ao antropólogo e ao historiador; agora, a matéria prima
é a própria vida social.”9 A vida social seria explicada, antropologicamente, na medida
em que o pesquisador mergulhasse fundo na cultura vivida pelos povos pesquisados e
decidisse o que é significativo naquilo que observa e o que deve por em relevo na
subsequente narração de suas experiências.10
A “observação participante”, núcleo fundamental do projeto etnográfico de
Malinowski, segundo os seus críticos, não poderia, entretanto, fazer milagre, já que
seria uma “pretensão desmesurada e ilusória que o levava a achar que o etnógrafo
poderia ver tudo.”11 A pretensão positivista subtendida em tal visão, ensejadora de parte
das críticas dos antropólogos, está incluída nas mudanças epistemológicas em curso na
etnografia. Da discussão crítica emergem questões relacionadas ao fazer etnográfico e
aos procedimentos científicos que lhe dão sustentação, como a problemática da autoria e
também o significado e a destinação do texto etnográfico.
Clifford Geertz, um dos primeiros a perceber a necessidade de redefinir a missão
da tarefa etnográfica, considerava que o “objetivo final da etnografia [seria] a

7
OP. Cit. p. 88.
8
BARBOSA, Elyana. “Espaço-tempo e poder-saber”. São Paulo: Revista Tempo Social, USP, outubro de
1995, p. 118.
9
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 76.
10
Idem, 1985
11
GIUMBELLI, Emerson. Para além do “trabalho de campo”: reflexões malinowskianas. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 48, 2002, 101.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
17

compreensão da cultura como conjunto de símbolos ou de signos interpretáveis.”12


Além disso, Geertz “reduzia” os antropólogos à tarefa de intérpretes de segunda mão.
Mas a inovação proposta por Geertz logo se tornaria obsoleta, diante da radicalidade
com que outros críticos se referiam aos antigos modelos de interpretação dos
antropólogos.
Para José Jorge de Carvalho, um desses críticos, os antropólogos no Brasil
incorporaram “muito mais uma espécie de empatia com o nativo, mas sempre aspirando
preservar para si o lugar de autor seguro e inconteste.”13 Essa empatia, contudo, era
insuficiente para se reorientar o olhar etnográfico, que, entre outras alterações, deveria
incorporar a “discussão epistemológica da reflexividade.” O desafio da antropologia,
segundo ele, deveria ser o de reconhecer a necessidade de um processo dialógico, no
qual as diferentes culturas em contato, as dos pesquisadores e a dos seus sujeitos de
pesquisa, ao contrário de afetar negativamente os resultados da pesquisa científica,
poderiam contribuir muito para novas alternativas de reciprocidade.
Paul Robinow, por sua vez, considera que a antropologia vive um tempo de
“hibridização”14. Isto significa que a ficção (literária) e a ciência podem ser encaradas
como termos complementares. Além de se preocupar com o conteúdo da escrita, o autor
que se inspira nas idéias de James Clifford considera que “a escrita antropológica
tendeu a suprimir a dimensão dialógica do trabalho de campo, dando controle total do
texto ao antropólogo”15. É preciso, portanto, uma drástica transformação no olhar e na
prática deste. Ele sugere como um imperativo do discurso etnográfico superar a
hermenêutica “interpretativa” de Clifford Geertz.16, visto que “os paradigmas de
experiência e interpretação estão dando lugar a paradigmas de discurso, de diálogo e
polifonia.” 17
O aparente esvaziamento da autoria no discurso etnográfico é uma tentativa de a
antropologia entender a necessidade de compartilhar com outros sujeitos nos espaços de
investigação e, além do mais, reconhecer, como o faz J. Van Velsen, que o “trabalho de
campo etnográfico é orientado, mas não necessariamente determinado pela visão teórica

12
MARQUES, Cláudia Ana e VILLELA, Jorge Mattar. O que se diz, o que se escreve. Etnografia e
trabalho de campo no sertão de Pernambuco. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2005, p. 43.
13
CARVALHO, José Jorge. O olhar Etnográfico e a voz Subalterna. Horizontes Antropológicos. Porto
Alegre, ano 07, n. 15, julho de 2001, p. 114.
14
RABINOW, Paul. Antropologia da Razão – ensaios de Paul Robinow. Rio de Janeiro: RELUME
DUMARÁ, 1999, pg. 80/81.
15
Op. cit. p. 84.
16
GEERTZ, Clifford. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
17
RABINOW, Paul, Op. cit. pg. 85.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
18

do antropólogo.”18 Neste caso, tão importante quanto os recursos teóricos, que poderão
impor unilateralmente os seus padrões culturais ao interpretar os fatos observados, é
ouvir as histórias e os seus diferentes personagens e, dessa forma, entender o significado
atribuído por esses atores ao cotidiano de suas vidas.
Presumo que a sensibilidade de Margaret Mead para apreender a metáfora adotada
pelo povo Arapesh para descrever o mundo, é um exemplo que muito bem se enquadra
no esforço que se deve fazer para captar o significado refinado dos discursos dos
sujeitos das pesquisas etnográficas: “Para os Arapesh, o mundo é uma plantação que
deve ser lavrada, não por si mesma, não no orgulho e jactância, não para acumulação e
usura, mas para que os inhames e os cachorros, os porcos e, acima de tudo, as crianças,
possam crescer.”19
Mesmo entre os antropólogos mais modernos, a visão da Antropologia como uma
ciência positiva ainda tem importante influência. Roberto Malighetti, por exemplo,
reconhece que a etnografia, em certo sentido, transita entre dois mundos, “o mundo do
etnógrafo e de seus eventuais leitores, e o mundo dos membros da cultura.”20 Porém,
pretender “dispensar e repartir a autoridade etnográfica entre os seus informantes,
significa negar à disciplina seu específico estatuto de ciência.” 21 Neste sentido, não há
como desconhecer, segundo o autor, que o “etnocentrismo representa uma condição
ineliminável e constitutiva do saber antropológico.”22
A discussão sobre a autoridade etnográfica tem encontrado uma maior acolhida
junto aos que buscam instituir novas referências epistemológicas para a ciência
moderna. Boaventura de Souza Santos, um dos arautos dessa corrente, afirma que em
“nome da ciência moderna destruíram-se muitos conhecimentos e ciências alternativas e
humilharam-se os grupos sociais que neles se apoiavam para prosseguir as suas próprias
vias autônomas de desenvolvimento”.23 Adiante, ele assevera de maneira taxativa que o
conhecimento moderno vive um momento de transição para outro modelo:

18
VELSEN, J. Van. “A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado” in FELDMAN-
BIANCO, Bela. (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas – métodos. São Paulo: Global,
1987, p. 345.
19
MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988, p. 142.
20
MALIGHETTI, Roberto. O quilombo de Frechal – Identidade e trabalho de campo em uma
comunidade brasileira de remanescente de escravos. Edições do Senado Federal. Vol. 81. Brasília:
Senado Federal, 2007, p. 20.
21
Idem, p. 25.
22
Idem, p. 26.
23
SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia, os caminhos da democracia
participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 14; ver também sobre o assunto do mesmo
autor: “A globalização e as Ciências Sociais”. São Paulo: Cortez, 2002; “A crítica da Razão Indolente”.
São Paulo: Cortez, 2000; “Um discurso sobre as ciências”. São Paulo: Cortez, 2003; “Introdução a uma
ciência pós-moderna”. Rio de Janeiro: GRAAL, 1989.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
19

Estamos “em uma fase de transição paradigmática, de crise de confiança epistemológica, de


crescente confrontação entre conhecimentos rivais. É grande a dissidência no interior do campo
científico, propõem-se formas de ciência-ação, de ciência cidadã, de ciência popular, investiga-se
o caráter multicultural da ciência, propõem-se novas articulações entre ciência e conhecimentos
rivais.”24

O cerne da discussão sobre o papel da ciência e em particular das ciências sociais


é, no fundo, uma tentativa dos teóricos se livrarem dos fundamentos positivistas de
ciência, sobretudo aqueles que pretenderam tornar absolutas descobertas científicas que
deveriam ser vistas de maneira relativizada. Weber, crítico do positivismo, já
considerava que “toda obra científica ‘acabada’ não tem outro sentido senão o de fazer
surgir novas indagações”25. Ele reconhecia a validade de outras formas de conhecimento
e, além disso, considerava o conhecimento científico finito. Anthony Giddens indica, da
mesma forma, as limitações do positivismo nas ciências sociais, embora observe
igualmente as limitações da hermenêutica:

“Os positivistas olhavam a ciência natural como exemplar em relação à sociologia – agregando, ao
longo do tempo, vários modelos oriundos da lógica da ciência natural. As tradições da sociologia
interpretativa, particularmente a hermenêutica, por outro lado, viram em grande parte as ciências
como mais ou menos irrelevantes para o estudo das instituições e da ação social humana.”26

Para Giddens, contudo, o pensamento da escola pós-moderna não foi capaz de


instituir uma alternativa suficientemente poderosa para dar conta das limitações
identificadas no positivismo, pelo menos da maneira com é proposto por Boaventura
Santos. A concepção de Giddens é a seguinte:

A “modernidade não é o fim da história; mas o moderno não se dissolveu em uma pós-
modernidade amorfa, fragmentada e não linear. Para mim, a idéia do ‘pós-moderno’ implica
transcendência e não apenas a idéia de que ‘a modernidade recobrou o juízo’ ou está sendo forçada
a encarar as limitações.”27

Ainda de acordo com o sociólogo inglês, que se diz preocupado com os profundos
questionamentos que se fazem à ciência moderna – embora esteja igualmente perplexo
face à sua incapacidade de responder aos dilemas da atualidade –, uma “forte corrente
de conservadorismo político [teria varrido] o Ocidente nas últimas décadas”.28 Para ele,
os filósofos, assustados e impotentes para dar uma explicação satisfatória da barbárie

24
SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia, p. 18.
25
WEBER, Max. Ciência e Política, duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 36
26
GIDDENS, Anthony. Política, Sociologia e Teoria Social. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 20.
27
Op. Cit. p. 22.
28
Op. Cit. p. 313.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
20

que caracterizou o século vinte29, perigosamente, “se afastaram de Marx em direção a


Nietzsche”. 30
A resistência às concepções pós-modernas de ciência é igualmente importante na
sociologia francesa, a quem não se pode imputar a simples reprodução dos ideais
positivistas antigos, embora, por outro lado, se perceba uma forte influência desses
supostos. É o caso de Patrick Champagne, que propõe para a sociologia a seguinte
premissa epistemológica: “um verdadeiro procedimento científico implica reflexividade,
ruptura com o senso comum e, sobretudo, trabalho de construção de uma problemática
do tipo científico”31. Deste ponto de vista, portanto, não pode haver dúvidas em relação
ao modelo epistemológico clássico de ciência que separa, irremediavelmente, sujeito e
objeto.
Pierre Bourdieu é ainda mais explícito: ao sucumbir ao que expõe os seus
informantes, o sociólogo “corre o risco de substituir pura e simplesmente suas próprias
pré-noções pelas pré-noções dos que ele estuda...” 32
A discussão envolvendo velhos e modernos parâmetros paradigmáticos, aqui
referidos de maneira sucinta, enfim, assume uma perspectiva considerada renovadora a
partir das recentes intervenções de filósofos e cientistas sociais, sobretudo da América
Latina, vinculados ao pensamento descolonial, à ciência descolonial ou ao projeto de
descolonialidade do saber e do poder33. Segundo os autores envolvidos nas referidas
perspectivas, o que se pretende é propor uma nova maneira de pensar o mundo
contemporâneo e as próprias ciências humanas e sociais.
O pensamento descolonial sustenta um ponto de vista de que existe uma
diversidade epistemológica “que nasce de alteridades etno-raciais e feministas”.34 Os
seus autores questionam não apenas os fundamentos teórico-metodológicos da ciência

29
“Assim, com as palavras da minha linguagem, só posso falar de massacres, campos e procissões de
morte, de algumas que vi e de outras que desejaria também evocar” Bernard-Henri Lévi apud Anthony
Giddens. Política, Sociologia e Teoria Social. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 314.
30
Giddens, Op. Cit. 314.
31
CHAMPAGNE, Patrick. A ruptura com as pré-construções espontâneas ou eruditas in
CHAMPAGNE, Patrick et. al.. Iniciação à prática sociológica. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 173/4.
32
BOURDIEU, Pierre, CHANBOREDON, Jean-Claude, PASSERON, Jean-Claude. A profissão de
Sociólogo, preliminares epistemológicas. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. p. 50.
33
MALDONADO-TORRES, Nelson: Pensamento crítico desde a sub-alteridad: los Etudios Étnicos
como ciencias descoloniales o hacia la transformación de lãs humanidades y lãs ciencias sociales em el
siglo veintiuno. Texto digitado, 2005. Para Madonado-Torres “a noção de ciência descolonial emana, por
um lado, de Aimé Césaire, que fala de uma ciência do anti-colonialismo, e de Laura Pérez, que tem
insistido em várias conversações sobre a importância em conceber os estudos étnicos como estudos
descolonizadores. Lewis Gordon também tem falado sobre a relevância dos estudos da diáspora africana
para as ciências humanas”, p. 01.
34
GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizando los paradigmas de la economia-política: transmodernidad,
pensamiento fronterizo y colonialidad global. Texto digitado, apresentado ao Curso Fábrica de Ideais do
CEAO-UFBa, 31/07 a 18/08/2006, p. 01.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
21

positiva, como o fazem os pós-modernos, mas propõem fazer “uma crítica sistemática
[das] correntes dominantes da reflexão epistemológica sobre ciência moderna,
recorrendo, para isso, a uma dupla hermenêutica: de suspeição e de recuperação”.35 Para
eles, a ciência e a filosofia ocidentais estariam sob suspeição. E o compromisso dos
mentores dessa escola não seria de recuperá-las, mas, desconstruí-las como referência
única e hegemônica de pensar o mundo: “O ponto central das perspectivas epistêmicas
alternativas é o lugar epistêmico de enunciação, isto é, a localização geopolítica e
corpo-política do sujeito que fala/enuncia as coordenadas do poder global”.36 Para
Grosfoguel, um dos formuladores dessa corrente de pensamento, é de fundamental
importância emergir os sujeitos anulados pela ciência moderna:

“Na filosofia e nas ciências ocidentais o sujeito que fala sempre fica escondido, encoberto e
apagado da análise. A localização étnica, sexual, racial, de classe ou de gênero do sujeito que
enuncia está sempre desconectada da epistemologia e da produção de conhecimentos. Por meio
desta supressão, que vincula a localização do sujeito nas relações entre o poder e a epistemologia,
a filosofia ocidental e as suas ciências intentam produzir um mito universalista que encobre, isto é,
que esconde quem fala e qual é a localização epistêmica nas relações de poder do sujeito que
fala.”37

O desaparecimento dos sujeitos construtores da história dos textos científicos,


mediante a operação de negação de valores e da validade de suas culturas, possibilita ao
sujeito detentor do conhecimento se exibir como o único intérprete legítimo das práticas
sociais e, desse modo, se instituir senhor da razão. De acordo com o sociólogo peruano
Aníbal Quijano, o “colonizado aparece assim como o ‘outro da razão’, no qual justifica
o exercício de um poder disciplinar por parte do colonizador. A maldade, a barbárie e a
incontinência são marcas ‘identitárias’ do colonizado, enquanto a bondade, a civilização
e a racionalidade são próprias do colonizador.38
A ciência, de acordo com essa perspectiva, vista como objetiva e isenta de
subjetividade, de fato funcionaria como uma espécie de linha auxiliar do sistema de
colonização. Portanto, seria descabido considerar a sua pretensão de se passar como um
conhecimento desinteressado: “deste ponto de vista, as ciências sociais não efetuaram
jamais uma ‘ruptura epistemológica’ – no sentido authusseriano – frente à ideologia,
mas o imaginário colonial impregnou desde as suas origens o sistema conceitual das

35
SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: GRAAL,
1989, p. 11.
36
GROSFOGUEL, Ramón, Op. Cit. p. 01.
37
Op. Cit. p. 02.
38
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciencias sociales, violência epistêmica y el problema de la “invención
del outro” in Edgardo Lander (org.). Colonialidade do saber, eurocentrismo e ciências sociais:
perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 153.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
22

ciências sociais.”39 Os conceitos binários ideologizados do tipo barbárie/civilização,


mito/ciência, pobreza/desenvolvimento, entre outros, são exemplos dessa contaminação
da ciência com a ideologia, de acordo com o citado autor.
Os discursos pós-modernos foram incluídos na crítica da descolonialdade do
poder e do saber, pois eles não teriam rompido com a lógica subjacente ao
eurocentrismo da ciência.
Numa tentativa de reação e reabilitação do pensamento ocidental, Lyotard defende
que o relato legítimo na atualidade seria o da “coexistência das diferenças”. Santiago
Castro-Gomez, por outro lado, não aceita o caminho proposto por este pensador, quando
assevera que na “‘condição pós-moderna’ [são] os jogadores mesmos que fazem as
regras do jogo”40 Pois isso equivaleria “a invisibilizar – ou seja, mascarar – o sistema-
mundo que produz as diferenças com base em regras definidas para todos os jogadores
do planeta”.41
Os estudos étnicos que surgiram nos EUA em meio aos movimentos em defesa
dos direitos civis das minorias submetidas ao racismo, sobretudo as populações afro-
americanas, representariam para os teóricos do pensamento descolonial, um caso
exemplar de reação política e intelectual originada das ruas e sob o impulso dos sujeitos
invisibilizados que pedem passagem para se expressar na atualidade:

Fora “dos Estados Unidos os Estudos Étnicos tendem a ser vistos como uma invenção a mais da
academia americana, e como a academia americana é hegemônica, esses estudos são considerados
uma invenção imperial ou como algo que por sua relação com o império é digno de ser
exportado.42

Um exemplo dessa modalidade de crítica referida por Maldonado-Torres é um


artigo assinado por Bourdieu e Wacquant no qual os autores afirmam serem tais estudos
étnicos “oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade
social da sociedade e das universidades americanas [que se impuseram], sob formas
aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro”.43 Mais, adiante eles se perguntam:
“o que pensar desses pesquisadores americanos que vão ao Brasil encorajar (sic) os
líderes do Movimento Negro a adotar as táticas do movimento afro-americano de defesa
dos direitos civis e denunciar a categoria pardo (...), deixando de os classificar à força
39
Op. Cit. p. 153.
40
Op. Cit. p. 157.
41
Op. Cit. p. 157.
42
MALDONADO-TORRES, Nelson, Op. Cit. p. 02.
43
BORDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. Prefácio: sobre as artimanhas da razão imperialista in Maria
Alice Nogueira e Afrânio Catani (org.). Pierre Bourdieu, escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998,
p. 17.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
23

sob a etiqueta exclusiva de ‘negro’?”44 As conclusões e ilações dos citados autores45, ao


que parece pouco familiarizados com os estudos sobre as relações raciais no Brasil, ao
mesmo tempo em que insinuam a falta de originalidade e de autonomia do movimento
negro brasileiro, passa ao largo de uma considerável contribuição das ciências sociais
brasileiras sobre a temática.46
Para Maldonado-Torres, o surgimento dos estudos étnicos nos Estados Unidos
não expressa apenas os interesses das elites intelectuais desse país, ao contrário:

Ao “invés de dar expressão aos interesses políticos e cognitivos das elites estadounidenses, eles
são o resultado de protestos de movimentos sociais nos EUA. Aqui os protagonistas não são as
elites brancas, mas sim setores sociais racializados e marginalizados por elas, primeiro através do
genocídio indígena e com a escravidão dos negros, e logo a seguir na colonização do norte do
México, a partir de 1848, e a de Guam e Porto Rico, a partir de 1898.” 47

Por essas razões, os teóricos da descolonialidade do saber concluem que nem os


estudos da sociologia crítica nem o ideário pós-moderno representariam, de fato, uma
ruptura com os paradigmas eurocêntricos. Para eles, seria indispensável “um projeto
para substituir o inacabado e incompleto projeto da descolonização”.48 A intenção de tal
projeto seria, fundamentalmente, a de negar a primazia exclusivista e eurocêntrica da
modernidade vista como uma construção exclusiva da Europa, ao mesmo tempo, refutar
a ideologia negadora das demais civilizações fora da Europa. Afinal, foi dessa forma e

44
Op. Cit. p. 26.
45
Cf. sobre esse assunto: Edição Especial da Revista de Estudos Afro-Asiáticos. As artimanhas da Razão
Imperialista – Comentários a Bourdieu e Wacquant. Universidade Cândido Mendes – UCAM,
Ano 24/02 (2002).

46
Eis alguns desses estudos: BARBOSA, Lúcia Maria de Assunção, SILVA, Petronilha Beatriz
Gonçalves e, SILVÉRIO, Valter Roberto (Orgs.). De Preto a Afro-descendente. São Carlos:
EDUFSCAR, 2003; BENTO, Maria Aparecida. Cidadania em Preto e Branco. São Paulo, Ática, 1998;
BERNAD, Zila. Racismo e Anti- Racismo. (Coleção Polêmica.) São Paulo, Moderna, 1994; BRANDÃO,
Carlos Rodrigues. Peões, Pretos e Congos – Trabalho e Identidade Étnica em Goiás. Brasília: UNB,
1977; BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e Etnia - Construção da Pessoa e Resistência Cultural.
São Paulo: Brasiliense, 1986; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Antropologia do Brasil - Mito,
História e Etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1986; D’ DESKY, Jacques. Racismos e Anti-Racismos no
Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001; FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de
Classes. (2 vols.), 3. ed. São Paulo: Ática, 1978; FONSECA, Maria Nazareth Soares (org.). Brasil Afro-
Brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2000; GONZALEZ, Lélia e HASENBALG, Carlos A. Lugar de
Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-
racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo e HUNTLEY,
Lynn (Orgs.) Tirando a máscara – ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000;
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002;
HASENBALG, Carlos Alfredo. Relações Raciais no Brasil Contemporâneo. São Paulo, Rio Fundo,
1992; IANNI, Octávio. Raças e Classes Sociais no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987;
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. São Paulo: Ática, 1988.

47
MALDONADO-TORRES, Nelson. Op. Cit. p. 06
48
GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizando, Op. Cit. p. 12
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
24

através dessa operação política e ideológica que o continente europeu se autoinstituiu


como centro do mundo.49

O poder e o discurso da feitiçaria nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal

Ao procurar entender o significado dos discursos dos diferentes sujeitos presentes


no diálogo etnográfico em Rio das Rãs, assumi uma decisão epistêmica e política. Com
isso, pude observar por outro ângulo os modos de agir dos sujeitos e,
consequentemente, foi possível traduzir o discurso da feitiçaria como um mecanismo
singular da cultura dos quilombolas, sendo tal dimensão, inclusive, capaz de influenciar
o sentido das relações sociais entre os indivíduos.
Como veremos em detalhes nos capítulos IV e V, o discurso da feitiçaria em Rio
das Rãs e em Mangal/Barro Vermelho – este quilombo foi incluído na segunda etapa da
pesquisa de campo para servir de contraste à experiência de Rio das Rãs – impregna
todos os âmbitos da vida social nos dois quilombos. Por essa razão, é importante
descrever sucintamente de que maneira a feitiçaria surgiu no decorrer da pesquisa de
campo como problema e ser decifrado.
Antes de aportar em Rio das Rãs para a minha pesquisa de campo já tinha uma
fragmentada e pouca compreendida idéia de ser a feitiçaria um fenômeno influente na
vida cultural dos brasileiros. Não tinha ainda uma dimensão exata de sua importância e
tampouco do impacto sociológico na vida social dos indivíduos. Mas sabia que, aqui na
Bahia, entre os negros e os estratos sociais mais periféricos da sociedade baiana como
também nos ambientes sociais das classes economicamente mais elevadas, os
comentários sobre a ocorrência da feitiçaria são frequentes, o que evidencia que o
fenômeno circula com desenvoltura na sociedade.50

49
“Como já foi apontado, o mito fundacional da versão eurocêntrica da modernidade é a idéia do estado
de natureza como ponto de partida do curso civilizatório cuja culminação é a civilização européia ou
ocidental. Desse mito se origina a especificamente eurocêntrica perspectiva evolucionista, de movimento
e de mudança unilinear e unidirecional da história humana. Tal mito foi associado com a classificação
racial da população do mundo”. (QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América
Latina in Edgardo Lander (org.). Colonialidade do saber, p. 10.)
50
Em Salvador são rotineiros os comentários sobre casamentos desfeitos por “trabalhos encomendados”;
suspeitas de feitiçaria envolvendo disputas por empregos, cargos ou funções em ambiente de trabalho; de
candidaturas a cargos eletivos antecedidos de “banhos de descarrego” para “abrir caminhos” ou
simplesmente com a finalidade de eliminar adversários que entre si disputam cargos políticos. No âmbito
do futebol, especialmente no passado de glória dos times baianos, eram públicas e espetaculares as
disputas extra-campo envolvendo supostos feiticeiros, nos dias que antecediam as decisões do
campeonato local.
É conhecida também a cruzada da Igreja Universal do Reino de Deus contra os Terreiros de Candomblés.
Para os evangélicos dessa confissão, as religiões afro-brasileiras como o Candomblé são veiculadoras da
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
25

Nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, constatei que a feitiçaria igualmente faz
parte do cotidiano da vida social dos quilombolas.
A crença na feitiçaria nos dois quilombos é generalizada, mesmo entre os
evangélicos de Rio das Rãs, que se consideram protegidos por Jesus Cristo da ação dos
feiticeiros. A suspeita da ocorrência de feitiçaria ocorre quando não há uma explicação
causal satisfatória para um acontecimento.
A feitiçaria é também um instrumento de poder, entendida como crença capaz de
influenciar, orientar e mesmo definir o sentido da ação dos sujeitos.
A descoberta do discurso da feitiçaria em Rio das Rãs e, posteriormente, em
Mangal, como categoria de explicação de eventos relacionados à vida social dos
indivíduos ou de seus familiares, comprovou a importância de o etnógrafo estar atento
aos detalhes, às sutilezas e a todas as possibilidades de descoberta da etnografia,
inclusive a do “imponderável”, como defendeu Malinowski. É importante, também,
como salientara Said, que os pesquisadores sejam sensíveis “para que os oprimidos do
mundo não se calem e reclamem sempre o seu direito de narrar suas experiências, suas
insurreições, suas memórias, suas tradições, suas histórias.”51
Na pesquisa etnográfica é importante também descrever as diferentes facetas
humanas e, sobretudo, entender o significado atribuído pelos atores aos seus atos, da
maneira sugerida apropriadamente por Van Velsen:

“O etnógrafo deve procurar saber, em cada ocasião, as opiniões e as interpretações dos atores e
também as de outras pessoas, não com a finalidade de saber qual é a visão ‘certa’ da situação, mas
para descobrir alguma correlação entre as várias atitudes e, digamos, o status e o papel daqueles
que tomam aquelas atitudes.”52

Foi trilhando esse caminho, o de procurar entender falas fragmentadas, reunir


memórias de outros encontros, vagas referências a nomes, situações e comportamentos,
enfim, ter paciência para escutar, observar e entender sinais, que me dei conta de que a
feitiçaria para os quilombolas de Rio das Rãs e de Mangal poderia comportar uma
multiplicidade de significados, inclusive o de se tornar um poderoso instrumento de luta
política. Faceta que não a torna, entretanto, aceitável socialmente, pois ela continua
sendo temida e combatida por todos que se veem, em alguma medida, por ela ameaçada.

obra do diabo, e dessa forma à feitiçaria é atribuída todas as maldades praticadas na terra. Cf. MACEDO,
Edir. Orixás, caboclos e guias – deuses ou demônios? 15. ed. Rio de Janeiro: Universal Produções, 2004.
51
CARVALHO, José Jorge de. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos, Porto
Alegre, ano 7, Nº 15, p 107-147, julho, 2001, p. 124
52
VAN VELSEN, J. Análise situacional e o método de estudo de caso detalhado. in FELDMAN-
BIANCO, Bela (org.). Antropologia das Sociedades Contemporâneas – Métodos. São Paulo: Global,
1987, p. 367
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
26

Antes de chegar a Rio das Rãs e Mangal, imaginava também que as relações de
poder estivessem circunscritas às tradicionais disputas nos partidos políticos aos quais
as lideranças estão filiados, nas Associações Quilombolas que fizeram emergir
lideranças mais jovens ou no Sindicato de Trabalhadores Rurais, a que os quilombolas
recorrem para reivindicar direitos. A partir da descoberta da feitiçaria como um discurso
que orienta a ação dos indivíduos, cheguei à conclusão de que esse discurso construiu
um espaço de poder que foi capaz não só de competir com as outras modalidades
presentes nas relações políticas dos partidos, das associações e dos sindicatos como
também de desafiar e constranger os referidos poderes institucionais.
Os feiticeiros, curadores e os adeptos das crenças na feitiçaria, que são os
indivíduos diretamente vinculados ao universo da feitiçaria – espaço de trocas,
agenciamentos e conflitos entre sujeitos –, tiveram que ser avaliados, portanto, sob outra
ótica na estrutura social dos quilombos. Ao contrário do que eu supunha antes da
pesquisa de campo, a influência social desses sujeitos nos quilombos, isto é, o poder que
eles têm de influenciar ações individuais e as decisões sociais no quilombo, certamente
é muito maior do que poderia deduzir.

A referência ao discurso da feitiçaria na bibliografia dos quilombos


contemporâneos

As referências à feitiçaria na literatura concernente aos quilombos


contemporâneos são escassas e, quando foi objeto de análise, os autores o fizeram de
maneira econômica, muito embora as poucas menções tenham sido expressivas quanto à
incidência do fenômeno em três experiências culturais que serão mencionadas.
No município de Vila Bela da Santíssima Trindade, no Estado de Mato Grosso,
onde Maria de Lourdes Bandeira procurou “repensar as relações raciais, tendo como
referência o conceito de etnicidade...”53, o discurso da feitiçaria parece ter uma
importância capital entre os quilombolas. Segundo a autora, o “feitiço é uma realidade
objetiva, ativa e operante na vida cotidiana de Vila Bela e os seus efeitos são
reconhecidos e apontados.”54
Os negros do povoado construíram um sistema de classificação dos feiticeiros que
os hierarquiza internamente conforme os capitais simbólicos de que cada um dispõe. Os
“novatos” são designados pela destreza em manipular a feitiçaria e, desse modo, são

53
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco. São Paulo: Editora
Brasiliense/CNPq, 1998, p. 24.
54
Idem, p. 187.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
27

considerados indivíduos perigosos pelo potencial de atingir mortalmente as suas


vítimas. Porém, esses “novatos”, como o termo insinua, não são vistos como os mais
confiáveis feiticeiros, porque eles ainda não adquiriram a capacidade de desfazer o
feitiço. O perigo da feitiçaria do “novato” decorreria da sua imperícia em anular o ato da
feitiçaria por ele executado para causar o mal a outrem, por decisão própria ou a pedido
de terceiros.
A outra categoria é a do feiticeiro conhecido como “pesado”. Este, embora seja
ainda mais temido e perigoso, por ser capaz de manipular a feitiçaria como um mestre –
com potencialidade, portanto, de utilizar a feitiçaria como uma arma ainda mais mortal
–, possui, entretanto, uma qualidade especial para o imaginário local: o feiticeiro
“pesado” tem o poder de “fazer”, mas também de “desfazer” um feitiço. Com tal
destreza, essa modalidade de feiticeiro possui mais poder, justamente, por ser capaz de
transitar nos dois planos que se antagonizam, o de fazer o mal e o bem, quando há,
lógico, conveniência e vontade dele.
É importante assinalar que, nas inúmeras experiências culturais onde incide o
discurso de feitiçaria, não é comum que um mesmo indivíduo apontado como feiticeiro
cumpra as duas atribuições: de fazer e de desfazer um feitiço. Veremos, nos capítulos
seguintes, que a classificação mais recorrente nas experiências analisadas é a de que
haja no universo da feitiçaria uma divisão de atribuições que separa e distingue
feiticeiros de curadores. Os primeiros seriam agentes com poderes mágico-religiosos
capazes de alterar o curso normal da vida rotineira de indivíduos, animais e plantas,
enquanto os curadores são autorizados e legitimados socialmente para identificar e
combater a feitiçaria da maneira como ela se apresenta. Essa distinção, no entanto, é
formal e convencional porque, na prática, em outros lugares, tanto na África como no
Brasil, curadores são igualmente acusados de feitiçaria.
Os feiticeiros no município de Vila Bela, além de serem temidos pelo poder que
possuem, “gozam de muito prestígio no seio da comunidade. É um prestígio ‘negativo’,
na medida em que a sua autoridade é mantida pelo temor...”55
Os negros do Cedro, em Goiás, na observação de campo de Mari Baiocchi,
costumam se utilizar de “plantas de defesa” com a finalidade “de espantar o ‘mau-
olhado’, que traz doenças.”56 A autora observou também que na comunidade haveria

55
Bandeira, p. 190.
56
BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Negros de Cedro (Estudo Antropológico de um Bairro Rural de Negros).
São Paulo: Editora Ática, 1983, p. 133.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
28

“indivíduos com ‘poderes’, com ‘força divina’, que conseguem tirar o quebranto (...) e o
‘mau-olhado’”57
Possivelmente por não ter considerado relevante em sua investigação a feitiçaria,
a autora não conseguiu investigar mais a fundo o tema. Mas, somente a insinuação da
existência de indivíduos dotados dos poderes de tirar quebranto e mau-olhado, não
deixa dúvida de que as crenças na feitiçaria rondam o imaginário dos negros do Cedro.
O discurso da feitiçaria no quilombo do Cafundó, em São Paulo, segundo Vogt e
Fry, é um veículo para expressar “dissensões e disputas políticas internas”.58 As
disputas girariam em torno de um indivíduo chamado Pernambuco e teriam duas
distintas motivações. A primeira envolveria a tentativa dele em se legitimar como
curador, o que implicaria que a sociedade local o aceitasse e reconhecesse a sua
proeminência como um sujeito capaz de alterar processos, e, por essa razão, ratificasse a
sua força simbólica. A segunda porque os negros do Cafundó o consideravam, de fato,
um feiticeiro e, como tal, passou a ser encarado como uma ameaça social.
Não é por outra razão que os autores consideram que no Cafundó “o
enquadramento de uma doença na categoria mafambura é, evidentemente, um ato
político, na medida em que implica apontar um agressor suposto (feiticeiro) e envolve
uma agressão real (a acusação de feitiçaria).”59
Mais do que vítimas individuais, as acusações de feitiçaria no Cafundó
envolveriam a sobrevivência futura dos moradores, isso porque o território quilombola
estaria sendo ameaçado de usurpação por um feiticeiro. O principal acusado,
Pernambuco, no entanto, prometera ao “povo do Cafundó (...) recuperar as terras
griladas pelos fazendeiros vizinhos.”60 Esse aceno de lealdade e compromisso de
Pernambuco para com os negros do Cafundó não fora suficiente, contudo, para evitar a
sua expulsão do quilombo.
Mas, como um bom feiticeiro, depois de ser expulso, Pernambuco deixou
gravadas ameaças nas paredes da casa onde morava: “os pontos riscados dos seus
espíritos, símbolo visível e perigoso da sua maldade e poder.”61 Esse registro escrito e
mais uma lata enterrada com supostos objetos de feitiçaria deram ao povo do Cafundó a
certeza de que Pernambuco queria, de fato, as terras dos quilombolas.

57
Idem, p. 138.
58
VOGT, Carlos, FRY, Peter. A África no Brasil: Cafundó. São Paulo: Editora UNICAMP/Companhia
das Letras, 1996, p. nota 8, p. 34.
59
Idem, p. 145.
60
Idem, p. 146.
61
Idem, p. 147.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
29

Para os autores, “a cosmologia do Cafundó é a cosmologia do Brasil rural, e até


certo ponto do Brasil urbano também.”62
Como se pode observar, nos três casos mencionados, pelo menos, duas
características gerais são comuns aos eventos envolvendo acusações de feitiçaria. A
primeira é de que a crença na feitiçaria envolve acusações, conhecimentos e símbolos.
Envolve, por conseguinte, relações e significados. A segunda é a de que as acusações de
feitiçaria estão estreitamente associadas ao poder. O poder originado dos símbolos, das
crenças, das palavras pronunciadas ou escritas. São esses e outros elementos que dão à
feitiçaria a materialidade que ela não possui, aparentemente. Neste sentido, é
importante contrastar essa reflexão com as idéias de Pierre Bourdieu sobre o poder
simbólico:

“O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de
confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo [...], só se
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.”63

Adiante o autor estende a sua reflexão sobre a capacidade e a influência dos


símbolos nas relações entre os indivíduos e na conformação do imaginário social:

“O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a
subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja
produção não é da competência das palavras.”64

É desse modo que a palavra e todo sistema de comunicação que ronda o universo
da feitiçaria empurra os personagens mais salientes desse universo – os feiticeiros, os
curadores e a clientela que legitima os poderes mágico-religiosos – para uma arena onde
o poder é disputado com as armas oferecidas pela feitiçaria. Vencem, como em todas as
batalhas campais, os mais habilitados para as disputas.

Breve referência à literatura dos quilombos contemporâneos

A literatura referente aos quilombos contemporâneos cresceu significativamente


desde a década de oitenta do século passado.

62
Idem, p. 148/9.
63
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 14.
64
Idem, p. 15.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
30

Segundo Ratts, na década de setenta, intelectuais negros transformaram a temática


de quilombo numa espécie de “idéia-força, um território discursivo.”65 Em fóruns
públicos e textos escritos começavam a despontar as idéias de Abdias Nascimento,
Clóvis Moura, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez e Joel Rufino dos Santos, dentre
outros. Nesse momento, a preservação cultural, a consciência negra, a organização
camponesa livre e mulher negra quilombola, eram os termos mais salientes nos
discursos dos intelectuais.
Na década de oitenta, os intelectuais negros passaram a designar os quilombos
como uma referência de “resistência negra”66, de acordo com Ratts. É o período no qual
o quilombo de Palmares se constitui no símbolo mais importante da referência histórica
negra no Brasil, e a Serra da Barriga, local onde teria se localizado o mais famoso
quilombo das Américas, se transformaria numa espécie de Meca para a intelectualidade
e a militância negra.
Na década de noventa, a noção de quilombo para os intelectuais negros que
ingressam na academia passa a ser tratada com a “reflexividade” exigida pelo trabalho
científico. Embora o espírito crítico tenha sido mantido, para assinalar o “incômodo ou
mesmo a recusa com o projeto modernista de uma ciência que se fez no Velho Mundo,
tendo como principal objeto e estudo o ‘primitivo’ do Novo Mundo.”67
No âmbito das grandes universidades, nas décadas de setenta e oitenta do século
passado, os estudos sobre as populações negras rurais – uma das muitas designações dos
“remanescentes de quilombos” ou “quilombos contemporâneos”68 – tomam impulso e
se destacam como uma temática autônoma das ciências sociais no Brasil, conforme
assinalei em minha dissertação de mestrado, em 1997.69 Estudos foram desenvolvidos
no âmbito de Programas de Pós-Graduação da USP, UNICAMP, PUC - São Paulo,
UNB e Museu Nacional. De acordo com Bandeira, tais estudos enfatizavam a
investigação e a “especificidade das comunidades rurais de negros”70, sendo a
territorialidade a questão central dos referidos estudos.

65
RATTS, Alecsandro J. P. A voz que vem do interior: intelectualidade negra e quilombo. In BARBOSA,
Lucia Maria de Assunção, SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves, SILVÉRIO, Valter Roberto. (Orgs.) De
Preto a Afro-Descendente – trajetos de pesquisa sobre relações étnicos-raciais no Brasil. São Carlos:
EDUFSCAR, 2003, p. 90.
66
Idem, 96.
67
Idem, p. 103.
68
SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. In Revista AFRO-ÁSIA. Dossiê
Remanescentes de Quilombos. Salvador, Centro de Estudos Afro Oriental, nº 23, PP. 241 a 347, 2000.
69
SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs: liberdade e escravidão na
construção da identidade negra de um quilombo contemporâneo, 1997.
70
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco, p. 22.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
31

Como resultado dos esforços acadêmicos, artigos, livros, dissertações e teses


discutiriam temáticas relacionadas às populações negras rurais, antecipando os estudos
étnicos das décadas seguintes. Dessa nascente sociologia rural alguns estudos se
destacam, de acordo com Bandeira71: Campinho da Independência: um caso de
proletarização ‘Caiçara’72; Mafambura e Caxampura: na Encruzilhada da Identidade73;
Campesinato: Ideologia e Política74; Caipiras Negros no Vale da Ribeira: um estudo de
antropologia econômica75; Negros de Cedro: estudo antropológico de um Bairro Rural
de Negros em Goiás76; Castaínho: etnografia de um Bairro Rural de Negros77; Produção
Camponesa em Lagoa da Pedra: etnia e patronagem.78
Na década de noventa, após a promulgação do Art. 68 dos Atos e Dispositivos
Constitucionais Transitórios – ADCT da Constituição Federal de 1988 ter se tornado a
principal referência de mobilização política das populações negras rurais, que
reivindicavam, sobretudo, o direito à titulação de seus territórios, a literatura sobre os
quilombos contemporâneos reassume a marcante tonalidade política que fora
inaugurada pelos intelectuais negros nas duas décadas passadas. Mas, desta vez, as
vozes emergem de intelectuais negros e brancos, de organizações não-governamentais,
confessionais, de corporações acadêmicas, de partidos políticos e de movimentos negros
urbanos e rurais que transformam a temática dos quilombos numa espécie de ponta-de-
lança para uma ampla revisão da estrutura agrária no Brasil.
O tema de quilombos em toda a década de noventa e nos dez primeiros anos do
século XXI se tornou politicamente explosivo, por alguns motivos. Primeiro, ele passa a
ser tratado como um assunto de Estado, na medida em que não há consenso institucional
e nem na sociedade quanto à aplicabilidade do Art. 68 para o processo administrativo de
titulação das terras dos quilombos. O Congresso Nacional é compelido também a se

71
Op. Cit. P. 20.
72
GUSMÃO, Neuza M. Mendes de. Campinho da Independência: um caso de proletarização “Caiçara”.
Tese de doutoramento, São Paulo: PUC/USP, 1979.
73
FRY, Peter e VOGT, Carlos. Mafambura e Caxampura: na Encruzilhada da Identidade. In Dados –
Revista de Ciências Sociais, V. 24, Nº 23, Rio de Janeiro, 1981.
74
SOARES, Luís E. Campesinato: Ideologia e Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
75
QUEIROZ, Renato de S. Caipiras negros no Vale da Ribeira: um estudo de antropologia econômica.
São Paulo: FFLCH/USP (Antropologia), 1983.
76
BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Negros de Cedro: estudo antropológico de um Bairro Rural de Negros
em Goiás. São Paulo: Ática, 1983.
77
MONTEIRO, Anita Maria de Queiroz. Castaínho: etnografia de um Bairro Rural de Negros. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco/Editora Manssangana, 1985.
78
TELLES, Maria Otília da C. Produção camponesa em Lagoa da Pedra: etnia e patronagem. Dissertação
de mestrado defendida na UNB, mimeografado, s/d.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
32

pronunciar, já que alguns segmentos entendem que o referido artigo constitucional


carece de regulamentação.
A esta altura, as populações quilombolas de quase todos os estados brasileiros se
organizam e assumem a autoidentificação de “remanescente de quilombo”, na qual a
categoria quilombo “adquire sentido ao expressar o reconhecimento de suas formas
intrínsecas de apossamento e uso de recursos naturais e de sua territorialidade,
descrevendo uma nova interlocução com os aparatos de poder.”79
As classes políticas representativas dos interesses de fazendeiros e latifundiários
reagem, ao se darem conta de que o tema de quilombo, que nas décadas passadas se
caracterizava pela idéia vaga de “resistência negra”, no atual contexto poderia por em
risco os interesses hegemônicos dos grandes proprietários de terras no Brasil. Foi por
essa razão que o conservador Partido Democratas ingressou na justiça federal para
questionar, tanto as políticas de ações afirmativas com também o processo de titulação
das terras quilombolas em curso.80
Nesse ambiente político, a literatura sobre os quilombos contemporâneos se
caracteriza notadamente por conteúdos – abordados de maneira acadêmica ou não –
relacionados aos diferentes interesses conflitantes. Os textos das publicações e dos
trabalhos acadêmicos refletem as preocupações de uma geração de estudiosos que
alimentam os movimentos assumidamente etnicorraciais, com a intenção declarada de
analisar os quilombos para “compreender sua realidade e a realidade da luta pela terra,
terra de pretos.”81 Por outro lado, também podem insinuar uma suposta politização
acadêmica do tema, na medida em que os autodesignados “remanescentes de
quilombos” não teriam, “na maioria das vezes, relação fática com aquilo que a
historiografia reconhece como quilombos (grupos de escravos fugidos)...”82 Maurício
Arruti constata como um dado a realidade dessa classificação, ainda que não aceite a
política de identidade dos quilombolas infiltrada na luta política em defesa da terra;

79
Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do Maranhão –
Projeto Vida de Negro/Associação Rural de Moradores do Quilombo de Jamari dos Pretos. Jamari dos
Pretos, terra de mocambeiros. Coleção Negro Cosme, V. II. São Luis: SMDH/CCN/PVN, 1998.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Introdução, p. 13.
80
Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, em que o antigo Partido da Frente
Liberal (PFL) e atual Democratas (DEM) contesta o Decreto do Governo Federal 4.887/03, que
regulamenta dispositivo constitucional sobre a ocupação de terras de quilombolas (Artigo 68 dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT).
81
GUSMÃO, Neuza M. Mendes de. Terra de Pretos, Terra de Mulheres – terra, mulher e raça num
bairro negro. Brasília: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1995, p. 20.
82
ARRUTI, José Maurício. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação quilombola.
São Paulo/Bauru: EDUSC, 2006, p. 39.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
33

mesmo assim, reconhece que é “impossível não considerá-la um fato relevante, além de
socialmente produtivo.”83
Assim, a literatura de maior densidade concernente aos quilombos nas últimas
duas décadas tem privilegiado os embates teóricos e políticos que informam o referido
cenário. Há um considerável volume de dissertações e teses acadêmicas, estudos de
casos com finalidades dirigidas para o reconhecimento de direitos, relatórios técnicos de
pesquisas militantes, relatórios periciais, laudos antropológicos, além de artigos e livros
originados de teses acadêmicas.
As pretensões dos estudos são elásticas; variam da perspectiva de “examinar a
comunidade negra frente a uma realidade maior.”84 ou mesmo “resgatar a trajetória dos
Kalunga, sua memória histórica, identidade e cultura...”85, até “repensar as relações
raciais...”86
Os estudos sobre os quilombos contemporâneos com propósitos políticos mais
engajados se tornam públicos através de relatórios para “dar sequência ao processo de
reconhecimento das áreas de quilombos exigindo publicamente a imediata titulação...”87
Outros se referem à necessidade de “levantamento preliminar da situação das chamadas
Terras de Pretos localizadas no Estado do Maranhão...”88
Para Alfredo Wagner, o Projeto Vida de Negro do Maranhão, que coordenou a
maior parte dos estudos sobre os quilombos contemporâneos no estado, é responsável
por rupturas teóricas e metodológicas que teriam influenciado decisivamente a
discussão da temática na atualidade. O referido Projeto teria incentivado os negros
quilombolas a adotarem a autoatribuição como fundamento de classificação categorial;
teriam nacionalizado o debate que aparentemente estava circunscrito ao Maranhão e,
finalmente, reconheceram que quilombolas tinham “proposições concretas a respeito
das territorialidades específicas onde eram realizadas suas ações de reprodução física e
cultural.”89

83
Idem, p. 39.
84
BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Negros de Cedro, p. 05.
85
BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Kalunga – Povo da Terra. Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria de
Estado dos Direitos Humanos, 1999, p. 12/13.
86
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco, 1988.
87
Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do Maranhão –
Projeto Vida de Negro/Associação Rural de Moradores do Quilombo de Jamari dos Pretos. Jamari dos
Pretos, terra de mocambeiros. Coleção Negro Cosme, V. II. São Luis: SMDH/CCN/PVN, 1998, p. 11.
88
Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN-MA), Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos
Humanos (SMDH) – Projeto Vida de Negro. Terras de Preto no Maranhão: quebrando o mito do
isolamento. Coleção Negro Cosme. VIII. São Luis: SMDH/CCN/PVN, 2002, p. 17.
89
Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do Maranhão.
Projeto Vida de Negro. Coleção Negro Cosme. V. IV. São Luis: SMDH/CCN-MA/PVN, 2005,
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Introdução, p. 16.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
34

O trabalho técnico e teórico aliado à denúncia política, sem deixar de ser rigoroso
quanto ao método e à análise dos dados, seriam responsáveis também por “descrever as
ocorrências de intrusamento das terras e de devastação de recursos naturais das
comunidades remanescentes de quilombos de Alcântara...”90
Na região Sul, no outro extremo do Brasil, Ilka Leite defende que os laudos
antropológicos sobre os quilombos da região servem como instrumento para se “criar
parâmetros que envolvem o que chamamos, de um modo geral, a dimensão cultural da
vida social.”91 Trata-se, no entanto, de um texto, de acordo com a autora, que sem
prescindir do rigor científico, é também “baseado em um posicionamento ético e
político...”92 Em um trabalho mais recente, a autora refere-se a “acontecimentos que
abrangem o campo de lutas instaurado no país desde o final dos anos 80 e no qual
sempre estivemos envolvidos.”93
Para o antropólogo José Carlos dos Anjos, “o que está em jogo em termos de uma
política de ciência é a contribuição no sentido de alargar o espaço da representação
política (...)” das populações “excluídas das esferas especializadas da argumentação.”94
Outros estudiosos do Rio Grande do Sul, que trabalharam com laudos periciais,
reconhecem a particularidade desse empreendimento e, por isso mesmo, ponderam que
a “situação do pesquisador para fins de estudo com caráter aplicado o posiciona de
maneira muito particular, já que deve lidar com fatos que se impõem e que impedem a
definição de estratégia de campo exclusivamente por ele.”95
Aqui na Bahia foram elaborados cinco Relatórios histórico-antropológicos, por
solicitação do Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, em convênio com
a Universidade Federal da Bahia – UFBA e a Universidade do Estado da Bahia –
UNEB, com o propósito de fundamentar os procedimentos administrativos para a
titulação das comunidades quilombolas de Lagoa do Peixe e Batalhinha (Bom Jesus da

90
PEREIRA JUNIOR, Davi. Quilombos de Alcântara: território e conflito – Intrusamento do território
das comunidades quilombolas de Alcântara e pela empresa binacional, Alcântara Cyclone Space.
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2009, p. 21.
91
LEITE, Ilka Boaventura. O Legado do Testamento – A comunidade de Casca em Perícia. 2. ed. Porto
Alegre: Editora da UFRGS/Florianópolis: NUER/UFSC, 2004, p. 17.
92
Idem, p. 27.
93
LEITE, Ilka Boaventura, CARDOSO e CARDOSO, Luis Fernando. Apresentação. Boletim
Informativo do NUER, V. 2, Nº 2, 2005, p. 11.
94
ANJOS, José Carlos Gomes dos, SILVA, Sérgio Baptista da. (Orgs.) São Miguel e Rincão dos
Martinicanos – ancestralidade negra e direitos territoriais. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Fundação
Cultural Palmares, 2004, p. 15.
95
BARCELLOS, Daisy Macedo de, CHAGAS, Miriam de Fátima, FERNANDES, Mariana Belen (et.
al.). Comunidade Negra de Morro Alto: historicidade, identidade e territorialidade. Porto Alegre: Editora
UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2004, p. 22.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
35

Lapa); Jatobá (Muquém do São Francisco); Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba


(Wanderley); e Pau D’arco/Parateca (Malhada).96
Tem crescido também aqui na Bahia a elaboração de dissertações e monografias
relacionadas à temática dos quilombos contemporâneos.97

O universo da investigação e os instrumentos adotados na pesquisa


etnográfica

Tendo reorientado a investigação, após o aparecimento do discurso da feitiçaria


como objeto de análise em Rio das Rãs, resolvi estender a pesquisa para o quilombo de
Mangal/Barro Vermelho, no município de Sítio do Mato. Os dois quilombos estão
situados no Médio São Francisco. A intenção de ampliar a pesquisa para o Mangal era a
de contrastar com a experiência dos quilombolas de Rio das Rãs e, desse modo,
comprovar ou não a incidência do discurso da feitiçaria entre os mangazeiros e, em caso
positivo, de que modo o fenômeno se configuraria neste quilombo.
O contato com os dois quilombos foi facilitado porque, antes da pesquisa de
campo em 2007, já havia estabelecido uma relação de amizade com as lideranças de Rio
das Rãs e Mangal. Estive em Rio das Rãs pela primeira vez na condição de militante do
Movimento Negro Unificado – MNU, em 1992. A partir do ano de 1994 essa relação
ficou ainda mais próxima, após ter ingressado no mestrado de Sociologia da
Universidade Federal da Bahia, com a finalidade de investigar o processo de construção
da identidade dos referidos quilombolas. A pesquisa de campo durou quase dois meses.
Concluído o mestrado em 1997, ingressei na carreira docente em 1999 na
Universidade do Estado da Bahia – UNEB e fui ensinar no Departamento de Educação
de Bom Jesus da Lapa, sede do município onde está localizado o quilombo de Rio das
Rãs. A proximidade geográfica contribuiu para manter a regularidade dos contatos com

96
Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/Universidade Federal da Bahia
UFBA/Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Relatórios Técnicos de Identificação, Delimitação e
Demarcação das Comunidades Quilombolas de Lagoa do Peixe e Batalhinha (Bom Jesus da Lapa),
Jatobá (Muquém do São Francisco), Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba (Wanderley) e Pau
D’arco/Parateca (Malhada). CARVALHO, Genildo Souza de, GERMANI, Guiomar Inez, OLIVEIRA,
Gilca Garcia de, SILVA, Valdélio Santos (Coord.). SANTOS e SANTOS, Jeane Cirlene, MATOS, Eloína
Neri, CARVALHO, Genildo Souza de, AYRES, Genny Magna de Jesus Mota, OLIVEIRA, Gilca Garcia
de, SANTANA, Gilsely Bárbara Barreto, GERMANI, Guiomar Inez, SANTOS, Paula Adaleide Mattos,
SILVA, Valdélio Santos (Equipe Técnica). Salvador: Digitado, 2006.
97
AYRES, Genny Magna de Jesus Mota. Pretos, Brancos e Agregados em Saco das Almas. Dissertação
de Mestrado. Salvador: UFBA/FFCH, 2002; SANTOS, Jucélia Bispo dos. Etnicidade e memória entre os
quilombolas em Irará – Bahia. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA/FFCH/CEAO/Programa
Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos, 2008; DUTRA, Nivaldo Osvaldo. Liberdade e
reconhecer que estamos no que é nosso: comunidades negras do Rio das e da Brasileira – Bahia (1982-
2004). Mestrado em História da PUC - São Paulo, 2007.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
36

as lideranças e acompanhar de perto o desenrolar da vida social no quilombo. A


condição de professor e, logo a seguir, de diretor do Departamento da UNEB facilitaria
igualmente a minha aproximação com os quilombolas de Mangal, a partir de 2001,
sobretudo com as professoras que participaram de um curso de formação patrocinado
pela UNEB.
A pesquisa de campo para o doutorado foi operacionalizada através dos seguintes
instrumentos: observação ativa da vida social dos quilombolas pesquisados; realização
de entrevistas com indivíduos selecionados a partir da contribuição que poderiam
oferecer na discussão da temática da investigação; participação em eventos sociais,
culturais e religiosos; conversas informais em botecos, nas viagens de ônibus, de barcos,
nos terreiros e quintais dos quilombolas, participação em festas e datas comemorativas,
enfim, nos espaços onde os quilombolas vivem o seu cotidiano.
Foram duas as etapas da pesquisa de campo. Na primeira, com duração de três
meses, entre junho e agosto de 2007, a investigação se concentrou nas localidades de
Rio das Rãs, Retiro, Capão do Cedro, Enchu e Brasileira, pequenas localidades do
território do quilombo de Rio das Rãs. Ainda neste período, ao longo de uma semana,
convivi, levantei dados e entrevistei pessoas dos quilombos vizinhos de Pau
D’arco/Parateca e Tomé Nunes (ambos no município de Malhada) e Barra da Parateca
(em Carinhanha).
Além da pesquisa de campo, foi realizado um levantamento de dados secundários
nos arquivos do Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Companhia de Desenvolvimento do Vale
do São Francisco – CODEVASF, Prefeitura Municipal, Fundação Nacional de Saúde,
Comissão Pastoral da Terra, todas sediadas no município de Bom Jesus da Lapa. Foi
entrevistado também o proprietário da Clínica CENTRUS, o médico Cleber Pereira da
Silva, na sede municipal de Carinhanha.
A segunda etapa da pesquisa de campo, com duração de 52 dias, entre os meses
de abril e maio de 2009, foi concentrada durante um mês no quilombo de Mangal. No
tempo restante, passei mais uma semana em Rio das Rãs complementando os dados
coletados em 2007; três dias na sede municipal de Paratinga coletando dados sobre o
Mangal; dois dias em Carinhanha levantando dados sobre a Clínica CENTRUS e
novamente entrevistando o médico Cleber Pereira; um dia levantando dados sobre o
Mangal na sede municipal de Sítio do Mato; e mais uma semana complementando os
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
37

dados secundários sobre os quilombos de Rio das Rãs e Mangal no IBGE, CODEVASF
e na Comissão Pastoral da Terra, na sede de Bom Jesus da Lapa.
Nas duas etapas da pesquisa foram entrevistados, com roteiros semiestruturados,
35 quilombolas de Rio das Rãs, Parateca/Pau D’arco e Tomé Nunes. Do total de
entrevistados, 24 foram do sexo masculino e 11 do sexo feminino. No quilombo de
Mangal foram entrevistados 23 quilombolas, 13 pessoas do sexo masculino e10 do sexo
feminino.
Dois grupos focais foram constituídos em Rio das Rãs envolvendo mulheres e
crianças quilombolas, para discutir especificamente assuntos atinentes aos referidos
segmentos.
Durante a pesquisa participei de solenidades e eventos sociais, culturais, políticos
e religiosos diversos realizados nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, a exemplo de
casamentos, aniversários, roda da capoeira, cultos católicos e protestantes, sessões de
caboclos e assembléias comunitárias. Além dos compromissos formais de pesquisa,
convivi com os quilombolas quando convidado pessoalmente para compartilhar de
refeições. Outro espaço produtivo da pesquisa foram as conversas informais com os
quilombolas nos botecos nos quais eles bebiam cerveja e cachaça nos fins de semana.
Algumas informações e impressões sobre os quilombolas de Rio das Rãs e
Mangal foram recolhidas fora dos seus territórios, nas sedes municipais de Bom Jesus
da Lapa, Paratinga e Sítio do Mato, entre pessoas direta ou indiretamente vinculadas aos
mesmos, a exemplo de lideranças do movimento negro urbano e de organizações não-
governamentais, religiosos, professoras que ensinam nas escolas, lideranças políticas,
sobretudo as do quilombo de Rio das Rãs.
Nas duas etapas da pesquisa foram feitas 1.170 fotos digitais dos sujeitos
entrevistados em Rio das Rãs e Mangal, de elementos da fauna e da flora dos dois
quilombos, de objetos culturais e de eventos significativos dos quilombos e das sedes
municipais de Bom Jesus da Lapa, Paratinga, Sítio do Mato e Carinhanha.
Nas duas etapas da pesquisa o diário de campo, registrado em um computador
portátil, consumiu 158 páginas digitadas em fonte 12.

Estrutura da tese

A tese está estruturada em cinco capítulos, além desta introdução. O Capítulo I


procura contextualizar os quilombos de Rio das Rãs e Mangal na região geográfica do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
38

Médio São Francisco da Bahia. No Capítulo II, busco correlacionar os parâmetros


teóricos e os fundamentos epistemológicos das religiosidades africanas e afro-brasileiras
que explicariam a apropriação do discurso da feitiçaria enquanto uma cosmologia dos
negros quilombolas. No Capítulo III, é feito um inventário da economia e de como se dá
a divisão do trabalho em Rio das Rãs e Mangal; descrevo os mecanismos de
solidariedade e os conflitos entre as parentelas formadoras dos quilombos, a rotina da
vida social entre os indivíduos de distintas classes de idade e as relações entre homens e
mulheres. No Capítulo IV, discuto a concepção de feitiçaria e os seus diferentes
significados e usos pelos quilombolas de Rio das Rãs. No Capítulo V, a partir do
quilombo de Mangal/Barro Vermelho, demonstro que o discurso da feitiçaria, embora
construído a partir de universais comuns nos diferentes espaços de sua incidência, pode
se configurar em diferentes modelagens e possuir distintos significados para os seus
agentes sociais. Na Conclusão, as inferências indicadas nos capítulos são retomadas
para se firmar uma posição mais conclusiva sobre as características da inserção dos
negros de Rio das Rãs e Mangal no território quilombola do Médio São Francisco; os
diferentes modos dos quilombolas se reproduzirem socialmente em seus domínios; a
indicação do aparecimento das desigualdades entre indivíduos de distintas classes de
idades após a legalização das terras dos quilombolas e a ascensão de lideranças políticas
jovens; as contradições e assimetrias entre homens e mulheres; a influência do discurso
da feitiçaria na explicação dos acontecimentos e de eventos relacionados
especificamente a saúde física e mental dos indivíduos e a acumulação de capitais dos
sujeitos que circulam no universo da feitiçaria e a conformação de relações típicas de
poder.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
39

Capítulo I

OS QUILOMBOS DE RIO DAS RÃS E MANGAL NO MÉDIO SÃO


FRANCISCO

Os quilombos de Rio das Rãs e Mangal/Barro Vermelho – o primeiro pertencente


ao município de Bom Jesus da Lapa e o segundo ao de Sítio do Mato – estão localizados
na Região do Médio São Francisco no Estado da Bahia. É uma região pouco conhecida
do grande público acostumado a olhar a Bahia tão somente a partir da visibilidade
proporcionada pela forte influência cultural do litoral, e, sobretudo, do grande cinturão
geográfico que forma a região Metropolitana de Salvador e o Recôncavo. O imaginário
que concentrou todas as atenções na capital e em seu entorno não é recente e,
certamente, não ofusca apenas o Médio São Francisco 98.
Esse fenômeno deve estar relacionado com a história da colonização portuguesa
no Brasil e o fato de Salvador ter sido o centro político, administrativo e militar e,
durante quase três séculos, a capital da Colônia. Além disso, no processo de expansão
territorial em direção ao vasto interior, inúmeras “expedições [partiram] de Salvador,
Porto Seguro e Ilhéus nos séculos XVI, XVII e XVIII...”99
A memória do período colonial centrada em Salvador e em suas cercanias,
portanto, ainda tem uma enorme força no imaginário social e influencia a formação do
conhecimento histórico de muitas regiões da Bahia. Certamente por essa razão,
surpreendeu os pesquisadores de História da Bahia a incidência de quilombos nos
sertões, pois se supunha ter sido esse fenômeno incidente apenas no Litoral e no
Recôncavo, regiões que concentraram a maior quantidade de africanos escravizados e
que constituíram nos maiores centros de produção açucareira da Colônia. Clóvis Moura
contatou na documentação histórica a formação de quilombos tanto na faixa litorânea, a
exemplo dos de Campinas e Santo Amaro de Ipitanga, como também na distante região
do rio São Francisco, o que contradiz a opinião de que os quilombos teriam existido
apenas na costa, próximos, portanto, de onde os escravos desembarcaram.100 Muitos

98
De acordo com os novos conceitos geográficos e administrativos do governo da Bahia, a antiga Região
administrativa do Médio São Francisco, onde está localizado o município de Bom Jesus da Lapa, está
sendo substituída pelo chamado Território de Identidade Velho Chico. Mas, a referência anterior (Médio
São Francisco) continuará sendo adotada neste texto para facilitar a sua localização no espaço regional.
99
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 8. ed. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 91.
100
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, inssurreições, guerrilhas. 3. ed. São Paulo:
Livraria Editora Ciências Humanas, 1981.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
40

historiadores mencionam o Vale do São Francisco no período colonial como região


estratégica tanto na criação de gado como na circulação dos escravos do Nordeste em
direção ao Centro Oeste e o Sudeste no Brasil.101 Outros autores sugerem também que
além da criação de gado e via de comunicação entre o Norte e o Centro Sul, o Vale do
São Francisco produziu outros bens econômicos, a exemplo de pescado, algodão e
cereais, que ajudaram a consolidar a colonização da região.102
Esse processo foi facilitado pelo encontro de distintas populações e grupos étnicos
em uma geografia constituída de múltiplos relevos, climas, solos, fauna e flora
diversificada, tendo sido o Rio São Francisco uma via de comunicação para o referido
processo. O intenso contato entre colonizadores portugueses, povos africanos
escravizados e grupos indígenas em um meio ambiente diversificado moldou uma
cultura típica que alguns chamam sertaneja outros sanfranciscana, no afã de assinalar
as particularidades que marcaram a história e a sociedade regional.

Breve notícia sobre a história dos conflitos pela posse da terra nos quilombos
de Rio das Rãs e Mangal

Rio das Rãs:

O quilombo de Rio das Rãs enfrentou, em sua fase mais crítica, entre 1981 e
1989, um sério conflito agrário envolvendo cerca de trezentas famílias negras e
fazendeiros que se diziam proprietários das terras imemorialmente ocupadas por essas
famílias desde o início do século XIX. O conflito percorreu, esquematicamente, a
trajetória sumariamente exposta a seguir e foi descrito detalhadamente em minha
dissertação de mestrado e em outros trabalhos já publicados.103
No final do século XIX o fazendeiro Deocleciano Pires Teixeira, filho do major
Francisco Teixeira de Araújo, detentor de grande quantidade de terras no Médio São
Francisco e morador do município de Caetité, introduziu gado bovino no território

101
Cf. NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura Fundiária e Dinâmica Mercantil: Alto Sertão da Bahia,
séculos VXIII e XIX. Salvador: EDUFBA/UEFS, 2005; TAVARES, Luís Henrique Dias. História da
Bahia. 8. ed. São Paulo: Editora Ática, 1987; MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos,
inssurreições, guerrilhas. 3. ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981;
102
Cf. ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco como fator precípuo da existência do Brasil. 3. ed. São
Paulo: Editora Nacional/CODEVASF, 1983; PIERSON, Donald. O Homem no Vale do São Francisco.
Tomos 1, 2, 3. Rio de Janeiro: SUVALE/MINTER, 1972.
103
SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs: liberdade e escravidão na
construção da identidade negra de um quilombo contemporâneo (Ensaio Etnográfico). Dissertação de
mestrado defendida na UFBA. Salvador, 1998. Ver também CARVALHO, José Jorge (Org.), DÓRIA,
Siglia Zambrotti, OLIVEIRA JR, Adolfo Neves. O quilombo de Rio das Rãs: História, tradição, lutas.
Salvador: EDUFBA, 1996; SOUZA, Evangelista de, ALMEIDA, João Carlos Deschamps. O Mucambo
do Rio das Rãs – um modelo de resistência negra. Bom Jesus da Lapa: SINERGIA/CÁRITAS, 1994.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
41

ocupado por quilombolas de Rio das Rãs e apresentou-se como proprietário da área. Os
negros que lá residiam, desde o início do século XIX, foram classificados
arbitrariamente pelo fazendeiro como “agregados” da Fazenda Rio das Rãs. Nesta
condição subalterna, Deocleciano não precisou nem expulsar os tradicionais ocupantes
das terras e muito menos importuná-los. Para se antecipar a possíveis atritos, alguns
moradores eram contratados como vaqueiros, e o fazendeiro “permitia” aos demais
negros plantar e criar pequenos animais e construir casas de pau-a-pique. Essa política
de cooptação dos tradicionais ocupantes das terras de Rio das Rãs facilitou o controle
social do conjunto das famílias e a dominação ideológica exercida pelo fazendeiro.
Em 1972, Celso Teixeira, filho do já falecido Deocleciano, proibiu a abertura de
novas roças no território dos negros de Rio das Rãs, alterando, dessa forma, a política
paternalista do seu pai.
Em 1974, Fernando Teixeira, sobrinho de Celso Teixeira e Carlos Teixeira, filho
de Anísio Teixeira, o famoso educador da Bahia104, os dois, netos e herdeiros de
Deocleciano, adotaram uma política agressiva contra os negros de Rio das Rãs:
proibiram a pesca nas lagoas, derrubaram as cercas das roças e até um templo
protestante. É o começo também da resistência política dos moradores que procuraram o
Sindicato de Trabalhadores Rurais de Bom Jesus da Lapa para defendê-los.
Em 1981, o Grupo Bial - Bonfim Indústria Algodoeira LTDA, tendo como
presidente Carlos Newton Vasconcelos Bonfim, compra dos herdeiros da família
Teixeira a chamada Fazenda Rio das Rãs. Desde esta data as ações violentas
intensificaram-se. Ao mesmo tempo, organizações da sociedade civil, a exemplo da
Diocese de Bom Jesus da Lapa, a Comissão Pastoral da Terra, o Movimento Negro
Unificado, a CEDITER (órgão ecumênico) e a FUNDIFRAN (Fundação para o
Desenvolvimento do Vale do São Francisco) juntam-se ao Sindicato dos Trabalhadores
Rurais para apoiar politicamente os negros de Rio das Rãs.
Em 1990, o juiz, Antônio Laranjeiras, da Comarca de Bom Jesus, concede uma
liminar de reintegração de posse em favor dos “posseiros” de Rio das Rãs, denominação
empregada pelo sindicato e aceita pela justiça nesse momento como a mais adequada
para definir naquele momento a natureza do conflito pela posse da terra.
Em novembro de 1993, a Procuradoria Geral da República - PGR patrocina uma
Ação Civil Pública, requerendo a titulação das terras de Rio das Rãs, em favor dos seus

104
Ao que consta dos estudos até aqui realizados, Anísio Teixeira, não teria tido nenhum envolvimento
direto nos conflitos pela posse da terra em Rio das Rãs. Não se sabe, contudo, se ele se mantinha
informado ou acompanhava de longe os acontecimentos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
42

moradores, com base no Artigo 68 dos Atos e Dispositivos Constitucionais Transitórios


da Constituição Federal de 1988. Em outra Ação, a Procuradoria solicita à Justiça
Federal da Bahia a desobstrução de 7.000 hectares de terras à margem do Rio São
Francisco, de propriedade da União, que tinham sido incorporadas ilegalmente pelo
fazendeiro Carlos Bonfim. A Justiça Federal concedeu liminar e as terras puderam ser
ocupadas pelos negros quilombolas de Rio das Rãs – como passaram a ser classificados
depois que o Art. 68 se tornou a referência simbólica da luta pela terra –, mediante
proteção da Polícia Federal, a partir de 1993.
A continuidade das ações violentas do fazendeiro Carlos Bonfim em Rio das Rãs
e a impossibilidade, em decorrência disso, dos quilombolas sobreviverem em paz, os
obrigaram a procurar o INCRA para tentar a desapropriação da área para fins de
reforma agrária.
O projeto de desapropriação para fins de Reforma Agrária foi assinado pelo
Presidente da República em janeiro de 1995. Em dezembro de 1996, o INCRA foi
imitido na posse de 23.000 hectares da área desapropriada.
Em 1998, finalmente, foi assinado, pelo presidente do INCRA, o título de domínio
das terras dos quilombolas em nome da Associação Agropecuária Quilombola Rio das
Rãs.
Mangal/Barro Vermelho:

Em todos os relatos sobre a história do quilombo do Mangal/Barro Vermelho, o


nome do capitão João Duque aparece como sendo o primeiro fazendeiro que se dizia
proprietário das terras onde está situado, pelo menos desde a primeira metade do século
XIX, o referido quilombo. O capitão teve dois filhos, Osório e Artur.
De acordo com a descrição da jovem liderança do quilombo, João Conceição dos
Santos (28 anos), o Mangal “surgiu a partir de fuga de escravos das fazendas que
existiam na região, mais precisamente das fazendas de gado da nossa região. Tudo
indica que o pessoal saiu daquela região de Barra de Rio Grande, naquela região dali.
Ele [seu avô] conta que no início era um povoado. O pessoal vinha e não tinha
comunidade. São pessoas que moravam em lugarejos próximos um do outro, assim uma
casa aqui outra a quatro, cinco quilômetros de distância e isso foi formando o povoado.”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
43
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
44

Uma importante mudança no relacionamento com os negros do Mangal fora


introduzida com a posse do novo administrador: os mangazeiros passaram a ser
classificados como “agregados”. Não obstante essa mudança, eles continuaram a ser
bem tratados, segundo diferentes depoimentos dos quilombolas mais idosos. É
interessante notar que os mangazeiros foram nomeados como “agregados”, mesmo
sendo proprietários legais da “meia légua de terras doada por Gertrudes”, filha de uma
escrava do capitão João Duque, que doara as terras para cumprir uma promessa que
fizera a Nossa Senhora do Rosário.
Com o falecimento de Avelino, em 1967, a Fazenda Mangal passa a ser
administrada pelo seu genro, Lamartine Roriz, que estabelece regras de relacionamento
com os mangazeiros radicalmente diferentes dos seus antecessores.
Ao invés de manter a relação de convivência paternalista com os mangazeiros,
Lamartine Roriz, segundo Sandra Oliveira, restringe os “moradores aos 700 metros de
terras às margens do Rio [e impõe] a proibição de que pescassem na lagoa, de que
plantassem na vazante e de que criassem qualquer tipo de animal.” 105
Na prática, tais restrições obrigavam os mangazeiros a utilizar as terras recebidas
em doação apenas como espaço de moradia para que eles se tornassem
compulsoriamente assalariados do fazendeiro. É a partir desse momento que se inicia o
conflito pela posse da terra envolvendo os quilombolas do Mangal e o fazendeiro
Lamartine Roriz.
A gestão de Lamartine Roriz na fazenda Mangal fracassa, porque a plantação de
algodão em grande extensão o obriga a contrair dívidas bancárias que não foram
quitadas. Com isso, as fazendas Mangal e Barro Vermelho passam para o controle do
Banco Econômico, que procuraram, a partir de 1977, imprimir uma administração
empresarial à Fazenda. Com a nova administração, os conflitos diminuíram, ainda que
as restrições impostas aos mangazeiros não fossem menores em comparação com a
gestão de Lamartine Roriz.
Na década de noventa do século passado, o Grupo Aliança do Brasil, de Ângelo
Calmon de Sá, que era parte do conglomerado do Banco Econômico, passa a
administrar as fazendas. Os novos gestores abandonam as plantações de soja e milho
“passando a criar gado.”106
Segundo Sandra Oliveira, os novos gestores mantiveram as restrições impostas
aos mangazeiros, de plantar, criar e pescar dentro do território tradicionalmente
105
Idem, p. 67.
106
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de. De Mangazeiros a Quilombolas, p. 69.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
45

ocupado pelos negros do Mangal. “A fase correspondente ao domínio do Grupo Aliança


foi a mais dura de toda a história do Mangal.”107
O conflito pela posse da terra envolvendo os negros do Mangal e o Grupo Aliança
chega ao fim com a desapropriação das fazendas em torno da antiga “meia légua de
terra doada por Gertrudes” e o reconhecimento de Mangal/Barro Vermelho “como
remanescente de quilombos (...) e, em 30 de janeiro de 1999, recebem o título de
reconhecimento de domínio.”108

O Vale do São Francisco na História da Bahia

A historiografia baiana aponta que a exploração do sertão da Bahia no período


colonial foi incentivada, sobretudo, pela necessidade de criação de gado vacum para o
abastecimento alimentar das vilas em torno dos engenhos do Recôncavo da Bahia e,
posteriormente, das regiões mineiras descobertas na Chapada Diamantina e em Minas
Gerais. Ainda que reconheça ser a criação de gado a principal atividade econômica dos
sertões do Rio São Francisco, Erivaldo Neves identificou “produtores autônomos em
pequenos e médios estabelecimentos agrícolas, sobretudo nos interiores distantes, onde
se desenvolveram as policulturas, e a escravidão coexistiu com outras formas de
trabalho na produção do abastecimento interno e de excedente para o comércio.”109 Não
seria possível, de acordo com o referido autor, terem sido apenas os criadores de gado
os responsáveis pelo surgimento e consolidação de inúmeras vilas às margens e no
extenso Vale da Bacia do Rio São Francisco.
Segundo Neves, nessa imensa região que abrange atualmente os estados de Minas
Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, a dinâmica da colonização favoreceu o
desenvolvimento de múltiplas atividades econômicas, como o transporte e a
comercialização de produtos através do rio São Francisco e seus afluentes navegáveis, a
criação de gado, a exploração do ouro, diamantes e outras pedras preciosas, a
exploração do salitre, as plantações de cana de açúcar e de algodão, a pesca e a
produção de mandioca, de milho e de feijão, estes últimos, sobretudo, para o
abastecimento alimentar regional.

107
Idem, p.70.
108
Idem, p. 78/9
109
NEVES, p. 54.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
46
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
47

Não há dúvidas, entretanto, de acordo com Neves, de que a criação de gado para
abastecer os centros produtores mineiros, na transição do século XVII para o XVIII, foi
o fator principal para a “formação de núcleos urbanos que articularam circuitos
comerciais de boiadeiros e tropeiros em todas as direções.”110 Deve-se acrescentar que o
solo e o clima da região sertaneja do São Francisco favoreceram a criação e, com isso, o
“gado trazido pelas caravelas multiplicou-se com rapidez.”111 Além do gado bovino, os
portugueses levaram para a região galos e galinhas, porcos, cabras, bode, carneiros e
ovelhas, gatos, cães, cavalos, éguas e jumentos.112 Da costa ocidental africana, de
acordo com Pierson, chegou até nós a galinha-d’angola. Além da criação de gado, o
emprego dos animais de montaria no vasto sertão sanfranciscano moldaria uma peculiar
cultura regional de grande influência tanto na experiência pecuária quanto agrícola.
A utilização das terras do Vale São Francisco para a criação de gado foi iniciada
após as famílias Guedes de Brito e Garcia d’Ávila receberem doações de imensas áreas
de terras da Coroa Portuguesa; esta última teria chegado à Bahia na companhia do
primeiro Governador Geral da Colônia, Tomé de Souza, em 1549.113
As terras recebidas pela família Guedes de Brito, da Coroa Portuguesa, foram uma
recompensa pela resistência aos holandeses invasores, no século XVII e, também, por
combater os índios e negros que, fugindo das senzalas, permaneciam aquilombados no
sertão do São Francisco. 114 Por estes serviços, a Coroa Portuguesa concederia ainda, a
Antônio Guedes de Brito, o título de Mestre de Campo e Regente do São Francisco.115
Segundo Carlos Alberto Steil, Antonio Guedes de Brito teria sido o primeiro
colono português a ocupar o Vale do São Francisco, a partir de 1663, quando se tornou
beneficiário da “Carta régia de 27 de agosto deste ano, pela qual o rei de Portugal lhe
conferia a área compreendida entre o Morro do Chapéu e as nascentes do Rio das
Velhas.”116 Donald Pierson, por outro lado, afirma que os Garcia d’Ávila teriam
recebido primeiro as doações de terras da Coroa Portuguesa, em 1659, quando “o
Governador-Geral em Salvador, em nome do Rei de Portugal, concedia terras nas

110
Op. Cit. p. 89.
111
ROCHA, p. 14/15.
112
PIERSON, Donald, 1972.
113
NEVES, p. 14.
114
CARVALHO, Vaílton L. de. História do Rio São Francisco. Salvador: SEPLANTEC/CPE,
datilografado, 1981, p. 59.
115
CARVALHO, José Jorge (Coord.). Laudo Antropológico sobre a Comunidade Negra do Rio das Rãs.
Brasília: digitado, novembro, 1993.
116
STEIL, Carlos Alberto. O Sertão da Romaria – um estudo antropológico sobre o santuário de Bom
Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 28.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
48

margens do São Francisco.”117 Talvez Carlos Alberto Steil tenha enfatizado a primazia
dos Guedes de Brito na exploração do Vale pela maior ferocidade e violência com que
essa família ocupou as terras, posto que, de acordo com Neves, por “onde Guedes de
Brito estendeu seus domínios, o fez com a guerra, submissão, expulsão ou extermínio
das populações nativas.”118
No século XVIII, depois da descoberta do ouro em Minas Gerais, o rio São
Francisco se tornaria um caminho obrigatório entre o Nordeste e o Centro-Sul para a
comercialização dos escravos excedentes dos canaviais. A região Nordeste começou a
entrar em decadência quando os produtores de açúcar de outras colônias portuguesas
superaram a produção local a um custo de produção mais baixo. Assim, o São
Francisco, aos poucos, foi se adaptando às mudanças na economia colonial.
Erivaldo Neves sugere que o sistema de mineração incentivou o povoamento e a
ampliação da policultura no Vale.119 Parece fazer sentido tal argumento, já que uma
parte dos escravizados que se deslocaram do Recôncavo da Bahia e de Pernambuco em
direção às minas e, mais tarde, para trabalhar nos cafezais de São Paulo, em razão da
decadência da economia da cana de açúcar, conseguiram fugir e terminaram povoando
as margens do rio, transformando antigos currais em vilas autônomas, a exemplo de
Barra do Rio Grande e Santo Antônio do Urubu, com populações urbanas que mais
tarde se tornariam sedes municipais de destacada importância na conformação do
território regional. Outra parte dos negros fugidos foi parar nos canaviais da atual
Januária, no estado de Minas Gerais, famosa até hoje pela fabricação de saborosas
cachaças. Antes de Neves, Donald Pierson, em suas pesquisas na década de cinquenta
do século passado, já havia sugerido ter sido por esse caminho que os quilombos se
formaram nessa região do Vale do Francisco: os “escravos africanos fugitivos [...]
estabeleceram aldeias rudimentares fortificadas, e que, às vezes unidos a indígenas
puros ou mestiços, pilhavam fazendas dos arredores e daí retiravam outros escravos.”120

Evidências sobre a presença negra nos sertões da Bahia

Schwartz faz referência à incidência de quilombos na Bahia em várias partes da


capitania, entre os séculos XVIII e XIX. Parte do fenômeno, diz o autor, deve-se à larga

117
PIERSON, p. 265.
118
NEVES, p. 122.
119
Op. Cit.
120
PIERSON, p. 281.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
49

predominância de africanos na população baiana no início deste último século, a ponto


de representarem cerca de 60% da mão de obra da cidade do Salvador. O autor
identificou a incidência de quilombos no sertão da Bahia em Águas Verdes e Concavo,
no rio Jacuípe, e Orobó e Andaraí, na Chapada Diamantina, confirmando, dessa forma,
os argumentos de Clóvis Moura sobre a relevância da presença negra no interior da
Província da Bahia.121
O historiador Pedro Tomás Pedreira é um dos poucos a fazer um amplo registro
sobre a ocorrência de aquilombamento em variadas regiões da Bahia, inclusive nos mais
frequentes caminhos que davam acesso ao Vale do São Francisco. Segundo este
historiador, em 1735, o Vice-Rei D. Vasco Menezes recebera queixas de levantes
quilombolas nas distantes Vilas de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas e
Jacobina. Um experiente capitão-do-mato, de nome Pascoal Ferreira Pinto, fora
encarregado de atacar o quilombo. Logo a seguir, D. Vasco Menezes seria substituído
por D. André de Melo e Castro, que transferiu a tarefa de destruição dos quilombos
identificados para o Capitão de Entradas e Mocambos, José de Anchieta. Muita
munição teria sido colocada à sua disposição, porém, não há registro sobre o resultado
da campanha.
Já no final do século XVIII, em 1796, os quilombolas do Orobó, no atual
município de Itaberaba, os de Tupim, na atual Boa Vista do Tupim, e os de Andaraí
foram denunciados pelos fazendeiros locais como responsáveis por roubo de gado e
desacato às mulheres casadas e donzelas. O então Governador D. Fernando José de
Portugal e Castro ordenou a destruição dos citados quilombos, o que teria acontecido,
segundo os documentos, no ano seguinte. Nos relatos militares constam terem sido
encontradas plantações de mandioca, inhame, arroz, cana de açúcar e frutas, e treze
pessoas foram presas, sendo que a maior parte dos aquilombados conseguiu evadir. É
importante assinalar, nesta última informação dos militares, as plantações de ciclo curto
e longo, o que evidencia que os quilombos dessa região tinham uma atividade produtiva
regular.
Ainda segundo Pedreira, no princípio do século XIX, chegaram a Salvador
notícias de aquilombamentos nas Vilas de Xique-Xique, na margem direita do rio São
Francisco, e em Jacobina, na Chapada Diamantina. Em 1802, o Governador interino da

121
SCHWART, Stuart B. Cantos e Quilombos numa Conspiração de Escravos Haussás in REIS, João
José e GOMES, Flávio dos Santos. (Orgs.) Liberdade por um fio-História dos Quilombos no Brasil. S.
Paulo: Cia. das Letras, 1996.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
50

Bahia determinou a busca de maiores informações. Nesse momento, o que preocupava


as autoridades era a ocorrência de aquilombamento em uma região onde haviam sido
descobertas ricas jazidas de ouro.122
Essas informações que evidenciam a ocorrência de formações quilombolas no
interior da Bahia, ainda que se encontrem fragmentadas e carecendo de uma
sistematização que as coloquem numa unidade histórica mais coesa, ajudam a
demonstrar a permanência de povoados de populações predominantemente negras nas
duas margens do Rio São Francisco, a exemplo de Rio das Rãs, Mangal/Barro
Vermelho, Araçá/Cariacá, Batalhinha, Pau D’arco/Parateca, Tomé Nunes, Barra do
Parateca e tantos outros, que foram recentemente classificados pelas pesquisas
antropológicas como remanescentes de quilombos, comunidades de quilombos,
quilombos contemporâneos, comunidades negras rurais, terras de preto, terras de
santa.123

A crise econômica e a conformação de uma nova paisagem social e étnica no


Vale do São Francisco

No século XIX o Vale do São Francisco entra em decadência econômica. Para


Carvalho 124, tal declínio da região deveu-se aos seguintes fatores: a transferência da
capital da Colônia, Salvador, para o Rio de Janeiro, no início do século XIX; o
esgotamento do ouro nas Minas Gerais, que desse modo já não demandavam tanta mão
de obra dos escravos do Nordeste, reduzindo, assim, o fluxo de transporte através do rio
São Francisco; a decadência da produção açucareira no Nordeste e, com ela, a menor
absorção de mercadorias (carne, peles, salitre, peixes) produzidas no Vale; e a criação
de vias de comunicação alternativas ao Rio São Francisco, após a concentração das
atividades econômicas na economia cafeeira no interior do Rio de Janeiro e nas
fazendas de São Paulo. Além disso, a manutenção da criação de gado extensiva no Vale
do São Francisco, como a mais importante atividade econômica da região, contribuiu

122
PEDREIRA, Pedro Tomás. Os Quilombos Brasileiros. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador/
Departamento de Cultura da SEMEC, 1973.
123
Cf. GUSMÃO, Neuza M. Mendes de. Terra de Pretos, Terra de Mulheres – terra, mulher e raça num
bairro negro. Brasília: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1995; SILVA, Valdélio
Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. In Revista AFRO-ÁSIA. Dossiê Remanescentes de
Quilombos. Salvador, Centro de Estudos Afro Oriental, nº 23, PP. 241 a 347, 2000; ALMEIDA, Alfredo
Wagner Berno de. Quilombo: repertório bibliográfico de uma questão redefinida (1995-1996), São Luís
(MA): digitado, 1997; O’ ODWYER, Eliane Cantarino. Apresentação In Terra de Quilombos, Revista da
ABA, Rio de Janeiro: ABA, 1995.
124
CARVALHO, 1993.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
51

para concentrar renda, circular pouco capital e não empregar uma quantidade
significativa de mão de obra.
Neste período começaram a ruir também os impérios dos Morgados da Torre e da
Ponte. Os herdeiros destas duas famílias parcelam as antigas sesmarias mediante a
venda ou arrendamento que se conformarão nos latifúndios geradores do sistema de
coronelato que passará a predominar em todo o Vale do São Francisco.
Mas, esse tipo de parcelamento, contribuiu para a concentração das terras na
região. É um modelo inspirado na Lei de Terras de 1850, que estabeleceu como critérios
de legalização da propriedade a apresentação de títulos ou mediante compra,
consolidando, assim, as propriedades “de origem duvidosa”125 dos sucessores das
antigas sesmarias, o que fragilizou, desse modo, a condição jurídica dos posseiros e
ocupantes de terras públicas que viviam em comunidades margeando o rio ou no
interior de fazendas que se legalizaram através de esbulho.
Os tradicionais posseiros e ocupantes que sucederam os antigos quilombos
passaram, doravante, a ser classificados pelos fazendeiros como “agregados”, condição
atribuída aos moradores de inúmeras comunidades negras às margens dos São Francisco
que lutam para legalizar territórios que ocupam desde o século XVIII.
Os indivíduos e grupos familiares classificados como “agregados”, incorporados
às fazendas que se formaram após a fragmentação das sesmarias dos Morgados da Ponte
e da Torre, tiveram um papel fundamental na ocupação e exploração das terras às
margens do Rio São Francisco.
Nas fazendas de criação de gado que sucederam as sesmarias havia duas
categorias bem distintas de moradores: os chamados empregados, mesmo que não
tivessem um contrato formal de trabalho, considerados trabalhadores confiáveis pelo
fazendeiro; e os agregados, indivíduos e famílias que ocupavam lote de terras dentro
das fazendas demarcadas e registradas de acordo com as conveniências e a força política
do fazendeiro que se impusesse como proprietário. Os agregados eram tolerados pelo
proprietário da terra, mas não deixavam de ser, em muitas circunstâncias, úteis aos
interesses do fazendeiro. De acordo com as narrativas orais recolhidas em Rio das Rãs,
não era incomum que os antepassados dos atuais quilombolas estabelecessem uma
relação de intimidade e afeição com os fazendeiros que os impingia a condição de
agregados, sobretudo se aqueles não os molestassem.

