You are on page 1of 63

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES / DEPARTAMENTO DE


LITERATURA
Prof. Geraldo Augusto Fernandes, Literatura Portuguesa I

TROVADORISMO EM PORTUGAL (1189/1198-1418)

Jograis de ARRABIL (instrumento de cordas usado pelos árabes) e ALAÚDE

Por muito tempo, ó amado,


Sei eu que me dedicastes
Grande amor e que ficaste
Muito feliz a meu lado
Falo do tempo passado!
Já passou. João Garcia de Guilhade

1
SITES PARA PESQUISA E CONHECIMENTO SOBRE A IDADE
MÉDIA, PRINCIPALMENTE A PORTUGUESA:
Base de dados sobre as cantigas medievais galego-portuguesas, onde estão
disponíveis todas as cantigas, os manuscritos, a música (original e versões/criações
contemporâneas), as iluminuras da Biblioteca da Ajuda: http://cantigas.fcsh.unl.pt/
Site da ABREM – Associação Brasileira de Estudos Medievais, com
publicações e informações sobre a Idade Média: www.abrem.org.br
No mesmo site, encontra-se a revista SIGNUM especialista em artigos, traduções,
resenhas sobre a Idade Média. Basta acessar o site e clicar no ícone da revista.
AHLM – Associação Hispânica de Literatura Medieval: http://www.ahlm.es
Arquivo Português de Lendas (APL) http://www.oct.mct.pt/bds/dout2/index.jsp
Bibliografia de Textos Antigos Galegos e Portugueses: http://gahom.ehess.fr/
Cantigas medievais galego-portuguesas online (Instituto de Estudos Medievais,
Universidade Nova de Lisboa): http://cipm.fcsh.unl.pt
Cantigas de Santa Maria (Centre for the Study of the Cantigas de Santa Maria
– Universidade de Oxford). Base de dados. http://clarisel.unizar.es/
Corpus informatizado do português medieval (Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa):
http://www.fordham.edu/halsall/newadds.html
GLOSSA - Glossário da poesia medieval profana galego-portuguesa:
http://glossa.illa.udc.es
Cancioneiros medievais: www.cancioneros.org

MUITO ALÉM DOS CASTELOS, DOS MOSTEIROS E DAS


TREVAS
Fonte: Este texto foi publicado no Boletim Eletrônico do SINPRO-SP (Sindicato dos Professores), texto
de Elisa Marconi e Francisco Bicudo, 3/6/2011

Estreou no último dia 21 de maio a exposição “Castelos e Cavaleiros”, na


Estação Ciência, em São Paulo. A mostra, que tem a curadoria do historiador Evandro
Faustino, professor da Universidade São Marcos, apresenta armaduras, elmos, inventos
e informações e artefatos que foram projetados entre os séculos V e XV, na Europa
Ocidental. Cheia de pequenos ambientes que reproduzem parte do cotidiano dos

2
castelos, dos feudos e das cidades medievais, a exposição inspira a fantasia e desperta a
curiosidade de estudantes mais novos e mais velhos.
Contudo, a intenção pode ser desvirtuada e se perder se o visitante incorrer no
erro mais frequente quando se estuda a Idade Média: reduzir essa etapa a ação de três
personagens caricatos (os camponeses, os cavaleiros e os padres). “É uma visão
deturpada, muito vendida pelos filmes, mas que não corresponde à realidade”, inicia a
discussão o historiador Carlos Nogueira, professor de História Medieval da
Universidade de São Paulo. A professora de História Medieval da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Miriam Coser, concorda e reforça: “O primeiro
grande engano é mesmo achar que na Idade Média a sociedade era formada por padres,
guerreiros e camponeses”. Na realidade, insiste, a organização social era muito mais
complexa. Outros atores compunham aquele cenário e, para o arrepio dos que pregam
que se trata da Idade das Trevas (onde se oprimia o conhecimento, a escrita, as mulheres
e os infiéis), os mil anos medievais foram muito ricos em relação à produção humana,
artística e tecnológica.
A afirmação pode soar estranha, mas as pesquisas acadêmicas sobre a Idade
Média, desenvolvidas aqui no país e também no exterior, mostram exatamente essa
riqueza e essa diversidade que os especialistas apontam. Aliás, os estudos brasileiros
foram ganhando qualidade e relevância à medida que foram estabelecendo intercâmbios
e se afinando com grupos tradicionais de estudos medievais da Europa, sediados na
França e em Portugal, por exemplo. Curiosamente, a ebulição que sacode a academia
não é encontrada nas escolas de ensino fundamental e médio, períodos nos quais a Idade
Média é apresentada aos estudantes.
Nogueira atribui essa distância a um intervalo natural que se observa entre a
produção acadêmica e a aplicação nas escolas, um fenômeno bem comum e não
reduzido à História. O professor da USP sugere ainda que as editoras que movimentam
o mercado de livros escolares e didáticos não demonstram tanto interesse na Era
Medieval quanto aquele revelado pela História do Brasil.
Miriam ressalta que é justamente a História do Brasil a área mais bem trabalhada
no que diz respeito ao tempo que leva para as inovações nascidas na Universidade
chegarem aos colégios; à riqueza de detalhes e reflexões; à presença de bons livros e
outras obras de referência para apoiar os estudos. Para ela, a Idade Média não seduz
tanto quanto poderia os livreiros, os professores e alunos, não apenas porque o Brasil
não a atravessou da maneira mais conhecida, com os castelos, os camponeses, os
cavaleiros e a Igreja, mas principalmente “porque se pensa o período como um intervalo
entre o Feudalismo e o Capitalismo, ou seja, o importante é sair de uma fase e passar
para a outra, mas para isso, há que se passar pela Idade Média”, provoca.
Longa e Rica
Os prejuízos para o entendimento do mundo medieval e até do mundo atual
quando se sobrevoa superficialmente o período que vai do fim do Império Romano à
chegada ao Capitalismo são vários. A professora da UniRio, que já havia comentado
que a sociedade medieval era bem mais complexa que a redução mais clássica entre
padres, cavaleiros e camponeses, destaca também a questão das cidades. Ao contrário
do que se costuma estudar, as cidades também existiam na Era Medieval. Eram
assentamentos rurais, diferente das cidades modernas que conhecemos hoje, mas
existiam de forma independente dos castelos. “Tradicionalmente se relaciona o
surgimento das cidades com o nascimento do próprio Capitalismo. E não é bem assim.
Nem todo mundo vivia no castelo, existia uma economia, uma vida social e de trabalho
nas cidades”.

3
E esse não é um detalhe descartável. Mais adiante, quando os professores
apresentarem suas propostas para as aulas de Idade Média ficarem mais atraentes, as
cidades e o trabalho terão um lugar significativo. Nogueira vai adiante. “Me preocupa o
reducionismo com a Idade Média, porque as pessoas deixam de saber, por exemplo, que
parte da inspiração fascista e de Hitler – com a figura do herói, do povo que sai para a
conquista, da nobreza dos ideais de guerra, etc. – estão na Idade Média”. Ele lembra
que, nesse período, a Europa conseguiu feitos incríveis, como construir as primeiras
máquinas movidas à energia não humana, como o moinho d’água; com pensamento e
tecnologia avançados para a época, os europeus medievais conseguiram também
dominar a alimentação e possibilitaram que o continente ficasse mais dinâmico e
pudesse conquistar os outros continentes. “Ou seja, até a corrida dos Descobrimentos do
século XVI e o Neocolonialismo do século XIX têm, como origem, a Idade Média. Não
dá para continuar achando que era um tempo sombrio em que o homem não se
desenvolveu”, pontua o professor da USP.
Tudo isso vem temperado com o requinte da longevidade. Em tempos de
produtos, valores e culturas descartáveis, as heranças que vêm da Idade Média ainda
manifestam forte relevância no mundo atual. A primeira que merece atenção é a duração
física do que foi construído entre os séculos V e XV. Pontes, castelos, igrejas, muros,
universidades e cidades inteiras seguem firmes, de pé, desafiando o tempo e a
intempérie.
De natureza mais sutil, a representação do feminino ideal também tem o berço
naquela fase. “A figura da mulher perfeita, espelhada em Maria – o chamado modelo
mariano –, devotada ao marido, submissa, que aguenta as dores sem fazer alarde, nasceu
lá na Idade Média. A gente precisa se perguntar por que a Igreja tentou impor com tanta
força esse modelo e demonizar as mulheres que desgarrassem dele”, provoca Miriam.
Nasceram na Idade Média também, e perduram até hoje, ideais de
comportamentos e de posturas frente a vida e a sociedade. O certo e o errado em relação
à sexualidade, ao aborto, ao casamento e às relações entre homens e mulheres seguem
pautados pelo que a igreja já dizia em tempos medievais. O assunto, lembra Miriam, é
tão atual que virou pano de fundo na última eleição presidencial. Se a isso o professor
somar que muitos dos estudantes em breve serão – ou já são – eleitores, o período
medieval fica inegavelmente atual.
Na prática
Não existe um caminho certo para convidar os alunos a conhecer essa nova
Idade Média, carregada de detalhes intrigantes. Para Miriam, o professor precisa estar
bem preparado e disposto a desbravar o terreno junto com os jovens. Uma possibilidade
é retomar os contos de fadas e histórias infantis. É sabido que essa forma narrativa se
inspira na Idade Média, ou no que foi romantizado nos séculos seguintes.
Como boa parcela das crianças tem contato com Bela Adormecida, Rapunzel,
Branca de Neve, Rei Arthur e tantos outros, não é difícil propor conexões. O risco,
como os especialistas já alertaram, é reduzir toda uma Era a um sonho dourado, com
princesas, príncipes encantados, cavaleiros errantes (que Miriam garante: nunca
existiram!) e dragões cuspidores de fogo. Essas histórias podem abrir o repertório,
ajudar a fugir da falácia da Era das Trevas, mas não se pode parar por aí. Conhecer as
cidades pode ser muito rico também, na opinião da historiadora. “Sabendo a realidade
do estudante, dá para traçar estratégias diferentes. Se ele é de classe média ou alta,
talvez ele, ou os pais, tenham visitado as cidades medievais que ainda existem na
Europa e essa pode ser uma ponte. Se for de classe um pouco mais baixa, certamente já
viu, ou ouviu falar, das cidades que – ainda hoje – são construídas ao redor de uma
igreja. São Paulo, por exemplo. Essa é uma referência medieval”, propõe. Alinhar o

4
conteúdo às artes também pode dar bons resultados: os vitrais medievais, as pinturas
bizantinas e a música da Alta e da Baixa Idade Média – seja a religiosa, seja a popular –
costumam atrair os alunos. Assim como ser uma tarefa produtiva pedir que eles mesmos
representem as corporações de ofício, entidades de trabalho manual, artesanal, mas
profundamente hierarquizadas.
Se é verdade que os livros didáticos ou desfiguram, ou não dão a devida
importância à Idade Média, Nogueira sugere que o professor leia e se inspire em obras
não didáticas, como a biografia Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo,
de Georges Duby (Ed. Graal), que conta a vida do paladino Guilherme, que trabalhou
junto a três reis – entre eles o famoso Ricardo Coração de Leão –, ou O outono da Idade
Media, de Johan Huizinga (Ed. Cosac Naify). Dependendo da idade e do grau de
envolvimento dos estudantes, é possível ainda sugerir que eles mesmos leiam os títulos
e, dessa forma, construam noções mais profundas sobre a relação entre as pessoas, a
relação com o trabalho, o cotidiano nas cidades e nos castelos, as cruzadas etc.
Para quem quiser se arriscar nas produções audiovisuais, os dois entrevistados
são unânimes: O incrível exército de Brancaleone (de Mario Moricelli) – porque, entre
uma trapalhada e outra, é possível conhecer o cotidiano, as relações entre as pessoas e a
mentalidade da época. Miriam recomenda ainda Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco
Zefirelli (que dá até para alavancar uma conversa sobre como a época em que o filme é
feito se reflete na época retratada e, nesse caso, mostra Francisco e Clara como
pequenos hippies, próprios dos anos 1970, segundo a professora da UniRio). Já
Nogueira sugere Monty Phyton: em busca do cálice sagrado (de Terry Gilliam e Terry
Jones) e Robin e Marian, de Richard Lester. Todos eles, de acordo com o professor da
USP, reconstituem mais fielmente o que foi a Idade Média e convidam alunos e
professores a conhecer melhor essa fase muito mais rica e diversa do que se costuma
conhecer.

QUESTÕES SOBRE O ARTIGO LIDO

1. Como era a organização social na Idade Média, de acordo com os entrevistados?

2. Como se apresenta a Idade Média para estudantes dos ensinos fundamental e


médio no Brasil?

3. Como eram as cidades na Idade Média antes do capitalismo?

4. Qual a relação entre Hitler e a Idade Média?

5. Quais os avanços tecnológicos da Idade Média?

6. Qual o papel da mulher na Idade Média?

7. Quais as formas narrativas características da Idade Média?

8. O que ainda prevalece da Idade Média na Europa?

5
A IDADE MÉDIA – Nascimento do Ocidente
Fonte: Hilário Franco Jr. São Paulo: Brasiliense, 2001
Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/veralima/historia_arte/Hilario-Franco-Jr-A-Idade-
Media-PDF.pdf

Introdução O (pré)conceito de Idade Média


Se numa conversa com homens medievais utilizássemos a expressão “Idade
Média”, eles não teriam ideia do que estaríamos falando. Como todos os homens de
todos os períodos históricos, eles viam-se na época contemporânea. De fato, falarmos
em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da
necessidade de se dar nome aos momentos passados. No caso do que chamamos de
Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito,
pois o termo expressava um desprezo indisfarçado em relação aos séculos localizados
entre a Antiguidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o renascimento
da civilização greco-latina, e portanto tudo que estivera entre aqueles picos de
criatividade artístico-literária (de seu próprio ponto de vista, é claro) não passara de um
hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma idade média. P. 9

A Idade Média para os renascentistas e iluministas


Admirador dos clássicos, o italiano Francesco Petrarca (1304-1374) já se referira
ao período anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das
Trevas. Em 1469, o bispo Giovanni Andrea, bibliotecário papal, falava em media
tempestas, literalmente “tempo médio”, mas também com o sentido figurado de
“flagelo”, “ruína”. A ideia enraizou-se quando em meados do século XVI Giorgio
Vasari, numa obra biográfica de grandes artistas do seu tempo, popularizou o termo
“Renascimento”. Assim, por contraste, difundiram-se em relação ao período anterior as
expressões media aetas, media antiquitas e media tempora. P. 9
De qualquer forma, o critério era inicialmente filológico. Opunha-se o século
XVI, que buscava na sua produção literária utilizar o latim nos moldes clássicos, aos
séculos anteriores, caracterizados por um latim “bárbaro”. A arte medieval, por fugir
aos padrões clássicos, também era vista como grosseira, daí o grande pintor Rafael
Sanzio (1483-1520) chamá-la de “gótica”, termo então sinônimo de “bárbara”. Na
mesma linha, François Rabelais (1483-1553) falava da Idade Média como a “espessa
noite gótica”. Pp. 9-10
No século XVII, foi ainda com aquele sentido filológico que passou a prevalecer
a expressão medium aevum, usada pelo francês Charles de Fresne Du Cange em 1678.
Mas o sucesso do termo veio com o manual escolar do alemão Christoph Keller (1638-
1707, conhecido também pela latinização de seu nome, Cellarius), publicado em 1688 e
intitulado Historia Medii Aevi a temporibus Constantini Magni ad Constantinopolim a

6
Turcis captam deducta. Esse livro completava outros dois do autor, um dedicado aos
tempos “antigos” e outro aos “modernos”. P. 10
Portanto, o sentido básico mantinha-se renascentista: a “Idade Média” teria sido
uma interrupção no progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e retomado
pelos homens do século XVI. Ou seja, também para o século XVII os tempos
“medievais” teriam sido de barbárie, ignorância e superstição. Os protestantes
criticavam-nos como época de supremacia da Igreja Católica. Os homens ligados às
poderosas monarquias absolutistas lamentavam aquele período de reis fracos, de
fragmentação política. Os burgueses capitalistas desprezavam tais séculos de limitada
atividade comercial. Os intelectuais racionalistas deploravam aquela cultura muito
ligada a valores espirituais. P. 10
O século XVIII, antiaristocrático e anticlerical, acentuou o menosprezo à Idade
Média, vista como momento áureo da nobreza e do clero. A filosofia da época, chamada
de iluminista por se guiar pela luz da Razão, censurava sobretudo a forte religiosidade
medieval, o pouco apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de
que a Igreja então desfrutara. Sintetizando tais críticas, Denis Diderot (1713-1784)
afirmava que “sem religião seríamos um pouco mais felizes”. Para o marquês de
Condorcet (1743-1794), a humanidade sempre marchou em direção ao progresso, com
exceção do período no qual predominou o cristianismo, isto é, a Idade Média. Para
Voltaire (1694-1778), os papas eram símbolos do fanatismo e do atraso daquela fase
histórica, por isso afirmava, irônico, que “é uma prova da divindade de seus caracteres
terem subsistido a tantos crimes”. A posição daquele pensador sobre a Idade Média
poderia ser sintetizada pelo tratamento que dispensava à Igreja: “a Infame”. Pp. 10-11