125
NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura Fundiária e Dinâmica Mercantil: Alto Sertão da Bahia,
séculos VXIII e XIX, p. 191.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
52

Os agregados se institucionalizaram como uma categoria de trabalhadores sui


generis: eles não eram empregados, mas, ao mesmo tempo trabalhavam e serviam aos
fazendeiros a eles vinculados. Essa situação ambígua se conformou depois que as
fazendas de criação de gado avançaram sobre as áreas tradicionais de cultivo dos negros
que ocupavam terras devolutas antes mesmo da Abolição em 1888. Em outros casos, o
sistema de agregacia se configurou quando os escravos, após a libertação formal,
permaneceram nas fazendas dos seus antigos senhores, sem serem inteiramente livres, já
que a condição de agregados implicava em “dever favor” aos fazendeiros e ter limites
do que poderiam fazer dentro dos territórios que os fazendeiros julgavam lhes pertencer.
A agregacia, dessa forma, passou a ser uma forma dissimulada de escravidão.
Em Rio das Rãs, o sistema de agregacia foi imposto aos negros que ocupavam o
território desde o início do século XIX. O coronel Francisco Teixeira obrigava-os a
trabalhar sete dias por ano na limpeza do vaquejador – o corredor por onde o gado era
transferido da vazante que se inundava nas cheias do São Francisco para as áreas mais
altas do sequeiro. A retirada do gado da área inundável era feita pelos vaqueiros,
enquadrados na categoria de empregados, e aos agregados competia preparar a
alimentação e roçar o vaquejador, serviço extenuante e sem qualquer remuneração. Os
agregados eram impedidos de criar gado, de construir casas de alvenaria ou fazer plantio
de ciclo permanente, além de cercar suas roças com arame farpado, com a intenção
explícita de assinalar a precariedade da ocupação dos mesmos.
Para José Jorge de Carvalho, o agregado, do ponto de vista sociológico, era uma
espécie de morador protegido e protetor do proprietário, cuja base de relacionamento
incluía a troca de favores.126 Lógico que nesta relação os proprietários legais da terra
levavam uma nítida vantagem.
A categoria de empregados neste universo social tinha duas subdivisões: vaqueiro
e encarregado. Competia aos vaqueiros alimentar o gado, campear (buscar e prender o
gado) e transportar o rebanho para a comercialização fora da fazenda. Nos casos em que
o fazendeiro era absenteísta, isto é, residia fora da fazenda, pagava-se o vaqueiro através
de um sistema de cota-parte, no qual ele teria direito a uma parcela na reprodução do
gado. Essa modalidade de pagamento estimulava o vaqueiro a cuidar melhor do gado e
não roubar o fazendeiro. Mas, de um modo geral, os vaqueiros consideravam os seus

126
CARVALHO, 1995.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
53

serviços mal-remunerados, por isso, para se alimentar melhor, eles eram obrigados a
fazer roça e pescar.

O encarregado era o sujeito que gerenciava a fazenda e tinha relação mais direta
com vaqueiros e agregados, “era quem mandava, era gerente de tudo”, de acordo com
depoimentos dos indivíduos mais idosos de Rio das Rãs. Todos os acontecimentos
dentro da fazenda passavam pelo conhecimento do encarregado; por sua vez, ele
repassava ao proprietário as informações sobre o andamento das atividades referentes à
criação de gado e às relações com os empregados e agregados: era a pessoa de maior
confiança do fazendeiro. O interessante é que os indivíduos que desempenharam as
funções de vaqueiro e encarregado, na maior parte dos casos, eram escolhidos entre os
agregados, o que fazia com que eles sonhassem ser escolhidos algum dia “homens de
confiança” do “benemérito” patrão.

Em outros contextos onde prevaleceu o sistema de agregacia, sobretudo onde os


agregados sofriam pressão e até mesmo violência para se retirar das terras do
fazendeiro, a situação mudava de figura e o fazendeiro era obrigado a buscar fora do
universo da fazenda os empregados que servissem aos seus propósitos, como aconteceu
em Mangal/Barro Vermelho, após a morte do capitão João Duque.

Do ponto de vista formal, os agregados eram trabalhadores livres porém, na


prática, estavam subordinados social, política e economicamente ao grande proprietário,
uma subordinação que assegurava ao fazendeiro autoridade e legitimidade da sua
propriedade. Mas, é preciso entender o sistema de agregacia no momento histórico de
sua ocorrência e considerando a condição política dos atores nele envolvidos.
Parece que esta condição subalterna de “agregados” era a única possível para os
negros do Vale do São Francisco naquelas circunstâncias, ainda que isso representasse,
de fato, a legitimação da posse e do poder do proprietário.127 Os negros romperam esse
acordo tácito, com a emergência da luta pela legalização das terras, quando mudou a
correlação de forças e a situação política permitiu que um novo discurso fosse
instaurado.
A situação do sistema de agregacia para os negros do Vale do São Francisco
começou a mudar na década de oitenta do século vinte, com a inclusão do Art. 68 dos
Atos e Disposições Transitórias Constitucionais da Carta de 1988 e a elaboração da
127
GARCIA Jr, Afrânio Raul. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1983; HEREDIA, Beatriz Alásia de Heredia. A morada da vida: trabalho familiar
de pequenos produtores do nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 (Série Estudos sobre o
Nordeste, v. 7).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
54

legislação, inspirada no referido princípio constitucional. Esses dispositivos legais


incentivaram o surgimento de um movimento social que resultou em conflitos entre
fazendeiros e populações negras rurais que reivindicavam a aplicação da legislação para
a desapropriação das fazendas que dissimulavam a manutenção da escravidão sob a
forma do sistema de agregacia.
Ao longo da história do Vale do São Francisco, foram várias as estratégias dos
fazendeiros para preservar as suas terras. Além da figura do agregado, os grandes
proprietários de terra, alguns deles investidos da patente de coronel, constituíram
bandos de jagunços armados que se notabilizaram pelas espetaculares chacinas, durante
o século XIX, nos distritos de Sento-Sé, Remanso, Santo Antônio do Urubu (atualmente
Paratinga), Barra do Rio Grande e Carinhanha.128 Além dos chefes políticos
sanguinários, fizeram fama também cangaceiros protegidos por fazendeiros, inclusive
Lampião, o mais famoso deles.
Jagunços e cangaceiros compunham uma lógica dos senhores de terra para impor
regras para a vida social nesta região com base no terror da ação armada. Em muitas
fazendas, nem a polícia tinha coragem de entrar, a lei era o próprio coronel. Esses
poderosos do São Francisco não aceitavam interferência em suas decisões e, se fosse
preciso, removiam, “utilizando quaisquer meios, todos os obstáculos que se erguessem
em seu caminho.”129
No século XX, as secas frequentes, a decadência econômica, junto com a
concentração da terra em mãos de poucos fazendeiros e a violência desmedida de
bandos armados e bandidos, acentuaram o processo migratório de trabalhadores rurais
dessa região em direção ao Sudeste, sobretudo São Paulo. A industrialização no estado
de São Paulo contribui para atrair mais trabalhadores dessa região. Em 1936, a cidade
Santo Antonio do Urubu (Paratinga) parecia uma cidade fantasma: um terço dos
moradores mais pobres teriam “partido para São Paulo.”130 Como ainda acontece, a
maior parte da migração se dirigia para as “áreas agrícolas de Estados como Goiás,
Paraná e São Paulo.”131
A Romaria de Bom Jesus da Lapa teve um papel fundamental tanto para a
ascensão da sede do município de Bom Jesus da Lapa ao topo da economia local como
também para tornar a região mais visível no mapa da Bahia e, com isso, indiretamente,

128
CARVALHO, 1981.
129
PIERSON, p. 255.
130
Idem, p. 47.
131
Idem, p. 48.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
55

torná-la atraente para os investimentos atualmente realizados, sobretudo, na área da


agricultura e serviços, e, assim, estabilizar o processo veloz de migração para o Centro-
Sul do país.
Do ponto de vista demográfico, a romaria do Bom Jesus da Lapa deve ser
entendida, como um movimento migratório em sentido inverso, ainda que a
peregrinação dos fiéis seja passageira e dure apenas o tempo suficiente para que os
devotos paguem as suas promessas. Esse movimento religioso contribuiu muito para
que o Médio São Francisco não sofresse mais com as consequências da estagnação
econômica.
A devoção ao Bom Jesus existe desde o final do século XVII, quando a Gruta
passou a ser visitada pelos devotos que se deslocavam pelo rio São Francisco nas
famosas gaiolas, no início do ciclo da mineração. A partir do século XVIII esta visita
passou a ser feita pelos romeiros, isto é, católicos que transformaram a fé no Bom Jesus
da Lapa numa peregrinação sistemática e que se repete a cada ano. Depois dos anos
noventa do século XX, graças aos melhoramentos das estradas asfaltadas e à construção
da nova ponte que atravessa o São Francisco, aumentou o número dos romeiros,
visitantes e turistas, que agora se deslocam de ônibus ou de carro próprio.
Nos trezentos e dezessete anos da Romaria, o município de Bom Jesus da Lapa se
tornou conhecido em todo o país. A religiosidade popular permanece inabalável, em
meio a uma “variedade de discursos, muitas vezes contraditórios e competitivos,
anunciados por romeiros, moradores, e dirigentes” da Igreja Católica, que insistem em
“valorizar a razão iluminista” em detrimento das crenças populares associadas a
“imagens em torno do Bom Jesus da Lapa como fontes de mistificação.”132

Resistência política e obstáculos: visibilidade dos negros na história do Vale


do São Francisco

As populações negras descendentes dos africanos escravizados que chegaram ao


Vale do São Francisco ainda no século XVII se destacaram em muitos acontecimentos
importantes na região. As frequentes referências nos relatos orais das populações
quilombolas sobre fatos históricos, sobretudo no século XIX, talvez seja uma pista
importante para se pesquisar os acontecimentos históricos mais importantes da região.

132
STEIL, Carlos Alberto. O Sertão da Romaria – um estudo antropológico sobre o santuário de Bom
Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 263.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
56

Em Mangal, por exemplo, ouvi relatos de que a imagem de sua padroeira, Nossa
Senhora do Rosário, teria sido trazida por um sujeito de uma das famílias fundadoras do
quilombo e que participara da Guerra do Paraguai. São escassas as possibilidades de
comprovar a veracidade desse relato que faz parte do mito da fundação do quilombo.
Mesmo assim, é importante perguntar: como foi possível permanecer na memória social
da comunidade a informação de que pelo menos um sujeito do quilombo do Mangal
tivesse participado da Guerra do Paraguai em 1864? Se considerarmos que informações
históricas, como a referida guerra, são pouco conhecidas de um público com
escolaridade elementar e de pouca familiaridade com textos escritos, como o de Mangal,
somos obrigados a pensar que esse registro oral é muito importante para se conhecer um
pouco mais sobre o assunto e de que maneira ele repercutiu nas diferentes camadas
sociais da região. Confesso que, num primeiro momento em que ouvi o relato, não
imaginava ser possível a sua comprovação ou, pelo menos, ter indícios mais
consistentes que diminuíssem o meu pessimismo. Inclusive porque o relato contradizia
outro sobre o mesmo assunto – o aparecimento da imagem de Nossa Senhora do
Rosário no quilombo – e, ambos, me pareceram que expressavam, de fato, uma luta
política e simbólica em torno da afirmação da identidade de dois grupos de parentesco
que disputam o poder no quilombo.
Mas, para a minha surpresa, há sim uma referência histórica documentada de que
nesta região onde se localiza hoje o quilombo de Mangal, e que no século XIX pertencia
à Vila de Santo Antônio do Urubu (atual Paratinga), vizinha à Barra do Rio Grande,
ocorreu recrutamento de voluntários negros para a Guerra do Paraguai. Citando
historiadores especializados neste tema, Edilson Pereira Brito afirma de que foi
significativa a participação de escravos na Guerra do Paraguai. Os historiadores não se
entendem quanto ao montante de escravos negros enviados.133
Em novembro de 1864, o Paraguai declarou formalmente guerra contra o Brasil.
O Presidente da Província da Bahia, Manoel Pinto de Souza Dantas, obedecendo a
ordens superiores, começou a fazer o recrutamento de voluntários para participar da
guerra em janeiro do ano seguinte, e para isso, espalhou editais pelo interior. O
alistamento na Província da Barra, vizinha de Santo Antônio do Urubu, foi feito a partir
de novembro de 1866, dois anos depois de iniciada a guerra. É razoável pensar,
portanto, que, pela importância regional da Vila do Urubu, “a mais antiga Vila do médio

133
BRITO, Edilson Pereira. Cidadania, Escravidão e Recrutamento Militar na Província do Paraná.
Comunicação no I Seminário Nacional Sociologia e Política da UFPR, 2009.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
57

São Francisco no território baiano...”134, onde estava situado o povoado negro do


Mangal, tivesse sido instalado também um posto de alistamento para a guerra. Felix
Junior afirma que teriam sido remetidos 50 indivíduos da Vila da Barra para a guerra.
Ainda de acordo com o mesmo autor, os recrutados, de um modo geral, eram solteiros e
de profissões como jangadeiros, roceiros, artesãos, pescadores, barqueiros e lavradores,
entre outros.135 Portanto, os ribeirinhos não só teriam participado da Guerra do
Paraguai, de acordo com Vaílton Carvalho, mas também muitos “filhos do São
Francisco tombaram à bala ou ao fio da espada.”136 Será que entre os que se alistaram
para a guerra não estariam também os negros dos povoados negros às margens do São
Francisco?
Não seria interessante, portanto, por essa aproximação, considerar verossímil o
relato de que uma pessoa da família Lobo tenha ido para a guerra? Do que me foi
narrado, essa pessoa teria achado a imagem de Nossa Senhora do Rosário no campo de
batalha e, desse encontro, teria selado uma promessa com a santa em troca da proteção
pela sua integridade física nos campos de batalha. Em contrapartida, ao retornar para o
quilombo ele entregaria a imagem para ser zelada por uma rezadeira especializada nas
ladainhas da santa. Para o azar dos Lobo, família à qual pertencia o bravo soldado da
guerra contra o Paraguai, em sua parentela não havia nenhuma pessoa competente nessa
função, assim, a responsabilidade de cuidar de Nossa Senhora do Rosário acabou nas
mãos de uma pessoa da família Gomes, adversária dos Lobo.
Donald Pierson lembra-nos de que na década de cinquenta do século XX era
comum serem “contadas lendas a respeito de várias das principais imagens existentes
nas igrejas do Vale no tocante à sua ‘descoberta’...”137
A interpretação sobre a participação de um quilombola na Guerra do Paraguai
termina sendo, assim, a tentativa de construção de uma alegoria que rivalize em pé de
igualdade com o outro relato que conta a história da chegada da santa sem passar pelas
mãos de um indivíduo da família Lobo. As duas narrativas são expressivas de um jogo
de alianças que não exclui a rivalidade entre os grupos que disputam o poder. Neste
caso, a vantagem da legitimidade do relato está do lado dos Gomes, já que eles têm o
trunfo maior, que é a guarda da santa e de uma misteriosa coroa de ouro, embora esta

134
CARVALHO, Vaílton L. de. História do Rio São Francisco, p. 116.
135
FELIX JUNIOR, Osvaldo Silva. Repensando a Guerra (Participação da Bahia na Guerra do Paraguai –
1865-1870). Dissertação de mestrado. Departamento de Ciências Humanas Campus V, UNEB, 2009.
136
Idem, p. 120.
137
PIERSON, p. 97.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
58

nunca tenha sido vista, a não ser pelos seus guardadores e na imaginação construída
sobre ela.
Na pesquisa realizada para o mestrado em 1997, em Rio das Rãs, ouvi relatos
sobre conflitos envolvendo negros escravizados, quilombolas e marotos. Recolhi
depoimentos, como os do Sr. Francisco Ferreira Magalhães (Chico de Helena,
atualmente com 78 anos), em que ele afirma ter ouvido de seus antepassados que os
marotos teriam reescravizados negros no Mocambo, local onde teriam surgido os
primeiros quilombolas de Rio das Rãs. Eis o seu depoimento:

“Agora, quando justamente eles [os negros] tava já alicerçado [isto é, estabilizados], justamente aí,
chegou esses maroto, chegou justamente que foi e botou a escravidão nesse pessoal, esses nêgo...”

Os portugueses contrários à independência do Brasil, em 1822, eram chamados de


marotos, com a intenção de estigmatizá-los como traidores. São abundantes as
narrativas históricas sobre as refregas entre brasileiros e portugueses nos anos de 1822 e
1823. Braz do Amaral argumenta que os “brasileiros, muitas vezes humilhados,
começavam a reagir, e tomaram rancor aos portugueses enquanto os tratavam com
desabrimentos e desprezos, cada dia maiores...”138 Segundo Tavares, os conflitos
envolvendo brasileiros e portugueses, conhecidos como Mata-Maroto, para além dos
ressentimentos decorrentes da luta pela Independência, simbolizavam a desconfiança no
Imperador D. Pedro I por assumir um compromisso de se criar uma república federativa
no Brasil. Na mesma linha de raciocínio, Albuquerque defende que os conflitos entre
portugueses e brasileiros, a despeito do seu caráter xenófobo, refletia uma situação “
bem mais complexa e caótica.”139 E esta é uma das razões para que as comemorações da
independência do Brasil tenham mais significado na Bahia, nas celebrações em torno do
dois de julho. A Bahia teria se livrado efetivamente do jugo português, de acordo com
essa representação histórica, justamente no dia 02 de julho de 1823. De que modo esse
acontecimento histórico repercutiu no Vale do São Francisco?
Segundo Vaílton Carvalho, os meses que sucederam a Independência do Brasil,
em setembro de 1822, foram vividos intensamente pelos sertanejos do Vale do São
Francisco. O historiador não registra a ocorrência de conflitos armados de grande vulto

138
AMARAL, do Braz. História da Independência na Bahia. Salvador: Prefeitura do Município do
Salvador, 1957, p. 41.
139
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. A Festa do Dois de Julho – as comemorações públicas da
Independência Nacional. In Fundação Pedro Calmon. 2 de Julho – A Libertação do Brasil na Bahia.
Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 2009, p. 50.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
59

envolvendo baianos e portugueses na região, embora tenham estes sido mantidos sob
severa vigilância das autoridades fiéis à independência.
A luta pela independência da Bahia no Vale do São Francisco, parece ter se
destacado, sobretudo, nos marcos dos parlamentos locais: “As Câmaras Municipais de
Barra, Pilão Arcado, Campo Largo [Ibotirama] e Urubu [Paratinga] desempenharam seu
grande papel de guardiãs dos interesses nacionais nas barrancas do São Francisco.”140 O
mesmo autor classifica a contribuição dos sertanejos como “ativa e destemida.”141 Na
confirmação da independência da Bahia em 1823, em toda a região do Médio São
Francisco, foram rezadas missas, ocorreram desfiles, e atos políticos foram realizados
para comemorar a vitória da liberdade na Bahia.
A abolição da escravidão de 1888 é outro acontecimento histórico que repercutiu
no Vale do São Francisco e envolveu, de forma direta, os negros do Vale São Francisco.
O episódio da abolição mereceu ligeira menção do padre e historiador Turíbio
Vilanova – sacerdote espanhol, capelão e vigário do santuário do Bom Jesus da Lapa
entre 1933 e 1956 –, quando escreveu uma resenha histórica sobre o referido santuário.
Outros autores se referem a uma grande festa realizada pelos negros da região em
comemoração à abolição de 13 de maio de 1888. Vejamos primeiro o registro escrito
pelo Pe. Turíbio Vilanova:

“Em junho de 1888, pouco depois da proclamação da emancipação pela Princesa Isabel, ‘uma
imensa multidão de escravos142 [sic] vinda de todo o sertão’ [...] reuniu-se na Gruta ‘para dar
graças ao Bom Jesus, pelo benefício da alforria, demorando oito dias, cantando benditos religiosos,
rezando, dando vivas ao Gabinete de João Alfredo, tocando maracás, tambores, pandeiros, cabaças
com milho, etc.’”143

As solenidades em Bom Jesus da Lapa tiveram também um caráter religioso. Os


negros, que passaram oito dias em festa na Gruta do Bom Jesus, além de agradecerem
às autoridades imperiais, de acordo com o registro de Turíbio Vilanova, também
louvaram os seus deuses africanos sincretizados no Senhor Bom Jesus da Lapa, pela
vitória alcançada, como se pode depreender dessa informação de Donald Pierson:

“Segundo o frade franciscano Tomar Kochmeyer, que o autor conheceu em Salvador em 1935, e
que conhecia intimamente os centros de cultos afro-brasileiros locais, o Bom Jesus da Lapa era na
ocasião conhecido, pelos negros em alguns desses centros, como ‘Lenimbé, Furáme’, e venerado
sob a forma de uma rocha.”144

140
CARVALHO, Vaílton L. de. História do Rio São Francisco, p. 110.
141
Idem, p. 115.
142
Se o acontecimento se refere a junho de 1888 essas pessoas já não eram mais escravos.
143
PIERSON, p. 106/7.
144
Idem, p. 107.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
60

Carlos Alberto Steil se refere também a esse acontecimento na sua Resenha


histórica sobre Bom Jesus da Lapa, dando uma versão muito próxima à reprodução de
Donald Pierson:

“O Bom Jesus é conhecido entre os negros da Bahia pelo nome de ‘Lenibé-Furáme’ – na gíria dos
candomblezeiros do culto fetichista. É venerado sob a forma de pedra, singular prova da
vastíssima devoção à milagrosa imagem.”145

Esses registros sobre a presença dos negros no Santuário do Bom Jesus da Lapa,
após a abolição, poderiam ser tomados como importantes pistas para uma pesquisa
específica sobre esse assunto, pelas seguintes razões: a) os negros estavam presentes no
Vale do São Francisco, ao que parece de forma significativa, e isso mostra ser evidente
não somente pela referência à “imensa multidão”, mas também porque a festa durou
oito dias; b) os negros acompanhavam os acontecimentos nacionais, mesmo estando
confinados em uma região distante e a maior parte residindo no meio rural, sem falar
das imensas dificuldades de comunicação; c) estavam bem articulados na região, pois
não deve ter sido fácil organizar uma manifestação nas proximidades da gruta do Bom
Jesus, que teria durado uma semana e envolvido uma “imensa multidão”, sem que se
tivesse uma preparação prévia e convicções formadas sobre o significado daquela
decisão; d) preservaram um importante traço da identidade cultural negra africana,
como a sua religiosidade, e isso foi utilizado como um ato de afirmação da liberdade, na
medida em que eles explicitamente saudavam “Lenimbé Furáme”, ao que tudo indica
uma corruptela de Lemba Furama, em linguagem banto, equivalente a Oxalá, para os
iorubanos;146 e) essa celebração comemorativa pelo fim da abolição no final do século
XIX em frente ao templo do Bom Jesus, em face da presumida quantidade de negros, da
duração da celebração, das dificuldades de comunicação, e das conhecidas hostilidades
contra os negros nos centros urbanos147, entre outras, pode ser vista como um ato
eminentemente político.
Vários estudos fazem referência à presença negra no Vale do São Francisco.
Livros, artigos, monografias e dissertações148 discutiram especificamente aspectos da

145
STEIL, p. 131.
146
Segundo o Dicionário Eletrônico Houais de Língua portuguesa: “Nos candomblés de rito angola-
congo, [Lemba é um] inquice correspondente ao Oxalá nagô; Cassulembá, Lembarenganga, Malemba”
147
Alguns quilombolas de Rio das Rãs me confessaram de que era comum antes da década de noventa do
século passado os negros do quilombo serem tratados de forma discriminatória em Bom Jesus da Lapa.
148
CARVALHO, José Jorge (org.). O quilombo do Rio das Rãs. História, tradição e lutas. Salvador:
EDUFBA, 1996; DUTRA, Nivaldo Osvaldo. Liberdade é reconhecer que estamos no que é nosso:
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
61

cultura e da vida social das populações negras quilombolas. O que não se alterou,
fundamentalmente, desde a chegada dos primeiros negros escravizados à região, foi a
condição inferiorizada dessas populações “na estrutura social.”149
Os negros deixaram de ser escravos depois de 1888, segundo Neves, para se
transformarem em modestos trabalhadores da lavoura ou “em pequenos ofícios urbanos
como ferreiros, oleiros, aguadeiros etc.”150 Nos centros urbanos de Bom Jesus da Lapa,
Santa Maria da Vitória, Ibotirama, Paratinga e outros municípios do Médio São
Francisco, que cresceram e diversificaram as suas economias nas três últimas décadas,
são mais visíveis as alterações das posições sociais dos negros na estrutura social.
Mudanças que podem ser explicadas pelas oportunidades escolares hoje existentes e
pelo oferecimento de empregos, através de concursos públicos, o que facilitou o acesso
dos negros no mercado de trabalho e, desse modo, foram ampliadas as oportunidades de
mobilidade social.
No meio rural, onde as mudanças sociais são mais lentas, as populações negras
ainda vivem em condições muito próximas ao que foi descrito por Neves. As
comunidades negras rurais que não conseguiram regularizar as suas terras e, com isso,
acessar o sistema bancário para o financiamento das suas atividades produtivas, ainda
não alteraram muito significativamente a sua situação social.
Tive a oportunidade de conhecer de perto inúmeras comunidades negras rurais, a
exemplo de Tomé Nunes, no município de Malhada no Médio São Francisco, em que as
famílias ainda residem em casas de taipa, sem água potável para o consumo e
assistência regular à saúde; além disso, estão expostas à ação dos grileiros de terra. O
fato de ocuparem terras às margens do São Francisco e não terem sido até hoje
reconhecidas e legalizadas pelo Estado Brasileiro, muitas delas ocupando as suas posses
antes da Lei de Terras de 1850151, mostra como as “leis agrárias no Brasil sempre

comunidades negras do Rio das Rãs e da Brasileira – Bahia (1982 -2004), dissertação de mestrado,
PUC/São Paulo, 2007; MESSEDER, Marcos Luciano Lopes, MARTINS, Marco Antônio Matos. Arrais
de Rio de Contas: uma comunidade de cor. Caderno CRH, Série Contos e Toques – Etnografias do
Espaço Negro na Bahia, Suplemento/1991, Salvador: Editora Fator; SOUZA, José Evangelista de,
ALMEIDA, João Carlos Deschamps. O Mucambo do Rio das Rãs – um modelo de resistência negra.
Bom Jesus da Lapa: SINERGIA/CÁRITAS, 1994; SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau-Preto a
Rio das Rãs. Liberdade e escravidão na construção da identidade negra de um quilombo contemporâneo.
Dissertação de mestrado defendida na UBFA, 1998.
149
NEVES, Zanoni. Os remeiros do São Francisco na Literatura. Revista de Antropologia, USP, v. 46, Nº
1, 2003, p. 168.
150
Op. Cit. p. 168.
151
Podemos citar alguns exemplos de comunidades que já foram estudadas e que confirmam que as suas
populações ocupam os territórios antes de 1850, com os quilombos de Rio das Rãs, Parateca/Pau D’arco,
e Mangal/Barro Vermelho.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
62

expressaram a incapacidade governamental, no Império e na República, de agir contra


os interesses do grande domínio fundiário...”152
Mesmo assim, essas populações ocupam precariamente pequenos domínios em
ilhas, lameiros e capões do Rio São Francisco. A despeito das imensas dificuldades
materiais, conseguiram se reproduzir física e socialmente em seus territórios e são as
legítimas sucedâneas dos “escravos africanos que fugiam dos centros de cultivo de
cana-de-açúcar, como a área do Recôncavo em torno de Salvador...”153
Em determinadas circunstâncias históricas, esses grupos se converteram em
quilombolas no Vale do São Francisco, ao se unirem “a indígenas puros ou mestiços,
[que] pilhavam fazendas dos arredores e daí tiravam outros escravos.”154 Esses atos de
rebeldia provocavam temores nas elites de então e, ao mesmo tempo, a ferocidade dos
bandos a serviço da Coroa Portuguesa, que investiam “contra os índios sublevados no
direito legítimo de defesa de suas terras; depois a batalha se volta contra o negro que,
fugindo das senzalas, permanecem aquilombados nos altos sertões do São Francisco.”155
As populações quilombolas e indígenas que não foram dizimadas pela ação
violenta dos homens armados dos Guedes de Brito e de outros coronéis, na atualidade
buscam reconhecer o direito de terem suas terras tituladas.

Perfil dos municípios no entorno dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal.

São os seguintes os municípios da Região do Médio São Francisco (Ver mapa a


seguir) que influenciam do ponto de vista histórico, político, econômico e cultural os
quilombos de Rio das Rãs e Mangal: Bom Jesus da Lapa, Paratinga, Sítio do Mato e
Carinhanha. (Ver mapa na página seguinte)
Bom Jesus da Lapa, o mais importante economicamente entre os municípios, foi
elevado à categoria de município com tal denominação pelo ato de 18 de agosto de
1890, sendo neste ato desmembrado de Santo Antônio do Urubu, hoje Paratinga. A
instalação oficial do município se deu em 07 de janeiro de 1891. Na divisão territorial
datada de 2005 é constituído de dois distritos: Bom Jesus da Lapa e Favelândia.
De acordo com informações do IBGE, a sede do município de Bom Jesus da Lapa
encontra-se entre as coordenadas 13º 15’ 02’’ de latitude Sul e 43º 25’ 44’’ de latitude

152
NEVES, p. 199.
153
PIERSON, 280/1.
154
Idem, p. 281.
155
CARVALHO, p. 59.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
63

Oeste. Por via terrestre, a distância para Salvador, a capital da Bahia, é de 750 km. O
município possui 3.951 km2 de extensão territorial.

As atividades fundamentais da economia do município de Bom Jesus da Lapa são


a agricultura irrigada e de sequeiro, a pecuária, a pesca no Rio São Francisco e nas
lagoas marginais, e o comércio e serviços.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
64

No município de Bom Jesus da Lapa pratica-se também a agricultura de sequeiro


e de vazante. Nestas modalidades, há uma dependência direta do regime anual de
chuvas, no caso do sequeiro, e das cheias do São Francisco, no plantio de vazante.
Afora o perímetro irrigado de Formoso, a agricultura, de um modo geral, é de
subsistência, e a criação de gado, basicamente, extensiva.
No município de Bom Jesus da Lapa, a atividade industrial tem pouca
significação. A economia municipal se baseia, sobretudo, no comércio e serviços,
sobretudo o setor hoteleiro, além da agricultura e criação de gado.
Além do serviço de transporte, os lapenses são absorvidos, no mercado de
trabalho, no comércio atacadista e varejista de lojas, armazéns, serviço público
municipal, estadual e federal, bares e restaurantes e nas dezenas de pousadas espalhadas
pela cidade, que recebem romeiros de Minas e da Bahia durante todo o ano. A grande
movimentação de romeiros de várias partes do Brasil se dá entre os meses de julho e
setembro, quando ocorrem as Romarias de Bom Jesus da Lapa, em 06 de agosto, e a de
Nossa Senhora da Soledade, em 15 de setembro. Neste período, a maior parte da
população lapense se concentra em alguma atividade relacionada ao comércio ou à
prestação de serviços, para atender aos milhares de peregrinos, comerciantes e turistas
que chegam à cidade para as romarias e os negócios a elas relacionados. É muito
comum se ouvir na Lapa que existem pessoas que trabalham intensamente nos dois
meses de grande movimentação das Romarias para se sustentarem financeiramente no
restante do ano.
Os municípios de Sítio do Mato, Paratinga e Carinhanha têm uma significativa
influência econômica de Bom Jesus da Lapa. A condição de pólo regional exercida por
este município atrai os moradores vizinhos, tanto pela diversidade e vigor do comércio,
dos serviços públicos e bancários como também pela influência que têm as romarias em
toda a região. Vejamos alguns dados gerais sobre os referidos municípios e a
comparação com Bom Jesus da Lapa.
A população de Bom Jesus, conforme estimativas do IBGE de 2008 é 65.148
habitantes; Paratinga 29.693 habitantes; Carinhanha 29.988 habitantes; e Sítio do Mato
13.064 habitantes.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
65

Fonte: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia - SEI

Paratinga está situado na margem direita do São Francisco e possui uma altitude
de 425 metros. As coordenadas geográficas indicam: latitude (Sul) 12º41’26” e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
66

longitude (Oeste) 43º11’03”. Situa-se a 708 km de Salvador e tem uma área de 2.956,39
km2.
Carinhanha está situado à margem esquerda do São Francisco a uma altitude de
440 metros. As coordenadas geográficas indicam: latitude (Sul) 14º18’17” e longitude
(Oeste) 43º45’54”. Situa-se a 899 km de Salvador, na fronteira com o Norte do estado
de Minas Gerais e tem uma área de 2.751,39 km2.
Os municípios de Carinhanha e Paratinga (antigo Santo Antônio do Urubu) têm
uma importante história na ocupação do Médio São Francisco, enquanto Sítio do Mato
tem uma história regional mais modesta, por ter sido até bem pouco tempo um distrito,
quando pela lei estadual Nº 4834, de 24 de fevereiro 1989, foi desmembrado de Bom
Jesus da Lapa para formar o município de Sítio do Mato. As economias dos três
municípios se sustentam basicamente da agricultura e da criação.
Na agricultura, de acordo com os dados do IBGE de 2007, os cultivos em áreas de
sequeiro, isto é, que dependem das chuvas sazonais, como milho, feijão e mandioca, são
os maiores destaques na produção agrícola dos municípios vizinhos de Bom Jesus da
Lapa.
No cômputo geral, as economias que mais se aproximam de Bom Jesus da Lapa
são as de Paratinga e Carinhanha.
A arrecadação municipal de Bom Jesus da Lapa, no ano de 2005, foi de R$
31.352.004,80; em Paratinga alcançou R$ 18.714.195,62; em Carinhanha de CR$
16.188.871,54; e Sítio do Mato arrecadou, apenas, R$ 9.632.023,40 no ano. A dimensão
das economias desses municípios está expressa também no número de servidores
municipais. A prefeitura de Bom Jesus da Lapa emprega 1.771 servidores públicos;
Paratinga, 1.163; Carinhanha 849; e Sítio do Mato, apenas, 683 servidores.
De acordo com o IBGE, na área de saúde, Bom Jesus da Lapa dispõe de 129 leitos
(sendo 121 disponíveis para o SUS); Carinhanha 50 leitos (todos disponíveis para o
SUS); Paratinga 36 leitos (36 para o SUS) e Sítio do Mato apenas 02 leitos (02 para o
SUS).
Na educação, em 2005, de acordo com dados do IBGE, Bom Jesus da Lapa
dispunha, no meio urbano e rural, de 108 estabelecimentos municipais de ensino
(Jovens e Adultos, Educação Infantil e Fundamental) e 22 particulares; no Ensino
Médio, foram identificados 04 estabelecimentos estaduais e 04 particulares.
Em Carinhanha, nos meios urbano e rural, havia 89 estabelecimentos municipais
de ensino (Jovens e Adultos, Educação Infantil e Fundamental), 05 particulares e 08
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
67

estabelecimentos estaduais; no Ensino Médio, o município tem 01 estabelecimento


estadual, 01 municipal e 01 particular.
Em Sítio do Mato, são 45 estabelecimentos municipais de ensino (Educação
Infantil e Fundamental) e 02 estaduais; no Ensino Médio, apenas um colégio estadual.
Em Paratinga, na Educação de Jovens e Adultos, Educação Infantil e
Fundamental, são 90 estabelecimentos municipais, 04 estaduais e 01 particular; no
Ensino Médio, são 05 estabelecimentos municipais e 02 estaduais.
Para finalizar, um rápido painel com os indicadores do Índice de
Desenvolvimento Humano IDH, do PNUD, e a posição comparada entre os anos de
1991 e 2000 desses municípios referidos:

Municípios IDH
1991 2000
Bom Jesus da Lapa 0,554 0,654
Paratinga 0,483 0,617
Carinhanha 0,486 0,607
Sítio do Mato 0,491 0,6
Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.

Para se comparar a realidade social desses municípios com o restante do país,


deve-se observar que o Índice de Desenvolvimento Humano médio do Brasil é de 0,807
e o país ocupa a 70º posição no mundo. Vê-se, portanto, que a situação social de Bom
Jesus da Lapa, Paratinga, Carinhanha e Sítio do Mato ainda se encontra distante de uma
posição razoável do ponto de vista do desenvolvimento social, em comparação com o
restante do Brasil, embora tenha havido um crescimento considerável entre os anos de
1991 e 2000.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
68

Capítulo II

ECONOMIA E AS PRÁTICAS CULTURAIS NOS QUILOMBOS DE RIO


DAS RÃS E MANGAL/BARRO VERMELHO

A localização histórica de Rio das Rãs e Mangal/Barro Vermelho no território


quilombola do Médio Francisco

As informações contidas nas fontes escritas tanto quanto aquelas originadas das
narrativas orais indicam que as comunidades negras rurais quilombolas que margeiam o
Médio São Francisco se formaram entre os séculos XVIII e XIX. Refiro-me aos grupos
étnicos negros que reivindicam do Estado brasileiro o direito de terem as suas terras
tituladas como “remanescentes de quilombos”, de acordo com o que prevê o Art. 68 dos
Atos e Disposições Constitucionais Provisórias da Constituição Federal e outros
dispositivos infraconstitucionais. Enquadram-se, nesta categoria, as comunidades de
Tomé Nunes e Pau D’arco/Parateca (ambas no município de Malhada), Barra do
Parateca (Carinhanha), Rio das Rãs, Batalhinha, Araçá/Cariacá e Lagoa do Peixe (Bom
Jesus da Lapa) e Mangal/Barro Vermelho (Sítio do Mato). Não há informação histórica
documentada de que maneira a maior parte dessas comunidades se formou na região; a
maior parte dos dados sobre as suas histórias são originados de relatos orais.
Alguns indícios, estes sugeridos pela historiografia referida no Capítulo anterior,
indicam que as comunidades foram constituídas a partir de fugas dos africanos
escravizados e de seus descendentes, quando estavam sendo transportados no século
XVIII do Nordeste para serem vendidos para os exploradores das minas de ouro na
província de Minas Gerais, e servirem como mão de obra nas fazendas de café na
província de São Paulo, em meio à crise de produção açucareira na Bahia e em
Pernambuco. Outras indicam que muitos escravizados evadiram quando estavam sendo
levados em comboios, de Salvador e Ilhéus, em direção à exploração do Oeste da Bahia,
para fixação dos limites territoriais das sesmarias das famílias D’Ávila e Guedes de
Brito, os pioneiros na criação de gado nessa região. De acordo com Tavares, os
“colonos chegaram ao sertão do Rio São Francisco na segunda metade do século
XVI.”156

156
TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia. 8. Ed. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 90.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
69

Além da fuga de escravos, as formações quilombolas nessa região resultaram,


também, das ocupações de fazendas abandonadas. As narrativas orais indicam a doação
de terras aos grupos de negros livres por promessas a determinados santos, como sugere
a memória oral dos negros do Mangal, que teriam recebido meia légua quadrada, de
uma mulher chamada Deltrudes, filha natural do capitão João Duque, que fizera uma
promessa a Nossa Senhora do Rosário. O mesmo exemplo pode ser visto na narrativa
dos negros de Barra do Parateca, que teriam recebido uma doação de terras de um
devoto de Senhora Santana. No Laudo Antropológico de Rio das Rãs, elaborado sob a
coordenação de José Jorge de Carvalho, esta informação é confirmada: “As terras onde
fica hoje a localidade de Parateca eram de propriedade da Senhora Santana, terras de
Igreja ou terras de santo, como são conhecidas e referidas na literatura concernente.
Foram ocupadas por negros que até hoje formam a totalidade de sua população.”157
A partir dos dados históricos disponíveis, pode-se afirmar que as populações
negras ribeirinhas nesta parte do Médio São Francisco viviam, após o cercamento de
imensos latifúndios para a criação de gado, na condição de trabalhadores de “terras
alheias”, motivo pelo qual os fazendeiros os classificaram como agregados. Como
agregados das fazendas eram recrutados para servir de mão de obra temporária, alguns
deles sem remuneração, ou em funções como vaqueiros e encarregados de fazendas de
criação de gado. Além disso, o “agregado tornava-se uma espécie de guarda, fazendo
parte do séquito com que o senhor empreitava a conquista de mais terras, sebaça e o
poder político nos municípios e vilas.”158 O sistema de agregacia foi uma tentativa dos
coronéis do Vale São Francisco, depois da abolição de 1888, de “prolongar a
escravidão.”159 Os negros permaneceram nesta condição de “agregados”, praticamente,
em toda região.160
Os territórios ocupados pelos negros evadidos do sistema escravista ou que se
fixaram na terra por outra modalidade de ocupação se estendiam nas margens direita e
esquerda do Rio São Francisco, do município de Carinhanha até Sítio do Mato, numa
extensão de cerca de 250 quilômetros.
Há indícios consistentes, que serão a seguir elencados, de que as populações
negras nessa região, durante e após a escravidão, se relacionavam de diferentes

157
CARVALHO, José Jorge de Et. Ali. Laudo Antropológico Sobre a Comunidade Negra Rural de Rio
das Rãs. Digitado: Brasília, 1993, p. 31.
158
Op. Cit. p. 53.
159
SOUZA, José Evangelista de, ALMEIDA, João Carlos Deschamps de. O Mucambo do Rio das Rãs –
um modelo de resistência negra. Bom Jesus da Lapa: Impressão Arte e Movimento, 1994, p. 35.
160
Cf. também: SOUZA, José Evangelista de, ALMEIDA. Coronéis no Médio São Francisco – fatos e
histórias. 2. Ed. Santana – Bahia: Editora AJASS, 2007.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
70

maneiras, constituindo uma rede de relações sociais. Formavam, de fato, uma espécie de
território quilombola.
A concepção pós-moderna de Muniz Sodré sobre território nos ajuda a entender a
idéia de território quilombola como um espaço capaz de “engendrar regimes de
relacionamento, relações de proximidade e de distância.”161 O oposto dos “não-lugares”,
na acepção de Augé, na qual a antropologia da pós-modernidade tenta, no presente,
descrever relações em espaços de transição ou de acelerada circulação de pessoas.
A noção de território quilombola aqui proposto deve ser pensado como um
espaço “identitário, relacional e histórico...”162. Segundo Marc Augé, o “que é
significativo na experiência do não-lugar é a sua força de atração, inversamente
proporcional à atração territorial, ao peso do lugar e da tradição.”163
O território quilombola deve ser compreendido como um espaço social que
engendra relacionamentos sociais, aproxima indivíduos distantes entre si e segregados
em territórios específicos pelas imensas dificuldades de comunicação no meio rural.
Os obstáculos geográficos, entretanto, não impediram que indivíduos de
comunidades distantes e aparentemente isoladas compartilhassem histórias comuns de
sofrimentos durante a escravidão e, posteriormente, como agregados de grandes
fazendeiros. Essas populações do Médio São Francisco se aproximaram através de
alianças matrimoniais e pela criação de redes informais de vizinhança e compadrio.
As trocas matrimoniais entre as diferentes famílias do referido território
possibilitaram a conformação de parentelas poderosas nos espaços conquistados. Essa
aproximação entre os quilombolas das mais variadas procedências foi decisiva para a
construção de uma consciência comunitária de que todos faziam parte de um território
quilombola, no sentido demonstrado por Max Weber, em que a crença na afinidade de
origem “pode existir e desenvolver uma força criadora de comunidade...”164
É possível identificar elementos culturais desses contatos e trocas entre as dezenas
de comunidades negras rurais da região.
Quando enfrentavam o conflito pela posse da terra, na década de noventa do
século passado, lideranças do quilombo de Mangal procuraram apoio e orientação dos
seus patrícios do quilombo de Rio das Rãs. Pela ajuda política recebida, os mangazeiros
se dizem “filhos” de Rio das Rãs.

161
Ibidem, p. 61.
162
AUGÉ, Marc. Não-Lugares – Introdução a uma antropologia da supermodernidade. 2. ed. Campinas:
Papirus, 2001, p. 73.
163
Op. Cit. p. 108/9.
164
WEBER, Max. Economia e Sociedade. 3. ed. V. I Brasília: Editora UNB, 1994, p. 270.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
71

A história da família de Simplício Arcanjo Rodrigues (48 anos), uma das mais
destacadas lideranças de Rio das Rãs, é outro exemplo dos contatos e das relações
antigas e diversificadas entre os quilombos da região e abrangem uma pluralidade de
localidades e experiências.
O avô de Simplício Arcanjo Rodrigues, Sr. Francisco Rodrigues Lima, nasceu em
1890, no pequeno povoado negro conhecido como Barreiro Grande, situado na margem
esquerda do Rio São Francisco, no atual município de Serra do Ramalho. A sua avó,
dona Rosa Vieira Lima, nasceu na localidade rural de Campinas, município de Riacho
de Santana. Dona Anita Rodrigues Lima, uma das filhas desse casal, e mãe de
Simplício, nasceu no povoado de Capão, no mesmo município de Serra do Ramalho.
Uma parte dos filhos do casal Francisco e Rosa Lima foi parar em Rio das Rãs e, neste
quilombo, constituíram uma parentela forte e influente.
Simplício é da geração dos Rodrigues já nascida em Rio das Rãs. A sua esposa,
Paulina Souza Rodrigues (47 anos), entretanto, nasceu na Barra do Pau Preto, no
município de Palmas do Monte Alto, ao Sul de Bom Jesus da Lapa. Neste mesmo local
teria nascido dona Domingas Souza, mãe de Paulina. O pai de Paulina Rodrigues, o
Senhor Auto Osório de Souza (88 anos), por sua vez, nasceu na localidade de Cedro, em
Riacho de Santana, à Leste de Bom Jesus da Lapa. Mas, a família do senhor Auto
Osório é procedente do quilombo de Tomé Nunes, no município de Malhada, Sudoeste
de Bom Jesus da Lapa.
Chama atenção o fato de os indivíduos envolvidos nesta intrincada relação serem
procedentes de pequenos povoados negros; segundo, os personagens centrais desse
relato (Simplício Arcanjo Rodrigues e sua esposa, Paulina Rodrigues, ambos nascidos
em Rio das Rãs, e os pais desta, Auto de Souza e sua esposa, Domingas Souza) residem
lado a lado, no mesmo terreno, na localidade da Brasileira, em Rio das Rãs.
Esse extraordinário encontro de diferentes gerações e experiências somente foi
possível pela existência de um território quilombola de múltiplas relações – históricas,
étnicas e culturais – que os aproximou.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Mapa do território quilombola desenhado por Leonaldo Carvalho, técnico da CODEVASF.


Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Na entrevista que fiz na comunidade negra de Tomé Nunes com a senhora Maria Dias
do Rosário (74 anos), líder de um modesto terreiro de Jurema, ela me garantiu que o
lendário Francisco Arcanjo de Souza (Chico Tomé) – a mais destacada liderança de Rio das
Rãs durante o conflito pela posse da terra, nascido no quilombo em 1894 e falecido em
2003, com 107 anos165 – seria descendente da família de Joaquim Crioulo, nascido nesta
comunidade, no município de Malhada.
De acordo com a comovida narrativa de dona Raimunda Maria da Conceição, já
falecida, antiga moradora de Capão do Cedro, uma das localidades de Rio das Rãs, os
negros livres que foram reescravizados no Mucambo, no século XIX, saíam furtivamente
nos finais de semana para ir beber pinga e sambar nos povoados de Capim da Raiz e
Parateca, ambos situados no município de Malhada. Segundo o relato de dona Raimunda,
os escravizados do Mucambo burlavam os senhores de escravos:

“Saía de noite pela janela da casa e pá [para] chegar também de noite. Furava esse trecho todo, dava
mais de três léguas, para farriar, sambar, farriar e chegar encontrá os patrão deitado, pra nunca sonhar
que eles saiu de noite.”166

Foi a partir desse período que se estreitaram os laços que unem os quilombos de Rio
das Rãs e Parateca, inclusive através das relações de solidariedade que unem os parentes
nos dois lados.
As narrativas sobre o surgimento do Mangal/Barro Vermelho indicam também que os
grupos originalmente formadores do quilombo foram compelidos a buscar alianças
matrimoniais fora do território, como opção para enfrentar a escassez de mulheres.
Essa difusa procedência dos diversos sujeitos que se cruzaram nas muitas formações
quilombolas da região demonstra a complexidade da constituição desses quilombos ao
longo da história e a necessidade que tiveram de estabelecer intensas trocas matrimoniais.
Nas genealogias de algumas parentelas de Rio das Rãs, nota-se que as relações incestuosas
no âmbito de famílias nucleares eram prática recorrente no passado, embora atualmente
sejam negadas ou escamoteadas. Outros indivíduos reconheceram com mais tranquilidade
165
O senhor Chico Tomé teria nascido em 1894 numa localidade de Rio das Rãs conhecida como Mucambo,
que teria sido, conforme o mito de origem, o local de onde originara o atual quilombo de Rio das Rãs. O seu
pai, de acordo com o registro de batismo da comarca de Bom Jesus da Lapa, nascera livre na mesma
localidade do Mucambo, em 1854. (v. Silva, 1997)
166
Idem, 1997.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
74

“as aventuras” que seus antepassados foram obrigados a experimentar, segundo alegam,
pela escassez de mulheres no quilombo de Rio das Rãs, no início da sua constituição.
A vastíssima rede de relações de parentesco aproximou os indivíduos dispersos no
território quilombola, fortaleceu os laços de solidariedade e contribuiu para potencializar a
resistência política e superar inúmeros obstáculos. E explica também porque os negros
permaneceram nessa região em meio às lutas, fugas, aquilombamentos, agenciamentos, e
negociações necessárias para garantir o domínio do território.
Além de homens e mulheres interessados em constituir novas famílias, circularam,
nesse território quilombola, valores e crenças que até hoje exercem uma enorme influência
para a manutenção da solidariedade entre os indivíduos. A religiosidade é um desses
valores. Os centros de Jurema que estão espalhados em Rio das Rãs, Parateca, Pau D’arco,
Barra do Parateca, Mangal e outros lugares recebem fiéis de toda essa rede quilombola. O
mais proeminente curador da região, o falecido Andrelino Francisco Xavier, de Rio das
Rãs, era querido e respeitado em todo o território. Constatei também que é significativa, no
imaginário das populações quilombolas, a crença na feitiçaria.
Outro valor cultural presente no território é a convicção quanto à origem comum dos
diferentes grupos quilombolas, o que serviu, circunstancialmente, para que as populações
negras da região incorporassem a identidade política de “remanescentes de quilombos”, que
é uma das pré-condições institucionais para que o Estado brasileiro titule os territórios
quilombolas.
Essa rede social no interior de um espaço geográfico de múltiplas relações –
históricas, étnicas, religiosas e políticas – possibilitou a interação de formações
quilombolas e de pequenos povoados negros que se formaram ainda no período da
escravidão, e conformou aquilo que estou chamando de território quilombola do Médio
São Francisco. A idéia de território é adotada aqui no sentido proposto por Marc Augé e
citado por José Carlos dos Anjos:

“[O território] é definido, primeiramente, como o lugar do ‘em casa’, o lugar da identidade partilhada,
o lugar comum àqueles que, ao habitá-los juntos, são identificados como tais por aqueles que nele não
habitam.”167

167
ANJOS, José Carlos Gomes dos. Identidade Étnica e Territorialidade. In ANJOS, José Carlos Gomes dos
SILVA, Sérgio Baptista da (Orgs.). São Miguel e Rincão dos Martinicanos – ancestralidade negra e direitos
territoriais. Porto Alegre/Brasília: URGS Editora/MINC/FCP, 2004, p. 63.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
75

Ainda que fronteiras geográficas separem os indivíduos que conformam o território


quilombola no Médio São Francisco, é notória a proximidade cultural e étnica entre os
diferentes grupos. Essa proximidade é facilitada pela crença na origem comum dos diversos
grupos, mas cimentadas também por relações identificáveis de laços de parentesco, que
aproximam parentelas de diferentes quilombos. Os encontros foram facilitados pela
necessidade imperiosa de sobrevivência física, racial e cultural. Giddens, que compartilha
com a idéia de Goffman de regionalização de encontros, assevera que os “locais não são
apenas lugares, mas cenários de interação...”168
Tive a oportunidade de participar de eventos sociais, como reuniões, seminários e
festas entre quilombolas desse território e pude perceber e sentir a atmosfera de celebração
investida em tais eventos. Isso se deve à proximidade geográfica, na qual todos emergem na
história, mas também por um sentimento compartilhado de terem sido originados de uma
mesma experiência cultural e étnica. Tal sentimento é reforçado pelo tempo de convivência,
pois os fatos e lendas referentes ao passado comum são recontados geração após geração:

“A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada
de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente.”169

Para Berger e Luckmann, de acordo com a concepção fenomenológica por eles


adotada, os indivíduos enxergam “a realidade da vida diária como uma realidade
ordenada.”170 A certeza do pertencimento comum, portanto, não é uma fantasia sem
sentido, ela se estrutura a partir da crença de que todos nesse território quilombola são
originários de um mesmo passado. Daí a crença nos laços de afinidade que os unem. Esse
sentimento fora muito bem captado por Sorokin, quando assinalou a inevitabilidade da
influência exercida pela vizinhança territorial: expostos “ao mesmo meio natural e social, a
que se devem adaptar para viver, os indivíduos desenvolvem uma comunidade de interesse
imposta pela proximidade territorial.”171

168
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XXVII.
169
BERGER, Peter L., LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 18. ed. Petrópolis: Vozes,
1999, p. 35.
170
Idem, p. 35.
171
SOROKIN, Pitirim A. Sociedade, Cultura e Personalidade: sua estrutura e dinâmica – Sistema de
Sociologia Geral. Porto Alegre: Editora Globo, V. I, 1968, p. 308.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
76

O termo comunidade tem esse sentido indicado por Sorokin, em que os indivíduos
desenvolvem uma percepção na qual o uso do espaço territorial comum os obriga a
compartilhar vínculos que são de uma mesma ordem de interesses. O que não significa
inexistir disputas e interpretações opostas sobre os processos sociais, envolvendo interesses
coletivos e individuais, e as ações egoístas dos feiticeiros é exemplar neste sentido. A
motivação deles, feiticeiros, está calcada na concepção weberiana de que o agente, ao fazer
as suas opções, “constitui a ‘razão’ de um comportamento quanto ao seu sentido.”172
A ocorrência de uma ação comunitária como as que se verificam no âmbito do
território quilombola, portanto, não invalida e nem impede a ação dos indivíduos, muitas
vezes com a intenção de desafiar até mesmo os hábitos mais consagrados socialmente, por
isso a ação dos feiticeiros é, neste sentido, exemplar. Max Weber, embora acredite na
existência de convenções sociais que inibam os “comportamentos discordantes”, não deixa
dúvida de que uma totalidade social pode ficar refém de agentes portadores de certos
poderes especiais:

“O medo de danos de origem mágica fortalecem a inibição psíquica diante de toda mudança nas
formas habituais de comportamento, e os vários interesses, que costumam estar vinculados à
manutenção da submissão à ordem vigente, atuam no sentido da conservação dessa ordem.”173

O mesmo Weber assinalou a existência de uma fronteira tênue que delimita os


interesses individuais e comunitários, sobretudo nas situações rurais, o que reforça e
complementa o sentido da citação anterior:

“[O fato de se conceber a] comunidade de vizinhos [como] a sede típica da ‘fraternidade’ não significa,
naturalmente, que entre vizinhos costume reger uma relação ‘fraternal’. Ao contrário: quando a
conduta postulada pela ética popular torna-se impossível devido a uma inimizade pessoal ou conflitos
de interesses, a rivalidade assim nascida costuma assumir formas particularmente agudas e
persistentes...”174

Para estreitar a proximidade entre dimensões coletivas e individuais do


comportamento social, de acordo com a visão de Robert Park, a sociedade, além de
representar para os agentes uma instituição inibidora e coercitiva de seus atos, “é também
vivenciada como uma fonte de inspiração, de expansão do eu, de libertação e

172
WEBER, Max. Economia e Sociedade, p. 8.
173
Op. Cit. p. 23.
174
Idem, p. 248.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
77

fortalecimento de energias pessoais latentes.”175 Neste sentido, não haveria uma


contraposição irredutível entre estrutura e ação individual, já que ambos podem coexistir
numa mesma situação social.
Não faria sentido, também, negar a capacidade de os indivíduos influenciarem
processos nos quais eles estão imersos socialmente. É essa a noção do conceito de agência,
isto é, agir consciente e reflexivamente nas situações sociais. De acordo com Giddens, a
agência “diz respeito a eventos dos quais um indivíduo é o perpetrador, no sentido de que
ele poderia, em qualquer fase de uma dada sequência de conduta, ter atuado de modo
diferente.”176 O autor não aceita a idéia de “estrutura” evocada pelo funcionalismo e o
estruturalismo “como uma fonte de restrição à livre iniciativa do sujeito independentemente
constituído.”177 O que não significa dizer que os sujeitos sociais tenham liberdade
incondicional de agir, independentemente das normas e condicionamentos estabelecidos
pela sociedade. O mesmo Giddens sugere ser possível um equilíbrio entre estrutura e ação.
Para ele, conforme a sua teoria da estruturação, “o momento da produção da ação é também
um momento de reprodução nos contextos do desempenho cotidiano da vida social...”178
O mesmo esforço de compatibilização entre estrutura e ação, ainda que concedendo
um papel limitado à ação dos sujeitos, é proposto por Pierre Bourdieu, ao adotar o conceito
de habitus. Para este autor, a ação dos agentes sofre influência da estrutura, o que o
aproxima do objetivismo, mas, por outro lado, “ele propõe uma teoria da prática na qual as
ações sociais são concretamente realizadas, mas as chances de efetivá-las se encontram
objetivamente estruturadas no interior da sociedade global.”179 As práticas sociais seriam,
então, um mecanismo para equilibrar as orientações decorrentes do habitus (estrutura) e a
experiência do agente numa dada situação de interação.
Esta concepção é, contudo, muito diferente daquela que sugere ser o sujeito capaz de
agir cognitivamente em situações de interação, o que, na proposta de Giddens, “significa
dizer que todos os atores sociais possuem um considerável conhecimento das condições e

175
JOAS, Hans. Interacionismo Simbólico. In GIDDENS, Anthony, TURNER, Jonathan (Org.) Teoria Social
hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 153.
176
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade, p. 10/11.
177
Op. Cit. p. 19.
178
Idem, p. 31.
179
ORTIZ, Renato. Introdução. In ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu – Sociologia. 2. ed. São Paulo:
Editora Ática, 1994, p. 15
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
78

consequências do que fazem em suas vidas cotidianas.”180 Para Bourdieu, ao contrário, isso
não ocorre, justamente, “porque os sujeitos não sabem, propriamente falando, o que fazem,
que o que eles fazem tem mais sentido do que eles sabem.”181
No sentido sugerido por Giddens, em que é possível equilibrar estrutura social e ação
dos sujeitos, pode-se afirmar que a manifestação dos negros em volta do Santuário do Bom
Jesus em junho de 1888, conforme foi descrito no Capítulo I, para celebrar o término da
escravidão, foi um ato político consciente. E, sem que eles tivessem previsão das
consequências dessa manifestação, o evento se tornou um ato político fundador do
território quilombola.

A economia nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal

A agricultura, a pesca e a criação são as fontes principais de sustento dos quilombolas


de Rio das Rãs e Mangal. Tais atividades produtivas são reproduzidas numa economia de
base familiar e de forma complementar ao longo do ano e dos ciclos produtivos.
Nos últimos seis anos, o Programa Bolsa Família e as Aposentadorias Rurais se
tornaram importantes fontes de renda nos dois quilombos, contribuindo para o surgimento
de atividades de comércio e serviços que incluem pequenos armazéns, padarias,
mercadinhos e o abate regular de gado bovino para o consumo local. O deslocamento de
jovens e adultos de Mangal e de Rio das Rãs para o corte de cana e o trabalho assalariado
em fazendas capitalistas do Oeste baiano, Goiás e São Paulo é outra fonte de receita. E
completa o mosaico da economia quilombola, a renda enviada pelas famílias de Rio das
Rãs que se mudaram para São Paulo no auge do conflito pela posse da terra, entre as
décadas de setenta e noventa do século passado. Os familiares desses quilombolas que
recebem esses recursos investem na compra de gado que será cuidado pelos parentes que
não migraram.

180
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade, p. 331.
181
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In ORTIZ, 1994, p. 15
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
79

Agricultura de sequeiro

A agricultura é a mais destacada das atividades econômicas nos quilombos de Rio das
Rãs e Mangal. Nos períodos das chuvas regulares que incidem na região, entre os meses de
outubro e março, os quilombolas plantam feijão macassar, milho, mandioca, abóbora e
melancia nas partes altas de suas terras (capão) às margens de Rio São Francisco. O êxito
dessa modalidade de agricultura, chamada de sequeiro, “depende de chover no tempo
certo”, isto é, logo depois da preparação do solo em outubro e nos meses subsequentes.
Somente assim, é possível garantir a germinação, o crescimento e a floração das plantas. Os
três principais plantios da agricultura de sequeiro são o feijão, a mandioca e o milho,
fundamentais para a alimentação das famílias ao longo do ano e para complementar, no
caso do milho, a ração das galinhas e dos porcos no período de estiagem, entre junho e
novembro.
O segundo fator para o êxito da agricultura de sequeiro é a disponibilidade de mão de
obra familiar. Cada unidade familiar precisa dispor de muitos braços e disposição para
preparar o solo em uma área de terra suficiente para suprir as necessidades de alimentação
da família. Essa mão de obra será também fundamental para cuidar das plantas na fase de
crescimento, combater as doenças e pragas eventuais, e “colher no tempo certo”.
A unidade familiar precisa, também, dispor de sementes. Normalmente, o agricultor
previdente reserva, da safra anterior, uma quantidade de grãos para o plantio do ano
seguinte, já que não é costume entre eles comprar, no mercado, sementes melhoradas ou
selecionadas para o plantio de sequeiro. Serão enormes as perdas na safra de sequeiro
quando acontece que no momento decisivo do plantio o produtor não disponha de sementes
suficientes para a área preparada previamente.
O último fator para o sucesso do plantio de sequeiro é a não incidência de alguma
praga desconhecida da experiência dos quilombolas ou a indisponibilidade de defensivos
para combatê-las. Não é incomum a adoção de práticas mágicas (rezas, simpatias e
trabalhos encomendados a curadores) para proteger as plantações. Esse recurso pode ser
adotado para proteger as roças contra o ataque de olho grande, inveja e quebranto, como
também para combater pragas e doenças que se supõe terem sido causadas de forma natural
ou por terem sido enviadas por alguém com má intenção.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
80

Agricultura de vazante

A agricultura de vazante é a outra modalidade que complementa o ciclo produtivo


agrícola dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal.
A vazante nas margens do Rio São Francisco é o resultado do movimento ocasionado
pelas cheias anuais deste rio em decorrência das chuvas regulares de outubro a março em
toda a bacia do rio. O solo da vazante é irrigado e adubado pelo referido movimento de
cheia e vazão, tornando-se propício para o plantio de ciclo curto. A vazante se torna mais
apropriada para os quilombolas plantarem quando as precipitações pluviométricas
correspondem às suas expectativas de terem sido suficientes para molhar as terras planas
marginais ao rio e as ilhas que são cobertas pelas águas barrentas do São Francisco. Tal
movimento proporciona o depósito de grande quantidade de matéria orgânica que fertilizará
o solo.
A partir de abril/maio, quando o rio São Francisco e seus afluentes começam a
esvaziar, as terras alagadiças da vazante vão, aos poucos, sendo preparadas e reservadas
para o plantio. Pela fertilidade do solo e a garantia de umidade durante o ciclo produtivo
das plantas, as vazantes ou alagadiços são as áreas de terra em que os produtores mais
confiam para o sucesso da produção agrícola. Nessas áreas costuma-se plantar feijão de
arranca ou feijão carioquinha, milho, mandioca, e, secundariamente, abóbora, melancia,
quiabo e hortaliças.
A produtividade agrícola nas áreas de vazante é mais elevada, mesmo que o tamanho
dos lotes seja menor do que os de sequeiro. A mandioca de vazante, por exemplo, tem um
ciclo de cerca de seis meses, em virtude da fertilidade e a umidade do solo, diferente das
áreas de sequeiro, em que se colhe com mais de um ano de plantio, quando não acontece
uma seca mais prolongada que possa causar a perda de toda ou de parte da plantação. Por
essa razão, o plantio de vazante é o mais valorizado para os quilombolas de Rio das Rãs e
Mangal.
Os quilombolas de Rio das Rãs que ficam situados em áreas mais distantes do Rio
São Francisco, como os que ocupam as localidades de Capão do Cedro, Enchu, Mocambo,
Retiro e Riacho Seco, não costumam plantar, em função das distâncias, nas vazantes do São
Francisco. Dessa forma, eles tentam compensar essa limitação geográfica, reforçando a
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
81

agricultura de sequeiro com o plantio de áreas mais extensas. Além de cultivar uma área
mais extensa no sequeiro, eles complementam a atividade agrícola com o plantio na
limitada e estreita faixa de vazante do rio das Rãs (ver mapa). A alegação de não terem
lotes na vazante do São Francisco é de que a distância de trinta a quarenta quilômetros não
compensa cuidar de plantações nas ilhas e margens do rio.
Mas, o fato de haver solos mais férteis e a umidade garantida pela cheia do rio S.
Francisco não garantem, a priori, que as colheitas da vazante serão exitosas. Acontece
muitas vezes o rio esvaziar rapidamente e os quilombolas serem obrigados a plantar para
aproveitar a umidade. Neste caso, o rio não voltando a encher, pode-se ter uma boa safra.
Mas, pode acontecer de o rio vazar e voltar a subir, em um curto espaço de tempo, o que
depende da regularidade e intensidade das chuvas nas nascentes do São Francisco; nesta
situação, toda plantação pode ficar inundada e as perdas são totais. Quando ocorre o
agricultor dispor de mais sementes e mão de obra para fazer um novo plantio, há
possibilidade de reduzir as perdas com mais trabalho.
Outro fator que pode prejudicar os resultados de uma safra na vazante é o ataque de
pragas, ratos, gafanhotos ou o crescimento desordenado de alguns tipos de capim que
inibem o crescimento das plantas. Como ultimamente tem sido mais rigorosa a fiscalização
no uso de agrotóxico no rio São Francisco, a vulnerabilidade aumenta nos plantios de
vazante.
Do que foi possível constatar nos últimos dezesseis anos de observação nos dois
quilombos, os quase dois terços das seiscentas famílias de quilombolas de Rio das Rãs,
exceto as que moram nas localidades do Mucambo, Capão do Cedro e Enchu, que são
distantes do São Francisco, (Ver mapa de Leonaldo Carvalho na página seguinte) e a
totalidade das cento e cinquenta famílias de Mangal consideram que a agricultura da
vazante é a mais confiável para a sustentação de suas famílias.
A área plantada em Mangal e Rio das Rãs – entre dois a cinco hectares por família –
não é tão significativa ao se comparar com os padrões de uma agricultura comercial,
mesmo que seja de perfil familiar. A média de área plantada, sobretudo em Rio das Rãs, no
passado já foi, contudo, maior.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
82
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
83

A fracassada experiência nos últimos dez anos de crédito bancário para o plantio e a
criação de gado, em Rio das Rãs e em Mangal, tendo como consequência o endividamento
geral dos moradores dos dois quilombos, parece ter influenciado negativamente a
motivação para se aumentar à área plantada.
Antes dessa experiência de financiamento bancário para a criação de gado bovino,
quando os territórios quilombolas não tinham ainda sido titulados, somente os antigos
vaqueiros e empregados tinham permissão para criar. Tratados como “agregados”, a maior
parte não podia criar gado bovino.
Embora a experiência de criação de gado bovino tenha sido um fracasso, por ter
resultado na inadimplência generalizada dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal, aquelas
famílias que souberam utilizar os empréstimos de modo mais prudente conseguiram formar
um rebanho expressivo. Hoje, é possível tomar leite fresco nas duas comunidades
praticamente todos os dias, e uma vez ou mais por semana se abate gado para a
comercialização de carne fresca nos dois quilombos. No mês de junho de 2009, em que
estive em Rio das Rãs para complementar a minha pesquisa de campo, em um só dia, fui
convidado para duas festas em que o prato servido era justamente o churrasco. Nos trinta
dias em que permaneci em Mangal, tive a oportunidade de ser convidado para comer
churrasco uma vez. Esses dois exemplos são significativos, pois não era tão comum o
consumo de carne de gado fresca, a não ser em ocasiões muito especiais, como na
comemoração dos 100 anos do Sr. Chico Tomé, em 1994, ou na festa para a entrega do
título da terra de Rio das Rãs, em 1989. Esses exemplos indicam o aumento do consumo da
carne de gado e é também um expressivo indicador da melhoria da renda dos quilombolas.
Porém, o aumento do poder de compra dos quilombolas, entretanto, de acordo com a
minha hipótese, não decorre principalmente da elevação da produtividade na agricultura, e
sim de outros fatores econômicos que serão explicitados a seguir.
Mesmo havendo uma diminuição geral da área plantada no quilombo de Rio das Rãs,
e sendo notável a diminuição da importância da agricultura na economia do quilombo,
nota-se uma enorme discrepância no tamanho das áreas plantadas e quanto aos cuidados
dispensados às roças. Ao tentar entender as motivações dos quilombolas para cuidar de suas
roças, cheguei à conclusão de que o interesse deles pela agricultura está vinculado aos
diferentes e conflitantes códigos morais e culturais que circulam no quilombo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
84

O Sr. Celso Nunes de Souza (78 anos), um dos mais antigos e respeitáveis moradores
do quilombo, embora atribua aos dirigentes da Associação Agro-Pastoril Quilombola Rio
das Rãs parte da responsabilidade pelo desânimo generalizado em se investir mais na
agricultura, por estes serem considerados os principais responsáveis pelo endividamento da
comunidade junto aos bancos, por outro lado, não poupa os próprios quilombolas pela falta
de iniciativa em expandir as suas áreas cultivadas. Diz ele:

“De bom nós só tem as casa e a terra. Que a terra taí liberada, só falta quem trabalhe. Que tem gente aí
que... Gente moderna, pai de famia, que passa o dia inteirinho deitado não quer fazer nadinha. Não sei
nem como é que veve aí não.”

No depoimento do Sr. Celso Nunes, compartilhado por muitos da comunidade, o


endividamento junto aos bancos não pode ser justificativa para que as famílias não
explorem o potencial agrícola que as terras do quilombo oferecem. Para ele, parte da
responsabilidade pela má administração dos empréstimos, de fato, é da Associação; porém,
não se deve isentar os associados que contraíram empréstimos e não tiveram, segundo as
suas palavras, a “responsabilidade” e o “compromisso” firmado coletivamente de aplicar
corretamente o dinheiro recebido para o plantio e a criação de gado. Caso isso tivesse
acontecido, os empréstimos teriam sido saldados, inclusive os que ele contraíra.
Coincidentemente, os que fazem essa avaliação são os que mais se destacam na
comunidade pelo tamanho de suas roças; pelo maior número de cabeças de gado que
possuem e o visível zelo que dispensam às suas residências. Essas pessoas são vistas com
deferência e distinção no quilombo pelos bens materiais (gado, animais de montaria, roças
produtivas, móveis e eletrodomésticos) que possuem.
Por essa razão, é importante entender como essas pessoas adquiriram esses bens e
qual o valor moral atribuído ao trabalho no imaginário do quilombo de Rio das Rãs e
também de Mangal. Comecemos com a apreciação que o senhor Celso faz acerca de um
parente seu:

“Eu mermo tenho uns parente aqui, mora aqui pertinho aqui, um chama M. trata ele de M., parente por
parte de meu pai. Esse home tem uns fio [filho] aqui que num faz nadinha! Home tem um fio dele aí
que eu não sei nem como é que tá viveno. Porque só um fio sozinho, pegou uma muiézinha aí, já tem
cinco fio. E esse moço num tem nada. Recebeu essas vaca aí, num tem mais uma cabeça. E não faz
nada. Não planta um pé de abroba, não planta nem um pé de cabaça ela planta que é mais fácil. E eu
nem sei nem como tá viveno.”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
85

Mais adiante ele sentencia de forma categórica:

“Você vê a pessoa jovem, quando ele não quer trabaiá, ele dá... Ele alguma coisa ele vai dar. Ele dá pra
mentir ou dá pra roubar e é com certeza, que se ele num trabaia como é que veve? Ele tem de roubar
ou então mentir, adquirir as coisas com mentira.”

Esse ponto de vista do senhor Celso, é expressivo de uma idéia de que o principal
fracasso na lavoura é resultante da falta de investimento no trabalho como construtor de
riquezas. É uma avaliação que considera o trabalho o mais importante fator para o declínio
das atividades agrícolas no quilombo e, não necessariamente, o mau exemplo da
administração dos diretores da Associação.

Esta avaliação se assemelha aos


pontos de vista dos idosos mais
influentes de Rio das Rãs, quando ainda
estavam vivos, a exemplo do Chico
Tomé.
O senhor Chico Tomé (Foto ao
lado, de Adenor Gondim), assim se
referia, em uma entrevista concedida
para a minha dissertação de mestrado,
em 1997, a alguns moradores da
Brasileira que, segundo ele, não
gostavam de trabalhar: “O bebedor de
pinga só fica bebeno pinga, mas também
não faz nada também não. Fica só
bebeno pinga.” Era essa a idéia que vigia
no passado sobre aqueles que bebiam e
se recusavam a encarar o trabalho em
conformidade com as tradições culturais da comunidade de Rio das Rãs.
Ele condenava igualmente o trabalhador assalariado classificado por ele de
macaqueiro, isto é, aquele que vive de fazenda em fazenda vendendo o dia de trabalho. Do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
86

ponto de visto do senhor Chico, o assalariado equivalia a preguiçoso, em termos de


negatividade moral:

“Esta condenação do assalariamento (macaqueiro) como trabalho não honroso socialmente pode estar
também vinculado ao ideal de trabalho que privilegia as atividades que fortalecem os laços internos de
parentesco e coesão familiar.”182

Nos discursos dos quilombolas de Rio das Rãs o trabalho na roça familiar continua
sendo o principal referente para a reprodução social das famílias da comunidade, embora
sem a mesma ênfase do passado.
A diversificação na composição da renda familiar certamente contribuiu para a
redução das expectativas nas atividades da agricultura. A outra explicação é a de que os
jovens prefiram vender a força de trabalho nos canaviais do município de Barreiras, em São
Paulo e em Goiás, mesmo sendo o trabalho temporário, extenuante, perigoso e, portanto,
precário sob muitos aspectos, inclusive sendo comum o uso de drogas para aumentar a
resistência física. Os mais velhos, entretanto, argumentam que falta disposição para o
trabalho aos jovens que buscam o assalariamento nas fazendas fora do quilombo.
Geraldo Pereira da Silva (63 anos), de Rio das Rãs, não deixa dúvidas quanto à
importância do trabalho produtivo em sua roça: “o espírito [dos mais jovens] é fraco pra
trabalho [...] Ele prossegue, eu “tou com 61 anos, mas graças a Deus todo ano vinte, trinta
saco de feijão, quarenta saco de farinha eu tenho, todo ano.”
O sentimento de que o trabalho da roça seja o criador de riquezas e a base da
sustentação da família é parte de uma concepção cultural que considera indigno o indivíduo
dispor de terra ser obrigado a vender a sua força de trabalho para outrem. De conformidade
com essa perspectiva moral, os quilombolas, ao se receberem uma visita, devem dispor em
sua casa de algo para ser oferecido como fruto do seu trabalho. Quando a visita é
inesperada, a família deverá ter algum recurso de reserva, como uma galinha no quintal,
que será transformada em alimento para servir ao visitante. Neste caso, o trabalho é visto
como um valor que produz a riqueza mais básica, que é a alimentação.

182
SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs – liberdade e escravidão na construção
da identidade negra de um quilombo contemporâneo. Dissertação de Mestrado defendida na UFBA, 1997, p.
97.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
87

Por ter sido historicamente imprensado em uma estreita faixa de terra de cerca de 150
hectares, doada por Deltrudes no século XIX, história que será mais detalhada no Capítulo
V, os quilombolas de Mangal se acostumaram a plantar quase exclusivamente na vazante e
reservar a criação para os capões mais altos da caatinga.
Em Mangal, em virtude da exiguidade das terras e do curto tempo disponível entre o
plantio e a colheita no plantio de vazante, os lotes são pequenos, alguns não chegam a um
hectare. Mas, pela extraordinária fertilidade das terras a produtividade é elevada, e é nesse
espaço que os quilombolas plantam feijão, mandioca e milho, as culturas mais importantes
para o sustento de suas famílias.
Nos quintais das residências do povoado, onde foram construídas as escolas e as
poucas casas de comércio do quilombo, eles plantam mandioca de sequeiro para ser
transformada em farinha. Sobressai também, nos quintais, uma enorme variedade de
fruteiras, a exemplo de mamão, manga, acerola, banana, hortaliças, plantas medicinais e de
proteção contra mau olhado e feitiço, assim como uma grande variedade de plantas
ornamentais.
Impressiona o zelo com que as mulheres do Mangal cuidam desses quintais. Na
minha estadia na comunidade, durante o mês de junho de 2009, em um período
marcadamente seco na região, tomei suco quase todos os dias na casa do meu hospedeiro.
Isso não é comum em Rio das Rãs, mesmo depois da instalação de uma rede de água
encanada abastecida por poços artesianos.

Criação

No passado, os fazendeiros não permitiam que os “agregados” de Rio das Rãs


Mangal criassem gado. Naquela época, os fazendeiros, além de restringir a criação,
sobretudo de gado bovino, aos empregados da fazenda e aos vaqueiros, impediam a
construção de casas de alvenaria e a sua cobertura com telhas de cerâmica, o cercamento
das roças com arame farpado, entre muitas outras restrições.
Os quilombolas passaram a ter contato com a criação de gado, quando nos períodos
de cheias do Rio São Francisco, na condição de “agregados”, eram obrigados a trabalhar
sem remuneração por seis dias, para limpar o corredor (conhecido também como
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
88

vaquejador) a fim de facilitar a transferência do gado da vazante para as pastagens situadas


nas terras altas da caatinga.

Quintal no Mangal

No tempo do vaquejador, como eles ainda costumam referir, era a oportunidade de os


quilombolas de Rio das Rãs se alimentarem com carne de gado, pois os fazendeiros
autorizavam seus encarregados a “dar comida para o povo”, gesto lembrado pelos mais
velhos como algo bom na vida de “agregado”.
Na experiência de agregacia de Mangal, os quilombolas eram impedidos também de
criar gado nas “terras doadas pela santa”, que eles ocupavam. Os vaqueiros e encarregados
da fazenda, do mesmo modo que em Rio das Rãs, eram recrutados entre os quilombolas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
89

que se tornaram “agregados”. Em comparação com os quilombolas de Rio das Rãs, eles não
precisavam fazer vaquejador, pois a topografia do Mangal não permitia ser o gado criado
nas vazantes expostas às cheias.
A criação e o manejo de gado bovino em larga escala pelo conjunto dos quilombolas
de Rio das Rãs e Mangal, portanto, ocorreram após os conflitos que redundaram na
titulação de suas terras.
Após as terras serem legalizadas, foi possível às Associações de Rio das Rãs e
Mangal ter acesso aos empréstimos bancários e à consequente compra de uma grande
quantidade de gado bovino. Somente para se ter uma idéia, “a comunidade de Rio das Rãs
constituiu um rebanho, em pouco mais de dois anos, desde o fim do conflito com o
fazendeiro invasor, de aproximadamente 10,5 mil cabeças de gado, aí incluído o gado dos
moradores que não foram mortos no período do conflito.”183
A criação de gado bovino em tão larga escala resultou em um desgastante processo de
enfraquecimento da Associação. Primeiro, porque os criadores individuais que compraram
gado não saldaram as suas dívidas e, com isso, toda a responsabilidade recaiu sobre a
Associação, que era a avalista das compras. Segundo, uma parte do rebanho era
administrada pela própria Associação, com a finalidade de fazer capital para reinvestir na
comunidade em atividades que fortalecessem a sua economia. Esse modelo centralizado,
além de ter fracassado por dificuldades de administração, de acordo com inúmeras
avaliações dos próprios quilombolas das quais tive a oportunidade de participar, entre 1999
e 2003, favoreceu o aparecimento de ladrões de gado. Resultado: a Associação e os
quilombolas de Rio das Rãs, ainda hoje, estão impedidos de tomar empréstimos ou fazer
qualquer outra transação bancária.
Embora o ambiente social estivesse no ano de 2009 mais distensionado, tive
oportunidade de presenciar momentos de grandes tensões e tumultos envolvendo acusações
entre os quilombolas e, sobretudo, contra as diretorias da Associação que administraram o
período compreendido entre 1998 e 2008.
No quilombo de Mangal/Barro Vermelho, essa mesma orientação de comprar gado
em larga escala foi adotada depois que suas terras foram tituladas em 1998, logo depois de

183
Silva, Valdélio Santos. Os novos desafios dos quilombos contemporâneos. Revista CEPAIA Realidades
Afro-Indígenas. Centro de Estudos das Populações Afro-Indo Americanas, Ano 1, V. 1, Nº 1, dezembro de
2001, p. 71.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
90

Rio das Rãs ter conquistado esse direito. Influenciado pelo mesmo técnico agrícola que
elaborou o modelo de administração do rebanho adotado em Rio das Rãs, uma parte do
gado era entregue individualmente a cada quilombola e a outra parte era criada
centralizadamente pela Associação. Mas, em Mangal, não houve a ocorrência de roubo de
gado.
O quilombo de Mangal não se livrou, entretanto, dos mesmos problemas com o
modelo de administração que fracassara em Rio das Rãs e, assim, foi inevitável que a
inadimplência atingisse todos os quilombolas, já que a Associação fora, da mesma forma, a
fiadora das aquisições individuais. A vantagem de Mangal é que eles ainda dispõem de uma
boa quantidade de gado de propriedade da Associação que, segundo o seu presidente,
Deraldo Lobo dos Santos, é suficiente para saldar o total ou parte considerável da dívida
contraída com o Banco do Brasil, ao contrário da Associação de Rio das Rãs, que não
possui mais nenhum bem que possa oferecer numa negociação com os credores.
O gosto pela criação de gado bovino em Rio das Rãs e Mangal, ainda que tenha sido
marcado por esse processo conflituoso, terminou se estendendo para praticamente todos os
moradores nos dois quilombos, e o gado é parte das paisagens nesses quilombos.
Deve-se assinalar que, mesmo durante a fase na qual Rio das Rãs era tido pelo
fazendeiro como um povoado de “agregados”, uns poucos moradores mais precavidos e
corajosos criavam algumas cabeças de gado.
Esses indivíduos tinham sido vaqueiros do fazendeiro ou simplesmente pessoas que
queriam desafiar as imposições de não se criar gado bovino no território que diziam lhe
pertencer. Nos momentos mais críticos dos conflitos pela posse da terra, entre as violências
cometidas contra os quilombolas, era comum a matança do gado dos que tentavam desafiar
o fazendeiro.
Cessados os conflitos, a criação de gado se disseminou em Rio das Rãs e em Mangal.
A maior parte dos moradores das duas comunidades tem a sua “vaca de leite”. Alguns
possuem um rebanho maior, de 20, 30 e até 80 cabeças de gado. Outros possuem apenas
uma vaca e poucos novilhos, o que é suficiente para terem leite fresco nos períodos de
maior abundância de pasto.
Além do gado bovino, é significativa a criação de caprinos e ovinos em Mangal/Barro
Vermelho. No quilombo, a maior parte das famílias tem um pequeno rebanho que é cuidado
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
91

pelas mulheres, de acordo com os hábitos locais, diferente do gado bovino manejado
exclusivamente pelos homens.

Deraldo Lobo dos Santos

Em Rio das Rãs, a criação de ovinos e caprinos é residual, com um rebanho que não
deve ultrapassar 100 animais, é circunscrita à localidade de Retiro. A explicação dos
quilombolas da comunidade para o pequeno rebanho é que a criação de caprinos e ovinos
exige a construção de cercas de arame reforçada por um madeirame que proteja as roças
dos animais, porém, não tem havido consenso entre os quilombolas para construir tais
cercas. Como a entrada de cabras, bodes e ovelhas nas roças já foi ensejadora de conflitos
entre vizinhos, a opção foi reduzir drasticamente a criação desses animais, com exceção da
localidade do Retiro, (Ver mapa de Leonaldo Carvalho na página seguinte) que fica em
uma área mais afastada dos principais povoados de maior concentração dos moradores do
quilombo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
92

A atitude do fazendeiro Carlos Bonfim, de devastar as florestas nativas em Rio das


Rãs, antes das terras serem desapropriadas, também contribuiu para a redução da criação de
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
93

pequenos animais, conforme a opinião de dona Maria Arcanjo Xavier, da localidade de


Enchú, em Rio das Rãs:

“Olhe Valdélio, [no passado] era melhor porque a gente tinha o privilégio de criar cabra, ovelha, o
mesmo tempo nas frentes das casas, porque era aquele cercado. Depois que o Carlos Bonfim chegou
aqui, foi destruindo a madeira, como você tem conhecimento disso, foi tirada. Hoje não [tem] nem
como contar as carretas de madeira que ele tirou. Então nós sabemos que a madeira aqui mais forte,
pra aguentar o quintal, dificuldade de carregar tanta pra cercar é aroeira, então foi essa que mais ele
tirou daqui de nós, foi essa madeira.”

A esse depoimento para explicar o declínio da criação de caprinos e ovinos em Rio


das Rãs, devem ser acrescidos a falta de “entendimento” entre os próprios quilombolas, os
conflitos interpessoais e as lutas pelo poder no quilombo, acentuadas nos últimos tempos
com a criação da Associação.
Em Mangal, onde as principais roças dos moradores se localizam na vazante do Rio
São Francisco, ao contrário de Rio das Rãs, por conseguinte, havendo uma separação
natural do espaço de plantio e o da criação, as cabras, bodes, carneiros e ovelhas, porcos e
galinhas se desenvolveram praticamente no interior do povoado que concentra a população
do quilombo.
A criação de caprinos e outros pequenos animais em uma economia de perfil
camponês, como em Rio das Rãs e Mangal, é de grande importância para enriquecer a dieta
alimentar e equilibrar também a poupança familiar. O bode, a cabra, o carneiro, a ovelha, a
galinha, a conquém e o porco podem ser abatidos para alimentação da família, servirem em
uma refeição especial como homenagem a algum convidado, em um banquete de um
casamento ou batizado de um parente mais próximo, ou simplesmente são vendidos, com a
finalidade de financiar algum compromisso de última hora, como uma viagem ou uma
doença repentina. Neste caso, a criação miúda serve como uma poupança típica a ser
acionada nos momentos de necessidade.

A pesca

A pesca em Mangal e em Rio das Rãs é outra atividade de grande peso na economia
destes quilombos. Como os quilombolas destas comunidades sempre viveram às margens
do Rio São Francisco, a atividade pesqueira tornou-se parte de uma tradição que vem dos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
94

ancestrais das atuais populações. Ainda que a piscosidade do São Francisco tenha
diminuído, por uma série de fatores184, e o número de pescadores nos dois quilombos seja
relativamente pequeno, comparativamente ao número de produtores que se dedicam à
agricultura, isso não implica que a pesca seja menos importante para a economia e a
alimentação dos quilombolas. O peixe, além de ser uma fonte de proteínas
comparativamente mais barata – os custos de produção incluem anzóis, linhas, redes,
canoa, tempo e a mão de obra –, é uma alimentação muito apreciada por todos.

Criação de caprinos e ovinos em Mangal

184
Técnicos, governantes e os próprios pescadores atribuem a diminuição da quantidade de pescado no Rio
São Francisco a fatores como a intensidade da pesca comercial em períodos de piracema, malgrado a intensa
fiscalização do IBAMA, a poluição do rio com o crescente despejo de dejetos urbanos, acentuada atividade de
irrigação que estaria diminuindo o volume de água do rio e de seus afluentes, além do assoreamento da calha
principal, em virtude do desmatamento das margens e nascentes do São Francisco e seus afluentes. Nem
sempre há acordo entre os sujeitos envolvidos quanto à solução desses e outros problemas identificados
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
95

Mas, a arte de pescar não é fácil nem simples, muito pelo contrário, é uma atividade
desgastante e perigosa185. A pesca envolve também um grau de incerteza e risco muito
grande para os que prioritariamente a ela se dedicam.
Em Rio das Rãs existem cerca de quarenta pescadores profissionais ou com uma
ênfase maior na atividade de pesca: são indivíduos que possuem uma quantidade maior de
tralha de pesca (barco, redes variadas, locais apropriados para acondicionar o pescado) e
que pescam com regularidade, comercializando o pescado na comunidade e para
compradores de fora. Além dos pescadores considerados “profissionais”, os demais
quilombolas fazem da pesca uma forma de atividade para complementar a dieta alimentar.
A pesca nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal é realizada tanto no rio São
Francisco como também nas lagoas. Em Rio das Rãs, onde existem imensas e maravilhosas
lagoas, a safra de peixe, a depender da cheia do rio São Francisco, pode ser abundante.

Lagoa da Piranha, Rio das Rãs

Embora os pescadores avaliem ter diminuído consideravelmente quantidade de


peixes, tanto nas lagoas como no rio, não é incomum o surgimento “misterioso”, em
185
São muito conhecidas na região as lendas envolvendo pescadores. Entre outras, fala-se das dificuldades
em se lidar com as correntezas do rio, os ataques de piranhas e dos jacarés.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
96

determinados anos, de uma grande safra a surpreender a todos, sobretudo nas lagoas, como
aconteceu em 2007, após uma generosa cheia do rio São Francisco. Neste ano, o jovem
pescador de Rio das Rãs, Domingos Nunes de Souza (35 anos), exultava de alegria com a
fartura da pesca:

“Ela tá boa sim. Ela tá mais ou menos... Ela tá oitenta por cento bom. Porque todo lugar que você tá,
você tem peixe. Você tá no rio tem peixe, tá na lagoa, tem peixe. Tá mais ou menos oitenta por cento.”
E – Mas não tava tão bom algum tempo atrás não, né? Os pescadores com quem eu conversei
algum tempo atrás tavam se queixando muito. Isso melhorou já tem algum tempo ou foi esse ano
que teve uma cheia boa?
DNS – “Realmente foi esse ano agora pra cá que melhorou bastante. Porque teve uns anos atrás aí que
peixe tava ruim e mermo pra pegar. Difícil. Você pescava e num achava. E agora cum essa enchente
que deu aí, miorou bastante. Pega bastante peixe. Tá ruim só a vendage, o peixe ta ruim pra vender.
Sobre o preço.”

A fartura do pescado nas lagoas e no rio São Francisco impacta a economia dos
quilombolas com a comercialização do excedente, principalmente em Rio das Rãs, onde é
mais praticada a pesca profissional. A injeção de mais dinheiro no quilombo, com os lucros
dos pescadores profissionais, incentiva o comércio e as atividades de serviços. Por outro
lado, para quem tem a atividade pesqueira como complementar às outras atividades
produtivas, a abundância da safra de peixe diversifica e melhora a alimentação com
ingestão da proteína do pescado, que é saudável, mais barata e bastante apreciada pelos
quilombolas. Aos que não podem pescar, pela idade ou por não dispor das ferramentas de
pesca, o pescado em abundância tende a ser comercializado internamente a baixos preços, o
que não aborrece os pescadores profissionais, como Domingos.186 Como ele e os demais
colegas pescadores não vivem somente da pesca, a redução nos preços é compensada com
as outras atividades da roça e da criação. Domingos explica porque ele tem que desenvolver
outras atividades, além da pescaria:

“Não dá não. Porque tem o medicamento, tem outras coisa que precisa. O peixe não dá. Por dia eu
pego oito quilo de peixe. Aí chego vendo ele aqui. Oito quilo de peixe, só dá mermo pra comprar

186
Em maio de 2007 os preços praticados pelo referido pescador eram os seguintes: Traíra R$2,50 o quilo;
Surubim e Dourado R$3,00; Curimatá, R$2,00. Estes preços eram válidos para os comerciantes de Palmas do
Monte Alto, Guanambi, Bom Jesus da Lapa, Matinas e Riacho de Santana, que pegavam a mercadoria na
comunidade. Para isso, o mais comum é que os pescadores estoquem o pescado de alguns dias de trabalho em
um freezer para serem entregues aos comerciantes. A venda interna na comunidade era também com esses
preços, mas quem costuma vender para os moradores do quilombo são os pequenos pescadores que não
possuem freezer e vendem o peixe in natura, e por esse motivo, não estão categorizados como “profissionais”.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
97

alguma coisinha. Realmente só mermo pra ajudar. A pescaria falar que dá pra sustentar a casa num
dá.”
E – Além da pesca, então, o que é que você faz pra manter a família?
DNS – “Trabalhar a roça.”
E – Você planta o que, diga aí?
DNS – “Lá eu planto feijão, planto milho, planto abobra, melancia, todos... Planto mandioca. Esse ano
mermo eu plantei meio hectare de mandioca. A água de cheia foi que comeu. Mas eu plantei meio
hectare de mandioca. Mas todo ano eu planto. Que é as coisas que ajuda as despesa da casa, sabe?”