A Idade Média para os românticos


O Romantismo da primeira metade do século XIX inverteu, contudo, o
preconceito em relação à Idade Média. O ponto de partida foi a questão da identidade
nacional, que ganhara forte significado com a Revolução Francesa. As conquistas de
Napoleão tinham alimentado o fenômeno, pois a pretensão do imperador francês de
reunir a Europa sob uma única direção despertou em cada região dominada ou
ameaçada uma valorização de suas especificidades, de sua personalidade nacional, de
sua história, enfim. Ao mesmo tempo, tudo isso punha em xeque a validade do
racionalismo, tão exaltado pela centúria anterior, e que levara a Europa àquele contexto
de conturbações, revoluções e guerras. A nostalgia romântica pela Idade Média fazia
com que ela fosse considerada o momento de origem das nacionalidades, satisfazendo
assim os novos sentimentos do século XIX. P. 11
Vista como época de fé, autoridade e tradição, a Idade Média oferecia um
remédio à insegurança e aos problemas decorrentes de um culto exagerado ao
cientificismo. Vista como fase histórica das liberdades, das imunidades e dos
privilégios, reforçava o liberalismo burguês vitorioso no século XIX. Dessa maneira, o
equilíbrio e a harmonia na literatura e nas artes, que o Renascimento e o Classicismo do
século XVII tinham buscado, cedia lugar à paixão, à exuberância e à vitalidade
encontráveis na Idade Média. P. 11 (...)
Feitas essas ressalvas metodológicas obrigatórias, o que devemos entender por
Idade Média, pelo menos no atual momento historiográfico? Trata-se de um período da
história europeia de cerca de um milênio, ainda que suas balizas cronológicas
continuem sendo discutíveis. Seguindo uma perspectiva muito particularista (às vezes
política, às vezes religiosa, às vezes econômica), já se falou, dentre outras datas, em 330
(reconhecimento da liberdade de culto aos cristãos), em 392 (oficialização do
cristianismo), em 476 (deposição do último imperador romano) e em 698 (conquista

7
muçulmana de Cartago) como o ponto de partida da Idade Média. Para seu término, já
se pensou em 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guerra dos Cem Anos), 1492
(descoberta da América) e 1517 (início da Reforma Protestante). P. 14
(...) O período que se estendeu de princípios do século IV a meados do século
VIII sem dúvida apresenta uma feição própria, não mais “antiga” e ainda não
claramente “medieval”. Apesar disso, talvez seja melhor chamá-la de Primeira Idade
Média do que usar o velho rótulo de Antiguidade Tardia, pois nela teve início a
convivência e a lenta interpenetração dos três elementos históricos que comporiam todo
o período medieval. Elementos que, por isso, chamamos de Fundamentos da Idade
Média: herança romana clássica, herança germânica, cristianismo. P. 15
A participação do primeiro deles na formação da Idade Média deu-se sobretudo
após a profunda crise do século III, quando o Império Romano tentou a sobrevivência
por meio do estabelecimento de novas estruturas, que não impediram (e algumas até
mesmo aceleraram) sua decadência, mas que permaneceriam vigentes por séculos. Foi o
caso, por exemplo, do caráter sagrado da monarquia, da aceitação de germanos no
exército imperial, da petrificação da hierarquia social, do crescente fiscalismo sobre o
campo, do desenvolvimento de uma nova espiritualidade que possibilitou o sucesso
cristão. P. 15
Nesse mundo em transformação, a penetração germânica intensificou as
tendências estruturais anteriores, mas sem alterá-las. Foi o caso da pluralidade política
substituindo a unidade romana, da concepção de obrigações recíprocas entre chefe e
guerreiros, do deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente, que perdia
seu caráter mediterrânico. O cristianismo, por sua vez, foi o elemento que possibilitou a
articulação entre romanos e germanos, o elemento que ao fazer a síntese daquelas duas
sociedades forjou a unidade espiritual, essencial para a civilização medieval. Pp. 15-16
Isso foi possível pelo próprio caráter da Igreja nos seus primeiros tempos. De um
lado, ela negava aspectos importantes da civilização romana, como a divindade do
imperador, a hierarquia social, o militarismo. De outro, ela era um prolongamento da
romanidade, com seu caráter universalista, com o cristianismo transformado em religião
do Estado, com o latim que por intermédio da evangelização foi levado a regiões antes
inatingidas. P. 16
Completada essa síntese, a Europa católica entrou em outra fase, a Alta Idade
Média (meados do século VIII-fins do X). Foi então que se atingiu, ilusoriamente, uma
nova unidade política com Carlos Magno, mas sem interromper as fortes e profundas
tendências centrífugas que levariam posteriormente à fragmentação feudal. Contudo,
para se alcançar essa efêmera unidade, a dinastia Carolíngia precisou ser legitimada pela
Igreja, que pelo seu poder sagrado considerava-se a única e verdadeira herdeira do
Império Romano. Em contrapartida, os soberanos Carolíngios entregaram um vasto
bloco territorial italiano à Igreja, que desta forma se corporificou e ganhou condições de
se tornar uma potência política atuante. Ademais, dando força de lei ao antigo costume
do pagamento do dízimo à Igreja, os Carolíngios vincularam-na definitivamente à
economia agrária da época. P. 16
Graças a esse temporário encontro de interesses entre a Igreja e o Império,
ocorreu uma certa recuperação econômica e o início de uma retomada demográfica.
Iniciou-se então a expansão territorial cristã sobre regiões pagãs — que se estenderia
pelos séculos seguintes — reformulando o mapa civilizacional da Europa. Por fim,
como resultado disso tudo, deu-se a transformação do latim nos idiomas neolatinos,
surgindo em fins do século X os primeiros textos literários em língua vulgar. Mas a fase
terminaria em crise, devido às contradições do Estado Carolíngio e a uma nova onda de
invasões (vikings, muçulmanas, magiares). Pp. 16-17

8
A Idade Média Central (séculos XI-XIII) que então começou foi, grosso modo, a
época do feudalismo, cuja montagem representou uma resposta à crise geral do século
X. De fato, utilizando material histórico que vinha desde o século IV, aquela sociedade
nasceu por volta do ano 1000, tendo conhecido seu período clássico entre os séculos XI
e XIII. Assim reorganizada, a sociedade cristã ocidental conheceu uma forte expansão
populacional c uma consequente expansão territorial, da qual as Cruzadas são a face
mais conhecida. Graças à maior procura de mercadorias e à maior disponibilidade de
mão-de-obra, a economia ocidental foi revigorada e diversificada. A produção cultural
acompanhou essa tendência nas artes, na literatura, no ensino, na filosofia, nas ciências.
Aquela foi, portanto, em todos os sentidos, a fase mais rica da Idade Média (...). p. 17
Mas aquelas transformações atingiram a própria essência do feudalismo —
sociedade fortemente estratificada, fechada, agrária, fragmentada politicamente,
dominada culturalmente pela Igreja. De dentro dela, e em concorrência com ela,
desenvolveu-se um segmento urbano, mercantil, que buscava outros valores, que
expressava e ao mesmo tempo acelerava as mudanças decorrentes das próprias
estruturas feudais. Aquela sociedade passava da etapa feudo-clerical para a feudo-
burguesa, na qual o segundo elemento ia lenta mas firmemente sobrepujando o
primeiro: emergiam as cidades, as universidades, a literatura vernácula, a filosofia
racionalista, a ciência empírica, as monarquias nacionais. Os conservadores, como
Dante Alighieri, lamentavam tais transformações. Inegavelmente caminhava-se para
novos tempos. P. 17
A Baixa Idade Média (século XIV-meados do século XVI) com suas crises e
seus rearranjos, representou exatamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade.
A crise do século XIV, orgânica, global, foi uma decorrência da vitalidade e da contínua
expansão (demográfica, econômica, territorial) dos séculos XI-XIII, o que levara o
sistema aos limites possíveis de seu funcionamento. Logo, a recuperação a partir de
meados do século XV deu-se em novos moldes, estabeleceu novas estruturas, porém
ainda assentadas sobre elementos medievais: o Renascimento (baseado no
Renascimento do século XII), os Descobrimentos (continuadores das viagens dos
normandos e dos italianos), o Protestantismo (sucessor vitorioso das heresias), o
Absolutismo (consumação da centralização monárquica). Pp. 17-18
Em suma, o ritmo histórico da Idade Média foi se acelerando, e com ele nossos
conhecimentos sobre o período. Sua infância e adolescência cobriram boa parte de sua
vida (séculos IV-X), no entanto as fontes que temos sobre elas são comparativamente
poucas. Sua maturidade (séculos XI-XIII) e senilidade (séculos XIV-XVI) deixaram,
pelo contrário, uma abundante documentação. P. 18 (...)

Capítulo 1 As estruturas demográficas


(...) Do ponto de vista demográfico, a primeira fase medieval foi um
prolongamento da situação do Império Romano, cuja população conhecera um claro
recuo desde o século II. Com a crescente desorganização do aparelho estatal romano,
foram rareando as importações de gêneros alimentícios que tinham por séculos
permitido a existência de uma grande população urbana. As cidades começaram a se
esvaziar, cada região tentou passar a produzir tudo aquilo de que necessitasse. Tal
fenômeno paradoxalmente aumentou a insegurança, pois bastava uma má colheita para
que a mortalidade naquele local rapidamente se elevasse, devido às dificuldades em
obter alimentos em outras regiões. Não por acaso, a hagiografia da época
frequentemente relata milagres alimentares: santo era sobretudo o homem que
conseguia alimentos para seus concidadãos. Pp. 21-22 (...)

9
Capítulo 2 As estruturas econômicas
(...) No essencial, do ângulo econômico, os séculos IV-X podem ser
considerados em bloco. Caracterizou-os aquilo que Renée Doehaerd chamou de
“escassez endêmica” (42: 57). Ou seja, uma pequena produtividade agrícola e artesanal,
consequentemente uma baixa disponibilidade de bens de consumo e a correspondente
retração do comércio e portanto da economia monetária. Aquela historiadora
demonstrou que o fator explicativo de tal situação não foi um recuo das técnicas, como
se poderia pensar à primeira vista. O ponto de partida do fenômeno foi o retrocesso
demográfico: numa economia muito pouco mecanizada, o peso da mão-de-obra na
produção é decisivo. Ora, a contração da força de trabalho gerava uma contração dos
rendimentos e esta reforçava a pobreza demográfica. P. 39 (...)
Das três funções atribuídas à moeda, apenas uma foi importante naquele período.
Primeiramente, ela é instrumento de medida de valor, ou seja, um padrão para medir o
valor de bens e serviços adquiríveis, simplificando a relação pela qual determinada
mercadoria pode ser trocada por outra. Ora, esta primeira função pouco ocorria, com o
preço de um bem sendo frequentemente expresso em outros bens ou serviços. Em
segundo lugar, a moeda é instrumento de troca, porque, não sendo ela própria
consumível, pode, graças à sua aceitabilidade geral, servir de intermediária entre bens
que se quer trocar. Esta função estava enfraquecida em virtude da escassez de bens, que
tornava desinteressante a cessão de uma mercadoria sem se saber se outra poderia ser
proximamente obtida. Por fim, ela é instrumento de reserva de valor, já que sem perder
as funções anteriores pode ser guardada para a qualquer momento satisfazer certas
necessidades. Este papel da moeda foi acentuado nos séculos IV-X devido à pequena
disponibilidade de bens: “É a exiguidade da produção que determina a exiguidade da
circulação monetária e a imobilização do metal precioso” (42: 325). Em suma, a moeda
era rara porque os bens eram raros. P. 45 (...)

Capítulo 3 As estruturas políticas


(...) em meados do século VIII, Pepino, o Breve, quando precisou legitimar seu
poder, recorreu a uma cerimônia calcada no Antigo Testamento e praticada no reino
visigodo desde o século anterior: a unção régia. Isto é, o ato de se derramar um óleo
considerado santo sobre o rei que estava sendo empossado. Tratava-se, pois, de um rito
de passagem que sacralizava o monarca, tornava-o um eleito de Deus. Desde então, todo
rei para ser visto como tal precisou ser submetido àquele rito. Entende-se assim o
esforço de Joana d'Arc, quase sete séculos depois, no contexto da Guerra dos Cem
Anos, para levar o príncipe francês à cerimônia de sagração (constituída pela unção e
pela coroação), única forma de legitimá-lo frente às pretensões do rei inglês à coroa da
França. P. 64 (...)
Outro interessante exemplo das relações entre política e imaginário temos nos
reis, históricos ou míticos, que teriam desaparecido sem morrer e que retornariam
quando seus povos deles precisassem. A crença nesses monarcas messiânicos e
milenaristas tanto podia legitimar seus sucessores quanto servir de contestação ao
governante do momento. Henrique II da Inglaterra (1154-1189), por exemplo, procurou
justificar sua pretensão sobre Gales, Irlanda e Escócia associando sua dinastia, de
origem estrangeira (os Plantagenetas eram originários do condado de Anjou, na França),
a Artur, mítico rei dos bretões. Como se acreditava que um dia Artur voltaria da ilha de
Avalon para pessoalmente governar a Grã-Bretanha, quando, em 1554, Filipe II de
Espanha casou-se com Maria Tudor precisou solenemente jurar que renunciaria ao trono
inglês se Artur o reivindicasse. Outros monarcas também foram objeto desse fenômeno

10
político-mental do retorno do rei — Rodrigo, Carlos Magno, Frederico Barba Ruiva,
Frederico II, dom Sebastião. P. 65 (...)
Os idiomas vernáculos apareciam, e com eles o princípio do nacionalismo, isto
é, certa consciência dos indivíduos de um grupo humano de terem uma origem e um
destino comuns. Esse sentimento passou, desde o século XI e mais claramente desde o
XII, a se identificar com todo um reino e a ser mesmo reconhecido como legítimo pela
Igreja. Mas o nacionalismo progredia em torno do soberano (rei no aspecto teocrático)
ou do suserano (rei no aspecto feudal)? Cada região apresentou uma resposta própria. P.
79 (...)

Capítulo 4 As estruturas eclesiásticas

Monge copista (SÉC. XV)


Nos seus primeiros tempos, a Igreja parecia envolvida numa contradição, que no
entanto se revelaria a base de seu poder na Idade Média. Ao negar diversos aspectos da
civilização romana, ela criava condições de aproximação com os germanos. Ao
preservar vários outros elementos da romanidade, consolidava seu papel no seio da
massa populacional do Império. Desta maneira, a Igreja pôde vir a ser o ponto de
encontro entre aqueles povos. Da articulação que ela realizou entre romanos e germanos
é que sairia a Idade Média. Nascida nos quadros do Império Romano, a Igreja ia aos
poucos preenchendo os vazios deixados por ele até, em fins do século IV, identificar-se
com o Estado, quando o cristianismo foi reconhecido como religião oficial. A Igreja
passava a ser a herdeira natural do Império Romano. Pp. 90-91 (...)