Do depoimento de Domingos, duas observações se fazem necessárias: os quilombolas


de Rio das Rãs definem como estratégia de sobrevivência uma atividade produtiva
prioritária, de acordo com a experiência cultural de cada família nuclear; mas, essa
prioridade não implica deixar de desenvolver outras atividades que complementem a renda
da família. Em termos mais concretos: a maior parte das famílias do quilombo de Rio das
Rãs pratica a agricultura como atividade principal, mas todas as famílias que tenham
disponibilidade de mão de obra, algum capital e disposição para o trabalho produtivo no
quilombo, também desenvolvem a criação de bovino, caprino, ovino, suíno e aves. Além
disso, na época de fartura do peixe nas lagoas, os quilombolas pescam para complementar a
alimentação de sua família. Ainda há os que desenvolvem alguma modalidade de comércio,
como a venda de itens de consumo imediato e de cachaça e cerveja nos fins de semana.
Além do comércio, um número mais limitado de pessoas desenvolve atividades no
incipiente setor de serviços, como o transporte com moto-táxi e nos ônibus velhos que
fazem a linha Rio das Rãs/Bom Jesus da Lapa/Rio das Rãs. Os proprietários e motoristas
desses ônibus são do próprio quilombo.
A pesca no quilombo de Mangal é basicamente realizada no Rio São Francisco e
serve exclusivamente como complementação alimentar. Não há uma atividade de pesca
profissional, voltada para a comercialização de excedentes. A dificuldade de transporte
terrestre, em razão das péssimas condições das estradas, distância para as sedes de Sítio do
Mato e de Paratinga, inexistência de lagoas de grande porte, como em Rio das Rãs, e
diminuição do pescado no rio São Francisco, possivelmente, expliquem a pouca vocação
dos quilombolas para a atividade pesqueira profissional.
A agricultura, a criação e a pesca são, portanto, as atividades mais importantes e
típicas da economia dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal. Isso não impede, contudo,
que os sujeitos façam escolhas individuais entre as ações sociais econômicas mais
convenientes à sua experiência pessoal.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
98

O que se observa em Rio das Rãs e Mangal é que, no curso da vida social, as escolhas
no âmbito da economia e em outras dimensões ocorrem tanto por influência da sua história
cultural como também por iniciativa dos sujeitos que constroem sua história cotidiana. Os
quilombolas não desconhecem a força dos hábitos tradicionais, mas, procuram adaptá-los
às circunstâncias que melhor sirvam às suas necessidades reais.
Berger e Luckmann estavam atentos à força desses condicionantes: toda “atividade
humana está sujeita ao hábito. Qualquer ação frequentemente repetida torna-se moldada em
um padrão...”187 Para os referidos autores, ao desempenhar papéis que lhe são transmitidos
pela sociedade, o sujeito termina por reconhecer e incorporar a realidade do mundo social.
Numa perspectiva semelhante, Sorokin argumenta que a função da família é
justamente a de inculcar “incessantemente idéias e crenças, gostos e simpatias, maneiras e
costumes.”188 Do ponto de vista desses dois autores, a margem de liberdade dos sujeitos
está contida nas regras estritas construídas pela tradição, e não haveria, dessa forma, como
fugir a tais determinações. Sorokin ainda concede ao sujeito “certa margem de seleção entre
valores e significados, mas só pode escolhê-los e criá-los com os materiais que lhe
oferecem o seu ambiente social e cultural.”189
Essa despersonalização e a incapacidade dos agentes agirem conscientemente são
criticadas por Giddens. Para ele, os “agentes ou atores humanos [...] têm, como aspecto
inerente do que fazem, a capacidade para entender o que fazem enquanto fazem.”190 É
desse modo que se faz a escolha da melhor estratégia, a que mais convém para sobreviver,
mesmo que seja em um ambiente ecológico, social e cultural marcadamente influenciado
por uma experiência no qual seja evidente a força da tradição. Não há, portanto, a anulação
do indivíduo no fluxo da vida social. Há, sim, uma há compatibilização entre o que ele
aprendeu no decorrer da vida e o que ele pode criar para ser um agente ativo no processo
social. A concepção de poder proposta por Giddens tem exatamente o sentido de ser “capaz
de ‘atuar de outro modo’, significa ser capaz de intervir no mundo, ou abster-se de tal
intervenção, com o efeito de influenciar um processo ou estado específico de coisas.”191

187
BERGER, Peter L., LUCKMANN, Thomas. p. 77.
188 188
SOROKIN, Pitirim A. Sociedade, Cultura e Personalidade, p. 386.
189
Op. Cit. p. 533.
190
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade, p. XXV.
191
Idem, p. 17.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
99

É esse poder de agir em circunstâncias em que é possível fazer certas escolhas que
impulsiona os quilombolas de Mangal e Rio das Rãs, sobretudo neste último quilombo, a
buscarem a diversificação das atividades produtivas como estratégia mais apropriada para a
subsistência de suas famílias.
É importante assinalar que, historicamente, eles nunca entenderam as diferentes
atividades produtivas (agricultura, criação, pesca e coleta) como excludentes. Tais
atividades, de acordo com a experiência cultural que lhes foi transmitida pela tradição,
constituem uma totalidade articulada e complementar. Como os ciclos produtivos ocorrem
em tempos distintos ou numa simultaneidade em que é possível compatibilizar agricultura
de sequeiro de outubro a abril; agricultura de vazante, de maio a outubro; pesca no rio e nas
lagoas, entre julho e janeiro; e a criação durante todo o ano, ainda que a fase mais crítica da
alimentação do rebanho coincida com o período de seca, entre maio e novembro, as
escolhas das prioridades de cada família terminam tendo uma marcante influência do seu
aprendizado familiar, mas não anulam as habilidades individuais.
Foi desse modo que, mais recentemente, passou-se a criar gado bovino como uma
opção que não era tão significativa nessas comunidades. Neste caso, não há uma
contradição antagonizando os conhecimentos adquiridos pela experiência e a volição dos
sujeitos atuantes. Reitero, dessa forma, o argumento de Giddens: “o momento da produção
da ação é também um momento de reprodução nos contextos do desempenho cotidiano da
vida social...”192 Para o sociólogo inglês, a “estrutura não tem existência independente do
conhecimento que os agentes possuem a respeito do que fazem em sua atividade
cotidiana.”193
Para Giddens, seria ingenuidade pensar na idéia de volição incontida dos agentes. Isto
porque, ao mesmo tempo em que reconhece o papel do indivíduo no processo social, ele
condiciona e restringe a sua ação ao que lhe é “permitido” pelas circunstâncias históricas. É
desse modo que ele parece interpretar o famoso aforismo de Marx: a “tradição de todas as
gerações mortas pesa como um pesadelo sobre os cérebros dos vivos.”194 Para Giddens, que
parte da premissa de que os agentes são seres cognoscitivos, eles “possuem um

192
GIDDENS, p. 31.
193
Idem, p. 31.
194
Marx, Karl. O 18 Brumário de Luiz Bonaparte. In: Marx, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos. V. III. São
Paulo: Edições Sociais, 1977.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
100

considerável conhecimento das condições e consequências do que fazem em suas vidas


cotidianas”195; as coerções estruturais “constituem apenas um tipo entre muitas outras
características da vida social humana.”196
A evidência desse postulado de Giddens é ilustrativa para se entender a diferenciação
social verificada em Rio das Rãs e Mangal. Essa diferenciação não chega a agrupar os
indivíduos em classes econômicas distintas, no sentido marxista. Elas se expressam
concretamente pela posse individual de bens materiais como televisão, rádio, geladeira e
móveis. Os possuidores desses bens se destacam por tomar iniciativas individuais em um
espaço social onde, em tese, todos possuem condições iguais de ação: o pasto nativo para a
criação de gado bovino é acessível a todos (ainda que cada produtor individualmente possa
plantar capim de melhor qualidade para o seu uso privado); os pequenos lotes da vazante
são acessíveis a quem precise plantar; as áreas de sequeiro podem ser desbravadas por
quem queira ampliar sua roça; e as lagoas e os rios são também de acesso comum.
Desse modo, como explicar a existência de indivíduos com status diferenciados em
Rio das Rãs e Mangal? Na vida social dos dois quilombos, destacam-se os que adotam
estratégias familiares que atribuem maior valor ao trabalho na roça, no campo, nos lagos e
rios; assim, essas famílias terminam acumulando uma quantidade maior de bens através do
trabalho. Dispor de uma maior quantidade de grãos, por exemplo, resultado do seu trabalho
nas roças de sequeiro e vazante, confere ao seu possuidor a liberdade de vender o excedente
no mercado. É com a venda desses excedentes que os produtores compram os bens duráveis
para a sua residência, como todos nós fazemos na vida urbana, quando o nosso salário
permite ser convertido em bens de consumo que nos dão a sensação de conforto e melhora
na qualidade de vida.
Mas, quando os quilombolas de Rio das Rãs convertem o trabalho em bens de
consumo, a exemplo de móveis e outros, estes são transmutados automaticamente numa
espécie de capital simbólico, no sentido proposto por Pierre Bourdieu. Os seus portadores
passam a ter uma condição privilegiada. A razão desse prestígio maior em Rio das Rãs para
os que adquirem bens industrializados se explica pelo fato de que nessa comunidade, onde
quase não há assalariamento e, portanto, pouca circulação monetária, a aquisição dos

195
GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade, p. 331.
196
Idem, p. 333.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
101

referidos bens é vista como resultante do trabalho produtivo ou de uma dádiva especial
concedida por forças espirituais. Nos dois casos, a tendência desses indivíduos é a de serem
vistos de maneira reverencial. A elevação do status não é pelos bens materiais em si, que
eles possuem, e sim como consequência de que os seus possuidores os adquiriram através
do trabalho da roça, da criação de gado, de sua atividade pesqueira, pelos dons que
possuem ou como resultado do conjunto dessas virtudes.
Portanto, é o trabalho (manual e espiritual) que, em última instância, termina sendo o
componente mais destacado, do ponto de vista moral, para elevar o prestígio social dos
indivíduos. Os que “melhoram de vida” mediante o trabalho, passam a ser encarados como
pessoas respeitáveis e merecedoras de elevada honra, ainda que essa condição de
respeitabilidade não os isente de serem vítimas da inveja, da feitiçaria e de todo tipo de
energia negativa.

Outras atividades econômicas nos quilombos

A descrição das atividades econômicas nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, de
forma segmentada (agricultura, criação, pesca, comércio e serviços), resulta da intenção de
mostrar como se organiza a subsistência dos sujeitos e como as atividades estão distribuídas
no espaço físico do quilombo. Na prática cotidiana elas não são, como pode parecer,
fragmentadas e tampouco independentes entre si.
Na vida real quem comanda o “planejamento econômico” é o tempo que, por sua
vez, está intimamente associado ao espaço territorial e a imponderáveis aspectos ligados à
natureza, gerando: tempo da chuva, tempo da seca, tempo de plantar, tempo de pescar. Em
cada tempo, é possível compatibilizar aquilo que a natureza oferece com aquilo que os
indivíduos necessitam para se reproduzir fisicamente. Ao invés das atividades econômicas
fragmentadas orientarem as ações dos quilombolas para garantir a sua reprodução social –
como ocorre no meio urbano capitalista em que os assalariados são obrigados a vender a
sua força de trabalho para repor as energias de que precisam para se reproduzir –, o
indivíduo é orientado para a ação em sintonia com os fatores relacionados à natureza, o
tempo e o espaço, que oferecem as coordenadas de como ele deve agir.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
102

De acordo com essa lógica, não adianta planejar abstratamente se naquele ano será a
agricultura, a pecuária ou pesca a sua prioridade, em sua estratégia de reprodução.
Teoricamente, as três atividades, articuladamente, devem ser consideradas, e vai depender
de variáveis que os indivíduos não controlam completamente. Será que a chuva no próximo
ano favorecerá o plantio de sequeiro? E virá no tempo certo? E se chover além do
necessário? Bem, no caso de chover bastante e prejudicar a lavoura, não ajudará a encher as
lagoas e, com isso, aumentar a fartura do peixe?
A previsibilidade da atividade produtiva, portanto, não se aplica a uma economia que
não depende muito do cálculo racional e nem de variáveis que possam ser controladas pela
tecnologia e as pretensas certezas matemáticas que se supõe orientar as ações no sistema
capitalista.
Além de ter uma economia com características camponesas, os quilombolas se
orientam também por tradições que os obrigam a colocar no primeiro plano tanto os
ensinamentos culturais dos seus ancestrais como também as suas crenças religiosas. Estas
crenças podem influenciar até mesmo a decisão do que deva ser a melhor opção, por
exemplo, do que se plantar naquele ano. Por conseguinte, é preciso atentar para a
complexidade do sistema econômico dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal.
Mencionei anteriormente que a experiência dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal
em fazer transações bancárias para compra de gado bovino não havia sido bem-sucedida.
Na verdade, essa experiência malogrou, por ter provocado o endividamento dos moradores
e contribuído para dividir politicamente as lideranças, sobretudo em Rio das Rãs, mas,
também em Mangal, assim como por ter produzido um profundo desânimo em toda a
comunidade. Mas, as atividades de criação de gado foram inteiramente integradas aos
hábitos culturais e econômicos nos dois quilombos.
Nos últimos oito anos, é possível identificar algumas mudanças importantes na
economia dos dois quilombos. Os fatores que presumo influenciar essas mudanças são os
seguintes: os avanços verificados na educação, depois de cessados os conflitos pela posse
da terra; a introdução nos quilombos dos programas federais de distribuição de renda; e,
sobretudo, o deslocamento dos jovens para o corte de cana na região de Barreiras, na Bahia,
e nos estados de Goiás e São Paulo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
103

Educação e economia quilombola

O sistema de educação nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, até o início dos anos
dois mil, se caracterizava pela precariedade e pela improvisação. As escolas do ensino
fundamental funcionavam com pequenas turmas em espaços construídos de pau a pique, e
com professores leigos, alguns das próprias comunidades e, outros, provenientes da sede de
Bom Jesus da Lapa, no caso de Rio das Rãs, e de Sítio do Mato, no caso de Mangal.
A história da educação neste último quilombo é um pouco mais complexa, já que os
fazendeiros que controlavam as terras contíguas ao povoado dos mangazeiros permitiam,
desde a década de oitenta, que os filhos dos quilombolas fossem alfabetizados em uma
escola privada da fazenda. Esse apoio na escolarização das crianças de Mangal foi mais do
que suficiente para que muitos filhos dos quilombolas se deslocassem para Paratinga, após
a conclusão do ensino fundamental, para dar continuidade aos estudos. Esse trajeto levava
duas horas de canoa pelo rio São Francisco.
Com isso, mesmo durante o conflito pela posse da terra, o número de jovens de
Mangal que concluíam o segundo grau passou a ser considerável. Por essa razão, antes
mesmo do conflito pela posse da terra ter chegado ao fim, a educação no quilombo já
apresentava um diferencial: a maior parte dos professores era originária da própria
comunidade, ainda que ensinassem mediante contratos precários de prestação de serviços
da prefeitura de Sítio do Mato. Entre 2002 e 2003 eles conquistaram o direito de escolher a
diretora da escola, de elevado padrão arquitetônico, construída na comunidade pelo
Exército, com verbas do Ministério de Educação – MEC. Depois de 2004, o Ministério da
Educação financiaria mais uma unidade no Mangal, para abrigar as salas de 5ª a 8ª Séries
do Ensino Fundamental.
Em Rio das Rãs, um novo impulso foi verificado na educação, a partir da construção,
com recursos do MEC, de uma grande unidade escolar com 08 espaçosas salas de aulas,
bem ventiladas, cantina, secretaria e espaço de lazer.
Essa escola abriga os alunos do ensino fundamental e médio. Além disso, a Prefeitura
Municipal de Bom Jesus da Lapa promoveu uma intervenção no sistema de ensino que
alteraria completamente o perfil da educação no quilombo: unidades escolares de alvenaria
foram construídas para as séries iniciais do ensino fundamental nas localidades de
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
104

Brasileira, Retiro, Enchu, Capão do Cedro e Mocambo. Uma parte dos professores dessas
unidades, todos com o 2º grau completo e, alguns, com licenciatura plena, é originária do
próprio quilombo, e a outra parte vem da sede do município.

Praça principal de Paratinga

A grande unidade de ensino da localidade de Novo Rio das Rãs (Ver mapa de
Leonaldo Carvalho na página seguinte) concentra os alunos das séries iniciais, da 5ª a 8ª
Séries do Ensino Fundamental, turmas do Ensino Médio, de Aceleração e Alfabetização,
estas últimas no turno noturno. Ainda que a maior parte dos professores seja procedente de
fora do quilombo, é crescente o número dos que nasceram no quilombo e se formaram em
Bom Jesus da Lapa, retornando depois para ensinar em sua própria comunidade.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
105

Com a modernização na educação dos dois quilombos, é notável a repercussão desta


no âmbito da economia.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
106

Até a década de noventa, quando o sistema escolar era precário e cobria uma parte
pouco significativa da educação dos jovens, “muito cedo” as crianças e adolescentes
começavam a trabalhar na roça, na criação e nas atividades de pesca. Era comum a
mentalidade dos casais de desejarem ter filhos homens para ajudar os pais, “desde cedo”,
nas labutas pesadas da vida rural. Ainda acontece muitos filhos ajudarem os seus pais nos
afazeres da roça, mas isso ocorre apenas depois que eles cumprem as suas jornadas na
escola; alguns têm, inclusive, se recusado a desenvolver essas tarefas, quer por
incompatibilidade de horário, quer por falta de “vontade”.
Nos quase trinta dias do mês de junho de 2009 em que fiquei em Mangal, o filho
adolescente do meu hospedeiro que cursava o ensino médio em Sítio do Mato não foi uma
vez sequer ajudar os seus pais nos afazeres da roça. Em Rio das Rãs e Mangal, conversei
com crianças e adolescentes e notei ser visível a inclinação deles em absorver as ideologias
e representações dos centros urbanos modernos, segundo as quais “lugar de criança e
adolescente é na escola”, isto é, a primeira e mais importante obrigação das crianças e
jovens é sua formação escolar.
Em entrevistas realizadas com adolescentes de Rio das Rãs, em 2007, além de
incorporarem esse ideário, houve a identificação com profissões que não têm relação direta
com as atividades produtivas da vida rural. Para a jovem Aldeane (15 anos, em 2007), da
Brasileira, “precisamos estudar, essa é a forma de alcançar os nossos sonhos.” Do seu ponto
de vista, o ideal seria se formar para vir ensinar no quilombo ou ser uma secretária ou
mesmo uma advogada. Matildes (15 anos) gostaria de ser advogada também; Angélica (14
anos) quer cantar; Glecivaldo (16 anos), Miriam (16 anos) e Ronaldo (22 anos) gostariam
de ensinar.
Na mentalidade da nova geração do quilombo de Rio das Rãs, em grande parte
formada pela influência direta do que é transmitido pela TV, a Associação da comunidade
deveria oferecer opções de lazer e esporte para eles. Nota-se, enfim, um crescente
sentimento da especificidade de ser jovem e, por consequência, em serem tratados
diferencialmente no quilombo.
Em Mangal, recentemente, os jovens e adolescentes masculinos, após a aula, não
prescindem de um “baba” no final da tarde. As meninas vão aos bandos tomar banho no
Rio São Francisco. Pelo barulho que elas fazem, as troças dirigidas uma às outras e as
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
107

alegres brincadeiras e algazarras, certamente, o trabalho na roça não faz parte dessas
agendas de diversão e lazer.
Saliento a ocorrência de mudanças nos hábitos tradicionais dos dois quilombos que
consideravam no passado crianças e jovens peças fundamentais para a composição da força
de trabalho das famílias nucleares. As meninas, desde cedo, ajudavam as mães nas
atividades consideradas, na divisão do trabalho, relacionadas ao sexo feminino, como
limpar a casa, cozinhar, lavar pratos e roupas e cuidar dos irmãos menores. Os meninos, por
sua vez, desde cedo, ajudavam os pais nas atividades pesadas da roça, da pesca e da criação
de gado.
Crianças e adolescentes compunham um modelo em que todos os membros da família
nuclear participavam do esforço para a reprodução social. Muitas vezes, mesmo depois dos
filhos homens solteiros se casarem, eles contribuíam nas roças dos pais, a partir do
momento em que esses começassem a perder a vitalidade com o avançar da idade. Antes da
universalização das aposentadorias rurais, que estão provocando, igualmente, uma
importante mudança na mentalidade dos quilombolas mais velhos, os que não conseguiam
trabalhar na roça ficavam deprimidos e com um sentimento de inutilidade, por dependerem
exclusivamente dos filhos. Essa situação está se invertendo completamente, depois que os
idosos passaram a receber um salário mínimo fixo mensal e estão socorrendo os filhos que,
por ventura, passem por dificuldades, quando a produção de sua roça não é suficiente para
saldar os compromissos familiares.
Enfim, a oferta da educação em larga escala nos quilombos ajuda, por um lado, a
alargar os horizontes sociais dessas comunidades, que antes tinham elevados índices de
analfabetismo. Por outro lado, a escolarização em massa desorganiza completamente o
sistema produtivo tradicional, na qual era fundamental a mão de obra de todos os membros
da unidade familiar para potencializar a reprodução física e social da mesma. Avizinha-se,
por conseguinte, uma crise no sistema produtivo tradicional, nos dois quilombos, com a
descontinuidade na reprodução tradicional da força de trabalho, que se dava mediante a
formação dos rapazes nos ofícios da agricultura, da criação e da pesca, no interior das
unidades familiares; e, entre as meninas, com a complementação das atividades
relacionadas com os ofícios considerados apropriados às suas mães. Além disso, com o
crescente interesse dos jovens por atividades alheias ao mundo rural.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
108

Quem cuidará das roças dos seus pais, depois desses se aposentarem ou falecerem?
Mesmo que parte desses jovens se case com pessoas do próprio quilombo, o que parece ser
a inclinação mais forte, haveria interesse dos que terão uma maior escolarização em
desenvolver as atividades rurais tradicionais à base da enxada e da foice? Com mais de
trinta e nove mil hectares de terras em Rio das Rãs, para cerca de seiscentas famílias, e oito
mil hectares em Mangal/Barro Vermelho, para as cerca de cento e cinquenta famílias, quem
cuidará de tanta terra no futuro? Essas questões preocupam boa parte dos quilombolas.

O impacto nos quilombos dos programas federais de transferência de renda

Um outro elemento que influenciou a economia dos quilombolas de Rio das Rãs e
Mangal foi a introdução, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, de
políticas públicas para as comunidades de quilombos nas áreas de educação, infra-estrutura
(luz elétrica, água encanada, reparos e construção de estradas), saúde, previdência
(aposentadoria, pensão e salário maternidade), saneamento básico e apoio social às crianças
em idade escolar, através dos programas Bolsa Família e Erradicação do Trabalho Infantil.
Deve-se reconhecer, de antemão, o que de positivo esses programas trouxeram para
os quilombos: eles estimularam a permanência das populações quilombolas em suas terras e
consolidaram as ocupações centenárias dos territórios, pois são vistos na atualidade como
algo que lhes pertence e ajudaram, direta e indiretamente, a movimentar as economias
dessas comunidades e das sedes municipais mais próximas nos setores de comércio,
serviços e mesmo as atividades produtivas internas aos quilombos. Do ponto de vista
simbólico, há um notável sentimento de vitória, na medida em que os quilombolas se
sentem “vistos”, “reconhecidos”, isto é, se tornaram “visíveis” diante do Estado brasileiro.
Em Mangal, de um total de 150 famílias do quilombo, 95 recebem uma média de R$
90,00 por mês, do Programa Bolsa Família. E os aposentados, ao todo, são 25, recebem
cada um R$ 465,00 por mês. Como se pode observar, somente estes dois programas
movimentam mais de 20 mil reais por mês, dentro do quilombo.
Com esses recursos, os quilombolas adquirem, no mercado de Paratinga, alimentos
industrializados para reforçar a alimentação das famílias, materiais de higiene e limpeza, e
compram, em prestações de longo prazo, até bens duráveis como televisão, telefone celular,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
109

geladeira, rádio e móveis. Internamente, cresceram e se diversificaram os pontos de venda


de gêneros essenciais (arroz, café, açúcar, sabão), de bebidas alcoólicas, que não eram
comuns na comunidade, a exemplo de cerveja, bem como o comércio de pães frescos
fabricados no quilombo.
Nos fins de semana, os bares ficam movimentados, nas noites de sábado e ao longo
do dia de domingo, onde predomina o consumo de marcas mais populares de cervejas.
Portanto, esses recursos monetários em circulação nos quilombos fortalecem e ampliam o
mercado interno, pelas compras à vista, como também pela venda a prazo, o que possibilita
o crescimento sustentado da economia, pela previsibilidade e a certeza desses rendimentos
mensais que não atrasam e não têm prazo para acabar.
O quilombo de Rio das Rãs – que se destacou no recente movimento social
quilombola, por ter resistido e obtido êxito face ao conflito pela posse da terra, que durou
mais de 18 anos, e também por ter se tornado o mais conhecido pelo apoio recebido de
organizações da sociedade civil e da mídia na Bahia, no Brasil e até mesmo no mundo197 –,
tornou-se a maior beneficiária de recursos dos programas federais voltados para os
quilombos na Bahia.
Por ter recebido um volume maior de recursos, o impacto dos programas sociais
federais na economia de Rio das Rãs foi ainda maior. Contribui também a proximidade do
quilombo da sede de Bom Jesus da Lapa, principal centro econômico, financeiro, comercial
e de serviços da região do Médio São Francisco.
O impacto da circulação monetária na economia de Rio das Rãs pode ser atestado
pela sofisticação do comércio e dos serviços oferecidos hoje na comunidade. O abate de
gado bovino para a comercialização interna é feito semanalmente. É possível encontrar nos
povoados mais populosos do quilombo, a exemplo de Brasileira e do Assentamento Rio das
Rãs, pessoas vendendo requeijão fresco fabricado na comunidade. Os pequenos armazéns
do quilombo, que antes só vendiam artigos imprescindíveis ao consumo das famílias, como
sabão em barra, café, óleo vegetal, açúcar e arroz, estão abastecidos com itens impensáveis
para os padrões de dez anos atrás, a exemplo de papel higiênico, sabonete, sabão em pó,

197
O Jornal americano New York Times escreveu uma matéria de página inteira sobre o quilombo de Rio das
Rãs na edição de 15 de agosto de 1993.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
110

margarinas, as mais variadas bebidas alcoólicas populares, alimentos enlatados e


embutidos.

Armazém de João Nunes, em Rio das Rãs

O quilombo tem pontos de venda de gás butano e comércio informal de gasolina. Há


também serviços regulares de transporte, através de moto-táxi e de ônibus que fazem a
linha diária de segunda a sábado para a sede de Bom Jesus da Lapa. O deslocamento
semanal de ônibus para a sede, ao custo de R$ 8,00 de passagem de ida e volta, permite aos
quilombolas: gastarem no comércio de Bom Jesus da Lapa parte dos recursos provenientes
das aposentadorias e demais programas sociais federais; dispor de transporte regular para os
estudantes que estudam em Bom Jesus da Lapa e para os professores que ensinam nas
escolas da comunidade, além da condução dos pacientes que procuram atendimento nos
serviços de saúde oferecidos na sede municipal. Os quilombolas de Rio das Rãs vendem no
comércio de Bom Jesus da Lapa parte do gado criado na comunidade e um pouco do
excedente de sua produção agrícola, sobretudo feijão, farinha e milho.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
111

Abate de gado em Rio das Rãs

O que se nota, é que o quilombo cada vez mais mescla as suas características rurais
predominantes (agricultura, criação e pesca) com atividades comerciais e de serviços que
contribuem, aos poucos, para conformar um mercado interno. O impulso desse mercado
não é maior porque a atividade produtiva do quilombo ainda sofre com as limitações
decorrentes da inadimplência generalizada da comunidade junto aos bancos públicos, o que
impossibilita, assim, que os indivíduos tenham acesso ao crédito.

A migração dos jovens quilombolas para o trabalho assalariado

O deslocamento de jovens quilombolas de Rio das Rãs e Mangal para o corte de cana
e outras atividades rurais em fazendas capitalistas na região do município de Barreiras, na
Bahia, São Paulo e Goiás é outro fator a impactar a economia dos dois quilombos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
112

Comenta-se que anualmente cerca de 50 jovens de Mangal migram para tais atividades. Em
Rio das Rãs a estimativa é que entre 100 e 200 jovens sejam atraídos por ano para o
assalariamento nessas fazendas.
Uns poucos conseguem se fixar, mas a maior parte retorna aos seus lugares de
origem, pois eles são recrutados por intermediários para atividades sazonais, como a de
plantio de capim ou do corte de cana. O retorno desses jovens ao quilombo injeta mais
dinheiro nos incipientes setores de comércio e de serviços ou na compra de gado.
Mas o trabalho assalariado temporário, ainda que seja um pequeno estímulo para a
economia dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, se tornou também um desestímulo para
a exploração das potencialidades existentes nos próprios quilombos, já que a parte mais
produtiva da mão de obra está migrando para o assalariamento nas fazendas.
Nos dois quilombos, o trabalho assalariado é motivo de controvérsia. De acordo com
o depoimento de Joaquim da Silva, da Brasileira, as alegações para que seu filho migrasse
para trabalhar temporariamente em São Paulo, mas que terminou fixando moradia por lá
mesmo, são as seguintes:

“Porque aqui se o rapaz de vinte ano, ele for ficar no estudo, no estudo aí, então ele vai passar ficar
descalço e nu, sem poder ir na escola. Por causa que ele num tem saláro, o pai num tem, não tem o que
é que pegar pra vender pra comprar. Então no momento tem que sair pra trabalhar fora. Eu mermo
tenho um filho que tá pra São Paulo, tá cum quatro ano, agora tá fazeno quatro ano. Ta trabaiano lá
porque aqui num tinha condições dele ficar aqui, sobreviver.”

A argumentação de “sair para trabalhar fora” se justificaria pela ausência de


alternativas de trabalho no quilombo. Outros alegam que a impossibilidade de os
quilombolas terem acesso aos créditos bancários é a explicação mais razoável. Para
Francisco Pereira da Silva, da Brasileira, a migração dos jovens se deve à “falta de emprego
na nossa localidade.”
O uso da categoria emprego pelo depoente define bem a idéia que uma parte das
pessoas tem da relação de trabalho considerada ideal para compor a renda das famílias.
Possivelmente, esta concepção de emprego tenha influência objetiva da antiga inclinação
dos quilombolas de Rio das Rãs para migrarem rumo a São Paulo, em busca de trabalho,
seja compelido por secas mais rigorosas que assolaram o quilombo ou algum outro fator. O
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
113

mesmo Francisco Silva acrescenta um dado importante sobre a dimensão da migração em


Rio das Rãs: ele diz que dos seus dezesseis irmãos, doze migraram para São Paulo.
É importante assinalar que as migrações para as periferias urbanas e a zona rural de
São Paulo, sobretudo nos períodos de seca, fazem parte da história de Rio das Rãs. Porém,
a ocorrência dessa migração em todo o século XX se deu num contexto em que os
quilombolas não tinham o domínio legal do seu território. Depois de 1998, em que cerca de
40 mil hectares de terras foram desapropriados em nome da comunidade de Rio das Rãs, a
migração passou a ser um fenômeno que precisa ser compreendido tanto para os que
migram como para os que recusam as alegações de que não haja no quilombo opções
viáveis para os que querem trabalhar.
Esses últimos, não aceitam a argumentação de que é preciso migrar para prover a sua
família e são enfáticos em defender o se dedicarem ao sistema integral de trabalho baseado
na tradição, combinando as atividades de agricultura, de pesca e de criação. Domingos
Nunes de Souza (35 anos) tem uma argumentação que se opõe aos que migram, quando
afirma:

“Mas eu nunca saí pra São Paulo, nunca saí pra corte de cana nenhum. Eu trabáio numa roça aqui
perto. Mas aqui eu cunserto uma bicicleta, eu pesco, eu... Porque alguma coisa assim de planta, eu
planto... Eu sei plantar, na lavoura mermo eu sei plantar tudo. Então isso aí é uma cultura que a pessoa
já tem. Já num preciso sair pra fora. Aqui mermo subrivéve.”

Outros quilombolas consideram que a migração não deva ser demonizada. Para esses,
ela se torna uma opção explicável nos períodos de instabilidade provocados pela seca que
obriga as pessoas a procurarem na migração uma saída para a falta de uma atividade com
remuneração certa, embora elas mesmas não tenham sido atraídas. É o caso de Geraldo
Pereira (63 anos), da localidade de Novo Rio das Rãs, reconhecido como um dos mais
destacados produtores agrícolas do quilombo. Mesmo assim, Geraldão, como ele é
conhecido, recomenda que a Associação crie opções de trabalho no quilombo, para atrair os
jovens que estão migrando.
Dona Elíndia Maria Cardoso (44 anos), da localidade de Capão do Cedro, pondera
que, em função das secas, as pessoas eram compelidas a migrar para São Paulo, entretanto,
como as terras já lhes pertencem, e não há mais conflito com fazendeiros, o ideal seria que
os quilombolas cuidassem de suas roças e do gado recentemente adquirido, sob pena de
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
114

“ficá preso aqui dentro sofreno, porque não tem emprego, num tem serviço pra gente fazer
num tempo desse [da seca] aqui.”
A experiência do quilombo de Rio das Rãs de executar projetos governamentais de
incentivo e fomento às atividades produtivas, embora tenha malogrado no passado, parece
ainda exercer algum fascínio para os que tentam encontrar uma alternativa à crescente
migração de jovens para o corte de cana. O senhor Chico de Helena, da localidade de Rio
das Rãs, critica com indignação a saída dos jovens para o corte de cana, porém,
pragmaticamente, reconhece que o problema existe e que é preciso alguma providência, daí
ele indicar uma alternativa:

“Faz um regradio, um trabaio pra mulé trabalhar, ganhar o pão, home ganhar tomem o pão, é como se
o caso, e nunca ninguém saia daqui pra ir pra São Paulo. Porque o que tem aqui sô, o que tem aqui
dentro desse Quilombo, dá pro pessoá viver sem precisar sair daqui, pra trabaiá um dia de serviço pra
pessoa nenhuma.”

A sugestão do senhor Chico de Helena em fazer um regradio (irrigação) atrai muitos


seguidores entre os que discutem as possíveis saídas para a crise da migração. A
possibilidade de implantar em Rio das Rãs um projeto de irrigação teria as seguintes
vantagens: a comunidade está situada às margens do Rio São Francisco e dispõe de uma
grande quantidade de solos planos e férteis. Os obstáculos mais aparentes seriam a pouca
experiência dos quilombolas na prática da irrigação e, sobretudo, na comercialização de
produtos agrícolas em larga escala, além das péssimas condições das estradas que ligam a
comunidade às principais sedes regionais, como Bom Jesus da Lapa, Caetité e Guanambi.
O fenômeno da migração da mão de obra jovem para fazendas capitalistas na Bahia,
Goiás ou São Paulo, além das implicações econômicas, tem outras dimensões a serem
consideradas.
A primeira concerne à não renovação endógena da força de trabalho das famílias
nucleares que, no passado, ocorria com a passagem das responsabilidades de reprodução
familiar do pai para os filhos homens, antes e depois de eles se casarem. Com a saída dos
jovens para São Paulo, o suporte da mão de obra familiar deixa de existir.
Em contrapartida, os idosos contam agora com a vantagem de terem a aposentadoria
que lhes possibilita uma vida mais confortável, já que o salário mínimo mensal de
R$510,00 representa um valor considerável para os padrões de consumo dos quilombolas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
115

de Rio das Rãs e Mangal. O problema mais sério para as famílias cujos filhos estão
migrando seria em relação às dos pais situados na faixa de idade intermediária entre os
quarenta e cinco e sessenta e quatro anos, período natural de maior declínio da força física
para os que labutam com a cansativa atividade do campo e ainda não podem requerer a
aposentadoria. Pois é nessa faixa de idade que mais se torna necessário o apoio e
complementação do trabalho dos filhos mais jovens para desenvolver atividades produtivas
que componham a renda familiar.
Uma outra questão relacionada com a migração é que não se percebe nas discussões
cotidianas o modo como as atuais gerações pretendem explorar, no futuro, o potencial do
território quilombola nas atividades relacionadas com a agricultura, a criação e a pesca.
Esse vazio de perspectiva sobre o que fazer com as riquezas existentes foi, num passado
recente, um terreno fértil para que alguns migrantes de Rio das Rãs que moravam em São
Paulo introduzissem costumes incompatíveis com os hábitos tradicionais dos quilombolas,
como o roubo do gado no próprio quilombo, algo que resultou numa gravíssima crise social
e moral.
O fenômeno da migração em Mangal tem semelhanças e diferenças com o que ocorre
em Rio das Rãs. Historicamente, por exemplo, a migração neste quilombo nunca alcançou a
intensidade e o volume ocorrido em Rio das Rãs.
A migração dos quilombolas de Rio das Rãs teve início ainda na fase áurea do
processo de industrialização de São Paulo na primeira metade do século vinte. Durante o
conflito pela posse da terra, entre 1971 e 1998, ficaram no quilombo menos de duzentas
famílias, das mais de quinhentas nascidas na comunidade; o restante migrou, uma pequena
parte para a sede de Bom Jesus da Lapa e a maior parte para São Paulo. Ainda existem vilas
na periferia da capital paulista exclusivamente de pessoas oriundas de Rio das Rãs. Pela
estreita relação com São Paulo, ainda é costume recorrer aos parentes que moram por lá
para se fazer exames, tratamentos médicos e, também, consultar curadores oriundos do
quilombo que abriram terreiros em São Paulo. O intercâmbio, inclusive no âmbito
religioso, entre Rio das Rãs e São Paulo foi fundamental para dinamizar a prática religiosa
mais recente (refiro-me aos últimos trinta anos) no quilombo. O mais célebre curador de
Rio das Rãs, Andrelino Francisco Xavier, da localidade de Enchu, falecido em 2003,
embora tenha herdado a religiosidade de origem africana dos seus ancestrais, foi iniciado na
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
116

Umbanda em São Paulo; somente depois ele voltaria a Rio das Rãs para fundar um Centro
de Mesa Branca, como ele denominava, e dar ao mesmo uma identidade religiosa mais
próxima à prática da Jurema e, assim, se tornar uma referência religiosa para o povo de Rio
das Rãs e de toda a região.
Além da proporção da migração em Mangal ter sido menor, pelo fato da sua
população representar um quarto da de Rio das Rãs, o conflito em seu território não se
revestiu da mesma violência que assumiu neste último. A menor mobilidade migratória em
Mangal também se deveu ao fato de os quilombolas terem ficado resguardados da violência
dos fazendeiros em um território de cerca de 150 hectares, que fora doado aos ancestrais
dos atuais moradores por uma mulher que fizera a promessa de doação a Nossa Senhora do
Rosário. Nesse exíguo pedaço de terra, não era possível prover toda a subsistência dos
quilombolas, porém, serviu como um abrigo seguro para os seus moradores.
O impacto migratório em Mangal é um fenômeno mais recente, depois que o
quilombo teve as suas terras tituladas e a Associação resolveu implantar o mesmo projeto
de criação intensiva de gado financiado com recursos de programas federais de fomento às
atividades produtivas.
Da mesma forma que ocorreu em Rio das Rãs o projeto fracassou e o Banco do Brasil
não recebeu os créditos devidos, com isso, os quilombolas se tornaram inadimplentes. Os
reflexos negativos em Mangal, embora tenham sido menores do que em Rio das Rãs,
resultaram, igualmente, no impedimento de os quilombolas acessarem novos créditos. A
crítica dos moradores, de que a Associação teria administrado indevidamente os recursos
bancários, é a mesma dos quilombolas de Rio das Rãs. Não há acusação, entretanto, de que
tenha havido roubo de gado. Mas, por outro lado, esse processo de endividamento serve
como combustível para alimentar as disputas que confrontam as duas principais famílias do
quilombo – os Lobo e os Gomes.
A vantagem de Mangal, comparativamente a Rio das Rãs, é a de que o débito
bancário ali parece198 ser menor, e, além do mais, neste quilombo ainda restou uma parte
significativa do gado, cerca de 200 cabeças, administrado pela Associação. Esse rebanho,
segundo o atual presidente, conhecido como Caboje, pode ser suficiente para saldar toda ou

198
Não se sabe o montante dos débitos bancários em Rio das Rãs e em Mangal. No caso do primeiro
quilombo, tentei fazer um levantamento desses débitos e não consegui pelo fato da negociação ser conduzida
de forma sigilosa pelo Banco do Brasil. Sabe-se que o total das duas contas envolve cifras de milhões de reais.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
117

parte significativa da dívida bancária. A prioridade de sua gestão na Associação, segundo


me contou em entrevista, é saldar a dívida para que o quilombo possa pensar em executar
projetos governamentais do interesse da comunidade. De acordo com seu ponto de vista, a
opção é “a gente vender [o gado] e pagar. Porque é a única solução que eu tou vendo.”
A migração dos jovens de Mangal para o corte de cana e outras atividades
temporárias nas fazendas capitalistas de Barreiras e região, São Paulo e Goiás, mesmo que
seja motivada por fatores diferentes do que aconteceu em Rio das Rãs, tem provocado em
Mangal um impacto semelhante a Rio das Rãs, no que concerne à economia e à cultura do
quilombo.
De acordo com estimativas das lideranças, o deslocamento dos jovens representa
cerca de 50% da força de trabalho. E a alegação dos que migram é basicamente a mesma
dos jovens de Rio das Rãs: falta de opções de trabalho no quilombo, sobretudo para os
jovens. Como em Rio das Rãs, eles “vão lá trabalham e volta”, de acordo com Deraldo
Lobo dos Santos. A situação da migração de jovens para o presidente é “muito séria. É
séria. É grave.”
É possível apontar pelo menos duas explicações, econômica e cultural, para essa onda
migratória recente em Mangal e, também, em Rio das Rãs. A primeira origina-se da
ofensiva do agronegócio capitalista que produz commodities de elevado valor comercial no
mercado externo, como a soja, a cana de açúcar, o milho, o gado bovino. Nas fazendas do
Oeste baiano, como também nas de São Paulo, Goiás e Mato Grosso, onde se produzem
tais commodities, uma parte da mão de obra é fixa e super especializada; outra parte é
formada por uma extensa massa de assalariados temporários, que são empregados em
determinadas fases do processo produtivo, em que o uso da mão de obra sem maiores
qualificações é largamente adotado, como o plantio de certas leguminosas, coleta de laranja
e o corte de cana. É justamente nesses serviços que os quilombolas de Rio das Rãs e
Mangal são utilizados.
A segunda explicação é de ordem cultural, e quem indicou a pista para se
compreender a natureza do fenômeno foi o senhor Albertino Lobo dos Santos (75 anos), de
Mangal: “Porque aqui se não trabalhar na roça num acha ganho nenhum aqui. Num tem né,
seo Manoel? Porque nêgo hoje em dia quer andar com dinheiro no bolso. E roça demora
né...”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
118

Os jovens fizeram uma opção de trabalho, de acordo com o raciocínio do senhor


Albertino, no qual a remuneração monetária se apresenta como o símbolo de seu status de
adulto produtivo e, portanto, apto a formar uma família. O que é diferente na cultura
tradicional, na qual o prestígio social de um indivíduo jovem decorria da sua intensa
participação no trabalho produtivo familiar, que tinha como resultado produtos (feijão,
milho, farinha, carne) em quantidade suficiente para prover a família e aos que fossem
convidados a compartilhar de uma mesa farta em um evento qualquer.
Para provar que está em curso uma mudança cultural que compele os indivíduos
jovens da comunidade a valorizarem o trabalho remunerado em dinheiro, em detrimento
daquele que produz bens de consumo (feijão, milho), o senhor Albertino recorda com
“felicidade” que no passado o importante para cada família era dispor de bens que lhe
fossem úteis para a provisão familiar. Em suas palavras:

“Tinha uma roçona que nós enchia de mandioca. Trabalhava assim em quatro roça. Trabalhava na ilha,
uma semana na ilha. Quando terminasse uma semana na ilha então nós ia pro Capão, ali chamava
Capão, nós ia trabalhar no Capão, zelava do Capão, zelava de lá de cima. Tudo junto. A irmandade
toda. Aí nós ia pra roça da caatinga, zelar. Tinha cada mandiocona. Fizemos muitas quarta de farinha,
muitos saco de farinha da caatinga.”

A conjugação desses dois componentes, econômico e cultural, é que explicariam o


recente processo migratório. Portanto, o avanço capitalista no meio rural brasileiro e a nova
mentalidade dos jovens quilombolas que preferem trabalhar mediante um salário pago em
dinheiro se constituem nos principais atrativos para essa nova onda migratória.
A migração da força de trabalho não impacta tão somente a economia de Rio das Rãs
e Mangal, pois: influencia também a organização e a distribuição tradicional da força de
trabalho; altera substancialmente a tipologia anterior da reprodução social dos quilombolas;
provoca estranhamentos entre as posturas éticas dos que se formaram culturalmente no
quilombo e os que foram socializados nos grandes centros urbanos; e introduz, na
comunidade, práticas culturais nem sempre aceitas pelos mais velhos, como é o caso da
recusa ao trabalho tradicional que combinava, ao longo do ciclo produtivo, agricultura,
criação e pesca para prover as unidades familiares desses quilombos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
119

Jovens de Mangal recém chegados do corte de cana da região de Barreiras

As relações sociais entre parentelas no território quilombola de Rio das Rãs e


Mangal: a idéia de que tudo é uma só parentage

Em Rio das Rãs e em Mangal os quilombolas acreditam e compartilham a idéia de


terem a mesma origem histórica e, mais que isso, a de pertencerem a uma mesma
parentage. Não que eles se considerem de uma mesma família.
A idéia de que todos são uma mesma parentage está associada com a crença na
origem histórica que os aproximou em um determinado momento no mesmo território. Para
provar que eles distinguem as parentelas afins, alguns narradores dessas comunidades são
capazes de descrever com riqueza de detalhes o nome dos seus antepassados, a sua
procedência, com quem se casaram, suas principais habilidades, qual a representação e os
principais feitos que se contam a respeito deles.
Pertencer a uma mesma parentage significa, portanto, que as famílias que
conformaram os quilombos de Rio das Rãs e Mangal, ainda que possam ter se originado de
indivíduos de diferentes troncos, viveram ao longo do tempo no mesmo espaço e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
120

mantiveram uma relação social fundada na reciprocidade e no respeito, ainda que tais
relações não sejam o “tempo todo” cordiais.
Na origem dos dois quilombos os indivíduos das diferentes parentelas foram
obrigados a se aliar através do casamento, pois a escassez de mulheres no princípio da
formação dos quilombos superou os conflitos e a competição entre as famílias fundadoras.
Mas, a representação da idéia de parentage comum não consegue, porém, mitigar
conflitos entre as parentelas motivadas por rivalidades, ciúmes e disputas pelo poder,
conforme descreveremos adiante.
Em Rio das Rãs, como em Mangal, a identidade fundada na filiação a uma parentela é
uma das mais importantes formas de inscrição dos indivíduos na vida social dos quilombos.
As diferenças entre as parentelas parecem mais compor um cenário em que a dialética do
conflito serve como pano de fundo para uma compreensão comum da inelutabilidade de
conviver no mesmo espaço territorial, já que uma parentela depende da outra e todas foram
fundidas pela mesma história.
O sentido de parentage tem um conteúdo mais simbólico, na acepção proposta por
Mesquitela Lima: “o símbolo é facto, é também valor e o seu caráter impositivo advém da
magnitude do valor ou do conjunto de valores que o grupo ou a sociedade lhe atribui.”199
A parentage para os quilombolas de Rio das Rãs e Mangal possui também uma
conotação ambivalente. Nos conflitos pela posse da terra que atingiram os dois quilombos,
em que os inimigos que os acossavam vinham de fora, as diferenças políticas entre as
parentelas praticamente desapareceram. Mas, essa espécie de “pacto de não agressão” não
foi capaz de apagar as fronteiras que os separavam enquanto parentelas distintas. É
fantasiosa, portanto, a idealização construída, sobretudo, pela historiografia tradicional, que
conceberam os quilombos como organizações sociais exclusivamente africanas e, muitas
vezes, sem conflitos internos. Flávio Gomes e João Reis criticam algumas dessas
idealizações:

O quilombo seria “uma espécie de sociedade alternativa à sociedade escravocrata, onde todos seriam
livres e possivelmente iguais, tal como teriam sido na África, uma África consideravelmente
romantizada.”200

199
LIMA, Mesquitela. Antropologia do Simbólico – ou o simbólico da antropologia. Lisboa: Editorial
Proença, 1983, p. 49.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
121

Nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, a existência de conflitos entre os indivíduos
e as famílias fundadoras não os inviabiliza de viver, contudo, em uma mesma sociedade e
terem uma convivência social prolongada; ao contrário, esses conflitos parecem alimentar a
necessidade do agenciamento e da negociação entre as parentelas e os indivíduos.
As razões para a ocorrência de conflitos entre as parentelas são diversas. Em Mangal,
a aparente fonte de discórdia entre as duas principais parentelas do quilombo, os Gomes e
os Lobo, é a tentativa de cada parentela de usufruir das vantagens em se aliar a um dos dois
grupos políticos que dominam o poder no minúsculo e pobre município de Sitio do Mato.
Os desacordos teriam começado, de acordo com um depoente, a partir de uma armadilha
criada pela oligarquia dos Magalhães de Sítio do Mato, ao oferecer minguados empregos na
escola da comunidade para o chefe de uma das famílias do quilombo, alijando a outra
família do poder de nomear os seus parentes. Por esse prisma, as divergências estariam
circunscritas à preferência que um e outro grupo familiar dá aos chefes políticos do DEM
(Democratas) e do PT (Partido dos Trabalhadores) da sede municipal, e, desse modo,
transferindo para o quilombo as disputas políticas que envolvem o controle da prefeitura de
Sítio do Mato.
Ainda que seja pertinente tal avaliação, ela não explica outros aspectos dos conflitos
entre as duas famílias, além de querelas partidárias, que são a manifestação mais visível dos
desentendimentos.
De acordo com o depoimento de um morador de Mangal que conhece razoavelmente
a história da comunidade, os conflitos entre os Lobo e os Gomes remontam ao período de
fundação do quilombo, em que as duas famílias tentavam afirmar o poder sobre o legado
deixado por uma devota de Nossa Senhora do Rosário, que doara à comunidade “meia
légua quadrada de terras”201 Embora não se tenha identificado um documento que
confirmasse a referida doação, a narrativa de que a santa doara as terras para a comunidade
teria provocado uma ruptura entre as duas famílias: a quem a doadora confiara a

200
REIS, João José, GOMES, Flávio dos Santos. Introdução: Uma História da Liberdade. In REIS, João José,
GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.) Liberdade por um fio – história dos quilombos no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 11.
201
Fala-se que tal medida simbólica representaria de fato cerca de 150 hectares de terras. Fala-se também até
que o documento de doação existira, mas até hoje não se conseguiu encontrá-lo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
122

responsabilidade do tal documento da terra? Por trás do conflito partidário, portanto, se


esconde a luta pelo monopólio simbólico de qual teria sido a família fundadora de Mangal.
O que se sabe é que os Gomes são zeladores da capela de Nossa Senhora do Rosário
desde a fundação do quilombo. Fala-se na existência de uma coroa de ouro da santa que é
guardada a “sete chaves”. Mais, o fato de os Gomes cuidarem da santa, de sua coroa e da
capela, não significa que os Lobo não tenham “armas” e argumentos para se colocar na
história e reivindicarem o monopólio simbólico de fundadores do quilombo.
É neste sentido que o senhor Beatriz Martins dos Santos, chefe da parentela da
família Sá, mas que ele próprio se considera da mesma origem dos Lobo, portanto, rival dos
Gomes, fez o seguinte relato sobre a aparição de nossa Senhora do Rosário, em Mangal,
que é uma forma camuflada de atribuir aos Lobo o monopólio da simbologia que confere
poder aos seus detentores:

E – Me conta aí como foi que ele achou essa Santa, a Nossa Senhora do Rosário?
BMS – Ele [Benedito Caboclo202] falou que teve um fogo [na Guerra do Paraguai] que ele correu, ele
mariou [fugiu] fora do bataião. E ele chegou num canto e sentou num lajedo. Aí ele achou... Sentou
cansado... E acho que as coisas quando tinha que acontecer, né... Que ele sentou, que olhou... A Santa!
Ele ficou olhando... Vou panhar essa Santa. A pedra já tava escrita a marcação das rezas, quando era o
dia de rezar. O Dia Santo dela. Já tava escrito na pedra. Ele leu aquilo tudo direitinho, que ele sabia ler,
leu. Aí tava escrito em cima: “Nossa Senhora do Rosário”. Pegou a Santa. Ele fugiu. Quando ele achou
a Santa, ele se apegou com ela pro modi tirar ele, pra num deixar mais ninguém encontrar ele, nunca
mais ele viu nem tiroteio. E saiu esmariado caminhando até sair fora do lugar. E saiu fora.
E – E ele era escravo quando foi para a guerra?
BMS – Eu acho que não. Mas eu acho que era quase esse ponto de escravidão. Mas num era escravo.
Foi na guerra. Teve uma guerra aí que você ver falar dessa guerra num vê? Do Paraguai. Ele tava nessa
guerra. Saiu fora. Fugiu. Escondeu. Aí agora ele tratou de sair fora pra precurar a terra dele. Veio
cortando por fora caminhano de a pé, aqui e acolá, comendo aquelas besteirinha, aquelas coisa, até sair
fora do giro aí, pegou, chegou. Quando chegou na terra dele, precurou: “Ah! Seu povo foram embora
daqui”. Ele saiu informando: “Ah! Tá morando num sei a onde, do lado de lá do rio, em tal canto
assim, assim. Era aqui [no Mangal]. Chegou. Dizendo o povo que aturou pouco. Disse que nunca tinha
tomado uma bala. Não. Parece que Deus abençoou ele que nunca tomou uma bala.

Ao chegar ao Mangal, Benedito Caboclo teria procurado os seus parentes para que
alguém cuidasse da santa. Por não ter encontrado em sua parentela alguém que soubesse as
ladainhas apropriadas ao seu culto, ele terminou entregando a imagem de Nossa Senhora do
Rosário para um membro da família Gomes, que cuida da santa, quatro gerações depois.
Por que Benedito Caboclo entregara aos adversários da sua família, os Gomes, o símbolo

202
Benedito Caboclo seria o bisavô do Senhor Isauro Lobo dos Santos; nos seus 77 anos é o mais velho
ancião dos Lobos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
123

maior de prestígio no quilombo de Mangal, a imagem de Nossa Senhora do Rosário, que


ele achara em pleno campo de batalha?
O senhor Beatriz deixa transparecer em seu relato, portanto, negando terem sido os
Lobo os fundadores do quilombo de Mangal, que Benedito Caboclo ao retornar da Guerra
do Paraguai procurara pelos seus parentes em um certo lugar nas redondezas e fora
informado de que seu “povo [foi] embora daqui”; assim, em seu relato, afirma que os Lobo
teriam se mudado para o Mangal, procedendo de uma outra localidade. Os Lobo seriam
originários do município de Santana, segundo me confidenciou um respeitável ancião dessa
família.
Os Lobo, mesmo argumentando que são uma das famílias fundadoras do quilombo,
têm desvantagens na disputa e não podem desconhecer uma situação fática: o monopólio
simbólico de guarda da santa, os cuidados com a capela que a acolhe e a guarda “a sete
chaves” da misteriosa coroa de ouro de Nossa Senhora do Rosário são representações
indelevelmente associadas à fundação do quilombo, mas de responsabilidade exclusiva dos
Gomes.
A construção de uma nova capela católica no quilombo agravou as tensões entre as
duas famílias. A família Lobo quer a construção da nova capela, enquanto os Gomes são
acusados abertamente de sabotarem a sua construção. Presume-se que a recusa da família
Gomes em construir a nova capela seja motivada pela desconfiança de que isso contribua
para apagar a história impressa nos símbolos antigos ostentados pela construção antiga,
como o velho e centenário cadeado, que eles preservam como um troféu.
A desconfiança dos Gomes não é à toa, afinal é através da história inscrita
simbolicamente no prédio velho da capela que se preserva o segredo da santa que está sob
controle dessa família, inclusive a dita coroa de ouro de Nossa Senhora do Rosário. É assim
que os Gomes se presumem legitimados a se colocarem como a verdadeira família
fundadora do quilombo.
As relações entre as duas famílias no dia a dia são pontuadas por frequentes atritos,
de acordo com o relato de um jovem da família Lobo. Alguns membros mais proeminentes
das duas famílias mal se falam. Em sala de aula, as crianças se atritam e chegam a brincar
separadamente. Nas festas, as rodas de conversas se organizam de acordo com o
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
124

pertencimento familiar. E, mesmo no futebol, quando se escolhe os times na hora do


“baba”, a separação se verifica.
Em minha estada na comunidade tive a oportunidade de constatar ressentimentos e
atritos entre os dois lados, embora nada tão grave que não pudesse ser administrado. Esses
atritos recentes podem ser explicados, talvez, após os resultados das eleições municipais
para a prefeitura de Sitio do Mato, em que houve mudanças no domínio político, que era
exercido pelo grupo político aliado dos Lobo e, mais uma vez, recolocou os Gomes numa
relação privilegiada com o poder político municipal.
Em Rio das Rãs, cada parentela está organizada socialmente em um determinado
espaço territorial. A identidade dos quilombolas é fundada pelo pertencimento racial, o
reconhecimento de uma mesma história, pela consanguinidade que une as parentelas e
também por viverem em um mesmo território, o que confere às famílias que se formaram
nesses territórios alguma autonomia:

“Nas histórias contadas em Rio das Rãs são frequentes as referências às localidades de Passagem de
Areia, Pedra do Cal, Barra, Aribá, Brasileira, Capão do Cedro, Riacho Seco, Baixa da Mula,
Pitombeira, Rio das Rãs, Barreiro da Onça, Juá, Manga, Jacaré, Baixa do Marí, Enchú. São núcleos de
moradia, locais de roça, pesca e caça que acompanharam a trajetória migratória e de ocupação
paulatina do território de Rio das Rãs. A partir deles pode-se perceber a gama de relações e conflitos
no decorrer do percurso; em cada localidade está inscrita a história particular do grupo doméstico
que lhe nomeou, como uma ponte para conectar as várias mudanças da história geral do grupo.”203

Na última parte da citação (grifado), resultado de minhas observações anteriores a


1997, portanto, durante o conflito pela posse da terra, já era notável a autonomia dos grupos
familiares em seus respectivos territórios e a ocorrência de estranhamentos entre as famílias
que conformam o quilombo.
Após o conflito pela posse da terra, que opôs os quilombolas aos fazendeiros
invasores, as características organizacionais das parentelas não mudaram
significativamente:

“A distribuição da população de Rio das Rãs no espaço geográfico, após o conflito, nas localidades
mencionadas, contudo, não impossibilitou a preservação de certos costumes dos antigos “troncos
familiares”. Um deles é a construção das residências em torno da do chefe da parentela.”204

203
SILVA, Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs, p. 23.
204
Idem, p. 24.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
125

Capela de Nossa Senhora do Rosário no Mangal

A organização dos grupos familiares de acordo com os padrões tradicionais se


manteve, embora pequenas alterações tenham ocorrido tanto em decorrência do conflito,
como também após a construção, pelo INCRA, das vilas habitacionais padronizadas, depois
que as terras de Rio das Rãs foram tituladas. O modelo de núcleos habitacionais do INCRA
limita a ocupação e a organização do espaço, já que, no passado, cada unidade familiar
tinha a sua área de moradia com quintais cercados para criação de porcos, galinha, bodes,
cabras, e plantio de mandioca, feijão e milho de chuva.
Ainda que a união da comunidade para enfrentar o conflito pela posse da terra tenha
arrefecido as disputas políticas e simbólicas entre as parentelas, os atritos não cessaram
totalmente. Na vida privada e longe do público externo, “as estocadas” entre indivíduos das
diferentes famílias são frequentes.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
126

Cadeado da porta lateral da Capela de Nossa Senhora do Rosário

As parentelas que controlavam a antiga localidade de Rio das Rãs nas margens do
Rio São Francisco, antes das terras do quilombo serem tituladas, por exemplo, não
suportavam “a vida boa” dos moradores da Brasileira. Era comum que os quilombolas da
Brasileira fossem chamados de cachaceiros, festeiros, preguiçosos. A estereotipia, como se
sabe, é um dos mecanismos mais constrangedores para enquadrar um indivíduo ou um
grupo às idéias e concepções que se pretendem legítimas e corretas para outro grupo.
A experiência vivida por Eduardo Batista Lima, filho do Senhor Josino Batista Lima
e dona Maria Batista Lima, último presidente da Associação Agro-Pastoril e Quilombola de
Rio das Rãs, é um caso exemplar para se entender as disputas que envolvem as parentelas
de Rio das Rãs.
Eduardo Lima nasceu no estado de São Paulo e chegou a Rio das Rãs com dois anos
e meio de idade; passou mais doze anos vivendo em São Paulo e, finalmente, voltou à
comunidade para assumir a condição de presidente da Associação, cargo que tem enorme
prestígio para quem o ocupa. Mas, por ter passado muito tempo fora e ter nascido de uma
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
127

família pouco proeminente no quilombo, além de ter voltado à comunidade quase no final
do conflito pela posse da terra, no final dos anos noventa do século passado, ele sofreu
humilhações, segundo me contou, por não ter a confiança plena dos troncos familiares que
controlaram as sete gestões anteriores na diretoria da Associação. O “calvário” vivido por
Eduardo é explicado porque um dos critérios, nem sempre explicitado, para se assumir o
poder no quilombo – e a Associação é um dos espaços de poder –, é o de pertencer a uma
das famílias “fortes” do quilombo, isto é, ser de um tronco familiar considerado “de raiz”,
e, por conseguinte, representar com legitimidade a identidade quilombola.

As formas de sociabilidade entre os parentes: solidariedade e conflitos

As relações entre os membros de uma família extensa e, notadamente, aquelas que


compõem a sua menor unidade, a família nuclear, são as que primariamente estruturam as
mais comezinhas formas de sociabilidade nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, sem
prejuízo da intensa interação que envolve a totalidade dos indivíduos e entre as famílias que
construíram uma trajetória histórica comum e vivem cotidianamente a vida social nos dois
quilombos.
Cada parentela estrutura um mundo social e moral próprio, o que não significa que as
parentelas se organizem autonomamente e de maneira autárquica, mesmo porque, dessa
forma, elas não teriam viabilidade para sobreviver no mundo rural em que a
interdependência é fundamental.
O mundo social construído pelos grupos de parentesco está relacionado com a
presunção de terem uma mesma origem. É a partir dessa concepção que as parentelas se
organizam, definem mecanismos de solidariedade e constroem um projeto moral que as
distingue das demais. Certos traços são irredutíveis e definem a marca simbólica de cada
parentela nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal: pode ser o abstrato gosto pelo trabalho,
a preferência laboriosa pela agricultura, inclinação para a criação de gado, a
religiosidade, ou o gosto pela preservação dos costumes ancestrais.
Entrevistando o Sr. Albertino Lobo dos Santos, de Mangal, ele assim define a marca
simbólica de uma parentela: “A família dos Lobo, é o seguinte, é como eu tou falando, tudo
é trabalhador. Nunca teve nenhum preguiçoso.” O seu orgulho de pertencer à parentela dos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
128

Lobo, como se pode observar, está associado ao sentimento de que ela se coloca no mundo
como uma identidade que ele e a sociedade local reconhecem como positiva.
O que toda a parentela quer é ser reconhecida na sociedade; isso concede aos seus
membros dividendos sociais importantes, tanto nas trocas matrimoniais como também
naquelas em que está em jogo a reputação do indivíduo, a exemplo de um empréstimo ou
um compromisso firmado. Fazer qualquer negócio com um indivíduo de uma parentela que
não se confia é temerário. Isso porque é disseminado socialmente a marca negativa que
termina se estendendo para todos os membros daquela parentela. A presunção é que os
indivíduos sejam formados moralmente pela sua parentela, e desse modo, todos dessa
parentela carregam os traços morais pelas quais são identificados socialmente.
Falar dos antepassados em Rio das Rãs e Mangal requer das gerações atuais mostrar o
que eles representaram para a história do quilombo. Os notáveis do passado servem como
referência para os que lhe sucederem. É esse o sentido do breve comentário que senhor
Francisco Ferreira Magalhães, conhecido como Chico de Helena, fez sobre o seu pai.205 Ele
contou que, no passado de Rio das Rãs, quando não havia escola, “tinha as pessoa que tinha
boa mimória, como é meu pai mermo, era um home mimorista. Meu pai sabia fazer um
balaio, meu pai fazia uma canoa, meu pai fazia uma rede, meu pai tudo, tudo, fazia uma
gamela, meu pai fazia uma embarcação, tudo meu pai fazia.” Esse elogio caloroso dos
descendentes é a oportunidade que os membros da parentela encontram para falar de si
mesmos. É para isso que servem as gerações atuais narrarem os mitos de sua parentela.
No dia a dia da vida dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal, as famílias nucleares
dão suporte para as decisões mais imediatas, notadamente aquelas que não envolvem a
honra ou princípios estabelecidos pela parentela sobre o modo de agir mais adequado. Em
torno do pai e da mãe, é que se estruturam e se organizam as atividades relacionadas à
economia familiar, à socialização, formação moral, educação e religiosidade dos filhos. A
família nuclear não está desvinculada, entretanto, do que ocorre em torno da família
extensa. E não é por outra razão que em muitas localidades de Rio das Rãs e Mangal elas
estão localizadas geograficamente próximas uma das outras. Entre os membros da família

205
O senhor Francisco Ferreira de Magalhães é uma das memórias mais lúcidas do quilombo. Além de
historiador do quilombo, ele é repentista, poeta e cantador. Teve um papel central durante todo o conflito pela
posse da terra, sobretudo, para desmascarar o fazendeiro Carlos Bonfim quando este afirmava ter documentos
que supostamente comprovavam que as terras de Rio das Rãs sempre pertenceram à família Teixeira. Senhor
Chico desmentiu o fazendeiro publicamente com dados recolhidos de sua memória notável.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
129

extensa há, com frequência, trocas e aconselhamentos. Mas, de um modo geral, as famílias
nucleares organizam as suas estratégias de sobrevivência no dia a dia com relativa
autonomia.
As trocas entre as parentelas é o que dá às mesmas o sentimento de terem uma mesma
origem. Essas trocas envolvem o que cada família nuclear conseguiu produzir com seu
trabalho na roça, na pesca ou na criação de gado, mas também bens imateriais, como
conselhos, ensinamentos, recomendações e outras formas de transmissão do que é
considerado moralmente válido para a parentela.
É com o referente do aprendizado adquirido na família nuclear, “supervisionado” pela
parentela à qual esteja vinculada, que os indivíduos se posicionam na sociedade
quilombola. Ser membro de uma parentela e de um território social onde ela inscreveu
hábitos e costumes, portanto, antecede ser membro do quilombo. Cada parentela, portanto,
tem um papel fundamental na formação dos seus membros. Até porque as regras emanadas
fora do seu âmbito serão processadas e interpretadas de diferentes perspectivas e
assimiladas ou rejeitadas.
A impressão que se tem é a de que, no final das contas, há um equilíbrio nas
negociações entre as normas originadas nas parentelas e aquelas estabelecidas pela
sociedade quilombola. As normas mais consensualmente aceitas prevalecerão; outras cairão
em desuso, mesmo que os mais velhos fiquem ressentidos e com o sentimento de estarem
perdendo o controle do que eles imaginavam ser a mais adequada. O senhor Auto Osório de
Souza (88 anos), da localidade da Brasileira, em Rio das Rãs, (Ver mapa de Leonaldo
Carvalho na página seguinte) expressa esse sentimento de perda quando se refere às
etiquetas da relação entre pai e filho no passado:

“Naquele tempo que eu era um menino de oito até quinze ano, naquela época de meu conhecimento, eu
vi muito o pai... O filho chegar perto do pai tirar o chapéu da cabeça e falar com o pai, Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo, bença meu pai, ou que fosse a mãe, bença minha mãe. Outros as vez já se
ele já carregasse facão ou faca, ele tirava da cintura e se fosse um facão, batia assim pelo chão, ou se
fosse uma faca e só dava a bença ao pai mais a mãe, Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo... Outros
até, também sentava o joelho no chão ainda pra dá a benção aos pais. Então esse já é uma das coisa que
dava um sentimento que o qual é hoje. Agora sabeno que as vezes hoje assim uma parte ali também, se
esse menino aí tivesse algum ensinamento, já pedia licença pra passar aqui, ou o sinhô acha que num
precisava pedir?”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
130

Pelo estado de espírito nostálgico do senhor Auto, fica evidente que o aprendizado
ensinado pela sua parentela não consegue, no presente, ter o mesmo valor. Mas, ele está
resignado e não considera que tal mudança seja o fim do mundo, ou alimenta qualquer
veleidade de que as regras de etiqueta do passado tenham validade no atual contexto. Com
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
131

isso, o senhor Auto admite, a contragosto, e sem explicitar, serem inevitáveis as mudanças.
Por outro lado, ele continuará ensinando aos seus parentes mais próximos que o mais
correto é agir do “modo tradicional”.
A responsabilidade de socialização das novas gerações concernentes às parentelas de
Rio das Rãs e Mangal pode dar a impressão de serem as relações entre os parentes sempre
baseados na harmonia e no respeito mútuo. E não são. Os parentes se encontram e se
desencontram na vida social nos dois quilombos. As denúncias envolvendo a feitiçaria, por
exemplo, tanto podem opor diferentes parentelas como confrontar indivíduos de uma
mesma família nuclear, irmãos, por exemplo.
Um exemplo de conflito envolvendo membros de uma mesma família nuclear foi
relatado pelo senhor Renério Vilaça, ele próprio envolvido no desentendimento com o seu
irmão. O conflito começou com a entrada de uma vaca de sua propriedade na roça desse
irmão. De acordo com o relato do senhor Renério, ele fora obrigado a sacrificar a sua
querida e estimada vaca para não acontecer uma morte na família. Mas, antes eles
chegaram “às vias de fato” e só não aconteceu uma tragédia porque outros parentes e
vizinhos separaram a briga violenta. Mais tarde, aceitaram fazer as pazes, após o senhor
Renério ter ficado seis meses sem poder frequentar sua igreja evangélica por estar “de
castigo”, em virtude da briga com o irmão. Porém, até hoje, confessa o nosso depoente: “é
ele lá e eu cá.”
No quilombo de Mangal/Barro Vermelho, no qual as parentelas dos Lobo e dos
Gomes dividem e disputam ao mesmo tempo o poder, os conflitos são recorrentes. Havia
mencionado anteriormente que os conflitos entre as duas famílias estão relacionados à
disputa pelo poder político. Mas, observando detidamente a vida social no quilombo, pude
verificar que as divergências se estendem para outros espaços, e a evitação de casamento
entre indivíduos das duas parentelas é uma delas.
Isso aconteceu quando um indivíduo da família Gomes namorava a sobrinha de um
expoente da família Lobo, o que tornaria os seus filhos sobrinhos netos deste. A forte
oposição dos Lobo a esse casamento, segundo o depoente, seria uma tentativa de manter
íntegras as fronteiras de parentesco que separam as duas famílias, o que possivelmente
poderia ser visto como um enfraquecimento da identidade que alimenta as disputas
políticas. O informante revelou que o casamento envolvendo indivíduos das duas parentelas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
132

não é o único caso acontecido; resta saber se essa oposição foi apenas dos Lobo ou
envolveu os Gomes também, em outras situações.
Mas, é enganoso imaginar que os processos conflituosos envolvendo indivíduos de
uma mesma parentela os levem a agir em público de maneira grosseira e deseducada.
Conheci muitos casos de parentes que não se entendiam mas, no espaço público, tinham
uma relação amistosa, se cumprimentavam, trocavam a “benção” com a mais solene
reverência, e eram capazes de rir de maneira espalhafatosa e troçar um do outro como se
não houvesse entre eles nenhuma intriga. Presenciei, também, certa pessoa classificar como
“ladrão” uma conhecida liderança de Rio das Rãs durante a nossa caminhada em direção a
uma reunião e, quando lá chegamos, se cumprimentaram efusivamente. Mas não há o que
censurar, afinal, eles são compadres, além de serem primos.
Esse equilíbrio instável entre os parentes de Rio das Rãs e Mangal, envolvendo as
mais complexas idiossincrasias, não foi obstáculo para que eles unissem todas as parentelas
em defesa dos dois quilombos e alcançassem a vitória diante da violência dos fazendeiros
que desejavam confiscar suas terras.

A deferência social com os mais velhos

Tanto em Rio das Rãs como em Mangal, aos mais velhos é dispensada uma
deferência toda especial. Antes da criação das associações representativas, o respeito era
ainda mais reverencial.
Com a legalização das terras de Rio das Rãs e Mangal, o que obrigou os quilombolas
a criarem as associações, o poder foi deslocado para as lideranças mais jovens. Mesmo
assim, os mais velhos continuaram a ser tratados com muito respeito.
O tratamento cerimonioso aos mais velhos é parte do reconhecimento de serem
portadores de conhecimentos e saberes que os mais jovens poderão ter acesso ou não. A
transmissão desses conhecimentos depende do interesse dos jovens, da capacidade de
aprenderem pela observação e, sobretudo, da vontade individual. Um velho feiticeiro me
confessou que tentara passar seus conhecimentos para um neto e esse se recusava, não
demonstrando qualquer interesse.
Não há uma norma para a transmissão de conhecimento e nem se trata de um
processo ritual. Assim, são corriqueiras as queixas das gerações mais jovens de não terem
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
133

aprendido com os seus mais velhos porque eles não permitiam, entre outras restrições, que
as crianças presenciassem as conversas que envolvessem pessoas idosas.
A retidão moral dos idosos é a base de toda a reverência dos seus descendentes, tanto
no passado como no presente.
Em Rio das Rãs e Mangal, quando se fala em deferência aos mais velhos, ela é
comumente referida aos homens idosos. Não é que as mulheres mais velhas não sejam
respeitadas, o que se salienta é que os homens são detentores de maior prestígio social nos
quilombos.
A mulher mais conhecida na história de Rio das Rãs, dona Imbilina Maria da
Conceição, que teria nascido na localidade de Mucambo, no território de Rio das Rãs, em
1870, por exemplo, é referida de maneira ambígua: por um lado, ela é “lembrada pela
memória social como ‘mulher solteira’ ou ‘mulher da vida’ – categorias sociais associadas
à prostituição...”206 Ao mesmo tempo, ela é também mencionada positivamente, como
“uma mulher forte, que sabia criar os seus filhos, trabalhadora, ‘raiz do lugar.’”
Conta-se que dona Imbilina teria se casado com um homem chamado João Nagô,
ainda no século XIX, estando grávida de outro homem. Após a morte prematura deste, ela
teve filhos com, pelo menos, cinco homens. Responsável por nomear a sua parentela, dona
Imbilina, entretanto, é reconhecidamente uma das mais fortes referências entre as mais
tradicionais famílias quilombolas de Rio das Rãs. Mas, a ambivalência é a tônica dos
relatos envolvendo a sua extraordinária figura: as “lacunas sobre a vida social de dona
Imbilina são muitas, mas não resta dúvida entre os moradores da comunidade sobre a sua
incontestável liderança em Rio das Rãs.”
Em Rio das Rãs e Mangal, nenhuma personalidade masculina importante na história
destes quilombos é lembrada publicamente por seus desempenhos sexuais, mas por terem
deixado legados morais, até hoje seguidos. Esse lado da sexualidade arrojada de dona
Imbilina, contudo, está sempre presente nas referências ao seu nome.

206
SILVA, Valdélio Santos. Notas para um estudo sobre o papel das mulheres na história – o caso
emblemático de uma mulher em Rio das Rãs. Trabalho obrigatório do Curso de Pós-Graduação
Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia – UFBA e requisito
parcial para a aprovação na disciplina “África Negra: colonialismo, raça, classe e gênero” ministrada pelo
professor Valdemir Zamparoni., 2006, p. 01.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
134

Outra conhecida mulher em Rio das Rãs, falecida recentemente, era referida dessa
mesma forma ambígua pelos homens. Diziam sobre ela: dona M. era uma “mulherzinha da
vida”, mas, um “verdadeiro homem para trabalhar na roça”. Quer dizer, era uma mulher
destemida e trabalhava na roça com a mesma força de um homem. Em outras ocasiões, era
classificada de “mulherzinha”, para lembrar a sua condição de mulher solteira e que
mantinha relações sexuais com diferentes homens. E o curioso é que esses comentários
eram considerados elogiosos, possivelmente, porque o seu extraordinário desempenho no
trabalho da roça circunstancialmente superava o estigma de prostituta.
Nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, o predomínio da ideologia da
masculinidade é, portanto, indisfarçável.
A educação dos filhos é, em tese, uma responsabilidade compartilhada entre o pai e a
mãe. Mas, na prática, a palavra final sobre as decisões mais importantes cabe aos homens,
inclusive aquela que se refere à imposição da ordem moral considerada mais adequada:

“O pai tinha uma palmatória de bater os fio de bolo na mão, hoje num tem mais. Tinha chicote de bater
no filho se ele fizesse uma coisa errada, uma má-criação. Até mesmo que não fosse com o pai e a mãe,
mas se fosse com um tio ou uma tia, naquele respeito tinha que... Aquele outro vinha contar o que
aquele menino fez, o pai pegava e dava uma surra nele que era pra ele saber que o respeito era outro,
não era aquilo.”207

A ordem de um homem, sobretudo mais velho, era obedecida à risca. Mário Nunes de
Souza (66 anos), de Rio das Rãs, conta que quando um jovem era apanhado fazendo algo
errado, um homem mais velho assim o advertia: “‘Não foi certo o que fez, foi uma forma
assim errada e o caminho é por aqui’. E o povo temia e obedecia porque sentia que era uma
pessoa na idade que tinha aconselhado”.
A emergência do conflito pela posse da terra em Rio das Rãs e Mangal e a
consequente necessidade de se criar uma Associação para representar legalmente os
quilombolas perante o Estado contribuíram para diminuir a autoridade e o papel de
conselheiro dos mais velhos. É revelador, a esse propósito, o desabafo de dona Matildes
Rodrigues (72 anos), de Rio das Rãs: “Os troncos acabou só resta rama e flor, que são os
mais jovens.” Essa nostálgica declaração revela como as decisões estão passando para as
mãos das jovens lideranças, que agora estão investidas de poder. Os “troncos” são aquelas

207
Senhor Auto Osório de Souza, 88 anos, da localidade de Brasileira, em Rio das Rãs.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
135

lideranças que estavam distribuídas pelas pequenas localidades e que, pela força moral,
definiam os parâmetros da convivência social e da solidariedade entre os indivíduos. A
metáfora da “rama” e da “flor” significa que os mais jovens são considerados imaturos
socialmente para tal responsabilidade. Note-se que a crítica contida nesta expressão tem um
sentido ao mesmo tempo denunciatório da inadequação dos ocupantes dos postos de
direção da Associação, mas também é construtivo ao se pensar que tais ramas e flores
poderão algum dia frutificar e se reproduzir.

O lugar das mulheres na vida social dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal

A divisão familiar do trabalho social em Rio das Rãs e Mangal é um componente


essencial na estratégia de sobrevivência dos quilombolas. A tendência das famílias era ter
um número elevado de filhos, sobretudo homens, para dispor de mão de obra para o
trabalho na agricultura, criação e pesca. Com a família numerosa, era possível distribuir o
trabalho produtivo, levando em consideração a capacidade física dos indivíduos e os
costumes culturais vigentes.
A mulher quilombola participa, nessa divisão do trabalho, de uma gama variada de
atividades. No âmbito doméstico, os cuidados com a casa, como cozinhar, lavar, passar e
fazer o asseio da residência; responsáveis pelas crianças, inclusive no acompanhamento dos
deveres escolares quando eram alfabetizadas; cabia às mulheres cuidar dos quintais,
especialmente das plantas ornamentais, das medicinais e das hortaliças; e transportavam
água para o abastecimento da residência. Fora do âmbito doméstico, compete às mulheres
cuidar dos pequenos animais, como porcos, cabra, bode, ovelha, carneiro e galinha. Nas
atividades agrícolas, as mulheres participam da colheita do feijão e milho e são uma peça
chave em uma das etapas da fabricação da farinha de mandioca, notadamente limpar e
descascar a mandioca antes de ser prensada, assim como fabricar os beijus.
Como se vê, a quantidade de atividades de responsabilidade das mulheres é muito
grande e variada.
As atividades produtivas masculinas são em menor quantidade, embora sejam
consideradas por eles como as mais pesadas e estafantes. O trabalho tipicamente masculino
nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal inclui: construir a residência do casal; construir os
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
136

currais, derrubar árvores, destocar e preparar o solo para o plantio das roças; plantar, ainda
que possa contar nessa atividade com a ajuda das mulheres; limpar periodicamente a roça e
protegê-la de ataques de pragas e doenças; colher a plantação, com a ajuda das mulheres e
das crianças; vaquejar e cuidar, de um modo geral, do rebanho de gado bovino, dos animais
de montaria e de tração; abrir poços, pescar e caçar.
Na divisão social do trabalho, portanto, há uma nítida influência de gênero a separar
homens e mulheres. Essa divisão não implica uma interdição absoluta que impeça, por
exemplo, as mulheres de exercerem atividades consideradas masculinas, como derrubar
árvores de machado para abrir novas roças. Mas, esse tipo de serviço executado pelas
mulheres não é o mais comum. Por outro lado, não será “bem visto” socialmente um
homem que lave a sua roupa em casa ou no rio.
Os homens, de um modo geral, não fazem qualquer tentativa de alterar os costumes
tradicionais que atribuíram às mulheres a responsabilidade de executar serviços domésticos,
como lavar roupa, pratos e varrer a casa e o quintal. Em Rio das Rãs, algumas mulheres que
tiveram a experiência de residir no estado de São Paulo estão tentando timidamente alterar
tais regras tradicionais, mas os poucos homens que se sensibilizaram diante dos reclamos
femininos foram compelidos a retroceder diante das piadas e galhofas dos que resistem em
mudar tais costumes.
Em julho de 2007, quando estava na localidade da Brasileira, em Rio das Rãs, pude
constatar que o aprendizado para a repartição das tarefas de acordo com o sexo acontece
“desde cedo”.
No riacho de Rio das Rãs, a jovem esposa Juvenice, casada com Eduardo, lavava os
pratos e as roupas de sua família, enquanto as suas duas filhas, com idades variando entre
seis e sete anos, molhavam a horta de coentro, cebolinha e alface. No mesmo cenário, o
filho de Juvenice, de cerca de oito anos de idade, pescava com uma faca.
As meninas, cuidando da horta, aprendem desde cedo a distinguir o que é uma tarefa
feminina; do mesmo modo, o menino, brincando de pescar, aprende a ser pescador, que é
uma atividade laboral masculina. Ao lado de Juvenice, outra jovem esposa da Brasileira
eviscerava o peixe no rio, que é outra atividade específica das mulheres. Na minha saída,
uma delas comentou com refinado humor: “com todo esse trabalho que o senhor está vendo
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
137

a gente tem que correr, porque precisamos ainda fazer o almoço do marido que está em
casa...”

Crianças na Brasileira regando as hortas

A reclamação da filha do meu hospedeiro, em Rio das Rãs, era a de que os seus
irmãos chegavam ao extremo de exigir que ela, além de fazer a comida, estivesse a postos
para, quando eles chegassem do campo ou de qualquer outra atividade, esquentar a comida
e colocar à mesa. Ela se mostrava chateada, não por assumir um papel estipulado para as
mulheres em sua sociedade, mas por sentir que havia sintomas nítidos de abuso da parte dos
homens.
Dona Maria Arcanjo Xavier, da localidade de Enchú, em Rio das Rãs, reconhece e
define com nitidez a divisão sexual do trabalho em sua comunidade: “Eu fui criada, nós
tínhamos uma abundância que não tem nem explicação. Era tão bom. A gente podia criar
cabra, ovelha, porco, que isso aí era criação das mulheres. Dos homens era o gado, os
homens era cuidar do gado, do cavalo, do jegue, do burro.”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
138

Mulher na Brasileira eviscerando peixe no rio das Rãs

A divisão do trabalho social entre homens e mulheres em Rio das Rãs e Mangal se
mantém em comparação com o passado, com pequenas alterações.
Nos detalhes da vida familiar e nas relações cotidianas nos quilombos de Rio das Rãs
e Mangal, pode-se notar a expressão viva das relações de gênero.
De acordo com Miréya Suarez, o uso do conceito de gênero não pode ser reduzido ao
contato sexual entre homens e mulheres, mas ao conjunto das relações sociais entre as
mulheres e entre os homens. Ela parte do pressuposto de que a antropologia clássica tem
uma dívida, sobretudo, com as mulheres que foram invisibilizadas nos relatos etnográficos
ou reduzidas apenas às dimensões que envolvem a sexualidade. Neste sentido, e assumindo
a sua concepção feminista de produção do relato etnográfico, a autora sugere que é “preciso
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
139

observar e descrever o que as mulheres realmente fazem e pensam ao invés de escutar o que
os outros dizem que elas fazem e pensam.”208
As desigualdades entre homens e mulheres fazem parte das práticas culturais nos dois
quilombos, e parece que isso não está vinculado ao fato de os indivíduos terem ou não
informações sobre as etiquetas das sociedades urbanas modernas, e tampouco ao nível de
escolaridade dos atores envolvidos.
Na residência de uma professora de Mangal que me convidara para almoçar, além de
ter preparado a diversificada e saborosa refeição, ela serviu aos presentes: eu, seu esposo e
os dois filhos, um menino e uma menina. Entretanto, a dona da casa somente sentou-se à
mesa depois que todos já estavam concluindo a refeição, mesmo assim com o prato à mão e
ao lado da mesa. Em Rio das Rãs observei, também, que as mulheres não se sentam à mesa
junto com os filhos homens, o marido e o visitante. Depois que os homens terminam a
refeição é que as mulheres sentam-se à mesa.
Na rotina da vida social em Rio das Rãs e Mangal, é possível identificar outros
espaços em que homens e mulheres não compartilham igualdade de condições.
Nos fins de semana, as opções de diversão e lazer nos citados quilombos são
limitadas, a não ser que haja algum evento lúdico-religioso, como a Marujada, a Roda de
São Gonçalo, uma festa do Divino, um batizado ou um casamento. Com o recente aumento
da renda dos moradores – resultado dos recursos do Programa Bolsa Família, das
aposentadorias ou do trabalho assalariado fora do quilombo – e a chegada nos povoados da
água encanada e da luz elétrica, cresceu o hábito de beber cerveja gelada nos pequenos
botecos aos sábados e domingos. Mas esse novo hábito é quase exclusivamente dos
homens, velhos e jovens, já que as mulheres não costumam compartilhar dessa nova
atração com os maridos ou namorados.
Num domingo, um grupo de homens bebia animadamente no bar de Simplício
Arcanjo de Souza (49 anos), na localidade da Brasileira, em Rio das Rãs, e as brincadeiras
picantes corriam soltas em meio às gargalhadas. Do lado de dentro do balcão, Edinéia
Souza, uma das filhas do dono do bar, servia aos homens presentes. Lembrei-me da
conversa que tivera com um grupo de mulheres de um programa de alfabetização que

208
SUÁREZ, Mireya. Enfoques Feministas e Antropologia. Trabalho apresentado no I Encontro Nacional
Enfoques Feministas e as Tradições Disciplinares nas Ciências e na Academia, realizado na UFF em 1994.
Série Antropologia 177, Brasília, 1995, p. 10.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
140

funciona ao lado do bar. Elas falavam da frustração de não poderem compartilhar com os
seus maridos desses escassos momentos de lazer nos fins de semana, como o de beberem
juntos nos botecos, mas ficavam chateadas, sobretudo, quando eles retornavam para suas
casas e nem se lembravam de trazer um guaraná ou uma cerveja para as esposas e seus
filhos.
Quando acontece casais se encontrarem em um mesmo bar, por terem saído juntos
para uma visita a um parente, um compadre ou comadre em outra vila, por exemplo, elas
podem beber, porém, ficam em um espaço à parte e não participam da mesma conversa dos
seus maridos. A única exceção que presenciei foi quando uma visitante que namora um
nativo de Rio das Rãs compartilhou da mesma mesa em que homens bebiam. A visitante
ainda teve direito de participar da animada conversa. A explicação é elementar: homens e
mulheres relevaram aquela presença “estranha” em meio aos homens porque a moça era
uma pessoa de fora, professora da comunidade, portanto, com “licença” para violar as
regras locais.
Mas, nem nessa circunstância especial, as mulheres do quilombo de Rio das Rãs se
atreveram a violar o costume. Elas beberam também no espaço do bar, mas em uma roda
somente delas. Como estavam rindo à vontade, posso imaginar que caçoavam da cena
inusitada daquela moça fora de lugar.
Na vida afetiva conjugal se percebe com mais nitidez que homens e mulheres nos
dois quilombos comportam-se de maneira bem distinta dos casais que conhecemos nos
centros urbanos. Homens e mulheres em Rio das Rãs e Mangal não se beijam em público.
Nos dezesseis anos de estreita relação nos dois quilombos, nunca presenciei casais de
namorados ou esposos se beijarem. Moisés Cândido da Silva (47 anos), da Brasileira, em
Rio das Rãs, professor, músico, compositor e dono da banda do quilombo, portanto, com a
licença poética de escrever e transgredir, me contou que chegou a fazer “uma música pra
Banda Quilombo que fala, ‘tô, tô querendo um beijo, tô tô da tua boca, tô, tô um beijo doce,
vou, vou te deixar louca’”.
No plano da música foi possível ao compositor construir essa imagem poética e
sedutora, porém não há correspondência com a mentalidade vigente no quilombo. Para
Moisés Cândido da Silva, é tão excepcional que homens e mulheres se beijem em público
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
141

que se pode até fazer uma tipologia e definir os momentos em que as exceções podem
ocorrer:

“Os homens aqui pra dar um beijo numa mulher em público, ou ele tá de brincadeira com ela, ou tá de
brincadeira com o outro, tirando o barato de um outro colega pra que ele inveje daquilo, ou então ele tá
dando um sinal, que ele tava alguns tempos fora, ele tá dando um sinal ele chegando em casa, que ele
vai ficar melhor, ficar de bem com ela.”

Moisés explica mais adiante que o ato de beijar é parte de um verdadeiro dilema. Os
casais de namorados que viajaram para São Paulo e aprenderam novos costumes não se
beijavam em público para não desrespeitar os mais velhos. Mas também não procuravam
um lugar reservado, “porque beijar no escuro não podia, porque a moça já podia tá se
perdendo...” Ou seja, sobre ela poderia pesar a séria suspeita de não ser mais virgem, e a
preservação da virgindade nestes quilombos é a condição primária de a mulher ser aceita e
habilitada para o casamento. Apesar de haver casos de mulheres viúvas ou que já tenham
filhos de outra relação se casarem novamente, sobretudo com homens mais idosos.
A separação de casais em Rio das Rãs e Mangal é algo raro, o que não quer dizer que
as mulheres casadas não tenham motivos para tal. Moisés Candido da Silva se refere à
indissolubilidade do casamento de uma maneira peremptória: “casou aqui pro Quilombo de
Rio das Rãs, casou tá casado até os ossos, e até a alma. Agora, a diferença de outros lugares
que eu vejo aqui...”
Moisés explica que a diferença entre Rio das Rãs e os outros lugares que ele mesmo
conheceu, é que na sua comunidade os costumes culturais concederam aos homens direitos
quase ilimitados de ter relações sexuais fora do casamento. Mas, há regras para que isso se
torne aceitável para as mulheres e legitimado na sociedade, e os homens a seguem com
rigor, sob pena de serem censurados pelos mais velhos. A mais importante é a de que o
homem tem permissão para ter relação sexual fora do casamento tão somente se for com
uma mulher “perdida”, isto é, que não seja mais virgem.
As regras sociais de controle das mulheres solteiras, isto é, as virgens, estão mais
frouxas, mas no passado, de acordo com Moisés, os pais eram inflexíveis com o
comportamento do que eles consideravam inaceitáveis:
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
142

“Se até 1979 uma filha minha, ou a filha de qualquer um deles, [saísse] na rua, que fosse ali na casa de
[fulano] e voltasse no escuro com um rapaz, se uma pessoa mais velha pegasse ela no caminho de lá
pra cá junto mais esse rapaz, chegava aqui dizia até que ela já era perdida.”

Neste caso, segundo o depoente, a filha era exemplarmente punida. Quando os pais
não identificavam o rapaz para obrigá-lo a casar com a moça que ele havia supostamente
tirado a virgindade, a reação se voltava contra a filha. Eis o relato detalhado de Moisés
Cândido da Silva sobre a condição da mulher solteira que perdia a virgindade em Rio das
Rãs:

“Ele [o pai] expulsava ela, que fazia na época. Fazia uma casinha pra ela, lá dentro do mato, bem
afastado dele, ou então expulsava ela de qualquer maneira, mas quando fazia isso o pai quando queria
pelo menos ver pelo menos mais por perto. Fazia uma casinha lá dentro do mato, e quando fazia essa
casinha pra ela afastado dos outros, acontecia o que, acontecia que essa casinha que ela tinha feito lá,
ela ia ficar sozinha. Então ela comia mais, ela pelo domínio da mãe que tinha mais pena. O pai deixava
logo geralmente com ela, então aí ela ficava a necessitar, e aí o que aconteceu, os vaqueiro da época
então iam e davam rapadura, meio quilo de toicinho, um quilinho de farinha. E por essas coisas que
eles ofericiam então eles também tinham o direito de dormir com ela. E por ali gerava um [filho].
Esses homens dessa época, uns era, dava por pena, e outros davam por interesse, porque a menina era
nova, e tinha a mulher dele, mas ele podia, o homem no caso do quilombo poderia escapulir, não a
mulher, mas o homem podia, então, começava a ter relação com ela. Tinha uma relação com uma
menina nova dessa, uma menina necessitada, morando sozinha, o colchão na época ou era de um couro
de boi em cima da cama daqueles pau travessado, não era tábua. O camarada começava a perder um
pouco o amor da relação sexual, não o amor pela mulher, mas a relação sexual dentro de casa, ficava
mais forte pra ele poder ir ao atendimento daquela outra, não pintava a criança, quando pintava a
criança, jamais era dele. Ali podia ser de fulano, podia ser de sicrano...”

Alguns aspectos desses costumes mais antigos devem ser evidenciados. O primeiro,
pelo rigor da punição às jovens que perdiam a virgindade, pode-se perceber o rigor de como
no passado eram severas as normas sociais no quilombo. Em segundo lugar, confirma-se
que nessa sociedade, com uma ideologia patriarcal, o homem assumia para si a
responsabilidade de julgar, dar a sentença e punir. Terceiro, os homens tinham licença para
ter relações livres fora do casamento, desde quando as mulheres fossem “solteiras”, isto é,
estivessem no limiar da prostituição. Quarto, as mulheres que perdiam a virgindade eram
expulsas de sua casa e colocadas em um lugar isolado para servirem de exemplo para toda a
sociedade quanto à sua condição de seres “impuros” em que elas se encontravam, no
sentido de Mary Douglas.209 Esta autora, defende a idéia de “que o pouco claro e o

209
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
143

contraditório (da perspectiva da definição social) tendem a ser encarados como


(ritualmente) impuros.”210
Por estarem isoladas e nessa condição liminar, as jovens que perdiam a virgindade
em Rio das Rãs exerciam um extraordinário fascínio sexual nos homens casados, em
sentido análogo ao que fora descrito por Turner sobre os povos africanos Ndembu: “A
paixão sexual é associada à escuridão e também ao segredo.”211 Talvez seja essa a
explicação também para que os homens de Rio das Rãs, conforme o relato de Moisés
Cândido da Silva, ficassem tão atraídos por aquelas jovens colocadas naquela condição de
completo isolamento social, a ponto de diminuir a atração pelas suas próprias esposas. E,
finalmente, o castigo imposto àquelas jovens isoladas do convívio social, por conseguinte
postas em estado de liminaridade, era uma maneira cruel de a jovem aprender a seguir as
regras que a sociedade lhe impunha:

“Durante o período liminar, os neófitos são alternadamente forçados e encorajados a refletir sobre sua
sociedade, seu cosmo, e os poderes que os geram e sustentam. A liminaridade pode ser em parte
descrita como um estágio de reflexão.”212

No quilombo de Rio das Rãs, esse costume de o pai expulsar a filha de casa não é
mais tão comum, mas, por outro lado, as mulheres solteiras que perdem a virgindade e não
se casam com algum homem continuam tendo um status inferiorizado, marginal mesmo.
Moisés da Silva explica como está essa relação:

“O pai não faz isso de expulsar ela da casa, fazer uma casinha pra ela lá, deixar ela abandonada [...]
Mas, a gente sabendo que aquela menina ela é solteira, ela tá ali, os rapaz às vezes já quer ficar com
uma que se diz virgem. [Ela então diz]: ‘você não paga uma cerveja pra mim?’; ‘você não paga uma
guaraná pra mim?’; ‘a gente paga’, naquilo que a gente paga, ela começa com aquele elo de amizade
com a gente, e dá o sintoma que ela tá necessitada de interesse, porque o desejo da gente é ter uma
relação sexual com ela”

É comum em Rio das Rãs, conforme foi salientado por Moisés da Silva, que os filhos
nascidos dessas relações marginais não sejam registrados com o sobrenome do pai. Mesmo
com os comentários recorrentes na comunidade de que certa criança é parecida com esse ou

210
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do ritual Ndembu. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005, p.
141.
211
Idem, p. 112.
212
Ibidem, p. 151.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
144

aquele homem, não se incentiva o suspeito a assumir a paternidade. O curioso é que as


crianças e jovens nessa situação ambígua, ao que parece, vivem na comunidade sem
maiores traumas psicológicos, o que pode ser um forte indício de ser tal hábito muito
comum na vida cultural dos quilombolas de Rio das Rãs.
Em Mangal, não foi possível saber como era a condição da mulher solteira em outras
épocas. Atualmente, o controle sobre as mulheres solteiras parece ser mais flexível do que
aquele observado em Rio das Rãs.
O processo matrimonial, em Mangal, não segue as fases de namoro, noivado e
casamento, como conhecemos em nossa sociedade. Para a jovem professora Clene Farias
de Sá, quando rapazes e moças se conhecem e despertam interesse um pelo outro, eles
marcam encontros furtivos e, caso se identifiquem afetivamente, “se juntam”. Ou seja, vão
morar juntos e se consideram casados.
Como esse enlace pode ter ocorrido sem planejamento, o casal pode ir morar na casa
dos pais do rapaz, ou este busca construir às pressas uma casa precária para conviver com a
mulher, que será doravante considerada esposa. Depois, podem ou não se casar
formalmente. Nessa condição de casados, eles têm um status plenamente reconhecido na
sociedade local.
A ausência da mulher nos espaços considerados masculinos é também um costume na
comunidade de Mangal, como em Rio das Rãs, uma mulher solteira ou casada não
acompanha o seu namorado ou marido para beber cerveja em um bar. Vejamos como a
professora Clene Farias justifica esse costume em sua comunidade:

“Os casados porque as mulheres não têm tempo pra estar lá inda mais durante o dia, num tem um
tempinho pra tá lá de junto e as vez também é aquela coisa que elas não tem costume, de tá junto com
eles. E os solteiros às vezes é porque é aquela coisa que já vem de tradição, que diz onde tem homem
mulher não está, né? Isso aí já vem desde as pessoas mais velhas. ‘Ah, o que é que você ta fazendo
aqui? Você é mulher, vá procurar o seu lugar’, então acho que aí fica...”

Perguntei à entrevistada qual seria esse lugar das mulheres na sociedade de Mangal e,
sem afetação, ela respondeu com um riso no canto da boca de quem entende ser um hábito
cultural estranho para quem não conhece as idiossincrasias da cultura de sua terra:

“Eles, o pessoal acham que é no caso tem [a mulher] que tá em casa. Vamos supor, se for mãe, no
caso, ela pode tá só no lugar só delas mesmo mulher, e não no bar junto com os homens, né? E sim só
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
145

elas mulher e se tiver outro reservado... O que acontece, que às vezes as mulher vai num bar e aí se os
homens tá num lugar, ela tá lá em outro lugar reservado. Só elas as mulheres.”

A regra de não frequentar os bares ao lado dos maridos e namorados é a mesma do


costume verificado em Rio das Rãs. A mulher se sente deslocada quando se encontra em
um ambiente social que ela considera inadequado para os padrões de sua cultura. A
justificativa de Clene de que as mulheres que são mães não poderiam frequentar os bares
presumivelmente por ter obrigações em casa de cuidar dos filhos, reafirma e reforça a
posição desfavorável das mulheres face aos homens.
Tanto em Rio das Rãs como em Mangal, os casais não se abraçam, não trocam beijos
e tampouco andam de mãos dadas em público. Para Clene Farias de Sá, as mulheres teriam
“vergonha” de incorporar esses costumes tão comuns em outras culturas. Mas, ela diz que
essas maneiras de demonstrar afetividade é algo que não interessa muito às mulheres do
Mangal: “se for de andar junto, anda, mas não esse negócio de dadas as mãos.” Clene é
mais específica quando afirma que as próprias mulheres não gostam: “ ‘Ah esse negócio de
coisa, de ficar grudado, de gruda-gruda não, né, pra mim não’.”
No caso dos namorados, a rejeição da exposição pública do casal é justificada pelo
fato de os jovens praticarem “aquele namoro escondido, que às vezes o pai não aceita, a
mãe não aceita, entendeu?”. Essa argumentação se choca com o caso dos indivíduos
casados que têm uma relação legitimada socialmente, mas se recusam do mesmo modo a
fazer tais demonstrações do que consideramos afetividade.
Em Rio das Rãs e em Mangal, os pais ficam sabendo que as filhas estão namorando,
através dos comentários levemente maliciosos dos parentes e vizinhos. Eles comentam
sobre os encontros furtivos invariavelmente em tom de troça. Caso os pais façam objeção
àquele namoro – pelo fato de o pretendente não ser considerado “trabalhador”, beber em
excesso ou por ser de uma parentela rival –, eles conversam com a filha e a advertem.
Mesmo assim, o casal de namorados poderá continuar a se encontrar. Tendo o apoio tácito
dos pais, não haverá comentários com a filha e isso pode ser o sinal verde de que tudo está
em ordem e sendo bem aceito. Mas, nos dois casos, os encontros continuarão sendo às
escondidas. Acontece também de passarem a frequentar lugares comuns, mas sem se
aproximar um do outro.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
146

A aproximação física e afetiva entre homens e mulheres em Rio das Rãs e Mangal é
mais comum nas celebrações públicas, como os bailes, nos finais das festas religiosas, que
sempre acabam em samba, nos casamentos. Nestes casos, os casais podem se abraçar,
dançar juntos e até se beijarem. Mas, essa descontração, talvez, seja provocada pela
ingestão de bebidas.
Algumas mulheres na comunidade de Mangal, de acordo com a minha depoente,
chegam a reclamar das estafantes tarefas que lhes são reservadas no dia a dia da
comunidade: “ ‘Ah, a gente trabalha demais. A gente trabalha demais. Desde a hora que a
gente levanta até a hora que a gente deita na cama. É o tempo todo trabalhando’.” Mas, essa
queixa não chega a se transformar em protesto para mudar o status quo. Ao contrário, as
forças sociais predominantemente patriarcais reproduzem mecanismos dissuasórios que
impedem que os protestos isolados progridam.
Os homens que aceitam fazer, por exemplo, serviços considerados femininos – como
lavar roupa, passar, varrer casa –, são tratados pela sociedade local impiedosamente,
segundo Clene Farias:

“ ‘Ah, fulano agora fulano é...’, eles dizem: ‘aquele ali é viado, faz tudo que a muié manda. Agora
porque a muié saiu, a muié tal, vou ter que fazer isso! Vou fazer isso nada!’”

Com isso, os homens que se sensibilizam em ajudar as suas esposas são prontamente
desencorajados a alterar o que a tradição estabeleceu como princípio normativo.
A poligamia em Mangal é tolerada, segundo Clene, moderadamente. As mulheres que
ouvem falar de casos extraconjugais de seus maridos ficam tristes e desoladas. “Quando a
esposa é traída com “uma pessoa da comunidade”, os homens são severamente censurados:
“ ‘Ah, eu não esperava de fulano fazer isso...’” Mas, como se vê, é uma reprimenda que
mostra uma sutil desaprovação, mas que compreende ser algo passível de acontecer. Em
Rio das Rãs, isto tem uma conotação bem diversa. A ocorrência de casos extraconjugais
neste quilombo parece ser mais frequente e sem uma explícita condenação pública, desde
que a mulher seja “solteira”, isto é, perdeu a virgindade e não se casou.
Provavelmente, essa é a razão para que os homens do Mangal procurem mulheres
fora do casamento em lugares distante do quilombo, como observou Clene Farias, para não
sofrer, assim, um constrangimento público. O fato de Mangal ter uma população menor do
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
147

que Rio das Rãs e o povoado estar concentrado em um território mais exíguo, talvez
explique as diferenças entre os dois quilombos; além disso, deve-se levar em consideração
que o quilombo de Mangal é formado basicamente por duas famílias rivais, o que restringe
muito a ação dos homens que queiram buscar novas aventuras sexuais.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
148

Capítulo III

RELIGIOSIDADE, FEITIÇARIA E PODER NA ÁFRICA E NO BRASIL

Grande parte do pensamento religioso se orienta pela crença em deuses poderosos nos
quais se tem a mais absoluta confiança e fé. Em decorrência dessa crença, a maior parte dos
seguidores das religiões aceita formalmente serem os seus deuses os criadores do universo,
da natureza terrestre, dos homens e, baseado em seus ensinamentos, é possível explicar
acontecimentos do passado, do presente e mesmo projetar o futuro. A religião, neste
sentido, é vista, de um modo geral, como um sistema de crença integrado a um conjunto
ordenado de dogmas e de ritos sistematizados teologicamente. As grandes religiões de
revelação, como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo podem se enquadrar nesse
simplificado modelo.
Existem outras modalidades de religião que compartilham de enunciados presentes
nas referidas religiões de revelação, mas que se diferenciam quanto ao relacionamento e
formas de comunicação dos indivíduos com os deuses, aos valores e obrigações outorgadas
a eles, às práticas rituais, às formas e objetos de oferendas e, sobretudo, quanto às
motivações individuais e coletivas de religiosidades213. É o caso, por exemplo, das religiões
e religiosidades tradicionais africanas.214
Em algumas dessas modalidades, notadamente as que influenciaram os africanos que
vieram escravizados para o Brasil, a prática religiosa não está reduzida a uma ação
particular de indivíduos, e sim faz parte do sistema de organização social, da atividade
laboral, da vida econômica e do modo de organização do sistema de parentesco. Ou seja, o
sistema religioso articula e, em certo sentido, orienta as ações dos indivíduos em todas as
atividades rotineiras de sua sociedade. Assim, através da idéia de Tylor, que concebia a

213
O conceito de religiosidade, ao contrário do que evoca a formalidade religiosa, será empregado em todo o
texto de acordo com a sugestão de Marc Piault: “para dar conta sobretudo das atitudes, das práticas e das
expectativas...” PIAULT, Marc Henri. A questão do sentido: progressões, práticas emergentes e expectativas.
In: BIRMAN, Patrícia. (Org.) Religião e espaço público. São Paulo: CNPq/PRONEX/ATTAR Editorial,
2003, p. 369.
214
O conceito de tradicional é empregado aqui no sentido temporal para se referir às religiões autóctones
presentes em quase toda África negra.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
149

religião como “a crença em seres espirituais”215, não é possível, de acordo com a crítica de
Pritchard, compreender as práticas religiosas e o sentido de religiosidade africana. Nas
cosmologias africanas, incluem-se dimensões que estão ausentes nas idéias mais
ocidentalizadas de religião, a exemplo da “magia, totemismo, tabu e mesmo bruxaria...”216
Antes de discutir o que diferencia o pensamento religioso africano de outras formas
de religiosidades, sobretudo, o de origem ocidental, faz-se necessário distinguir, de modo
breve, o que alguns autores escreveram sobre esse fenômeno.
Os antropólogos que estudaram os fatos religiosos, após terem realizado pesquisas de
campo com os povos tradicionais da África, Ásia, Oceania e América, ainda que tenham
aprimorado a noção de religião, não conseguiram elaborar um conceito mais sociológico,
na opinião de Evans-Pritchard. Lowie, por exemplo, associou o fato religioso à emoção.
Paul Radin, por outro lado, acreditava que o “sentimento religioso” estivesse vinculado aos
“valores de sucesso, felicidade e vida longa...”217 Enquanto Malinowski imaginou que a
religião provocaria nos homens alívio diante do medo e da ansiedade. Com esse mesmo
viés, Sigmund Freud considerava que os chamados povos primitivos supervalorizaram o
pensamento, daí a importância das palavras para os mágicos. Ele acreditava, ainda, que “a
religião é igualmente uma ilusão. Ela surgiu e [foi] mantida por seu sentimento de
culpa.”218
Estas concepções psicologistas de religião foram duramente criticadas por Pritchard,
em parte pelo caráter especulativo, mas também pela presumida individualização das
condutas religiosas concebidas em tais teorias.
Faltava, portanto, o fato religioso ser discutido sociologicamente, isto é, como um
fenômeno não dissociado da cultura de um povo e da sua experiência de viver em
sociedade. Fatores psicológicos como emoção, medo, temor, espanto podem ter
influenciado no surgimento da religião, mas tais fatores, isoladamente, não poderiam
determinar o surgimento das mesmas. A influência do sistema de parentesco nas
religiosidades dos povos estudados pelos referidos autores, largamente aceita nas ciências

215
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social da Religião. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1987, p.
14.
216
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social da Religião, p. 14.
217
Idem, p. 59.
218
Idem, 63.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
150

sociais contemporâneas, é um exemplo de como eram precários os psicologismos


individualistas evocados nessas teorias.
A concepção de religião de Durkheim, ainda que tenha tido a pretensão de discutir o
fato religioso do ponto de vista sociológico, de acordo com a crítica de Evans-Pritchard, de
fato retornara ao psicologismo (ainda que coletivo) evocado nas citadas teorias, ao supor
que a imagem totêmica provocaria uma espécie de “excitação emocional de indivíduos
reunidos numa pequena multidão...”219 Seria desse modo, também, que os indivíduos se
perceberiam fazendo parte de uma coletividade social, conforme pensava Durkheim. Para
ele, o que os chamados povos primitivos cultuavam era a própria sociedade, mediante a
reverência aos símbolos totêmicos. Essa deificação da sociedade foi sutil e duramente
ironizada por Pritchard: “Para Freud, Deus é o pai, para Durkheim, Deus é a sociedade.”220
Evans-Pritchard antecipa uma concepção de religião que se aproxima muito dos
debates antropológicos atuais sobre o tema: ao antropólogo, defende ele, interessa saber
“como as práticas religiosas afetam as mentes em qualquer sociedade, como afetam os
sentimentos, as vidas e as inter-relações entre os membros da sociedade.”221 Desse ponto de
vista, as religiosidades não poderiam jamais ser consideradas uma ilusão, como aludiu
Freud. Isto porque, conforme observou Marcel Mauss, as “noções religiosas, porque nela se
acredita, existem; existem objetivamente, como fatos sociais.”222
É importante lembrar ainda Max Weber, no seu livro A ética protestante e o espírito
do capitalismo,223 no qual o autor defende a tese de que os princípios éticos do
protestantismo, como a disciplina, a austeridade, a vocação e o dever seriam fundamentais
na conformação de valores sociais de toda uma época histórica. Isso quer dizer que os
fenômenos religiosos, mesmo os que se orientam por princípios abstratos de salvação
eterna, podem influenciar a mentalidade e a representação social de uma época e, por
conseguinte, a ação individual e coletiva dos sujeitos. Pode-se inferir, portanto, que as
práticas religiosas são construções humanas que repercutem na história dos indivíduos e das
sociedades.

219
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social da Religião, p. 97
220
Idem, p. 91.
221
Idem, p. 164.
222
MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 226.
223
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
151

Em algumas religiões africanas, os objetos sagrados são concebidos, construídos e


tornados sagrados por operações humanas, e não pelo sopro divino que os investe de força.
De conformidade com essa concepção, ao se incorporar a certos objetos palavras
apropriadas e substâncias especiais, atribuem-se aos mesmos (amuletos, pedras e outros)
um caráter sagrado. Compete aos indivíduos, mediante conhecimentos transmitidos
ancestralmente, sacralizar os objetos, e não os deuses. Em outras circunstâncias, os mesmos
objetos não têm qualquer valor religioso. Na opinião de Eliade, que compartilha da crítica a
Durkheim de que não há uma separação absoluta entre o sagrado e o profano, o objeto
investido do sagrado “quer tornar-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo,
porque continua a participar do meio cósmico envolvente.”224 Adiante, o mesmo autor
afirma que a construção do espaço ou do objeto sagrado pelo homem “é eficiente à medida
que ele reproduz a obra dos deuses.”225
A reprodução das obras dos deuses, conforme pensa o autor, é uma criação humana
datada historicamente e construída pelas injunções de uma determinada cultura, e neste
sentido, além de dialogar com os seus deuses os homens certamente estavam (e estão)
dialogando consigo mesmos e com os semelhantes com os quais compartilham da
sociedade em que vivem. Por esses motivos, o sagrado não pode ser absolutamente
separado do profano ou daquilo que os indivíduos constroem como cultura.

Elementos do pensamento e religiosidades africanas

Alguns autores reconhecem a legitimidade de um pensamento africano ou a


existência de experiências culturais e religiosas tipicamente africanas, presentes tanto nos
relatos dos povos como nas descrições dos investigadores que refletiram sobre a realidade
nesse continente. A centralidade da oralidade como mecanismo de comunicação e de
expressão cultural, é uma das variantes do que podemos chamar de pensamento africano.
As civilizações africanas mais tradicionais se utilizaram da oralidade como um
mecanismo fundamental para a “preservação da sabedoria dos ancestrais...”226 Para

224
ELIADE, Mircea. O sagrado e profano – a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 18.
225
Idem, p. 32.
226
VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História da África -
metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, 157.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
152

Vansina, que não põe em dúvida o valor documental das tradições orais, esta “foi definida
como um testamento transmitido oralmente de uma geração a outra.”227
A oralidade, entretanto, já foi considerada uma ferramenta pouco confiável, sobretudo
pelos historiadores. Le Goff, por exemplo, alerta que é preciso ter cuidado com o uso desse
método. A memória oral, de acordo com o autor, carece ser interpretada e não deve ser
traduzida “palavra por palavra”.228 Ele quer dizer que não é qualquer palavra pronunciada
que pode representar a experiência histórica de um povo; nas sociedades nas quais a escrita
não predomina, as narrativas orais confiáveis são reservadas aos especialistas. Os
indivíduos mais velhos exercem nessas sociedades um papel proeminente, justamente
porque a alguns deles são delegadas responsabilidades de narrar feitos ancestrais. Por essa
razão, “a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um
objeto de poder.”229 Essa é a razão da importância da assertiva que, de acordo com Augé, é
atribuída à “fórmula de Hampaté Bâ segundo a qual, na África, um velho que morre é uma
biblioteca que se queima...”230
O sábio africano referido por Augé assinala também que, durante muito tempo, se
imaginou ser a escrita redutível à civilização humana em geral, sendo que os povos que não
a dominassem seriam considerados sem cultura e sem história. Mas, a palavra na cultura
africana é igualmente fundamental, de acordo com Hampaté Bâ, porque ela encerra o
“poder criador, mas também a dupla função de conservar e destruir.”231 O autor se refere,
especialmente, ao poder construtor e destruidor que tem a palavra nos rituais religiosos
africanos, embora a importância da palavra não se restrinja a esta dimensão.
A tradição oral não se refere apenas à responsabilidade de narrativas ou à descrição
de conhecimentos específicos, ela “é geradora e formadora de um tipo particular de
homem.”232 Hampaté Bâ fala que o domínio da tradição oral, além de ser, como
observaram outros autores, uma função especializada, é parte do patrimônio de uma
civilização, o que significa dizer, ela está inscrita nessa cultura como um importante

227
Idem, p. 158.
228
LE GOFF, Jaques (et. ali). História e memória. 2. ed. Campinas: Editora UNICAMP, 1992, p. 426.
229
LE GOF, Op. Cit. p. 476.
230
AUGÉ, Marc. Não-Lugares – introdução a uma antropologia da supermodernidade. 2. ed. Campinas:
Papirus, 2001, p. 14.
231
HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História da África –
metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p. 186.
232
Idem, p. 199.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
153

instrumento de conhecimento e poder. Daí a preocupação dos colonizadores ao procurar


remover as tradições autóctones africanas “para implantar no seu lugar suas próprias
concepções.”233
A palavra também está associada às narrativas dos mitos religiosos, pois toda
filosofia africana tem uma relação estreita com “uma visão religiosa do mundo”234,
conforme assinala o citado autor: “nos processos primordiais da criação, seu responsável, o
preexistente, não raro utilizou-se da palavra, isto é, usou de sua própria substância
configurada em energia, fluido ou sopro vitais, para desencadear o processo, o qual inclui o
mundo e o homem.”235
Portanto, a oralidade é parte da experiência africana, e pode, desse modo, ser
considerada uma das particularidades de sua cultura. O que não significa dizer que tal
componente cultural seja uma exclusividade africana e tampouco que ela esteja
impossibilitada de compartilhar das experiências culturais nas quais prevaleçam os registros
escritos.
A religiosidade é outro elemento importante da cosmogonia ou do que está se
chamando aqui de pensamento africano.
Como ponto de partida para a minha argumentação, adoto o conceito de religião
africana proposto por Cramer, Vansina e Fox: como um sistema de símbolos, convicções,
mitos e ritos experimentados como profundamente significativos, sobretudo, porque
proporcionam aos indivíduos, grupos e sociedades que as adotam uma orientação para as
suas existências sociais e morais.236 A esta concepção de religião, acrescento, por não
considerar antagônico, as idéias de Parés de que este tipo de religiosidade se preocupa
fundamentalmente “com a sustentabilidade da vida neste mundo...”237
A partir desta concepção, é possível incluir na categoria de religiosidade, segundo o
autor, “a produção de amuletos, rituais de cura ou atividades de feitiçaria, que desde o

233
Idem, p. 217.
234
Idem, p. 186.
235
LEITE, Fábio. A questão da Palavra em sociedades Negro-Africanas. Revista THOT 80, s/d, p. 37.
236
CRAMER, de Willy, VANSINA, Jan, FOX, Renée C. Religions in of Movements Central Africa:
Theorical Study. Comparatives Studies in Society and History, 1976.
237
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé – história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas:
Editora UNICAMP, 2006, p. 104.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
154

ponto de vista da tradição antropológica e também da ortodoxia das religiões de revelação


dificilmente seriam cabíveis sob o rótulo de religião.”238
A prática ritual é de fundamental importância no processo de vivência e experiência
das religiosidades tradicionais africanas. Dança, música e transe ocupam, de acordo com a
percepção de Cramer, Vansina e Fox, um lugar especial nos rituais religiosos da África
Central. A orientação pela filosofia do complexo fortuna-infortúnio, ou seja, a busca pelas
realizações positivas na vida, ao mesmo tempo em que se previnem e se anulam
acontecimentos nefastos, é igualmente central na cultura religiosa dessa área da África. Isso
quer dizer que os indivíduos e as coletividades estão sempre atentos às ocorrências que
desequilibrem ou perturbem a saúde física e mental ou alterem outro plano qualquer da vida
social dos povos portadores dessas crenças.
Nesta concepção de religiosidade, todas as experiências humanas desejáveis são
consideradas parte da ordem natural das coisas. Daí o reconhecimento de valores positivos
como a saúde, a fecundidade, a harmonia, o poder, a riqueza; enquanto a enfermidade, a
esterilidade, o fracasso, o empobrecimento, a morte são vistos com males que devem ser
atribuídos à bruxaria ou feitiçaria.239
Para Blakley, Van Beek e Thompson a religião na África está mais próxima do
paradigma da performance. Desse ponto de vista, a religião “significa fazer ou performar
algo: consultar um adivinho, oferecer um sacrifício, rezar, falar sobre um problema,
entronizar um chefe, cair em transe, fazer magia…”240 Neste sentido, os rituais religiosos
fazem parte da rotina dos indivíduos, o que sugere ser a religião uma ferramenta para se
realizar algo que interessa aos indivíduos que compartilham dessas crenças. Os que
procurariam a proteção religiosa estariam interessados em respostas para determinadas
necessidades humanas. Mais do que a comunicação com seres sobrenaturais, o sentimento e
a prática religiosa serviriam a propósitos terrenos e humanos.
Para os citados autores, a religiosidade africana deve ser analisada a partir de
categorias teóricas como tradução e comparação. A tradução representaria a significação
atribuída à religião transportada de um sistema cultural para outro. Os autores entendem

238
Idem, p. 104.
239
CRAMER, de Willy, VANSINA, Jan, FOX, Renée C, 1976.
240
THONSON, Dennis L., VAN BEEK, Walter E. A., BLAKELY, Thomas D. (eds.) Religion in Africa:
Experience e Expression. (Introduction) London: Portmouth: James Currey; Heinemann, 1994. p. 23
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
155

que o traduzir torna-se ainda mais interessante, na medida em que seja possível comparar
com outros sistemas religiosos com diferentes princípios. No caso das religiosidades
africanas que dialogaram com diferentes experiências, a tradução seria o cerne dessa
concepção. No processo de aproximação cultural entre duas ou mais formas de
religiosidades, tanto a religião de origem como a religião de contato seriam igualmente
modificadas “e, ao fazê-lo, transforma[ria]m tanto a expressão como a experiência.”241
Os autores consideram também que essa plasticidade da religiosidade africana em
incorporar outras experiências ajudou-a a fugir da oposição contrastiva ego/alter para uma
idéia de relação, que melhor explicaria as expressões religiosas africanas.
Nas duas concepções de religiosidades africanas aqui expostas – a da experiência e a
da performance –, o fato religioso tem uma dimensão dinâmica, isto é, está propenso e
permeável a se reatualizar e sofrer influências de outras culturas. Isso explicaria porque na
experiência dos cultos de possessão entre os somali estudados por Lewis, tanto os espíritos
como também os cultos praticados estariam se reconfigurando por influência das mudanças
sociais e culturais. As alterações identificadas refletiriam igualmente os papéis sociais
desempenhados por homens e mulheres na sociedade. A autora teoriza que na “chegada
desses novos acréscimos de espíritos, refletindo novos contatos e novas experiências,
alguns dos velhos espíritos se tornam inúteis e desaparecem.”242 Com isso, querendo
afirmar que essas religiosidades têm uma relação direta com o contexto do seu surgimento e
as mudanças culturais que ocorrem na sociedade somali.
George Balandier afirma que há uma dialética na tradição religiosa africana em que
“tudo se traduz por um jogo de forças e de relações, tudo se exprime por uma dinâmica
constitutiva do real, para o qual se efetua o constante embate da ordem e da desordem.”243
A ordem deve ser concebida como a manutenção do equilíbrio social e a permanência
daquilo que é instituído pelas normas e códigos da tradição. Quando a ordem é abalada, é
um indicador de que um possível ataque de feitiçaria esteja a caminho. Nessa cosmologia, o
caráter antissocial da feitiçaria se define por estar na contramão da ordem social, isso

241
Idem, p. 25
242
LEWIS, Ioan M. Êxtase Religioso: um estudo antropológico da possessão por espírito e do xamanismo.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1977 [1971], p. 122.
243
BALANDIER, Georges. O Contorno: poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p.
38/9.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
156

porque o “feiticeiro manipula a desordem em seu proveito.”244 Neste mesmo sentido,


Macgaffey identifica que entre os congoleses há uma crença de que a “aflição” decorre do
descumprimento de regras ou por bruxaria.245 Nos dois exemplos, há uma correlação entre
a ocorrência do mal e descumprimento dos códigos sociais.
Pela sua coerência, o pensamento africano tradicional é invariavelmente comparado à
lógica da racionalidade. Alguns autores postulam até uma homologia entre o pensamento
africano e a ciência, a exemplo de Hobin Horton. Para ele, os pontos de vista das ciências
naturais têm “muito a ver com o pensamento religioso tradicional africano.”246 Não faz
sentido supor que esse pensamento seja irracional, por ser ele guiado pela religiosidade que
lhe é imanente. No pensamento africano, de acordo com Horton, a passagem do senso
comum a outro nível de complexidade causal, incluindo as causas místicas, seria um
desenvolvimento teórico. O mesmo autor arremata: “na África, como na Europa, o salto se
produz no momento em que a limitada visão causal do senso comum se torna inútil para dar
conta da situação em questão.”247 Ele identifica ainda diferenças entre a ciência e a religião,
sobretudo porque esta “radica antes de mais nada na linguagem da investigação
explicativa.”248 Outras diferenças são enumeradas, a exemplo da pouca consciência que o
pensamento religioso africano tem das alternativas diante dos princípios estabelecidos;
dificuldades diante da alteração da ordem tradicional ou do fracasso diante da predição.
Além das diferenças citadas, o autor argumenta que a ciência buscaria na avaliação
permanente a base de sua renovação e superação, no “pensamento tradicional a experiência
é que determina principalmente a teoria.”249
Max Gluckman, embora não seja tão otimista e simpático ao pensamento africano
quanto Hobin, considera que a “teoria da bruxaria resulta ser racional e lógica, ainda que

244
Idem, p. 52.
245
MACGAFFEY, Wyatt. Kimbanguism and the question of Syncretism in Zaire. In: THONSON, Dennis L.,
VAN BEEK, Walter E. A., BLAKELY, Thomas D. (eds.) Religion in Africa: Experience e Expression.
London: Portmouth: James Currey; Heinemann, 1994.
246
HORTON, Hobin. El pensamiento tradicional africano y la ciencia Occidental. In: GLUCKMAN, Max,
DOUGLAS, Mary, HORTON, Hobin. Ciencia y Brujeria. Barcelona: Editorial ANAGRAMA, 3. ed., 1991,
p. 75.
247
HOBIN, Horton, p. 80.
248
Idem, p. 86.
249
Idem, p. 107.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
157

não seja certa.”250 Mary Douglas, em certo sentido, reforça o argumento de que há lógica
no pensamento tradicional africano, na medida em que suas crenças mantêm o equilíbrio
dos sistemas sociais. Por esse motivo, ela credita a Evans-Pritchard ter colocado a crença na
bruxaria entre os Azande “como parte do problema da explicação como tal.”251
Essa correlação entre o pensamento científico e as construções de religiosidade no
pensamento africano já havia sido observada por alguns clássicos da antropologia, ainda
que timidamente. Malinowski via uma distinção radical entre ciência e pensamento africano
tradicional: a “ciência fundamenta-se na convicção de que a experiência, o esforço e a
razão são válidos; a magia, na crença de que a esperança não pode falhar nem o desejo
iludir.”252 Marcel Mauss argumentou, por outro lado, que o mágico por experiência ou
revelação possui conhecimentos e, de acordo como o seu ponto de vista, é “neste ponto que
a magia mais se aproxima da ciência, sendo mesmo, algumas vezes, nesse sentido, muito
sábia, se não verdadeiramente científica.”253
As diferentes recriações e acréscimos de religiosidades na diáspora e, sobretudo, no
Brasil, podem muito bem ser inseridas nessa visão mais maleável das tradicionais religiões
africanas. A seguir, veremos que esta concepção será útil e operacional para se entender
uma grande variedade de situações, práticas e comportamentos religiosos no Brasil.

Religiosidades afro-brasileiras, feitiçaria e poder

Possivelmente pela enorme influência da colonização católica portuguesa, a


concepção hegemônica que parece prevalecer de religiosidade no Brasil seja aquela mais
ocidental e individualista, que pressupõe ser a religião dos indivíduos um domínio que
compete exclusivamente às suas escolhas pessoais. Talvez por isso, seja muito frequente se
ouvir discursos que defendem que preferência religiosa não se discute. Querendo isto dizer

250
GLUCKMAN, Max. La logica de la ciencia y de la brujeria africanas. In: GLUCKMAN, Max,
DOUGLAS, Mary, HORTON, Hobin. Ciencia y Brujeria. Barcelona: Editorial ANAGRAMA, 3. ed., 1991, p.
21.
251
DOUGLAS, Mary. Brujeria: el estado de la question – treinta años después de Brujeria, Oráculos y Magia
entre los Azande. In: GLUCKMAN, Max, DOUGLAS, Mary, HORTON, Hobin. Ciencia y Brujeria.
Barcelona: Editorial ANAGRAMA, 3. ed.,1991, p. 36.
252
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 90.
253
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974, p. 105.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
158

ser a religião algo privado, como o são as presumíveis escolhas autônomas que se faz para
uma relação afetiva ou para se torcer por um time de futebol.
Mas, a percepção dos indivíduos familiarizados com as religiões e religiosidades
africanas e afro-brasileiras diferem dessa presumida individuação das concepções religiosas
hegemônicas no Brasil, notadamente as originadas do cristianismo.
Nos terreiros de candomblé, por exemplo, é habitual se ouvir que os indivíduos não
procuraram os terreiros do qual fazem parte, foram os Orixás que as escolheram e as
trouxeram. Nessa idéia está subtendida, por um lado, que a escolha religiosa não é privativa
do indivíduo, pois ele faz parte de uma cultura que o obriga a aceitar as injunções
estabelecidas ancestralmente; por outro lado, sugere também que cada indivíduo já nasce
com certas predisposições (Ori) definidas por forças espirituais que comandam a sua ação.
As idiossincrasias quanto à liberdade de escolha dos indivíduos nas duas experiências
de religiosidades aqui citadas podem ter sido influenciadas pela história de fundação dessas
experiências.
As religiões de origem africana não tiveram na história do Brasil, até janeiro de 1976,
a mesma liberdade de cultuar os seus deuses como tiveram os praticantes do catolicismo.
Além disso, o reconhecimento e a legitimação social dos cultos afro-brasileiros como
religiões sempre foi algo problemático na sociedade brasileira; não esquecendo que até a
década de setenta do século vinte os terreiros tinham que receber autorização da polícia
para realizar os seus rituais, por serem consideradas contravenções penais.254 Mais
recentemente, em resposta às violências perpetradas por igrejas neo-pentencostais, as
lideranças das religiões afro-brasileiras foram obrigadas a criar um movimento contra a
intolerância religiosa.255
Em tais circunstâncias, a questão da escolha religiosa e, sobretudo, a sua admissão
pública, certamente pode ter sido também influenciada por esses condicionantes políticos,
sem que isso invalide as razões de ordem cosmológica mencionadas acima.

254
Cf. BRAGA, Julio. Na gamela do Feitiço: repressão e resistência nos Candomblés da Bahia. Salvador:
CEAO/EDUFBA, 1995; BRAGA, Julio. A Cadeira de Ogã e outros ensaios. Rio de Janeiro: PALLAS, 1999.
255
Cf. SILVA, Vagner Gonçalves (org.). Intolerância Religiosa – impactos do neopentecostalismo no campo
religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007; BIRMAN, Patrícia (org.). Religião e espaço público.São
Paulo: CNPq/PRONEX/ATTAR Editorial, 2003; OLIVEIRA, Rafael Soares (org.) Candomblé – diálogos
fraternos contra a intolerância religiosa. Rio de Janeiro: DP&A, 2007.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
159

A feitiçaria, uma das variantes mais complexa da religiosidade africana e afro-


brasileira, é um fenômeno cultural universal e a sua incidência em diferentes partes do
mundo tem sido largamente atestada pelos mais diferentes estudiosos.
Embora no continente europeu a feitiçaria ou a bruxaria – termo mais usual na
Europa – tenha sido formalmente extinta, há autores que advogam ter ainda o pensamento
mágico grande influência na Europa, EUA e na Ásia industrializada, regiões onde se
presumiria estar tal fenômeno proscrito.256 O fato é que tanto na África como também no
Brasil a feitiçaria continua tendo uma importante influência na sociedade.
Não há um consenso na antropologia e nas ciências sociais em geral sobre o que é a
feitiçaria. Invariavelmente os autores utilizam-se, na ausência de uma definição mais
categórica, de termos nativos empregados para descrever experiências particulares em lidar
com o fenômeno. A falta de unanimidade parece refletir também certa tendência da própria
feitiçaria em assumir uma multiplicidade de formas e disfarces para se adaptar a cada
realidade onde se faz presente. Como ela é, de modo geral, uma ação contrária aos
princípios morais das sociedades, e os feiticeiros indivíduos temidos, a dissimulação
termina sendo um dos mecanismos para esconder a natureza das suas ações e a extensão e
amplitude de suas finalidades. Conceber a feitiçaria como um atentado praticado por
indivíduos maldosos e manipuladores de “forças ocultas” contra indivíduos indefesos,
portanto, resume, apenas, uma das suas muitas facetas.
Segundo Evans-Pritchard, no seu livro clássico Bruxaria, oráculos e magia entre os
Azande, um “bruxo não pratica ritos, não profere encantações e não possui drogas mágicas.
Um ato de bruxaria é um ato psíquico.”257 Nesta definição, está mais do que evidente que a
feitiçaria ou bruxaria, como ele prefere designar em sua experiência entre os Azande,
decorre da existência de uma força mágica que sugestiona os indivíduos a acreditarem nela
como uma ação perigosa. Embora não haja dúvida de que a indução psicológica da crença
seja de fundamental importância para a disseminação da feitiçaria, esse talvez não seja o
seu principal nem o mais importante traço.

256
Cf. LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia, Antropologia. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1999.
257
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1978, p. 37.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
160

A feitiçaria, antes de qualquer coisa, é um fenômeno cultural e social. Dessa forma, é


enganosa a conclusão peremptória de Pritchard de que não possa haver na feitiçaria ritos,
encantações e o uso de substâncias mágicas. Em muitas culturas, inclusive na África
Oriental e Central, como salienta Lucy Mair,258 bruxaria e feitiçaria não têm essa distinção
sugerida por Evans-Pritchard e, em outras culturas como aqui no Brasil, a feitiçaria é
praticada com o uso de todas as técnicas que o autor supõe fazer parte exclusivamente do
arsenal da bruxaria.
Penso que seja necessário, ao invés de distinguir bruxaria de feitiçaria, considerar
que as duas modalidades de religiosidade são do mesmo gênero, sendo as suas distinções
consideradas espécies de como o fenômeno se configura em cada situação concreta. Turner
argumenta neste sentido, ao asseverar que as “crenças em bruxaria não podem mais – se é
que alguma vez puderam – ser agrupadas de forma útil em duas categorias contrastantes,
bruxaria (no seu sentido estrito) e feitiçaria.”259
Laburthe-Tolra e Warnier concordam com a idéia de Evans-Pritchard sobre o
componente psicológico do enfeitiçamento. Eles argumentam que a eficácia do
enfeitiçamento depende de o indivíduo estar “consciente de ser objeto de um malefício, ele
se convence de sua desgraça, assim como todos que o rodeiam.”260
Ainda que a psicologia do enfeitiçamento seja um fator explicativo para a sua
ocorrência e proliferação na sociedade, permanece a desconfiança que tal inflexão não
passe de uma tentativa de explicar a feitiçaria pela interiorização individual desse
fenômeno. Dessa forma, não se observaria o caráter social da feitiçaria, ou seja, como um
fenômeno que se incorpora à sociedade mediante uma crença poderosa e um discurso capaz
de explicar eventos – como a doença, os resultados adversos na agricultura, na pesca, na
caça e outros infortúnios – carentes de uma interpretação lógica. Ou seja, uma perspectiva
que concebe a feitiçaria enquanto um conhecimento.
A permanência e a regularidade de certos costumes, etiquetas e práticas numa
sociedade resultam no que a sociologia chama instituição. Para Marcel Mauss, as
“instituições só existem nas representações que a sociedade faz delas. [...] Tudo se passa na
esfera da opinião pública; mas esta é propriamente aquilo que chamamos o sistema das

258
MAIR, Lucy. La brujeria en los pueblos primitivos actuales. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1969.
259
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do Ritual Ndembu. Niterói/RJ: EDUFF, 2005, p. 166.
260
LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre, p. 325.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
161

representações coletivas.”261 Uma prática social se torna uma instituição social duradoura,
se ele se mantém inabalável independentemente do juízo moral que os indivíduos façam
dele.
A feitiçaria, de acordo com esta concepção, é uma instituição social, inclusive no
contexto da modernidade pois, a despeito de todo o fascínio exercido pela racionalização da
vida moderna, não conseguimos abandonar, mesmo que irrefletidamente, certos receios e
temores tipicamente relacionados aos discursos da feitiçaria.
É comum em nossa sociedade, por exemplo, o medo do escuro, de ruídos estranhos
na madrugada e de pessoas com aspecto lúgubre que fixem o olhar em recém-nascidos.
Nestes exemplos, os nossos temores podem estar relacionados à idéia que construímos
socialmente de que existem indivíduos com poderes e energias capazes de provocar o mal.
É por esse e outros motivos que a feitiçaria atravessou gerações e períodos históricos e
permanece com força no mundo contemporâneo, onde se tornou uma instituição social.
Portanto, é inadequado o diagnóstico de Mair de que as “crenças na bruxaria florescem
naquelas sociedades que têm um conhecimento médico insuficiente...”262 Neste juízo de
Mair, está subtendido que a feitiçaria seria uma instituição incapaz de se renovar e,
portanto, sem condições de rivalizar com outras maneiras de explicar ocorrências naturais e
sociais. Em outra parte deste texto, vou tentar demonstrar que o discurso da feitiçaria
convive com a modernidade e que não há um antagonismo entre os dois discursos.
Por considerar a feitiçaria do ponto de vista da sua representação simbólica e da
eficácia que a mesma exerce nas relações sociais, somos inclinados a corroborar com a
mesma proposição de Mary Douglas:

Ou “o poder da magia é pura ilusão [como queria Freud], ou não é. Se não é ilusão, então os símbolos
têm o poder de operar mudanças. Deixando os milagres de lado, este poder pode atuar somente em
dois níveis, o da psicologia individual e da vida social”.263

Roberto Da Matta, comentando o livro Floresta de Símbolos, de Victor Turner,


lembra “que os símbolos fazem coisas e, com isso, transformam situações, estados e

261
MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia, pp. 19/20.
262
MAIR, Lucy, p. 9.
263
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976, p. 89.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
162

pessoas.”264 Nas duas assertivas referidas, tanto a de Douglas como a de Da Matta,


reafirma-se a concepção de que os símbolos em geral, inclusive os mágicos, devem ser
considerados nas duas dimensões em que eles influenciam: a da ação individual do sujeito
(a dimensão psicológica) e a da determinação social de seu comportamento.
Ao descrever a tipologia dos símbolos, Victor Turner identifica “ainda que cada
símbolo seja mais multirreferencial do que unirreferencial.”265 Isso quer dizer que, nos
processos rituais, os símbolos podem ter diferentes impactos e significados na estrutura
social. Assim, Da Matta e Douglas parecem concordar com as interpretações sociológicas
de Turner, quanto à repercussão dos símbolos na vida social: os símbolos podem ser
descritos, “como ‘forças’, na medida em que constituem influências determináveis que
inclinam pessoas ou grupos para a ação.”266
É a aceitação da feitiçaria como realidade balizadora da conduta dos indivíduos, isto
é, pela força de sua ação simbólica, que a torna uma influente instituição nas relações
sociais. Influência que enquadra e define a ação dos indivíduos. Reside aí a sua frequente
associação com o poder, no mesmo sentido proposto por Giddens, a “capacidade dos seres
humanos de intervir em uma série de acontecimentos de modo a alterar o seu curso.”267
Por ser a prática da feitiçaria mais próxima da penumbra, espaço típico da
liminaridade, locus da ambiguidade, no sentido de Turner, isto não significa que o feiticeiro
não postule a condição de protagonista, sobretudo, de ser visto e temido. E, talvez, seja essa
a explicação por que as denúncias de feitiçaria são íntimas dos contextos onde ocorrem
disputas políticas, tanto para alterar como para manter o poder.
A recusa em certos espaços da modernidade de se aceitar a realidade de instituições
como a feitiçaria, inclusive no âmbito do poder, que é visto como espaço por excelência da
racionalidade, tem uma boa explicação em Foucault: é “característico de nossas sociedades
ocidentais que a linguagem do poder seja [a do] direito e não a [da] magia ou [da]
religião.”268

264
Da MATTA, Roberto. Apresentação Liminar à obra e à graça de Victor Turner e à sua Antropologia da
Ambigüidade. In: TURNER, Victor. Floresta de Símbolos, p. 26.
265
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos, p. 60/61.
266
Idem, p. 68.
267
GIDDENS, Anthony. Política, Sociologia e Teoria Social – encontros com o pensamento social clássico e
contemporâneo. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 257.
268
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 21. ed. Rio de Janeiro: GRAAL, 2005, p. 250.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
163

Outro aspecto importante a ser considerado é que o conhecimento é um instrumento


fundamental no universo da feitiçaria. Turner observou que entre “os Ndembu,
conhecimento é ‘poder’ de forma muito mais literal que entre nós.”269 Usando de
conhecimentos iniciáticos ou transmitidos pela via do parentesco, os feiticeiros reúnem
atributos secretos que lhe conferem capacidade de manipular forças capazes de afetar
negativamente pessoas ou alterar cenários.
Nina Rodrigues conta a história de que uma mulher negra fora se queixar a um senhor
de engenho de que sua filha fora enfeitiçada por obra de um africano escravizado na mesma
fazenda. E vejamos qual foi o desfecho:

“O proprietário mandou chamar o feiticeiro e ameaçou-o de severo castigo; negou ele, porém, a autoria
do fato, comprometendo-se, todavia, a pôr a mulher boa. E pouco tempo depois, estava ela
completamente restabelecida. Este sucesso devia crescer ainda mais o prestígio do feiticeiro de que
270
ainda hoje, morto como ele já é, falam todos com respeito.”

Não é apenas o temor vago que faz dos feiticeiros indivíduos poderosos em todas as
sociedades em que predominam as crenças na feitiçaria. Eles são respeitados porque se
acredita que eles são capazes de manipular forças que agem efetivamente para o bem e
para o mal. Por serem largamente compartilhadas nas sociedades onde estão presentes, as
crenças na feitiçaria a fazem mais ainda influente. São essas forças que transmitem para os
indivíduos em sociedade a idéia de que vale a pena se precaver, daí a feitiçaria ser
considerada por alguns teóricos como um instrumento de controle social.
O fato de a ideologia da feitiçaria ser capaz de influenciar os processos sociais
provocando mudanças, não significa ser pacífica a sua relação com o poder. Na maior parte
das sociedades, a feitiçaria é vista como uma ação temida por ser negativa e destrutiva.
“Para os antigos beti, a sua fonte secreta [de poder] reside no próprio poder de agir mal,
pelo uso anti-social da feitiçaria...”271
Na história da África Central, segundo Thornthon, havia forte imaginário que
associava a feitiçaria ao poder, e os congoleses tinham uma justificada desconfiança de
ambos. A utilização do poder, de acordo com esse imaginário, poderia ser feita

269
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos, p. 436.
270
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Salvador: P555 Edições/Theatro XVIII,
2005, p. 64.
271
LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre, p. 133.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
164

“abusivamente com propósitos egoístas e mal-intencionados, e como tal seria uma forma de
feitiçaria política ou para o uso de interesse público, o que poderia incluir a supressão da
feitiçaria.”272
Em muitas situações, os feiticeiros com as suas técnicas mortais ou usando a força de
mobilizar certas divindades, se voltam justamente para os que detêm o poder, não
necessariamente para competir, mas com a finalidade de desafiar. É desse modo que
Balandier assinala que entre os feitos de Legba incluem-se “a ironia, que desmoraliza o
poder e as hierarquias, a rebelião, que mostra que o poder não é intangível, o movimento
que introduz a perturbação da mudança no âmago da ordem.”273
A estreita relação entre feitiçaria e poder tem como ponto de interseção a
ambivalência, onde ambos circulam com desenvoltura. Ao mesmo tempo em que poder e
feitiçaria aspiram à visibilidade – através dos resultados de suas maquinações –, tanto a
feitiçaria como o poder são, ao mesmo tempo, célebres cultuadores do silêncio, do segredo,
da sombra, enfim, do oposto à transparência. Pierre Clastres nos diz que para a maioria das
tribos indígenas sul-americanas, “os mesmos poderes que fazem dele [o xamã] um médico,
isto é, um homem capaz de provocar a vida, permitem-lhe também dominar a morte: é um
homem que pode matar.”274
E Evans-Pritchard observou em sua pesquisa entre os Azande que a magia era um
poder concentrado, sobretudo, nas mãos dos homens e, justamente por esse motivo, quando
as mulheres desconfiavam de estarem sendo enfeitiçadas recorriam aos seus maridos.275
Assim, o discurso da feitiçaria cria também desequilíbrio entre os indivíduos de sexos
diferentes, introduzindo, desse modo, outra problemática no universo das relações sociais,
que é o da desigualdade de gênero. Considerando ter a maior parte das sociedades africanas
uma predominância masculina entre os feiticeiros, pode-se inferir ser a questão de gênero
mais um elemento provocador de conflitos no interior das sociedades onde a feitiçaria se
faz presente.

272
THORNTON, John K. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700. In:
HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 93.
273
BALANDIER, Georges. O contorno: poder e modernidade, p. 99.
274
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. 4.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998, p. 100.
275
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, 1978.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
165

Continuidade e transformações da feitiçaria na África e no Brasil

A discussão envolvendo o binômio feitiçaria-modernidade continua na ordem do dia


da antropologia, ainda que essa relação possa parecer despropositada e extravagante. Por
isso mesmo, é importante indagar: como explicar a permanência do discurso da feitiçaria
por tanto tempo no mundo e o seu aparente rejuvenescimento e ampliação tanto na África
como no Brasil?
Ao contrário do que afirmou Lucy Mair, que considerou a feitiçaria uma expressão de
sociedades de pequena escala e com um nível de conhecimento técnico limitado, Laburthe-
Tolra e Warnier têm argumentos diferentes.
Para estes autores, a atitude mágica está presente em todas as culturas religiosas e as
“superstições proliferam nas sociedades economicamente desenvolvidas.”276 A mesma
opinião tem o padre José Sometti, ao reconhecer que a modernidade ao invés de diminuir
aumentou o “interesse pelas coisas ocultas, pela feitiçaria e feitiço.”277 Ao escrever sobre
esse assunto, Sometti não está preocupado em analisá-lo do ponto de vista acadêmico e
tampouco associá-lo a uma determinada cultura, mas tentar demonstrar, ideologicamente,
ser a feitiçaria “expressão de mentalidades primitiva e infantil...”278 A conclusão
eurocêntrica do autor, refletindo possivelmente parte do imaginário oitocentista sobre a
feitiçaria no Brasil, é o menos relevante a ser considerado, pois o que interessa mesmo é o
seu reconhecimento de que a feitiçaria está presente na sociedade brasileira, sendo o
fenômeno, portanto, parte do atual mundo moderno.
É importante lembrar que as acusações de feitiçaria na sociedade brasileira não são
recentes. Muitos autores registraram que a feitiçaria entre nós existe desde a chegada ao
Brasil dos primeiros centro-africanos.
Thornthon lembra que os africanos da região central da África, entretanto, tinham
uma idéia diferente da européia acerca da polaridade bem e mal, como também era
diferente a categorização que eles faziam da feitiçaria. Para os europeus, a feitiçaria era

276
LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre, p. 223.
277
SOMETTI, José. Feitiço e Contra Feitiço. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 11.
278
Idem, p. 53.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
166

uma expressão da ação do diabo, ao contrário da ideologia africana que creditava a sua
força “nas intenções dos vivos, e não no status do sobrenatural.”279
Tanto as práticas mágicas relacionadas à feitiçaria como outras formas de
religiosidades africanas teriam chegado até nós, de acordo com Kiddy, através dos
“centros-africanos”, a exemplo das “irmandades religiosas leigas, um lugar ideal para
reunir uma comunidade africana no Brasil.”280
As primeiras levas de africanos que chegaram ao Brasil, para Slenes, conseguiram
superar hostilidades decorrentes das suas origens, nações e línguas e, pelo menos em
Minas, Rio de Janeiro e São Paulo, “os escravizados africanos usaram seu passado para dar
sentido ao presente e sua cosmologia lhe deu recursos para agir conjunta e
decisivamente.”281 Isso explicaria o uso de conhecimentos ancestrais, como o da feitiçaria,
que poderia ser uma importante arma política em defesa dos interesses dos escravizados.
Laura de Mello Souza, em seu clássico O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e
religiosidade popular no Brasil Colonial, argumenta que as crenças na feitiçaria trazidas
pelos africanos durante a colonização foram indiretamente reforçadas pela filosofia
religiosa portuguesa que enxergava o mundo pela ação de “forças sobrenaturais”282. Uma
idéia que influenciou a percepção de que o cotidiano da vida colonial fosse “impregnado de
demônios.”283 De acordo com esse olhar, os índios e negros não poderiam ser portadores de
uma humanidade semelhante à do europeu, visto serem os tais povos não apenas diferentes,
e sim, ontologicamente inferiores.
Embora as cosmologias portuguesa e africana se conflitassem filosoficamente sobre a
origem do mal, alguns estudiosos consideram que as duas cosmologias, ainda que marcadas
por essas diferenças antagônicas, se comunicaram e, muitas vezes, se mesclaram. Questão
que remete para a discussão sobre o sincretismo religioso no Brasil que, no entender de

279
THORNTON, John K, p. 92.
280
KIDDY, Elizabeth W. Quem é o rei do Congo? Um novo olhar sobre os reis africanos e afro-brasileiros.
In: HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 170.
281
SLENES, Robert W. A Grande Greve do Crânio do Tucuxi: espíritos das águas centro-africanas e
identidade escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro. In: HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora
negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 217.
282
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 137.
283
Idem, 145.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
167

Ferreti e inspirado nas opiniões de Roberto da Matta, refletiria a “capacidade brasileira de


relacionar coisas que pareciam opostas.”284
Miller argumenta que os povos centro-africanos escravizados que aportaram no Brasil
já teriam sido fortemente influenciados pelo cristianismo.285 Opinião compartilhada por
Linda Heywood, embora acreditando que as crenças cristãs tenham sofrido profundas
transformações nas Américas, ao que ela chamou de crioulização.286
Ao invés da fusão de crenças, subentendida na idéia de crioulização de Heywood,
Kiddy considera mais apropriado o conceito de adaptação. Para a autora, o contato entre as
duas culturas teria obrigado os africanos a operar uma espécie de tradução, na diáspora, dos
seus conhecimentos tradicionais originados na África. Assim, ela retoma sutilmente uma
conhecida concepção de que os africanos pretenderam de fato, através da criação aqui no
Brasil de modelos organizacionais como os das irmandades religiosas, “recriar uma
comunidade africana no Brasil.”287
Esta visão sugere também que o envolvimento dos africanos com o catolicismo
pretendeu, de fato, dissimular as suas verdadeiras intenções de praticar a religiosidade
ancestral que lhe era negada pelos colonizadores, idéia até hoje questionada por inúmeros
estudiosos, inclusive Nicolau Parés, que afirma: “a participação [dos africanos e seus
descendentes] nas irmandades não era apenas uma fachada ou uma estratégia de ocultação
de suas ‘verdadeiras’ crenças, pois a devoção dos santos constituía também parte integral
da sua religiosidade.”288 Mas, a religiosidade de origem africana no Brasil, segundo o autor,
teria sido reconfigurada e ressignificada a partir de uma multiplicidade de elementos
africanos e não africanos. Ele parece concordar, dessa forma, com a idéia de Mello e Souza,
de ter sido “no cruzamento de concepções e discursos vários, que se elaborou uma feitiçaria
colonial.”289

284
FERRETI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora USP; São Luís: FAPEMA,
1995, p. 17.
285
MILLER, Joseph. C. África Central durante a era do comércio de escravizados, 1490 a 1850. In
HEYWOOD, Linda M. (Org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008.
286
HEYWOOD, Linda M. De português a africano: a origem centro-africana das culturas atlânticas e crioulas
no século XVIII. In HEYWOOD, Linda M. (Org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto,
2008.
287
KIDDY, Elizabeth W, p. 170.
288
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé – História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas:
Editora UNICAMPI, 2006, p. 111.
289
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 378.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
168

A demonização das diferentes formas de religiosidades negras e indígenas no período


colonial foi outra estratégia adotada pelos europeus em relação às práticas religiosas não-
européias. Paradoxalmente, essa percepção resultou no fortalecimento político dessas
religiosidades e a utilização delas como armas da resistência escrava, como argumenta João
José Reis.290 Isso explica porque as acusações de feitiçaria “não apenas dava(m) armas aos
escravos para moverem uma luta surda – muitas vezes, a única possível – contra os
senhores como também legitimava(m) a repressão e a violência exercidas sobre a pessoa do
cativo.”291 Basta lembrar que a denúncia da existência de uma suposta escola de feitiçaria
no período imperial do Brasil, por volta de 1871, levaria os acusados a serem condenados à
prisão perpétua.292 A repressão, todavia, não diminuía a paranóia dos senhores de escravos
diante das ações e ameaças dos feiticeiros.
Durante a escravidão, a feitiçaria, na opinião de Luis Parés, teria jogado “um papel
importante nas relações entre senhores e escravos, mas também intervinha amiúde nas
esferas micropolíticas dos africanos, por exemplo, nas rivalidades pelo poder nas
irmandades.”293 Confirma, portanto, o caráter ambivalente da feitiçaria, que é uma das suas
características marcantes. A feitiçaria tanto poderia ser uma ação socialmente positiva – ao
ser utilizada com a finalidade de “amansar” o senhor –, como poderia servir aos interesses
mesquinhos e egoístas para atingir indivíduos com status sociais similares, escravizados ou
livres, nas disputas pelo poder ou por motivos fúteis.
Nos séculos XIX e XX, as denúncias de feitiçaria são recorrentes. Coceiro refere-se a
Juca Rosa que, na segunda metade do século XIX, tinha como especialidade “exercer um
poder sobre as pessoas, que vinham lhe consultar e acabavam participando de sua rede de
relações.”294 Gabriela Sampaio, que é uma estudiosa atenta desse personagem, destacou um
aspecto importante a respeito da sua notoriedade: Juca Rosa era visto pela imprensa da
segunda metade do século XIX como “um dos mais célebres feiticeiros negros que o Rio de

290
REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
291
Idem, 204.
292
COUCEIRO, Luiz Alberto. A sedução do feitiço: Juca Rosa, Pai Gavião e acusações de feitiçaria no
Império do Brasil. Trabalho apresentado no XIII Encontro de História ANPUH, Rio de Janeiro: Identidades,
s/d.
293
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé, p. 112.
294
COUCEIRO, Luiz Alberto, p. 7.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
169

Janeiro já conheceu.”295 Ainda segundo a imprensa da época, “Juca Rosa era a ‘questão
mais na baila’, o ‘grande assunto nacional’ de então.”296
Note-se que esse ardoroso destaque com que Juca Rosa fora retratado pela imprensa,
ocorre no momento em que ele é preso, e sendo acusado de feitiçaria. Desse modo, fica
evidente que o feiticeiro tinha influência política na sociedade de então, o que, para
Gabriela Sampaio, não chega a ser a uma novidade, já que entre os clientes de Juca Rosa,
além dos negros e pobres do Rio de Janeiro, havia “também políticos, ricos comerciantes,
membros das classes dominantes brancas e letradas, que se deslocavam até sua casa em
busca dos seus conselhos e prodigiosas curas...”297
Ivonne Maggie, que considera a crença na feitiçaria um elemento “central” no
imaginário da sociedade brasileira, relata a história de um curador no interior da Bahia,
Manuel Paulo dos Santos, que ameaçara com feitiçaria um cliente que não cumprira um
trato com ele. O cliente ameaçado, Generino Bispo dos Santos, tomado de medo de ser
enfeitiçado, segundo a sua alegação em juízo, resolveu matar o curador. No julgamento do
réu, o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, na condição de perito, defendeu em juízo
“separar a personalidade do réu de sua circunstância sócio-cultural”298, subtendendo em seu
parecer que a crença na feitiçaria é algo que, de fato, determina uma maneira de agir. O juiz
acatou a alegação do advogado, naturalmente respaldado pela opinião do perito, de que seu
cliente agira em “legítima defesa.”
Duas questões importantes neste relato de Maggie. A primeira é que a denúncia de
feitiçaria envolve um “curador”, fato comum no Brasil e na África. A outra questão
interessante é que o réu depois que fora solto se dirigira ao advogado com a seguinte
indagação: “Doutor, e se a alma dele voltar?”299 Moral da história: Generino dos Santos se
livrou da prisão, mas não do medo da feitiçaria.

295
SAMAPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos Mistérios – Juca Rosa e as relações entre crença e cura no
Rio de Janeiro. In CHALHOUB, Sidney et. ali. (Orgs.) Artes e ofícios de curar no Brasil. Campinas/SP:
Editora UNICAMPI, 2003, p. 387; Ver também: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. A história do feiticeiro Juca
Rosa – cultura e relações sociais no Rio de Janeiro Imperial. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas/UNICAMPI, 2000.
296
SAMAPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos Mistérios, p. 388.
297
Idem, p. 388.
298
MAGGIE, Ivonne. O feitiço da Antropologia. In: BACELAR, Jéferson, PEREIRA, Cláudio (orgs.).
Vivaldo da Costa Lima – um intérprete do Afro-Brasil. Salvador: EDUFBA/CEAO, 2007, P. 78
299
Idem, p. 82.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
170

Jocélio Teles dos Santos discute denúncias de feitiçaria difundidas na Bahia no século
XIX, pelo jornal O Alabama, envolvendo líderes de terreiros de candomblés. O autor
questiona se tais denúncias procediam e, sobretudo, se tais feitiços “precisariam ser feitos
numa roça de candomblé.”300 Mas é fato que, tanto no passado como no presente,
denúncias de feitiçaria envolvendo curadores ou pais de santo foram e são comuns, embora
eles sejam, teoricamente, os principais responsáveis por fazer consultas aos oráculos para
identificar a ocorrência de enfeitiçamento e, desse modo, prescrever fórmulas para anular
os malefícios remetidos a um cliente. Todavia, há justificadas razões para que o autor
suspeite de serem algumas dessas denúncias forjadas para incriminar o candomblé, que
durante muito tempo foi associado, de forma preconceituosa, à feitiçaria, conforme
demonstrou exaustivamente Braga301, na primeira metade do século XX, com a deliberada
intenção de estigmatizar e negar a condição legítima de religião. Esse fenômeno se repete
ainda na atualidade, através das conhecidas pregações das igrejas neopentecostais que
associam o candomblé à “bruxaria e ao diabo.”302.
É importante lembrar que, ao longo do século vinte, as denúncias de feitiçaria
relacionadas ao candomblé se baseavam na imputação de a mesma ser uma contravenção
penal. A este propósito, o livro de Ivonne Maggie, Medo do feitiço, demonstra cabalmente
que a ação do Estado brasileiro, desde 1890, ao enquadrar legalmente as práticas de magia,
o espiritismo e o curandeirismo, pretendeu de fato criar “mecanismos reguladores” para
normatizar as acusações de feitiçaria.303
Maggie lembra também que os mecanismos reguladores da feitiçaria no Brasil foram
implantados ainda durante a Colônia, e os antecedentes de perseguição contra as religiões
originadas na África ocorreram durante a escravidão. A Igreja Católica procurou impedir
que os africanos praticassem as suas religiões nativas através da catequização forçada, mas
também associando as práticas religiosas dos negros ao paganismo. Conforme a oportuna
lembrança de Montero, a feitiçaria, durante a colonização portuguesa, foi demonizada pela
300
SANTOS, Jocélio Teles dos. Candomblés e espaço urbano na Bahia do século XIX. Revista Estudos Afro-
Asiáticos, 2005, p. 218.
301
Cf. BRAGA, Julio. Na Gamela do Feitiço – repressão e resistência nos Candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA/CEAO, 1995; BRAGA, Julio. A Cadeira de Ogã e outros ensaios. Rio de Janeiro: PALLAS, 1999.
302
Cf. SILVA, Vagner Gonçalves (org.). Intolerância Religiosa – impactos do neopentecostalismo no campo
religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007; OLIVEIRA, Rafael Soares (org.) Candomblé – diálogos
fraternos contra a intolerância religiosa. Rio de Janeiro: DP&A, 2007.
303
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e o poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
171

Igreja Católica.304 Mas, os católicos mudaram de estratégia e as pregações mais violentas


contra as religiões negras estão sendo assumidas pelos evangélicos de diferentes matizes.
Nos casos onde as relações entre as religiosidades negras e os evangélicos, embora
conflituosas e tensas, ainda não se revestiram de intolerância, pregações e provocações
violentas, as desconfianças efetivamente existem de que certos curadores trabalhem com os
“dois lados”, isto é, para fazer o bem e o mal.
Parés identificou acusações de feitiçaria contra africanos e seus descendentes na
documentação histórica por ele utilizada. Segundo o autor, a “ameaça da feitiçaria persistiu
ao longo dos séculos no âmbito das congregações religiosas jejes, aparecendo
especialmente nos momentos das disputas sucessórias pela liderança dessas
305
comunidades.” Neste caso específico, observe-se que as acusações estavam relacionadas
às disputas políticas entre os próprios negros, confirmando, assim, o caráter multifatorial
das acusações de feitiçaria.
No livro Guerra de Orixá, Yvonne Maggie relata que Pedro, um dos personagens
envolvidos nos conflitos no terreiro de umbanda, reconhece que o uso da feitiçaria era um
dos expedientes utilizados nas disputas pelo poder do terreiro, embora o líder religioso
ressalve que “nós trabalhamos com a magia negra para defesa.”306 Pode-se inferir, deste
depoimento, que aquele que sabe manipular um feitiço para defesa, pode fazê-lo igualmente
com uma finalidade menos nobre.
Na sucessão do Terreiro Santa Bárbara Virgem de Laranjeiras, em Sergipe,
minuciosamente estudado por Dantas, dona “Bilina era acusada de ter trazido um ‘cesto de
feitiçaria da Bahia’ e acusava, também, a sua rival de tentar matá-la com feitiço.”307
Não é coincidência que nos dois exemplos citados por Maggie e Dantas, a disputa
pelo poder estivesse no centro das acusações de feitiçaria, reforçando a argumentação de
que feitiçaria e poder são categorias indissociáveis.
Beatriz Dantas, citando o livro Cidade das Mulheres, de Ruth Landes, faz referências
também às acusações da polícia contra o conhecido Martiniano Bonfim, que o “considerava

304
MONTERO, Paula. Religião, Pluralismo e espaço público no Brasil. Novos Estudos/CEBRAP, Nº 74,
março de 2006.
305
PARÉS, Luis Nicolau, p. 112.
306
MAGGIE, Ivonne. Guerra de Orixá – um estudo de ritual e conflitos. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001, p. 99.
307
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco – usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro:
GRAAL, 1988, p. 86.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
172

feiticeiro de profissão e o vigiava.”308 Neste caso de Martiniano, o importante a assinalar


não é a acusação de feitiçaria feita pela polícia, muito comum à época contra os praticantes
de candomblés, mas o fato de a acusação recair sobre um dos mais importantes ogã e
babalaô da história do Candomblé da Bahia. Julio Braga faz igualmente referências a
denúncias de feitiçaria envolvendo religiosos do candomblé.309
Enfim, poderíamos enumerar muitos exemplos em que as acusações de feitiçaria
envolveram pessoas ligadas às religiões brasileiras de origem africana. Na cidade de
Salvador de hoje, é corriqueiro circular no universo do candomblé o “fuxico” de que certas
autoridades religiosas ganham dinheiro “fazendo o mal”, o que evidencia, portanto, que as
acusações de feitiçaria, inclusive no âmbito do candomblé, atravessaram os séculos e
permanecem até os dias atuais.
A crueldade talvez seja a principal e mais conhecida marca da feitiçaria. Esse estigma
está presente em todas as culturas onde se fala a linguagem da feitiçaria. Não há parâmetros
éticos que limitem o que se pode fazer para alcançar os fins desejados. A obtenção dos fins
pode ser esse limite, o que torna os meios empregados infinitos. Mas, ao contrário do que
se imagina, a prática da feitiçaria pode se expressar, em diferentes culturas, através das
mais variadas e surpreendentes configurações: além de premeditar ações ofensivas contra
indivíduos, a feitiçaria pode engendrar ações em defesa da sociedade como também pode
ser empregada para restabelecer laços afetivos abalados por uma razão qualquer. Nestas
duas últimas modalidades, a feitiçaria não se configura como um ato insidioso, cruel ou
mesmo mortal, como ela costuma ser vista, de uma maneira geral.
Seja parte de uma ação política ou tenha a personificação benigna de ajudar a
restabelecer laços afetivos abalados, ou sendo empregada com outra finalidade qualquer, a
feitiçaria no Brasil continua tendo uma fortíssima influência do nosso componente cultural
africana.
Alguns estudiosos de religião africana têm se perguntado por que a realidade da
feitiçaria conseguiu sobreviver na África em meio aos discursos e práticas sobre o que se
concebe como modernidade. Por essa razão, é importante fazer uma breve referência a
algumas abordagens em que a literatura pertinente sinaliza que o discurso da feitiçaria, para

308
Idem, p. 184.
309
BRAGA, Julio, 1995;BRAGA, Julio, 1999.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
173

além do plano estritamente religioso, ramifica-se em outras dimensões da cosmologia


africana e afro-brasileira. É neste plano geral que se pode perceber a existência de um
contraste mais nítido entre o pensamento africano e ocidental. É importante salientar
também que, em algumas situações sociais concretas, sobretudo na África, a relação entre
modernidade e feitiçaria tem resultado em tensões, conflitos e até mesmo tragédias.
No pequeno distrito de Homoíne, Província de Inhambane, no Sul de Moçambique, a
sua pequena população enfrenta uma curiosa situação de conviver entre a modernidade de
uma sociedade movida pelo dinheiro e a permanência de crenças tradicionais. O que Luiz
Passador conceitua de moderno em sua análise sobre as relações sociais em Homoíne
remete, especificamente, ao modo de vida dos africanos que vivem nos perímetros urbanos
desse povoado e mantém uma relação estreita como as transações de mercado; já o conceito
de tradicional está associado aos indivíduos que habitam o meio rural e pensam
distintamente daqueles que vivem no meio urbano310. Tal taxonomia o autor atribui ao
“legado de um colonialismo que gerou um ‘Estado bifurcado’ e uma sociedade dividida
entre o urbano e o rural.”311
A modernidade, em Hemoíne, está baseada particularmente na lógica do mercado e
na monetarização da sociedade, fato aparentemente incontrastável. A lógica moderna e os
conhecimentos a ela correlatos, entretanto, não se aplicam quando se é compelido a
explicar eventos como o surgimento de doenças, a morte e a escassez de recursos, embora
no cotidiano os sujeitos sociais não façam uma divisão categorial rígida entre o que é
moderno e o que é tradicional. Assim, a despeito da lógica da modernidade, que impregna
as relações cotidianas influenciadas pela monetarização da sociedade, a feitiçaria e o
curandeirismo continuam sendo “saberes especializados que tanto atuam sobre os espíritos,
quanto os que utilizam para desencadear processos sociais e interpessoais.”312
O autor argumenta que os sujeitos que vivem no meio urbano continuam usando os
conhecimentos tradicionais, inclusive para agir e explicar fenômenos sociais com referentes
na modernidade. Ele percebeu também que os costumes e crenças tradicionais estão sendo
reatualizados. A ação dos curandeiros tem se deslocado do ato de cura, por exemplo, para

310
PASSADOR, Luiz Henrique. Dinheiro e feitiço numa vila moçambicana. Trabalho apresentado na 20º
Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, Porto Seguro, 01 a 04 de junho de 2008. Digitado.
311
Idem, p. 07.
312
Idem, p. 11.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
174

“a obtenção de benefícios pessoais ligados às exigências de uma vida ‘moderna’ marcada


pelo dinheiro, pelo mercado e pelos bens de consumo, vinculando-os ao universo dos
feitiços contemporâneos.”313
Renato Ortiz argumenta que a idéia que se construiu do mercado na atual
modernidade, como uma coisa ou “uma entidade com vida própria”314, possui a mesma
lógica da magia, ou seja, o mercado tem se investido de “características divinas.”315 E o
discurso que preside as relações no interior do mercado, da mesma forma que a feitiçaria,
acrescento eu, “subsume impiedosamente os indivíduos.”316, o que mostra que não há uma
incompatibilidade absoluta entre as lógicas da modernidade e da feitiçaria, na medida em
que ambas são construções sociais com pretensões aparentemente idênticas, ou seja, a de
responder a aflições e desejos socialmente construídos.
A experiência de Hemoíne demonstra ser o pensamento mágico capaz de se adaptar
rapidamente às circunstâncias e, com isso, acompanhar a velocidade de como os indivíduos
em sociedade produzem novas necessidades. A esse propósito, Eliade lembra que o homem
moderno, embora procure se comportar com a intenção de viver no presente, pensar no
presente e se afirmar como “a-religioso, carrega ainda toda uma mitologia camuflada e
numerosos ritualismos degradados.”317 O que importa assinalar nesta observação do autor é
que as conjecturas filosóficas sobre a morte da religião fracassaram.
Na relação entre a doença e o sagrado, espaço destacado do discurso da feitiçaria,
Laplantine percebeu que é falso o antagonismo que separa modernidade (ou o pensamento
médico científico) da religião (ou o pensamento mágico). Essa relação passa a fazer
sentido, argumenta o autor, quando se conecta a noção de “doença com o social.”318 Dessa
forma, a religiosidade contida na ação e no imaginário da medicina ocidental não deve ser
desprezada. Ele lembra que a promessa de vida abundante após a morte, que é parte do
repertório e dos discursos da maior parte das religiões, deveria ser contrastada com as
análogas promessas da medicina moderna que, de maneira mais radical, “não mais se

313
Idem, 14.
314
ORTIZ, Renato Mundialização: saberes e crenças. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006, p. 163.
315
Idem, p. 164.
316
Idem, p. 164.
317
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, p. 166.
318
LAPLANTINE, François. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 217.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
175

contenta com anunciar a salvação após a morte, mas afirma que esta pode ser realizada em
vida.”319
O pensamento religioso no processo de cura prossegue o autor, não deve, portanto,
ser negligenciado, na medida em que ele é “a única interpretação totalizante do social, do
individual e do universo...”320 Barros, que dialoga com as idéias de Laplantine, lembra que,
na medicina tradicional africana, em grande parte influenciada pela religiosidade local, a
relação entre saúde e doença está associada “à idéia de equilíbrio e interdependência dos
elementos constitutivos (visíveis ou não) que se influenciam entre si...”321
Consequentemente, no processo de cura não conta apenas os sintomas aparentes que se
configuram no diagnóstico médico, pois elementos simbólicos devem influenciar na
conformação do quadro diagnóstico geral do indivíduo doente. Barros assinala também
que “os esquemas simbólicos de que dispomos para interpretar a dor e o adoecer tendem a
transformar em caricaturas as interpretações que escapam à explicação científica...”322
A distinção formal entre conceitos como moderno e tradicional depende, em grande
medida, portanto, do significado que os indivíduos atribuem ao interpretar fenômenos como
a saúde e a doença.
No Ocidente, as pessoas, quando adoecem, são orientadas pela experiência cultural a
confiar de forma imperativa no diagnóstico prescrito pelos médicos, ainda que estes nem
sempre tenham uma resposta satisfatória para aliviar as suas dores. Em outras fronteiras
culturais, como entre os povos Ndembu, diante de algum infortúnio, eles consultam um
sábio em identificar a origem do mal, mas, de antemão, a sua experiência cultural
antecipadamente indicará que “toda doença persistente ou grave [deve ser] vista como
sendo causada pela ação punitiva das sombras ou pela malevolência secreta dos feiticeiros
ou das bruxas.”323
Tanto o pensamento científico moderno ocidental como os saberes tradicionais
africanos e afro-brasileiros, propõem-se a enfrentar um mesmo fenômeno – o diagnóstico e
a cura das doenças – a partir de concepções e estratégias opostas. Nem por isso, contudo,

319
Idem, p. 241.
320
Idem, p. 225.
321
BARROS, Denise Dias. Medicina negro-africana: institucionalidade, saberes e sentido do adoecer e da
loucura na África do Oeste e no Mali. Revista Imaginário/USP, Ano X, Nº 10, 2004/2005, p. 105/6.
322
BARROS, Denise Dias, p. 109.
323
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do Ritual Ndembu. Rio de Janeiro: EDUFF, 2005, p.
449.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
176

deixam de ter muitos pontos de contatos e convergências. Cada um ao seu modo, e com a
sua própria gramática, falam da influência que a cultura e a sociedade exercem sobre o
físico e a mente dos indivíduos.
No conhecido estudo de Mary Douglas sobre as acusações de feitiçaria movida pelos
Lele cristianizados – com o apoio ou a omissão da cúpula da Igreja Católica –, que resultou
em torturas e assassinatos de supostos feiticeiros, a autora faz uma observação pertinente a
esta discussão: a “compreensão lele das tensões mentais e da cura psicológica merece um
estudo sério tanto quanto o de outros povos congoleses.”324 Neste mesmo sentido,
Laplantine observa que o “recurso às plantas [muito comuns nas culturas de origem
africanas] cujas diferentes utilizações estão longe de poder ser explicadas pelas
propriedades estritamente médicas que lhes são atribuídas.”325
Peter Fry faz uma interessante reflexão acerca das distinções entre as contribuições
do pensamento moderno e tradicional, ao estudar os discursos de certas igrejas evangélicas
em Moçambique: “a ciência ocidental acrescentou muito às respostas de como ocorre um
infortúnio, mas é a cosmologia local que, ao mesmo tempo, exige e providencia uma
resposta ao porque de cada evento particular.”326
O recurso discursivo adotado pelos evangélicos em Moçambique, que identifica a
“tradição africana”, aqui incluída a prática da feitiçaria e outras formas de religiosidades,
como responsável pela pobreza e a presumível desorganização social da África, pretende,
de fato, erigir a modernidade ocidental como referência única para a explicação dos
fenômenos naturais e sociais neste continente.
A permanência da feitiçaria na modernidade africana, de acordo com o argumento de
Peter Geschiere, pode ser muito bem explicada “porque o discurso da feitiçaria impregna e
condiciona as formas pelas quais as pessoas tentam lidar com as desconcertantes mudanças
modernas.”327
Para os ocidentais, a chegada da luz elétrica na África, como uma ilustração de
modernidade, talvez fosse capaz de suprimir o que se considera “tradicional”. Todavia, a

324
DOUGLAS, Mary. Os Lele revisitados, 1987 – acusações de feitiçaria à solta (versão de 1999). MANA.
Estudos de Antropologia Social. Volume 5, Nº 2, outubro de 1999, p. 27.
325
LAPLANTINE, François, p. 214.
326
FRY, Peter. O Espírito Santo contra o Feitiço e os espíritos revoltados: “civilização” e “tradição” em
Moçambique. Revista MANA, Nº 6 (2), 2000, p. 79.
327
GESCHIERE, Peter. Feitiçaria e modernidade nos Camarões: alguns pensamentos sobre uma estranha
cumplicidade. Revista Afro - Ásia, Nº 34, 2006, p. 30.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
177

tensão entre a modernidade e a tradição, leia-se feitiçaria, ainda está no centro das
preocupações e dilemas de muitas sociedades africanas. Pelo menos, isso explica porque os
funcionários públicos em uma região dos Camarões acusam as pessoas de utilizarem a
feitiçaria contra o “desenvolvimento”.328
Ainda segundo Geschiere, a permanência da feitiçaria na África moderna se deve
também à dinâmica, flexibilidade e capacidade desse fenômeno de se adaptar às mudanças:
é isso que explica porque a feitiçaria se relaciona à política atual, mas sem perder os laços
com as tradições das relações de parentesco.329 O autor credita à antropologia inglesa a
responsabilidade de ter descoberto essa ambivalência do discurso da feitiçaria, ao estudar
tanto como uma tendência de pensamento conservador ou como uma ação inclinada à
subversão, ainda que ambas contenham um forte viés moral.
Portanto, ainda que não se possa desprezar que “certos efeitos da feitiçaria sejam
perturbadores, mesmo assim é possível vê-la pelo seu viés construtivo”.330

A incidência do discurso da feitiçaria no Vale do São Francisco

Os discursos e as crenças sobre a feitiçaria estão igualmente presentes nas referências


sobre a presença negra no Vale do São Francisco.
Essas crenças, identificadas por Donald Pierson e seus pesquisadores na primeira
metade do século XX, são muito semelhantes às concepções africanas anteriormente
mencionadas por Thornton: “Acredita-se sempre que o ‘quebranto’ é lançado sobre a vítima
por intermédio de um agente humano que possui como parte de sua natureza, esse ‘poder’
maléfico.”331 O quebranto, como uma das muitas modalidades de feitiçaria, era visto como
uma energia negativa transmitida voluntária ou involuntariamente por uma pessoa, e era
capaz de afetar “crianças, animais e plantas.”332 O envio dessa energia tanto poderia estar,
segundo o autor, relacionado à inveja, ao desejo de destruir alguém ou atingir um bem

328
GESCHIERE, Peter. Sorcellerie et Politique em Afrique – la viande des outres. Paris: Éditions
KARTHALA, 1995.
329
GESCHIERE, Peter, Sorcellerie et Politique em Afrique, 1995.
330
Idem, p. 20
331
PIERSON, Donald. O Homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: SUVALE/MINTER, 1972, p.
174.
332
Idem, p. 174.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
178

pertencente a outra pessoa. Neste sentido, a feitiçaria é uma ação humana essencialmente
mesquinha e perversa.
Donald Pierson identificou também, no Vale do São Francisco, algumas modalidades
de crenças mágicas muito próximas dos discursos e crenças construídos pela ideologia da
feitiçaria.
Vejamos esses exemplos: a) elaborar simpatias com a finalidade de curar certas
doenças menos graves; b) atribuir a Deus, a um santo ou a um ser sobrenatural qualquer
punição por se ter supostamente cometido um sacrilégio; c) relacionar o aparecimento de
certas doenças ao meio físico, às condições climáticas ou ao consumo de determinados
alimentos, especialmente certas frutas ou a mistura delas.
O mais frequente, contudo, diz o autor, era atribuir o aparecimento de doenças ao
feitiço, “palavra que parece permutável com ‘coisa feita’, ‘porcaria’ (em um dos sentidos da
palavra), ‘malefício’, e ‘mão pregada’”.333
Note-se que nas ações atribuídas à feitiçaria há uma nítida referência à agência
humana para ser eficaz à causação do infortúnio. Isso ocorre, segundo Pierson, porque se
acredita “que certas pessoas têm o ‘poder’ de causar o mal usando magia negra, quer o
desejem quer não. E este ‘poder’ pode ser exercido mesmo contra a vontade da pessoa.”334
Em contrapartida, para se evitar doenças e outros padecimentos físicos ou mentais
provocados pela feitiçaria é fundamental que se “feche”o corpo, o que requer o emprego de
uma variedade de mecanismos prescritos por um especialista. Entre esses mecanismos,
incluem-se os trabalhos indicados pelos curadores, a ação das rezadeiras, os banhos, chás,
garrafadas e infusões e o uso de plantas protetoras nos quintais e interior das casas.
A “concepção popular é que o corpo humano, embora sempre ‘aberto’ ao mal,
especialmente em certas condições, pode ser ‘fechado’ por meios mágicos a fim de protegê-
lo em especial de certos efeitos.”335
Acredita-se que o feiticeiro, de acordo com Pierson, tenha “poder” de fazer o mal, do
mesmo modo que o curandeiro será capaz de fechar o corpo do seu paciente; portanto,
ambos são possuidores de um tipo especial de “poder”. Em conformidade com esse

333
Idem, 183.
334
Idem, p. 184.
335
PIERSON, Donald, p. 185.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
179

raciocínio, o processo de cura de um paciente tratado por um curador não deve ser atribuído
tão somente “aos remédios que ele receita.”336
Na década de cinquenta do século XX, quando foi feita a pesquisa no Vale do São
Francisco, Pierson acreditava que as práticas curativas baseadas nas crenças da feitiçaria
fossem dissipadas com a urbanização das cidades e a consequente modernização da
sociedade regional. As minhas pesquisas indicam que as crenças permanecem e, de certa
forma, ampliaram sua influência, tanto nas zonas rurais onde estão situados os quilombos
como também nos centros urbanos modernos. Um exemplo empírico da ampliação dessa
influência no meio urbano é o uso de plantas protetoras contra a feitiçaria, algumas delas
originárias da África, na fachada de modernas empresas capitalistas e, até mesmo, em uma
instituição pública federal, como mostra de forma inequívoca os flagrantes fotográficos
abaixo.