Capítulo 5 As estruturas sociais

Representação de suserano e seu vassalo

11
(...) o feudo-clericalismo. Realmente, este rótulo parece-nos mais conveniente,
na medida em que explicita o papel central da Igreja naquela sociedade. Fato
fundamental e geralmente pouco considerado. Foi por intermédio dela que se deu a
conexão entre os vários elementos (já anteriormente presentes) que comporiam aquela
formação social. Foi ela a maior detentora de terras naquela sociedade essencialmente
agrária, destacando-se, portanto, no jogo de concessão e recepção de feudos. Foi ela a
controlar as manifestações mais íntimas da vida dos indivíduos: a consciência através da
confissão; a vida sexual através do casamento; o tempo através do calendário litúrgico;
o conhecimento através do controle sobre as artes, as festas, o pensamento; a própria
vida e a própria morte através dos sacramentos (só se nascia verdadeiramente com o
batismo, só se tinha o descanso eterno no solo sagrado do cemitério). Foi ela a
legitimadora das relações horizontais sacralizando o contrato feudo vassálico, e das
relações verticais justificando a dependência servil. Pp. 120-121 (...)
(...) o bispo Adalberon de Laon, (...) provavelmente entre 1025 e 1027.
Servindo-se de um material antigo (textos bíblicos, autoridades eclesiásticas, cronistas
etc), ele chegou à seguinte formulação: “O domínio da fé é uno, mas há um triplo
estatuto na Ordem. A lei humana impõe duas condições: o nobre e o servo não estão
submetidos ao mesmo regime. Os guerreiros são protetores das igrejas. Eles defendem
os poderosos e os fracos, protegem todo mundo, inclusive a si próprios. Os servos, por
sua vez, têm outra condição. Esta raça de infelizes não tem nada sem sofrimento.
Fornecer a todos alimentos e vestimenta: eis a função do servo. A casa de Deus, que
parece una, é portanto tripla: uns rezam, outros combatem e outros trabalham. Todos os
três formam um conjunto e não se separam: a obra de uns permite o trabalho dos outros
dois e cada qual por sua vez presta seu apoio aos outros”. P. 121
(...) resta-nos entender o que era o contrato feudo-vassálico. Tratava-se de uma
expressão, talvez a mais importante e conhecida, dos laços de parentesco artificial que
soldavam as relações naquela sociedade de forte espírito coletivista: alguém se tornava
“moço” (vassalus) de um “ancião” (senior), estabelecendo um pseudoparentesco entre
pai e filho. Da mesma forma que nas relações paternais-filiais biológicas, também aqui
devia haver respeito e fidelidade, um sustentando, outro servindo, um liderando, outro
lutando. P. 125
Os laços feudo-vassálicos eram estabelecidos por três atos, que correspondiam
às necessidades recíprocas que justificavam sua existência. O primeiro era a
homenagem, o ato de um indivíduo tornar-se “homem” de outro. O segundo era a
fidelidade, juramento feito sobre a Bíblia ou relíquias de santos c muitas vezes selado
por um beijo entre as partes. O terceiro era a investidura, pela qual o indivíduo que se
tornava senhor feudal entregava ao outro, agora vassalo, um objeto (punhado de terra,
folhas, ramo de árvore etc.) simbolizador do feudo que lhe concedia. P. 125
O feudo, de forma coerente com o caráter essencialmente agrário daquela
sociedade, era quase sempre um ou mais senhorios. Ou seja, terra com seus respectivos
camponeses, de cujo trabalho o vassalo passaria a viver. Mas o feudo podia ainda ser a
cessão de um direito (por exemplo, taxar os usuários de uma estrada ou ponte), de um
cargo e sua correspondente remuneração (senescal, tesoureiro etc.) ou simplesmente a
entrega de uma determinada quantia, em moedas ou produtos (feudo renda ou feudo de
bolsa). P. 125 (...)
O fator que melhor refletiu e acelerou as transformações sociais foi, porém, o
aparecimento de um segmento burguês. O crescimento demográfico e econômico, as
cidades da Idade Média Central, revigorou, pois para aqueles que fugiam dos laços
compulsórios da servidão a vida urbana oferecia muitos atrativos. Como dizia um

12
célebre provérbio alemão da época, “o ar da cidade dá liberdade”. Isto é, depois de
morar certo tempo numa cidade (o que podia variar de um a dez anos, conforme o
local), o camponês tornava-se homem livre. P. 129
Mais do que isso, tornava-se burguês (habitante do burgo, ou seja, da cidade), o
que significava uma situação jurídica própria, bem definida, com obrigações limitadas e
direitos de participação política, administrativa e econômica na vida da cidade. É
verdade que desde fins do século XII os imigrantes não encontravam nas cidades as
oportunidades com que sonhavam, formando um proletariado que frequentemente
acabou por se chocar com a burguesia dona das lojas e oficinas. Mas, utopicamente, os
centros urbanos continuaram a seduzir os homens do campo. P. 129 (...)
No que diz respeito à revalorização da mulher, o fenômeno central (causa ou
efeito?, novamente a dúvida) foi o acentuado progresso do culto à Virgem desde o
século XII. Na literatura desenvolvia-se a lírica cortesã, na qual o trovador reverenciava
uma dama, tornada sua “senhora” pelo amor que ele lhe dedicava. Portanto, adoção do
vocabulário feudal, ampliando seu sentido primitivo. Nas instituições urbanas, e logo
nas aristocráticas, passava-se a reconhecer à mulher o direito a uma parte substancial
dos bens do marido. No sul europeu, aceitava-se mesmo sua participação na vida
política. O desempenho social das mulheres ganhava peso crescente: na Paris de fins do
século XIII, havia cinco ofícios exercidos exclusivamente por elas, que ainda estavam
presentes em quase todos os outros. Detalhe revelador: no aristocrático jogo de xadrez,
substituía-se em fins do século XIII uma peça masculina chamada fierce (espécie de
senescal) pela figura da rainha. Peça de limitada atuação no tabuleiro até ganhar em
meados do século XV um papel central. Era o jogo de salão imitando o jogo social. P.
132 (...)

Capítulo 6 As estruturas culturais


(...) De um lado, a cultura erudita, de elite, cultura letrada que pelo menos até o
século XIII foi eclesiástica do ponto de vista social e latina do ponto de vista linguístico.
Conscientemente elaborada (mas sem deixar, é claro, de ser tributária da mentalidade),
era formalmente transmitida (escolas monásticas, escolas catedralícias, universidades).
Por isso, tendia a ser conservadora, a se fundamentar em autoridades. Na célebre frase
atribuída a Bernardo de Chartres, no começo do século XII, “somos anões sobre ombros
de gigantes. Desse modo, vemos melhor e mais longe que eles, não porque nossa vista
seja mais aguda ou nossa estatura maior, mas porque eles nos erguem à sua gigantesca
altura”. A melhor denominação dessa cultura é “clerical”, por esta palavra abarcar o
sentido de “eclesiástica” (grupo que monopolizou a cultura escrita até o século XII) e ao
mesmo tempo de “letrada” (novo significado desde fins do século XIII, com o
crescimento do segmento laico alfabetizado). P. 139
De outro lado, estava a cultura que já foi chamada de popular, laica ou
folclórica, e que preferimos denominar “vulgar”, pois para os medievais esta palavra
rotulava sem ambiguidade tudo que não fosse clerical. A cultura vulgar era oral,
transmitida informalmente (nas casas, ruas, praças, tavernas etc.) por meio de idiomas e
dialetos vernáculos. Espontaneamente elaborada, ela expressava a mentalidade de forma
mais direta, com menos intermediações, com menos regras preestabelecidas.
Ideologicamente, ela se inclinava a recusar os valores e práticas oficiais. Ainda que
muito presa às suas próprias tradições — que a Igreja tendia a tachar de superstições —,
a cultura vulgar não estava fechada a outras influências. Ainda que respeitadora do
passado, não deixava de olhar para o futuro, daí a crítica feita na primeira metade do
século XII pelo cronista eclesiástico autor da Historia compostelana: “Esse é o costume
do povo, amar sempre o que está por vir”. P. 139