Sede da CODEVASF, em Bom Jesus da Lapa.

336
Idem, p. 252.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
180

Nesta foto, dividem espaço no caqueiro as plantas Comigo-ninguém-pode


(Dieffenbachia maculata), nativa da Amazônia, e a Espada de Ogum (Sanseviera
cylindrica), procedente das regiões tropicais da África, ambas conhecidas entre os
cultuadores das religiões de origem africana e indígena como protetoras contra o mau-
olhado e outras energias negativas. O interessante é que o caqueiro de planta esteja
intencionalmente colocado na entrada da porta de uma das diretorias, em Bom Jesus da
Lapa, da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba –
CODEVASF, uma autarquia do governo federal vinculada ao Ministério da Integração
Nacional.
Na fotografia seguinte, o vaso com a Espada de Oxossi (Sansevieria trifasciata),
planta nativa da África do Sul, está sendo cuidada na porta de entrada de uma loja de Bom
Jesus da Lapa, da rede nacional do Ponto Frio Digital. Presume-se que o gerente da loja
seja uma pessoa da região que acredita que essa planta na porta do estabelecimento seja
capaz de protegê-lo de forças intangíveis que prejudiquem os negócios do seu
estabelecimento.
Na fotografia seguinte, o proprietário do Hotel Vieira, em uma das principais
avenidas comerciais da sede do município de Bom Jesus da Lapa, não economizou na
proteção do seu estabelecimento. Nos dois vasos grandes na porta do hotel, o dono do
estabelecimento combinou plantas ornamentais com Espadas de Ogum e de Oxossi.
Fica evidente, nestes três flagrantes fotográficos, que as crenças relacionadas com a
feitiçaria tenham sido estendidas para espaços seculares infensos, aparentemente, a
simbologias que alguns associariam a “coisa de negro” ou de “macumbeiro”.
Como entender essa conciliação, de usar plantas protetoras de tradições religiosas
africanas para resguardar instituições inegavelmente seculares e modernas, como está
explícito nas fotografias mostradas?
Seria uma explicação razoável, o fato de as referidas simbologias africanas serem
capazes de se atualizar e, dessa forma, conviverem sem antagonismo com as representações
simbólicas da modernidade? Ou essas representações religiosas africanas foram infiltradas
na modernidade mais como resíduo cultural, e sem qualquer referente, por conseguinte,
com as crenças que o conceberam? Ou as duas explicações podem ter sido combinadas,
intencionalmente ou não, pelos seus autores?
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
181

Qualquer que tenha sido a motivação dos que adotaram as plantas africanas em seus
estabelecimentos, não há dúvida de que as representações sociais contidas no emprego
delas continuarão sendo as de uma religiosidade que acredita na feitiçaria.
Do mesmo modo, as instituições modernas do capitalismo – tanto o Estado como as
empresas – continuarão obedecendo prioritariamente às regras inexoráveis das estruturas
econômicas e políticas que, em uma sociedade capitalista como a nossa, se orienta pela
acumulação da riqueza e do lucro.
Portanto, essa relação entre as duas expressões simbólicas – a religiosa e a secular –
não necessariamente anula ou subsume as particularidades que conformam cada uma. Nem
por isso também elas deixam de se comunicar de variadas formas, sempre mediadas pelo
contexto cultural na qual estão inscritas.

Loja Ponto Frio Digital, na Av. Duque de Caxias, em Bom Jesus da Lapa.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
182

Hotel Vieira na Av. Duque de Caxias, centro comercial de Bom Jesus da Lapa.

Lampião, quando passou pelo Vale do São Francisco, no início do século XX, deu
um exemplo extraordinário de possibilidade de convivência de extremos aparentemente
inconciliáveis. Segundo foi relatado por Donald Pierson, o cangaceiro “mesmo em meio a
uma luta com a polícia estadual, abaixava o fuzil e rezava para que seu corpo permanecesse
fechado.” Pela conhecida e sanguinária história desse famoso cangaceiro, certamente ele
sabia distinguir a proteção que lhe proporcionava as armas das rezas que ele julgava terem
a força de fechar o seu corpo. Recorrer aos dois expedientes, portanto, não deveria ser
antagônico para continuar a sua trajetória. Parece ser assim, também, o caso analisado em
que diferentes signos intercambiam, mediados e influenciados pela força da cultura na qual
se formaram.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
183

Sentidos de religiosidades africanas e afro-brasileiras

As religiosidades africanas e afro-brasileiras337 têm um papel fundamental tanto na leitura


da realidade social como também na interpretação das razões e causas dos infortúnios a que
os indivíduos estão expostos.
Mais do que buscar na religião um conforto após a morte, essas formas variadas de
religiosidades estão mais preocupadas em dar respostas para os diferentes e complexos
dramas humanos aqui na terra.
No culto aos Orixás um dos seus mais importantes referentes é a relação estreita e
dialógica de troca e compartilhamento entre o fiel e sua divindade. Entre os yorubá, essa
relação divindade/praticante é tão estreita que, de acordo com Karin Barber, acredita-se que
os “homens criam os deuses”, isto é, o poder e a existência esplendorosa dos orixás são
potencializados pelos cuidados (louvações, festas, oferendas) a eles dedicados por seus
seguidores. A reciprocidade entre indivíduo e divindade assim se define: a cada benefício
recebido pelo cultuador de orixá há uma retribuição, sob a forma de oferendas que, por sua
vez, resultará tanto no fortalecimento da crença do fiel como também na notabilidade social
do orixá: “O envolvimento pessoal e íntimo do devoto como o òrisà é mútuo. O òrisà
possui o devoto, mas também o devoto, num sentido diferente, ‘possui’ o òrisà.”338
Nas religiosidades judaico-cristãs, as crenças nos seres supremos são mediadas por
autoridades religiosas que estabelecem regras (teologia) para se alcançar a felicidade eterna,
portanto, antecedem a relação com o deus o respeito a uma hierarquia reverencial. Nas
religiosidades de origem africana, incluindo o culto aos orixás, na comunicação entre
deuses e homens – ainda que seja igualmente estruturada, mediante a iniciação, por
autoridades religiosas – o sujeito praticante assume um papel ativo, do modo como foi
descrito pela autora, e indivíduos e divindades se fortalecem mutuamente.

337
Refiro-me especificamente aos cultos dos orixás das conhecidas e populares nações keto, jeje, angola e
caboclo do Candomblé da Bahia; ao Xangô, de Pernambuco, Paraíba e Alagoas; ao Tambor de Mina do
Maranhão; Batuque, do Rio Grande do Sul; Macumba, do Rio de Janeiro, ao Catimbó da região amazônica;
Umbanda, do Rio de Janeiro e de São Paulo; e a variantes presentes no interior da Bahia e em outras regiões
do Brasil conhecidas como Mesa Branca e “Centros Espíritas”, como também às crenças na feitiçaria e suas
diferentes denominações êmicas, classificadas como bruxaria, trabalho feito, macumba, coisa ruim,
demandas.
338
BARBER, Karin. Como o homem cria Deus na África Ocidental: atitudes dos Yoruba para com o Órisà.
In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes. (org.) Meu Sinal está no teu corpo – escritos sobre a religião dos
Orixás. São Paulo: EDICON/EDUSP, 1989, p. 160
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
184

Nos candomblés da Bahia, em que o processo de iniciação se fundamenta no


complexo de oferenda e de reatualização dos mitos de cada divindade, a reciprocidade
indivíduo/divindade é evidente. O culto de Exu nos terreiros de candomblés da Bahia,
possivelmente, é a experiência de religiosidade que melhor ilustra a estreita relação entre
fiéis e divindade.
Noutras variantes de religiosidades de possessão aqui no Brasil, como a Mesa Branca
de inspiração umbandista presente no quilombo de Rio das Rãs, ainda que não haja a
prática de sacrifícios rituais para as divindades cultuadas, como ocorre nos candomblés de
Salvador e do Recôncavo da Bahia, a comunicação entre os fiéis e os seus deuses, que
descem à terra através dos médiuns, a relação se dá sem maiores formalidades, através de
um diálogo verbal franco e direto. Os indivíduos buscam as divindades para se
aconselharem quanto ao melhor caminho a seguir em decisões cruciais relacionadas à sua
vida pessoal ou familiar, como pode solicitar ajuda para superar algum infortúnio que os
atormenta, a exemplo de uma doença grave ou uma querela qualquer com um vizinho.
A crença do fiel na força e poder da divindade (Caboclo, Preto Velho, Nagô), constrói
um vínculo de respeito que condiciona o crente a transformá-lo numa espécie de
conselheiro. Mas, o fiel pode buscar ocasionalmente ajuda de outra divindade, na hipótese
dos aconselhamentos não obterem o êxito desejado pelo fiel. E, neste exemplo, é notável a
similitude entre a experiência religiosa dos yorubá com a dos quilombolas de Rio das Rãs e
Mangal.
Não é incomum, em Rio das Rãs, que uma pessoa frequente mais de um Centro de
Jurema. Essa procura pode estar relacionada às seguintes probabilidades: cotejar um
diagnóstico já realizado com a de outro curador; desconfiança de que determinado curador
possa estar por trás de um feitiço identificado; crença de ser a divindade de outro Centro
mais capaz de dar uma resposta satisfatória à sua aflição.
Neste caso, tanto na África como em Rio das Rãs, o fortalecimento e a proeminência
da divindade estão, presumivelmente, associados aos benefícios auferidos pelos seus
devotos. Essa filosofia pragmática já havia sido notada por Evans-Pritchard entre os
Azande, quando eles procuravam outro oráculo para aferir um diagnóstico ou curar de um
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
185

mal que os afligia, “exatamente como fazemos quando não estamos satisfeitos com o
tratamento do primeiro médico procurado.”339
Esse mesmo sentido de religiosidade entre os africanos foi observado por Blakely,
Van Beek e Thomson, quando conceberam que a “religião é parte de uma estratégia de
sobrevivência e serve a fins práticos, sejam imediatos ou remotos, sociais ou
individuais.”340
Essa maneira de encarar a religiosidade está relacionada com o pensamento
tradicional africano em geral, como foi assinalado anteriormente, que constrói a teoria a
partir da experiência, diferente do pensar ocidental no qual “em certo sentido a teoria é que
determina a experiência.”341

339
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia, p. 153.
340
THONSON, Dennis L., VAN BEEK, Walter E. A., BLAKELY, Thomas D. (eds.) Religion in Africa, p.
23.
341
HORTON, Hobin. El pensamiento tradicional africano y la ciencia Occidental, p. 107.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
186

Capítulo IV

FEITIÇARIA E PODER E O PODER DA FEITIÇARIA EM RIO DAS RÃS

Revelações e surpresas

Iniciei a minha aventura etnográfica em Rio das Rãs, em 2007, entrevistando Mário
Nunes de Souza (66 anos), uma das lideranças mais antigas e influentes de Rio das Rãs.
Mário esteve presente nos principais episódios do conflito, desde a chegada do fazendeiro
Carlos Newton Vasconcelos Bonfim, no início da década de oitenta do século passado,
quando este afirmou ser proprietário da “Fazenda Rio das Rãs”, iniciando o já mencionado
conflito pela posse da terra que perduraria por dezoito anos. Embora seja um adepto da
Assembléia de Deus342, ele costumava dizer: “nunca arredei o pé da luta” contra o
fazendeiro. Chegou a ser presidente da Associação e sua gestão marcada por “uma onda de
roubo de gado” que o obrigou a pedir ajuda da polícia de Bom Jesus da Lapa para conter a
ação dos ladrões.
O objetivo principal da entrevista era entender as imensas dificuldades
administrativas e os conflitos políticos que ele enfrentara quando presidente da Associação
Agro-Pastoril e Quilombola de Rio das Rãs, considerado, por mim, antes de ir a campo, o
ponto de partida para a discussão sobre poder no quilombo.
No caminho da casa de Mário, cumprimentei alguns velhos conhecidos que estavam
prosando na varanda da residência do senhor Badu. Um deles, o senhor Juvêncio Pereira343,
começou a conversa se queixando da saúde precária e de uma recente cirurgia a que se
submetera na cidade de Guanambi. Felizmente, me confessou, sentia-se feliz por estar em
franca recuperação. A mesma sorte não tivera o seu filho que, repentinamente morrera. E o
senhor Juvêncio passou a relatar o ocorrido, como se estivesse aliviado por compartilhar
aquele acontecimento triste.

342
Durante o conflito pela posse da terra em Rio das Rãs, a quase totalidade dos evangélicos observava à
distância as ações políticas para garantir o direito dos quilombolas permanecerem na terra. Eles chegavam a
dizer que as iniciativas das lideranças não interessavam aos cristãos.
343
Em situações que envolvem diretamente personagens relacionados à narrativa do presente capítulo optei
por usar nomes fictícios. A intenção é a de não constranger os quilombolas de Rio das Rãs, a partir do que foi
desenvolvido na narrativa. Portanto, Juvêncio Pereira não é o nome verdadeiro da pessoa referida.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
187

Mário Nunes de Souza

O filho do senhor Juvêncio Pereira, Orlando344, sentiu uma dor no estômago e, como
era de costume, recorreu a um remédio caseiro. Não obtendo resultado, comunicou ao pai
que, encontrando uma condução, iria para Bom Jesus da Lapa para ser medicado. Foi o que
ele fez. Quando chegou ao Hospital Carmela Dutra, na manhã seguinte, e ainda sentindo
dores no estômago, o médico que o atendeu resolveu operá-lo sem que seus pais, até aquele
momento, soubessem ou estivessem presentes. Quando o senhor Juvêncio, ainda no mesmo
dia, soube da gravidade do quadro de saúde do seu jovem filho, prontamente se deslocou
para Bom Jesus da Lapa e, lá chegando, vinte e quatro horas após o internamento, o rapaz
foi submetido a uma nova cirurgia.

344
Nome fictício.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
188

Tendo feito duas cirurgias, e não alcançado êxito, os médicos tentaram transferi-lo
para Vitória da Conquista, que tem reconhecidamente um melhor serviço público de saúde.
A tentativa fracassara porque o rapaz veio a falecer horas depois da chegada do seu pai.
O mais intrigante nessa história é que os médicos de hospital não fizeram autópsia do
corpo e, até maio de 2007, os familiares não sabiam a causa mortis do jovem falecido.
Após ouvir esse relato, fiquei revoltado com o que presumia ter sido mais um caso de
deficiência no atendimento do Hospital Carmela Dutra, conhecido pela péssima reputação
em toda a região de Bom Jesus da Lapa. Conversei mais um pouco com aqueles senhores e
segui para a minha entrevista com Mário, mas a história de Orlando não me saía da cabeça.
Mais tarde, relatei o acontecimento a Emílio Pereira Costa345, proprietário da
residência onde estava hospedado. Emílio acabara de ser eleito presidente da Associação e
a minha intenção ao relatar o ocorrido era que essa instituição denunciasse a morte daquele
jovem nas dependências do Carmela Dutra, como um caso com fortes indícios de
negligência ou imperícia médica. Após ouvir o desabafo, Emílio, calmamente, procurou me
convencer de uma outra versão do acontecimento.
Orlando, o filho falecido do senhor Juvêncio Pereira, tinha um primo carnal com o
qual convivia em perfeita harmonia. Além de parentes consanguíneos, eram vizinhos em
uma gleba de terra na qual produziam feijão, milho, mandioca e outras variedades de
gêneros alimentícios com as quais sustentavam suas famílias. Num certo dia, eles se
desentenderam por algum motivo346, e o primo carnal de Orlando jurou vingança, sem,
contudo, especificar o que ele pretendia fazer.
Segundo Emílio teria sido uma imprudência Orlando não ter levado a sério aquela
ameaça, já que o rapaz que prometera vingança era filho de um conhecido e perigoso
feiticeiro, o que me fez lembrar, tempos depois de ouvir essa história, de uma máxima entre
os Azande: “bruxo ataca um homem quando motivado pelo ódio, inveja, ciúme e
cobiça.”347

345
Nome fictício.
346
É muito comum haver desentendimentos entre os moradores de Rio das Rãs na labuta diária da roça, a
exemplo do vizinho deixar os seus animais soltos e esses adentrarem a plantação do outro, não fechar
cancelas, porém, nessas e noutras situações a tendência é de que depois de uma discussão as relações pessoais
sejam restabelecidas.
347
EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, p. 85.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
189

Ademais, salientou Emílio, consultas feitas a curadores do quilombo previam que


algo “de ruim” poderia acontecer ao rapaz. Assim, o que sucedera no hospital teria sido um
golpe fatal de feitiçaria contra o pobre Orlando, potencializado, na versão de Emílio, após
uma visita furtiva que o desafeto fizera à vitima, quando já se encontrava no leito do
hospital Carmela Dutra. Esta informação corresponde às conjecturas que associam a
eficácia da feitiçaria ao uso de partes do corpo da própria vítima, a exemplo de cabelo,
saliva, roupas ou um objeto qualquer pertencente à mesma. Além disso, nas teorias que
explicam o fenômeno, o feiticeiro deve enviar, através de algum mecanismo, o feitiço onde
a vítima se encontre. Teria sido essa, portanto, a finalidade da visita do primo de Orlando
ao hospital.
É notável a semelhança entre a visita do desafeto ao hospital e as crenças dos
Azande348, na África: “A bruxaria não atinge um homem a longa distância...”349
Enfim, para Emílio Costa, a morte de Orlando teria sido por enfeitiçamento, e esta
seria a razão por não ter havido um relatório médico após a morte do rapaz.
Como se pode notar, a narrativa de Emílio Pereira Costa para explicar o ataque da
feitiçaria abrange todas as etapas do acontecimento e responde de maneira concatenada e
lógica ao que aconteceu antes da doença do jovem Orlando: a previsão feita pelos curadores
do que sucederia, a visita fatal do desafeto e, finalmente, o mistério sobre a “doença” que
vitimara o rapaz e que a medicina não foi capaz de diagnosticar.
No mesmo dia em que Emílio me contou esse episódio, no início da noite, fomos
tomar banho em uma das muitas lagoas dentro do território de Rio das Rãs. Na volta,
passamos por uma mulher magra, de olhar fixo e que me pareceu ameaçador. Lembrei-me
que a conhecera quando conversava com Sr. Leonardo José de Souza, líder espiritual da
Mesa Branca Espiritual350, na localidade da Brasileira, quando fiquei sabendo que se chama
Lúcia351 e estaria abrindo um Centro em uma das pequenas localidades do quilombo.

348
Na configuração dos Estados africanos modernos, os Azande estão situados entre a República do Sudão, o
Zaire e a República Centro Africana. Cf. EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os
Azande, p. 07.
349
EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, p. 49.
350
O nome do Centro do Sr. Leonardo é Mesa Branca Espiritual. É uma das modalidades de religião de
possessão existente no quilombo de Rio das Rãs em que se cultuam caboclos, pretos velhos e orixás. É
comum também os freqüentadores se referirem aos mesmos como “Centro” ou “Centro de Jurema”.
351
Nome fictício.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
190

Com um riso de escárnio, mas com visível temor, Emílio fez o seguinte comentário
sobre essa senhora: “essa é outra perigosa feiticeira..., está com uma demanda contra a
própria irmã, que é médium de Leonardo.”
Foi difícil dormir nessa noite; a minha cabeça variava entre o extraordinário espanto
provocado pelos relatos e a completa incerteza de como conduzir doravante a pesquisa.
No dia seguinte a esses acontecimentos, e estando mais calmo e aliviado depois de
refletir sobre o lado positivo da descoberta, comecei a reconstruir eventos relacionados a
acusações de feitiçaria em Rio das Rãs que estavam guardados no fundo da memória, e
diretamente relacionados com essas informações para mim tão desconcertantes.

A representação da feitiçaria no quilombo de Rio das Rãs

Para efeito da discussão que pretendo desenvolver neste capítulo, o termo feitiçaria
será empregado de acordo com a literatura pertinente, tendo como ponto de partida a
compreensão clássica de Evans-Pritchard, que a considera um conhecimento que se utiliza
de técnicas e rituais, com a intenção de “colocar em ordem os acontecimentos.”352 Esses
acontecimentos são engendrados por uma rede de relações sociais nas quais são decisivas,
como num círculo concêntrico, a crença e a acusação de feitiçaria. Os dois termos fazem
parte de um sistema, nos quais diferentes, e muitas vezes, antagônicos sujeitos se
relacionam: autores intelectuais e materiais da feitiçaria, sujeitos enfeitiçados, curadores e
oráculos responsáveis pela identificação e anulação da feitiçaria.
No caso específico do quilombo de Rio das Rãs, religiosos protestantes compartilham
desse sistema para tentar anular, através de rituais e exorcismos, os efeitos em indivíduos
atingidos pela feitiçaria.
As concepções dos sujeitos envolvidas no universo da feitiçaria em Rio das Rãs
variam de acordo com os interesses e os contextos para os quais a feitiçaria é empregada.
Por um lado, todos estão de acordo, ainda que não declarem explicitamente, em considerar
a feitiçaria uma ação condenável do ponto de vista moral e ético, e por violar valores
sociais estabelecidos consensualmente. As duas divergências filosóficas mais importantes

352
COUCEIRO, Luiz Alberto Alves. Pai Gavião e a Coroa da Salvação: Crença e Acusações de Feitiçaria no
Império do Brasil. Rio de Janeiro: IFCS/UFR, Dissertação de Mestrado, com orientação de Yvonne Maggie,
digitada, 2004, p. 17.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
191

quanto ao significado da feitiçaria são as seguintes: a feitiçaria é uma ação do demônio na


terra ou um atributo especial de certas pessoas? O universo da feitiçaria é parte da cultura
negra do quilombo de Rio das Rãs ou está relacionada à falta de fé dos quilombolas em
Jesus Cristo?
A maior parte dos quilombolas de Rio das Rãs, os que fazem parte dos Centros de
Jurema, reconhece e acredita na existência de determinados indivíduos portadores de
poderes especiais, capazes de enviar objetos ou energias para afetar a saúde física ou
mental de outra pessoa, ou até mesmo de matar. Os indivíduos portadores de tais poderes
seriam capazes, igualmente, de atingir a plantação, a criação ou a pesca do inimigo visado
ou, simplesmente, interferir e desfazer relações pessoais, familiares e afetivas. São sujeitos
chaves nesse sistema de crença, os indivíduos responsáveis pela feitiçaria e os adeptos das
religiões de matrizes africanas praticadas no quilombo. Os primeiros são temidos por serem
capazes de fazer o mal; enquanto os adeptos dos Centros acreditam que a feitiçaria pode ser
anulada ou desfeita. Estou argumentando que ambos fazem parte do universo da feitiçaria.
Com esta interpretação, eu assumo que não faz sentido separar, como argumentou Mauss,
de forma absoluta magia e religião:

“Aliás, como os fatos da religião e os da magia, numa determinada sociedade, fazem parte de um
mesmo sistema e talvez dependam de uma mesma origem, o estudo comparativo não pode deixar de
ser interessante.”353

Embora os evangélicos do quilombo de Rio das Rãs recusem compartilhar da mesma


referência cultural afro-brasileira da qual a feitiçaria faz parte, ao acreditar no poder da
feitiçaria, eles, de fato, estão incluídos no mesmo universo de crenças. Ainda que
considerem não serem os poderes da feitiçaria inerentes aos indivíduos, e sim,
“instrumentos” de uma ação exterior comandada pelo demônio. Nesta concepção dos
evangélicos, o indivíduo-feiticeiro antes de tudo é um alienado a serviço de potências
místicas que lhe são estranhas. Essa é a razão de se utilizarem do método de exorcizar, que
significa exatamente afastar, isto é, retirar o “demônio” do corpo daquele que está possuído
pela “feitiçaria”. Portanto, “feitiçaria” tem a mesma denotação de “demônio”.

353
MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 271.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
192

Mas, a ação de livrar os sujeitos de “trabalhos feitos” encetada pelos curadores dos
Centros de Jurema resulta no mesmo propósito dos evangélicos, ainda que por outros
métodos, que é o de livrar o indivíduo de um mal que o atormenta.
O não reconhecimento da feitiçaria pelos evangélicos como parte da cultura do
quilombo de Rio das Rãs, entretanto, não invalida a sua existência como uma crença de
enorme influência social nesse quilombo, aliás, prova isso o temor, inclusive, de parte
significativa dos próprios evangélicos, que estão sempre informados de acontecimentos
envolvendo a ação dos feiticeiros na comunidade.
Portanto, o poder da feitiçaria como um fenômeno social é explicado, de acordo com
a concepção de Mauss, porque as “instituições só existem nas representações que a
sociedade faz delas. Toda sua força viva lhes vem dos sentimentos de que são objeto; se são
fortes e respeitados, é porque estes sentimentos são vivazes; se cedem, é porque perderam
toda a autoridade junto às consciências.”354
A permanência dessas instituições nas sociedades atuais, como todos os fatos sociais
indubitáveis, deve ser atribuída ao que Mauss chama de “sistema das representações
coletivas.”355, no sentido durkheimiano, em que os fatos se impõem às individualidades,
independentemente do julgamento que elas possam fazer.
Os evangélicos de Rio das Rãs, embora afirmem serem contrários às crenças na
feitiçaria, reforçam as referidas crenças, mesmo porque eles são chamados
permanentemente a compartilhar com pessoas da comunidade relatos sobre os infortúnios
por elas produzidos. O que os diferencia dos curadores e seus fiéis é a concepção do que
representa a feitiçaria culturalmente para os quilombolas. Essa é a explicação porque
fenômenos dessa natureza, seja “ou não proibido ao indivíduo afastar-se deles, já existem a
partir do momento em que ele se consulta para saber como deve agir; são modelos de
conduta que eles lhe propõem.”356
É pouco provável viver no quilombo de Rio das Rãs sem que a palavra feitiçaria357
não seja mencionada. Neste sentido, há analogia com o que foi observado por Evans-

354
Idem, p. 19.
355
Idem, p.20.
356
MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia, p. 11.
357
Usam-se termos como “feitiçaria”, “bruxaria”, “trabalho sujo”, “trabalho encomendado”, “coisa feita”,
“coisa enviada”, “macumba”, com o sentido análogo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
193

Pritchard entre os Azande: a “bruxaria participa de todos os infortúnios e é o idioma em que


os Azande falam sobre eles, e através do qual eles são explicados.”358
A feitiçaria no quilombo de Rio das Rãs é uma noção com finalidade análoga ao da
moeda no sistema de troca econômica nas sociedades capitalistas. Nestas, a moeda é o meio
de compra de mercadorias. Em Rio das Rãs, a feitiçaria é o idioma para explicar fenômenos
do mundo social e natural.
Como em todas as sociedades, “a linguagem é fundamental porque é através dela que
conseguimos criar o significado da experiência, dos pensamentos, dos sentimentos, da
aparência e do comportamento humanos.”359 A lógica explicativa dos acontecimentos para
a feitiçaria ou para os poderes mágicos, em geral, faz tanto sentido como as da ciência.
Lévi-Strauss considerou que “a cura xamanística se situa a meio caminho entre a nossa
medicina orgânica e terapêuticas psicológicas como a psicanálise.”360 Os indivíduos em Rio
das Rãs, ao seu modo, sabem muito bem distinguir as explicações da ciência e as da magia.
Da mesma forma como os africanos: a “crença Zande em bruxaria não contradiz
absolutamente o conhecimento empírico da causa e efeito. O mundo dos sentidos é tão real
para eles como o é para nós.”361

A feitiçaria: um fenômeno social generalizado em Rio das Rãs

Em seu clássico As Regras do Método Sociológico, Émile Durkheim propõe os


seguintes princípios para se identificar os fatos sociais:

“É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção
exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência
própria, independentemente das manifestações individuais que se possa ter.”362

Eis aqui todas as características sociológicas que se aplicam ao fenômeno da feitiçaria


em Rio das Rãs. A feitiçaria é uma linguagem incorporada à experiência dos quilombolas,

358
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, p. 57.
359
JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia – guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1997, p. 136.
360
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 228.
361
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos em magia entre os Azande, p. 63.
362
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. 14. ed., São Paulo: Companhia Editora
Nacional,1990, p. 11.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
194

ainda que seja, para a maioria dos seus membros, uma ação abominável que se deva
combater tenazmente.
A generalização do discurso da feitiçaria no quilombo dificulta até mesmo a
compreensão de certos paradoxos individuais. Por exemplo, um evangélico que
formalmente não aceita a pertinência da feitiçaria como parte de sua própria cultura, por ter
uma doutrinação religiosa avessa a qualquer negociação com a visão de mundo e o universo
do qual a feitiçaria faz parte, no momento de aflição não duvida em recorrer aos
conhecimentos mágicos da “boa” feitiçaria para resolver algo que lhe diga respeito. Foi o
que aconteceu com dona Benvinda Pereira Nunes, esposa do senhor Celso Nunes de Souza,
76 anos.
Certa vez um filho do casal fora mordido por uma piranha em uma lagoa, provocando
um corte dilacerante no pé e um sangramento incontido. Na época, era muito difícil uma
condução para Bom Jesus da Lapa. Dona Benvinda, de acordo com as suas palavras, “olhou
para os quatro cantos” e, não vendo alternativa, lembrou-se de um conhecido feiticeiro da
comunidade. Este, após ouvir o relato sobre o estado de saúde do rapaz, recomendou a
seguinte fórmula mágica: “retire uns cabelos do seu gato, coloque em um papel e aplique
em cima da ferida, logo o sangue estancará e ele terá condição de chegar a tempo de fazer
um curativo na sede do município de Bom Jesus da Lapa.”
O resultado dessa excêntrica receita foi tão positivo que dona Benvinda a aplicou a
outro filho, igualmente ferido após cair de um cavalo, por recomendação do mesmo
feiticeiro.
Dona Benvinda Nunes contou também a história de uma mulher muito corajosa e que
não temia lidar com cobras. É importante lembrar que em Rio das Rãs imagina-se que o
aparecimento de uma cobra no caminho de uma pessoa, sobretudo a cascavel que é a mais
temida serpente do quilombo, esteja relacionado com a feitiçaria. Daí a importância do
gesto dessa mulher, considerada uma feiticeira, de acordo com o relato de dona Benvinda:

“De manhã [...] foi que começou ir rapar. Aí agora nós foi rapano, rapano, rapano essa mandioca.
‘Minina cuidado, ói bicho dentro dessa mandioca que foi botada onte’. Rapano, rapano, rapano e a
mulé tava incostada assim na beira de uma parede assim, o forno assim... Aqui o outro era o forno e
aqui era a loca dos rodeiro entrar pra passar... E ela assim quando eu pensei que não era. ‘Ó uma cobra
aqui...’ Ela vapu no cabo dessa cobra ó, e levantou e saiu bateno no chão... Até que morreu. Até que
matou. Seguro no cabo e a cobra não voltou pro braço dela nem pras perna e ela tacava ela lá no chão
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
195

assim... Ela matou ela de mão. ‘Minina você é doida?’ ‘Qualé doida! ‘Eu mato ela é assim, ó’. Deus
me livre...”, arrematou dona Benvinda.

O esposo de dona Benvinda, senhor Celso Nunes, em meio a um sorriso de


satisfação, completou: “Tem muitos deles [feiticeiros] que faz isso, pega cobra cum a mão.”
Essas histórias foram contadas por uma evangélica que não tem qualquer motivo
religioso para ter simpatia pelo universo da feitiçaria. Mas, ela reconhece que a feitiçaria é
um fenômeno presente na realidade social de sua experiência, faz parte da cultura do
quilombo e o tem como um conhecimento eficaz. Não fosse assim não teria recorrido ao
feiticeiro, pela segunda vez, para tentar salvar o filho de uma hemorragia que o definhava.
Chama atenção ainda, nesse relato de dona Benvinda, para o fato de o presumido
feiticeiro ter sido o principal responsável pela cura dos seus filhos, o que comprova que
feitiçaria pode se expressar não apenas pelo seu caráter insidioso e maléfico, dois dos seus
traços mais salientes e conhecidos. Nos casos relatados, as ações dos feiticeiros foram
descritas salvando vidas, tanto nas recomendações das receitas mágicas que utilizavam pelo
de gato, como no caso da mulher da casa de farinha, se confrontando com a expressão
maléfica da cobra. Nesta simbologia se reproduz também uma figuração entre duas das
representações mais antigas de falsidade, crueldade e mistério: a feiticeira e a serpente.
Finalmente, deve ser assinalado o caráter ambivalente da feitiçaria: matar uma cobra
é uma maldade, pela crueldade em si, mas também pelos prejuízos à natureza que o seu
desaparecimento provoca no equilíbrio biológico das espécies; contudo, matar uma cobra
como prevenção de que ela possa picar um ser humano e, portanto, causar danos que
possam levar até à morte tem um valor moral superior à morte da cobra. A maldade da
mulher que matou a cobra seria, nesse caso, atenuada?
Na história de Rio das Rãs, uma das mais ilustres chefas de parentelas chamava-se
Maria da Conceição, conhecida respeitosamente na comunidade como Imbilina ou
Umbilina. Pouco se comenta em Rio das Rãs sobre a sua história e, nas poucas menções,
prevalecem à reticência e longos silêncios. Na pesquisa de campo descobri que, antes de
falecer, dona Imbilina passara a ter estranhos comportamentos como o de cavar buracos e
neles entrar e subir em árvores fechadas e espinhosas, como o juazeiro. Além disso, teria
diminuído de tamanho à medida que envelhecia e apresentado certas deformidades nas
costas, indicando estar em processo de formação de “asas”.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
196

Quando perguntado sobre o porquê dessa metamorfose de dona Imbilina, a


informante me respondeu secamente que era assim que normalmente as feiticeiras morriam.
Verdadeira ou não, essa versão de que essa honorável mulher tenha sido uma feiticeira,
presumível razão de sua grande proeminência na comunidade, segundo a informante, é fato
comprovado por ela ter alcançado a proeza extraordinária de contrariar princípios
estabelecidos do patriarcalismo referentes à instituição de “lideranças respeitáveis e
incorporadas” no quilombo.

Celso Nunes de Souza e Benvinda Pereira Nunes

Dona Imbilina foi uma das fundadoras da localidade de Pedra do Cal, onde nasceu
por volta de 1878. Morreu junto de sua parentela, aos 92 anos, na localidade de Rio das
Rãs, em 1970. As histórias sobre esta mulher são variadas, picantes, contraditórias e,
sobretudo, cheias de lacunas. Porém, uma coisa é inegável: ela é comentada e conhecida em
todas as localidades do quilombo, uma referência obrigatória. Publicamente falam ter sido
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
197

uma “mulher solteira”363, outros a ela se referem mais explicitamente como “mulher da
vida”, por ter tido filhos com muitos homens, depois da morte precoce do seu marido, João
Nagô.
No início do século XX, provavelmente tangida por uma seca, dona Imbilina e seus
filhos migraram para a antiga localidade de Rio das Rãs, à margem do rio São Francisco.
Hoje, a maior parte dos seus descendentes se concentra em um povoado chamado de
Assentamento Rio das Rãs; a outra parte está na Brasileira. Alguns depoimentos recolhidos
sobre essa extraordinária mulher em minha pesquisa para o mestrado364 mostram como ela
era destacada e importante no quilombo:

“Ela era uma negona forte, uma negona forte, dos nêgo, da raça dos nêgo mesmo, porque veio lá de
baixo [...] Pelo menos o povo dela deve ter vindo [da África] porque ela era mesmo da raça dos nêgo
legítimo...” (Francisco Archanjo de Souza, 104 anos - Retiro)365

“Mas, a mais pioneira de dentro de Rio das Rãs que a gente vê o nome sempre mais elaborado mesmo
foi os Imbilinos, os Imbilinos veio de uma família chamada, tinha uma mulher chamada [...] Esteva,
uma velha chamada Esteva que foi essa, foi à origem, essa foi quem derramou tantos Imbilino”
(Moisés C. da Silva)366

“As famias mais fortes daqui é Tomé e os Imbilinos e minha famia também, porque evém de longas
data, são as famias mais fortes...” (Francisco Ferreira de Magalhães, 66 anos - Rio das Rãs)367

“A minha bisavó chamava Ana e ele chamava Felipe. O pai de minha mãe chamava João Nagô.
Morava aqui nesse lugar [Pedra do Cal] e morreu nesse lugar. E minha avó chamava Imbilina, Imbilina
a minha avó [...] Então, minha mãe [Esteva] era uma mulherzinha da vida, tá compreendeno? Ela não
casou, minha mãe não casou...” (Tiburtino Nunes de Souza, 78 anos - Rio das Rãs)368

Esses depoimentos sobre Imbilina, feitos por indivíduos, sobretudo, de outras


parentelas, indicam a sua proeminência; talvez, por isso, os seus descendentes até hoje se

363
A figura da mulher “solteira” refere-se invariavelmente a uma mulher que não se casou e que teve uma
vida sexual livre dentro da comunidade, por essa razão, a sua reputação é normalmente negativa em virtude
do perigo que ela pode representar para as mulheres casadas.
364
SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau-Preto a Rio das Rãs. Liberdade e escravidão na construção
da identidade negra de um quilombo contemporâneo. Dissertação de Mestrado em Sociologia pela
Universidade Federal da Bahia, 1997.
365
O Sr. Francisco A. de Souza, conhecido como Chico Tomé, faleceu com 107 anos, em 2000.
366
Moisés C. da Silva atualmente está com 45 anos.
367
O senhor Francisco F. de Magalhães atualmente está com 77 anos.
368
O senhor Tiburtino Nunes de Souza está com 91 anos e absolutamente lúcido. É neto de dona Imbilina.
Mais tarde tornou-se devoto da Assembléia de Deus, mesmo assim, alguns dizem que no passado ele teria
sido feiticeiro.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
198

orgulhem da descendência dos “Imbilinos”, mesmo sendo ela mulher, “solteira”, portanto
com baixo status social, e descendente de “nagôs.”369

Tiburtino Nunes de Souza (91 anos), no centro, neto de dona Imbilina, com filhos e netos.

Uma das explicações mais comuns em Rio das Rãs para a notabilidade de dona
Imbilina, é por ter sido ela, no passado, a principal organizadora da festa do Divino Espírito
Santo. Essa explicação, todavia, toma o efeito pela causa, isto porque somente as pessoas
notáveis e respeitáveis eram escolhidas para organizar essa festa da religiosidade católica
popular tão importante culturalmente para os quilombolas. Ao se atribuir como causa da
sua proeminência o fato de ter sido escolhida para liderar a festa do Divino, esquece-se de

369
Possivelmente os “nagôs” teriam sido no século dezenove uma das nações africanas que aportaram em Rio
das Rãs quando da ocupação do território pelos negros fugidos. Os depoimentos sobre os “nagôs” são
contraditórios. Há referências a sua condição de “negros legítimos”, de que “vieram da África” ou de que
“eram ritintos”, para dar uma conotação étnica positiva. Outras referências são mais depreciativas, a exemplo
de que entre os “imbilinos”, portanto, entre os “nagôs”, havia incesto ou a de que as mulheres mais destacadas
como Imbilina e Esteva, mãe e filha, eram “mulheres da vida”.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
199

que a própria escolha em si já revelava ser ela respeitada por seus pares. A liderança do
festejo é consequência, e não causa.
E o mais intrigante é quando a escolha é por uma mulher, numa sociedade
marcadamente patriarcal. Além disso, uma “mulher solteira”, portanto com uma reputação,
no mínimo, pouco simpática, sobretudo, entre as mulheres: o de carregar a fama de que se
casara pela primeira vez com João Nagô, já estando grávida de outro homem e, depois que
este falecera, teve muitos filhos com diferentes homens. Mesmo assim, ainda se tornou
organizadora de uma manifestação religiosa como o Divino Espírito Santo, uma espécie de
iniciação para afirmação política e moral das lideranças mais respeitadas no quilombo.
A capacidade de dona Imbilina em nomear a sua parentela com o apelido com que era
conhecida é, sem dúvida, a constatação da sua importância social no quilombo, mesmo que
tivesse em sua trajetória de vida uma conduta moral discutível para os padrões de Rio das
Rãs. Qual teria sido o segredo da notoriedade de dona Imbilina? O encanto da sua feitiçaria
facilitara relações sexuais com pessoas proeminentes? Ou ela se tornou famosa por ter
passado por cima dos preconceitos patriarcais e se firmado como liderança,
independentemente da sua conduta moral?
Nas margens do riacho Rio das Rãs, no dia 25 de junho de 2007, em um final de tarde
quente, conheci uma mulher de nome Celita370, que puxou conversa enquanto lavava as
suas roupas. Ela disse que morava em uma localidade próxima da então sede da fazenda de
Carlos Bonfim, para onde alguns quilombolas foram alocados depois do conflito com
intenção de dar ao local uma representação simbólica da vitória pela reconquista da terra. A
idéia de criar um centro cultural no local ainda não vingou. Mas, a Associação deslocou
para o povoado duas famílias, as irmãs Lúcia e Celita e os respectivos esposos e filhos.
Dona Celita me contou que teve que abandonar às pressas a roça, o pasto onde
alimentava os animais e a casa de alvenaria onde morava. A decisão de sair do lugar onde
morava se deveu ao fato de que sua irmã Lúcia desobedecera ao que havia sido
estabelecido pela assembléia do quilombo, que a obrigava a recolher o gado que invadira a
roça da irmã. Com os olhos marejados, dona Celita dizia, entretanto, estar feliz, porque o
seu marido não fizera nenhuma “besteira” com a irmã desobediente.

370
Nome fictício.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
200

De volta à hospedagem, a minha anfitriã explicou melhor a origem daquele conflito


envolvendo as duas irmãs.
Lúcia, irmã de dona Celita, é uma “médium” que já pertencera aos Centros de Jurema
do senhor Andrelino Francisco Xavier e o de Leonardo José de Oliveira. Teria saído dos
dois Centros por desentendimentos e estaria organizando o seu próprio no espaço onde
ocorrera o conflito entre as irmãs. Para a minha informante, Lúcia era uma feiticeira; a
mesma informação a que tive acesso através de outra fonte. A saída de dona Celita de sua
residência na antiga sede da fazenda era porque a própria irmã demandava contra ela, isto é,
tentava “enviar feitiço”.
A essa altura do relato passei a entender por que dona Celita, enquanto lavava a
roupa, solicitara a uma mulher que estava ao seu lado para que estendesse as suas roupas
lavadas em uma cerca de arame farpado próxima do riacho. Na explicação da informante, a
sua amiga Celita vivia em permanente estado de tensão, razão pela qual ela se recusava a
passar por baixo da cerca de arame, para não “abrir” o seu corpo e com isso ser atingida
pelos “trabalhos” enviados pela irmã. Durante a noite dona Celita ficava em vigília para
não ser atingida pelo feitiço da irmã enquanto dormisse, além de não beber água e nem
comer em casa de quem não fosse de absoluta confiança, entre outras precauções para não
ser enfeitiçada.
O conflito entre as duas irmãs fora de fato objeto de discussão em uma assembléia da
Associação, segundo Wilson Pinto de Oliveira (46 anos), presidente à época, que impôs a
Lúcia e a seu marido a obrigação de recolher o rebanho de gado para um cercado que o
impedisse de invadir as plantações da família de sua irmã. Essa decisão se transformou em
um documento entregue pessoalmente à acusada. Ao receber a resolução decidida em
assembléia, dona Lúcia afirmou terem sido os fatos deturpados pela irmã; disse também
que a irmã é quem estaria com inveja dela por estar abrindo um Centro de Jurema na antiga
sede da fazenda e, além disso, ela e o seu esposo estariam enfeitiçando a sua criação.
O resultado do conflito, de acordo com Wilson Oliveira, é que uma acusação se
confrontava com a outra. Dessa forma, a decisão da assembléia da Associação que obrigava
Lúcia a recolher os animais jamais poderia ser cumprida naquelas circunstâncias de relatos
tão conflitantes.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
201

Alguns aspectos chamam atenção neste episódio. Em primeiro lugar, dona Lúcia, a
presumida feiticeira, não cumprira a decisão da assembléia e nem demonstrara qualquer
receio em contrariar os poderes formais instituídos na comunidade, como a diretoria da
Associação e a assembléia geral. Independentemente do juízo de valor de quem tem ou não
razão neste conflito, não há dúvida de que dona Celita e seus familiares foram os mais
prejudicados no desfecho do processo, considerando terem perdido residência, roça, pasto,
investimentos em cerca, sem falar no impacto de sair de sua casa e ainda viver
sobressaltada com as ameaças de feitiçaria.
Fica patente neste episódio que as acusações de feitiçaria rivalizam abertamente com
o poder político formal e institucionalizado do quilombo. Ao não acatar a decisão soberana
da assembléia, a acusada de feitiçaria desafiou e constrangeu as lideranças políticas que
emergiram depois do conflito pela posse da terra, no qual Wilson Oliveira é uma das
pessoas mais destacadas. A aparente resignação de Wilson à ação ilegal da feiticeira tem a
ver com a própria experiência pessoal dele.
Certa vez ele fizera uma “olhada”, por estar com os pés adormecendo e que não
melhoravam com as drogas recomendadas pelo médico, e a curadora consultada, dona
Zenilda da Parateca/Pau D’arco,371 diagnosticara que ele estava “apiado”, ou seja,
enfeitiçado, e seria essa a razão de estar sem “rumo”, isto é, desorientado politicamente.
Em 2009, quando nos reencontramos, ele confessou que nas duas vezes em que não
conseguira se eleger vereador por Rio das Rãs, embora as avaliações fossem favoráveis a
uma vitória, teriam sido resultado de “trabalhos feitos” contra ele.
No início de 2009 ele foi acometido de uma grave doença que nunca chegara a ser
diagnosticada pela medicina convencional. Ele acreditava também que tudo isso era obra de
feitiçaria, com a finalidade de atingi-lo. Por essa razão, temia tomar qualquer iniciativa que
contrariasse uma das partes envolvidas, sobretudo, dona Lúcia, que era considerada
“perigosa” feiticeira.
Além de Wilson Oliveira, outras lideranças políticas jovens do quilombo se
consideram também vítimas da feitiçaria em Rio das Rãs. Um dessas lideranças é Simplício
Archanjo de Souza (48 anos).

371
Comunidades de quilombos que, segundo alguns relatos, seriam mais antigas do que a vizinha Rio das Rãs.
É comum os moradores que formam o território quilombola à margem do Rio São Francisco freqüentarem os
muitos Centros de Jurema e Candomblés existentes no vasto território.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
202

Wilson Pinto de Oliveira, de camisa listrada.

Durante uma disputa política interna na Associação, de acordo com Simplício,


envolvendo interpretações diferentes acerca da administração de empréstimos contraídos
em sua gestão, nas duas vezes em que fora presidente, “coisas estranhas começaram a
acontecer”, e ele incontinente foi buscar ajuda de um curador. Na consulta foi indicado que
“alguém” estava fazendo um trabalho contra ele. Embora o curador não revelasse o nome
do demandante, que é a estratégia mais usual entre os curadores do quilombo, Simplício
passou a desconfiar de um parente seu que, na oportunidade, fazia parte da diretoria da
Associação como o mais provável responsável pela ação maléfica contra ele. Não que “ele
pessoalmente”, nas palavras de Simplício, fosse o feiticeiro, mas teria contratado alguém
com a finalidade de prejudicá-lo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
203

Neste caso, é importante salientar, que teria sido vítima de feitiçaria uma das
lideranças de maior projeção do quilombo de Rio das Rãs. Além de ter sido presidente da
Associação em duas gestões, Simplício Souza é representante da Bahia na Coordenação
Nacional das Comunidades de Quilombos; participara, em 1995, do I Encontro Nacional
das Comunidades Negras Rurais Quilombolas; foi membro de uma comissão de
quilombolas que entregou ao então presidente, Fernando Henrique Cardoso, o primeiro
documento de reivindicação dos quilombos contemporâneos; é uma liderança proeminente,
embora isso não tenha sido suficiente para livrá-lo da feitiçaria, ao contrário, o seu
currículo parece ter sido uma fonte incentivadora de ação maléfica.
Outra liderança política importante do quilombo de Rio das Rãs, Eduardo Pereira dos
Santos (54 anos), dirigente antigo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bom Jesus da
Lapa, a primeira instituição a denunciar a grilagem das terras de Rio das Rãs pelo
fazendeiro Carlos Bonfim, teria igualmente sido vítima da feitiçaria. Ele contou em
detalhes como foi atingido:

“Foi um dia de sexta-feira, eu tava deitado e precisava de ir pra Lapa, quando mais ou menos meia-
noite, aí me chamaram. Me chamaram meu nome completo e eu não respondi. Me chamou três vezes
eu num assustei.
Tava deitado em casa com minha família. Ai eu fui pra Lapa umas quatro hora da manhã, quando eu
cheguei no fundo da minha roça, atravessei o arame, me chamou de novo outra vez. Eu segui até Lapa
e chegando lá fiquei sentindo dor de cabeça, tonto e voltei pra casa de novo. Passei na Brasileira na
casa do Sinésio e cheguei em casa deitei. Nessa deitada que eu deitei, fiquei trinta dias sem poder
andar. Me entrou como se fosse uma agulha na cintura e saiu no pé esquerdo. Fiquei trinta dias sem
poder movimentar.
Eu fui muito bobo, eu num me preveni. Antes de eu passar [por baixo do] arame, eu tinha de fazer
alguma coisa. Vestir minha roupa as avesso, isso foi que eu num fiz. Aí é onde a gente tem o corpo
aberto. Num tava prevenido. Se você não tivesse passado pelo arame não acontecia ele me pegar. Aí eu
senti dor no corpo e como se fosse uma agulha que me entrou na cintura e veio sair no pé. [Para
desfazer] essa bruxaria meu pai na época, meu pai foi [com] Niquinho em Andrelino [o mais
importante curador de Rio das Rãs] e aí ele fez o trabalho dele lá e mandou... Aí eu tomei os
medicamento, usei a roupa e Graças a Deus hoje tou bom.”

Nos três episódios de feitiçaria envolvendo Wilson, Simplício e Eduardo, há um


importante elemento comum que os envolve: eram lideranças do quilombo de Rio das Rãs
atingidas pela feitiçaria enquanto dirigiam a Associação Quilombola e o Sindicato de
Trabalhadores Rurais, portanto, em pleno exercício de suas funções políticas. As ações de
feitiçaria movidas por egoísmo ou inveja são comuns à maior parte dos casos, porém,
nesses, existe a distinção de terem sido dirigidas a indivíduos no exercício do poder, o que
comprova ser a feitiçaria uma ação capaz de desafiar o poder para mostrar o caráter
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
204

idiossincrático do seu próprio poder. Nas palavras de Balandier: “O feiticeiro manipula a


desordem em seu proveito. Provoca as ações não conformes, fora das normas.”372

Simplício Arcanjo de Souza e sua esposa, Paulina Souza Rodrigues

Do depoimento de Eduardo pode-se inferir, ainda, ser a feitiçaria, além de uma


modalidade de poder, algo que engendraria igualmente saber. Tantos os que fazem a
feitiçaria como os que dela se defendem são obrigados, permanentemente, a criar
procedimentos, fórmulas, dispositivos, ensinamentos, que os coloquem em condições
técnicas e operacionais para alcançar os objetivos pretendidos, de atacar ou de se defender.
Isso explica a existência de um mercado diversificado concernente ao universo da feitiçaria,
que oferece opções de objetos e materiais apropriados à manipulação da feitiçaria como
também à sua prevenção. Michel Foucault tem uma importante contribuição a propósito
dessa relação entre saber e poder:

372
BALANDIER, Georges. O Contorno: poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 52.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
205

“Temos que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porquê o serve ou
aplicando-o porquê é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de
poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao
mesmo tempo relações de poder.”373

A feitiçaria, em Rio das Rãs, portanto, além de desafiar os poderes instituídos no


quilombo, mostra não respeitar também os limites éticos e morais do parentesco: irmãs e
cunhados estão envolvidos em denúncias, ameaças e acusações. E o caso de Orlando, citado
no início deste texto, como se vê, não era fortuito; ele é uma das peças do universo da
feitiçaria em Rio das Rãs.

A feitiçaria, os pastores e os fiéis das igrejas evangélicas

As duas principais confissões evangélicas com templos e ações religiosas regulares


em Rio das Rãs são a Igreja Pentecostal Deus é Amor e a Igreja Evangélica Assembléia de
Deus. Segundo um dos seus integrantes, esta teria chegado há mais de sessenta anos na
comunidade; enquanto a primeira, há mais ou menos trinta anos.
A quantidade de adeptos dessas duas igrejas já foi maior em outros tempos, hoje eles
estão “minguando”, de acordo com a opinião de um diretor da Associação Quilombola Rio
das Rãs. A igreja Deus é Amor só tem um templo construído no quilombo de Rio das Rãs,
na localidade da Brasileira, com cerca de cinquenta fiéis, entre os batizados e os que estão
em processo de conversão.
A igreja Assembléia de Deus tem dois templos, um no Assentamento Rio das Rãs e
outro mais modesto, na Brasileira. Na Brasileira são cerca de dezesseis fiéis; no
Assentamento, aproximadamente oitenta. As construções dos templos são modestas, mas
todas com padrões construtivos modernos: alvenaria, cobertura com telhas de cerâmicas,
paredes rebocadas e com pinturas externas.
A referência às igrejas evangélicas nessa discussão sobre a feitiçaria em Rio das Rãs
deve-se ao fato de se colocarem, explicitamente, entre as suas prioridades evangelizadoras
combater a feitiçaria, considerada como uma ação demoníaca para seduzir os que não

373
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 18. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, 27.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
206

“acreditam nas Escrituras Sagradas”, a exemplo do discurso da maior parte das igrejas
evangélicas em todo o Brasil, notadamente a Igreja Universal do Reino de Deus - IURD.

Templo da Assembléia de Deus, na Brasileira

As duas confissões neopentencostais presentes no quilombo de Rio das Rãs, ainda


que não adotem o estilo proselitista e agressivo dos adeptos da IURD, consideram a
feitiçaria uma ação nociva às crenças religiosas cristãs e, por isso mesmo, deve ser
combatida. O enfeitiçamento, para os integrantes dessas igrejas, é a expressão física do
diabo no corpo do indivíduo. Os feiticeiros teriam um pacto com o diabo, ou seriam por ele
incorporados.
Esta concepção define precisamente a maneira de pensar dos evangélicos sobre a
feitiçaria em comparação com os cultuadores das religiões de origem indígena e africana.
Ainda que haja muitos pontos comuns sobre a concepção de feitiçaria entre os dois
segmentos religiosos, eles conformam visões de mundo distintas.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
207

Os evangélicos da Igreja Deus é Amor aceitam e reconhecem a feitiçaria como uma


realidade incontestável no quilombo de Rio das Rãs:
“Eu acredito que existe por que eu já achei na minha casa um assim..., a gente chama ele de patuá, já
achei um tipo de um trabisseirinho custurado e pra mim aquilo era uma macumba, qual num sei, eu
num tenho certeza, se foi feito pra mim ou se foi feito pra minha vizinha.” (Joselita Ramos Rodrigues
de Souza, foto abaixo)

Os adeptos da Assembléia de
Deus, a exemplo de Francisco
Pereira Silva (48 anos), são mais
discretos quanto ao reconhecimento
da feitiçaria, mas confirmam também
a existência do fenômeno no
quilombo: “Nós sabemos que
existe.”
A opinião de outro membro da
Assembléia de Deus do
Assentamento Rio das Rãs,
Bevenuto Batista Lima (46 anos),
contudo, é mais complexa e
sofisticada. Embora não tenha ainda
se consagrado pastor, Bevenuto
analisa as crenças relacionadas à
feitiçaria de uma
perspectiva teológica e racional:

E – Bevenuto, você acredita em feitiçaria, em bruxaria?


Bevenuto Batista Lima - A gente sabe que existe. Porque na época da lei – você lê
em Moisés – as pessoas que praticavam tais atos eram extirpados nas comunidades de
Israel, era um ato pecaminoso contra Deus e as pessoas que praticavam essas ações,
eles não podiam ficar junto com os israelitas. Caso eles deixassem aquelas práticas aí
eles podiam, mas pra eles ficar exercendo aqueles trabalho, essa crença, então eles
eram excluídos dessas comunidades de Israel. Biblicamente era um ato abominável o
feitiço.
E – Existe feitiçaria e bruxaria aqui em Rio das Rãs?
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
208

BBL – Valdélio, eu não tenho conhecimento. O que a gente sabe, é o que eu to


falando pra você é que segundo a bíblia, a bíblia fala desse...
E – Mas eu estou perguntando se você já ouviu falar se existe?
BBL – A gente vê as pessoas comentando por aí. Comentários avulsos, sem nenhum
relatório, sem nenhum...
E – Não. Não há provas, quem é que vai dizer que...
BBL – Mas a gente ouve os comentários. Que tem pessoas que pratica a essa arte de
feitiçaria, é comum a gente ouvir: “Fulano tá matando alguém”. É o comentário, a
gente não... Só ouve de perto, mas de terceiros. A gente não se envolve, mas quem
tem ouvido... É difícil a gente impedir o nosso...

A exemplo de outros evangélicos, Bevenuto reconhece que as acusações de feitiçaria


fazem parte do cotidiano de Rio das Rãs. Entretanto, o seu reconhecimento tem a intenção
de negar a eficácia e os fundamentos que conferem ao discurso da feitiçaria o status de
fenômeno integrante da cultura do quilombo.
Ao negar a feitiçaria do ponto de vista bíblico, Bevenuto a considera uma ação que
carece de “comprovação” quanto a sua eficácia. Para ele, a feitiçaria é irracional do ponto
de vista lógico, e sugere que o discurso da feitiçaria é uma invenção a que não se deve dar
crédito. Por essa razão, a sua atitude é de desdém: “A gente vê as pessoas comentando por
aí. Comentários avulsos, sem nenhum relatório...”
Bevenuto insinua que a feitiçaria, na verdade, existe na sociedade de Rio das Rãs,
porque existe uma crença que a torna real, mas ela não teria como “comprovar” a sua
veracidade, que ele chama de “relatório”. O desdém é uma maneira de Bevenuto insinuar
estar a feitiçaria em um plano inferior de saber: “a gente não se envolve...”, completa ele.
As crenças religiosas dos quilombolas de Rio das Rãs, portanto, de acordo com o
pensamento racionalista de Bevenuto, careceriam de uma “explicação científica”. A sua
posição sobre esses fenômenos é similar à dos analistas que observam o mundo de maneira
objetiva e positivista:

“Existe assim, por conta das pessoas. Agora a minha pessoa, eu acho que não, porque a gente é
evangélico, então volta ao sujeito. Agora eu posso, isto é, qualquer enfermidade, eu não posso dizer
que é um quebrante sem ter um diagnóstico. É uma doença praticamente sem origem. Então a gente só
pode dizer a origem da doença quando a gente tem um diagnóstico.”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
209

Ritual de “purificação” em um culto da igreja Deus é Amor, na Brasileira

Para Bevenuto, a comprovação de uma doença deve estar baseada em conhecimento


médico, e a sua prescrição só é possível mediante o controle e o conhecimento da fisiologia
e dos sintomas apresentados pelo paciente, e é com base nessa prescrição que se pode
recomendar um tratamento. Como o quebranto não possui a materialidade que comprove a
existência de um mal físico diagnosticável, é impossível considerá-lo como uma
manifestação sintomática que deva ser levada em conta. Adiante ele completa o seu ponto
de vista cientificista: “eu acredito que as pessoas se confundem muitas vezes. Por quê?
Pomba branca é uma planta medicinal, ela é medicinal, ela é provada pela ciência,
cientificamente, a gente usa.”
Bevenuto quer assinalar também que o uso de uma planta medicinal, a pomba
branca, deve-se à comprovação química dos seus componentes, e não ao fato de pertencer
ao patrimônio de saberes tradicionais dos quilombolas, construídos por uma lógica fundada
na experiência empírica dos seus antepassados. Para ele, o mais importante é a
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
210

comprovação de propriedades químicas feitas pela ciência, e não o valor cultural atribuído
pelas experiências ancestrais.

Bevenuto Batista Lima

Por não reconhecer o uso das plantas medicinais como um produto do conhecimento
local, Bevenuto demonstra resistência em validar as crenças, como também considerá-las
parte do patrimônio cultural do seu povo. A eficácia e o uso dela dependeriam, antes de
tudo, da chancela do conhecimento científico do Ocidente.
A argumentação de Bevenuto para desqualificar os referentes culturais do quilombo é
constituída de três elementos que se integram. Um é moral, ao associar o discurso da
feitiçaria exclusivamente a seu componente de maldade. O outro é técnico, ao assegurar ser
o discurso da feitiçaria inócuo e que não funciona, porque ele está fundado em suposições
ou crenças impossíveis de se comprovar objetivamente. Finalmente, e por não dispor de
provas que a validem do ponto de vista da ciência, o discurso da feitiçaria é uma ilusão.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
211

Walter Mignolo cita um texto ilustrativo de Darcy Ribeiro que pode ser útil para se
entender essa concepção de Bevenuto:

“Os colonizados, privados de sua riqueza e do fruto de seu trabalho sob a dominação colonial,
sofreram, ademais, a degradação de assumir como sua a imagem que era um simples reflexo da
cosmovisão européia...”374

Mas, o pensamento de Bevenuto não consegue esconder o paradoxo em sua


presunção de racionalidade – razão pela qual rejeita os saberes tradicionais, incorporados
pela maioria dos quilombolas de Rio das Rãs –, quando o processo se refere ao sistema de
cura em sua religião.
Ao descrever como se processou a cura de um filho que não andava, ele não teria
seguido os mesmos requisitos de racionalidade que exige para o discurso da feitiçaria. E
aqui se pode observar também que os fundamentos em que se baseia essa cura são análogos
aos que, na essência, ele tenta condenar:

“É, meu filho Esaú ele não caminhava. Ele tentava andar e no mesmo tempo caía. Aí nós oramos a
Deus e pedimos a Deus que ele entrasse em providência e aí a cura foi instantânea. Ele já levantou e
começou a andar mais de trezentos metros. Uma criança que não andava. A partir do momento que ele
começou a andar ele andou mais de trezentos metros. Trezentos metros pra ir e trezentos metros pra
voltar.”

Igualmente intrigante no imaginário dos evangélicos de Rio das Rãs é a recusa em se


identificar ou praticar modalidades culturais não religiosas, a exemplo da capoeira, do
samba de roda ou de recentes celebrações públicas para reforçar a nova identidade
quilombola.
Quando os quilombolas de Rio das Rãs recebiam convidados, era de praxe escolher
pessoas do quilombo para entoar cânticos da religiosidade católica popular. Mais
recentemente, após o processo de afirmação étnica quilombola, os cânticos católicos foram
substituídos pelas cantigas alusivas a “Zumbi” e à “força dos negros”. Em uma dessas ,
realizada em 2007, após a jovem liderança Eva Pereira Batista cantar a música de sua
autoria, Nação Zumbi, uma seguidora da Igreja Deus é Amor – ao que parece para mostrar

374
RIBEIRO, Darcy. Las Américas y la civilizacion. Processo de fomación y causas del desarrolo desigual de
los pueblos. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1968, Apud MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projetos
Globais – colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p.
46.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
212

os seus referentes culturais distintos – não deixou por menos e, logo a seguir, cantou, de
maneira vibrante, uma reza em louvor a Jesus Cristo. Esta é a letra da canção de Eva
Batista:

Raiz de Zumbi
Geração
Geração de Zumbi
Descendente de índio africano e nagô
De nagô, de nagô
Lutamos por uma nação igual
Queremos paz e amor nacional
Nós negro tem orgulho de ser
Geração de Zumbi
Lutamos pra nos defender
Nós negros somos uma nação igual
Por isso lutamos pela paz nacional
Gera
Geração de Zumbi
Olhe o gera
Geração de Zumbi
Eu sou filho de índio
Neto de nagô
Africano eu sou.

A iniciativa da senhora evangélica em contrapor o seu cântico religioso cristão a essa


canção laica, intencionada a fortalecer a identidade quilombola, além de ter a evidente
intenção de distinguir os referentes culturais dos evangélicos e dos demais sujeitos
quilombolas, parece querer se contrapor, também, aos discursos étnicos que predominam
depois que Rio das Rãs foi oficializado como quilombo, após as suas terras serem tituladas.
Os evangélicos, ao que parece, consideram a simbologia evocada na referida cantiga
de Eva Batista – como as demais expressões negras tradicionais do quilombo – do mesmo
matiz cultural da feitiçaria. Sendo assim, elas conformariam uma visão de mundo,
desprovida de sentido, vista como “crendice” e “superstição”.
Bevenuto Lima, quando perguntado por que os evangélicos não participam das
manifestações culturais do quilombo, a exemplo da capoeira, respondeu: “Porque nós
éramos de lá...” Para dona Joselita R. Rodrigues de Souza, evangélica da Igreja Deus é
Amor, os pastores de sua igreja justificam da seguinte maneira: “Pra eles da hora que a
pessoa aceitou Jesus ali na igreja, eles num quer que a gente participa desse tipo de... dessa
cultura não.”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
213

A mentalidade evangélica, que vincula crenças religiosas com pertencimento cultural,


com a finalidade de negar tradições culturais africanas ou afro-brasileiras consideradas
nocivas por essa ortodoxia cristã, é ainda mais explícita na concepção do pastor negro
Rubenildo Nascimento, da igreja Pentecostal Deus é Amor, de Bom Jesus da Lapa:

“Olha, na verdade, as coisas não batem muito bem. Eu acho porque você pode observar que a capoeira,
por exemplo, é uma dança – a gente sabe disso – que vem mesmo lá da população negra e que a gente
pode ver que é mais pro lado, mais voltada pro lado do espiritismo, sei lá, eu particularmente acho
assim e é uma coisa que não bate muito bem com os princípios bíblicos.”

Em alguns países africanos, igrejas evangélicas classificam como “tradições


africanas” as mesmas manifestações recusadas pela Igreja Deus é Amor e a Assembléia de
Deus, em Rio das Rãs. Em Moçambique, por exemplo, os evangélicos, mais do que recusar
as chamadas “tradições” ou considerá-las “crendices”, interpretam-nas como a razão do
“atraso” e da “inferioridade” ontológica dos africanos: “Deus criou negros e brancos
separadamente, condenando os primeiros a uma vida assolada pela ambição e inveja,
manifestas e operacionalizadas através do feitiço e da ação de ‘espíritos revoltados’”375
De acordo com esta ideologia racista, pregada pelas seitas evangélicas, a essência da
“inferioridade” africana resultaria do seguinte: “Deus tirou a razão e a inteligência dos
africanos, mandando-as para a Europa e os brancos, pois o Jardim de Éden estava de fato na
África.”376 Esses evangélicos, ao que dá a entender, consideram as “tradições ancestrais”
um obstáculo à implantação de valores fincados na representação de “prosperidade” e do
que esteja associado aos conhecimentos científicos.
Os argumentos dos evangélicos de Rio das Rãs, neste sentido, seriam similares aos
dos pastores africanos de Moçambique que abraçaram as igrejas cristãs. Para Bevenuto
Batista Lima, de Rio das Rãs: “O primeiro socorro é Deus, segundo a medicina [...] Hoje
vivemos no mundo da ciência, não é?”
A recusa de Bevenuto Lima em validar conhecimentos dos seus antepassados, da
mesma forma que fazem os pastores e fiéis africanos, é que eles pretendem deixar “claro
que a conversão a uma igreja protestante, de qualquer matriz, implica uma radical

375
FRY, Peter. O Espírito Santo contra o Feiticeiro e os espíritos revoltados: “civilização” e “tradição” em
Moçambique. Revista MANA, 6 (2), p. 65-95, 2000, p. 65
376
Idem, p. 69
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
214

reorientação da vida. O fiel é obrigado, primeiro, a rejeitar a ‘tradição’, ou seja, cerimônias


para antepassados e visitar os adivinhos.”377
A nova ideologia trazida pelo discurso evangélico, em Rio das Rãs como também
pelos pastores moçambicanos mencionadas por Fry, associa crenças religiosas com valores
culturais que eles consideram similares por estarem supostamente associados a uma
maneira particular de conceber o mundo. Daí a decisão de se distanciar de tais práticas.
A pretensão do discurso evangélico, em Rio das Rãs assim como em Moçambique, é,
portanto, a de rebaixar as expressões tradicionais da cultura negra ao status de “crendices”
e, em seu lugar, invocar a “racionalidade” supostamente originada de princípios bíblicos.
Com essa nova perspectiva, deixam subtendido ser a escolha religiosa evangélica
comprometida com uma visão de mundo inconciliável com valores de origem africana, da
qual fazem parte, inclusive, as crenças na feitiçaria, ainda que eles, paradoxalmente,
acreditem em sua eficácia simbólica.

A feitiçaria e os adeptos dos Centros de Jurema

Os frequentadores dos Centros de Jurema ou Mesa Branca, em sua maioria são


católicos, inclusive os mais conhecidos curadores e líderes religiosos dos quatro Centros
em funcionamento na comunidade de Rio das Rãs: o senhor Leonardo José de Souza (66
anos), dona Maria do Carmo Rodrigues da Silva (70 anos), Carlos Costa de Oliveira (36
anos) e Osvaldo Arcanjo de Oliveira (57 anos).
A única e modesta capela católica do quilombo somente foi concluída há cerca de três
378
anos.
A exemplo dos católicos de outras partes do Brasil, os quilombolas não frequentam
com regularidade as missas, até por serem raras em Rio das Rãs, e nem todos os que se
dizem católicos cumprem as elementares obrigações de confessar ou comungar. A idéia de
catolicismo está mais próxima das práticas muito comuns entre os camponeses brasileiros,
de cultuar santos em suas respectivas datas festivas. Em Rio das Rãs, São João, São Pedro e
até o Divino Espírito Santo são os mais celebrados. Como em outras comunidades rurais,

377
Idem, p. 81.
378
Esta capela está situada na localidade da Brasileira, onde são realizadas eventualmente as poucas missas
celebradas na comunidade.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
215

os festejos alternam o cumprimento de promessas com celebrações profanas, em que não


falta bebida e muito samba de roda.
A concepção de feitiçaria na visão dos católicos e adeptos dos Centros de Jurema é
baseada na seguinte idéia: é um ato egoísta e abominável, e seus efeitos devem ser anulados
por uma questão de sobrevivência física ou mental. A existência da feitiçaria, para esses
quilombolas, independe da vontade das pessoas. A feitiçaria existe no mundo porque
existem pessoas portadoras de poderes especiais que são acionados, sobretudo, para fazer o
mal. Esses poderes muitas vezes são acionados contra a vontade ou o conhecimento dos
seus possuidores. Neste caso, para o indivíduo se tornar feiticeiro será preciso potencializar
e desenvolver o dom, somente assim o conhecimento da feitiçaria será passível de ser
operado com a finalidade pretendida por seu portador. De acordo com a filosofia dos
quilombolas, a capacidade de ser feiticeiro tanto pode ser inata a certos indivíduos como
também pode ser transmitida por ensinamento, invariavelmente, entre indivíduos da mesma
parentela.
Conheci no quilombo um indivíduo visto como feiticeiro que, em virtude de sua
idade avançada, estaria querendo transmitir os seus conhecimentos para um neto, porém
este não demonstrava muita boa vontade em aprender, de acordo com a opinião da mãe do
rapaz. Entrevistei esse suposto feiticeiro e ele descreveu algumas receitas mortais de
feitiçaria. Entretanto, não informou se era possível para qualquer pessoa executar as
referidas receitas ou somente aquelas especialmente iniciadas para tal fim.
Existe uma modalidade de feitiço em Rio das Rãs que seria transmitido apenas por
uma pessoa portadora de poderosa energia emitida através do olhar ou de qualquer contato
que estabeleça com uma planta, um animal ou uma pessoa, sobretudo, a criança recém
nascida que estivesse com as defesas espirituais “abertas”, isto é, desprotegidas.
Desse modo, por ser a feitiçaria um fenômeno da cultura quilombola desde tempos
imemoriais, não restaria alternativa à maioria católica e frequentadora dos centros de
Jurema senão reconhecer a sua existência; já que não se pode acabar com ela, é preciso
saber conviver com essa realidade inelutável.
Os que forem atingidos pela feitiçaria devem buscar em outros poderes mágicos – as
olhadas, as rezas, os benzimentos, os remédios do mato, os banhos e passes dos encantados
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
216

– a indicação de procedimentos para anular as energias negativas enviadas para provocar o


mal. Mas, o mais recomendável diante da feitiçaria é a prevenção.

Capela Católica, Brasileira.

Para se proteger, os quilombolas procuram conhecer a linguagem da feitiçaria, qual é


a sua lógica de funcionamento e as medidas e atitudes propriamente preventivas, a exemplo
de selecionar rigorosamente onde e de quem eles aceitam beber água, comer alguma coisa
oferecida e, além disso, dispor sempre de um amuleto em volta do pescoço ou uma planta
protetora na frente da residência.
Em linhas gerais, é essa a filosofia dos católicos e dos fiéis dos centros de Jurema, os
integrantes mais destacados – porque assumem explicitamente a crença –, do universo da
feitiçaria.
Estou chamando de universo da feitiçaria um campo de relações sociais em que os
sujeitos agem com diferentes interesses e competências. A premissa fundamental dos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
217

integrantes desse universo é, antes de tudo, acreditar que a feitiçaria é uma ação capaz de
provocar distúrbios físicos ou mentais nos indivíduos ou alterar o desenvolvimento normal
das plantas e animais. Essas crenças foram transmitidas de geração a geração e, mesmo que
haja diferentes métodos para anular a feitiçaria, a exemplo dos que são adotados pelos
evangélicos, todos são unânimes em reconhecer a feitiçaria como capaz, no limite, de matar
um indivíduo.
O universo da feitiçaria é também um campo de produção de conhecimentos, tanto
para os que fazem feitiços como para os que se defendem das ações dos feiticeiros. Isso
resulta na acumulação de capitais simbólicos, sob a forma de saberes, práticas e
experiências que, por sua vez, possibilitam ou engendram a constituição de poderes, no
sentido político do termo. Os possuidores desses conhecimentos são reconhecidos,
respeitados e, muitas vezes, temidos pelos poderes que possuem para fazer ou desfazer a
feitiçaria.
A idéia de poder relacionada à feitiçaria é aquela que se refere “à ‘potência ou
capacidade que é tida como inerente em um indivíduo’...”379 Trata-se de uma concepção
que tem o mesmo sentido das “interpretações africanistas” de que o “acesso ao poder
político é tanto o acesso à força das instituições quanto à força dos símbolos e das
imagens.” 380
O universo da feitiçaria comporta sujeitos com diferentes competências. Mas, a
maioria se inclui nesse campo com poucas competências ou capitais simbólicos para
participar do jogo. São os quilombolas, de um modo geral, que conhecem alguns
rudimentos da prevenção contra a feitiçaria, através do cultivo de plantas na frente das
residências e o uso de amuletos no bolso, no pescoço ou em cercas e currais onde se
encontram as suas roças e animais de criação. Esses indivíduos, dotados de poucos
conhecimentos, quando são atingidos pela feitiçaria, justamente por não possuírem recursos
de defesa mais sofisticados, são obrigados a procurar os especialistas, que são os curadores,
que podem consultar os oráculos e recomendar o que fazer em cada caso específico.

379
WOLF, Eric R. Antropologia e Poder, org. Bela Feldman- Bianco e Gustavo Lins Ribeiro, Brasília:
UNB/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Editora UNICAMPI, 2003, p. 45
380
BALANDIER, Georges. O Contorno, p. 92.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
218

Desse modo, a feitiçaria será doravante tratada como conhecimento e poder, e as


relações sociais em seu entorno farão parte do que estou chamando de universo da
feitiçaria.
Feitiçaria, bruxaria, macumba, coisa feita, trabalho sujo são alguns dos muitos
termos empregados no quilombo de Rio das Rãs, e em outras comunidades negras
quilombolas da região, para se referir aos poderes especiais que certos indivíduos possuem,
tenham sido desenvolvidos por aprendizado ou como algo inato aos seus portadores.
De acordo com as crenças existentes no quilombo, os indivíduos portadores desses
poderes são capazes de enviar, em direção a outrem, algum ser vivo (como uma serpente),
um objeto físico inanimado (uma pedra, um pano), ou poderosas energias capazes de alterar
a condição física e psicológica da pessoa que se pretenda atingir.

Amuleto em um curral em Rio das Rãs


Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
219

O feitiço pode afetar, ainda, a natureza fisiológica de uma planta ou de um animal. E


até mesmo matá-los.
A dona Jandira Souza Ramos (42 anos), da localidade do Retiro, por exemplo, me
contou que o seu cachorro tinha todos os sintomas de enfeitiçamento: começou a ficar
triste, não reagia aos desconhecidos que se aproximassem de sua casa, ficava o tempo todo
deitado e quase desfalecido. No momento em que estive com essa senhora, ela tentava
reanimar o cachorro e não conseguia. Ela desconfiava que o enfeitiçamento tivesse sido
provocado por um vizinho com quem ela se desentendera.
A feitiçaria, para a maioria dos quilombolas de Rio das Rãs, é um fenômeno,
portanto, intrínseco aos indivíduos portadores de tais poderes, não é como defendem os
evangélicos, uma entidade sobrenatural incorporada aos indivíduos, uma segunda força
metafísica vinda do além-mundo. Os poderes podem ser originados de faculdades
orgânicas, isto é, pessoas que já nasceram com o dom de serem feiticeiros, como também
podem ser adquiridos através do aprendizado.
É dessa maneira que os quilombolas concebem os feiticeiros. Eles seriam sujeitos de
carne e osso com o poder de manipular forças e energias, as quais poderão fazer o bem ou
destruir os seus alvos.
O mau presságio ou os sintomas de que uma pessoa ou animal pode estar enfeitiçado
aparece de diferentes formas, de acordo com o relato dos mais antigos curadores do
quilombo na atualidade:

“Você deita de noite, sonha correno, sonha subino num pé de pau, sonha caíno num buraco.
Tudo aquilo é armado de má-vontade [feitiço], que quer destruir você. Isso é má-vontade. E
os animá, pega o bichin inocente, o bichin ta caminhano aí, pega no rabo daquele bichin e o
bichin pega a mancar.” (Maria do Carmo Silva, líder de um dos Centros de Jurema
localizado na Brasileira)

“Agora quando é coisa feita, eu digo assim: ‘olha, vocês vê [alguém] caminhando em suas
casa de noite calçando chinelo?’ Vejo. ‘E vocês vê dar três pancadas no meio da cumieira
assim ta, ta, ta?’ Eu vou falano e conferino. Eles diz, vejo. Aí volto digo assim: ‘vocês
costuma chamar três vez lá na porta da varanda?’ Eu digo vi. Eu digo: ‘isso ai tem uma
mudança, que a casa quando ela tá sadia, [não] inxiste [existe] essas coisa não, quando tá
sadia com Deus não inxiste essas coisa. Tem tentação [isto é, feitiço].’” (Leonardo J. de
Souza, foto abaixo, líder de um Centro de Jurema na Brasileira)

Muitas vezes os portadores do dom da feitiçaria nem fazem idéia do que são capazes
e, por isso mesmo, não se dão conta de estarem veiculando energias negativas. É o caso de
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
220

indivíduos que, ao lançar o olhar para uma planta ou um bebê, podem com esse gesto matar
a planta ou fazer adoecer o recém nascido, conforme pode ser atestado por estes
depoimentos:
“Eu mermo vez uma filha minha, a muié falou que a minina era feia. Falou que a minina era feia, era
feia mermo e a minina duençeu na hora, com uma febre e desinteria. Aí uma [outra] fia que eu tinha
rezou ela, orou por ela, e eu já vi passar na hora.” (Auto Osório de Souza, 88 anos)

“Agora o quebranto, o quebranto a pessoa põe não é por maldade. A pessoa põe o quebranto numa
criança por ela achar bunita a criança, ele põe quebranto não é por maldade que ele vai olhar pra
criança que ele bota quebranto. Nego começa a brincar, a criança as vez ta... sei lá, pode tá cum o
corpo aberto e aquilo ali transpassa e transpassano a criança amulece, né? Que o amor dele foi muito a
criança... o organismo dela, sei lá, o Anjo da Guarda num dá pra...” (Elíndia Maria Cardoso, 44 anos)
“Tem pessoa que ele vela [põe] o olho no passarinho, o passarinho cai.” (Edivaldo da Mata Silva, 53
anos)

Aconteceu de “pessoas passar na roça assim de outras pessoas. Um feijão muito bom, muito bunito, é
como se o caso, e aquilo ali virá em nada.” (Francisco Ferreira de Magalhães, 88 anos)

Maria do Carmo Rodrigues da Silva, líder espiritual


Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
221

Leonardo José de Oliveira, líder espiritual

Quando os portadores dessas energias negativas não têm consciência do que suas
forças sejam capazes, são alertadas, muitas vezes, por alguém mais próximo, ou eles
mesmos desconfiam quando os pais não deixam os filhos recém nascidos se aproximarem
desse sujeito. Neste caso, ainda não podem ser considerados feiticeiros, já que possuem
apenas o potencial e não agem de maneira deliberada para praticar o mal. Além disso, ser
feiticeiro requer que o sujeito aprenda técnicas de manipulação de vísceras de animais,
rezas de invocação e fórmulas que permitam enviar objetos e seres vivos para determinados
indivíduos e, assim, colocar em operação a feitiçaria.
De acordo com as crenças dos quilombolas de Rio das Rãs, o êxito da ação dos feiticeiros
depende, também, do estado em que se encontram as suas vítimas. Uma pessoa tem mais
chance de ser atingido pela feitiçaria se ela está com o “corpo aberto”; isso significa que o
indivíduo enfeitiçado não foi suficientemente previdente para rechaçar um ataque.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
222

Carlos Costa de Oliveira, líder espiritual

Estar com o corpo aberto representaria um estado de vulnerabilidade capaz de ser


atingido por “trabalho sujo”. É por esta razão que a maior parte dos quilombolas de Rio das
Rãs adota algum mecanismo de proteção contra a ação dos feiticeiros. É uma regra geral
usar plantas, amuletos ou saber alguma reza. Em outros casos, o caminho mais indicado é
procurar ajuda de um curador que possa identificar a feitiçaria ou diagnosticar como algo
natural que esteja afetando a saúde daquele indivíduo, do seu animal ou de sua plantação.
As suspeitas de feitiçaria tornam os quilombolas de Rio das Rãs desconfiados e
mesmo sugestionados, ao supor que tudo que aconteça em sua vida pode estar relacionado à
feitiçaria. É comum se ouvir dos curadores que essa “invocação”, isto é, imaginar que
qualquer sintoma de doença seja indício de feitiçaria, termina facilitando o trabalho e o
poder dos feiticeiros, na medida em que as pessoas passam a ficar permanentemente
sobressaltadas. A idéia difundida pelos evangélicos de que o feiticeiro é um representante
do diabo na terra ou veiculador de suas obras, portanto, não corresponde aos conceitos
nativos sobre a feitiçaria no quilombo de em Rio das Rãs.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
223

A confidência que me foi feita pela mãe de um rapaz, de uma maneira absolutamente
natural, de que seu avô desejava iniciá-lo nas artes da feitiçaria, embora o rapaz estivesse
reticente em assumir tal responsabilidade, confirma, pelo menos neste caso, que é no
interior da mesma parentela o caminho mais comum para a reprodução dos feiticeiros, e
não através de pactos com o diabo.

Auto Osório de Souza

A crença na feitiçaria é generalizada em Rio das Rãs e em um território negro de


grande extensão nas duas margens do Médio São Francisco. A incidência desse fenômeno
na região explica também a intensa procura pelos serviços dos curadores. São eles os
especialistas com maior conhecimento e capacidade técnica para enfrentar a feitiçaria
através, primeiro, das “olhadas”381, que é o mecanismo adotado para identificar a feitiçaria;

381
Os mecanismos de consulta adotados pelos curadores de Rio das Rãs são variados, inclui-se o uso de bola
de cristal, copos com água e cartas. É comum as consultas serem chamadas de “olhada”, no sentido de ver o
que se passa na vida do consulente.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
224

segundo, sendo constatado o enfeitiçamento, resta tratar a vítima com limpezas, banhos e
uma série de outros procedimentos.

Elíndia Maria Cardoso

Os serviços dos curadores para os procedimentos de consultas e indicações de


tratamentos são pagos, embora alguns curadores afirmem serem frequentes os pedidos de
caridade para a realização dos serviços. Alguns dizem também que fazer caridade teria uma
imputação ética, assim como revelaria desapego a bens materiais ao se fazer um gesto de
solidariedade a alguém que precisa de serviços que somente eles seriam capazes de fazer.
Mas, como a maior parte dos curadores depende, sobretudo, do seu ofício, deixar de cobrar
pelos serviços é uma exceção.
Os Centros de Jurema não são procurados apenas para livrar as pessoas da feitiçaria.
Os rituais religiosos regulares e semanais atraem adeptos por “sentirem-se bem”, para
receberem “passes” das divindades e pelas razões de fé, comuns a todas as religiões. Os
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
225

curadores são procurados, também, antes de uma decisão importante, como uma viagem a
São Paulo ou a compra de um gado, mas, nesses casos, o interessado em fazer a consulta
está desejando um aconselhamento espiritual sobre como agir com segurança numa
determinada situação. Portanto, a procura pelo Centro, neste caso, não está relacionada à
desconfiança de que “algum mal” esteja a caminho.
A motivação principal para se procurar os serviços dos Centros, contudo, parece estar
mesmo associado à ocorrência de algum infortúnio ou à suspeita mais evidente de que
possa estar sendo vítima de feitiçaria. Os depoimentos são categóricos quanto à necessidade
de procurar ajuda de um especialista, quando suspeitas indicam que a feitiçaria esteja em
curso contra o indivíduo ou a sua família:

“Mas muita gente acredita nele, mas eu num me cabulo não. Porque eu precisava ver e eu nunca vi,
nunca vi ninguém fazeno [feitiço]. Agora eu acho que acredito porque meu marido bebia, disse que
era isso, e hoje tá com catorze ano que ele largou e ele largou com tratamento.” (Elíndia Maria
Cardoso, 44 anos, da localidade de Capão do Cedro )

“Uma nuvia minha morreu no curral aqui. E nesse dia mermo que a nuvia morreu, morreu dois bizerro
lá na roça dele [o irmão] e falou que tudo indicaro que foi bruxaria que fizero. Agora, quem [foi] e
quem não [foi], ninguém vai [saber]...” (Renério de Joaquim Vilaça, da Brasileira)382

“Era uma pessoa amiga dos meus pais, era filha daqui de Parateca e passou a morar em São Paulo,
segundo a dona do Centro, ela fez isso [enviou um feitiço] tudo porque ela queria que o meu marido
casasse com a filha dela. Como [meu marido] não quis casar com a filha dela e casou comigo, assim
que eu tive o bebê ela fez isso. Que era pra mim morrer, ele ficar viúvo e casar com a filha dela”
(Adenir Ferreira dos Santos, 39 anos)383

Esses acontecimentos relacionados à feitiçaria impactam psicologicamente a vida


cotidiana das pessoas, mas não chegam a se transformar em pesadelos neuróticos. Em Rio
das Rãs, bem como nos quilombos da região, todos têm consciência – inclusive os
evangélicos, como o senhor Renério Vilaça – de que algum dia podem ser vítimas da
feitiçaria. Compreendem também ser a vida regida por uma dialética, na qual se incluem
atos de maldades e gestos de bondades. Os feiticeiros, de fato, optam pelo mal.
Essa filosofia está expressa nas palavras sábias do senhor Francisco Ferreira
Magalhães, conhecido poeta Chico de Helena: “Por que de tudo nesse mundo inxiste

382
O Sr. Renério Vilaça é evangélico, e quem procurou o Centro para fazer o diagnóstico foi o seu irmão.
383
Dona Adenir Ferreira dos Santos é da comunidade negra de Parateca, no município de Malhada e vizinha à
Rio das Rãs.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
226

[existe]. Não tem nada nesse mundo que num inxiste, né? Agora a [coisa] boa, a gente quer
pegar, a boa. Quem não quer se liga [à] ruim.”
Por ter convicção de que a maldade é um dado da realidade cultural de Rio das Rãs,
os quilombolas encaram a feitiçaria como um fenômeno com o qual têm que lidar
permanentemente. É, portanto, um elemento da estrutura social do quilombo. É neste
contexto que os curadores se instituem como guardiões dos quilombolas, pois são eles que
possuem os conhecimentos e a capacidade técnica para lidar com o universo complexo da
feitiçaria. São eles também que dão esperanças aos desafortunados atingidos por algum
feitiço, ou indicam cuidados a serem seguidos para evitar as constantes ameaças que
rondam a todos que acreditam, embora não aceitem, na inevitabilidade da lógica da
feitiçaria.

As acusações de feitiçaria em Rio das Rãs

A feitiçaria já foi alvo na Europa de perseguição implacável e feroz, sobretudo, na


Idade Média. Suspeitos e também inocentes arderam nas fogueiras da Inquisição e o
discurso da feitiçaria se espalhou pelo mundo como uma expressão de maldade, crueldade e
de gente amaldiçoada. Embora tenha se notabilizado no mundo inteiro por essa fama
medonha, o discurso da feitiçaria em todas as partes do mundo continua se renovando e
resistindo ao tempo.
Onde esse fenômeno está presente, se caracteriza por seu caráter antissocial. Entre os
povos, do alto Xingu, a feitiçaria é vista como “assassinato”. “O feiticeiro wauja é um
artífice de artefatos letais.”384 Na África moderna, a feitiçaria é igualmente condenada: “em
todas as partes da África, as forças ocultas são vistas como um mal primordial.”385
Condenada universalmente pelo seu caráter antissocial, a feitiçaria possui, todavia,
outras dimensões surpreendentes, além da sua marca tradicional de maldade e do estigma
que carrega de ser causadora de infortúnios.

384
BARCELOS NETO, Aristóteles. De divinações xamânicas e acusações de feitiçaria: imagens Wauja da
agência letal. Revista MANA, 12 (2), 2006, p. 285-313, p. 301.
385
GESCHIERE, Peter. Feitiçaria e Modernidade nos Camarões: alguns pensamentos sobre uma estranha
cumplicidade. Revista Afro-Ásia, UFBA, nº 34, p. 33.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
227

Há comprovação de que a feitiçaria, em alguns contextos, é produtora de ações


sedutoras, altruístas e mesmo magnânimas. “Na África, tanto pode-se associar os bruxos à
imagem de uma pessoa suja e descuidada como também à imagem de uma pessoa atraente
e sedutora.”386 Segundo Gabriela Sampaio, uma das principais acusações contra o famoso
feiticeiro Juca Rosa, que se notabilizou no Rio de Janeiro na segunda metade do século
XIX, era justamente por sua extraordinária capacidade de seduzir as mulheres: mulheres
negras e brancas, pobres e ricas, solteiras e casadas.387

Francisco Ferreira Magalhães

Em Rio das Rãs, o discurso da feitiçaria, além do caráter verificado em outras


culturas, está também associado a atos positivos de cura de pessoas, a exemplo das
experiências relatadas envolvendo dona Benvinda Nunes, nas quais ela fora obrigada a

386
MAIR, Lucy. La brujeria en los pueblos primitivos actuales. p. 44.
387
SAMPAIO, Tenebrosos mistérios, 2003.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
228

procurar um conhecido feiticeiro para salvar seu filho que se esvaía em sangue. Evans-
Pritchard assinala que, entre os Azande, malgrado as objeções feitas aos feiticeiros, eles
consideram a feitiçaria parte de sua constituição social: “Nada há de extraordinário num
bruxo – você mesmo pode ser um, e com certeza muitos dos seus vizinhos mais próximos o
são. Tampouco existe algo de aterrorizante na bruxaria.”388
A feitiçaria é encarada em Rio das Rãs de modo ambíguo: é um mal que deve ser
combatido, porém, sendo uma instituição constituinte da cultura do quilombo, desde a
época dos primeiros fundadores, resta aos seus descendentes saber lidar com ela e entender
as nuanças que caracterizam sua ação.
No processo de acusação de feitiçaria, não é comum em Rio das Rãs os indivíduos
declinarem publicamente nomes de conhecidos e notórios feiticeiros. Alguns deles se
tornaram, ao longo de suas vidas, cidadãos notáveis pelo respeito adquirido no quilombo;
outros, porém, jamais tiveram as suas identidades conhecidas, quer pela ação discreta ou
por ter passado despercebido pelos quilombolas. Os Azande costumavam se referir aos
feiticeiros, segundo Pritchard, como um sujeito comum: “você mesmo pode ser um...” Em
Rio das Rãs, da mesma forma natural e despreocupada, presenciei uma pessoa se referindo
ao um feiticeiro: “aquele mesmo é um...”
De um modo geral, os feiticeiros têm uma vida normal em Rio das Rãs. Para
sobreviver, os que ainda não se encontram aposentados pela Previdência Social, trabalham
pesado na roça, campeiam e se expõem às mordidas das piranhas pescando nas lagoas, ou,
quando são mulheres, cuidam dos maridos e criam seus filhos. São homens e mulheres
aparentemente comuns, que se casam e formam famílias, participam da vida social da
comunidade e podem, eventualmente, se destacar como lideranças políticas.
Segundo me foi confidenciado, algumas das lideranças mais notáveis da história de
Rio das Rãs são considerados feiticeiros, ainda que reservadamente. Uma dessas lideranças
conheci de perto, e posso atestar a enorme importância que teve na luta contra o fazendeiro
que se apossara das terras imemoriais do quilombo. Ele era um líder altivo, orgulhoso e
imponente. Certa vez perguntei por que não se relacionava e nem procurava o mais famoso
curador de Rio das Rãs, o já falecido Andrelino Xavier; a sua resposta foi a de que este

388
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande, p. 58.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
229

curador nada tinha para ensinar-lhe, dando a entender que ele menosprezava os
conhecimentos relacionados aos poderes espirituais do citado curador.
O perfil dessa figura é exemplar, no sentido de demonstrar não haver
incompatibilidade entre a feitiçaria e o poder, da mesma maneira que filosofam os Wauja:
“Feiticeiros não são para se matar, são para se ter medo, diz a reflexão de um sábio
wauja.”389
Em Rio das Rãs não se conversa publicamente sobre os feiticeiros e tampouco sobre
as ocorrências de feitiçaria afetando a vida das pessoas. Quando se trata de suspeitas
concretas nas quais o indivíduo pode estar sendo vítima, o assunto é tratado privadamente
com uma pessoa ou com o curador de confiança.
Mas, nos momentos de descontração e brincadeira, a palavra feitiçaria pode ser
mencionada de uma forma absolutamente inesperada, quando os homens bebem nos
botecos no fim de semana, ou quando homens e mulheres encontram-se e têm uma
oportunidade de galhofar, ao viajarem juntos para Bom Jesus da Lapa nos velhos ônibus
que fazem a linha, ou mesmo numa festa comunitária. Nestes casos, a palavra feitiçaria é
usada não para se denunciar efetivamente alguém. São brincadeiras onde se fala que os
conhecidos curadores do quilombo estariam “melhorando de vida”, por estarem recebendo
uma quantidade grande de serviços espirituais; em outros momentos, falam que vão fazer
feitiço para conseguir conquistar a irmã do amigo, e assim por diante. Tudo isso em meio a
muitas gargalhadas.
Na cerimônia católica de casamento de Carlos Oliveira, o mais jovem curador do
quilombo, por exemplo, alguns “caçoavam” dele por ter supostamente uma “profissão de
futuro”. Diziam ser a atividade de curador uma “arte” lucrativa e, além disso, não precisaria
enfrentar a pesada labuta da roça.
Os quilombolas se divertem contando casos, fazendo piadas de duplo sentido,
relatando gafes cometidas por um ou outro. Em uma das viagens para Bom Jesus da Lapa e,
também, enquanto bebia em uma roda de conhecidos num fim de semana, as referências
aos feiticeiros não tinham a finalidade de denunciar, tampouco lamentar a ocorrência de
feitiçaria, e sim rir. Do tipo: “vem feiticeiro!” Tom jocoso, querendo dizer com isso ter o

389
BARCELOS NETO, Aristóteles. De divinações xamânicas e acusações de feitiçaria: imagens Wauja da
agência letal, p. 297.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
230

sujeito objeto das brincadeiras supostos poderes mágicos, ou por amedrontar alguém por
saber manipular coisas misteriosas.

Casamento católico de Carlos Costa Oliveira

Em outra ocasião, a brincadeira envolvia um marido supostamente traído por ser


incapaz de satisfazer os apetites sexuais de sua companheira. Depois desses casos cômicos,
o riso corre solto. O teor dessas brincadeiras parece refletir a integração do discurso da
feitiçaria nas relações sociais da comunidade.
Fora desses momentos de descontração, os quilombolas se referem à feitiçaria de
maneira preocupante, sobretudo quando lamentam a ocorrência de infortúnios e
acontecimentos negativos na vida de um parente, saúde de um animal ou a roça que não
produziu conforme o esperado ou mesmo foi devastada por alguma praga.
Não é costume, entretanto, quando o assunto envolve uma desconfiança fundada de
enfeitiçamento, se mencionar o nome de prováveis suspeitos. Certa feita ouvi vagos
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
231

comentários sobre as “bebedeiras” de Ricardo Oliveira390, chefe de família conhecido na


Brasileira. Esses comentários tentavam me passar a idéia de não ser aquele o seu
comportamento habitual, pois era visto, em outras épocas, como um bom pai de família.
Em outro momento, alguém me confidenciou de uma maneira mais direta: “fizeram algum
trabalho sujo contra Ricardo.”

Nessa confidência o interlocutor não estava curioso ou interessado em salientar a


autoria daquele ato, e sim destacar a condição lamentável em que se encontrava aquela
pessoa supostamente vítima da feitiçaria. Outras pessoas fizeram referência a esse mesmo
caso, mas nenhuma arrolou qualquer nome suspeito, o que não significa inexistir
curiosidade dos atingidos pela feitiçaria em descobrir a autoria; do mesmo modo, não
significa que os afetados pela feitiçaria não suspeitem de quem possivelmente poderia ter
partido aquela atitude mesquinha. Aliás, levantar hipóteses sobre a autoria de feitiçaria é até
um exercício preferido por alguns, mas isso é feito sempre muito reservadamente.
Em outras situações, como naquelas em que há uma promessa de vingança, a
identificação do feiticeiro é mais fácil. É o caso de dona Jandira Souza Ramos, mencionada
anteriormente, uma senhora da localidade do Retiro, que me contou uma história triste.
Uma vizinha de dona Jandira se deslocava em uma bicicleta quando o cachorro desta
avançou latindo em sua direção; com o susto, a mulher se desequilibrou e terminou caindo.
Quando o seu esposo chegou da roça, “prometeu” que aquele cachorro não morderia mais
ninguém. Dois dias depois o cão de dona Jandira foi ficando triste, latia e rolava no chão,
com todo jeito de estar enlouquecido, e, logo a seguir, morreria.
No momento em que contava essa história em sua casa, outro cão de dona Jandira
começou a apresentar os mesmos sintomas do anterior: o cachorro estava triste, não reagia
aos seus apelos e nem conseguia ficar de pé.
Deixei dona Jandira em seu terreiro conversando com o cão querido, desolada e
tentando reanimá-lo, conforme as fotografias na página seguinte. Mas, ela sabia que o
destino desse outro cachorro já havia sido selado pela feitiçaria.
A suspeita de enfeitiçamento em Rio das Rãs ocorre quando não há uma explicação
satisfatória para um acontecimento, notadamente aqueles relacionados com a saúde de um

390
Falecido no final de 2009 de um presumível enfarto, após ter se desentendido com um primo.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
232

indivíduo. De acordo com essa filosofia, tudo o que perturba a vida rotineira de um
indivíduo, da sua família, da comunidade ou que prejudique o desenvolvimento “normal”
de uma planta ou a saúde de um animal pode ter relação com a feitiçaria. Quando a
ocorrência de algum fenômeno é considerada não rotineira, imediatamente se desconfia de
“estar a caminho alguma coisa enviada”.

Jandira Souza Ramos

O raciocínio é empregado nas mais variadas situações: quando as pessoas adoecem e


não conseguem ser curadas pelos métodos mais tradicionais; uma família que esteja se
desorganizando pelo alcoolismo do chefe; ou mesmo um animal ou planta que seja
subitamente acometido de uma doença ou praga.
Carlos Costa de Oliveira detalha os sintomas de uma pessoa enfeitiçada que ele
tratara no seu Centro de Jurema: “ele tava deitado, deitado com um problema na barriga, a
barriga dele crescia, ele tava com a bruxaria por dentro da barriga, a barriga ficava baixa...”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
233

Em Parateca, comunidade negra quilombola do município de Malhada, o senhor


Arnaldo Mendes Ferreira, me relatou a experiência de ter sido atingido pela feitiçaria, mas,
segundo ele, por sorte restabeleceu a saúde graças ao mais famoso curador de toda a região
quilombola do Médio São Francisco, o senhor Andrelino Francisco Xavier, do Enchú, em
Rio das Rãs. Eis o seu depoimento:

“Uma doença que eu tive. Um probrema. Eu mesmo já sufri um probrema que eu fiquei um ano e
três meses doente sem condição de num fazer nada. Ai em primeiro lugar eu a agradeço a Deus,
terceiro (sic) lugar eu agradeço onde ele [Andrelino] tiver, Deus vá dar um bom descanso pra alma
dele que eu sei que ele merece.”

Jandira Souza Ramos, tentando reanimar o cachorro enfeitiçado

A despeito do temor quase generalizado de que qualquer um pode ser vítima da


feitiçaria, de um modo geral, os quilombolas não se impressionam e nem acreditam que a
ameaça se torne real no dia seguinte das suas vidas. As pessoas em Rio das Rãs, ao
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
234

contrário, são conhecidas pelo bom humor e a tranquilidade e levam a vida como se a
feitiçaria fosse algo que fizesse parte da rotina diária – como trabalhar, comer e dormir –,
querendo dizer com isso, ser a vida alternada de momentos de alegrias e satisfações, mas
também de tristezas e aborrecimentos.

Histórias de feiticeiros e de feitiçarias

Ouvi muitas histórias sobre feiticeiros famosos, sobre os pouco conhecidos e casos
exemplares de feitiçaria. A permanência dessas lembranças na memória social dos
quilombolas é uma forma, talvez, de confirmar a feitiçaria como um fato social. A narrativa
do mito seria a prova da sua existência, em sentido análogo ao que os antropólogos buscam
para comprovar as suas verdades com as evidências empíricas, com a diferença de que
nesse caso são as vozes dos sujeitos falando de si mesmos e de suas experiências vividas.
As narrativas sobre a feitiçaria evocam muitos significados, contudo, três elementos
comuns as aproximam: a crença em sua força, a veracidade dos seus efeitos e o poder da
feitiçaria.
Inicio os relatos com duas histórias que falam justamente de falsos
curadores/feiticeiros391 que ganharam dinheiro e lograram muitos quilombolas de Rio das
Rãs. Essas histórias são uma oportunidade para se refletir e mensurar a extensão e a
profundidade das crenças na feitiçaria no quilombo e em seu entorno.
Creusa de Brito Xavier (39 anos) e Lenice Cardoso (32 anos) me contaram que um
cidadão de nome Manoel, originário de Santa Maria da Vitória, município vizinho de Bom
Jesus da Lapa, apareceu subitamente no Enchú e no Capão do Cedro, pequenas localidades
a leste do quilombo de Rio das Rãs, em 2005, se dizendo curador. Manoel impressionava
pelo convencimento com que pronunciava as palavras, pela contrição com que rezava e,
especialmente, pelas certezas com que diagnosticava as pessoas supostamente enfeitiçadas.
Além de desvendar o enfeitiçamento através das olhadas, apresentava provas de objetos
físicos que representariam o enfeitiçamento, a exemplo de pulseiras, santinhos de metal,

391
No universo da feitiçaria há suspeitas, aqui no Brasil como também na África Central, da existência de
curadores que seriam também feiticeiros. O caso relatado é de uma pessoa que se dizia curador, mas
desconfiavam em Rio das Rãs que ele seja igualmente feiticeiro, isso depois das pessoas terem sido logradas.
Neste caso, a desconfiança existia pelo seu poder de encantar e de enganar as pessoas, considerado como um
dos muitos disfarces usados pelos feiticeiros.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
235

rosários, que teriam sido enterrados para atingir os seus alvos. Quando as pessoas cavavam
o chão e encontravam os tais objetos, aumentava enormemente a confiança nas consultas
realizadas.
Essas tais “provas” reforçavam, sobremaneira, o argumento poderoso e sedutor no
universo da feitiçaria: a de que o feitiço é um objeto “enviado” e que pode provocar
imensos prejuízos aos que são por ele alcançados.
Os quilombolas que pagaram pelos seus serviços do curador se deslumbravam com a
capacidade de convencimento de Manoel. Com isso, o falso curador arrecadou uma
fabulosa soma em dinheiro, além de levar porcos, bodes, galos e galinhas, com a
justificativa de que seriam utilizados nos trabalhos de anulação da feitiçaria.
Quando ele descobria que suas vítimas tinham alguma posse a escorcha era maior.
Foi assim que conseguiu receber como pagamento por seus trabalhos um carro velho
avaliado, em 2007, em mais de três mil reais. O mais impressionante é que ele conseguiu
ludibriar até mesmo o senhor Andrelino Francisco Xavier, tio de uma das depoentes, e o
mais querido e famoso curador de Rio das Rãs.
O senhor Andrelino, antes de falecer, após sofrer durante muito tempo com graves
restrições motoras provocadas por um Acidente Vascular Cerebral – AVC, ficava a maior
parte do tempo imóvel em uma cama ou em uma cadeira de balanço no quintal que dividia
a sua residência do barracão do seu Centro de Jurema.
Quando seus filhos souberam da presença desse famoso curador que aparecera em
Rio das Rãs, se dispuseram a pagar a elevada quantia de R$2.500,00 reais para fazer um
“trabalho” que recuperasse a saúde do velho debilitado. Manoel curador teria chegado à sua
residência e diagnosticara estar o velho enfeitiçado. Os objetos-feitiços (pulseiras e
colares), no momento da consulta, Manoel teria dito que estariam se deslocando do
barracão do seu Centro na direção de sua cadeira de balanço, onde ele ficava uma parte do
tempo recebendo e abençoando as pessoas que o procuravam. O diagnóstico do curador era
fatal: o senhor Andrelino morreria quando o feitiço o alcançasse.392

392
Muito antes de falecer, recebi um recado do senhor Andrelino Xavier para que eu o visitasse urgentemente.
Como na época, em 2003, ensinava na UNEB de Bom Jesus da Lapa atendi com celeridade ao seu chamado.
Ele queria que eu intermediasse uma consulta ao um terreiro de candomblé em Salvador para tentar desfazer
de um poderoso feitiço enviado por um ex-filho de santo dele que fundara, com a sua discordância, outro
centro. Como os contatos que tinha à época não podiam atender à sua solicitação com a celeridade pretendida,
não foi possível a realização da consulta em Salvador, como ele desejava.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
236

Depois que Manoel curador amealhou uma pequena fortuna dos moradores de Rio
das Rãs em dinheiro, gado, aves, moto, carro e outros objetos de valor, principalmente das
localidades de Enchú e Capão do Cedro, desapareceu misteriosamente, sem deixar rastro, e
sem que os seus consulentes nada pudessem fazer, inclusive o venerável Andrelino Xavier,
que morreria meses depois.
Os quilombolas de Rio das Rãs acreditam no poder da feitiçaria com muita
convicção, mas isso não os leva a deixar de consultar um médico quando adoecem. É
comum os curadores e os quilombolas, de um modo geral diferenciarem “coisas espirituais”
de “coisas de médicos”. A desconfiança de que possa estar em curso a feitiçaria, se dá
quando ocorre subitamente na vida das pessoas um desequilíbrio físico ou mental, sem que
haja uma explicação plausível.
A busca por evidências mais precisas, sobretudo no que se refere a ocorrências de
saúde, mostra estarem os quilombolas preocupados em buscar explicações causais para os
seus males. O mesmo não acontece com os diagnósticos médicos, quando ignoram a
possibilidade dos pacientes terem algum distúrbio provocado por fenômenos mágico-
religiosos.
Por essa razão, Montero identifica um hiato entre o diagnóstico médico e a história
apresentada pelo paciente: “o discurso religioso trabalha em continuidade com a
experiência concreta e subjetiva que o sujeito tem de sua ‘doença’, enquanto que a
Medicina produz uma ruptura entre o vivido e sua interpretação.”393
Aproveitando-se da concepção dos quilombolas de Rio das Rãs sobre a noção de
doença, um sujeito “se passando” por médico ganhou também muito dinheiro.
Esse sujeito saía de casa em casa, especialmente das pessoas mais velhas e
aposentadas, portanto com um rendimento mensal assegurado, e se apresentava como
médico. Perguntava às pessoas o que sentiam e, conforme cada caso, receitava uma
medicação que dizia ser apropriada à cura. Uma dessas pessoas a quem ele medicou, o
senhor Antonio Aparecido Soares394, foi visto no quilombo como um dos grandes
feiticeiros. Como o senhor Antonio Aparecido já dispunha, por escrito, de um diagnóstico
médico de glaucoma, foi fácil para o charlatão receitar o conhecido e antigo colírio Moura

393
MONTERO, Paula. Da doença à desordem – a magia na Umbanda. Rio de Janeiro: GRAAL, 1985, p. 98.
394
Nome fictício.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
237

Brasil. Como se sabe, embora o glaucoma possa ser tratado com sucesso em hospitais
especializados, é uma doença incurável, e o referido colírio tem uma composição química
neutra, e é normalmente recomendado para lavar os olhos de alguma sujeira. O senhor
Aparecido, evidentemente, não se curou do glaucoma, e o povo de Rio das Rãs não mais
ouviu falar desse “médico”.
Os casos de feitiçaria em Rio das Rãs são variados e, alguns deles, trágicos. Dona
Elíndia Maria Cardoso (39 anos), do Capão do Cedro, me falou de dois rapazes que
tratavam violentamente os pais – coisa muito rara na cultura de Rio das Rãs. Um deles, o
mais velho, terminou internado em um hospital psiquiátrico, depois que destruiu
praticamente todos os móveis de casa, após ter ameaçado os pais de morte. Depois de longo
período amarrado a uma corrente dentro de casa e usando calmantes, o rapaz terminou
morrendo praticamente isolado.
O segundo irmão (dos oito filhos que a sua mãe parira, seis morreram), antes
“calmo”, “pacato”, “obediente e trabalhador”, nas palavras de dona Elíndia, começou a
apresentar os mesmos sintomas de desequilíbrio mental do irmão mais velho sendo, porém,
muito mais violento com os seus pais. Nos estados de excitação, obedecia apenas aos
vizinhos mais idosos. No final do relato, para a minha surpresa, a informante me disse que
os estados psicóticos desses jovens eram o resultado da feitiçaria praticada pelo seu pai.
Há uma crença no quilombo, portanto, de que a feitiçaria retornaria para a família do
feiticeiro em forma de malefícios, de acordo com esta interpretação.
Domingos Nunes de Souza (36 anos), residente da Brasileira, uma das localidades
mais povoadas do quilombo de Rio das Rãs, além de acreditar na feitiçaria, já foi vítima.
Domingos tinha um pequeno comércio ao lado de sua casa e foi obrigado a fechar as
portas porque teria sido atingido pela feitiçaria. Por esse motivo, resolveu, então, procurar
os serviços de um curador para que esse fizesse uma “limpeza” em seu estabelecimento.
Concluído o trabalho, Domingos observou sinais positivos de melhora em seus negócios.
Tempos depois as mesmas dificuldades em seu comércio de peixe reapareceram. Na
interpretação de Domingos, essa recaída deveu-se a um estranho pacto dos feiticeiros com
os curadores para dividir o dinheiro dos clientes e, assim, os infortúnios não serem
totalmente superados. De acordo com Domingos, “eles num gosta de tirar do outro, pra
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
238

poder derrubar do outro e aí eles pega e comunica, fica tipo comunicado [combinado]. Fica
tipo balança, nem lá nem cá.”
Carlos Oliveira, o jovem curador da Brasileira, me contou uma história de feitiçaria
para demonstrar uma tese: nem os curadores, que possuem teoricamente todas as condições
e conhecimentos para anular a feitiçaria, estão isentos de serem enfeitiçados.
Silvalino, um conhecido curador da Papaconha, localidade fronteiriça a Rio das Rãs,
foi iniciado pelo senhor Andrelino Francisco Xavier e era tido, por alguns, como o seu
provável substituto, embora seja famoso por ser um incorrigível cortejador de mulheres
solteiras e casadas. Ele começou a namorar a filha de uma conhecida feiticeira da
comunidade negra de Pau D’arco, quilombo vizinho a Rio das Rãs, no município de
Malhada.
Depois da noite de amor com a formosa filha da feiticeira, Silvalino montou em sua
moto e tomou o caminho de casa. Na estrada escura, uma coruja em um vôo rasante acertou
o seu olho, que ficou sangrando. Dias depois, e sem conseguir enxergar nada naquele olho
ferido, Silvalino convidou Carlos Oliveira ao seu Centro para fazer uma olhada e tentar
decifrar os mistérios daquele acidente. Carlos diagnosticara estar o colega curador
enfeitiçado.
Feito o diagnóstico, Carlos teria pedido licença aos caboclos do Centro de Jurema do
amigo e invocou uma reza forte, de acordo com o relato de Carlos; logo a seguir, mandou
Silvalino abrir os olhos e este se deu conta de que enxergava normalmente.
O senhor Antonio Aparecido Soares (88 anos) e sua esposa, dona Francisca Soares395,
atualmente dedicada evangélica, me contaram muitas histórias de feiticeiros. Dizem em Rio
das Rãs que ele próprio é um dos grandes feiticeiros vivos. Pela capacidade de falar do
passado e também por estar sempre informado do que acontece no Brasil e no mundo –
através do rádio, o dia todo ligado –, é uma figura interessantíssima. Eis algumas de suas
muitas histórias de feitiçaria:

“Leobino do Rosário, da Parateca, morava lá num lugar chamado Pau Torto. Aí ele tava contano [...]
que trouxe um revolve de São Paulo. Aí Leobino num tinha idéia de fazer mal ninguém, mas porque
ele achou que ele podia usar ele [o revólver], ia pra roça e só andava com ele na capinha dum lado. Aí
Leobino bateu assim um papo, que ele passasse o dedo no gatilho, ele num errava um tiro com aquele
revolve. Aí que ele pegou trabaiano, capinano, e tal. Aí lá diante tinha um toco mais alto assim que ele

395
Nome fictício.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
239

[Pedro] falou assim pra o Leobino: “Se você tem um papo forte por esse revolve seu, vou ver se esse
revolve seu tem resistência de fazer o que você ta bateno papo que faz”. [Pedro] tirou o chapéu da
cabeça e botou o chapéu lá na cabeça do toco e falou: “corta as seis bala no chapéu”. “Corta, pode
cortar”. Aí Leobino tirou o revolve e poc, poc. Aí ficava poc, poc e não saiu o tiro. Cadê bala quebrar?!
O sinhô tio dela [Francisca, esposa do senhor Aparecido] que chamava Pedro, ele me contou por boca
dele mermo.
[Leobino] Ficou envergonhado, aí que ele falou... Aí Leobino falou com ele Pedro: “Você não é cria
não, você é coisa do diabo. Coisa do diabo.”

“Minha mãe pediu o cavalo ao cumpade dela, era primo carnal e cumpade. Manel Antonio que
chamava ele. Chamava Manel e o pai chamava Antonio, chamava ele Mané de Antonio. O cavalo
libunho. O cavalo dele tinha assim uma orêia môca assim. Acho que deu carrapato e a orêia moçou
assim um pouquinho. Tinha uma lista na testa no meio da testa até em cima do fuçinho. Cavalo
libunho, do cabelo assim quase se fosse castanho. Bunito mesmo o cavalo. Ela pediu o cumpade e
primo o cavalo pra ir buscar essa mandioquinha na roça. Aí ele deu de boa vontade e o véio, tio meu,
irmão dela [Francisca], foi buscar essa mandioca nesse cavalo. Foi na roça, encheu a carga de
mandioca, pôs no cavalo, veio trazer na casa da roda, tudo bem. Chegou, despejou a mandioca, tornou
voltar pra buscar a outra carga, quando o cavalo chegou cum a outra carga derradeira, já chegou assim
ó... Mancano. Apois mancano, foi esse, minha mãe entregou o cavalo já chorano de preocupação. De
ver aquele cavalo que num levou pancada nenhuma, entregar o dono já daquela situação. Aí era
mancano do quarto. Apois, o dono do cavalo levou o cavalo pra roça, chegou lá abriu a porteira até
baixinha, que era uma porteira que tem pau deitado. Botou aquilo bem baixinho pro cavalo passar e
puxou o cavalo assim base assim de mais um pedaço assim na beira da porteira, as vez tava mais duro
levou lá mais pra ponta do capim, tirou o cabresto do cavalo e o cavalo não mudou o pé dali mais pra
lugar nenhum. Porque a dor... Essa dor que o cavalo não pode mais andar e nem teve corage pra tirar
nem uma bocada de capim. Dali quem carregou o cavalo foi os urubu. Quer dizer, que a sabedoria
daquele tempo era uma sabedoria mais suja.”

“Tá com uma faixa duns quatro anos ou mais, o cachorro naquela data, naquele ano o uvido do
cachorro encheu muito de carrapato, que o sinhô sabe o que é isso, né? Aí o cachorro tava correno
doido e eu de cá oiano. Vai ali, corre aculá, correno, tava doido de bicho comeno dentro do uvido.
Apareceu aqui, eu falei, ói moço, mas esse cachorro tá assim, o que... Ta com bicheira no uvido. Eu
digo, e porque não cura? “Porque ele num deixa pegar, saí com ele correno, mas se for pegar ele num
deixa”. Eu falei, eu vou fazer a caridade de curar ele. Aí eu mediquei essa cura, contano os bicho de
nove pra trás, bicho caiu tudo, nunca mais bicheira deu nele. Nunca mais ele teve bicheira. O cachorro
era um branco e um preto. O preto era bem mais velho. O mais velho desse tempo que eu derrubei o
bicho da bicheira dele, ele nunca mais pegou bicho”

No Cedro [terra de nascença do senhor Aparecido, próximo do Pau Preto e ao lado do Mucambo, estas
últimas localidades situadas dentro do território de Rio das Rãs], um moço negro de cabelo miúdo e
encarapinhado de nome Dionísio Rodrigues da Silva comprou uma terra. Mas a sua terra não era muito
boa e só dava feijão e mandioca. Ao lado da sua propriedade havia uma terra vermelha que lhe
despertou a atenção, essa dava um bom milho e o que mais se plantasse. Dionísio resolveu, então,
gastar mais um dinheiro e comprou um pedaço de terra na dita área. Na mesma época, um homem
branco de nome Aldino, de barba vermelha fechada, comprou também uma propriedade na região.
Como as duas fazendas eram contíguas eles teriam que acertar quanto a melhor forma de definir uma
divisa. Acertaram, então, de comum acordo, que cada um cederia um metro e meio de suas respectivas
áreas para fazer a picada dividindo as fazendas. Depois do acerto, Dionísio descumpriu o acordo e
estendeu a sua cerca sem considerar a área para a construção da picada. Aldino resolveu cortar o arame
de Dionísio. Este, por sua vez, fez o mesmo com o arame do moço branco. Após esse desentendimento
entre os dois vizinhos, e sem haver expectativa de acordo entre os dois, o homem branco disse que ia
fazer uma viagem para Cachoeira de São Felix, mas antes de viajar ele teria ameaçado Dionísio: para
que “aquele nêgo não cortasse mais arame de ninguém”. Depois dessa viagem de Aldino, Dionísio
começou a sentir uma dor no pé do umbigo que nenhuma reza, chá de folhas do mato e de casca de pau
foi capaz de aliviar. Os vizinhos resolveram então levar o doente de carro de boi, que era o único
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
240

transporte na época, para a sede município de Palmas de Monte Alto, um lugar distante do pequeno
povoado do Cedro. O coitado não conseguiu chegar ao destino, morreu no caminho.

Um grupo de homens teria chegado a Feira de Santana vindo de Alagoas, eles viajavam em direção a
São Paulo. Em Feira, o grupo resolveu comprar bolo de umas mulheres negras gordas, de “beiços
carnudos” e vestidos compridos, conforme a narrativa do senhor Aparecido. Chegaram perto de um
dos tabuleiros e um deles apertou com as mãos os bolos de uma das mulheres e disse que não
compraria aquele bolo com cheiro de ovo. Quando deu as costas, a mulher se sentiu ofendida com
aquele gesto descortês e atirou um pequeno bolo nas costas do alagoano que na mesma hora desabou o
corpo pesado no chão e lá ficou tremendo as pernas. A vendedora vizinha dessa mulher que atirara o
bolo, depois que passou um tempo e o homem continuasse estendido, resolveu se levantar e dizer: “Oh,
porque fazer isso com ele!”. Enquanto falava a mulher deu três voltas em torno do corpo moribundo do
alagoano segurando as suas longas saias de baiana. Completadas as três voltas, o homem recobrou os
sentidos e se levantou ainda meio assustado e nunca mais, lógico, passou por ali.

São muitas as histórias guardadas na memória do senhor Antonio Aparecido Soares;


em todas estão presentes símbolos de maldade, sugestões de moralidade, promessas de
vinganças cumpridas e outras inerentes ao discurso da feitiçaria, inclusive a sua notória
ambiguidade.
Na primeira história transcrita anteriormente, envolvendo o senhor Leobino do
Rosário, fica evidente que o feiticeiro, ao impedir a detonação da arma, pretendeu
demonstrar poder; primeiro, ao desafiar o sujeito valente e armado; segundo, ao demonstrar
a ineficácia da arma do valentão diante de um feiticeiro. Essa história representa bem a
intenção jocosa com que o discurso da feitiçaria procura afirmar seu poder diante dos
indivíduos e de suas defesas impotentes diante do imponderável, que constitui a essência da
linguagem da feitiçaria.
Na história da doença do cavalo, o discurso da feitiçaria mostra uma das suas faces
mais conhecidas: a inveja.
Em Rio das Rãs e em todos os quilombos em que tive a oportunidade de pesquisar, a
inveja é considerada a verdadeira força motriz da feitiçaria. As pessoas invejosas teriam a
capacidade de transmitir uma energia tão negativa que seria capaz de afetar qualquer alvo,
seja uma criança, um adulto, um animal ou uma planta. Dessa forma, é muito comum se
ouvir falar que o “verdadeiro feitiço é a inveja”.
O cavalo – uma das maiores paixões dos quilombolas de Rio das Rãs – teria sido
enfeitiçado por sua beleza. Seria por inveja também a atitude do senhor que desrespeitara o
acordo de ceder uma pequena parte de sua terra para a construção da picada. É interessante
observar, nessa história, que a inveja pode ser confrontada por outra força mais poderosa
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
241

ainda, que a anularia e, ainda, condenaria o invejoso a sofrer a pena de sua própria maldade.
Ou seja, se a inveja é uma modalidade de feitiço, pode existir outro feitiço ainda mais
poderoso que o anula. Dito de outra forma, existe feitiçaria e contra-feitiçaria.
Outro aspecto presente na moral dessa história é quando se verifica que o moço
prejudicado pelo invejoso recorreu a uma instância “superior” para resolver o conflito; pelo
menos é esta a fama que corre com relação aos feiticeiros de Cachoeira.
Um feiticeiro pode se notabilizar pela maldade que pratica, que é a marca mais
destacada da feitiçaria, mas também pela capacidade de mostrar quem tem poder,
independentemente se sua ação tenha ou não um sentido moral generoso. A cura da
bicheira do cachorro, mais do que um ato de compaixão, é uma demonstração de força e
poder.
Por fim, a alegoria envolvendo a “baiana” de Feira de Santana possui uma
representação análoga àquela em que o senhor Aldino foi compelido a recorrer aos
feiticeiros de Cachoeira. Como se sabe, a fama que associa o povo de candomblé –
representada na história por uma baiana – à feitiçaria vem desde o período da escravidão no
Brasil. Mas, nessa história, o poder da feitiçaria se encontra igualmente presente em duas
versões complementares: a de fazer o feitiço e também de desfazer, conforme a
conveniência dos envolvidos. Nos dois casos, é também o poder que sobressai no sentido
demonstrativo de força.

Os caminhos para a cura percorridos pelos enfeitiçados e a proteção contra a


feitiçaria

Não foi possível observar, entre os quilombolas de Rio das Rãs, comportamentos
compulsivos que os levassem a associar automaticamente algum sintoma de doença à
ocorrência da feitiçaria. Ao contrário, muitos quilombolas chegam a afirmar não existir
feitiçaria, querendo dizer que a sua proliferação está relacionada, em grande parte, ao
exagero da crença de algumas pessoas.
A excessiva preocupação com que alguns quilombolas tratam suspeitas de feitiçaria é
severamente criticada, inclusive pelos curadores, que deveriam ser os mais interessados em
alimentar esse imaginário, até por ganharem dinheiro para fazer consultas e realizar
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
242

trabalhos para anular a feitiçaria em seus consulentes. Eis dois casos de suposta feitiçaria
criticados pelos curadores:

“Eu tenho anos de obrigação que eu tou falando, mas eu só vou até onde acho que tá certo. Cumo as
tarefa que parece: ‘meu fejão morreu, foi um feitiço; meu gado ta acabano, foi um feitiço.’ [...] E não é
feitiço...” (Leonardo José de Oliveira).

“Tem pessoa que tá cum dor de coluna. Aí tem pessoa que cabula de bruxaria, né? Aí aquela dor fica
dueno e ele vai num médico, já vai pro médico um pouco meio runhe e descobre...[que era coluna]”
(Carlos Oliveira).

De um modo geral os quilombolas sabem distinguir entre o que pode ser feitiçaria e
as doenças que aparecem por causas fisiológicas. Essa distinção entre as “doenças naturais”
e a feitiçaria é feita a partir de uma escala de procedimentos, na verificação dos sintomas
observados pelos quilombolas.
Orientados pela experiência acumulada ao longo do tempo, os quilombolas de Rio
das Rãs adotam os seguintes procedimentos para acompanhar e enfrentar as alterações
inesperadas na saúde humana, nas doenças dos animais e no pouco desenvolvimento das
plantas: tratar as enfermidades através do uso de ervas disponíveis no meio ambiente local e
usando os métodos de manipulação transmitidos pelos antepassados. São chás, banhos,
infusões, garrafadas e rezas simpáticas que algumas pessoas mais idosas do quilombo
conhecem.
A doença não sendo debelada, a família começa a se preocupar e, imediatamente,
aciona o serviço de saúde pública em Bom Jesus da Lapa. Após o uso das medicações, caso
os sintomas da doença se mantenham inalterados, um curador é procurado para fazer uma
olhada em um dos quatro Centros de Jurema existentes em Rio das Rãs, ou nos muitos
outros espalhados no vasto território quilombola do Sub-Médio São Francisco. Antes
mesmo de fazer a olhada, é possível que o indivíduo doente já tenha recebido passe de um
caboclo em algum desses Centros. É comum também que, nesse primeiro momento, a
família faça uso dos serviços de alguma experiente rezadeira existente no quilombo.
No caso de doenças e outras alterações súbitas envolvendo animais ou as plantações
dos quilombolas, órgãos públicos responsáveis pela assistência técnica serão procurados
para ajudá-los a combater possíveis pragas e doenças das plantas e animais, caso sejam
estas as razões dos infortúnios.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
243

Quando os métodos tradicionais de tratamento da saúde e as medicações alopáticas


falham, ou as orientações dos agrônomos e veterinários não debelam os males dos animais
e plantações, isso os faz desconfiar de estarem diante de um caso de feitiçaria.
Para não restar dúvidas sobre as causas e origens desses distúrbios, e mesmo já tendo
acionado um curador para fazer uma olhada, os quilombolas são capazes de gastar todas as
suas modestas poupanças – gado bovino ou animais do pequeno rebanho de caprino ou
ovino, especialmente criados para essas emergências – para se deslocar, conforme a
natureza do problema, e serem atendidos em clínicas particulares ou hospitais públicos da
região, e até mesmo em São Paulo – destino muito frequente da maior parte dos moradores
da comunidade no período mais crítico do conflito pela posse da terra.
Fracassadas todas as tentativas, os quilombolas voltam-se novamente para a opção
dos poderes mágicos de um curador ou de uma divindade que os protejam. Porém, desta
vez, terá que ser um curador de outra comunidade ou região, “alguém que tenha mais
força”, conforme a declaração de uma senhora que viveu esse itinerário de diagnóstico e
cura.
Não é incomum que as pessoas de Rio das Rãs busquem apoio em centros de
Umbanda em São Paulo e, mais recentemente, em terreiros de Candomblé, em Salvador,
onde estariam, de acordo com a opinião de muitos, as “titias” mais fortes, como eles se
referem às yalorixás dos terreiros de Candomblé de Salvador e do Recôncavo.
De acordo com o imaginário dos quilombolas de Rio das Rãs, a feitiçaria é capaz de
causar danos físicos ou mentais em seres humanos, estragos em plantações e provocar
doenças e mutilações em animais domésticos. Do mesmo modo, acreditam no sistema de
cura baseado nas tradições dos seus ancestrais para debelar os males produzidos pela
feitiçaria, através do uso de plantas e de outros elementos naturais, ou recomendações e
procedimentos religiosos sugeridos pelas divindades dos Centros de Jurema.
O reconhecimento da feitiçaria como produtora de malefícios, contudo, não significa
que os quilombolas recusem as indicações da medicina científica como alternativa para
debelar os seus males. Ao buscarem diferentes possibilidades de cura, os quilombolas
consideram aquele mal que os atormenta uma espécie de simulacro, um sinal a ser
decifrado, e a sua cura poderia vir, inclusive, de lugares e métodos diversos. A procura por
múltiplas respostas, tanto na parte da tradição como na ciência médica, seria uma tentativa
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
244

de se estabelecer uma ordem lógica nos acontecimentos que afligem as pessoas. Não a
lógica científica exclusivamente – que teria respostas absolutas para a explicação dos
fenômenos –, mas a lógica que inclui uma zona em que nem todas as coisas são
objetivamente visíveis e concretas.
Para Paula Montero, “o que mais parece importante nas descrições que nossos
informantes fazem de suas sensações ou comportamentos mórbidos é a ‘extraordinariedade’
que os torna sujeitos a uma lógica que escapa à causalidade natural.”396
É um sério engano imaginar que o sistema de cura consagrado culturalmente em Rio
das Rãs despreze explicações razoáveis para os males que atormentam os quilombolas.
Mauss, já advertira sobre isso: a visão de mundo mágico-religiosa dá “extrema importância
ao conhecimento e este é uma de suas molas principais; vimos, de fato, e por diversas
vezes, que, para a magia, saber é poder.”397
Na vida cotidiana em Rio das Rãs, exagero à parte, todos desconfiam que, em algum
momento, podem ser atingidos por uma “coisa enviada”, embora essa maneira de encarar o
mundo não torne os quilombolas apreensivos e tensos, como à primeira vista se possa
depreender. Ao contrário, eles são invariavelmente tranquilos e alegres. Ao mesmo tempo,
sabem e têm consciência dos perigos da feitiçaria, por esse motivo adotam rigorosas
receitas de prevenção.
Os quilombolas de Rio das Rãs plantam nos terreiros de suas residências conhecidos
arbustos protetores das energias negativas, alguns deles de origem africana, como Espada
de Oxossi, Espada de Ogum, Espada de Santa Bárbara, Comigo-ninguém-pode, Andu,
Preto Velho. Além dessas plantas, usam-se amuletos, pulseiras, colares e patuás; evita-se
comer ou beber em casas de pessoas suspeitas, passar por baixo de cerca de arame para não
“abrir” o corpo; evita-se também fazer sexo ou beber durante os períodos de tratamento, e
muitos outros procedimentos e proteções contra a inveja, o ciúme, o mau-olhado, o
quebranto e outras energias ou objetos enviados por algum feiticeiro.
A forma mais eficaz de anular a feitiçaria, tendo ela atingido uma pessoa, é buscar a
proteção em um sistema de cura especializado, ou seja, um Centro de Jurema. Nesse Centro
é possível identificar, através da olhada, se a pessoa está ou não enfeitiçada e, caso esteja,

396
MONTERO, Paula. Da doença à desordem, p. 102.
397
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, p. 171.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
245

recomendam-se procedimentos para livrá-la daquela força negativa. De um modo geral, as


pessoas alcançam êxito entre os curadores da própria comunidade. Mas, não é raro outras
serem compelidas a percorrer um caminho tortuoso na busca da cura, procurando médicos
da região ou de outros estados, consultando curadores fora do quilombo e ouvindo
conselhos diversos sobre como enfrentar os prejuízos causados pela feitiçaria. Outros
infelizes sucumbem, antes de conseguir debelar a feitiçaria.
É importante também saber escolher o curador mais adequado para enfrentar uma
determinada demanda, pois nem todos são considerados capazes de enfrentar qualquer tipo
de feitiço. Ouvi de vários curadores a declaração de que determinados tipos de feitiçaria
eles não eram capazes de anular. Acredito que essa impossibilidade esteja relacionada com
o tempo que o sujeito esteja enfeitiçado, dando a entender que o mal pode ter se
disseminado pelo corpo do indivíduo – de maneira análoga à ação de certas doenças
contagiosas –, tornando inócua a intervenção do curador; mas, também, pode estar
relacionado à natureza complexa do enfeitiçamento, de maneira igualmente análogo ao que
ocorre no tratamento médico, quando os especialistas “desenganam” os seus pacientes por
ter chegado o limite da competência e conhecimentos da medicina para debelar aquela
doença.
Através do jogo ou da olhada, o curador identifica a origem do enfeitiçamento e o
responsável pela ação da feitiçaria, ainda que não decline para o consulente o nome do
feiticeiro. Identificada a origem e a natureza da feitiçaria, o curador indica o tipo mais
adequado de tratamento.
O curador escolhido terá que ser também uma pessoa de confiança, alguém sobre
quem não paire a menor dúvida acerca de seu comprometimento ético. Há denúncias
frequentes de curadores que trabalhariam nos “nos dois lados”, ou seja, o de curar
indivíduos enfeitiçados e ao mesmo tempo ser um feiticeiro.
No quilombo de Rio das Rãs, não se confia muito em curadores que aceitam serviços
“pesados”, “sujos”, “voltados para o mal”, isto é, curadores que fazem trabalhos espirituais
mediante pagamento para prejudicar outra pessoa, a exemplo de promover a separação de
um casal a pedido de uma amante. Esse tipo de curador é visto com reserva e desconfiança.
Se ele “ganhou” para fazer o “mal”, é razoável pensar que ele é capaz de ser remunerado
para se voltar contra a pessoa que o procurou. Por essa razão, os curadores mais reputados
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
246

dizem não aceitar “trabalhos” que “prejudiquem alguém”; falam também que os Centros de
Jurema são espaços religiosos em que se pratica o bem.

Espada de Ogum

Quando essa reputação é longamente testada, os curadores se tornam referências de


elevada consideração no quilombo, é o caso do senhor Andrelino Francisco Xavier visto,
quatro anos depois do seu falecimento, como o exemplo de curador ético e comprometido
em fazer o bem.
Por ter adquirido o conceito de uma pessoa acima de qualquer suspeita, o senhor
Andrelino se transformou em um dos símbolos mais positivos da história recente de Rio
das Rãs: “Ele é o médico que nóis tem...” Essa expressão compartilhada por todos os
quilombolas de Rio das Rãs durante os dezoito anos que durou o conflito pela posse da
terra, exprimia a gratidão dos quilombolas pelo modo como ele conduzia o seu sistema
espiritual de cura; pela capacidade de diagnosticar as doenças físicas e a perícia com que
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
247

realizava as “cirurgias espirituais”. Essa condição privilegiada de sábio e defensor “do


bem” lhe deu credibilidade moral, conforme inúmeros depoimentos dos quilombolas, para
enfrentar também os poderes dos feiticeiros.
O senhor Andrelino se notabilizou também por sua participação ativa na luta contra o
fazendeiro que se apossara das terras de Rio das Rãs. Durante o conflito, descobriu-se que
um dos trunfos do invasor era a utilização da feitiçaria para se perpetuar nas terras
ocupadas – assunto que será detalhado a seguir –, mas, ele foi suficientemente modesto ao
se reconhecer incapaz para enfrentar as poderosas feiticeiras que apoiavam o fazendeiro.
Por essas e outras razões, ele se tornou um mito no quilombo de Rio das Rãs.
Bevenuto Batista Lima, da igreja Pentecostal Assembléia de Deus de Rio das Rãs, se
coloca em uma posição oposta ao sistema de cura tradicional dos curadores. As crenças
nativas acerca do diagnóstico das doenças e do sistema de cura expressariam uma
mentalidade “supersticiosa”. Quando as pessoas não encontram uma resposta satisfatória
sobre um problema físico qualquer, de acordo com sua opinião, o mais apropriado é
procurar a medicina que tem um procedimento racional e científico. As crenças nativas não
teriam fundamentos para explicar acontecimentos e fenômenos físicos e mentais; essa seria
uma explicação para as pessoas recorrerem invariavelmente aos recursos da natureza
(folhas, sementes, cascas, pedras) em detrimento dos conhecimentos médicos. As crenças
dos quilombolas de Rio das Rãs, segundo Bevenuto, enfim, seriam baseadas em “ilusões”
que não se sustentariam:

“Eu não acredito Valdélio, porque a planta jamais ela vai ter esse poder. As pessoas muitas vezes,
quando mete na mente, como às vezes tem pessoas que anda a noite e vê alguma coisa. Tem se dado o
conhecimento que pessoas vai andando na estrada e vê alguém. Aí ele diz, eu vi tal coisa, eu vi isso, vi
aquilo, uma visagem e quando vai fazer o apuramento, é um pé de planta, é um pé de lona, é um pé de
malva. Muitas vez as pessoas elas não procura a realidade, fazer um diagnóstico daquilo que ele vê e
vai falando que viu alguém, viu defunto.”

A concepção de cura de Bevenuto Lima é racionalista: “Quando a verdade vai sendo


descoberta, porque a verdade não se inventa, mas descobre-se a verdade...”
Os evangélicos da igreja Deus Amor são mais fundamentalistas, do ponto de vista
religioso. Eles interpretam os fenômenos sociais e culturais “à luz da Bíblia” e poucas
concessões fazem às crenças tradicionais. Diferente das tentativas mais racionalistas dos
evangélicos da Assembléia de Deus, a preocupação deles é reduzir os acontecimentos à
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
248

possibilidade de serem interpretados de acordo com a tradição mais remota do pensamento


bíblico:

“E como a gente trabalha? Pedindo a Deus pra libertar essas pessoas. A gente em si não pode fazer
nada. Não existe banho, não existe sal, não existe isso ou aquilo não. Aqui é oração.” (Pastor
Rubenildo Nascimento, de Bom Jesus da Lapa)

Para os quilombolas de Rio das Rãs que se identificam explicitamente com o


universo da feitiçaria o aparecimento de uma doença pode ter múltiplas explicações, e as
causas dos acontecimentos não são tão simplificados como analisam os evangélicos.
Edivaldo da Mata Silva dá um depoimento sobre a prática de cura do senhor Andrelino
Francisco Xavier, que é interessante a este propósito:

“Olha, Andrelino era o seguinte [...], ele falava pra você: ‘Olha, você sente isso, isso, isso e isso. Você
vai usar o tal remédio assim, assim que você vai ficar bom.’ Você chegava lá usava o remédio, voltava
são, são... ‘Andrelino eu sarei’. [Andrelino dizia]: ‘Você tem que ir no médico, que esse problema aqui
seu, é preciso você ir no médico. O problema seu é médico. Depois que você vai lá no médico, trata e
volta que tem um problema aqui que eu vou tratar de você’”.
[Em outro momento ele dizia]: “‘Vem aqui, se o médico não te operar eu te opero’. Ele operava.”

Na lógica do senhor Andrelino Xavier existem diferentes modalidades de doenças,


algumas poderão ser debeladas com os conhecimentos tradicionais e com as forças
espirituais das suas divindades; outras, porém, não estão em sua alçada e só podem ser
resolvidas por um médico e os seus procedimentos de cura. Não há nesse raciocínio a
pretensão de descaracterizar os conhecimentos alheios, os quais ele, inclusive, respeita e até
indica para os seus consulentes. Os conhecimentos que ajudavam a curar os indivíduos que
o procuravam foram legados pela experiência de vida e também do que aprendera dos seus
antepassados.
O aparecimento do médico Cleber Pereira da Silva (35 anos), clínico e cirurgião geral
no vizinho município de Carinhanha, que causou enorme impacto nas representações dos
quilombolas de Rio das Rãs sobre as doenças, trouxe elementos novos entre os limites da
ciência e os processos de diagnóstico e cura preconizados pelos conhecimentos mágico-
religiosos. Antes de discorrer sobre as suas idéias e a influência de sua medicina no
diagnóstico e cura dos doentes do quilombo, convém relatar como ele aparece nessa
história.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
249

O discurso da feitiçaria e as ambiguidades médicas nos diagnósticos das doenças


e nos sistemas de cura

Durante a pesquisa de campo constatei haver uma referência elogiosa e generalizada


ao Dr. Cleber em Rio das Rãs. Pessoas de diferentes localidades, de religiões distintas, de
variadas classes de idade e de posições políticas no quilombo o procuravam e
recomendavam com a mesma convicção os seus serviços. Os que eram tratados, além de
estarem satisfeitos com os resultados alcançados, endeusavam a sua figura. Os comentários
sobre o médico davam a impressão de que todos gozavam de sua intimidade e que ele
compartilhava das mesmas crenças religiosas dos quilombolas.
Uma conhecida liderança de Rio das Rãs, Adão, contou uma história fantástica a seu
respeito: o Dr. Cleber Pereira teria vindo de São Paulo (descobri depois que ele é mineiro)
para Carinhanha com a finalidade de cumprir uma promessa. Ele consultava os pacientes
usando equipamentos de última geração para “enxergar” a doença e “observar ela
andando”. Ainda de acordo com a imagem de Adão, com a máquina que ele possui “vê até
verme passear pela barriga...”. Ele acreditava, por fim, que o Dr. Cleber Pereira trabalhava
dos “dois lados”: o da medicina e do “espiritismo”. Para completar sua descrição fantástica
do Dr. Cleber Pereira, Adão afirmou com tranquilidade e convicção: “todo mundo sabe
dessas coisas” aqui em Rio das Rãs.
Após ouvir esse depoimento, me perguntei: ora, se todos os quilombolas sabem que o
Dr. Cleber Pereira é praticante de uma medicina que se mescla com “poderes espirituais”,
como explicar que os evangélicos sejam, igualmente, tratados por esse médico? Como
explicar também que Bevenuto Lima, o mais intelectual dos evangélicos de Rio das Rãs,
seja o principal organizador de caravanas, dentro do quilombo, que se deslocam
quinzenalmente para a sua clínica, em Carinhanha?
A partir dessas intrigantes indagações, resolvi fazer contato com o Dr. Cleber em
Carinhanha para entrevistá-lo. Lá constatei que o Dr. Cleber Pereira da Silva é famoso em
Rio das Rãs e em toda a região.
Para os quilombolas de algumas comunidades do Médio São Francisco, o Dr. Cleber
Pereira da Silva é visto como um semideus. Embora não seja de fazer caridade, como os
curadores tradicionais de Rio das Rãs.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
250

Em 2007 ele cobrava R$105,00 por uma consulta médica. No meu retorno em 2009
para entrevistá-lo novamente, portanto, apenas dois anos depois, o preço da consulta já
havia sido elevado para R$150,00, em uma região das mais pobres do sertão nordestino.

Dr. Cleber Pereira da Silva

Os quilombolas de Rio das Rãs por ele atendidos em caravanas quinzenais, até
poucos anos atrás, não tinham em suas residências luz e água potável; as casas eram
construídas de taipas e infestadas de barbeiros. Uma parte das localidades do quilombo, a
exemplo de Enchú, Capão do Cedro, Mucambo, Arriba, entre outras, ainda hoje não dispõe
em suas residências de água potável. Mesmo assim, quinzenalmente um caminhão médio se
desloca para Carinhanha, a cerca de 100 Km de distância – cada passageiro pagando
R$20,00 pela passagem –, levando quase duas dezenas de quilombolas para serem
atendidos pelo famoso médico.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
251

Depois de entrevistar o Dr. Cleber Pereira Silva em seu confortável consultório em


Carinhanha – após muitos telefonemas para sua secretária, que é também sua tia, mesmo
assim cercado de desconfiança quanto aos propósitos da minha solicitação –, pude
desvendar a maior parte dos mistérios envolvendo o médico e compreender as razões de sua
grande popularidade em Rio das Rãs e região.
Vencidas essas barreiras e no decorrer da conversa, ele ficou à vontade e expôs sem
censura suas opiniões e de que maneira ele interpreta o sucesso junto aos quilombolas.
Primeiro ele fala sobre a sua religião:

“A pergunta que você devia fazer é a seguinte: ‘Eu dou importância à religião para o tratamento
médico’? Claro. Eu sou católico, não muito praticante por falta de tempo, né? O pessoal de lá é de uma
doutrina mais espírita, né? Voltadas pras crenças de curandeirismo e por aí.”

O Dr. Cleber da Silva tem uma noção exata acerca da estreita relação entre o seu
sistema de cura e as crenças religiosas dos seus pacientes e sabe também, como veremos a
seguir, o papel que essas crenças têm no diagnóstico e, sobretudo, na cura das doenças.
Mas, de acordo com a sua concepção médica, ele não admite serem tais crenças influentes
no processo de cura dos pacientes.
Além de afirmar não haver influência das crenças religiosas no processo de cura,
motivo pelo qual, paradoxalmente, parte dos quilombolas o procura, ele desdenha dessas
crenças:

“E muitas vezes o pessoal vem com umas idéias errôneas, dessa parte de curandeirismo e a gente tenta
aqui, na maioria das vezes esclarecer e orientar eles assim ... Que vêm com aquelas estórias que o
curador falou isso, que o curador falou aquilo, então a gente ... O trabalho que é feito de
conscientização é de tentar tirar isso aí da idéia deles, né? Eles acreditam que tudo é espiritual, que
tudo é dessa origem, aqui então a gente tenta mostrar a parte real...”

A “parte real” a que ele se refere é o discurso que argumenta serem os fatos médicos
explicados pela ciência e esta não admitiria, portanto, a interferência de crenças incapazes
de penetrar na essência da doença, mostrá-la com uma tangibilidade indiscutível. Para isso
ele tem um aparelho de ultrassonografia que encanta os quilombolas, não só porque projeta
o interior do corpo em um monitor como também porque o médico afirma, ou os
quilombolas assim entenderam, que esse aparelho é capaz de “ver a doença andando dentro
do corpo”.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
252

O Dr. Cleber Pereira deve saber que esse artifício de “mostrar” a doença é eficaz para
a cura do paciente, até porque parte do sucesso entre os quilombolas deve-se à
representação que os pacientes fazem do aparelho que ele usa em suas consultas,
supostamente capaz de “ver todas as doenças.” Mas, ele não desfaz essa alegoria,
possivelmente por ser ela alimentadora do mito.
“Conscientizar” parece ter o sentido de reforçar a validade demonstradora de sua
máquina que tem o poder de “mostrar” ao próprio paciente aquilo que não é possível
através das olhadas e jogos de adivinhação. A sua vantagem no sistema de diagnóstico, em
comparação com os métodos dos curadores tradicionais de Rio das Rãs, é a de que os seus
pacientes podem “ver as doenças”, assim como também compartilhar com o médico ao
vivo as apreensões que os atormentam.
De acordo com Paula Montero, “‘ver’ a doença constitui-se, nas representações que
as camadas populares têm sobre os fenômenos mórbidos, condição sine qua non da própria
existência da doença. Se ela não pode ‘ser vista’, é porque ela não está lá.”398
Em outra parte deste capítulo vimos como o falso curador conseguiu enganar as
pessoas de Rio das Rãs procurando “mostrar” a materialidade do feitiço – enquanto um
instrumento transmissor de doenças – na forma de objetos (pulseiras, brincos, ossos) que se
movimentavam em direção ao corpo.
A idéia de doença para o imaginário dos quilombolas de Rio das Rãs, como se vê,
está associada à representação da doença como algo que pode ser percebido pelos sentidos,
ou através de sintomas que acarretem desordem na rotina diária do indivíduo, ou pela
incapacidade do corpo de realizar tarefas requeridas para a sua sobrevivência e de sua
família. É assim que os quilombolas diferenciam a doença física da espiritual, quando o
sintoma “supera a ordem do puramente fisiológico e se torna indicador da presença de
forças sobrenaturais cuja natureza, origem e intenções cabem ao médium, e não ao médico,
investigar.”399
Por ter uma concepção de cura diferente da dos seus pacientes, embora a utilize e a
manipule conscientemente em favor de sua prática de cura, o Dr. Cleber Pereira da Silva
mostra-se hostil e preconceituoso com as crenças dos quilombolas:

398
MONTERO, Paula. Da doença à desordem, p. 121.
399
Idem, p. 123.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
253

“Muitas pessoas vêm com idéias de que estão com “encosto”, que estão... São pessoas assim de nível
cultural bem baixo, né? Não entendem, então algum pessoal lá da região mesmo fala assim: “Tem uma
sombra, tem isso, tem aquilo”. E aqui a gente tenta mostrar pra eles que essas coisas na verdade são
doenças psicológicas, no caso de depressão, são doenças neurológicas mesmo, baixo nível intelectual,
que eles não entendem muito bem as coisas e aí ficam encabulados e se sentem doentes, na maioria das
vezes eles não estão tão doentes, mas, lógico que sentem, né?”

Ultrassonografia com Doppler 4 D, da clínica do Dr. Cleber Pereira

Em 2007, quando entrevistei o Dr. Cleber Pereira, ele considerava que setenta por
cento dos quilombolas de Rio das Rãs por ele atendidos sofriam de “depressão” e muitos
tinham sintomas de “retardo mental”. No ano de 2009, voltei a entrevistá-lo e as suas
convicções sobre a sanidade mental dos quilombolas se mantiveram:

“São as doenças psiquiátricas. Desde as doenças mais leves, depressão, ansiedade até as doenças mais
graves esquizofrenia, mania, transtorno bipolar. Então tudo isso eles tem, mas pela raça, as doenças
cardíacas, também são bem frequentes. Hipertensão arterial é muito comum. Praticamente todos...”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
254

Na opinião do médico, os curadores do quilombo de Rio das Rãs e região são doentes
mentais e trapaceiros, ao vincular os presumidos sintomas psiquiátricos dos mesmos com a
deliberada manipulação da loucura, com a finalidade espúria de ganhar dinheiro:

“São todos com doenças psiquiátricas graves. São pacientes que tem delírios de grandeza, então eles
acreditam ser pessoas poderosas. Então eles escutam vozes dos delírios dele então interpretam aquelas
vozes como uma mensagem ou alguma coisa assim e passam a usar isso, de uma forma pra viver, pra
ganhar dinheiro.

A avaliação do Dr. Cleber Pereira de que os quilombolas de Rio das Rãs sofrem de
problemas psiquiátricos, generaliza um diagnóstico psiquiátrico sem, contudo, ter feito,
pelo que pude constatar, testes comprobatórios para chegar a tal conclusão.
Ele próprio confessou, em 2009, que somente no ano anterior fizera um curso de
especialização em psiquiatria. Mas, ele já tinha essa opinião desde 2007, o que certamente
não lhe daria autoridade para chegar a tal conclusão mais recentemente. Além do mais, ele
não pesquisou em campo para atestar as impressões superficiais que um diagnóstico clínico
permite.
O que se pode depreender, a partir dos seus próprios depoimentos, é que a conclusão
do diagnóstico deve ter sido baseada em premissas falsas.
A primeira é que não se pode estabelecer uma relação de causa e efeito entre as
crenças religiosas dos quilombolas de Rio das Rãs e a sua saúde mental. As crenças
religiosas estão afetas à dimensão da cultura e dos comportamentos e não poderiam estar,
portanto, relacionadas às de “doenças graves”, como ele assinala. O fato de os quilombolas
creditarem estar a eficácia do tratamento prescrito pelo Dr. Cleber associada ao aparelho de
ultrassonografia que “vê a doença” é porque a idéia de doença por eles construída está
vinculada a uma cultura que valoriza a percepção dos sintomas. Portanto, isso não
configuraria um déficit mental, e sim uma visão de mundo diferente da do médico.
O Dr. Cleber Pereira considera também serem os quilombolas portadores de doenças
psiquiátricas porque, ao terem contato com a televisão, “não tem muitas vezes cultura para
interpretar o que tá vendo, o que tá aprendendo, tudo muito novo, então, às vezes se
transforma em ansiedade, em depressão, em outras coisas.”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
255

Essa idéia de ser a televisão geradora de depressão não tem qualquer comprovação
científica, além do mais o contato dos quilombolas de Rio das Rãs com a televisão não é
recente. A quase totalidade dos habitantes de Rio das Rãs não deixou de viajar para Bom
Jesus da Lapa, São Paulo e outros lugares em que podiam assistir à televisão, portanto,
muito antes da luz elétrica chegar ao quilombo, há doze anos. Não há prova também de que
eles tenham qualquer predisposição genética para contrair doença no contato com imagens.
A avaliação negativa do Dr. Cleber Pereira sobre os quilombolas de Rio das Rãs
decorre de sua incapacidade de entender que a maior parte de seu sucesso se deve,
justamente, à concepção de doença dos quilombolas. A visão de mundo dos quilombolas é
que torna eficaz o tratamento e a cura de suas doenças, mas o médico insiste em validar,
mesmo que dela se aproveite para fazer fama e obter fabulosos lucros400.
A tentativa do médico em desqualificar a referência cultural dos quilombolas, fica
explícita quando ele desdenha da importância da subjetividade no processo de tratamento
médico. Desse modo, o sucesso alcançado por seu tratamento, que deveria ser
compartilhado com os seus pacientes pela contribuição que eles dão para o processo
curativo, é atribuído apenas aos seus próprios conhecimentos. O que deveria ser um
compartilhamento dialógico – médico e paciente – termina sendo uma demonstração
unilateral de presumida supremacia do conhecimento científico. Isso fica patente quando
ele tenta negar a participação dos quilombolas no processo de cura e o significado que os
mesmos atribuem aos poderes mágico-religiosos:

“Acredito e as pessoas me dizem isso, tá entendendo? Eu fico calado, eu não tenho respostas a dar,
então as pessoas falam: “Então doutor, só de eu vim aqui eu já estou curado, eu não preciso de
remédio, eu tô bom, só nossa conversa aqui, eu só tava era perturbado, com medo, eu tô bom”.

O Dr. Cleber Pereira, como se vê, tem consciência de que manipula as crenças e
representações simbólicas dos quilombolas de Rio das Rãs para favorecer os resultados do
seu saber científico.
Mas, será que existem outros elementos simbólicos que induziriam os quilombolas a
terem essa imagem tão positiva desse médico e de sua capacidade de obter resultados
favoráveis para as doenças trazidas pelos seus pacientes?

400
Ele disse que está inaugurando em breve uma rede de clínicas em toda a região Oeste da Bahia, graças ao
sucesso obtido inclusive pela propaganda que os quilombolas de Rio das Rãs e região fazem dele.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
256

A crença de que o Dr. Cleber trabalha com os dois lados, o da medicina e a dos
poderes mágicos, foi construída ou reforçada no decorrer da sua prática médica, ao que
tudo indica, intencionalmente. A evidência disso foi quando ele revelou que rezar era o
primeiro ato antes de atender aos pacientes quilombolas após chegarem em caravanas na
sua clínica: “O que a gente reza, a gente faz aqui todo dia pela manhã, minha tia, que é
minha secretária, ela reúne todo dia e reza um Pai Nosso, canta parabéns para quem é o
aniversariante do dia, aquela coisa...”
Esse ritual, certamente, tem um significado marcante na interpretação dos pacientes
que distinguem perfeitamente doenças físicas e doenças espirituais, mas que consideram,
por outro lado, não haver um hiato tão grande a separar as duas dimensões.
A reza, aparentemente despretensiosa, é a razão pela qual os quilombolas acreditam
que ele não só releva como efetivamente trabalha com dimensões que extrapolam a
racionalidade médica. E, no final da entrevista, o Dr. Cleber Pereira da Silva forneceria a
informação chave para elucidar cabalmente que o sucesso pessoal e do seu tratamento
médico derivam da crença formada pelos quilombolas de ele ser um médico especial, já que
conseguiu o “milagre” de fundir as crenças médicas com as de origem religiosas:

“Minha empresa chama-se ‘Centro de Tratamento e Ultrassonografia - CENTRUS’, aí no início do


meu trabalho aqui, o pessoal que vinha de Cocos, principalmente, vinha fazer a consulta médica com o
doutor que ‘via a gente por dentro’, quer dizer, é um aparelho de ultrassom que passa na televisão,
então você vê, tem uma televisão que fica em frente ao ultrassom, ele está deitado ele vê. Então [as
pessoas perguntavam]: ‘aonde você foi?! Eu fui num doutor lá de Carinhanha que trabalha no Centro e
vê a gente por dentro’, tá entendendo? Aí eu disse, no caso específico de lá de Cocos, eu fui lá,
conversei com cada um colega médico que trabalhava lá e disse: ‘Olha, isso é um mal entendido que
não tem nada a ver’.
As pessoas muitas vezes assim, confundem, não é? Várias perguntam: ‘Mas aqui é um centro, é
espírita?’ Não, é médico.”

Essa associação feita pelos quilombolas de que a palavra “CENTRUS”, simplificada


para “Centro” pelos pacientes, da clínica do Dr. Cleber Pereira se refere à suposta relação
que o médico teria com as crenças mágico-religiosas presentes no universo cultural deles,
de fato, não foi desfeita pelo médico, ao contrário.
O ritual que ele organiza em rezar antes do atendimento dos pacientes que chegam
em caravanas, o diálogo que ele desenvolve nas consultas sobre as origens “espirituais” das
doenças e o reforço do diagnóstico das doenças sendo ela “mostrada” no monitor de
televisão, terminam reforçando as crenças tradicionais dessas pessoas e consolidando a
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
257

analogia construída de que o “Centro” do médico é uma representação dos “Centros de


Jurema” dos quilombolas. Com a vantagem de que o “Centro” do médico é capaz de
“mostrar” a todos, através de uma imagem nítida de televisão, o “objeto” do infortúnio do
paciente.
Além disso, esse “Centro” é associado ao prestígio especial atribuído à figura do
médico que, nas regiões mais pobres do interior da Bahia, são considerados um quase-deus.
Todos os elementos simbólicos contribuem para o êxito do tratamento médico do Dr.
Cleber Pereira da Silva. Ele conseguiu, além disso, colocar no mesmo espaço
representacional de sua clínica os adeptos dos Centros de Jurema, feiticeiros e evangélicos.
Com diferentes suspeitas quanto às causas e origens de suas respectivas doenças, os
pacientes compartilham, contudo, desejos e interesses análogos: o de serem curados dos
males que debilitam o corpo ou mente.
Na mentalidade religiosa dos quilombolas de Rio das Rãs, é comum associar o
surgimento de certas doenças com suspeitas de que possam estar influenciados por
“energias negativas”. Ao perceber isso, o Dr. Cleber Pereira, ao que parece, estruturou o
seu atendimento com um ritual que inclui a conformação de uma corrente de energia (todos
de mãos dadas na hora da oração) e uma abertura (as rezas matinais) para invocação de
poderes espirituais como elemento de favorecimento de cura. Através do seu aparelho de
ultrassonografia, que dá visibilidade à “doença”, ele facilita a tangibilidade do mal e dá
concretude ao sistema de diagnóstico – estratégia igualmente adotada pelos oráculos para
comprovar a materialidade da feitiçaria – e, com isso, transmite confiança ao paciente.
Diagnosticada a doença com tal materialidade, o sucesso da cura estará em grande parte
assegurado.
Ao nomear a sua clínica de “Centro de Tratamento e Ultra-Sonografia” – CENTRUS,
ele completa explicitamente a associação simbólica e gramatical (lembrando que as casas
de cultos são chamadas de “Centros”) entre os dois princípios aparentemente díspares – o
da ciência e o das forças mágico-religiosas – e, com isso, compatibiliza as duas linguagens
para ensejar mais eficácia ao seu sistema de cura.
Mas, o Dr. Cleber da Silva recusa a se colocar no mesmo plano dos seus pacientes; a
sua condição de médico e, portanto, detentor de conhecimentos técnicos se coloca em
posição vantajosa na hierarquia da relação. Para confirmar a sua superioridade técnica e ao
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
258

mesmo tempo ser capaz de desqualificar os “saberes sujeitados”401 dos quilombolas sobre
doença e cura, ele submete o corpo dos sujeitos de Rio das Rãs a uma condição de campo
de experimentação, consequentemente mantendo-os sob seu controle. Na concepção de
Foucault, é a expressão típica do poder disciplinar: “O corpo, tornando-se alvo dos novos
mecanismos de poder, oferece-se a novas formas de saber.”402
Quando os evangélicos e o Dr. Cleber Pereira da Silva classificam pejorativamente os
antídotos empregados pelos curadores para anular a feitiçaria, afirmando que são
“crendices” e “superstições”, certamente não percebem que a feitiçaria é uma prática
discursiva, como outros conhecimentos. Da maneira como Foucault nos ensina: “As
práticas discursivas, caracterizam-se pelo recorte de um campo de projetos, pela definição
de uma perspectiva legítima para o sujeito do conhecimento, pela fixação de normas para a
elaboração de conceitos e teorias.”403
A feitiçaria, ou os poderes mágico-religiosos a ela associadas, deve ser pensada
“como um discurso, no sentido proposto por Stuart Hall; não só é um fato social com
efeitos tão reais como o é qualquer outra prática social, mas também o necessário mediador
na realidade de qualquer outra prática social aparentemente tão distanciada do sentido
discursivo, a exemplo do que têm pretendido os discursos econômico ou tecnológico”.404
A influência poderosa do Dr. Cleber da Silva entre os quilombolas no tratamento e
cura das doenças deve-se ainda, em grande parte, à sua capacidade de manipular os
símbolos que conformam a cosmovisão dos quilombolas de Rio das Rãs – do mesmo modo
como são os eficazes tratamentos dos curadores – através das representações imagéticas de
suas doenças que ele tão bem utiliza em sua clínica.
A percepção de doença dos quilombolas, neste sentido, não é, consequentemente,
incompatível com a modernidade e os recursos técnicos oferecidos no mercado. Para
Balandier, o “corpo se descobre como um mundo novo ao adquirir completa visibilidade

401
“Por ‘saberes sujeitados’, eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados
como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes
hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridas.”
FOUCALT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.12.
402
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 18.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 132.
403
FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do College de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997, p. 11.
404
RESTREPO, Eduardo. Essencialismo Étnico y Movilizacion Política: Tensiones em las Relaciones entre
Saber y Poder in BARBARY. Olivier (Coord.). Gente Negra em Colómbia: dinámicas sociopolíticas em Cali
y El Pacífico. Medellín: CIDSE/IRD/COLCIENCIAS/Editorial Lealon, 2003.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
259

graças às imagens de uma grande precisão que o revelam em ondas sucessivas (tomografia)
ou através de funcionamento de órgãos...”405
O Dr. Cleber Pereira da Silva, ao vincular a modernidade de suas técnicas às crenças
de cura tradicionais dos quilombolas, mediado por rituais religiosos semelhantes aos da
magia, visto como algo vindo de outro lugar, facilita e compatibiliza a comunicação entre
duas linguagens. Assim, é possível entender por que essas práticas sociais e discursivas,
como a medicina e a feitiçaria, não são tão díspares entre si como aparentam.

Feitiçaria e poder no quilombo de Rio das Rãs

Até aqui ressaltamos que a feitiçaria em Rio das Rãs, fundamentalmente, é


antissocial, na medida em que é vista como uma prática contrária aos inocentes que tenham
qualquer passivo com um feiticeiro ou um parente seu que o incite a colocar em movimento
os seus poderes malévolos. Frisamos, também, que a feitiçaria é repudiada em todas as
sociedades, ainda que as regras para tratar os feiticeiros sejam distintas nos diferentes
contextos sociais.
No quilombo de Rio das Rãs, o discurso da feitiçaria, embora temido por todos, de
conformidade com o estigma que lhe é atribuído em todas as sociedades, não é uma prática
que enseja punição para os praticantes porventura denunciados. Os indivíduos identificados
como feiticeiros vivem normalmente na sociedade local e alguns até gozam de
proeminência social, embora a eles sejam atribuídas, ainda que secretamente, atrocidades e
mortes.
Mas, a feitiçaria em Rio das Rãs não se reduz apenas a essa faceta de maldade que a
caracteriza. Antes de explicar um pouco mais o que isso significa, é importante destacar
uma propriedade pouco destacada nos estudos antropológicos da feitiçaria: o seu poder. Em
que sentido é possível definir o poder da feitiçaria ou a feitiçaria como um poder?
Conforme foi esclarecido na Introdução, ao alterar o meu entendimento sobre o
conceito de poder presente na hipótese de trabalho do projeto de pesquisa para o doutorado,
procurei me afastar das concepções tributárias da sociologia weberiana e ainda com
influência das idéias marxistas clássicas como as de Wladimir Lênin:

405
BALANDIER, Georges. O contorno: poder e modernidade, p. 261.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
260

“O proletariado necessita do poder do Estado, de uma organização centralizada da força, de uma


organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores como para dirigir a imensa
massa da população, o campesinato, a pequena burguesia, os semiproletários, na obra da organização
da economia socialista.”406

Esta concepção leninista de poder pode ter alguma utilidade nos marcos de uma
análise macropolítica em que transformações de longo alcance pretendam estabelecer um
nexo entre o sistema de classes sociais e as relações de produção correspondentes em uma
determinada época histórica. Numa realidade nas quais os fenômenos estejam relacionados
a um grupo social particular, como um grupo étnico, a referida noção de poder não
contribui em quase nada para entender microrrelações sociais.
Por esse motivo, a idéia de poder mais adequada para entender o significado político
da feitiçaria está mais próxima de algumas concepções antropológicas verificadas em
sociedades africanas:

“O poder possui numerosas fontes: força, sedução, eloquência, etc. Para os antigos beti, a sua fonte
secreta reside no próprio poder de agir mal, pelo uso anti-social da feitiçaria, faculdade que pode ser
entretanto utilizada ao serviço da sociedade; este ponto de vista revela a desconfiança de tais
sociedades em relação ao poder.”407

Além de se desconfiar de suas presumidas intenções positivas, esses pontos de vista


sobre o poder dão valor às representações que as envolvem e, desse modo, segundo
Balandier, a “primeira consequência que impõem as descrições e as interpretações
africanistas é o reconhecimento da abundância simbólica inerente ao poder.” Desta
perspectiva, o “acesso ao poder político é tanto o acesso à força das instituições quanto à
força dos símbolos e das imagens.”408 Presume-se, assim, que ter poder pode ser também
uma referência àqueles que tenham acesso aos segredos e mistérios referentes às divindades
e vice-versa.
No decorrer da pesquisa etnográfica em Rio das Rãs, foi possível constatar também
que a feitiçaria é um fenômeno social influente e com um enorme significado para os

406
LENINE, V. I. O Estado e a Revolução. Obras Escolhidas, V. 2, São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1980, p.
239.
407
LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia, Antropologia. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1999, p. 133.
408
BALANDIER, Georges. O contorno: poder e modernidade, p. 92.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
261

quilombolas. Ela é vista como uma força, e os que a controlam e a manipulam têm poder,
no sentido de orientar, influenciar e, muitas vezes, determinar o sentido das ações dos
sujeitos na vida social.
A percepção e o reconhecimento de que existem pessoas portadoras de poderes
especiais funcionam para os quilombolas de Rio das Rãs no sentido durkheimiano, como
um controle dos impulsos individualistas, mas também como uma advertência contra os
que procurem desafiar as tradições ancestrais, em outras palavras, confirmar a sociedade
como referência e fonte principal de coesão grupal.
Para Eric Wolf, “há diferentes modos de poder, cada um deles concernente a um nível
distinto de relações sociais.”409 Em Rio das Rãs, a feitiçaria, vista como um poder, não
implica desconhecer outras fontes igualmente importantes para influenciar a ação dos
sujeitos; é o caso das relações de gênero, onde é visível o deslocamento das mulheres dos
centros de decisão do quilombo.
Mas, o poder da feitiçaria é distinto de outras modalidades: os feiticeiros desdenham
do poder formal, onde eles, de um modo geral, não estão presentes. A influência do
discurso da feitiçaria no quilombo de Rio das Rãs deve-se ao temor com que esse fenômeno
foi disseminado como algo intrínseco à cultura dos quilombolas, e, portanto, não há como
dele fugir.
O enorme temor despertado pela feitiçaria junto aos quilombolas de Rio das Rãs
explica, em boa parte, a sua influência410 no âmbito das relações sociais. Influência que
decorre também de um sentimento incorporado de serem os poderes do feiticeiro tão reais
quanto a sua existência social.
A feitiçaria se constituiria em um instrumento de poder pois, de acordo com o
imaginário corrente em Rio das Rãs, ela é uma linguagem que influencia, orienta e define o
sentido, a movimentação e a natureza das relações entre os sujeitos no quilombo.
O feiticeiro não é um ser externo ao quilombo, contudo, ele é parte da mesma cultura
na qual estão presentes as crenças na feitiçaria. Desse modo, quem media a relação entre os
feiticeiros e demais quilombolas são as crenças e as acusações de feitiçaria. São esses

409
WOLF, Eric R. Antropologia e Poder. Bela Feldman – Bianco e Gustavo Lins Ribeiro (Orgs.) Brasília:
Editora UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Editora UNICAMPI, 2003, p. 325.
410
O conceito de influência aqui usado é de DAHL, Robert. Análise Política Moderna. 2. ed. Brasília: Editora
UNB, 1998. Para este autor, “se há duas pessoas num sistema, A e B, A influenciará B na medida em que o
comportamento de B se alterar no sentido desejado por A.” p. 36.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
262

elementos fundamentais que compõem o mosaico do que foi chamado, no início deste
texto, de universo da feitiçaria.
Enquanto categoria revestida de poder, a feitiçaria se converteu em um disputado
campo de disputas política e simbólica no quilombo. Os principais grupos que disputam a
primazia de combater a feitiçaria são os adeptos das religiões afro-brasileiras e os
evangélicos. Os primeiros se colocam francamente no universo da feitiçaria, ao mesmo
tempo em que buscam anular as consequências nefastas de sua influência com as armas
adquiridas pela tradição. Os evangélicos, por outro lado, igualmente combatem a feitiçaria.
Mas as razões invocadas são distintas. Para eles, a feitiçaria é a representação do demônio
na terra e, por isso, consideram possível combatê-lo através das práticas recomendadas
pelos ensinamentos bíblicos; além disso, a feitiçaria estaria vinculada às concepções
epistemológicas alimentadoras de crenças “irracionais” e, portanto, fariam parte de
“crendices”.
A tensão que opõe os evangélicos e os adeptos dos Centros de Jurema coloca em
evidência experiências religiosas e referências culturais que se chocam. Os curandeiros e
seus adeptos, por um lado, recorrem aos orixás, caboclos e outras divindades para “livrar”
as pessoas dos feitiços enviados. Para isso, utilizam-se de rituais de purificação, passes,
banhos de infusão, plantas protetoras, patuás e outros expedientes que “limpam”,
“protegem” e “fecham” o corpo dos adeptos de tais crenças. Os pastores das igrejas
evangélicas e seus fiéis, por outro lado, partem da premissa teológica de que as pessoas
enfeitiçadas estão sob a “influência” ou “dominadas” pelo demônio e, para conter ou anular
qualquer influência maléfica, os que estejam enfeitiçados precisam primeiro renunciar às
“crendices” dos Centros e a suas receitas de como conter a feitiçaria.
De acordo com esta visão, a ação dos curadores para conter os feiticeiros é análoga ao
sistema de crença dos próprios feiticeiros, e ambos são vistos como “ilusões” ou
“superstições”. Para anular os resultados maléficos do enfeitiçamento, os evangélicos
sugerem rituais de exorcismo mediante demoradas invocações e preces, ao longo da noite,
para livrar as pessoas do controle do “demônio”. Na prática, e por também acreditar na
existência da feitiçaria, ainda que a nomeiem de “endemoniamento”, os evangélicos
terminam por incidir nos mesmos propósitos que dizem combater. Da mesma forma que
procuram o Dr. Cleber Pereira da Silva para tratar dos males que os atormentam, mesmo
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
263

sabendo que ele é conhecido como um profissional que “trabalha dos dois lados”, os
evangélicos, ao combater a feitiçaria como prioridade, mesmo que adotem uma estratégia
própria, terminam sendo atraídos pela lógica do universo da feitiçaria.
Os dois modelos de religiosidade, que, de fato, não são antagônicas, disputam junto
aos quilombolas espaços de reconhecimento e legitimidade sociais, nas suas distintas
concepções metodológicas, para anular a feitiçaria, vista, por ambos, entretanto, como um
mal que deve ser contido. A tentativa de afirmação dos dois discursos pode ser interpretada
como uma modalidade particular de disputa política em Rio das Rãs.
Cada um ao seu modo – e com as referências epistemológicas para explicar o mundo
e, dentro dele, como se conformam as relações entre os indivíduos e a natureza –,
pretendem, de fato, legitimar o seu regime de verdade, no sentido foucaultiano411. A
intenção de cada discurso é legitimar a estratégia considerada mais apropriada e
verdadeira para livrar as pessoas da feitiçaria, tida, por todos, como um pesadelo.
Episódios envolvendo tentativas de constrangimentos de dirigentes políticos da
Associação, conforme foi exemplificado anteriormente, mostram a relação de intimidade da
feitiçaria com a ação política em Rio das Rãs.
O ex-presidente da Associação, Simplício Arcanjo de Souza, uma das lideranças mais
importantes da comunidade, relatou que, durante uma acirrada disputa pelo poder na
Associação, constatou que um caroço que aparecera repentinamente ao lado do seu peito
teria sido, segundo o curador consultado, um feitiço enviado para acabar com ele. Lembrou
também que nas disputas pelo poder da Associação quase “todos são parentes”, mas nem
por isso a ação dos feiticeiros reflui em suas tentativas de eliminar os oponentes políticos.
Há evidências, portanto, da relação íntima entre feitiçaria e política, entendida como
um “processo social através do qual o poder coletivo é gerado”412. O conflito entre
feitiçaria e interesses afetos ao poder faz parte do jogo de relações sociais em Rio das Rãs.
Mas, o caso mais exemplar do envolvimento da feitiçaria com o poder ocorreu
quando os antagonistas no conflito pela posse das terras do quilombo de Rio das Rãs – os
quilombolas e o fazendeiro Carlos Bonfim – se confrontaram no plano da religiosidade para

411
“A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é,
os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros...” FOUCAULT, Michel. Microfísica do
Poder. 25 ed. Rio de Janeiro: GRAAL, 2005. p. 12
412
JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia, p. 178.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
264

atacar e contra-atacar com as armas da feitiçaria. O desfecho dessa inusitada disputa é o que
veremos a seguir.
O conflito pela posse do território de Rio das Rãs durou dezoito anos e envolveu
cerca de duzentas famílias do quilombo e o fazendeiro Carlos Newton Vasconcelos
Bonfim. Somente para se ter uma idéia do poder econômico concentrado nas mãos deste
homem, no auge das suas atividades empresariais em Rio das Rãs, ele chegou a cultivar
quatro mil hectares de algodão irrigados com um sistema de pivô central e criou nas terras
do quilombo mais de vinte mil cabeças de gado bovino.
Durante os dezoito anos de conflitos, plantações e residências foram destruídas,
animais mortos a tiros, rios envenenados e um planejado sistema de vigilância foi
implantado com a participação de capangas armados, que impediam a circulação livre dos
quilombolas que se apossaram dessas terras no início do século dezenove. O referido
fazendeiro tinha o respaldo político e institucional, no Estado da Bahia e nas instituições
federais, do conhecido ex-governador e senador da Bahia Antonio Carlos Magalhães, a
quem se referia com frequência e familiaridade.
A primeira alusão à feitiçaria relacionada ao conflito foi após a realização de uma
reunião envolvendo representantes dos quilombolas de Rio das Rãs e lideranças da
Comissão Pastoral da Terra – CPT; Movimento Negro Unificado – MNU; e a Fundação
para o Desenvolvimento do Vale São Francisco - FUNDIFRAN, em 1994, quando se
discutiam alternativas políticas e legais para resolver o conflito.
Naquele momento, a situação dos quilombolas era muito difícil. Muitas famílias
foram obrigadas a evadir. O fazendeiro incendiava as plantações, colocava o seu gado nas
roças dos quilombolas e derrubava as residências dos que estavam mais dispersos dentro do
território. Não havendo outra opção, muitos se mudaram para São Paulo; outros
procuravam serviços em fazendas vizinhas. As quase duzentas famílias que resistiram na
terra eram alimentadas pelas contribuições de campanhas de solidariedade no Brasil e junto
a instituições filantrópicas da Europa.
Ao término da reunião que discutia essa situação crítica, fui procurado por Eduardo
Pereira dos Santos (54 anos), Manoel Preto, já falecido, e então presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Bom Jesus da Lapa, e o senhor Petronílio Francisco dos Santos
(76 anos), conhecido como Patu. Todos eram destacadas lideranças em Rio das Rãs.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
265

Eles desejavam conversar comigo reservadamente em um espaço que não tivesse a


presença dos religiosos católicos que apoiavam a causa de Rio das Rãs, embora tivessem
uma enorme gratidão pelo apoio inconteste da Comissão Pastoral da Terra – CPT. Na
conversa, reservada, as lideranças foram direto ao assunto: queriam ajuda para identificar
em Salvador uma religiosa ou religioso capaz de desfazer a feitiçaria que Carlos Bonfim
teria “espalhado” no quilombo, através de uma “titia” forte “contratada” em Cachoeira.
Surpreso diante da solicitação, perguntei por que eles não recorriam ao senhor
Andrelino Francisco Xavier, o famoso e comprometido curador com a luta pela posse da
terra. Eles responderam ter sido do próprio Andrelino a recomendação de procurar em
Salvador alguém com a “força” suficiente para desfazer a feitiçaria colocada por Carlos
Bonfim em Rio das Rãs.

Eduardo Pereira dos Santos

Alguns contatos com lideranças religiosas de dois conhecidos Terreiros do Engenho


Velho da Federação, em Salvador, foram feitos para analisar a solicitação dos quilombolas
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
266

de Rio das Rãs. Mas, em virtude da distância que separa Salvador de Rio das Rãs e das
dificuldades de comunicação à época, não foi possível colocar as partes, os quilombolas e
as mães de santo, em contato.
De volta a Rio das Rãs para a pesquisa de campo, em 2007, e após a feitiçaria se
impor como um tema fundamental para entender as relações de poder no quilombo, resolvi
conversar com Eduardo Pereira dos Santos, um dos personagens envolvidos naquele
episódio de 1994. O meu interesse era o de saber mais detalhes sobre o que motivara aquela
solicitação. Gravemente enfermo, o senhor Petronílio não poderia participar da conversa;
enquanto Manoel Preto havia falecido em circunstâncias trágicas, e não poderia mais
contribuir para refazer a memória daqueles acontecimentos.
Eduardo Pereira dos Santos me fez o seguinte relato:

“Procuramos, porque nós ficamos sabendo que nossa luta aqui tinha alguma coisa pegando. Nós tinha
aqui nosso companheiro Andrelino [o curador] e repetia que as coisa pegava mesmo. E dizendo pra
gente que a gente saísse lá fora e conseguia alguém que fazia esse trabalho.”
“Ele dizia que o próprio Carlos Bonfim ele era pai-de-santo, ele trabalhava também com esses
problemas e segurava saco [...] Não sei qual é o motivo. Eu sou linha branca, eu não entendo bem
dessas coisas, mas que ele trabalha com essas coisas. Então que procurasse uma pessoa que
desmanchasse esse laço.”

Eduardo dos Santos confirmou, em 2007, portanto, a suspeita de que Carlos Bonfim
utilizou-se da feitiçaria para impedir que o conflito tivesse um resultado favorável aos
quilombolas. O curador Andrelino Xavier teria diagnosticado a feitiçaria como o mais
importante obstáculo para a solução do conflito. Ele próprio se considerara impotente para
anular as forças espirituais protetoras do fazendeiro, daí ter indicado a alternativa de
procurar alguém em Salvador que tivesse uma força correspondente à utilizada pelo
fazendeiro.
Para minha surpresa, os quilombolas consideravam que o próprio fazendeiro Carlos
Bonfim era um feiticeiro! O que me fez lembrar o imaginário da feitiçaria dos brancos,
presente na África e no Brasil, seja como contratantes de feitiçaria ou mesmo como
feiticeiros.413
Após o diagnóstico de que o quilombo de Rio das Rãs estava enfeitiçado, e não
havendo uma resposta em tempo hábil às consultas feitas em Salvador, os líderes políticos
413
Cf. LABURTHE-TOLRA, Philippe, WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia, Antropologia, 1999;
GESCHIERE, Peter. Sorcellerie et Politique em Afrique – la viande des outres. Paris : KARTAHALA, 1995.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
267

do quilombo recorreram aos serviços de um curador de Xique-Xique para proceder à


“limpeza” da feitiçaria “espalhada” de avião, segundo Eduardo, por Carlos Bonfim ou a seu
mando: “Ouvi falar sim. Ouvi falando sim, diz que ele não podia fazer de carro, a cavalo,
que ele mandava os próprios colegas dele fazer, eles faziam de avião.” E os resultados da
limpeza teriam sido imediatos, como nos conta entusiasmado Eduardo Santos:

“Foi ótimo. A gente logo, logo viu o resultado. Ele veio aqui fez o trabalho, fechou e falou com nós
que logo, logo a gente tinha o resultado. [Ele fez] uma limpeza. Ele veio numa moto, rodou toda a área
e fez uma limpeza na área.”