13
Esses dois polos culturais opostos em tantos aspectos não eram impermeáveis
um ao outro. O ordo eclesiástico, por não se autorreproduzir devido ao celibato
obrigatório, era constituído por indivíduos de origem forçosamente laica, que viviam
seus primeiros anos no âmbito da cultura vulgar e tornavam-se adultos impregnados
dela. Os leigos, de seu lado, não desconheciam a cultura clerical, que de certa forma
fazia parte de suas vidas através da liturgia cristã, dos sermões, das modalidades de
comportamento impostas pela Igreja. Essas intensas trocas eram alimentadas e
alimentavam a cultura intermediária, “aquela praticada, em maior ou menor medida, por
quase todos os membros de uma dada sociedade, independentemente de sua condição
social. [Ela é] o denominador comum, o conjunto de crenças, costumes, técnicas,
normas e instituições conhecido e aceito pela grande maioria dos indivíduos da
sociedade estudada” (53:34). Pp. 139-140 (...)
Havia um monopólio da cultura intelectual por parte da Igreja. A educação era
feita de clérigos para clérigos, devido às necessidades do culto. Nas escolas catedralícias
e sobretudo monásticas, praticamente as únicas existentes, ensinavam-se as chamadas
sete artes liberais, as únicas dignas de homens livres, por oposição às artes mecânicas,
isto é, manuais, próprias de escravos. Na primeira parte, ou trivium, estudava-se
Gramática (ou seja, latim e literatura), Retórica (estilística, textos históricos) e Dialética
(iniciação filosófica). Na segunda, ou quadrivium, passava-se para Aritmética,
Geometria (que incluía a geografia), Astronomia (astrologia, física) e Música.
Cumpridas essas duas etapas, de duração variável conforme as condições pessoais e
locais, passava-se para o estudo da Teologia, o saber essencial da Idade Média, ao qual
os clérigos se dedicariam por toda a vida. Pp. 142-143
Em virtude desse clima cultural e da finalidade que se atribuía ao conhecimento,
as ciências viam-se limitadas no seu desenvolvimento. Predominava a concepção de que
a meta do homem era o Reino de Deus e de que a Revelação estava contida nas
Sagradas Escrituras. Dessa forma, não se observava a natureza para deduzir explicações
ou levantar hipóteses, mas para ver os símbolos dos desígnios divinos. Diante disso, a
Matemática parecia abstrata, a preocupação quantitativa quase não existia e os números
valiam mais pelo seu simbolismo do que pelo seu eventual caráter prático, utilitário. A
Botânica e a Mineralogia reduziam-se a tratados descrevendo plantas e pedras, quase
sempre vistas como dotadas de aspectos mágicos. A Medicina estava limitada pela ideia
de que o doente é um pecador cuja cura residia na atuação da Igreja (orações,
sacramentos, exorcismos etc). p. 143 (...)
A lírica trovadoresca, nascida em princípios do século XII, talvez seja o melhor
exemplo de produto da cultura intermediária. De um lado, exaltava o amor no seu
aspecto espiritual, introvertendo o erotismo. Tal impossibilidade de concretização física
do amor funcionava como uma penitência. A submissão do poeta à sua “senhora”
transferia para o campo amoroso a relação vassálica e tinha claro paralelismo com o
culto a “Nossa Senhora”, quer dizer, a Virgem, que então se desenvolvia. De outro lado,
o trovador era um nobre feudal (que compunha música e letra para a interpretação do
jogral), daí conceber o amor como variante da vassalagem, sem com isso chegar à
espiritualização completa do amor. Pelo contrário, o caráter sensual, às vezes
declaradamente erótico, aparece com frequência naquela poesia. Sua faceta
antimatrimonial colocava-se na perspectiva de oposição à Igreja, que instituía o
sacramento do matrimônio objetivando reforçar sua capacidade de controle sobre a
sociedade laica. P. 156 (…)

14
O amor cortesão. Esta iluminura alemã, hoje na Universidade de Heidelberg,
mostra um cavaleiro em atitude vassálica e religiosa (ajoelhado e de mãos juntas)
diante de sua dama. A proximidade física, mas sem contato, e a estudada
indiferença da dama, casada e socialmente superior ao seu cavaleiro, criavam um
estado de tensão erótica típico das cortes feudais dos séculos XII-XIII.

Capítulo 7 As estruturas cotidianas


(...) O tempo
Os medievais tinham uma experiência da passagem do tempo bastante diferente
da nossa. A Idade Média não se interessava por uma clara e uniforme quantificação do
tempo. Como na Antiguidade, o dia estava dividido em 12 horas e a noite também,
independentemente da época do ano. Os intervalos muito pequenos (segundos) eram
simplesmente ignorados, os pequenos (minutos) pouco considerados, os médios (horas)
contabilizados grosseiramente por velas, ampulhetas, relógios d'água, observação do
Sol. P. 169
Apenas o clero, por necessidades litúrgicas, estabeleceu um controle maior sobre
as horas, contando-as precariamente de três em três a partir da meia-noite (matinas,
laudes, primas, terça, sexta, nona, vésperas, completas). Maior precisão apareceu
somente no século XIV, com o relógio mecânico, que porém tinha apenas o ponteiro
das horas. Essa forma de relação com o tempo não decorria, como já se pensou, de
deficiências técnicas. Calculava-se imprecisamente o tempo porque não havia
necessidade de fazer de outro modo. P. 169 (...)
Sexo
Assim, apenas ao longo do século XII a Igreja pôde, com dificuldade, completar
a definição da única modalidade aceitável de vida sexual cristã — o matrimônio,
tornado um dos sacramentos. Ou seja, em primeiro lugar, uma relação heterossexual.
Combatia-se, assim, a prática da bestialidade (sexo entre humano e animal), frequente
no mundo antigo e no campesinato medieval. Uma tradição mítica interpretava o
versículo bíblico no qual Adão, ao ver Eva, diz “desta vez é osso dos meus ossos e
carne da minha carne” (Gênesis 2,23) como prova de que ele anteriormente fazia sexo
com animais, as únicas companhias que tivera até então no Éden. O casamento cristão
combatia especialmente a homossexualidade, o pior pecado sexual possível, por visar
apenas ao prazer e não à procriação, como Deus determinara ao primeiro casal: “Sejam

15
fecundos e multipliquem-se” (Gênesis 1,28). Outra passagem bíblica, muito citada pelo
clero medieval, comprovava o horror ao homossexualismo, difundido em Sodoma e
Gomorra, cidades por essa razão destruídas por Deus com enxofre e fogo (Gênesis 18,
20-21; 19, 1-29). P. 174 (...)

Capítulo 9 O significado da Idade Média


(...) A herança medieval no Brasil
Mesmo no Brasil que vivia na Pré-História enquanto a Europa estava na
chamada Idade Média, muitos elementos medievais continuam presentes. A colonização
portuguesa introduziu práticas que, apesar de já então superadas na metrópole, foram
aqui aplicadas com vigor, inaugurando o clima de arcaísmo que marca muitos séculos e
muitos aspectos da história brasileira. Luís Weckmann detectou com pertinência a
existência de uma herança medieval no Brasil, porém limitou sua presença apenas até o
século XVII. E, na realidade, ela continua viva ainda hoje nos nossos traços essenciais.
P. 233
Os dois elementos culturais que enquadram a consciência de nacionalidade são
de origem medieval. O nome de nosso país vem da “ilha afortunada”, o Brazil,
identificada nos séculos XIV-XV com as Canárias, antes de sê-lo com a América. A
tradicional associação da terra descoberta por Cabral com a madeira tintorial aí
encontrada (o pau-brasil) desconsidera que a própria madeira tirara seu nome da mítica
ilha medieval. O idioma, obviamente, é aquele introduzido e imposto pelos
colonizadores, idioma que, como todos os do mundo ocidental, nascera na Idade Média.
P. 233
Na vida política, a duplicidade de um poder central teoricamente forte e a
realidade dos poderes locais atuantes permanece. O ponto de partida, que deixou fundas
raízes, foi o sistema de capitanias. Isto é, o sistema usado pelas comunas italianas
medievais nas suas colônias do Oriente Médio e das ilhas mediterrâneas, mais
especificamente por Gênova, que nos séculos XIV-XV mantinha estreitas relações com
Portugal. As primeiras capitanias portuguesas, nas Ilhas Canárias, foram entregues em
1370 a um “capitão” genovês. O funcionamento do sistema foi o mesmo na Idade
Média e nos séculos XVI-XVII: cada donatário tinha o usufruto das terras e nelas
poderes regalianos [de rei] como arrecadar impostos, aplicar justiça, convocar milícias.
Intermediária privilegiada entre o poder monárquico e os colonos, a figura do donatário
gerou no Brasil o personalismo típico das relações medievais, responsável pela fraqueza
das instituições políticas brasileiras dos séculos seguintes. P. 233
Na vida social, por muito tempo, e ainda hoje em certas regiões, prevaleceu a
família patriarcal, que dificulta a transformação do indivíduo em cidadão, dos interesses
particulares em interesses gerais e, por consequência, a consolidação do Estado. O
patriarca — termo correspondente linguística e funcionalmente ao senior (“o mais
velho”) feudal — constituía em suas amplas terras uma espécie de micro-Estado que
produzia quase todo o necessário para a vida de sua população. O patriarca detinha ali
poder de vida e morte sobre seus familiares. Dependentes das riquezas e da proteção
fornecidas pelo patriarca, os demais habitantes daquela terra também estavam
submetidos ao seu poder. Essa organização colonial e imperial transferiu-se para a
República, por longo tempo dominada por aquelas aristocracias regionais. Mesmo a
democratização recente do país não eliminou ainda o clientelismo e seu pressuposto, a
prática do “dando é que se recebe”. P. 234
No plano jurídico, as normas formalmente derivadas do Direito Romano não
escondem a força de um direito consuetudinário informal, paralelo, de um conjunto de
ilegalidades socialmente aceitas. Estas quase sempre são praticadas em detrimento do