É importante observar que os meios utilizados por Carlos Bonfim, o avião, e os do


curador a serviço dos quilombolas, a moto, para atacar e contra-atacar com as armas da
feitiçaria são símbolos típicos das sociedades industriais contemporâneas. Isso atesta, mais
uma vez, não haver antagonismo entre feitiçaria e modernidade.
Em meio ao processo de anulação da feitiçaria do fazendeiro, alguém, não
identificado, “enviou” um feitiço para Eduardo Santos, que passou mal mas, felizmente, foi
salvo pelo senhor Andrelino Xavier. A mesma sorte não tiveram os seus outros dois
companheiros que estiveram à frente dessas providências mágico-religiosas para anular a
feitiçaria de Carlos Bonfim, em 1994.
O senhor Petronílio Francisco dos Santos, atualmente, definha em uma cama após ter
sido acometido por um violento AVC, que acabou completamente com a sua mobilidade
física e mental.
Já Manoel Preto, após ter cessado o conflito com o fazendeiro Carlos Bonfim em Rio
das Rãs com a vitória dos quilombolas, teria ido participar de outra frente de luta em defesa
dos seus patrícios negros da Fazenda Batalha, onde nascera. Esta fazenda teria sido uma das
propriedades dos ancestrais de Anísio Teixeira, o famoso educador de Caetité. Pois bem,
quando estava em processo de enfrentamento com os fazendeiros da Batalha, Manoel Preto
fora igualmente acometido de um AVC e viria a falecer tempos depois. Vejamos o relato
pungente de Eduardo:

“Eu lembro Valdélio de nosso amigo Mané Preto, que chamava Manoel do Sindicato, e ele tinha uma
questão sempre na Batalha além de ser dali, e o pessoal conhecia ele como líder do sindicato e entrou
naquela briga com o pessoal da Batalha e a gente viu que ele sofreu uma questão como se fosse um
derrame, mas a gente vê que a questão dele foi mais através de macumbaria. Quando ele veio a falecer
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
268

ele dava menos de um metro e vinte. Era bem alto. Um homem de um metro e oitenta, daí pra frente. E
morreu magro. Nem só magro como encolheu. Ficou encolhido. A gente sabe que aquilo foi obra de
macumbaria. Sem dúvida.
Ele lutava pelo direito da terra com o pessoal da Batalha e ele [o fazendeiro, proprietário da Batalha,
Celso Teixeira] achou por bem, que ele era o líder, [e] castigo ia ter, ele não ligou muito... Ele era uma
pessoa até muito seguro [isto é, sabia se prevenir], mas facilitou.”

Ao final da entrevista com Eduardo dos Santos, ele confessou estar Carlos Bonfim
atualmente morando em Caetité e, hoje, é uma pessoa pobre, apesar de todo o dinheiro
ganho com a indenização milionária feita pelo INCRA com a desapropriação da fazenda
Rio das Rãs, para fins de Reforma Agrária, em 1998. Como se vê, a máxima no universo da
feitiçaria teria se confirmado: “o feitiço voltou contra o feiticeiro”.
Do que foi exposto, pode-se depreender que o discurso da feitiçaria do quilombo de
Rio das Rãs e região é visto como um poder mortal e desconcertante. Ele pode ser, ao
mesmo tempo, uma arma letal e perversa contra pessoas inocentes, mas também uma força
capaz de desmontar o poderio econômico, político e bélico de um fazendeiro como Carlos
Bonfim.
A ambivalência, como vimos ao longo do texto, acompanha os passos da feitiçaria.
Mas, a partir dos diferentes relatos dos personagens e acontecimentos aqui citados, pode-se
concluir que a feitiçaria é também um poder a serviço dos interesses dos negros
quilombolas de Rio das Rãs.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
269

Capítulo V

ESCRAVIDÃO, RELIGIOSIDADE, PODER E O ESTIGMA DA FEITIÇARIA


NO QUILOMBO DE MANGAL/BARRO VERMELHO

Os discursos sobre a meia légua de terras doadas em promessa a Nossa Senhora


do Rosário e os conflitos pelo poder

Há muitos pontos em comum nos relatos coletados na pesquisa de campo sobre a


fundação do quilombo de Mangal. Como se trata de uma história contada exclusivamente
através de narrativas orais, em alguns aspectos não foi possível dispor de dados para se ter
uma conclusão irrefutável, como ocorre igualmente com o uso de outras fontes, o que nos
obrigou preencher os vazios com inferências e hipóteses para explicar certos fenômenos.
Em outras situações, havia abundância de informação, porém, os relatos se chocavam em
aspectos ou apresentavam versões antagônicas, mostrando haver divergências
incontornáveis entre os narradores: as incongruências foram mais acentuadas quanto à
fundação do quilombo e, mais especificamente, quando e em que circunstância teria
chegado ao Mangal a imagem de Nossa Senhora do Rosário, a padroeira do quilombo.
As divergências não se referem apenas aos detalhes de datas, locais dos
acontecimentos ou mesmo aos personagens envolvidos. Os quilombolas divergem nos
conteúdos narrados e descrevem acontecimentos completamente diferentes entre si. Por
essa razão, vale a pena antecipar a conclusão óbvia a que cheguei: as discrepâncias de
narrativas sobre a história do Mangal, especialmente quanto à chegada da santa, envolvem
interesses contrários.
As narrativas sobre a história do Mangal são importantes nesta parte do Capítulo, em
virtude das acusações de feitiçaria contra os mangazeiros estarem intimamente associadas à
constituição do quilombo no século XIX. É o enredo desse processo que vou procurar
descrever a seguir.
A fuga de escravos no período colonial é um dado que converge na maior parte dos
relatos sobre a formação dos quilombos da região do Médio São Francisco. A informação
de que a maior parte dos antigos habitantes do pequeno povoado negro do Mangal não foi
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
270

de escravos, coincide com as narrativas verificadas em Rio das Rãs e em outras formações
quilombolas da região.
Duas hipóteses podem ser aventadas para se entender a dualidade escravos/homens
livres na formação do quilombo: os escravizados serviram como mão de obra da “fazenda
Mangal”, antes de se constituírem em uma comunidade de homens livres; segundo, com a
abolição de 1888, os negros tornaram-se livres, embora continuassem residindo dentro da
fazenda Mangal. Pelo menos é este o sentido da narrativa do senhor Isauro Lobo dos Santos
(78 anos):

E – Então os negros do Mangal foram escravos?


Isauro Lobo dos Santos – Foram. Teve escravo. Os mais velhos que chegaram e
encontraram aqui foi cativeiro.
E – O pai do senhor, a mãe do senhor ou avô do senhor?
ILS – Não esses não.
E – Por quê?
ILS – No tempo do cativeiro ela só tinha minha avó. Ela não tinha fio ainda.
E – Avó por parte de pai ou de parte de mãe?
ILS – De parte de mãe.
E – Então a avó do senhor de parte de mãe foi escrava?
ILS – Foi. Só que não saiu pra lugar nenhum. Ficaro aqui mermo. Fazeno trabalho
aqui nesse terreno, mas não sairo. Saiu daqui parece umas três pessoas. Já tava já...
E – O senhor fala sair é ser vendido pra fora? É isso que o senhor está falando?
ILS – Foram. Foram vendido lá pra São Paulo.

A conjectura proposta pelos antropólogos Messeder e Nascimento para a formação do


Mangal tem uma sutil e importante diferença da narrativa do senhor Isauro; vejamos: “A
memória da comunidade de Mangal reconhece estarem na sua ascendência antigos escravos
das fazendas estabelecidas na região para criação extensiva de gado.”414
Observe que os autores afirmam ser a ascendência dos “mangazeiros” de escravos das
“fazendas estabelecidas na região”. O que não significa dizer que os negros do Mangal
tenham sido escravizados no território que eles passaram a controlar e onde vivem.

414
MESSEDER, Marcos Luciano Lopes, NASCIMENTO, Marco Tromboni de S. Relatório de Identificação
da Comunidade de Mangal. Fundação Cultural Palmares. Salvador: Digitado, agosto de 1998, fls. 18.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
271

Oposta à interpretação do senhor Isauro, assim como a dos citados antropólogos, a


dona “Celestina afirma não ter havido escravos no Mangal: ‘Aqui ninguém nunca foi
escravo’”415

Isauro Lobo dos Santos

Embora a pesquisadora Sandra Oliveira tenha acolhido em sua dissertação de


mestrado esta interpretação de dona Celestina, a autora não tem convicção de ser esta
hipótese a que melhor explica esse aspecto da história do Mangal, contudo reconhece serem
contraditórios os depoimentos sobre o assunto. Na dúvida, termina aceitando não ser
despropositado pensar que os “mangazeiros” fossem livres em meio à escravidão que

415
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de. De Mangazeiros a Quilombolas: terra, educação e identidade em
Mangal e Barro Vermelho. Dissertação defendida no Mestrado de Educação da Universidade do Estado da
Bahia – UNEB, 2006, p. 41.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
272

reinava nas vizinhanças, pois outros depoimentos coletados “nos permite especular sobre a
possibilidade de existência de um tratamento diferenciado para os negros do Mangal...”416
Como vimos no Capítulo I, na história de constituição do Mangal, o nome do Capitão
João Duque é mencionado como o fazendeiro que se dizia proprietário das terras ocupadas
pelos mangazeiros desde o início do século XIX.
O fato de serem conhecidos em toda a região com o gentílico de “mangazeiro”, isto é,
com uma identidade própria, reforça a hipótese de não terem sido escravos de João Duque,
como defendeu dona Celestina, embora este tratamento tivesse um sentido aviltante por
estar associado à acusação de serem os “mangazeiros” “perigosos feiticeiros”. De todo
modo, essa designação indicaria ter o grupo, de fato, o status de autonomia na relação com
os fazendeiros escravistas da região, inclusive na época em que o capitão João Duque os
considerava “agregados”.
A opinião da jovem liderança João Conceição dos Santos (29 anos), de a procedência
dos habitantes do Mangal ter sido Barra do Rio Grande, parece estar se referindo
especificamente à parentela dos Lobo, à qual o depoente pertence, que teria, de acordo
como outros relatos, vindo de localidades próximas ao atual território do Mangal, como
ocorreu na formação da maior parte dos quilombos na região, inclusive em Rio das Rãs.
A hipótese de os negros que fundaram e nomearam o povoado do Mangal não terem
sido escravos do capitão João Duque, portanto, é lógica e coerente.
A doação de uma légua quadrada de terras aos mangazeiros em um determinado
momento de sua história foi outro acontecimento importante na constituição do Mangal. E
as versões são também conflitantes. Todos os depoentes concordam que uma mulher
chamada Gertrudes doou as terras aos mangazeiros para cumprir uma promessa feita a
Nossa Senhora do Rosário. As principais divergências se referem às motivações pelas quais
Gertrudes fizera a doação e a quem ela doara as terras.
Na versão do senhor Beatriz Martins dos Santos (77 anos), o capitão João Duque teve
um romance com uma mulher negra da família Maria do Carmo, considerada uma das
fundadoras do povoado negro do Mangal. Desse romance nascera uma menina de nome
Gertrudes. O senhor Beatriz, que se diz descendente dessa família, insinua que o capitão
engravidara sua própria filha. Vejamos o depoimento dele:

416
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de, p. 41.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
273

[Como o capitão João Duque era adivinho] “Disse que viu um menino chorar dentro de casa, aí ele
levantou e foi lá, ela [Gertrudes, filha dele] tava dormindo e o menino chorou na barriga dela. Aí ele
falou assim: ‘ Óia, você vai ser divinhão que nem eu, mas você não cria’. E não criou mesmo.
O menino. Que tava na...[barriga de Gertrudes]
Que a Gertrudes era filha do Capitão João.
Ela ganhou o menino, mas não criou.
Porque ele falou... Se ele era divinhão e disse que ele não criava. Aí se aborreceu. Se aborreceu e veio
embora. Chegou aí, [o capitão João] tirou meia légua de terra daí da baixinha donde ta fazendo essas
casa. Daí lá em cima na ponte.
[Deu] Pra ela. Pra fia.[filha]
É. Falou pra ela... Que a mãe dela era daqui desse lugar. [O capitão João] Disse: ‘Toma. Isso aqui é pra
você e sua família’. “E com isso, quando ela ganhou esse menino o menino morreu e ela passou a mão
e soltou essa escritura na mão não sei de quem e ela sumiu nesse mundo pros lado das Lavra e por ali
morreu.”

Será que o desgosto do capitão João, neste relato do senhor Beatriz, estava
relacionado ao fato de ter engravidado a própria filha? Caso seja isto que o depoente quer
transmitir, a doação da terra à negra Gertrudes seria um gesto de arrependimento ou para
expiação dos pecados cometidos, pois, além de engravidar a filha, ele jurara que o filho não
cresceria, mesmo sendo um predestinado na arte de adivinhação.
Gertrudes, por sua vez, teria razões para doar parte das terras recebida à sua família
Maria do Carmo, na interpretação do senhor Beatriz?
Está implícito na interpretação do senhor Beatriz que o capitão doara a meia légua de
terras a Gertrudes e sua família como um ato de arrependimento por ter cometido o incesto.
Gertrudes doara as terras à santa igualmente arrependida com o acontecido, mesmo que
tenha sido forçada a se relacionar com o próprio pai.
A versão de incesto envolvendo o capitão João e sua filha Gertrudes é insinuada por
dona Clara (falecida em 2006 com 93 anos) em depoimento prestado a Sandra Oliveira. É o
que se pode inferir do seu depoimento: “ ‘Ai, eu nem sei minha irmã, ninguém num pode
nem conversá, num sabe? (...) Pois é, ontonce, ele bulia com ela [Gertrudes] (...) Capitão
João foi quem fez a lezêra cum ela. Ela é parente desse povo aí, Isaro, tudo, tudo, tudo.’”417
O senhor Isauro Lobo dos Santos afirma que o capitão João Duque era um adivinho,
porém não explicita a relação incestuosa, ainda que deixe uma pista quando afirma “ele
[capitão João] acho que encostou [namorou]...”

417
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de, p. 55.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
274

Beatriz Martins dos Santos

Relendo a sua fala, fica a impressão de que a indecisão do senhor Isauro em


reconhecer o incesto esteja relacionado ao fato de Gertrudes ser de sua parentela. Mas,
também pelo fato de que o reconhecimento do incesto no ato de fundação não deixa de ser
embaraçoso para a história do quilombo.

“Mas ele [capitão João] adivinhava.


Mas fazia tudo por cabeça dele.
Aí depois que ele dueceu, que foi pra Barra ele fez o documento do terreno. Não dividiu. Ele só tirou
um pedaço de terra que era pra uma fia [Gertrudes] que ele tinha arrumado aqui. Com uma dona
[negra] aqui.
É. Que era prima da minha avó essa nêga. E ele acho que encostou a...
Então arrumou a fia. Bom aí quando ele... Já deixou os documento tudo feito.”

Na versão do neto do senhor Isauro Lobo dos Santos, João da Conceição dos Santos,
desgosto e reprovação motivaram a doação das terras. O capitão João Duque ficara
chateado por sua filha ter sido engravidada por um escravo. Nesta versão, pergunta-se por
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
275

que, nesse caso, a reação do capitão João deveria se voltar contra o escravo e não para punir
a filha. Vejamos o depoimento de João Conceição dos Santos:

“A filha do Capitão João [era] uma mulher chamada Gertrudes. Ela doou... Essa Gertrudes era filha do
Capitão João com uma negra. Era filha do Capitão João e ela se envolveu com um escravo. Aí o
Capitão foi embora, por conta da filha dele se envolver com um escravo e largou tudo lá com a filha.
Aí a filha ficou um tempo, um período lá, foi embora, doou essa parte da terra pra Santa e a outra ela
vendeu.”

O senhor Isauro diz que o capitão João Duque, depois desses acontecimentos, teria
adoecido e se mudado para a Barra do Rio Grande, sua terra natal, que no século XIX era
das mais importantes vila do Médio São Francisco. Ao retornar a Barra, logo falecera. A
maior parte de suas terras teria sido entregue aos filhos (legítimos) Osório e Artur. Mas, no
momento da partilha, os filhos do capitão João não se entenderam e Osório terminou
matando o irmão Artur. Eis o relato:

“Então aí eles quando veio de lá quando passou os tempo eles fôro dividir o terreno e o gado. E aí eles
viero partino do Jatobá. Da Barra. Começaro partir a fazenda da Barra. De lá viero praqui ali eles... O
Jatobá ali embaixo. Fica lá por conta de Paratinga era dele também que ele era quem mandava. Lá eles
partiro o gado tudo. Os dois irmão. Viero de lá. Quando eles acabaro de partir o Jatobá viero praqui.
Pra essa fazenda aqui.
E os povo... Quem morava aqui, morava tudo aqui. Não mudaro não.
Aí eles viero partir o gado. Começaro a partir o gado. (...) Aí depois que eles acabaro de partir o gado
todo sobrou um boi. Vá que o Artur ferrava com dois ferro.
Eles ferrava com dois ferro... O Osório ferrava com um A sozinho e o Artur ferrava com dois A. (...)
Fôro dividir o gado, partiro tudo, depois de partido sobrou um boi na partia. Aí o Osório pediu o Artur
o boi. Porque ele vinha tendo dois gado na frente dele. Toda laçada que dava no curral, ele ferrava dois
gado e o outro só ferrava um. Então sobrou esse boi ele pediu ele. Ele pediu ele o boi, ele disse: ‘Não.
Eu não posso dar não’. Aí começaram demandar. Aí o Osório matou o irmão.” (Isauro Lobo dos
Santos, 78 anos)

O capitão João Duque, por ser um adivinho, teria registrado em seu testamento a
previsão de que o seu filho Artur seria assassinado pelo irmão Osório; por isso mesmo ele
fizera constar no texto testamental que a parcela dos bens pertencentes a Artur ficaria
automaticamente com a nora Neném, que nem chegara a se casar com seu filho:

“O pai já deixou notado que o Artur ia casar com uma filha da Barra. Chamava-se Dona Neném.
Depois que o Osório matou o Artur, já ficou assinado no papel no documento do Capitão João, como
viúva. Ia casar com o fio [filho] dele. Mas ela já ficou seno viúva, a Dona Neném.”
“Acho que já tava começando encostar, namorar mesmo.”
Aí já ficou tudo notado como o irmão tinha que matar o outro e ela Neném que era herdeira do Capitão
João.” (Isauro Lobo dos Santos)
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
276

Com a morte do capitão João Duque, a fazenda Mangal passa a ser administrada por
herdeiros que não reconhecem os mangazeiros como tradicionais ocupantes de um território
onde eles estão desde o século XIX.

Os desentendimentos sobre a chegada da imagem de Nossa Senhora do Rosário


ao Mangal: religiosidade e luta pelo poder

A importância de Nossa Senhora do Rosário no quilombo do Mangal não está restrito


ao episódio nebuloso envolvendo a doação de Gertrudes de meia légua de terra aos
mangazeiros. Outra polêmica ainda mais importante – por se tratar de uma disputa política
entre as principais parentelas de Mangal – está relacionada à chegada dessa santa ao
quilombo: quem teria trazido a imagem de Nossa Senhora do Rosário para o quilombo do
Mangal?
Os relatos relacionados à chegada da imagem da santa não descrevem com precisão
uma data, mas são todos coerentes e ricos em inventividade. Durante a minha estada em
Mangal, por quase um mês, entre abril e maio de 2009, conheci pelo menos quatro
diferentes narrativas sobre o tema.
As divergências entre os relatos talvez representem a faceta visível da disputa política
e simbólica envolvendo, sobretudo, as duas parentelas mais fortes do quilombo, os Gomes
e os Lobo. Cada um dos contendores procura transmitir alguma verdade concernente à sua
posição no mundo social, no sentido observado por Vansina, de considerar os relatos orais
um instrumento de construção da realidade: “Quase em toda parte, a palavra tem um poder
misterioso, pois palavras criam coisas.”418 A dimensão de poder nas narrativas orais é
também salientado por Le Goff, quando ressalta que “a memória coletiva é não somente
uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder.”419
No exemplo de Mangal, portanto, não existe uma só verdade, porque as verdades que
se quer enunciar através dos relatos sobre o passado fazem parte e são instrumentos de
afirmação de poder. Como não é possível estender a reflexão neste momento sobre estas
questões que envolvem método e teoria das narrativas orais, resta a opção de mostrar as

418
VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História da África –
metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, pp. 157-179, p. 157.
419
LE GOFF, Jacques et. ali. História e memória. 2.ed. Campinas: Editora Unicamp, 1992, p. 476.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
277

divergentes narrativas sobre a chegada da santa ao quilombo, e tentar argumentar sobre o


significados desses desencontros entre os Lobo e os Gomes.
Na versão da chegada da imagem de Nossa Senhora do Rosário ao Mangal, segundo
o senhor Beatriz Martins dos Santos, um cidadão de nome Benedito Caboclo, bisavô do
senhor Isauro Lobo dos Santos, teria sido convocado para a Guerra do Paraguai e, durante a
refrega, encontrado a imagem da santa e com a mesma firmara um compromisso.
Essa maneira de explicar a chegada da santa ao Mangal, isto é, através de um valente
combatente que encontrara a imagem no campo de batalha não é despropositada. Vimos no
capítulo III ser muito provável que pessoas dessa região onde fica situado o quilombo de
Mangal tivessem sido recrutadas para a Guerra do Paraguai na segunda metade do século
XIX. O achado da imagem de Nossa Senhora do Rosário ocorrera, nessa versão, em meio a
uma batalha, conforme o relato do senhor Beatriz:

“E ele chegou num canto e sentou num lajedo. Aí ele achou... Sentou cansado... E acho que as coisa
quando tinha que acontecer, né... Que ele sentou, que olhou... A Santa! Ele ficou olhando... Vou
panhar essa Santa. A pedra já tava escrita a marcação das reza, quando era o dia de rezar. O dia santo
dela. Já tava escrito na pedra. Ele leu aquilo tudo direitinho, que ele sabia ler, leu. Aí tava escrito em
cima: ‘Nossa Senhora do Rosário’”.

O depoente prossegue o seu relato dizendo que Benedito Caboclo, ao retornar ao


Mangal depois da guerra, tratou de construir uma capela de casca de Pau-D’arco para
abrigar a imagem. Ele teria também procurado alguém no Mangal que soubesse as suas
ladainhas e se dispusesse a cuidar da santa. Como não encontrara ninguém em sua família
com tais requisitos, terminou entregando a imagem de Nossa Senhora do Rosário para dona
Antonia (ou Tontonha, como era conhecida), que é uma das mais antigas descendentes da
família dos Gomes:

“Que era mais experiente, que sabia rezar e aí que ela ficasse, tomasse conta da Igreja com a Santa. Aí
ela ficou agino, rezano. Aí foi quando ela morreu, aí ela deu pra Bertulina. Ela deu a chave: ‘Ói aqui a
chave, oi já num tou mais...’” (Beatriz Martins dos Santos, 77 anos)

A versão de João Conceição dos Santos (28 anos), liderança ativa da família dos
Lobo, repete o fundamento básico do relato do senhor Beatriz – o de que Benedito Caboclo
teria achado a imagem da santa –, mas o seu difere em alguns pontos importantes da versão
anterior. Por exemplo, Benedito Caboclo teria sido escravo, informação que o senhor
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
278

Beatriz nega. Além disso, e essa parece ser a diferença mais importante, João dos Santos
diz que Benedito Caboclo teria feito a promessa antes de ir para a guerra, sugerindo,
portanto, que pudesse ter encontrado a santa ainda quando se encontrava no território do
Mangal, o que não está em conformidade com a narrativa do depoente anterior. Vejamos o
relato de João dos Santos:

“Esse escravo [Benedito Caboclo] foi uma das pessoas que iam pra guerra e quando ele ia pra guerra
ele achou uma Santa e pôs dentro da capanga. Aí ele fez uma promessa pra ela. Se ele fosse pra guerra,
lutasse e voltasse ele construía uma igreja, uma capela. Aí ele foi conseguiu que ele lutou, voltou,
chegou sadio e construiu a capela. A terra foi doada pra Santa, Nossa Senhora do Rosário.”

O senhor Albertino Lobo dos Santos (75 anos), o segundo mais velho da família dos
Lobo no Mangal, pela sua idade e por pertencer a uma parentela forte dentro do quilombo,
é um personagem importante.
Ele é conhecedor do significado de Nossa Senhora do Rosário para a cultura dos
quilombolas, a padroeira do Mangal, e, certamente, deve estar informado sobre as histórias
que se conta no quilombo sobre a chegada da santa. Daí o significado do seu relato, por
estar em completo desacordo com os depoentes anteriores, que são seus parentes
consanguíneos. João dos Santos é sobrinho-neto e o senhor Beatriz, além de primo, se
coloca abertamente como membro da família dos Lobo, com a intenção de provocar e se
confrontar com os Gomes.
Vejamos, portanto, o que o senhor Albertino Lobo dos Santos nos conta a respeito da
chegada da imagem da santa ao Mangal:

“Moço, essa Santa, foi um bisavô nosso que trouxe de lá da Lavra [Diamantina].
A Lavra fica pra cá. As Lavras.
Não viu falar nas Lavras?
Cá na Bahia. Que tinha sempre o garimpo que o pessoal véio falava.
Meteu essa briga por lá e teve esse fogo e teve um negócio por lá, de forma que essa Santa, ele fez
tudo, mas com ela na capanga.
Chamava Julio Masceno, da Ponta D’Água.”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
279

Albertino Lobo dos Santos

De acordo com o depoimento do senhor Albertino, a imagem de Nossa Senhora do


Rosário teria sido achado em Lavras, na Chapada Diamantina, e o autor da façanha seria
Júlio Masceno e não Benedito Caboclo. E, ao invés de um campo de batalha, a santa viera
dos garimpos. É importante observar que esse relato é igualmente compatível com a
história regional, na medida em que o Médio São Francisco fora usado nos séculos XVIII e
XIX como corredor que movimentou escravos e negros livres para a exploração das minas
da Chapada e de Minas Gerais. Adiante o depoente, senhor Albertino Lobo dos Santos,
completa a narrativa confirmando que a imagem teria sido entregue a [Antonia] Tontonha
Gomes:

“Sim. Aí chegou essa Santa, veio não por aqui. Saiu por cima da cabeceira do Rio e veio se parar aqui.
Ele era filho daqui. De forma tal que chegou aqui, o pessoal era bobo, não tinha quem sabia [rezar]
nera. Quem sabia essas coisas era Tontonha, uma mulher que chamava Antonia, mas o apelido era
Tontonha. Ele deu...”

Os relatos até aqui apresentados, embora tenham divergências e contradições,


convergem no seguinte dado: a de que o achado da santa teria sido uma obra de um
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
280

indivíduo (Benedito Caboclo ou Júlio Masceno) da família dos Lobo. Não importa se a
santa tenha sido achada nas Lavras ou na Guerra do Paraguai, mas os personagens desse
grande feito simbólico teriam sido os Lobo.
Mas, há outro relato que diverge dessa linha. Trata-se do depoimento do senhor
Arnaldo Gomes Pereira, pai das principais lideranças políticas do quilombo, e o ancião
mais velho da família dos Gomes. Eis o que ele nos diz sobre a chegada da imagem de
Nossa Senhora do Rosário no Mangal:

“Contam os velho que foi um sinhô Zé Estevo que trouxe de Salvador. De primeiro se chamava Bahia,
nera? Bahia, né?
Primeiro veio assim, disse que de tropa pela cabeceira do Rio [São Francisco]. E chegou e fez [deu de]
presente aqui essa Nossa Senhora aqui pra igreja.
Num sei do onde [Zé Estevo] era não. Morava aí pro lado de cima da Gameleira [distrito de Sítio do
Mato, ao lado do Mangal]. Assim contano os véio, né. Num foi do meu tempo não, né.
Mais ou meno é eu acho que [o presente da imagem] era amizade que tinha, né. Eu penso que era isto,
né?” (Arnaldo Gomes Pereira, 74 anos)

Mais adiante em seu depoimento, o senhor Arnaldo Pereira confirma que imagem da
santa teria mesmo sido entregue aos cuidados de sua bisavó, dona Antônia [Tontonha]
Gomes, que é o personagem de consenso em todos os relatos.
Quando o provoquei a comentar sobre as outras versões da chegada da imagem da
santa, ele foi enfático:

“Não. Isso é história.


Essa outra história é errada.
É errada. Essa outra história é errada, que eles inventa muita coisa, né?
Agora, eu to pelo dito dos velho.” (Arnaldo Gomes Pereira)

É importante comentar alguns elementos do relato do senhor Arnaldo Pereira.


Primeiro, a comunicação entre Salvador e o Oeste de Bahia era de fato frequente. No
capitulo I procurei mostrar que, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, as expedições
saídas de Salvador para a exploração do Oeste eram estratégicas para os exploradores
coloniais pelo potencial que a região tinha como frente de criação de gado bovino. O relato,
portanto, tem coerência histórica. Segundo, no período colonial e imperial havia interesse
da Igreja Católica em expandir para o interior o trabalho de evangelização; assim, o
presente da imagem de uma santa como Nossa Senhora do Rosário, ícone de irmandades
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
281

negras em Salvador e Recôncavo, seria compatível com o perfil de uma comunidade negra
como a de Mangal.

Arnaldo Gomes Pereira

A conclusão inicial que se pode chegar é a de que todos os relatos sobre a chegada da
santa ao quilombo possuem coerência interna e compatibilidade com acontecimentos
históricos regionais. Mas, um dado que enfraquece as versões dos membros da família
Lobo é o seguinte: por que a imagem da santa teria ido parar justamente nas mãos de uma
pessoa proeminente da família Gomes, ou seja, dona Antonia [Tontonha] Gomes, a bisavô
do seu Arnaldo Gomes Pereira?
De acordo com meus cálculos, Antonia [Tontonha] e Marçal Gomes, sempre citado
como o mais antigo casal da parentela dos Gomes, teriam se casado em torno da metade do
século XIX, dando início, possivelmente, à fundação do quilombo do Mangal. Todas as
informações coletadas indicam também que os cuidados com a capela e a imagem de Nossa
Senhora do Rosário, desde a fundação do quilombo, foi de responsabilidade exclusiva da
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
282

referida família, conforme foi descrito por dona Amélia Gomes Pereira, sobrinha do senhor
Arnaldo Pereira e atual zeladora da capela:

“A primeira foi Antonha [Antonia Gomes].


A segunda foi Bertulina. Era filha dela.
O terceiro foi Pedro Gomes Pereira [pai de dona Amélia Gomes Pereira]
[A quarta foi] Laurinda Gomes Pereira.
Minha irmã, filha dele [Pedro Pereira].” (Amélia Gomes Pereira)

É reconhecido pelas duas parentelas, os Gomes e os Lobo, que os cuidados com


Nossa Senhora do Rosário e a sua capela são uma primazia da família Gomes, há pelo
menos 160 anos. A dona Amélia reafirma isso:

“Sempre é minha família que toma a frente, né. É quem toma a frente de tudo aqui, das reza. Quer
dizer que tem uns. Uns morre, outros toma a frente. As vez não tem quem tome a frente. Aqui se eu
não tomar a frente aqui pra rezar as novena do Rosário e as reza dos festejo, fica parado que não
tem...” (Amélia Gomes Pereira)

Esta mesma informação é confirmada pelo senhor Beatriz Martins dos Santos: “A
chave [da capela] é parte dessa família Gomes.”
A família Gomes não é responsável apenas pelos bens físicos de Nossa Senhora do
Rosário – a capela, os móveis e imagem da santa –, ela é também detentora da memória das
rezas, que é o instrumento fundamental para a preservação do patrimônio religioso. Dona
Amélia, além de ser a chaveira/zeladora da capela de Nossa Senhora do Rosário e preservar
os seus bens físicos e imateriais, guarda também a coroa de ouro da santa.
Por essas razões, é difícil entender como foi possível que esse patrimônio cultural,
que envolve Nossa Senhora do Rosário, fosse entregue aos Gomes, conforme argumenta os
Lobo, simplesmente por seus antepassados não saberem rezar.
Acrescente-se, ainda, o seguinte: tudo indica que os mais proeminentes personagens
da família dos Lobo, como o citado Benedito Caboclo e outros antepassados desta família,
nem nasceram no Mangal. Sendo verdadeira essa informação, as famílias Gomes e Sá, que
o senhor Beatriz prefere chamar família Maria do Carmo, de quem descende a negra
Gertrudes, que doara as terras aos mangazeiros por promessa a Nossa Senhora do Rosário,
seriam as mais antigas do Mangal. A vinda dos Lobo para o Mangal teria se concretizado
através do casamento de um antepassado dessa família com uma mulher da família Maria
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
283

do Carmo, de acordo com o senhor Arnaldo Gomes Pereira: “Esses Lobo que nem o pai de
Isauro, eles veio de Santo Onofre. Agora a mãe dele é fia daqui.” A mãe do senhor Isauro
era uma mulher que se chamava Constância Maria do Carmo. O senhor Beatriz Martins dos
Santos confirma também que, no início de Mangal, só havia duas famílias: “Era duas
família de gente. A famia Gomes e a famia Maria do Carmo.”
Portanto, a versão dos Gomes parece a mais consistente.
O reconhecimento do senhor Beatriz de que os Gomes e os Sá (que ele nomeia como
família Maria do Carmo) sejam os fundadores do quilombo não significa que ele se dobre
pacificamente à hegemonia política dos Gomes no quilombo. Muito pelo contrário. Em sua
entrevista, ele faz questão de renunciar ao seu parentesco com a família Maria do Carmo
para se assumir como Lobo, como uma forma de confrontar o peso político dos Gomes
dentro do Mangal, já que os Gomes controlam a capela e os cuidados com Nossa Senhora
do Rosário, comandam a Marujada, dirigiram a Associação dos Quilombolas do Mangal
por cinco mandatos consecutivos, desde a sua fundação em 1998, e presidem a maioria dos
festejos católicos, entre outros espaços de poder.
Para acentuar as tensões envolvidas nas relações entre os Gomes e os Lobo, o senhor
Beatriz, como aliado desta última, lembra, maliciosamente, que a negra Gertrudes, filha do
capitão João, que doara em plena escravidão meia légua de terra aos mangazeiros para
cumprir uma promessa com Nossa Senhora do Rosário, seria descendente da parentela de
Maria do Carmo.
Analisada a história do Mangal dessa perspectiva, segundo o ponto de vista do senhor
Beatriz Martins dos Santos, os Gomes deveriam ser considerados, de fato, “agregados”.
Vejamos o seu raciocínio:

“É que é [na história do Mangal] duas família [Gomes e Maria do Carmo]. Quer dizer que eles aqui
não tem parte nessa parte. A parte que era da menina [Deltrudes] era da família Maria do Carmo, ela
doou pra família dela.
É. Eles é herdeiro nosso. Eles [os Gomes] é agregado nosso. Porque a família Maria do Carmo é nossa.
E eles é Gomes. É de outra parte.” (Beatriz Martins dos Santos, 77 anos)

Mais adiante, o senhor Beatriz pondera que essas disputas não fazem mais sentido
nos dias atuais e, portanto, é um assunto que deve ser esquecido. Mas o fato de manter na
memória essa versão revela que ele não quer mesmo esquecer.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
284

Constância Maria do Carmo

Mas, enquanto o senhor Beatriz argumenta que a doação de Gertrudes da meia légua
de terra confere aos seus parentes a prioridade pelas terras primevas do Mangal, os Gomes
contra-atacam com a revelação de um aspecto sutil dessa história da doação. Vamos
conferir o depoimento do senhor Egídio Gomes Pereira sobre o assunto:

“E aí ela [Gertrudes] doou pra Nossa Senhora do Rosário, que eu não sei nem onde essa mulher foi
parar. Que disse que essa mulher era fia do Capitão João com uma negra. E então disse que deu essa
terra pra ela e ela doou pra Nossa Senhora do Rosário.” (Egídio Gomes Pereira, 61 anos)

O depoente confirma que a terra teria sido doada por Gertrudes, a mulher negra filha
do capitão João que se engravidara do próprio pai. Para purgar o pecado cometido, o
capitão João deixou, em seu testamento, uma parte de suas terras para sua filha Gertrudes e,
possivelmente, mãe do seu filho bastardo. Como essa Gertrudes era uma negra do Mangal,
não se sabe se forra ou ainda escrava, ela teria feito a doação de meia légua de terra a Nossa
Senhora do Rosário, para atenuar o seu pecado, mesmo que tenha sido forçada a fazer sexo
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
285

com o próprio pai, o que é o mais provável. Mas, o que é importante distinguir no
depoimento do senhor Egídio é que a doação teria sido feita à santa e não à família de
Gertrudes, como argumentou o senhor Beatriz.
Neste sentido, cairia por terra o ponto central do raciocínio deste, que concluiu serem
os Gomes seus “agregados”. Leve-se em consideração também o fato de os Gomes serem
os zeladores da santa e chaveiros da capela; isso os autoriza, portanto, a se responsabilizar
por todos os bens simbólicos e materiais de Nossa Senhora do Rosário, inclusive as suas
terras.
As disputas políticas e simbólicas entre as parentelas dos Gomes e dos Lobo do
Mangal confirmam serem as identidades sociais alicerçadas também na linguagem do
parentesco. A relação de parentesco consanguíneo ou por afinidade, muitas vezes
consideradas frágeis e evanescentes por nem sempre expressarem uma concretude biológica
comprovável, mostra, assim, a sua extraordinária força simbólica e fonte inesgotável de
poder.

A religiosidade no quilombo de Mangal

A organização cultural do quilombo gira em torno dos calendários religiosos que


revivem os costumes antigos dos antepassados, através de eventos dedicados aos santos
católicos e aos deuses de procedência africana.
Mas as crenças católicas no Mangal estão mais próximas a de um catolicismo
heterodoxo, que a literatura classifica como “catolicismo popular”, pois se refere a práticas
nem sempre em conformidade com as tradições rígidas de Roma. Carlos Alberto Steil
refere-se às benzedeiras e rezadeiras como modalidades desses leigos que praticam o
catolicismo à revelia da Igreja Católica oficial – o “catolicismo popular tradicional”.
Segundo esse autor:

“Seu poder não advém de uma delegação institucional, como acontece com o poder do clero oficial,
mas de um reconhecimento que é produzido pela própria comunidade ou grupo social no qual radica
suas práticas.”420

420
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura. In. VALLA, Victor Vincent (Org.). Religião e cultura
popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 25.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
286

Observando as experiências dos católicos do Mangal, entende-se melhor o conceito


de catolicismo popular empregado por Steil. As missas são rezadas na pequena capela do
Mangal por solicitação dos fiéis. Chama atenção, por exemplo, o fato de os quilombolas
não fazerem uma distinção rígida entre as suas crenças ancestrais e o culto aos santos
católicos. Vale lembrar, também, que a coroa de ouro421 da imagem de Nossa Senhora do
Rosário é guardada pela zeladora da capela, quando um padre vem à comunidade rezar uma
missa. Os mangazeiros afirmam, sem rodeios, que eles retiram a coroa da santa para que o
padre não roube esse precioso tesouro. A desconfiança dos mangazeiros com os padres,
talvez, seja o exemplo mais ilustrativo do distanciamento entre a Igreja oficial e os
católicos do Mangal.
O calendário das festas religiosas católicas é extenso e cobre uma grande variedade
de santos homenageados: Reis, São Sebastião, Santo Antonio, São João, Nossa Senhora do
Rosário e Nossa Senhora da Conceição. Além de homenagear os santos católicos mais
tradicionais, fazem parte da religiosidade dos mangazeiros as manifestações conhecidas
como Marujada e Roda do São Gonçalo, duas expressões lúdicas e religiosas de origem
ibérica.
Como os mangazeiros são os próprios tradutores dessas tradições religiosas, em
grande medida, influenciada pelo catolicismo, o sentido de religião dos quilombolas tem
finalidades distintas das suas motivações originais.
É o caso, por exemplo, da Marujada e da Roda do São Gonçalo, adotados como
rituais para apaziguar os espíritos dos quilombolas falecidos que atormentam os seus
parentes vivos. Porque os quilombolas acreditam que devem compromissos morais aos seus
mortos, eles se sentem no dever de cumprir as promessas que os falecidos não pagaram
quando estavam vivos.
Ao se analisar a dinâmica nos referidos rituais, nota-se que eles representam,
metaforicamente, o modo pelo qual a sociedade quilombola reproduz os seus valores
culturais.
A Marujada não seria apenas uma tentativa lúdica para representar as batalhas navais
portuguesas, conforme as suas versões originais. Do ponto de vista religioso, é uma

421
A zeladora da capela de Nossa Senhora do Rosário, dona Amélia Gomes Pereira, confirmou a existência
dessa famosa coroa de ouro que poucos conhecem no quilombo. Eu pedi autorização para fotografá-la, mas
ela educadamente recusou a solicitação.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
287

performance na qual o quilombola paga uma promessa a Nossa Senhora do Rosário ou


Nossa Senhora da Conceição.

Capela de Nossa Senhora do Rosário

A dança é rigidamente organizada e ensaiada, durante as fases de novenas, para que


seja cumprida à risca e com extrema contrição, pela graça recebida pelo fiel. As
vestimentas usadas pelos marujos são calças e camisas brancas, para pagar as promessas, e
são especialmente preparadas para a ocasião. Os integrantes da Marujada não podem errar
os passos e nem os cânticos, sob pena de comprometer a finalidade da promessa que se
paga, seja por uma graça recebida, seja por uma homenagem a um ente querido falecido.
Neste último caso, a dança da Marujada assume o caráter de um ritual fúnebre. Como todas
as despesas com alimentação e bebida são de responsabilidade dos pagadores da promessa,
o erro ritual invalida completamente o propósito da promessa. Daí a disciplina exigida aos
membros do corpo de dançarinos e cantadores:
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
288

“‘Dança direito fulano, você não tá dançando no ritmo dos outro’. Porque o Marujo tem de pegar o
mesmo ritmo do outro, né. Ele já enfada e tal, então aquela pessoa num... Eu mesmo afastei um. Um
próprio irmão meu. Chegou na igreja ele não quis... Chutou a barritina. A barritina dele caiu ele
chutou. Eu falei, a partir de agora em diante você não vai mais poder ser Marujo. Porque você
desrespeitou a gente aqui dentro da igreja. Aqui dentro da igreja você foi fazer isso. Pronto ele nunca
mais dançou Marujo.” (Martinho Gomes de Sousa, 49 anos, Mestre da Marujada)

Para cumprir à risca a tradição ritual, a Marujada é organizada por um corpo


hierárquico que mantém sob controle absoluto os passos e os ritmos dos vinte e quatro
dançadores. (Ver foto na página seguinte)422 Compõem esta hierarquia o Mestre, o Piloto, o
Careta e o Ração. Cada um tem uma responsabilidade diferente na representação ritual.
O Careta, por exemplo, tem liberdade de tomar qualquer atitude para punir um
integrante da Marujada que tenha cometido um ato considerado incompatível com a
finalidade ritual, inclusive espancar com o seu temido chicote. Do ponto de vista simbólico,
ele representa uma espécie de superego da comunidade quilombola, que define as condutas
e ações consideradas válidas:

“Aquele que não tá fazendo a coisa certa. Aí ele [o Careta] bate. E aquele que...
Com chicote. Com uma taca. Ele tem uma taca. Se aquela pessoa não gostar, aí ele vem onde tá eu [o
Mestre], os outro Marujo tá lá ouvindo, aí nós agora afasta aquele. Aquele não dança mais. Porque ele
não tá concordando com a brincadeira dele, não é?” (Martinho Gomes de Sousa)

A rigidez com que os relapsos são tratados pode dar a impressão de que a Marujada é
uma manifestação sisuda que não comporta risos, brincadeiras e diversão. Ao contrário.
Durante o ritual é exigido muito rigor, porém, terminadas as obrigações todos são liberados
para beber e cair no samba:

“Depois da janta todo mundo vai tirar essa roupa, vai tomar seu banho e agora vai sambar. Brincar no
samba até amanhecer o dia. Depois de manhecer o dia nós torna trocar de roupa e torna ir pra
Marujada. Brinca um pouco, vem pra igreja, despede da Santa e aí desce pra lá pra casa da festa e da
casa da festa nós fica dançando, quando é meio dia nós encerra. Aí vamos almoçar e aí encerrou tudo.
Encerrou a festa. Já é no dia nove.” (Martinho Gomes de Sousa)

422
A fotografia foi gentilmente cedida pela pesquisadora Sandra Nívia Soares de Oliveira.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
289
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
290

A Marujada é uma metáfora que sintetiza diferentes planos da vida social do Mangal,
e é também uma forma de revivência religiosa de antigas cerimônias ancestrais. Como
todos os integrantes do corpo de danças são homens – as mulheres assistem às cerimônias e
dão apoio no preparo da alimentação, após o ritual elas bebem e sambam junto com os
homens –, ela é também uma manifestação que veicula a expressão moral patriarcal do
quilombo de Mangal, e neste sentido, contém uma explícita dimensão de gênero.
O São Gonçalo é outra celebração, de origem católica, que foi adaptada ao perfil
cultural dos quilombolas de Mangal. Ao contrário da Marujada, o São Gonçalo é encenado
exclusivamente por mulheres.
A intenção ritual da Roda de São Gonçalo é apaziguar os espíritos de pessoas
falecidas, que cobram de seus parentes a realização de uma celebração religiosa e festiva
para toda a comunidade. É ritualizado com cânticos religiosos católicos e súplicas para que
o espírito do morto descanse em paz; encerradas as cerimônias religiosas, mulheres e
homens são chamados a cair na festa regada a muita comida, bebida e samba.
A Roda de São Gonçalo é encomendada tanto para pagar uma promessa por uma
graça recebida como também para acalmar o espírito de alguém que esteja perturbando a
vida de um familiar. Para os quilombolas, promessa não cumprida é sinal de que o morto
poderá voltar para cobrar do parente o que não fizera em vida. Os familiares do morto
arcam com todas as despesas da Roda de São Gonçalo, para provar simbolicamente a
continuidade e reciprocidade que as relações de parentesco representam para os
quilombolas. Assim, a Roda consagra também o rigor moral da palavra empenhada, mesmo
depois que o indivíduo falece.
A disciplina na Roda do São Gonçalo é equivalente ao da Marujada. As mulheres
integrantes da Roda são obrigadas a guardar uma vestimenta branca especial, que deve ser
preservada de qualquer impureza que comprometa a sacralidade do ritual. Caso as
componentes da Roda errem no ritmo da dança, na sincronia dos passos ou nos cânticos
previstos em cada cerimônia realizada em torno da capela de Nossa Senhora do Rosário,
todo o ritual será comprometido e o responsável pela encomenda da promessa terá que
repeti-la em outra oportunidade. Como as despesas com alimentação e bebidas são
elevadas, não se deve nem pensar em cometer erros.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
291

Tanto o São Gonçalo quanto a Marujada são formas de religiosidades populares que
foram adaptadas à cultura do quilombo do Mangal, para representar metaforicamente
códigos morais. O sentido de religiosidade presente nas referidas manifestações coloca em
primeiro plano a interdependência e compartilhamento entre os seres humanos e os seus
deuses. A doação que uma família quilombola faz de um boi e de outros animais, para
alimentar a comunidade durante o ritual de pagamento de uma promessa, reafirma o
compromisso daquela família com o grupo social ao qual ela está vinculada. Do ponto de
vista religioso, as duas manifestações, a Marujada e a Roda do São Gonçalo, revelam a
confiança e a crença da comunidade na força do santo que atendeu as súplicas do indivíduo
ou de sua família que se responsabilizaram pelos compromissos com seus mortos.
A retribuição simbólica ao santo, sob a forma de uma oferenda grandiosa e cara,
demonstra o valor que a comunidade quilombola deposita naquela divindade. Dessa
maneira, os santos, os espíritos dos mortos, a comunidade e os fiéis que pagam as
promessas são valorizados nessa forma de religiosidade.
Aldo Natale Terrin não aceita a redução proposta por Durkheim ao considerar que “o
rito religioso desaparece enquanto tal, ou melhor, transfere toda a sua força simbólica para
o social.”423 A concepção que o citado autor defende, a partir dos acréscimos sugeridos por
Mary Douglas, Meyer Fortes e Robert Firth, é que o ritual “tem uma função agregativa e dá
força moral e espiritual, em virtude dessa dinâmica intrínseca pela qual ele tem forte
capacidade de agregação simbólica tomada de empréstimo do mundo religioso...”424 Esse
viés sugerido pelo autor pode ser observado tanto na Marujada como também na Roda do
São Gonçalo.

Os caminhos tortuosos da etnografia para investigar os relatos sobre a feitiçaria


em Mangal

Desde a época do Capitão João Duque, no século XIX, circula em todo o Médio São
Francisco a representação de que o “povo do Mangal é feiticeiro”. Pela maneira corriqueira
como esse atributo negativo permaneceu na sociedade regional e até mesmo em tom de

423
TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004, p.
52.
424
Idem, p. 52.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
292

brincadeira, não me interessei em perguntar a uma pessoa do Mangal como se sentia com
tal acusação.
Após a “descoberta” de que a linguagem da feitiçaria fazia parte do cenário das
relações sociais no quilombo de Rio das Rãs, fui instado por meu orientador a conhecer
outra experiência quilombola em que a feitiçaria estivesse presente. Imediatamente me
ocorreram às referências às famosas lendas sobre os “feiticeiros” do Mangal que circulam
em todo o território quilombola do Médio São Francisco.
Entre abril e maio de 2009, aportei no quilombo do Mangal para realizar a pesquisa
de campo, após uma viagem de barco que durou três horas. A minha expectativa era a de
que o tema da feitiçaria faria parte do “cardápio diário”, durante a minha estada no
quilombo e, mais do que isso, que todos me relatariam os mais ilustrativos casos
envolvendo a feitiçaria para confirmar a fama que o quilombo ostentava. Para a minha
decepção, os quilombolas de Mangal muito pouco falaram de feitiçaria, na maior parte dos
quase trinta dias em que pude observar atentamente a vida social no quilombo.
Em virtude de não encontrar dados consistentes, refiro-me especificamente a relatos
de acusações que confirmassem a fama de feiticeiros imputadas aos quilombolas de
Mangal, já nos primeiros dias pensei em alterar o planejamento inicial de pesquisa, o que
reduziria também drasticamente o tempo de permanência no quilombo.
Mesmo com as referidas dificuldades, resolvi prosseguir. Mas, a cada dia que passava
aumentava o tormento. Os quilombolas não se furtavam em conversar sobre a feitiçaria,
mas faziam de uma maneira completamente diversa daquilo que constatara em Rio das Rãs.
Neste quilombo, a feitiçaria é encarada como um assunto muito sério, o que faz com que as
pessoas não comentem publicamente sobre o assunto, a não ser em tom de galhofa e
pilhéria, porque a feitiçaria pode causar danos à saúde de pessoas, provocar desarmonia em
família, prejudicar a produtividade de uma plantação e até tirar a vida de um animal ou
mesmo de uma pessoa.
O que mais me chateava nessa primeira fase da pesquisa, ao não identificar indícios
de ser a feitiçaria um fenômeno importante na vida social dos quilombolas do Mangal, era o
fato da escolha de pesquisar sobre a feitiçaria não ter sido aleatória. Além de conhecer,
desde o início da década de noventa, as muitas lendas que se contavam sobre os feitos dos
“feiticeiros do Mangal”, havia entrevistado em 2007 uma liderança do quilombo, João
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
293

Conceição dos Santos, que reconhecia a existência da fama, embora esta tivesse prosperado
a partir de preconceitos raciais contra os quilombolas.
Segundo João Santos, imaginava-se fora do quilombo que o saravá – um ritual
praticado às escondidas para cultuar caboclos e orixás – fosse uma modalidade de feitiçaria,
isto é, um ritual com finalidades cruéis. Tanto é que o depoente, ao longo de sua vida,
quando era inquirido fora do Mangal sobre essa religiosidade, negava peremptoriamente:

“Não tinha consciência do que era uma religião e [quando] as pessoas me perguntavam se eu era de
Mangal, eu dizia que não, que eu era de Brasileira, que eu era de Paratinga, pra fugir desse preconceito
que existia. Hoje é tranquilo e eu entendo e se me perguntar se somos terra de feiticeiro, eu vou falar
que sou não tem problema nenhum.” (João Conceição dos Santos, 28 anos)

Antes de chegar ao Mangal, resolvi passar alguns dias na sede do município de


Paratinga. A intenção era recolher informações em um lugar para onde os quilombolas se
deslocam com muita frequência para estudar, trabalhar e se abastecer de gêneros
alimentícios e utensílios domésticos. E os resultados da minha estada em Paratinga – ainda
que não tenham sido extraordinários –, confirmaram as suspeitas de que o imaginário da
feitiçaria fazia parte da vida social dos quilombolas.
Na curta estada de três dias em Paratinga conheci um curador de nome José Judair da
Silva, que nascera no Mangal e residia atualmente em Paratinga. O nosso encontro foi na
residência de dona Argemira Gomes da Silva, mãe de uma moça que estava sendo tratada
pelos encantados de José Judair. A filha de dona Argemira adoecera em Salvador, segundo
o seu relato, após a sua patroa ter lhe enfeitiçado. Voltou para Paratinga com um “encosto
ruim”, nas palavras de Judair, que a tornava violenta e incontrolável. Os encantados
estariam controlando os excessos provocados pelo “encosto” que possuía a moça.
Dona Argemira Silva afirmou também que ela própria tem vidência e se encontra em
fase de desenvolvimento, ou seja, de aproximação e familiaridade com o seu encantado. Ela
se emocionou com a descrição que fez quando do primeiro contato com a “capela de luz”,
que adentrou o quintal de sua casa onde mora, na periferia de Paratinga. Desde então, não
somente acredita na força dos caboclos como também justificou que a presença deles era a
principal proteção contra a feitiçaria. A mesma sorte não tivera o seu pai, Severino Gomes
de Abreu, que morrera de uma “coisa feita”.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
294

No dia seguinte à minha estada em Paratinga, conversei com outra pessoa do Mangal
que lá residia, o senhor Otávio. Este confirmou, sem rodeios, serem os mangazeiros
conhecidos em Paratinga e região como “feiticeiros”. Mas, ele fez uma ressalva de ser
folclore a história de que os feiticeiros do Mangal fossem capazes de parar barco em pleno
Rio São Francisco. Os mais velhos de Mangal, segundo ele, falavam de pessoas capazes de
curar bicheiras em animais, rezar pessoas doentes e até livrar os que estivessem ameaçados
de serem picados por cobra, mas não passava disso.
A passagem por Paratinga, antes de chegar ao Mangal, serviu para aumentar ainda
mais a expectativa de conhecer a experiência dos quilombolas com o discurso da feitiçaria.
Mas, com a simpatia e o trato educado com os visitantes que os caracteriza, os quilombolas
do Mangal, no máximo, se referiam à feitiçaria, com discursos recorrentes para afirmar o
seguinte: a feitiçaria é um ato abjeto e eles não estão envolvidos com essas crenças; as
acusações de feitiçaria contra o povo do Mangal são “lendas” que remontam ao período da
escravidão; os acusadores confundem as antigas práticas de cura adotadas pelos seus
antepassados com feitiçaria; a má fama que os mangazeiros carregam de feitiçaria é uma
atitude deliberada de preconceito pelo fato de eles serem negros. Eis o que alguns dos
entrevistados no Mangal declaram sobre a feitiçaria, após minha chegada ao quilombo:

De acordo como o senhor Beatriz Martins dos Santos, o seu avô Juliano “sempre falava: ‘oh meu fio, o
povo aqui fala que é feiticeiro, mas não é feiticeiro. O povo tem alguma oração que sabe livrar o corpo
pruma coisa e pra outra. Num tem feiticeiro aqui não meu fio’.”

Francisco Gomes Pereira (49 anos) no mesmo sentido argumenta que o povo antigo sabia “rezar de
quebranto, uma dor de barriga, uma dor de dente, uma dor de cabeça, ai criou esse tabu de aqui no
Mangal o povo era feiticeiro. E ai criaram meio mundo de que eu chamo lendas.”

A professora Guilhermina Farias dos Santos (44 anos) aceita que as histórias de feitiçaria no Mangal
são verdadeiras, porém, elas se referem ao passado: “Que antigamente bem que tinha mesmo...”

A professora Clene Farias dos Santos (27 anos) já não é tão enfática em considerar que no passado
houvesse feiticeiros, porém, concorda com a professora Guilhermina ao asseverar que essa fama está
relacionada ao passado: “Ah, às vezes as pessoas mais velhas sabia de alguma coisa [mas] não
deixou...”

O senhor Albertino Lobo dos Santos (75 anos) é mais enigmático e escorregadio quando afirma que
“até hoje tenho essa idade não vi aqui nada.”

O que se pode deduzir das falas dos depoentes é que o imaginário da feitiçaria é uma
construção externa a Mangal. Essa construção seria derivada de uma deliberada confusão
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
295

entre as práticas terapêuticas tradicionais e a feitiçaria, com a intenção de discriminar os


negros do Mangal. Quando os depoentes admitem a possibilidade de o fenômeno ser
verdadeiro, imediatamente eles remetem aos seus antepassados, o que, habilmente, os
isenta de qualquer participação no presente.
Foi esse o cenário que, de um modo geral, prevaleceu nos primeiros dias após a
minha chegada ao Mangal. Daí ter pensado estar a minha hipótese completamente
desfocada.
Mas, com o passar do tempo e muita paciência, foi possível entender a razão para os
quilombolas do Mangal adotarem essa atitude de distanciamento em relação às acusações
de feitiçaria. E me dei conta também de que o discurso da feitiçaria assume, de acordo com
o contexto, diferentes e inusitadas configurações. Com isso foi possível permanecer
confiante de que era possível trabalhar com a hipótese de ser o discurso da feitiçaria em
Mangal operativo e influente na vida social do quilombo.

Clene Farias dos Santos


Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
296

Mais que isso, a feitiçaria no passado foi um importante e contraditório instrumento


de poder e contribuiu para a resistência política dos quilombolas, ainda que isso tenha
representado um enorme sacrifício para todas as gerações que enfrentaram o cerco
simbólico de serem acusados na sociedade regional de “feiticeiros perigosos”, o que era
parte de uma intenção declarada de discriminar os “mangazeiros” por serem “beiçudos”,
“pretos” e, além do mais, “feiticeiros”.

A origem da representação de que o quilombo de Mangal é uma “terra de


feiticeiros”

As acusações de feitiçaria contra os quilombolas de Mangal na região do Médio São


Francisco estão relacionadas a dois fatores distintos, porém, complementares. Em um plano
mais geral e histórico, as acusações remontam à realidade dos africanos e seus descendentes
durante a escravidão. Em outro plano, isto é, com a permanência das acusações de feitiçaria
na atualidade contra os quilombolas, estas estão referidas ao contexto do racismo, com a
intenção de invalidar e enfraquecer os símbolos culturais negros. É o que veremos a seguir.
Durante a colonização no Brasil, notadamente no século XIX em que as fugas de
escravos prenunciavam o esgotamento do sistema escravista, as denúncias de feitiçaria
contra africanos e seus descendentes eram veiculadas na imprensa e repercutidas nas
instâncias legislativas, judiciárias e policiais como um assunto corriqueiro.
Os colonizadores sabiam que a feitiçaria era utilizada para fins perversos e pessoais
como também poderia habitualmente ser usada com objetivos políticos. Além de temer a
feitiçaria, os senhores de escravos reconheciam a força política agregadora das crenças
entre os africanos e seus descendentes.
Francisco Bethencourt, que estudou a feitiçaria em Portugal no século XVI, afirmou
que antes mesmo da colonização das Américas, os portugueses temiam as práticas mágicas
de cunho demonológico que tinham enorme incidência por lá: “A invocação do demônio
era uma prática corrente no século XVI...”425 E a demanda pelos serviços dos feiticeiros
não estava restrita, como se costuma imaginar, às camadas sociais mais baixas da

425
BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da Magia: feiticeiros, adivinhos e curandeiros em Portugal
no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 178.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
297

população portuguesa, ao contrário, a “procura das elites [por trabalhos mágicos] permite-
nos caracterizar melhor a influência e a posição social das feiticeiros...”426
A utilização da feitiçaria pelos senhores escravistas, da maneira ambígua como
ocorreu em Portugal, se verificou igualmente na colonização espanhola da Colômbia, de
acordo com os estudos da antropóloga Juana Camacho Segura: os “poderes [das feiticeiras]
foram temidos e muitas vezes solicitados pelos brancos, mas também usados como
argumentos legais para perseguir e controlar as populações afros e inclusive para eliminar
os praticantes.”427
No Brasil, o discurso da feitiçaria, além de fazer parte do ambiente social da
sociedade escravocrata, influenciava a conduta de diferentes segmentos sociais. Como
acontece até os dias atuais, o medo, segundo Nicolau Parés, era o mais importante substrato
presente na mentalidade da época para se temer a feitiçaria como arma mortal. Por isso
mesmo, esse medo era muito bem manipulado pelos feiticeiros africanos.
Mas o discurso da feitiçaria tinha uma amplitude ainda maior na sociedade da época,
acrescenta o autor: “a ameaça real ou imaginada da feitiçaria (no seu sentido agressivo e
anti-social) jogou um papel importante nas relações entre senhores e escravos, mas também
intervinha amiúde nas esferas micropolíticas dos africanos, por exemplo, nas rivalidades
pelo poder nas irmandades.”428 A feitiçaria, comumente usada para o mal, podia também
ser empregada com finalidades sociais.
Para Laura de Mello e Souza, as práticas de feitiçaria por parte dos escravizados
colocavam os senhores diante do dilema de como agir, pois enxergá-los exclusivamente
“como feiticeiros, por sua vez, foi uma das manifestações da paranóia da camada senhorial
na colônia.”429
No Brasil do século XIX, era comum associar os batuques ou candomblé a atos
contrários ao sistema escravista. A referência ao candomblé, neste período, em grande parte
estava relacionada aos temores que cercavam as práticas de feitiçaria com a finalidade de

426
Idem, p. 217.
427
ROJAS, Maurício Pardo. Marcos da Investigacion sociale, histórica e territoriale no Pacifico
afrocolombiana. In ROJAS, Maurício Pardo, MOSQUERA, Claudia, RAMÍRES, Maria Clemência
(Editores). Panorámica afrocolombiana – Estúdios sociales em el Pacífico. Bogotá: Instituto Colombiano de
Antropologia e História – Icanh/Universidade de Colômbia, 2004, p. 18.
428
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé, p. 112.
429
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 205.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
298

“controlar o poder senhorial...”430 Razões de sobra havia. Como se sabe, os escravizados


usaram diferentes mecanismos para almejar a liberdade, e as formas peculiares de
religiosidades africanas eram uma das mais temidas pelos senhores.
De acordo com Reis, o “fenômeno e mesmo o vocabulário da feitiçaria de resistência
escrava estava disseminada pelo Brasil afora, tinha dimensão verdadeiramente
nacional...”431 Esse fenômeno já havia sido identificado em séculos anteriores por Laura
Souza, quando ela observou que a feitiçaria era uma arma ambígua e pronta para ser
empregada com diferentes propósitos: ajudava “a prender amante, matar o rival, afastar
invejosos, lutar contra opressores, construiu uma identidade cultural.”432
Desse modo, é de se supor que o termo “feiticeiro”, para designar os quilombolas de
Mangal, durante a escravidão no Médio São Francisco, tenha sido usado com a motivação
de isolá-los da sociedade regional, e com isso, limitar suas ações junto aos escravizados nas
fazendas das vizinhanças.
Os negros do quilombo do Frechal, no Maranhão, sofreram o mesmo tratamento
discriminatório nas vizinhanças do seu território, de acordo com o depoimento de Inácio de
Jesus Ribeiro, concedido ao antropólogo italiano Roberto Malighetti: o preto era visto
como “uma besta, um cocô. Quando passava um negro, eles criticavam. Chamavam ele
urubu. Falavam que em Frechal todos eram feiticeiros, que faziam o mal. Falavam assim,
porque só tinha pretos e eles achavam que dos pretos só chegavam coisas diabólicas.”433
Na primeira metade do século XX, no Médio São Francisco, onde está localizado o
quilombo de Mangal, havia um fortíssimo imaginário em torno da magia e dos poderes
mágicos, segundo Donald Pierson. As populações ribeirinhas inclinavam-se a conceber as
doenças como um fenômeno natural, atribuindo o seu aparecimento a causas como o vento,
a frieza, e o sol; em outras oportunidades, as doenças eram atribuídas ao “destino”. De
acordo com as mesmas crenças, considera-se “sempre que o ‘quebranto’ é lançado sobre a
vítima por intermédio de um agente humano que possui como parte de sua natureza, esse
‘poder’ maléfico.”434

430
REIS, João José. Domingos Sodré, p. 147.
431
Idem, p. 149.
432
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 155.
433
MALIGHETTI, Roberto. O quilombo de Frechal – Identidade e trabalho de campo em uma brasileira de
remanescente de escravos. Edições do Senado Federal. V. 81. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 214.
434
PIERSON, Donald et ali. O homem no Vale do São Francisco, p. 174.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
299

O autor lembra, ainda, que os padecimentos corporais eram associados “a magia


negra não somente sob a forma de mau olhado, mas também de ‘feitiço’, palavra que
parece permutável com ‘coisa feita’, ‘porcaria’ (em um dos sentidos da palavra),
‘malefício’, e ‘mão pregada’.”435
É notável como as referidas expressões são semelhantes às que circulam até hoje na
região. O sentido de feitiçaria entre as populações negras do Vale do São Francisco é
similar às noções africanas, e faz supor terem certos indivíduos poderes especiais para fazer
mal a outrem. No mesmo sentido concebido por Evans-Pritchard, “o conceito de bruxaria
fornece [aos Azande] uma filosofia natural por meio da qual explicam para si mesmos as
relações entre os homens e o infortúnio, e um meio rápido e estereotipado de reação aos
eventos funestos.”436
Esta concepção é diferente da noção de feitiçaria conhecida em Portugal do século
XVI, construída a partir de uma visão demonológica da “Igreja Cristã entre os séculos XIII
e XVI, destinada a reduzir o homo magus a mero intermediário do demônio e a transformar
as feiticeiras em bruxas seduzidas pelo Maligno.”437
Mas, a demonização das práticas religiosas se verificou também no Brasil, quando
crenças “africanas e indígenas viam-se constantemente demonizadas pelo saber erudito,
incapaz de dar conta da feição cada vez mais multifacetada da religiosidade colonial.”438 De
acordo com Laura de Mello e Souza, o que prevaleceu na prática da feitiçaria colonial
foram “Africanos, índios e mestiços [...] os grandes curandeiros do Brasil colonial.”439
Diferentemente da tendência à demonização, verificada em Portugal e em certo
período da colonização no Brasil, a feitiçaria praticada no Vale do São Francisco tem uma
evidente agência humana, o que significa serem os feiticeiros temidos na sociedade
regional. No imaginário dos habitantes do Vale, lembra Pierson, “pensa-se que certas
pessoas têm o ‘poder’ de causar o mal usando magia negra, quer o desejem quer não. E este
‘poder’ pode ser exercido mesmo contra a vontade da pessoa.”440 Daí a crença generalizada
de que os africanos e seus descendentes, nessa região, sobretudo os negros que viviam nas

435
Idem, p. 183.
436
EVANS-PRICHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, p. 49.
437
BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da Magia, p. 12/13.
438
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 149.
439
Idem, p. 166.
440
PIERSON, Donald et ali. O homem no Vale do São Francisco, p. 184.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
300

comunidades livres, deveriam ser tratados com muito cuidado: tanto pela capacidade de
rebelião como também pelos poderes mágicos usados, que poderiam ser mortais para os
senhores de escravos.
É neste contexto que se explica a repressão policial contra curandeiros e feiticeiros,
iniciada no período colonial e que se estendeu pelo século XX, conforme assinala Donald
Pierson: “motivada, pelo menos em parte, pelo fato de alguns deles terem assumido, ou se
pense assim, o papel de feiticeiros, entregando-se a magia negra.”441
As práticas de feitiçaria e do chamado curandeirismo durante a escravidão, e no
período posterior à abolição da escravatura, eram controladas legalmente ou reprimidas a
partir de qualquer suspeita que indicasse insubordinação dos negros. É de se imaginar,
portanto, o que representou para os quilombolas de Mangal serem acusados de feitiçaria.
Os quilombolas do Mangal reagiram às acusações de feitiçaria procurando se
distanciar de qualquer vinculação com elementos simbólicos de origem africana, inclusive
aqueles não necessariamente associados à feitiçaria. Esse comportamento foi notado pela
pesquisadora Sandra Nivia Soares de Oliveira, ao observar que a “negação da prática do
Saravá faz parte de todo um processo para desfazer a fama de negros feiticeiros da
comunidade na região.”442
O distanciamento dos quilombolas das simbologias africanas dentro do quilombo, de
acordo com as minhas observações de campo, pode ser notado em atitudes individuais para
impedir qualquer associação com as suas religiosidades ancestrais. É comum no Mangal
saber de pessoas angustiadas por não conseguirem de médicos consultados respostas
satisfatórias para doenças sem causas aparentes ou inconformadas por receberem avisos
através de sonhos. Pessoas que mudam de comportamento bruscamente. Enfim, ocorrências
e acontecimentos pessoais que seriam, de acordo com especialistas do próprio quilombo,
por causas “espirituais”.
Desde o fim da década de noventa do século passado, quando o conflito pela posse da
terra tornou o Mangal conhecido na região, circulavam informações de que no quilombo se
praticava um ritual afro-brasileiro chamado por eles de Saravá443. Mas, ao se procurar

441
Idem, p. 259.
442
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de. De Mangazeiros a Quilombolas, p. 42.
443
Segundo o dicionário eletrônico de Antonio Houaiss, a palavra saravá era a maneira que os negros bantu
pronunciavam o termo português salve. No âmbito da umbanda e de alguns candomblés foi adotada como
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
301

informação sobre esse culto, ninguém da comunidade aceitava entrar em detalhes sobre o
que ele representava e como era praticado no quilombo. A impressão que se tinha era de
que o temor em expor publicamente o Saravá estivesse associado aos temores das antigas
perseguições legais e policiais sofridas pelos cultuadores das religiões afro-brasileiras na
Bahia. As perseguições somente tiveram fim com a Lei 25.095 de 15 de janeiro de 1976, de
autoria do governador Roberto Santos, que conferiu às religiões afro-brasileiras o direito de
“exercitar o seu culto, independentemente de registro, pagamento de taxa e obtenção de
licença junto a autoridades policiais.”444
Na convivência diária como os quilombolas de Mangal, porém, foi possível juntar
elementos que comprovaram, mais tarde, ser o discurso da feitiçaria em Mangal, no
passado como no presente, parte fundamental de sua experiência cultural.

As acusações de feitiçaria contra os mangazeiros e os impactos políticos e


psicológicos

Para manter os dois discursos ambivalentes sobre a feitiçaria – o da negação de sua


ocorrência no presente e, ao mesmo tempo, se proteger da feitiçaria dentro do quilombo já
que de fato acreditam na força de sua agressão – os quilombolas pagaram um elevado
preço. Afinal de contas, as crenças religiosas dos mangazeiros, dentre as quais o discurso
da feitiçaria se inclui, produzem acontecimentos reais na vida das pessoas e influenciam
concretamente a saúde física e mental, o equilíbrio familiar, as atividades produtivas e a
vida amorosa dos quilombolas.
Para entender por que os mangazeiros adotaram como estratégia a recusa em admitir
serem portadores de religiosidades originadas na África, em um primeiro momento,
procurei percorrer um caminho inverso para chegar ao mesmo ponto. E a pergunta que me
fiz, para buscar a resposta que explicasse o comportamento estereotipado dos quilombolas
no presente, foi a seguinte: a quem interessava, no passado, imputar aos quilombolas do
Mangal o estigma de feiticeiros?

uma saudação. No caso de Mangal, o Saravá equivalia a um culto afro-brasileiro praticado às escondidas
pelos negros do quilombo.
444
BRAGA, Julio. Na Gamela do Feitiço, p.184.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
302

A conclusão a que cheguei, após ouvir inúmeros relatos dos quilombolas, e conhecer
também na literatura as experiências dos africanos e seus descendentes no período colonial,
foi a de que a imputação da pecha de feiticeiros aos quilombolas do Mangal, desde o
período da escravidão, pretendeu isolar os negros livres do Mangal em seu território. Isso,
para impedir ou dificultar a sua movimentação em outras áreas que pusessem em perigo a
estabilidade das fazendas de gado que utilizavam mão de obra escrava na região.
Mesmo com as limitações impostas para se movimentarem fora do seu território, os
mangazeiros eram obrigados a se deslocar para vender a mão de obra nas fazendas da
região, já que a “meia légua de terras doada” por Gertrudes tinha uma extensão insuficiente
para prover as suas necessidades. Além disso, eles precisavam fazer compras de gêneros
essenciais nos distritos de Sito do Mato e Gameleira e na sede de Paratinga. Mas, com essa
pecha de feiticeiros que carregavam, ao sair dos seus domínios, eram recebidos e vistos
sempre como indivíduos perigosos.
A segregação dos mangazeiros em seu território ou a circulação deles nas áreas
vizinhas carregando o estigma de feiticeiros, evidentemente, os impedia de exercer
qualquer influência política junto aos negros que ainda continuaram submetidos à
escravidão em toda a região. Fora do seu território, os mangazeiros passaram a ser
hostilizados não somente entre os senhores de escravos como também junto aos indivíduos
que acreditavam nas proezas e perversidades que um feiticeiro era capaz de fazer.
A abolição da escravidão no Brasil, em 1888, que poderia minorar as representações
negativas dos mangazeiros, ao que parece, não alterou substancialmente o peso do fardo de
“feiticeiro”. E, além disso, o estigma foi incorporado psicologicamente pelas gerações
atuais de mangazeiros como algo absolutamente negativo, já que o estigma reforçava o
isolamento deles na sociedade regional no presente. Não é exagero, assim, imaginar
possíveis repercussões físicas e psicológicas na estrutura de personalidade dos quilombolas.
Após as acusações de feitiçaria se transformarem em estigma para os quilombolas, o
termo “feiticeiro” passou a ser tão repudiado, que as reações, muitas vezes, beiravam a
neurose, no seu sentido de fuga, de afastamento. Por exemplo, as pessoas com indícios de
“problemas espirituais” preferiam o sofrimento (doenças persistentes, diagnósticos
inconclusos) a ter que se submeter a uma consulta com um curador, já que esse recurso era
visto como parte do mesmo complexo da religiosidade afro-brasileira em que está situada a
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
303

feitiçaria. Ou seja, a imputação de feitiçaria se tornou um transtorno para que os


mangazeiros aceitassem a sua própria cultura. E, como estratégia para se livrar do estigma,
os quilombolas passaram a repudiar os seus símbolos ancestrais.
Qualquer indivíduo do Mangal que circulasse nas vizinhanças do seu território, fosse
ou não especialista em feitiçaria, estava passível de ser contaminado com o estigma
imposto. Não importava se o indivíduo oriundo do Mangal fosse simpático ou recusasse a
acreditar nas crenças relacionadas à feitiçaria. O mangazeiro passou a ser visto nas relações
sociais, não como um diferente, e sim como outro indesejável. Com a generalização, todos
os mangazeiros passaram a ser recusados, no sentido observado por Goffman: “um
indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um
traço que se pode impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a
possibilidade de atenção para outros atributos seus.”445
Foi com essa condição estigmatizada e precária que os quilombolas de Mangal se
apresentavam na sociedade regional. Não é preciso dizer que, nessas condições, eram
pequenas as chances de serem reconhecidos socialmente. Na verdade, o estigma funciona
justamente “como um meio de controle social formal; a estigmatização de membros de
certos grupos raciais, religiosos ou étnicos tem funcionado, aparentemente, como um meio
de afastar essas minorais de diversas vias de competição...”446
Alguns depoimentos dos quilombolas do Mangal não só confirmam tais assertivas
como também tornam possível mensurar os impactos psicológicos, políticos e culturais que
o estigma da feitiçaria produziu, mesmo depois de onze anos de os quilombolas terem as
suas terras reconhecidas e tituladas. Vejamos:

“Quem quer conta com aquele povo do Mangal, que são tudo feiticeiro! Inclusive, nós fomos uma
festa na Gameleira quando eu era solteira ainda. Eu e minha prima e uma irmã minha. Aí quando a
gente tava lá na festa apareceu um rapaz que ele era de Serra Dourada. Aí a gente conversando ele
falou: ‘De onde são vocês?’ ‘Nós somos do Mangal’, respondemos. Ele começou a bater palma. ‘Ave-
Maria, Ave-Maria!’ Eu falei, Olha, tá vendo ali, ele tá falando aquela Ave-Maria porque tá achando
que a gente é feiticeira. E na verdade a gente não sabia nada coitada. O que é que nós sabia? Mal o Pai-
Nosso, né?” (Professora Guilhermina Farias dos Santos, 44 anos)

“Rapaz, eu sempre alcancei sempre essa história que nós era feiticeiro, né?

445
GOFFMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da Identidade deteriorada. 4. ed. Rio de
Janeiro: LTC, 1988, p. 14.
446
GOFFMAN, Erving. Estigma, p. 150.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
304

Eu tinha catorze anos e minha mãe veio me buscar aqui no Mangal pra gente ir a Juazeiro da Bahia. E
a viagem era de vapor. Trinta dia parece pra chegar. E nessa viagem a gente não pegou o vapor aqui na
Comunidade, a gente desceu pra Paratinga, pra pegar o vapor lá. E aí eu perguntei: ‘mas por que a
gente não pega o vapor no Mangal?’ Ela disse: ‘Não, pra eles não saber que nós somos do Mangal’. Aí
depois de Paratinga nós veio pegou o vapor e aí dentro do vapor ela falou pra mim: ‘se alguém
perguntar’... (Que eu era muito bisbilhoteiro, andava muito). Ela falou: ‘Se alguém perguntar se você é
do Mangal, você diga que não. Você diga que é de Paratinga’. Aí eu disse: ‘porque mainha não pode
dizer?’ Ela disse: ‘não, porque eles não gostam.’” (Carlos Alberto Gomes, 45 anos)

Nos depoimentos de Guilhermina e Carlos Alberto destacam-se dois aspectos


aparentemente paradoxais, relacionados às acusações de feitiçaria e à atribuição do estigma
que distinguia os mangazeiros fora do quilombo. Um deles refere-se ao temor do rapaz ao
saber que a professora Guilhermina era do Mangal mostra como a feitiçaria era temida nas
redondezas e confirma, portanto, a coerência da estratégia dos senhores de terra e de
escravos em isolar os quilombolas através do estigma da feitiçaria. Outro aspecto é a
confirmação de que, no discurso da feitiçaria, há uma inquestionável dimensão de poder,
pois o medo dos feiticeiros também os coloca em situação de vantagem onde essa crença
está presente.
Sandra Oliveira, que compreendeu corretamente essa equação, faz uma importante
observação a respeito: “É interessante notar que a identificação rejeitada da comunidade era
o que a tornava visível e, de certa forma, poderosa aos olhos do entorno.”447
Mas, no depoimento de Carlos Alberto, em contrapartida, fica evidente o imenso
prejuízo psicológico que essa imputação negativa representou para os quilombolas. A
orientação da mãe de Carlos Alberto para ele não se identificar como tendo nascido no
Mangal não era fortuita, pois ouvi inúmeros depoimentos no quilombo de que esse era o
comportamento mais comum adotado fora do quilombo. A recomendação da mãe de Carlos
Alberto, para que ele negasse ser do Mangal, configura uma atitude comum que formou
uma geração de pessoas retraídas e enclausuradas e, possivelmente, com sequelas desse
processo traumático, como pude atestar em inúmeros depoimentos. Resultados semelhantes
aos observados por Goffman: “Faltando o feedback saudável do intercâmbio social
quotidiano com os outros, a pessoa que se auto-isola possivelmente torna-se desconfiada,
deprimida, hostil, ansiosa e confusa.”448

447
OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de. De Mangazeiros a Quilombolas, p. 134.
448
GOFFMAN, Erving. Estigma, p. 22.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
305

Na outra extremidade das situações vividas pelos quilombolas de Mangal,


especialmente entre os que se envolveram com a luta pela posse da terra e incorporaram
uma nova identidade política, foi possível observar a superação desse círculo vicioso e de
muitos traumas provocados pelo isolamento. A partir da consciência política, e já vivendo
na condição de “quilombolas de Mangal”, a imputação de “feiticeiros” passou a ser vista
como um mecanismo indisfarçável de racismo.

Guilhermina Farias dos Santos

Essa nova leitura política das denúncias de feitiçaria contra os mangazeiros, ainda que
não apagasse totalmente os traumas psicológicos que o isolamento racial os impunha,
colocava-os em uma posição mais digna nas relações sociais que antes eram, sobretudo, de
subordinação e aceitação. Esse processo de reversão, contudo, é muito recente. Para se ter
uma idéia, somente no ano de 2006 os mangazeiros tornaram públicas as suas práticas
religiosas de origem africana, com a fundação do Terreiro Ilê Axé Nanã Burokê,
comandado pela mãe-de-santo Maria Guedes da Rocha, conhecida como Maria Domingas.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
306

Antes da abertura desse terreiro, os rituais religiosos no Mangal eram realizados na


calada da noite na casa de um devoto ou, às escondidas, no meio do mato.

Carlos Alberto Gomes

As primeiras tentativas na pesquisa de campo para que as pessoas falassem sobre as


acusações de feitiçaria foram frustrantes, conforme foi descrito no início. Uma parte dos
entrevistados ria quando o assunto era abordado. Essa reação bem-humorada, entretanto,
nem sempre pautou a conduta dos quilombolas. Com as mudanças na consciência política,
os quilombolas passaram a encarar as acusações de feitiçaria como um mecanismo de
discriminação:

“Preconceito. De longe é aí preconceito. Eles que fala aí. Preconceito desse povo de fora, né?
Num sei se porque a gente era negro. Num sei.
Vem muito tempo que aqui era feiticeiro, dizia que aqui parava lancha e num foi do meu tempo. Aqui
eu nunca vi falar. “Porque feiticeiro nós não somos agora macumbeira, sou.” (Maria Guedes da Rocha,
44 anos, líder do Terreiro Ilê Axé Nanã Burokê, do Mangal)
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
307

“Mudou também porque às vezes as pessoas não aceitava quando fosse chamado de feiticeiro, de
negro. Porque era o racismo, o preconceito que as pessoas lá fora tinha com a gente. Hoje eu não me
importo não. Eu sou negra com muito orgulho, quilombola e posso até ser feiticeira. Mas eu não sou
feiticeira porque eu não sei mesmo.” (Guilhermina Farias dos Santos, 44 anos)

Com esse novo cenário, os mangazeiros passaram a analisar as acusações de


feitiçaria de maneira consciente e racional, como o primeiro passo para se livrar
psicologicamente do estigma. Vejamos os depoimentos desses novos sujeitos políticos do
Mangal:

[As pessoas] “falavam assim: ‘Ah, aqueles negos do Mangal’. Então pra mim, era um tipo de
discriminação muito séria que a gente sentia na pele e a gente andava assim, recolhido, né? ‘Ah
mangazeiro, pé nêgo, nêgo do beição, nêgo do pezão, do pé rachado, num-sei-o-que’. Então era uma
discriminação muito grande. Então chegou tanto essa discriminação que a gente ia pro lugar, pra
Bom Jesus da Lapa, pra outros lugar maior, a gente nunca dizia que era do Mangal. Sempre dizia que
era de Paratinga.” (Carlos Alberto Gomes, 44 anos).

“Essa fama aí, ela agora tá parando, mas essa fama aí ela correu de muitos tempos atrás, porque é
aquela questão que eu sempre digo que o negro foi escravizado e a imagem que ficou é que o negro
não poderia ter nada que fosse bom. O negro tinha que ser assim considerado bicho, ele não tinha
que ter nada que fosse bom. Então eu não sei se existe o feitiço, não sei se ele mata, não sei se não
mata, mas surgiu a uns longos anos que o pessoal aqui era feiticeiro...”
“É porque as pessoas que sabia se defender. Porque o defender é isso. É você fazer o inimigo calar a
boca, é você fazer seu inimigo quando vê você abrandar o coração. E aí o que? Para os brancos era
um feitiço. Porque foi a questão do Candomblé que eu sempre falo por aí. Porque que o Candomblé
foi tão discriminado no Brasil? Porque o primeiro padre que veio para o Brasil, ele veio de Portugal.
Ele era branco. E aí ele colocou logo que o Candomblé era coisa de Cão e aquilo cresceu, né. ‘Ah! É
coisa de Cão!’ E quem é que quer coisa de Cão? Ninguém queria.” (Egídio Gomes Pereira, 61 anos)

Tendo ou não consciência de que as acusações de feitiçaria eram uma maneira de


isolar politicamente os mangazeiros, psicologicamente os quilombolas sofreram muito com
as acusações. Os relatos são igualmente inequívocos quanto a isso:

“Eu sofri muito com isso porque não tinha conhecimento do que era o candomblé, não tinha
consciência do que era uma religião e as pessoas me perguntavam se eu era de Mangal, eu dizia que
não, que eu era de Brasileira, que eu era de Paratinga, pra fugir desse preconceito que existia.” (João
Conceição dos Santos, 28 anos)

“Tem deles que ficam triste, porque feiticeiro, quem quer, né? Aí tem deles que as vez se sente
revoltado, porque se sente também rejeitado. A sociedade em alguns lugares tem pessoas que olha
diferente e aí por um motivo de ter um nome ou até fama, que na verdade não pratica.” (Clene Farias
dos Santos, 27 anos)

Os depoimentos são autoevidentes em reconhecer as motivações política e racial em


isolar os quilombolas de Mangal. O que é mais interessante observar nesses depoimentos é
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
308

a mudança na compreensão dos quilombolas, notadamente ao interpretar a classificação


negativa de “feiticeiros” como uma tentativa de descaracterizar e não aceitar a cultura
negra.
João Conceição Santos afirma que depois que ele tomou conhecimento do que é o
candomblé, ele entendeu também que as acusações de “feitiçaria” estavam associadas ao
mesmo universo, desse modo, ele tinha a obrigação de assumir que esse sentido de
“feitiçaria” deveria ser apropriado como uma nova conotação para os negros; daí é que ele
diz não haver mais problema em ser do Mangal e, inclusive, ser feiticeiro.
O senhor Egídio é ainda mais refinado em sua análise, pois descobre que a intenção
de desqualificar a feitiçaria não passa de um ardil com a intenção de negar, no passado e no
presente, as armas adotadas pelos negros para resistir. A feitiçaria, que ele assume como
um instrumento de luta (“fazer o inimigo calar a boca...”, “abrandar o coração.”), foi
importante, já que serviu aos negros como um recurso legítimo de defesa dos seus
interesses.
Observe que essa leitura do senhor Egídio é análoga ao papel representado por Exu
durante a escravidão, para um informante de Roger Bastide:

Ele “consentiu em explicar que Exu presidia à magia, na grande revolta dos escravos contra o regime
de opressão a que estavam submetidos, tornando-se o protetor dos negros (magia branca), ao mesmo
tempo em que dirigia cerimônias contra os brancos para enlouquecê-los, matá-los, arruinar as
plantações (magia negra).”449

No depoimento do senhor Egídio está subtendido que as denúncias de feitiçaria


contra os mangazeiros e os negros que sofreram com a escravidão nem sempre distinguiram
a feitiçaria e o candomblé. Portanto, como a intenção era a mesma, valeria a pena defender
tanto o direito de cultuarem o candomblé assim como interpretar como legítimos os meios
das religiosidades africanas que foram empregados para “calar a boca do inimigo” ou
“abrandar seu coração”.

449
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 162.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
309

Egídio Gomes Pereira

Em outro momento da entrevista com o senhor Egídio Pereira, o conceito de feitiçaria


deixa de conter o sentido unilateral de maldade que ele comumente evoca. A maldade,
segundo a filosofia do senhor Egídio Gomes Pereira, é tão-somente o oposto da bondade,
porém necessária. Perguntado ao entrevistado sobre a possibilidade de existir pessoas com
poderes de fazer o bem ou o mal, ele respondeu da seguinte maneira:

“Tem. Tem. E precisa. Tudo tem que ter. Eu digo assim, no mundo o que tem de bom tem de ruim.
Então Deus fez as coisa tudo certo. Deus não fez nada de errado, não. Tem aí um problema aí entre os
evangélicos e nós católicos, né? Ah, não pode beber, não pode fumar, não pode não-sei-o-quê. Deixe
de besteira! Tudo o que Deus deixou no mundo foi pro homem. Agora não pode é exagerar. O que não
pode é abusar. Mas se ficou no mundo, foi pra o homem. Porque o que foi para os animais taí. O capim
é isso aí. O capim nós sabe que é pros animal. Mas o resto... Tudo o que tem no mundo, ele vai ter uma
serventia. Acho que o bom combate com o bom e o mau combate é com o mal.” (grifos meus) (Egídio
Gomes Pereira, 61 anos)

Com essa mesma concepção filosófica do senhor Egídio Pereira, que em certo sentido
busca afugentar os males psicológicos causados aos mangazeiros pelo estigma da feitiçaria,
outra entrevistada justifica a importância e o significado de Exu para a concepção de
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
310

religiosidade hoje praticada à luz do dia no Mangal. Segundo a depoente, Exu deve ser
visto como um mensageiro e como tal ele é o responsável para enfrentar demandas
consideradas perigosas. Exu é o que está mais capacitado, portanto, a responder aquilo de
negativo que foi enviado, um feitiço, por exemplo, com a intenção de atingir alguém. Eis o
raciocínio da depoente:

“Porque se tiver uma coisa ruim. O que é bom não vai pegar coisa ruim. Não vai não. Por exemplo,
tem o orixá se tem um espírito mau, tem que tirar pra levar pra sujeira, orixá não vai lá não que o orixá
é de luz. Quem vai é o mensageiro. O mensageiro é quem vai. Que o povo chama de Exu.” (Lídia
Guedes dos Santos, 58 anos)

Como se pode observar, há uma similaridade entre essa idéia de Exu ser destinado a
enfrentar demandas perigosas e, ao mesmo tempo, ser considerado um paradigma de
maldade, de acordo com a essência da filosofia do senhor Egídio, segundo a qual o mal não
é uma aberração, mas simplesmente o oposto do bem. Mesmo que a concepção de
religiosidade de dona Lídia dissocie Exu dos demais orixás – visão que, aliás, é muito
comum, sem ser uma unanimidade, entre os praticantes das religiões de origem africana em
Salvador –, ele, ainda assim, é visto como uma entidade de capital importância, como
combatente de maldades que os demais orixás não são capazes, segundo o raciocínio da
depoente. Exu também é visto pela líder do Terreiro Ilê Axé Nanã Burokê do Mangal,
Maria Guedes da Rocha, com a mesma responsabilidade no complexo de crenças religiosas
afro-brasileiras sugeridas por dona Lídia dos Santos:

“Com mau intenção. Mau intenção quem for, chega lá [no Terreiro] já acabou tudo. Porque pra isso
nós tem Exu pra carregar as maldade.
Por isso que eu toco primeiramente pra ele. Peço força a Deus e toco primeiro pra Exu. Que é pra tirar
as maldade, as perseguição, os descaminho. Pra não criar probrema.” (Maria Guedes da Rocha, 44
anos)

Nos depoimentos transcritos, vê-se que as denúncias de feitiçaria contra os


mangazeiros estão sendo reprocessadas internamente e assumindo uma outra configuração.
No processo que está em curso, o discurso da feitiçaria está criando uma situação
surpreendente entre os mangazeiros: o de serem empurrados a viver na fronteira entre
reconhecer a feitiçaria como parte do patrimônio cultural ou negá-la pela conveniência de
serem incluídos na sociedade regional.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
311

Lídia Guedes dos Santos e Maria Guedes da Rocha

Os quilombolas de Mangal, presumo, sabiam da importância simbólica da feitiçaria


para se impor diante da sociedade que lhe era hostil, não obstante o sofrimento imposto
com a segregação e o estigma. Mas, somente depois que Mangal foi reconhecido
institucionalmente como quilombo foi que os mangazeiros passaram a acolher a ideologia
da feitiçaria no sentido político com que hoje se afigura. Antes disso, as religiosidades
ancestrais e os rituais mágicos, segundo os depoimentos, eram praticados às escondidas,
dentro das matas e em completo segredo, inclusive para a maioria dos moradores do
Mangal. A estratégia era compreensível como tentativa de se livrar das acusações de
feitiçaria e proporcional ao isolamento a que os quilombolas foram submetidos.
Essa estratégia do silêncio e da negação começou a ruir no momento em que o
processo de construção de uma nova identidade negra quilombola, necessária para justificar
o discurso da ancianidade de ocupação das terras do Mangal, obrigou-os a revelar, através
das narrativas orais, a experiência cultural dos seus antepassados.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
312

A cada fio que se desenrolava da história do quilombo, um imperativo da luta política


em defesa da terra, mais e mais informações sobre o passado vinham à tona. Em meio aos
relatos, a feitiçaria aparecia, para alguns, como um pesadelo, mas para outros era a
oportunidade de mostrar uma faceta da religiosidade que os atormentava em sonhos, visões
e avisos de que os seus deuses queriam ser vistos, reverenciados e compartilhados com seus
potenciais cultuadores, nas terras do Mangal.