16
Estado, cotidianamente assaltado nas suas prerrogativas, muitas vezes por dentro, por
parte de altos funcionários e dos próprios governantes. Como na época feudal, o Estado
brasileiro não é uma “coisa pública” (res publica), é propriedade dos mais fortes e
espertos. Ao longo de nossa história pouco se distinguiram as noções de público e
privado, da mesma forma que ocorria na sociedade feudal, na qual tudo é privado e ao
mesmo tempo tudo se torna público (...). p. 234
No plano econômico, a situação brasileira, fundamentalmente agrária até meados
do século XX, denuncia o passado medieval transplantado pelos portugueses e
prolongado pelo sistema colonial mercantilista e pelo neocolonialismo industrial. Da
mesma forma que o sistema de valores medieval exaltava a aventura do cavaleiro
andante, o destemor religioso do cruzado, o espírito de risco do mercador que partia
para locais distantes, por muito se desprezou no Brasil o trabalho cotidiano e rotineiro.
A ocupação do solo e a exploração das riquezas naturais deram-se, no Brasil “moderno”
e “contemporâneo”, de forma predatória semelhante à praticada na Europa “medieval”.
Associada ao caráter agrário da sociedade, a urbanização europeia fora fraca até o
século XI, a brasileira até fins do século XIX. P. 234-235
No plano cultural, apesar da globalização neste início de milênio, alguns
elementos medievais ainda são visíveis. Artur e Carlos Magno estão presentes com
frequência na literatura nordestina de cordel, cujo espírito, temática, transmissão e
recepção essencialmente orais prolongam a poesia europeia da Idade Média no Brasil do
século XX. Mesmo certas criações eruditas do Nordeste, como os textos de Ariano
Suassuna e as músicas de Elomar, bebem fundamentalmente de fontes medievais. O
calendário brasileiro atual tem 14 feriados oficiais, dos quais 11 são de origem
medieval. Festas como o Carnaval, no Rio de Janeiro e no Nordeste, o Bumba-meu-boi,
em São Luís do Maranhão, a Procissão do Círio, em Belém do Pará, têm inegáveis
raízes medievais. P. 235
A religiosidade nacional, sincrética, exacerbada, informal, traz em si diversos
traços medievais: as irmandades, o culto a santos não canonizados (caso de Padinho, o
padre Cícero), a visão mágica de sacramentos (roubar hóstias consagradas para fazer
amuletos foi comum na Europa medieval e no Brasil colonial), o sentimento messiânico
milenarista (como mostram o sebastianismo, Canudos, certos eventos políticos
recentes), várias superstições (espelho quebrado, saliva cura e mata, pé direito etc). O
processo de formação do catolicismo brasileiro também lembra o fenômeno na Idade
Média. Nesta ocorreu uma cristianização do paganismo e uma paganização do
cristianismo, no Brasil uma cristianização do culto africano e uma africanização do
cristianismo. A sensibilidade coletiva brasileira é de forte instabilidade emocional,
oscilando do pessimismo mais negro ao otimismo mais eufórico, semelhante ao
constatado por Marc Bloch na Europa feudal (...). p. 235

GLOSSÁRIO
Adubamento: cerimônia que se difunde a partir de meados do século XI, pela qual um
indivíduo era armado cavaleiro. Rito de iniciação destinado a dar acesso à ordem dos
bellatores, ele tinha pontos de contato com a entrada na ordem dos oratores. Nos dois
casos, o caráter algo mágico da função era transmitido por um gesto ritualizado, um tapa
(o termo francês adoubement deriva do antigo germânico “bater”). A cerimônia
implicava ainda a bênção da espada e, mais raramente, um banho purificador e uma
noite de velada das armas.
Claustro: literalmente “fechado”, esta palavra indica o espaço central — geográfica
e/ou simbolicamente — de um mosteiro. Trata-se de um jardim quadrado, imagem do
Paraíso terreno, cercado por galerias cobertas. Ao caminhar por estas, os monges

17
realizam uma peregrinação simbólica e uma reflexão estimulada pelas cenas
frequentemente esculpidas nas colunas que sustentam tais galerias.
Cristandade: inicialmente sinônimo de cristianismo, passou depois, com o papa João
VIII (872-882), a designar o conjunto dos territórios cristãos do Ocidente europeu. O
termo tornou-se usual desde fins do século XI. Os medievais falavam indiferentemente
em Christianitas ou Respublica Christiana, conceitos civilizacionais que não se
confundiam com o de Europa. Essa tomada de consciência da identidade coletiva
ocidental veio a partir dos contatos crescentemente tensos com referenciais externos, o
mundo muçulmano desde princípios do século VIII, o mundo bizantino sobretudo desde
o século IX.
Cultura intermediária: nível cultural comum a clérigos e leigos, por reunir elementos
provenientes tanto da cultura erudita quanto da cultura vulgar.
Escatologia: doutrina relativa ao destino último do homem e do universo. Para a
mentalidade medieval, o tempo escatológico era o da Parusia, que poria fim às coisas
terrenas e, portanto, à História. As expectativas e especulações sobre esse fato explicam
a imensa atenção medieval dada ao livro bíblico do Apocalipse (literalmente
“revelação”), que profeticamente descreve aquele momento.
Feudo: a palavra deriva do germânico fehu, “gado”, com o sentido de “um bem dado
em troca de algo”. Inicialmente, fins do século IX, o feudo era cedido pelo poder
público (rei, conde) em troca de serviços públicos (guerra, administração). A partir de
fins do século XI, ligado estreitamente à vassalagem, o feudo tornou-se um bem privado
concedido em troca de serviços privados. Essa concessão (terra, dinheiro, direitos
diversos) era feita por um nobre, intitulado “senhor”, a outro nobre, chamado “vassalo”,
em troca essencialmente de serviço militar.
Hagiografia: narrativa da vida de um santo. Tipo de literatura muito difundido na Idade
Média e uma das principais fontes para se conhecer a mentalidade da época. Ela era um
dos mais importantes pontos de encontro da cultura erudita com a cultura vulgar, como
se vê na mais célebre coletânea hagiográfica medieval, a Legenda Aurea, de meados do
século XIII.
Heresia: literalmente “escolha”, quer dizer, interpretações e práticas religiosas
contrárias àquelas oficialmente adotadas pela Igreja Católica. Devido ao grande poder e
riqueza do segmento eclesiástico naquela época, as heresias medievais funcionaram
muitas vezes como uma transferência de aspirações socioeconômicas para o plano
espiritual.
Parusia: do grego “presença”, “chegada”, designa a Segunda Vinda de Cristo, que abre
o Milênio, período de felicidade terrena durante o qual Satanás fica preso. A Parusia
implica a derrota do Anticristo e a instalação do Reino de Deus na Terra.
Peregrinação: viagem feita com objetivos religiosos, tendo como meta um santuário
cheio de relíquias que transmitem parte de sua sacralidade ao viajante. Era, assim, para
o homem medieval, um importante instrumento de penitência e de salvação. Os
principais centros peregrinatórios foram Roma na Alta Idade Média, Jerusalém nos
séculos XI-XII, Compostela nos séculos XI-XIII.
Reconquista Cristã: expressão que designa o fenômeno militar colonizador
empreendido pelos cristãos ibéricos, auxiliados sobretudo por franceses, alemães e
ingleses, para recuperação das terras peninsulares ocupadas pelos muçulmanos em 711 e
completa e definitivamente reincorporadas à Cristandade ocidental em 1492.
Senhorio: “esta palavra resume todos os meios de que dispõe um senhor (dominus ou
senior) para se apropriar do rendimento do trabalho realizado pelos homens sob o seu
domínio. Esses meios são complexos; uns têm origem na posse do solo, outros no

18
exercício de um poder coercivo (ban). Daí deriva a dupla natureza do senhorio:
fundiário e banal” (BONNASSIE: 184).
Vassalagem: laço contratual que unia dois homens livres, o senhor (dominus, recebedor
de fidelidade e serviços nobres, isto é, não produtivos, não servis) e o vassalo (vassalus,
termo derivado do céltico gwas, “homem”, aquele que recebe sustento de outro). Nos
séculos VIII-IX prevalecia o vínculo pessoal: alguém recebia uma terra porque era
vassalo. A partir do século XI prevaleceu o elemento real: alguém se fazia vassalo para
receber um feudo.