Maria Guedes da Rocha

Ao abrir os arquivos da história oral para os técnicos especializados, historiadores e


antropólogos, os mangazeiros novos e velhos terminaram conhecendo a si próprios e
puderam mostrar ao mundo, através dos textos, os seus hábitos e práticas ancestrais. O
importante em tudo isso foi desfazer o paradoxo que os atormentava: o de serem vistos
como feiticeiros pelos seus vizinhos próximos e distantes e, ao mesmo tempo, imaginar que
a feitiçaria fosse exclusivamente negativa.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
313

Dois outros acontecimentos precipitariam a mudança de enfoque da discussão sobre a


feitiçaria pelos mangazeiros.
O primeiro foi à incorporação da identidade quilombola, que os estimulou a mostrar
fora do quilombo as experiências culturais praticadas há muito tempo, mas pouco
valorizadas internamente como patrimônio cultural do Mangal, a exemplo da Marujada, da
Roda de São Gonçalo e também do Saravá. À medida que os agentes externos, como
estudiosos, assessores da Comissão Pastoral da Terra e ativistas do movimento negro
passaram a valorizar tais manifestações, os mangazeiros foram aos poucos revelando outros
aspectos de sua experiência cultural. Nesse ínterim, irrompiam também das entranhas dos
arquivos culturais dos mangazeiros as forças religiosas que estavam adormecidas.
Adormecidas, mas não extintas.
Assim, a abertura do Terreiro de Nana Burokê precipitou a emergência de
religiosidades ancestrais que pediam passagem.
Constatei na pesquisa de campo, por exemplo, que é uma coisa corriqueira no Mangal
as pessoas “passarem mal” por motivos espirituais. Os indícios mais comuns eram doenças
que não se curavam, diagnósticos médicos que não confirmavam problemas fisiológicos, ou
mesmo aquelas pessoas que “sentiam mal” e “desmaiavam” na rua, em festas, no rio ou em
sala de aula. Os que ainda resistiam em assumir essas religiosidades bloqueadas sofreram
com problemas de saúde não resolvidos pelos médicos.
Transcrevo alguns depoimentos que relatam a situação dos quilombolas que não
aceitavam assumir essas religiosidades dos antepassados:

“Porque às vezes você vai pro médico e num dá nada. Aí queixa uma coisa, toma remédio, queixa uma
coisa, queixa outra. E a gente sabe por que a gente não quer falar porque se falar vai falar que a gente
tá mentindo, quando a coisa é coisa de caboclo. A gente fica calada, guarda pra nós mesmo, porque a
gente sabe que aquela pessoa não acredita. A gente vai falar... Se desmaiou a gente não pode abrir a
boca, que a gente tá conhecendo que é caboclo. Fala que a gente tá mentindo. A gente deixa eles
sofrer.” (Domingas Farias de Sá, 30 anos).

“Moço não consigo entender se é vergonha que tem de ir. Não sei se é uma discriminação. Eu fico sem
saber.”
“Acontece. Acontece que ao mesmo tempo não gosta, fala mal, ao mesmo tempo precisa e quer uma
ajuda e fica com vergonha de ir lá.
Precisa dos Cabôcos benzer, tem vontade de fazer alguma coisa pra benzer, tá sentindo uma coisa e
fica com vergonha de ir lá. Vai sofrer.” (Deltrudes Gomes Pereira, 41 anos)
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
314

Vale a pena destacar também um depoimento do senhor Egídio Gomes Pereira, onde
ele fala sobre a traumática experiência religiosa de sua família, por não assumir as
religiosidades que a afligiam. O resultado, como veremos, foi trágico: desaparecimento,
loucura e morte. Depois desses acontecimentos, o senhor Egídio foi obrigado, pelas
circunstâncias, a liderar um processo que resultou na fundação, no ano de 2007, de um
Terreiro de candomblé na localidade de Capim, próximo ao território do Mangal450. Esse
terreiro cultua Caboclos e Orixás. Por estar em fase de estruturação, ainda não recebeu um
nome ou, segundo o senhor Egídio, “não foi ainda registrado.” No relato dele, um resumo
da experiência dos seus familiares, que não aceitaram os apelos das religiosidades
ancestrais que cobravam reciprocidade:

Domingas Farias de Sá

450
A fundação do Terreiro fora do Mangal não foi, infelizmente, aprofundada com o depoente. Mas, pela
grande disponibilidade de terras no quilombo depois da titulação é de se imaginar que decisão pode ter sido
baseada na forte resistência dentro do Mangal para que se assumissem publicamente as religiosidades negras
que, durante muito tempo, foram amaldiçoadas pelos preconceitos da sociedade regional.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
315

Deltrudes Gomes Pereira

“E aí ela [sua mãe, Anísia Lopes de Oliveira] não se desenvolveu, não procurou desenvolver aquela
coisa que tinha na mente dela, aquela coisa que ela nasceu com ela, ela não tratou e aí ficou aí e depois
foi afetando a família. Foi de uma maneira que ela morreu paralítica, não é? Ficou dois anos de cadeira
de roda. E aí foi afetando a família. Começou pelo filho mais velho. São, trabalhando, trabalhador,
bem estudado, quando pensa que não começou chorando e tal e isso foi de uma maneira que levei em
São Paulo duas vez e tal. E a gente era hora que precisava de amarrar. Levei em Conquista, não teve
lugar. E aí que acabou que ele sumiu no mundo aí. Doente, começou caminhar no mundo, no mato. E
alguma pessoa disse: ‘Problema desse rapaz aí é espiritual, ele tem corrente pesada’. Levamos em
Brasília onde tá uma mulher que tinha lá num lugar por nome do Vale do Amanhecer. Levamos lá. Os
secretários dela falou: ‘Esse rapaz tá com uma corrente muito forte’. Ele caminhamos pra lá e pra cá
nas coisa do centro aí quando ela chegou, olhou pra ele assim: ‘Não. Já sei o que é que esse rapaz tem.
Pode levar ele pra lá. Eu só quero o nome dele, a idade dele e endereço que daqui eu cuido dele’. Eu
digo: Ah! Não acreditei não. E como de fato não valeu nada, né. Eu sei que até ele levou a morte. Aí
passou mais por dois, né.
Mais dois. Assim também. Geralmente assim, adoecia assim, que ficava ruim que ia pra corda.
Entendeu? Ia pra corda.” (Egídio Gomes Pereira, 61 anos)

É evidente que há uma estreita relação entre a recusa dos quilombolas de Mangal em
aceitar os sinais das suas religiosidades ancestrais, com as marcas indeléveis das influências
religiosas africanas e, por isso mesmo, vistas por alguns quilombolas no mesmo plano da
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
316

ideologia da feitiçaria, e as tentativas desesperadas de apagarem o estigma da feitiçaria


imputado pelos senhores de escravos. É preciso reconhecer, entretanto, que a resistência
interna no Mangal em aceitar as religiosidades africanas tem outras causas que devem ser
referidas, pelo menos de passagem.

A influência do estigma da feitiçaria e das religiosidades afro-brasileiras na vida


cotidiana dos quilombolas de Mangal

No pungente depoimento do senhor Egídio Gomes Pereira, fica patente que as


heranças religiosas de sua mãe, que ela se recusara a cuidar, foram as responsáveis por
desencadear o processo de “punição” dos deuses (caboclos, orixás) que se estendera para
toda a sua família. A teimosia dela, lógico, se explica e deve ser entendida e enquadrada na
estratégia de distanciamento das religiosidades africanas como um mecanismo de
autopreservação contra as acusações de feitiçaria, de fora e no quilombo.
Mas a recusa em praticar as religiosidades de origem africana pode ter outras
origens. Uma delas pode ser a satisfação ou a convicção religiosa do indivíduo que, antes
de “passar mal”, já havia se convertido a outra religião. A outra pode estar associada ao
medo diante da experiência do transe, que é a expressão mais característica e visível dessas
religiões.
No que se refere à primeira possibilidade – a do indivíduo ser portador de outra
religião –, penso que, no caso do Mangal, a sua influência na decisão individual das pessoas
pode ter alguma importância, já que todos na comunidade se dizem católicos. Embora tal
influência do catolicismo não seja, possivelmente, decisiva para determinar a recusa das
pessoas. Vejamos algumas considerações que enfraquecem essa possibilidade.
Primeiro, são os indivíduos que se dizem católicos no quilombo, que estão dando
início a um processo de visibilidade das religiões afro-brasileiras, com a fundação de
terreiros, dentro e fora do Mangal. Segundo, o catolicismo, na Bahia e no Brasil, no
presente momento, não faz restrição explícita ou uma campanha pública e de grandes
proporções para que os seus fiéis se afastem dos cultos de origem africana. Muito pelo
contrário, o que se verifica é uma tentativa cada vez maior de procurar “acomodar” ou
“traduzir” para o catolicismo – com diferentes intenções, inclusive a intenção política de
não perder parte significativa do rebanho de fiéis que praticam os cultos afro-brasileiros –
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
317

os discursos e práticas rituais das religiões de origem africana.451 Terceiro, além do


catolicismo praticado no Mangal e em outras comunidades negras rurais ser maleável –
possivelmente por não receber uma influência doutrinária tão forte de Roma –, ele já está
em boa parte influenciado por aspectos importantes das religiosidades e das culturas
africanas, e não seria, portanto, obstáculo para uma aproximação com os cultos africanos,
no âmbito dos quilombos.
Ainda que seja um assunto complexo e polêmico e que não há condição de ser
discutido com mais vagar nesta tese, é importante assinalar que alguns autores falam que,
no processo de aproximação entre as religiões africanas e o catolicismo durante a
escravidão, teria havido uma espécie de “sincretismo afro-católico”452. Prefiro a idéia de
Gabriela Sampaio, que defende que “ao se falar em herança cultural compartilhada, deve-se
ressaltar que se trata apenas de ‘princípios de uma gramática comum’...” Adiante ela
exemplifica com o fenômeno da bruxaria: “enquanto ela pode ser importante na vida social
de um grupo, e estar ausente no grupo vizinho, ambos acreditam no princípio, amplamente
difundido na África, de que o conflito é o causador de doenças e desventuras.” Dessa
forma, embora seja discutível se há ou não sincretismo, embora não tenha mais sentido
também considerar, como Bastide, que enxergava como “evidente que os candomblés nagô,
queto e ijexá são os mais puros (grifos meus) de todos...”453, é fato que no período colonial
esse compartilhamento de símbolos católicos e africanos efetivamente ocorreu, como
assinala Luis Nicolau Parés:

“A dupla participação de muitos africanos e crioulos nos desfiles e procissões das irmandades e nos
calundus e danças supersticiosas não era vivida, como já foi dito, como uma contradição, mas como
uma justaposição benéfica de recursos conceituais para lidar com a adversidade do cotidiano.”454

Em quarto lugar, no altar do Terreiro de Nanã, em funcionamento no Mangal, as


representações católicas dividem espaço, sem conflitos, com os símbolos indígenas e
africanos, mostrando que a possibilidade de convivência entre as três referências religiosas

451
Um dos exemplos são as chamadas “pastorais afros” que têm procurado nos últimos anos incluir nos
rituais católicos elementos simbólicos de origem africana, como o uso de atabaques e outros instrumentos nas
missas.
452
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé, p. 111; Cf. também FERRETI, Sérgio Figueiredo.
Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora USP; São Luis: FAPEMA, 1995.
453
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia, p. 29.
454
PARÉS, Luis Nicolau, A formação do candomblé, p. 111.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
318

é possível. Por conseguinte, o fato de os quilombolas de Mangal serem católicos pode ter
influenciado, em alguma medida, a decisão de recusarem as religiosidades de origem
africana, porém, pelas razões evocadas, não tiveram um peso decisivo.
A minha hipótese é a de que o medo de “cair em transe” pode ter tido uma influência
maior nas decisões individuais para a recusa das religiosidades africanas no quilombo e, tal
atitude, do meu ponto de vista, não teve uma relação direta com a estratégia de se distanciar
das acusações de feitiçaria, vindas de fora do quilombo.
Com essa conclusão não pretendo afirmar que todas as pessoas com potencialidades
de mediunidade tenham medo de entrar em transe. Alguns entrevistados que frequentam a
Casa de Nanã, por exemplo, demonstraram, de maneira consistente, satisfação e muita
alegria em cultuar o candomblé no quilombo de Mangal. Vejamos alguns destes
depoimentos que atestam tal assertiva:

Peji do Terreiro Ilê Axé Nanã Burokê


Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
319

“Ah! Eu gosto muito, né. Depois que eu me desenvolvi, minha irmã fez um [banho de] amassi455 muito
boa, muito bonita em mim, né? E eu gostei muito e tenho muita fé graças a Deus. O que eu faço, né?
Eu acho que eu realizo, o que eu penso eu realizo meu sonho, né? E acho que a gente tem que ter fé,
tem que acreditar, confiar no que tem.” (Delmira Rodrigues Viana, 60 anos)

“Por enquanto, não tem nada assim que eu não gostei. Tudo lá eu gosto.
É tudo o que eu vejo por lá, eu gosto.” (Gertrudes Gomes Pereira, 41 anos)

“O que o povo [do Mangal] fala pra nós, entra num ouvido e sai do outro, porque nós, não é de agora
que a gente vem sofrendo preconceito, não ligo mais pro que o povo fala.”
“Às vezes as pessoas que vai para lá, chega lá fica com vergonha. Vai mas acho que não se sente assim
que é de lá do Saravá. Agora nós que já tem costume, chega lá se solta e não tá nem aí. Fica a
vontade.”
“Eu faço parte da assistência, mas me disseram que um dia vou ser uma grande médium. Eu só espero
dar manifestação mesmo.” (Domingas Farias de Sá, 30 anos)

[Boiadeiro] “Representa muita coisa boa, porque eu gosto dele, eu amo ele. Não é Orixá de fazer mal.
Eu também não tenho esse coração de fazer mal a ninguém e pra mim é uma bênção. Meu Orixá pra
mim é uma bênção.” (Lídia Guedes dos Santos, 58 anos)

É notável o sentimento de alegria em fazer parte das atividades do Terreiro de Nanã.


No último depoimento, o de Domingas de Sá, ela explicita que pretende “dar
manifestação”, ou seja, cair em transe é o seu maior desejo. As quatro depoentes, incluídas
as duas que ainda não experimentaram o transe, Domingas e Gertrudes, não revelaram,
portanto, qualquer indício de trauma ou de temor em receber em seus corpos os encantados
que elas conhecem de perto.
A experiência de ser possuído por um ser estranho ao seu corpo, entretanto, nem
sempre for tranquila para todas as pessoas. Os depoimentos informais no âmbito do
candomblé de Salvador indicam que as pessoas experimentaram as mais variadas
dificuldades, antes de serem possuídas pelos orixás, inquices, voduns e caboclos. Outras
tiveram dificuldades, antes de “cair no santo”, mas, depois de iniciadas, estariam totalmente
adaptadas à experiência. Outras, ainda, sofreriam com os sintomas anteriores ao transe,
mesmo depois de iniciadas.
O depoimento da ialorixá Valnísia Pereira de Oliveira, do Terreiro do Cobre, em
Salvador, sobre as suas experiências antes da iniciação, ilustra muito bem que o processo
anterior ao transe pode ser antecedido de resistências familiares, ocorrências de doenças de
difícil diagnóstico e mesmo perplexidades diante dos sintomas de doenças que se atribuem
aos orixás. Vejamos:

455
Banho de folhas cheirosas usadas no candomblé para acalmar o corpo e a mente.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
320

“Nesta fase dos quatorze anos, fiquei um pouco revoltada quando as pessoas falavam que o meu
problema [de saúde] era espiritual. Eu pensava que essa não poderia ser a forma dos Orixás dizerem o
que queriam.”456

Neste sentido, é importante a observação de Ioanm Lewis, de que a “experiência


religiosa inicial da possessão, em particular, é com frequência uma experiência
perturbadora, traumática mesmo, e não raro uma resposta à aflição pessoal a
adversidade.”457
Os sofrimentos físicos e psicológicos enfrentados pelas pessoas do Mangal foram
verificados na pesquisa de campo. Alguns indivíduos acordavam depois de sonhos
perturbadores com pessoas falecidas. Outros começaram a ter comportamentos insólitos e
inconsequentes. Outros não se alimentavam, não se banhavam e romperam com os hábitos
de convivência social. Outros abandonavam as suas famílias e fugiam com frequência de
suas casas. E outros passaram a ter doenças persistentes, aparentemente incuráveis, mas
nunca diagnosticadas pela biomedicina.
Foram, portanto, experiências perturbadoras. É importante transcrever alguns
depoimentos, pois eles descrevem bem os sinais pelos quais as divindades procuram se
aproximar dos seus futuros fiéis:

“Tinha dia que eu sentia uma tremedeira, uma tremedeira... Por isso que eu não gosto muito de ir [ao
candomblé]. O que será isso mesmo?”
“Tenho [medo]. O cabelo do corpo arrepiava, ficava...”
“Eu não sei a razão do medo.”
“A razão do medo eu não sei. Tinha vezes que eu ficava tremendo. Tremendo, tremendo mesmo que
tinha que vim embora, me sentia mal. Agora, só que assim... Tinha umas pessoas aí, tinha um homem
de fora que falou assim que eu tenho um... Que eu tenho né. Eu não gosto que fique falando essas
coisas, como é que ele vai falar uma coisa que ele não sabe. Disse que eu tenho um santo. Eu falei:
‘Oh! Pelo amor de Deus, não fica colocando coisa em minha cabeça. Eu... No dia...’ Se for mesmo de
cabeça, tudo é permissão de Deus, não é não?” (Guilhermina Farias dos Santos)

“Era tanto probrema que eu não sei que até tinha hora que eu ficava assim naquela dúvida. Eu só me
sentia mais à noite. Eu não podia comer. Aí eu não podia dormir. Os remédio que o médico passava eu
não tomava. Quando eu pegava os remédio pra tomar eu via aquela voz dizendo ‘não bebe que você
vai morrer aí’, eu não bebia. Tenho vários remédios em cima dessa casa que eu jogava que eu não
podia beber. Tinha hora que eu andava parecia que tinha um baticum que eu ficava ruim. E tinha coisa
que eu ia fazer que eu nem...” (Maria Guedes da Rocha, 44 anos)

456
OLIVEIRA, Valnízia. Resistência e fé: fragmentos da vida de Valnizia de Airá. São Paulo: All Print
Editora, 2009, p. 25.
457
LEWIS, Ioanm. Êxtase Religioso: um estudo antropológico da Possessão por espírito do xamanismo. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 79.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
321

A professora Clene Farias dos Santos (28 anos) relata algumas experiências que ela conhece no
Mangal: “Tem delas que é problema assim de desmaio, ficam desmaiando, né? E o desmaio é assim,
não falam nada, ficam aquela coisa de queixo serrado, não fala e fica aquela... E tem deles que as vez
começam a conversar assim, falar certos tipos de coisas que não tem nada a ver. Vem aquela coisa:
‘Ah! É porque é fulano, é pessoas que já morreram que tão apoderando’”.
“E também tem pessoas que dentro de casa é bonzinho com o pessoal de fora, e chega em casa não
respeita ninguém, acaba aquela briga, tá aquela rivalidade dentro de casa e fora às mil maravilhas para
as pessoas de fora. Então isso aí acontece aqui... E dentro de casa é com a mãe, com os irmãos, com o
pai briga e tudo...”

Por todas as razões evocadas, o fator medo deve ter sido uma importante influência
para que as religiões de origem africana não tivessem uma aceitação maior no quilombo do
Mangal, afora a tentativa estratégica dos quilombolas de dissimularem as suas
religiosidades para atenuar os efeitos do estigma da feitiçaria.
O medo do transe pode muito bem ser compreendido, a partir da observação de
Lewis, quando ela afirma que em muitas sociedades “àqueles que os deuses chamam, eles
primeiro humilham com aflição e desespero.”458

Os sinais nem sempre visíveis de acusações de feitiçaria na vida cotidiana de


Mangal

O isolamento regional a que foram submetidos os mangazeiros, com as acusações de


serem “feiticeiros perigosos”, provocou, como vimos, um efeito psicológico devastador nos
quilombolas. Ora, o assunto da feitiçaria era tratado de maneira a descaracterizar as
acusações, ora considerando “folclore”, “fantasia”, “estória”, ou simplesmente desviando
para o passado, quando se atribui aos “mais velhos” conhecimentos que os descendentes
atuais desconheciam. De um modo geral, foram essas as defesas adotadas pelos
quilombolas.
Quando descobri ser tal estratégia uma tentativa desesperada dos quilombolas de
reduzir os efeitos perversos do estigma provocado pela imputação de feitiçaria, o foco da
minha investigação foi deslocado para entender de que maneira a feitiçaria estava presente
na vida social do quilombo e, caso o fenômeno fosse relevante no imaginário cultural do
Mangal, como se configurava enquanto discurso.
A discriminação sofrida pelos mangazeiros fora do seu território teve também uma
extraordinária eficácia como instrumento de controle social. Os que migravam para outros

458
LEWIS, Ioanm. Êxtase Religioso, p. 84.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
322

lugares não conseguiam se afirmar como sujeitos diante dos outros. Por esse motivo, a
identidade dos quilombolas é fragilizada pelo efeito da insegurança e o temor de ter
descoberto a pecha de “feiticeiros”. De acordo com Goffman, quando “um indivíduo
desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a
impressão sustentada perante eles.”459
Até quando puderam esconder a identidade de “mangazeiro”, considerada negativa
fora das fronteiras do quilombo, os quilombolas foram discriminados como “negros”, mas
não como “feiticeiros”, o que os tornaria anda mais perigosos diante dos outros. Desse
modo, tornar-se pouco visível nas relações sociais externas foi outro caminho adotado pelos
quilombolas de Mangal.
Essa “invisibilidade” era uma maneira de não serem abordados. Nessa condição, os
mangazeiros se encaixavam bem na definição de “não-pessoa” de Goffman, aquelas que
“não assumem o papel nem de atores nem de platéia...”460 Ouvi relatos contando que os
mangazeiros, em salas da aula, sentavam-se nos fundos da sala, e as amizades eram as mais
restritas possível, por medo dos seus colegas de se “poluírem”, mas também por temor de
serem atingidos pelos “perigosos feiticeiros”.
A incorporação, pelos mangazeiros, da identidade quilombola, por conseguinte,
processo que se deu no decorrer da luta em defesa de suas terras ancestrais, contribuiu para
a elevação da autoestima, no contato com os outros fora do seu território. As novas
identidades, contudo, aumentaram as tensões nas relações sociais dentro do quilombo. Isso
porque a estratégia de conduta dos que escolheram o caminho da negação ou da
dissimulação para se livrar da pecha de feiticeiros, ou de recusar religiões de origem
africana dentro da comunidade, foi cada vez mais se enfraquecendo.
Enquanto isso, aumentavam as ocorrências de pessoas carentes de serem tratadas
através dos sistemas de curas preconizadas pelas religiosidades de origem africana. Os
indivíduos que reconheciam a legitimidade de serem tratadas mediante estas indicações
religiosas contavam, agora, com especialistas e templos dentro e fora do Mangal. Esses
portadores da nova identidade poderiam, portanto, mostrar às claras que eles cultuavam o
candomblé e não precisavam mais se esconder.

459
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 8.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, 25.
460
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. p. 141.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
323

O processo de conversão, no entanto, foi lento e tortuoso. Alguns quilombolas


romperam com o “pacto” do silêncio sobre as religiosidades que os associavam com a
feitiçaria começando a frequentar terreiros fora do Mangal. Em 2006, depois de muitos
percalços, alguns mangazeiros fundaram o Terreiro Ilê Axé Nanã Burokê no território do
Mangal, para consolidar a estratégia de superar a discriminação assumindo publicamente a
religiosidade herdada dos seus ancestrais. Logo a seguir, em 2007, os familiares do senhor
Egídio Gomes Pereira terminaram se rendendo às cobranças e aos castigos dos encantados,
que cobravam reciprocidade, e fundaram um terreiro fora do Mangal.
Mas, a aceitação no Mangal do terreiro de candomblé não tem sido pacífica,
sobretudo por parte dos indivíduos que acreditam ser a estratégia do silêncio e da negação
mais adequada ou por aqueles que possuem déficit com os seres espirituais e não aceitam
atender aos sinais de cobrança.
O resultado mais positivo do novo comportamento dos quilombolas foi a construção
de mecanismos de compensação para enfrentar os obstáculos: as acusações de feitiçaria,
que antes causavam temor, passaram a ser vistas como um instrumento de afirmação de
poder para equilibrar as desvantagens criadas pelo estigma. O mesmo estigma que os
obrigou a recusar a identidade de “mangazeiros”, por estar associada à feitiçaria, agora
assumiria outra conotação.
Em Mangal, o temor antigo em se falar sobre a feitiçaria está sendo, aos poucos,
substituído por uma vontade de possuir atributos impingidos com a intenção de
constranger. Está em construção, assim, uma nova identidade, na qual o discurso da
feitiçaria passa a compor uma constelação de valores que deve ser remetido à totalidade
cultural negra de origem africana, agora vista por muitos positivamente. Vejamos alguns
depoimentos que vão neste sentido:

“Tem deles que [dizem]: ‘Como eu queria saber que era pra fazer tal coisa assim pra fulano, cicrano’.
Só que às vezes eles fazem assim brincando. Mas eles comentam que pra ficar só no nome [de
feiticeiro], a gente teria que tá mesmo... Quer dizer que alguém teria que ter aprendido pra tá passando
pra gente, que é pra gente fazer neles, inda mais praqueles [que] ficam julgando, falando uma coisa
que você não é, aí eles queriam né...” (Clene Farias dos Santos, 27 anos)

“Eu acho que tinha [feiticeiros]. Eu acho que tinha mesmo. Eu acho que as pessoas aumenta, mas não
inventa. Eles aumenta alguma coisa. Que antigamente era assim... Alguns falava que tinha uma mulher
que falava: ‘Xô passarinho!’ e os passarinho caia tudo. Que quando vinha uma lancha que parava a
lancha no meio do rio. Isso tudo é dos antepassados. Não é do meu tempo. Agora, uma mulher eu
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
324

conheci ela e tal... Ela chamava cobra e matava com o chinelo. Sabia rezar cobra e tal.” (Guilhermina
Farias dos Santos, 44 anos)

Terreiro Ilê Axé Nanã Burokê

A tendência em curso no quilombo do Mangal é a de valorizar as narrativas


relacionadas com o discurso da feitiçaria e, aos poucos, reconhecer ser o fenômeno um
componente essencial para explicar os acontecimentos cotidianos de suas vidas. Embora
ainda seja poderosa a influência das antigas estratégias de manter sob interdição a
referência à feitiçaria, nota-se que tal tendência, pouco a pouco, vai cedendo aos
imperativos das mudanças inexoráveis que estão em curso. No curso dessas mudanças, o
aparecimento de relatos de acusações de feitiçaria envolvendo os mangazeiros, na
atualidade, aos poucos, está aparecendo em diferentes episódios e circunstâncias da vida
social do Mangal. Alguns relatos sobre acusações de feitiçaria no quilombo comprovam
isso.
A professora Cremilda de Souza me relatou que a mulher do gerente da fazenda
Mangal, quando estava sob administração do Banco Econômico, acusara dona Maria,
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
325

esposa de Caboje, de tê-la enfeitiçado, após uma partida de futebol entre os nativos do
quilombo e os empregados da fazenda. A acusação ocorreu depois que a mulher do gerente,
que torcia pelo time dos empregados, foi vaiada quando assistia a partida. Ao chegar em
casa, chateada com o gesto dos torcedores, terminou adoecendo, motivo pelo qual acusa
dona Maria de feitiçaria.
Uma importante liderança da comunidade me revelou que os Lobo têm sérias
desconfianças de ser de alguém da família Gomes a responsabilidade de ter enfeitiçado um
rapaz que bebe descontroladamente, e essa condição do rapaz é razão de grande sofrimento
de sua família. O informante disse, ainda, que a suspeita de feitiçaria é antiga nos conflitos
entre as duas famílias. A novidade nessa denúncia de manipulação da maldade como arma
sórdida de combate é que os envolvidos, os Lobo e os Gomes, estão no centro das disputas
pelo poder no quilombo; a denúncia relaciona-se, portanto, com históricas rivalidades
familiares. Vamos conhecer outros depoimentos envolvendo acusações de feitiçaria e as
estratégias para se proteger dos ataques:

“Acredito que as pessoas coloca o olho em cima de outro e a pessoa acaba não indo pra frente porque
tem outros que não deixa ir pra frente. Tem pessoas muito mau, sabia. Tem pessoas muito mau e com
olho grande. E não tem feitiço maior no mundo do que olho grande não.”
“Mas meu Deus, depois que eu me mudei aqui pra dentro dessa casa, nós não conseguimos colocar
mais nada aqui dentro dessa casa, a não ser o que a gente trouxemos de lá pra cá. O senhor acredita,
vou falar aqui pra o senhor, que quando nós mudamos praqui, tinha gente com inveja da casa da
gente.” (Guilhermina Farias dos Santos, 44 anos)

“É aquele negócio. Quem tá lá fora tem medo que aqui é terra de feiticeiro, mas aqui dentro da terra
também, eles têm um medo aqui mesmo.” (Francisco Gomes Pereira, 49 anos)

“Meu pai morreu foi feitiçaria. Hoje falo. Se fosse agora, como hoje eu sou desenvolvido no
Candomblé, num tinha chegado essa parte. Só que o sonho... Eu sonhei onde meu pai tava. Eu não
trabalhava, não era desenvolvida quando eu sonhei, aí quando saiu, foi dito e certo. Ele foi pra fora e
falou que tava passado. Que era isso. Pelo sonho que eu sonhei. Se fosse agora eu tinha corrido atrás
mais cedo.” (Maria Guedes da Rocha, 44 anos)

“Tem muitas pessoas com esses problemas aí. Aí tem aquela coisa... Diz que é problema espiritual, só
que tem outras pessoas que já leva praquele lado, aquele negócio de feitiçaria. ‘Ah, fizeram coisa pra
fulano’ e, no caso, as vez não é. E as vez...”
“Sempre ando com um dente de alho. Quando não é dente de alho é folha de alecrim, de arruda dentro
da minha bolsa, quando não é na bolsa é no bolso da roupa que eu ando. Quando é roupa que não tem
bolsa, enfio no meio da cabeça.” (Clene Farias dos Santos, 27 anos)

O jardim com uma variedade enorme de espécies e o belo pomar nos fundos na casa
de dona Ana é uma mostra dos cuidados que as mulheres mangazeiras têm com as plantas.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
326

Amélia Gomes Pereira, zeladora da capela de Nossa Senhora do Rosário

Na frente da casa, no entanto, além das plantas ornamentais, o que prevalece no seu
jardim e no da maior parte dos quilombolas do Mangal são as plantas protetoras contra a
inveja, o mau-olhado e o feitiço. Assim, mesmo que o discurso sobre a feitiçaria tenha sido
substituído pelo silêncio, ele continuou se expressando através das plantas protetoras em
quase todas as casas do quilombo, para denunciar a permanência inabalável, nas
simbologias, das crenças mágicas.
Os depoimentos não deixam dúvidas de que as acusações de feitiçaria no quilombo
do Mangal estruturam o discurso dos quilombolas para explicar eventos relacionados à
saúde, ao crescimento familiar e pessoal dos indivíduos; mas, sobretudo, orientam, de um
modo geral, o sentido da ação dos sujeitos, fenômeno comum a todas as sociedades onde
existe a crença na feitiçaria. É importante frisar que tal crença se configura de diferentes
maneiras nos diferentes contextos de ocorrência.
No quilombo de Mangal, a ambiguidade entre negar a ocorrência da feitiçaria, para
fugir do estigma que os afastou da sociedade regional, e a necessidade política de relatar
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
327

fielmente as experiências culturais dos seus antepassados, obrigou os quilombolas a


ressignificar o conceito de feitiçaria.
Para as novas gerações de mangazeiros, a feitiçaria, além do seu caráter tradicional de
um ato perverso que ameaça a vida de inocentes, representa também uma arma poderosa
contra os que pretendem negar os valores da cultura negra quilombola. Neste sentido, a
plasticidade da filosofia do senhor Egídio Gomes Pereira sobre o bem e o mal é uma
tradução perfeita para se entender o novo significado da feitiçaria: “tudo tem que ter. Eu
digo assim, no mundo o que tem de bom tem de ruim. Então Deus fez as coisa tudo certo.”
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
328

CONCLUSÃO

Os quilombolas de Rio das Rãs e Mangal contam as suas histórias a partir de


referentes culturais legados pelos seus antepassados. São histórias que falam das trajetórias
de indivíduos, grupos étnicos e de famílias que foram trazidos como escravos para o Brasil.
Os africanos e seus descendentes reconstituíram parte dos modos de vida tradicionais dos
seus antepassados, mas foram compelidos a inventar novas formas de sociabilidades,
fundamentais para a sobrevivência na diáspora. Neste sentido, a “tradição é mais do que
uma forma particular da experiência de temporalidade; representa a ordem moral ‘do que se
passou antes’ na continuidade da vida cotidiana.”461 Esse processo de reconstituição e
invenção, aqui empregado no sentido das narrativas sobre o passado serem selecionadas e
atualizadas de acordo com as perspectivas e interesses dos narradores no presente, resultou
na configuração de uma cultura negra diaspórica adaptada às circunstâncias históricas.
Os mitos presentes nas narrativas dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal
exemplificam bem a complexidade desse processo. Neles estão presentes histórias
individuais e familiares e as motivações que contribuíram para unir indivíduos de variadas
procedências e experiências. Esses relatos são essenciais para cimentar laços de
solidariedade social. Através deles é possível identificar os elementos que explicam a
permanência e consolidação dessas populações nos seus territórios, não obstante tenham
enfrentado inúmeros obstáculos, como a imposição do sistema de agregacia, que os impedia
de explorar livremente as terras ocupadas imemorialmente pelos seus antepassados, as
pressões e violência dos fazendeiros e grileiros e as limitações de acesso aos recursos
naturais disponíveis nos territórios ocupados.
Os primeiros ocupantes dos territórios quilombolas de Rio das Rãs e Mangal no
século XIX buscaram, invariavelmente, fora dos seus domínios, os cônjuges que
possibilitariam a constituição das primeiras famílias que viabilizaram a sobrevivência em
lugares inóspitos, ocupados por animais selvagens e distantes dos mercados de compra e
venda de mercadorias. Das primeiras famílias isoladas se formaram parentelas que se
diferenciavam entre si por predicados morais e pela experiência cultural dos chefes

461
GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade, p. 235.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
329

fundadores. Entretanto, em virtude da escassez, sobretudo de mulheres, e as limitações


naturais do espaço físico, todas as parentelas eram obrigadas a se relacionar entre si,
embora nem sempre houvesse entre elas convergência de pensamento. Com isso, aos
poucos, foram se configurando grupos comunitários mais coesos.
Na experiência organizacional dos quilombolas de Rio das Rãs, as famílias
domésticas ocupavam pequenas glebas de terra no território quilombola e tinham relativa
autonomia para definir as suas atividades produtivas e educar os filhos em conformidade
com a filosofia moral dos chefes das parentelas. Estas ocupavam pequenas localidades,
como Brasileira, Rio das Rãs, Retiro, Enchu, Capão do Cedro, Riacho Seco, Mocambo e
Aribá, que se comunicavam através das relações de parentesco e de vizinhança. A
proximidade geográfica e a necessidade de trocas de produtos entre as famílias
engendraram uma cultura compósita e uma relação duradoura entre os indivíduos, baseada
na solidariedade social.
Essa conformação grupal interdependente foi decisiva para que os quilombolas se
considerassem “uma só parentage”. E daí as famílias passaram a se relacionar não mais
como unidades autônomas, mas enquanto grupo em que os seus membros se constituíam
comunitariamente. Mas, essa relação somente se tornou comunitária na medida em que foi
incorporado, pelas parentelas, um sentimento de pertencer ao um grupo com uma trajetória
histórica comum. No sentido preciso indicado por Max Weber:

“Somente quando, em virtude desse sentimento, as pessoas começam de alguma forma a orientar seu
comportamento pelo das outras, nasce entre elas uma relação social – que não é apenas uma relação
entre cada indivíduo e o mundo circundante –, e só na medida em que nela se manifesta o sentimento
de pertencer ao mesmo grupo existe uma ‘relação comunitária’”.462

Na experiência dos quilombolas de Mangal – menos complexo por envolver


basicamente duas grandes parentelas, os Gomes e os Lobo, e circunscritos a um território
mais limitado de cerca de cento e cinquenta hectares doados aos quilombolas para o
pagamento de uma promessa a Nossa Senhora do Rosário –, o caráter de comunidade se
configurou basicamente com o mesmo modelo de Rio das Rãs, isto é, mediante a
solidariedade de indivíduos oriundos de localidades próximas a Mangal, que se associaram
através de relações conjugais e passaram a conviver em um mesmo território.

462
WEBER, Max. Economia e sociedade. 3. ed. V. 1. Brasília: Editora UnB, 1994, p. 26.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
330

As relações de solidariedade entre os negros nessa região se estenderam para além dos
marcos geográficos de Rio das Rãs e Mangal e moldaram o que eu estou chamando
território quilombola do Médio São Francisco.
Esse território negro foi conformado ao longo da ocupação do Oeste da Bahia no
período da escravidão. Os africanos e seus descendentes, transportados como escravos para
a região, passaram a se relacionar entre si nas duras condições do sistema escravista. No
decorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX, serviram como mão de obra cativa nas minas de
salitre, diamantes e ouro e nas fazendas de criação de gado, de cultivo de cana de açúcar, de
algodão e de cereais. Alguns escravizados conseguiram evadir das fazendas e das minas, ou
dos comboios de tropas procedentes da costa baiana, quando eram transportados para servir
na ocupação da região. Os que fugiram se juntavam aos negros livres para se estabelecer
como grupos em terras desocupadas, sobretudo, às margens do Rio São Francisco.
Ainda hoje se encontram no Vale do São Francisco pequenos núcleos familiares
negros vivendo em terras devolutas nas partes mais altas da caatinga ou em áreas de
vazantes e ilhas formadas pelo rio. Sobreviveram nessas terras, sem qualquer
documentação que atestassem a ocupação imemorial, por isso mesmo, estiveram expostos
às violências dos especuladores de terras, dos grileiros e fazendeiros. É o caso dos
pequenos povoados negros de Tomé Nunes, no município de Malhada; Barreiro Grande e
Capão, em Serra do Ramalho; Campinas e Cedro, em Riacho de Santana; Barra do Pau
Preto, em Palmas do Monte Alto; e Jatobá, no Muquém do São Francisco.
Estes povoamentos negros no Vale do São Francisco tiveram importante contribuição
na formação dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal. A partir da segunda metade do
século XIX, os quilombolas buscavam os seus cônjuges justamente nestas pequenas
localidades. Os contatos ocorriam normalmente nas celebrações festivas de samba de roda e
umbigadas, ao término das festas religiosas católicas. O senhor Isauro Lobo dos Santos
estima que a “metade [da população do Mangal] veio de fora”. Ainda que o informante
possa ter excedido na proporção, o que ele quer sinalizar é que, na constituição demográfica
do quilombo, foi fundamental a junção das famílias fundadoras com indivíduos de outras
localidades vizinhas.
Os encontros e as uniões de indivíduos de diferentes procedências no âmbito regional,
além de possibilitar as trocas matrimoniais e o equilíbrio demográfico das populações de
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
331

Rio das Rãs e Mangal, serviram também como canais de comunicação e espaços de
relacionamentos para a constituição de uma identidade negra no território quilombola.
Esses contatos, inicialmente casuais e esporádicos, tornaram-se, a partir dos do
fortalecimento dos laços de parentesco, das relações de vizinhança e dos
compartilhamentos entre os indivíduos com diferentes experiências culturais, mais
frequentes, e assim, contribuíram para consolidar a cultura desses quilombos.
Com essa aproximação entre os negros do Médio São Francisco, foi possível também
a troca e o fortalecimento de saberes nas áreas de medicina fitoterápica, da musicalidade
negra, sobretudo o samba de roda, da agricultura, da pesca, da criação e da conformação de
uma religiosidade negra regional. Esta religiosidade teve a influência de cultos indígenas,
do catolicismo popular e do espiritismo que, segundo Da Matta, citado por Ferreti, “se
enquadra nas características desta capacidade brasileira de relacionar coisas que parecem
opostas.”463
A aproximação viabilizou também estratégias políticas comuns. Neste âmbito da
política, a celebração dos negros da região em comemoração à abolição da escravatura na
Gruta do Bom Jesus da Lapa, em junho de 1888, foi, provavelmente, o evento mais
emblemático desse processo. A recente e intensa mobilização política das comunidades
negras da região, que reivindicam o direito de legalização de suas terras como
“remanescentes de quilombos”, é um exemplo da continuidade dessa relação entre os
negros do Médio São Francisco. É parte desse processo, também, a comemoração conjunta
(Ver foto a seguir)464, que se realiza há cerca de dez anos, do Vinte de Novembro como
símbolo de uma nova consciência negra. Participam dessas comemorações comunidades
negras rurais como Araça-Cariacá, Rio das Rãs, Juá/Bandeira, Batalhinha, Lagoa dos
Peixes, Piranhas, Bebedouro (Bom Jesus da Lapa), Mangal/Barro Vermelho (Sítio do
Mato), Jatobá (Muquém do São Francisco), Pau D’arco/Parateca e Tomé Nunes (Malhada)
e Barra do Parateca (Carinhanha).
Os fazendeiros e senhores de terras, em aliança com as estruturas de poder locais,
eram os principais obstáculos para a organização, a liberdade de circulação e a
sobrevivência física dos povoamentos negros do Médio São Francisco. Por isso mesmo, a

463
FERRETI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo, p. 17.
464
Fotografia gentilmente cedida pelo historiador da UNEB, Nivaldo Osvaldo Dutra.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
332

união das diferentes parentelas de Rio das Rãs e Mangal foi decisiva para a formação,
consolidação e a continuidade destes quilombos.

Comemoração do Vinte de Novembro de 2009 na comunidade de Bebedouro, Bom Jesus da Lapa.

Mas, é enganoso imaginar, por outro lado, que não tenha havido, ao longo do
processo de constituição destes quilombos na região, competições e conflitos entre as
parentelas e, muitas vezes, entre indivíduos da mesma ou de parentelas distintas. Os
desentendimentos entre parentes e vizinhos poderiam ocorrer por causa da escolha de um
local para plantar na vazante, onde o espaço é mais exíguo, pela invasão de um animal em
uma roça, a demonstração de pouca disposição de um indivíduo para o trabalho produtivo
ou mesmo pelo caráter permissivo na criação de um filho. Os conflitos entre os
quilombolas, portanto, podem ser originados tanto por rixas rotineiras envolvendo
desencontros pessoais como também por interpretações morais conflitantes. Os que não
seguem os padrões tradicionais, de ter uma roça bem cuidada para prover com alimentação
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
333

a sua família ou algum convidado ou possuir animais no pasto que sirvam como poupança
para alguma emergência, são duramente censurados.
Os conflitos entre os quilombolas eram geralmente resolvidos com a palavra sóbria de
um idoso respeitável. Alguns anos antes de falecer, senhor Francisco Tomé de Souza, que
morreu em 2003 aos 107 anos de idade, confessou que em Rio das Rãs não era preciso a
presença da polícia ou da justiça, porque eles sabiam como resolver os seus
desentendimentos. Depois do conflito pela posse da terra, em que lideranças políticas mais
jovens ascenderam ao poder, esses conflitos passaram a ser mediados pelas associações
juridicamente legalizadas. Com isso, os quilombolas mais idosos foram deslocados do
centro das decisões políticas.
A modernização dos costumes nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, com a
legalização das terras, oferecimento da educação em larga escala, construção de casas de
alvenaria, instalação de serviço de água e energia elétrica e, também, criação das
associações, que transferiram o poder para os mais jovens, em quase nada alterou, nos dois
quilombos, a condição subalterna das mulheres na vida social.
A divisão das atividades produtivas separa homens e mulheres em fronteiras mais ou
menos demarcadas. O que se considera trabalho feminino no quilombo, como lavar, passar,
cozinhar, cuidar das hortas, da residência e dos filhos, somente é exercido pelas mulheres.
Os homens que, porventura, se arriscam a fazer tais atividades são recriminados. Dessa
forma, as mulheres se consideram em desvantagem na comparação com as atividades
exercidas pelos homens.
A liberdade concedida aos homens para ter relações sexuais fora do casamento é
outro aspecto que denota a existência de desequilíbrio nas relações entre homens e
mulheres. Neste caso, a situação mais evidente de privilégios para os homens polígamos foi
a de Rio das Rãs, possivelmente, por este quilombo ter uma população mais numerosa e
difusamente distribuída em um enorme território de 39 mil hectares de terras.
Em Mangal, segundo o depoimento de uma informante, o mais comum é que os
homens tenham relações sexuais com as suas amantes, discretamente, fora do quilombo.
É privativo dos homens beberem cerveja ou pinga nos fins de semanas nos recentes
botecos em funcionamento nos dois quilombos.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
334

Em Rio das Rãs e Mangal as formas de afetividade nas relações entre homens e
mulheres ocorrem privadamente, por isso mesmo não se vê casais de mãos dadas, se
abraçando ou se beijando em público. Algumas mulheres reclamam desse hábito
tradicional, outras, entretanto, não consideram apropriado que homens e mulheres tenham
as suas intimidades expostas à luz do dia. Mas, esse relativo distanciamento dos casais nos
espaços públicos termina por favorecer os homens: já que a demonstração pública de
afetividade é encarada como algo privado, não há porque também as mulheres
manifestarem sentimentos como o ciúme. Assim sendo, os casais e as amantes dos homens
polígamos podem frequentar, sem susto, os mesmos ambientes sociais. Talvez por isso, eu
não tenha presenciado, em Rio das Rãs e Mangal, uma cena sequer de briga entre casais,
ainda que as mulheres afirmem ter ciúmes dos seus maridos.
No processo de conformação dos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, os legados
culturais e religiosos de origem africana tiveram um papel fundamental para nortear a ação
dos indivíduos e das parentelas em seus respectivos territórios. A feitiçaria é um desses
legados.
A feitiçaria é uma prática condenada moralmente em toda a sociedade brasileira,
porém, a realidade atual é muito diferente do enquadramento estabelecido pela Inquisição
no período colonial ou da criminalização das práticas mágicas mediante regras inscritas no
Código Penal, que prevaleceu do final do século XIX até a primeira metade do século XX.
Mas, “diferentemente de muitas sociedades onde é forte a crença na feitiçaria, aqui não se
pune feiticeiros com a pena de morte.”465
Nos quilombos de Rio das Rãs e Mangal, a prática da feitiçaria é igualmente
condenada moralmente, pois os quilombolas, de um modo geral, a consideram um ato de
perversidade contra indivíduos indefesos. Porém, não existe qualquer iniciativa, individual
ou coletiva, no sentido de abolir essa prática da vida social dos quilombos. A explicação
para isso é que a crença na feitiçaria está inscrita na experiência dos quilombolas como um
bem cultural.
Da mesma forma que parte ou a totalidade das mulheres quilombolas não se
conformam com as relações extraconjugais de seus maridos, elas reconhecem, entretanto,
que a poligamia não é um ato isolado de um ou outro homem, ao contrário, é um costume

465
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço, p. 22.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
335

inscrito na sua cultura, daí a explicação para a ausência de protestos ou mesmo de vingança
das mulheres. Do que foi possível observar, as mulheres quilombolas não se consideram
traídas, diferentemente do imaginário feminino predominante em nosso meio urbano. A
feitiçaria, em Rio das Rãs e Mangal, é igualmente repudiada, entretanto, ela é encarada
como um componente da cultura dos quilombolas.
A reação cabível em Rio das Rãs e Mangal para se opor aos atos dos feiticeiros, além
de denunciar – na maior parte dos casos, secretamente – a ocorrência do enfeitiçamento, é
usar os conhecimentos, os objetos e as orientações oferecidos no universo da feitiçaria
como arma de proteção e defesa.
O conceito de universo da feitiçaria foi empregado no corpo da tese como um campo
de relações sociais no qual circulam conhecimentos especializados e poder. Acrescento,
aqui, a idéia de que ele é constituído também de uma economia. A economia da feitiçaria
ordena e estrutura a utilização de recursos necessários para operar as suas práticas ofensivas
e defensivas.
Como em toda a economia, é intensa a circulação de capitais simbólicos e monetários
nesse universo. Informações, conhecimentos, produtos e serviços são comprados, vendidos,
permutados e doados. Por ser um espaço regido por alguma racionalidade – ainda que a
feitiçaria tenha caráter manifestamente religioso –, levam mais vantagem os sujeitos mais
especializados e competentes, isto é, os que conseguem acumular mais capitais e convencer
os adeptos da feitiçaria sobre a eficácia dos seus predicados. O pagamento pelos serviços
prestados para se fazer ou desfazer a feitiçaria e a existência de um mercado onde se
comercializam bens e produtos relacionados ao universo da feitiçaria comprovam a
materialidade dessa economia da feitiçaria.
A feitiçaria é uma prática sistêmica, ou seja, ela impacta a vida do conjunto dos
quilombolas de Rio das Rãs e Mangal, o que significa dizer que ela é uma ação estruturada,
com regras de funcionamento, uma ética própria e, ademais, goza do reconhecimento de
todos como instituição dessas sociedades quilombolas.
Por ser o universo da feitiçaria um espaço de relações entre os sujeitos, portanto, um
espaço de comunicação, nele circulam, inexoravelmente, relações de poder. É nessa
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
336

dimensão que a linguagem da feitiçaria tem um papel fundamental na conformação das


relações de poder. O poder domina a gramática especializada no universo da feitiçaria.466
Por essa razão, o trabalho de fazer ou de desfazer um feitiço compete aos
especialistas que dominam a linguagem da feitiçaria. Como toda linguagem, a feitiçaria é
dinâmica, isto é, se refaz e atualiza os seus códigos. É esta a razão de a feitiçaria ter tido a
capacidade de se renovar para conviver com sucesso com a modernidade da sociedade
contemporânea. Os feiticeiros e curadores, dois dos sujeitos mais importantes no universo
da feitiçaria, se atualizam permanentemente para responder às necessidades inerentes às
suas respectivas responsabilidades.
Ao contrário da suposição corrente de que os feiticeiros são indivíduos proscritos e
isolados socialmente – supostamente pelo fato de a feitiçaria ser condenada moralmente e
os seus autores agirem preferencialmente na penumbra –, há provas de que nem sempre
eles estiveram marginalizados socialmente. Mais de um informante fez alusão a famosos
feiticeiros em Rio das Rãs, que teriam sido personalidades proeminentes na história do
quilombo. Alguns deles foram chefes de parentelas tradicionais, enquanto outros lideraram
a resistência política quando o quilombo esteve ameaçado por fazendeiros invasores.
Para Mary Douglas, as “acusações [de feitiçaria] fazem parte de um sistema de
delimitação de fronteiras políticas.”467 Essas fronteiras, presume-se, são estabelecidas no
processo de competição, quando os bens colocados à disposição no universo da feitiçaria
são transacionados. É nesse cenário que ocorrem as disputas e conflitos propriamente
políticos.
Por ser a feitiçaria um discurso corrente para explicar os acontecimentos relacionados
à vida cotidiana dos quilombolas de Rio das Rãs e Mangal, ao desenvolvimento de suas
roças e seus animais, ele está presente com regularidade nas relações entre os indivíduos.
Os quilombolas se orientam no dia a dia da vida social cientes da existência da inveja,
da cobiça e do quebranto, modalidades, por assim dizer, espontâneas de feitiços e, também,
certos da possibilidade de ocorrência de uma poderosa energia emitida por um feiticeiro,
que pode alterar a sua vida ou o desenvolvimento de suas plantas e de seus animais.

466
Cf. BALANDIER, Georges. O contorno.
467
MAGGIE, Ivonne. Medo do feitiço, p. 186.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
337

Para se movimentar em um universo como esse é preciso conhecer, portanto, as suas


regras, entender os seus códigos ou ser um especialista, como um curador, que tem
conhecimentos rituais para identificar os feiticeiros e propor alternativas de tratamento para
os que forem atingidos pela feitiçaria. Como a maioria dos quilombolas não tem
especialidade para operar nesse campo, desde cedo, todos são obrigados a aprender os mais
elementares cuidados de prevenção. Nos dois depoimentos abaixo, os quilombolas indicam
de que maneira eles agem preventivamente contra a feitiçaria:

“Tem uma fitinha vermelha que a gente coloca na criança é pra não pegar quebranto, mau-olhado.”
(Domingas Farias de Sá, 30, anos, de Mangal);

“Essa tradição, isso aí já veio desde os velhos, dos tempos passados. Quem toma pinga, você coloca
gergelim preto na pinga, você coloca um alho roxo, você coloca um tipi-gambá, você coloca o tipi-
preto mermo que é o tipi cabôco. Você vai colocano vários remédio. Arruda, o alecrim, você usa uns
banho, você usa difumador” (Edivaldo da Mata Silva, 49 anos, de Rio das Rãs)

Além desses cuidados individuais contra a feitiçaria, os quilombolas adotam


mecanismos de proteção para toda a família, as roças e seus animais. Nas roças, nos currais
e nas residências, há sempre algum tipo de representação simbólica, como uma caveira de
um animal no curral, com a finalidade de espantar alguma “coisa enviada” contra os seus
animais e plantas e proteger os quilombolas da ação da feitiçaria. Plantas como manjericão,
pinhão roxo, espada de Ogum, espada de Oxossi, tipi e muitas outras são obrigatórias nos
quintais de quase todas as residências em Rio das Rãs e Mangal.
Mas, por ser a feitiçaria é um sistema dinâmico e que se renova constantemente,
nem sempre as medidas primárias adotadas de proteção conseguem ser eficazes. Além do
mais, existem variadas modalidades de feitiçaria. E o feiticeiro aprende ao longo de sua
prática as feitiçarias mais apropriadas para cada situação. É aqui que entram os
especialistas, que consultam os encantados ou fazem olhadas, como eles costumam dizer,
para descobrir, com os instrumentos adequados, se, de fato, algo é uma ação da feitiçaria e,
em caso positivo, quais são as suas características e o seu poder ofensivo. Somente assim, é
possível agir para anular o que foi feito para atingir um indivíduo ou um bem de sua
propriedade.
Como se pode notar, o universo da feitiçaria é muito complexo para ser enfrentado
isoladamente por um indivíduo que conhece, apenas, os procedimentos mais elementares de
defesa.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
338

Os indivíduos dotados de especialidades para se movimentar no universo da


feitiçaria se destacam pela acumulação de conhecimentos, aptidões e capacidade de
convencimento. A movimentação desses sujeitos especializados é marcada pela assimetria,
pois nem todos têm as mesmas habilidades e competências nesse campo. É neste cenário
que se reproduzem desigualdades e se constroem relações de poder.
Ao acumular capitais simbólicos, sobretudo conhecimentos atualizados na
manipulação da feitiçaria e da contra-feitiçaria, determinados indivíduos acumulam,
também, poder.
O poder, nesse universo, tem diferentes origens. Mas ele é concentrado, sobretudo,
nos feiticeiros considerados mais temidos, nos curadores capacitados para lidar com
diferentes modalidades de feitiçaria, e nos indivíduos isolados que desenvolveram
habilidades para se proteger da feitiçaria sem, contudo, recorrer aos curadores
convencionais. Por isso mesmo, estes são considerados muito perigosos, justamente por se
desconfiar de que eles sejam também feiticeiros – que sabem fazer e desfazer feitiços.
Todos os indivíduos dotados das referidas habilidades são respeitados, temidos e
mesmo reverenciados, tenham ou não proeminência política nos quilombos de Rio das Rãs
e Mangal.
Durante o conflito pela posse da terra em Rio das Rãs, o fazendeiro Carlos Bonfim
ameaçou derrubar com os seus tratores todas as casas da localidade de Enchu, porém, ele
fez questão de divulgar que não tocaria na residência do senhor Andrelino Francisco
Xavier. Os quilombolas dizem que ele “morria de medo” do senhor Andrelino, o mais
famoso e querido curador do quilombo.
Em algumas circunstâncias, como foi demonstrado nesta tese, os sujeitos vistos
como feiticeiros podem intimidar e constranger os poderes formais existentes nos
quilombos, como as associações que legalmente lhes representam.
A linguagem da feitiçaria, em sua riqueza performática, abriga outra propriedade
muito importante: a ambivalência. É um equívoco imaginar que a feitiçaria se reduza
apenas ao seu conhecido caráter de um ato perverso contra inocentes. Existe uma variedade
de tipos e usos da feitiçaria. Tanto ela pode ser empregada como uma arma mortal contra
um indivíduo indefeso, que é a sua marca mais conhecida, como pode ser empregada com a
finalidade de seduzir e encantar.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
339

No quilombo de Mangal, o termo “feiticeiro” se tornou, durante muito tempo, ao


que tudo indica a partir da segunda metade do século XIX, uma palavra maldita para os
mangazeiros, porque eles foram assim caracterizados, provavelmente, pelos senhores de
terras da região, como um mecanismo para isolá-los do contato com os negros que viviam
escravizados nas fazendas da região. Pelo fato de ser considerada, inclusive durante a
escravidão, uma ação agressiva, amoral e temida por todos, inclusive os negros
escravizados e livres, a acusação de feitiçaria contra os mangazeiros cumpriu o objetivo
político pretendido pelos senhores de terra.
Durante todo o século vinte, a fama negativa de “mangazeiros feiticeiros” se
estendeu para toda a região do Médio São Francisco. Desse modo, os negros do Mangal
foram isolados do convívio com outros indivíduos, e a acusação de feitiçaria se transformou
em um estigma. Quando os mangazeiros tinham as suas identidades reveladas, eram
hostilizados: “ah mangazeiro, nêgo do beição, nêgo do pezão, do pé rachado, num-sei-o-
quê” (Carlos Alberto Gomes).
As acusações se transformaram em pretexto para discriminar os mangazeiros, por
serem “feiticeiros” e “negros”. Com isso, a sociedade regional associou a categoria de
feiticeiro a um atributo racial irredutível aos mangazeiros, reproduzindo, desse modo, uma
modalidade de racismo.
A desconstrução do estigma de “mangazeiros feiticeiros” ocorreu no processo de
mobilização e luta pela legalização das terras do Mangal, quando os mangazeiros se deram
conta de que as acusações de feitiçaria contra eles eram decorrentes de interesses políticos e
raciais.
Com essa nova consciência, os mangazeiros transformaram a feitiçaria em
instrumento que os tornassem visíveis na sociedade regional. A mudança de estratégia
possibilitou aos quilombolas tornar públicos os terreiros e zelar seus caboclos e orixás e,
dessa forma, atender aos apelos e cobranças de suas divindades de origem africana.
Em Rio das Rãs, a feitiçaria é um fenômeno que está presente de forma generalizada
no tecido social do quilombo. Para os quilombolas, a feitiçaria é uma arma capaz de
provocar danos ou até mesmo matar um inocente.
Esta era a imagem predominante que os quilombolas de Rio das Rãs tinham da
feitiçaria até o momento em que eles, no auge do conflito com Carlos Bonfim, tiveram que
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
340

enfrentar os revólveres e as escopetas dos capangas do fazendeiro e também a “feitiçaria”


que ele espalhara no território dos quilombolas para perturbar o processo de desapropriação
das terras que estava sendo conduzido pelo INCRA.
De acordo com as regras do universo da feitiçaria, um feitiço só pode ser anulado
através de um contra-feitiço preparado por um especialista. E não pode ser qualquer um
especialista. O mais famoso curador da história de Rio das Rãs, o falecido senhor Andrelino
Francisco Xavier, por exemplo, identificou que as terras do quilombo tinham sido
enfeitiçadas, mas ele se declarou inabilitado para desfazer o poderoso feitiço encomendado
pelo fazendeiro a “uma titia” de Cachoeira.
Por esse motivo, os quilombolas recorreram a um curador de fora do quilombo com
capacidade para “desmanchar o trabalho” de Carlos Bonfim. Somente depois da “limpeza”
do território dos quilombolas, o conflito pela posse da terra pôde ter um desfecho que
interessava aos negros de Rio das Rãs.
As práticas culturais, em nossa sociedade, atribuíram à palavra feitiçaria
significados sempre próximos às coisas sombrias e tenebrosas. Um desses significados
mais correntes associa a feitiçaria à maldade, para designar justamente a violência e o
caráter perverso e desprezível da ação dos feiticeiros, marca presente em todas as
sociedades.
Ao ser vinculado à maldade, o conceito de feitiçaria assimilou uma significação
irredutível e invariavelmente negativa. Com isso, raciocinamos de acordo com uma
representação fixa de que o mal se opõe ao bem de forma absoluta. E, neste caso,
imaginamos também não haver relação entre o bem o mal.
Mas, os dois episódios que descreveram experiências de ressignificação da feitiçaria
mostraram aos quilombolas que os feiticeiros – ainda que continuem sendo vistos como
representações de indivíduos que se utilizam de instrumentos insidiosos e cruéis contra
vítimas inocentes – podem ser também mobilizados a serviço da luta política em defesa dos
interesses coletivos dos negros de Rio das Rãs e Mangal.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
341

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. A Festa do Dois de Julho – as comemorações públicas


da Independência Nacional. In Fundação Pedro Calmon. 2 de Julho – A Libertação do
Brasil na Bahia. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 2009.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Quilombo: repertório bibliográfico de uma questão
redefinida (1995-1996), São Luís (MA): digitado, 1997.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Introdução Sociedade Maranhense de Defesa dos
Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do Maranhão. Projeto Vida de Negro.
Coleção Negro Cosme. V. IV. São Luis: SMDH/CCN-MA/PVN, 2005.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Introdução. In Sociedade Maranhense de Defesa


dos Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do Maranhão – Projeto Vida de
Negro/Associação Rural de Moradores do Quilombo de Jamari dos Pretos. Jamari dos
Pretos, terra de mocambeiros. Coleção Negro Cosme, V. II. São Luis:
SMDH/CCN/PVN, 1998.

AMARAL, do Braz. História da Independência na Bahia. Salvador: Prefeitura do


Município do Salvador, 1957.

ANJOS, José Carlos Gomes dos, SILVA, Sérgio Baptista da. (Orgs.) São Miguel e Rincão
dos Martinicanos – ancestralidade negra e direitos territoriais. Porto Alegre: Editora da
UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2004.

ANJOS, José Carlos Gomes dos. Identidade Étnica e Territorialidade. In


ANJOS, José Carlos Gomes dos SILVA, Sérgio Baptista da (Orgs.). São Miguel e Rincão
dos Martinicanos – ancestralidade negra e direitos territoriais. Porto Alegre/Brasília:
URGS Editora/MINC/FCP, 2004.

ARRUTI, José Maurício. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação


quilombola. São Paulo/Bauru: EDUSC, 2006.

AUGÉ, Marc. Não-Lugares – Introdução a uma antropologia da supermodernidade. 2. ed.


Campinas: Papirus, 2001.

AYRES, Genny Magna de Jesus Mota. Pretos, Brancos e Agregados em Saco das Almas.
Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA/FFCH, 2002.

BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Negros de Cedro (Estudo Antropológico de um Bairro Rural


de Negros). São Paulo: Editora Ática, 1983.

BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Kalunga – Povo da Terra. Brasília: Ministério da


Justiça/Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 1999.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
342

BARCELLOS, Daisy Macedo de, CHAGAS, Miriam de Fátima, FERNANDES, Mariana


Belen (et. al.). Comunidade Negra de Morro Alto: historicidade, identidade e
territorialidade. Porto Alegre: Editora UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2004.

BARCELOS NETO, Aristóteles. De divinações xamânicas e acusações de feitiçaria:


imagens Wauja da agência letal. Revista MANA, 12 (2), p. 285-313, 2006.

BALANDIER, Georges. O contorno – Poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 1997.

BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco. São Paulo: Editora
Brasiliense/CNPq, 1998.

BARBER, Karin. Como o homem cria Deus na África Ocidental: atitudes dos Yoruba para
com o Órisà. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes. (org.) Meu Sinal está no teu corpo
– escritos sobre a religião dos Orixás. São Paulo: EDICON/EDUSP, 1989

BARBOSA, Elyana. “Espaço-tempo e poder-saber”. São Paulo: Revista Tempo Social,


USP, outubro de 1995.

BARBOSA, Lúcia Maria de Assunção, SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e,


SILVÉRIO, Valter Roberto (Orgs.). De Preto a Afro-descendente. São Carlos:
EDUFSCAR, 2003.

BARROS, Denise Dias. Medicina negro-africana: institucionalidade, saberes e sentido do


adoecer e da loucura na África do Oeste e no Mali. Revista Imaginário/USP, Ano X, Nº 10,
2004/2005.

BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BENTO, Maria Aparecida. Cidadania em Preto e Branco. São Paulo, Ática, 1998.

BERNAD, Zila. Racismo e Anti- Racismo. (Coleção Polêmica.) São Paulo, Moderna,
1994.

BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da Magia: feiticeiros, adivinhos e curandeiros


em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BIRMAN, Patrícia (org.). Religião e espaço público. São Paulo: CNPq/PRONEX/ATTAR


Editorial, 2003.

BERGER, Peter L., LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 18. ed.
Petrópolis: Vozes, 1999.

BRAGA, Julio. Na gamela do Feitiço: repressão e resistência nos Candomblés da Bahia.


Salvador: CEAO/EDUFBA, 1995.

BRAGA, Julio. A Cadeira de Ogã e outros ensaios. Rio de Janeiro: PALLAS, 1999.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
343

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Peões, Pretos e Congos – Trabalho e Identidade Étnica em


Goiás. Brasília: UNB, 1977.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e Etnia - Construção da Pessoa e Resistência


Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986.

BOURDIEU, Pierre, CHANBOREDON, Jean-Claude, PASSERON, Jean-Claude. A


profissão de Sociólogo, preliminares epistemológicas. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. Prefácio: sobre as artimanhas da razão


imperialista in Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani (org.). Pierre Bourdieu, escritos de
Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1989.

BRITO, Edilson Pereira. Cidadania, Escravidão e Recrutamento Militar na Província do


Paraná. Comunicação no I Seminário Nacional Sociologia e Política da UFPR, 2009.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Antropologia do Brasil - Mito, História e Etnicidade.


São Paulo: Brasiliense, 1986.

CARVALHO, José Jorge (Coord.). Laudo Antropológico sobre a Comunidade Negra do


Rio das Rãs. Brasília: digitado, novembro, 1993.

CARVALHO, José Jorge (Org.), DÓRIA, Siglia Zambrotti, OLIVEIRA JR, Adolfo Neves.
O quilombo de Rio das Rãs: História, tradição, lutas. Salvador: EDUFBA, 1996.

CARVALHO, José Jorge. O olhar Etnográfico e a voz Subalterna. Horizontes


Antropológicos. Porto Alegre, ano 07, n. 15, julho de 2001.

CARVALHO, Vaílton L. de. História do Rio São Francisco. Salvador: SEPLANTEC/CPE,


datilografado, 1981.

CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciencias sociales, violência epistêmica y el problema de la


“invención del outro” in Edgardo Lander (org.). Colonialidade do saber, eurocentrismo e
ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN-MA), Sociedade Maranhense de Defesa dos


Direitos Humanos (SMDH) – Projeto Vida de Negro. Terras de Preto no Maranhão:
quebrando o mito do isolamento. Coleção Negro Cosme. VIII. São Luis:
SMDH/CCN/PVN, 2002.

CHAMPAGNE, Patrick. A ruptura com as pré-construções espontâneas ou eruditas. In


CHAMPAGNE, Patrick et. al.. Iniciação à prática sociológica. Petrópolis: Editora Vozes,
1998.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
344

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. 4.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1998.

COUCEIRO, Luiz Alberto. A sedução do feitiço: Juca Rosa, Pai Gavião e acusações de
feitiçaria no Império do Brasil. Trabalho apresentado no XIII Encontro de História
ANPUH, Rio de Janeiro: Identidades, s/d.

COUCEIRO, Luiz Alberto Alves. Pai Gavião e a Coroa da Salvação: Crença e Acusações
de Feitiçaria no Império do Brasil. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: IFCS/UFR,
2004.

CRAMER, de Willy, VANSINA, Jan, FOX, Renée C. Religions in of Movements Central


Africa: Theorical Study. Comparatives Studies in Society and History, 1976.

Da MATTA, Roberto. Apresentação Liminar à obra e à graça de Victor Turner e à sua


Antropologia da Ambigüidade. In: TURNER, Victor. Floresta de Símbolos, 2005.

D’ADESKY, Jacques. Racismos e Anti-Racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco – usos e abusos da África no Brasil.
Rio de Janeiro: GRAAL, 1988.

DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.

DOUGLAS, Mary. Brujeria: el estado de la question – treinta años después de Brujeria,


Oráculos y Magia entre los Azande. 3. ed. In: GLUCKMAN, Max, DOUGLAS, Mary,
HORTON, Hobin. Ciencia y Brujeria. Barcelona: Editorial ANAGRAMA, 1991.

DOUGLAS, Mary. Os Lele revisitados, 1987 – acusações de feitiçaria à solta (versão de


1999). MANA. Estudos de Antropologia Social. Volume 5, Nº 2, outubro de 1999.

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. 14. ed., São Paulo: Companhia
Editora Nacional,1990.

DUTRA, Nivaldo Osvaldo. Liberdade e reconhecer que estamos no que é nosso:


comunidades negras do Rio das e da Brasileira – Bahia (1982-2004). Mestrado em História
da PUC - São Paulo, 2007.

ELIADE, Mircea. O sagrado e profano – a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 1978.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social. Lisboa: Edições 70, 1985.


Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
345

EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia Social da Religião. Rio de Janeiro: Editora


Campus, 1987.

FELIX JUNIOR, Osvaldo Silva. Repensando a Guerra (Participação da Bahia na Guerra do


Paraguai – 1865-1870). Santo Antonio de Jesus: Dissertação de mestrado. Departamento de
Ciências Humanas Campus V, UNEB, 2009.

FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. (2 vols.), 3. ed.


São Paulo: Ática, 1978.

FERRETI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora USP; São
Luís: FAPEMA, 1995.

FONSECA, Maria Nazareth Soares (org.). Brasil Afro-Brasileiro. Belo Horizonte:


Autêntica, 2000.

FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do College de France (1970-1982). Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 18. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 21. ed. Rio de Janeiro: GRAAL, 2005.

FRY, Peter e VOGT, Carlos. Mafambura e Caxampura: na Encruzilhada da Identidade. In


Dados – Revista de Ciências Sociais, V. 24, Nº 23, Rio de Janeiro, 1981.

FRY, Peter. O Espírito Santo contra o Feitiço e os espíritos revoltados: “civilização” e


“tradição” em Moçambique. Revista MANA, Nº 6 (2), 2000.

GARCIA Jr, Afrânio Raul. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,


1989.

GESCHIERE, Peter. Sorcellerie et Politique em Afrique – la viande des outres. Paris:


Éditions KARTHALA, 1995.

GESCHIERE, Peter. Feitiçaria e modernidade nos Camarões: alguns pensamentos sobre


uma estranha cumplicidade. Revista Afro - Ásia, Nº 34, 2006.

GIDDENS, Anthony. Política, Sociologia e Teoria Social – encontros com o pensamento


social clássico e contemporâneo. São Paulo: Editora UNESP, 1998.

GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
346

GIUMBELLI, Emerson. Para além do “trabalho de campo”: reflexões malinowskianas.


Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 48, 2002.

GLUCKMAN, Max. La logica de la ciencia y de la brujeria africanas. In: GLUCKMAN,


Max, DOUGLAS, Mary, HORTON, Hobin. Ciencia y Brujeria. 3. ed. Barcelona: Editorial
ANAGRAMA, 1991.

GOFFMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.


ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 8.ed. Petrópolis: Editora


Vozes, 1999.

GONZALEZ, Lélia e HASENBALG, Carlos A. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco


Zero, 1982. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-racismo no Brasil.
São Paulo: Editora 34, 1999.

GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizando los paradigmas de la economia-política:


transmodernidad, pensamiento fronterizo y colonialidad global. Texto digitado, apresentado
ao Curso Fábrica de Ideais do CEAO-UFBa, 31/07 a 18/08/2006.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo e HUNTLEY, Lynn. (Orgs.) Tirando a máscara –


ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora
34, 2002.

GUSMÃO, Neuza M. Mendes de. Campinho da Independência: um caso de proletarização


“Caiçara”. Tese de doutoramento, São Paulo: PUC/USP, 1979.

GUSMÃO, Neuza M. Mendes de. Terra de Pretos, Terra de Mulheres – terra, mulher e
raça num bairro negro. Brasília: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1995.

HASENBALG, Carlos Alfredo. Relações Raciais no Brasil Contemporâneo. São Paulo,


Rio Fundo, 1992.

HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História da
África – metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982.

HEREDIA, Beatriz Alásia de Heredia. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos


produtores do nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 (Série Estudos sobre o
Nordeste, v. 7).

HEYWOOD, Linda M. De português a africano: a origem centro-africana das culturas


atlânticas e crioulas no século XVIII. In HEYWOOD, Linda M. (Org.) Diáspora negra no
Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
347

HORTON, Hobin. El pensamiento tradicional africano y la ciencia Occidental. In:


GLUCKMAN, Max, DOUGLAS, Mary, HORTON, Hobin. Ciencia y Brujeria. Barcelona:
Editorial ANAGRAMA, 3. ed., 1991.

IANNI, Octávio. Raças e Classes Sociais no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/Universidade Federal da Bahia


UFBA/Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Relatórios Técnicos de Identificação,
Delimitação e Demarcação das Comunidades Quilombolas de Lagoa do Peixe e Batalhinha
(Bom Jesus da Lapa), Jatobá (Muquém do São Francisco), Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba
(Wanderley) e Pau D’arco/Parateca (Malhada). CARVALHO, Genildo Souza de,
GERMANI, Guiomar Inez, OLIVEIRA, Gilca Garcia de, SILVA, Valdélio Santos
(Coord.). digitado, 2006.

JOAS, Hans. Interacionismo Simbólico. In GIDDENS, Anthony, TURNER, Jonathan


(Org.) Teoria Social hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia – guia prático da linguagem sociológica.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

KIDDY, Elizabeth W. Quem é o rei do Congo? Um novo olhar sobre os reis africanos e
afro-brasileiros. In: HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo:
Editora Contexto, 2008.

LABURTHE-TOLRA, Philippe. Etnologia, Antropologia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.


LAPLANTINE, François. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

LEITE, Fábio. A questão da Palavra em sociedades Negro-Africanas. Revista THOT 80,


s/d.

LEITE, Ilka Boaventura. O Legado do Testamento – A comunidade de Casca em Perícia.


2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Florianópolis: NUER/UFSC, 2004.

LEITE, Ilka Boaventura, CARDOSO e CARDOSO, Luis Fernando. Apresentação.


Boletim Informativo do NUER, V. 2, Nº 2, 2005.

LE GOFF, Jaques (et. ali). História e memória. 2. ed. Campinas: Editora UNICAMP, 1992.

LENINE, V. I. O Estado e a Revolução. Obras Escolhidas, V. 2, São Paulo: Editora Alfa-


Ômega, 1980.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,


1985.

LEWIS, Ioan M. Êxtase Religioso: um estudo antropológico da possessão por espírito e do


xamanismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977 [1971].
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
348

LIMA, Mesquitela. Antropologia do Simbólico – ou o simbólico da antropologia. Lisboa:


Editorial Proença, 1983.

MACGAFFEY, Wyatt. Kimbanguism and the question of Syncretism in Zaire. In:


THONSON, Dennis L., VAN BEEK, Walter E. A., BLAKELY, Thomas D. (eds.) Religion
in Africa: Experience e Expression. London: Portmouth: James Currey; Heinemann, 1994.

MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e o poder no Brasil. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

MAGGIE, Ivonne. Guerra de Orixá – um estudo de ritual e conflitos. 3 ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.

MAGGIE, Ivonne. O feitiço da Antropologia. In: BACELAR, Jéferson, PEREIRA, Cláudio


(orgs.). Vivaldo da Costa Lima – um intérprete do Afro-Brasil. Salvador: EDUFBA/CEAO,
2007.

MAIA, Antônio C. “Sobre a analítica do poder de Foucault”. São Paulo: Revista Tempo
Social, USP, outubro de 1995.

MAIR, Lucy. La brujeria en los pueblos primitivos actuales. Madrid: Ediciones


Guadarrama, 1969.

MALIGHETTI, Roberto. O quilombo de Frechal – Identidade e trabalho de campo em


uma comunidade brasileira de remanescente de escravos. Edições do Senado Federal. Vol.
81. Brasília: Senado Federal, 2007.

MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. Lisboa: Edições 70, 1988.

MARQUES, Cláudia Ana e VILLELA, Jorge Mattar. O que se diz, o que se escreve.
Etnografia e trabalho de campo no sertão de Pernambuco. Revista de Antropologia, São
Paulo, USP, 2005.

MARX, Karl. O 18 Brumário de Luiz Bonaparte. In: Marx, Karl e ENGELS, Friedrich.
Textos. V. III. São Paulo: Edições Sociais, 1977.

MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974.

MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.

MESSEDER, Marcos Luciano Lopes, NASCIMENTO, Marco Tromboni de S. Relatório de


Identificação da Comunidade de Mangal. Fundação Cultural Palmares. Salvador: Digitado,
agosto de 1998.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
349

MESSEDER, Marcos Luciano Lopes, MARTINS, Marco Antônio Matos. Arraiais de Rio
de Contas: uma comunidade de cor. Caderno CRH, Série Contos e Toques – Etnografias do
Espaço Negro na Bahia, Suplemento, Salvador: Editora Fator, 1991.

MILLER, Joseph. C. África Central durante a era do comércio de escravizados, 1490 a


1850. In HEYWOOD, Linda M. (Org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora
Contexto, 2008.

MONTEIRO, Anita Maria de Queiroz. Castaínho: etnografia de um Bairro Rural de


Negros. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Manssangana, 1985.

MONTERO, Paula. Da doença à desordem – a magia na Umbanda. Rio de Janeiro:


GRAAL, 1985.

MONTERO, Paula. Religião, Pluralismo e espaço público no Brasil. Novos


Estudos/CEBRAP, Nº 74, março de 2006.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, inssurreições, guerrilhas. 3. ed. São


Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. São Paulo: Ática, 1988.

NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura Fundiária e Dinâmica Mercantil: Alto Sertão da


Bahia, séculos VXIII e XIX. Salvador: EDUFBA/UEFS, 2005.

NEVES, Zanoni. Os remeiros do São Francisco na Literatura. Revista de Antropologia,


USP, v. 46, Nº 1, 2003.

O’DWYER, Eliane Cantarino. Apresentação In Terra de Quilombos, Revista da ABA, Rio


de Janeiro: ABA, 1995.

OLIVEIRA, Rafael Soares (org.) Candomblé – diálogos fraternos contra a intolerância


religiosa. Rio de Janeiro: DP&A, 2007.

OLIVEIRA, Sandra Nivia Soares de. De Mangazeiros a Quilombolas: terra, Educação e


Identidade em Mangal e Barro Vermelho. Dissertação de Mestrado. Salvador: Universidade
do Estado da Bahia – UNEB, 2006.

OLIVEIRA, Valnízia. Resistência e fé: fragmentos da vida de Valnizia de Airá. São Paulo:
All Print Editora, 2009.

ORTIZ, Renato. Introdução. In ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu – Sociologia. 2. ed.
São Paulo: Editora Ática, 1994.

ORTIZ, Renato Mundialização: saberes e crenças. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006.
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé – história e ritual da nação jeje na
Bahia. Campinas: Editora UNICAMP, 2006.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
350

PASSADOR, Luiz Henrique. Dinheiro e feitiço numa vila moçambicana. Trabalho


apresentado na 20º Reunião da Associação Brasileira de Antropologia. Digitado. Porto
Seguro, 01 a 04 de junho de 2008.

PEDREIRA, Pedro Tomás. Os Quilombos Brasileiros. Salvador: Prefeitura Municipal de


Salvador/ Departamento de Cultura da SEMEC, 1973.

PEREIRA, Cláudio. Relação teoria x trabalho de campo: observações críticas para


antropólogos que pactuam com o pensamento insubordinado. Digitado, s/d.

PEREIRA JUNIOR, Davi. Quilombos de Alcântara: território e conflito – Intrusamento do


território das comunidades quilombolas de Alcântara e pela empresa binacional,
Alcântara Cyclone Space. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2009.

PIAULT, Marc Henri. A questão do sentido: progressões, práticas emergentes e


expectativas. In: BIRMAN, Patrícia. (Org.) Religião e espaço público. São Paulo:
CNPq/PRONEX/ATTAR Editorial, 2003.

PIERSON, Donald. O Homem no Vale do São Francisco. Tomos 1, 2, 3. Rio de Janeiro:


SUVALE/MINTER, 1972.

QUEIROZ, Renato de S. Caipiras negros no Vale da Ribeira: um estudo de antropologia


econômica. São Paulo: FFLCH/USP (Antropologia), 1983.

RABINOW, Paul, Antropologia da Razão. Rio de Janeiro: Relume Damará, 2002.

RATTS, Alecsandro J. P. A voz que vem do interior: intelectualidade negra e quilombo. In


BARBOSA, Lucia Maria de Assunção, SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves, SILVÉRIO,
Valter Roberto. (Orgs.) De Preto a Afro-Descendente – trajetos de pesquisa sobre relações
étnico-raciais no Brasil. São Carlos: EDUFSCAR, 2003.

REIS, João José, GOMES, Flávio dos Santos. Introdução: Uma História da Liberdade. In
REIS, João José, GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.) Liberdade por um fio – história dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e


candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

RESTREPO, Eduardo. Essencialismo Étnico y Movilizacion Política: Tensiones em las


Relaciones entre Saber y Poder In BARBARY. Olivier (Coord.). Gente Negra em
Colómbia: dinámicas sociopolíticas em Cali y El Pacífico. Medellín:
CIDSE/IRD/COLCIENCIAS/Editorial Lealon, 2003.

Revista de Estudos Afro-Asiáticos. As artimanhas da Razão Imperialista – Comentários a


Bourdieu e Wacquant. Universidade Cândido Mendes – UCAM,
Ano 24/02 (2002).
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
351

RIBEIRO, Darcy. Las Américas y la civilizacion. Processo de fomación y causas del


desarrolo desigual de los pueblos. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1968, Apud MIGNOLO,
Walter. Histórias locais/Projetos Globais – colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco como fator precípuo da existência do Brasil. 3. ed.
São Paulo: Editora Nacional/CODEVASF, 1983.

RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Salvador: P555


Edições/Theatro XVIII, 2005.

ROJAS, Maurício Pardo. Marcos da Investigacion sociale, histórica e territoriale no


Pacifico afrocolombiana. In ROJAS, Maurício Pardo, MOSQUERA, Claudia, RAMÍRES,
Maria Clemência (Editores). Panorámica afrocolombiana – Estúdios sociales em el
Pacífico. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropologia e História – Icanh/Universidade de
Colômbia, 2004.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis. A história do feiticeiro Juca Rosa – cultura e relações
sociais no Rio de Janeiro Imperial. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas/UNICAMPI, 2000.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos Mistérios – Juca Rosa e as relações entre crença
e cura no Rio de Janeiro. In CHALHOUB, Sidney et. ali. (Orgs.) Artes e ofícios de curar
no Brasil. Campinas/SP: Editora UNICAMPI, 2003.

SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia, os caminhos da democracia


participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SANTOS, Boaventura de Souza. “A globalização e as Ciências Sociais”. São Paulo:


Cortez, 2002.

SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da Razão Indolente. São Paulo: Cortez, 2000.

SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003;
“Introdução a uma ciência pós-moderna”. Rio de Janeiro: GRAAL, 1989.

SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro:


GRAAL, 1989.

SANTOS, Jocélio Teles dos. Candomblés e espaço urbano na Bahia do século XIX.
Revista Estudos Afro-Asiáticos, 2005.

SANTOS, Jucélia Bispo dos. Etnicidade e memória entre os quilombolas em Irará – Bahia.
Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA/FFCH/CEAO/Programa Multidisciplinar de
Estudos Étnicos e Africanos, 2008.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
352

SCHWART, Stuart B. Cantos e Quilombos numa Conspiração de Escravos Haussás in


REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos. (Orgs.) Liberdade por um fio-História dos
Quilombos no Brasil. S. Paulo: Cia. das Letras, 1996.

SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. In Revista AFRO-ÁSIA.
Dossiê Remanescentes de Quilombos. Salvador, Centro de Estudos Afro Oriental, nº 23,
p.p 241 a 347, 2000.

SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs: liberdade e escravidão
na construção da identidade negra de um quilombo contemporâneo. Dissertação de
Mestrado. Salvador: FFCH/ UFBA, 1997.

SILVA, Vagner Gonçalves (org.). Intolerância Religiosa – impactos do


neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007.

SOARES, Luís E. Campesinato: Ideologia e Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do


Maranhão – Projeto Vida de Negro/Associação Rural de Moradores do Quilombo de Jamari
dos Pretos. Jamari dos Pretos, terra de mocambeiros. Coleção Negro Cosme, V. II. São
Luis: SMDH/CCN/PVN, 1998.

SOMETTI, José. Feitiço e Contra Feitiço. Petrópolis: Vozes, 1983.

SOROKIN, Pitirim A. Sociedade, Cultura e Personalidade: sua estrutura e dinâmica –


Sistema de Sociologia Geral. Porto Alegre: Editora Globo, V. I, 1968.

SOUZA, Evangelista de, ALMEIDA, João Carlos Deschamps. O Mucambo do Rio das Rãs
– um modelo de resistência negra. Bom Jesus da Lapa: SINERGIA/CÁRITAS, 1994.

SOUZA, José Evangelista de, ALMEIDA, João Carlos Deschamps de. O Mucambo do Rio
das Rãs – um modelo de resistência negra. Bom Jesus da Lapa: Impressão Arte e
Movimento, 1994.

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade


popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
SOUZA, José Evangelista de, ALMEIDA. Coronéis no Médio São Francisco – fatos e
histórias. 2. Ed. Santana – Bahia: Editora AJASS, 2007.

SLENES, Robert W. A Grande Greve do Crânio do Tucuxi: espíritos das águas centro-
africanas e identidade escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro. In: HEYWOOD,
Linda M. (org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

STEIL, Carlos Alberto. O Sertão da Romaria – um estudo antropológico sobre o santuário


de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
353

STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura. In. VALLA, Victor Vincent (Org.). Religião
e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

SUÁREZ, Mireya. Enfoques Feministas e Antropologia. Trabalho apresentado no I


Encontro Nacional Enfoques Feministas e as Tradições Disciplinares nas Ciências e na
Academia, realizado na UFF em 1994. Série Antropologia 177, Brasília, 1995.

TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 8. ed. São Paulo: Editora Ática, 1987.

TELLES, Maria Otília da C. Produção camponesa em Lagoa da Pedra: etnia e patronagem.


Dissertação de mestrado. Brasília: UNB, mimeografada, s/d.

TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo:


Paulus, 2004.

THONSON, Dennis L., VAN BEEK, Walter E. A., BLAKELY, Thomas D. (eds.) Religion
in Africa: Experience e Expression. (Introduction) London: Portmouth: James Currey;
Heinemann, 1994.

THORNTON, John K. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a


1700. In: HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Editora
Contexto, 2008.

TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do Ritual Ndembu. Niterói/RJ: EDUFF,


2005.

VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (Coord.).
História da África - metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO,
1982, 157.

VELSEN, J. Van. “A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado” in


FELDMAN-BIANCO, Bela. (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas –
métodos. São Paulo: Global, 1987.

VOGT, Carlos, FRY, Peter. A África no Brasil: Cafundó. São Paulo: Editora
UNICAMP/Companhia das Letras, 1996.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. 3. ed. V. I Brasília: Editora UNB, 1994.

WEBER, Max. Ciência e Política, duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2002.

WOLF, Eric R. Antropologia e Poder, FELDMAN-BIANCO, Bela e RIBEIRO, Gustavo


Lins (Orgs.), Brasília: UNB/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Editora UNICAMPI,
2003.
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software
http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.
354
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download:

Baixar livros de Administração


Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo

You might also like