Cavaleiro Medieval - Ilustração

CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL NA IDADE MÉDIA


PORTUGUESA

[DATASHOW]

19
A POESIA MEDIEVAL – PROVENÇA

Século XII, Guilherme, 7º conde de Poitiers e 9º duque de Aquitânia, inicia o


movimento da poesia provençal. A Provença fica no sudeste da França e sua língua
denominava-se langue d’oc, em oposição à língua do norte, denominada langue d’oïl.
O conde escrevia em língua vulgar, diferente do costume de tudo ser escrito em latim.
Poesia e canto inventam uma refinada cultura profana em oposição à cultura
eclesiástica.
Fin ‘amors é a arte de amar que será traduzido por amor cortês.
Essa poesia cantava o amor, a joi, para jovens e elabora as bases da arte de trobar que
se espalhará por toda a Europa.
A mulher passa a desempenhar um papel central, pois é ela que conduz e define o jogo
erótico, o trovador será seu servidor.
O amor é inseparável do dezir (desejo), do serviço e da cortesia.
As mudanças políticas do séc. XIII fazem com que as primeiras manifestações eróticas
se transformem em desejo insatisfeito e sofrimento (coita de amor em galego-
português)
Com essas mudanças, os trovadores se espalham para o norte da Itália e para os reinos
peninsulares fazendo nascer a poesia trovadoresca nessas regiões.
Visitar: www.trobar.org/trubadours/index.php (CONTÉM MÚSICA
TROVADORESCA)

20
EXEMPLO DE CANTIGA DE AMOR PROVENÇAL

Ab la dolchor del temps novel


Guillem de Peitieu (1071-1127)

Fonte: SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. SP: Edusp, 1996, pp. 108-109.

Ab la dolchor del temps novel (a) Com a doçura da primavera, os bosques


foillo li bosc, e li auchel (a) se enchem de folhas e os pássaros
chanton, chascus en lor lati, (b) cantam, cada qual em sua linguagem,
segon lo vers del novel chan; (c) consoante ao ritmo do novo canto;
adonc esta ben c'om s'aisi (b) portanto é conveniente uma provisão
d'acho don hom a plus talan. (c) daquilo que mais se deseja.

De lai don plus m'es bon e bel Dali onde está o que para mim existe de
non vei mesager ni sagel, melhor e mais belo, não vejo [vir]
per que mos cors non dorm ni ri, mensagem nem carta; por isso não
ni no m'aus traire adenan, durmo nem rio, tampouco me atrevo a
tro que sacha ben de la fi prosseguir, enquanto não venha a saber
s'el es aissi com eu deman. se tudo haverá de resultar como desejo.

La nostr' amor vai enaissi Com nosso amor acontece como à rama
com la branca de l'albespi do branco-espinho – que fica tremendo
qu'esta sobre l'arbre tremblan, na árvore, durante a noite, à mercê da
la nuoit, a la ploia ez al gel, chuva e do gelo, até que o sol, no dia
tro l'endeman, que.l sols s'espan seguinte, venha espalhar-se pelas folhas
per la fuella vert e.l ramel. e pela ramagem.

Enquer me membra d'un mati Lembra-me ainda aquela manhã em que


que nos fezem de guerra fi, fizemos as pazes e dera-me ela um
e que.m donet un don tan gran, grande presente: seu amor e seu anel.
sa drudari' e son anel: Deus me faça viver até o dia em que
enquer me lais Dieus viure tan possa levar as mãos sob seu manto!
c'aja mas manz soz so mantel.

Qu'eu non ai soing de lor lati Não receio que estranha linguagem me
que.m parta de mon Bon Vezi, afaste de meu Bom Vizinho, pois bem
qu'eu sai de paraulas com van, sei o efeito das palavras que se
ab un breu sermon que s'espel, espalham num breve discurso;
que tal se van d'amor gaban, envaideçam-se os outros do amor que
nos n'avem la pessa e.l coutel. possuem: a nós não falta o necessário.

Das onze composições do trovador excomungado, quatro versam sobre a matéria


amorosa que lançou os cânones da cortesia literária. Há, não só na vida dinâmica e
libertina desse poeta, como também no conteúdo moral de sua poesia, muitos pontos em
comum com o nosso Bocage da sátiras, da poesia do exílio e dos sonetos do fim da
vida; a libertinagem, uma grande experiência do mundo, certa vaidade intelectual e o
arrependimento nos dias finais da existência. Há uma poesia em que o vehemens amator
feminarum faz o balanço da sua vida passada, mostrando-se arrependido das dissipações
da mocidade. Renunciando aos seus grandes ideais de outrora – a cavalaria e a vanglória

21
–, só lhe resta agora morrer honradamente ao pé dos seus amigos a trilhar o caminho
que o conduz ao Senhor.
Além da invocação primaveril, outro tópico que Guilherme IX põe a circular
pela poesia trovadoresca refere-se à sintomatologia passional, possivelmente uma
derivação ovidiana: não durmo nem rio, que penetrou terras galego-portuguesas, como
se pode ver nesta cantiga d’amor de D. Afonso Sanchez, filho do rei D. Dinis:

... perdi o riir.


perdi o ssen e perdi o dormir.

A perda do apetite, que constitui também um estado sintomático da inquietação


amorosa na poesia provençal, não chegou, entretanto, até a galego-portuguesa. O clichê
mais frequente reveste a forma perder o sem e o dormir, embora muitas outras variações
também se encontrem.
Cors (est. II, v 3), no sentido de “pessoa” (“individuo”, “eu” (donde: mos cors,
ant. francês mês cors – “minha pessoa”, “eu”), era muito comum na linguagem literária,
tanto na prosa, na poesia lírica, como na poesia épica, do sul ou do norte da França; e na
península Ibérica a mesma significação permaneceu:

Martin Codax:

Eno sagrado, em Vigo,


Bailava corpo velido:
Amor ei!

Bom Vezi (Bom Vizinho), pseudônimo (senhal) com que o trovador oculta o nome da
mulher, um dos cânones do amor cortês, ligado ao segredo com que essas relações
sentimentais se realizavam.

EXEMPLO DE ALBA NA POESIA PROVENÇAL


Fonte: SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. SP: Edusp, 1996, pp. 173-175.

Reis glorios, verais lums e clartatz


Giraut de Bornelh (...1165-1199...)

Reis glorios, verais lums e clartatz, (a) Rei glorioso, verdadeira luz e claridade;
Deus poderos, Senher, si a vos platz, (a) Deus poderoso, Senhor, se voz apraz,
Al meu companh siatz fizels aiuda! (b) sede fiel ajuda ao meu companheiro,
Qu'eu no lo vi, pos la nochs fo venguda, (b) pois não o vejo desde que a noite
Et ades sera l'alba (C) chegou e “logo será cedo”!

Bel companho, si dormetz o velhatz, Bom companheiro, se dormis ou velais,


No dormatz plus, suau vos ressidatz! não deveis dormir mais, despertai-vos
Qu'en orien vei l'estela creguda suavemente, pois no Oriente vejo
C'amena.l jorn, qu'eu l'ai be conoguda, crescer a estrela que anuncia o dia – a
Et ades sera l'alba qual conheço bem, “e logo será cedo”!

22
Bel companho, en chantan vos apel! Bom companheiro, cantando vos chamo;
No dormatz plus, qu'eu auch chantar l'auzel não deveis dormir mais, pois ouço cantar o
Que vai queren lo jorn per lo boschatge pássaro que vai pela floresta à procura do
Et ai paor que.l gilos vos assatge dia e tenho medo que o ciumento (marido)
Et ades sera l'alba vos surpreenda, “e logo será cedo”!

Bel companho, issetz al fenestrel Bom companheiro, saí à janela e mirai


E regardatz las estelas del cel as estrelas do céu! E sabereis se vos sou
Conoisseretz si.us sui fizels messatge! ou não fiel mensageiro; se não o
Si non o faitz, vostres n'er lo damnatge fizerdes, o prejuízo é vosso, “e logo será
Et ades sera l'alba cedo”!

Bel companho, pos me parti de vos, Bom companheiro, desde que me


Eu no.m dormi ni.m moc de genolhos, separei de vós, não tenho dormido nem
Ans preiei Deu, lo filh Santa Maria, tenho deixado de estar de joelhos, a
Que.us me rendes per leial companhia, rogar por Deus, o filho de Santa Maria,
Et ades sera l'alba que me devolvesse vossa leal
companhia, “e logo será cedo”!

Bel companho, la foras als peiros Bom companheiro, ali fora na escada
Me preiavatz qu'eu no fos dormilhos, me advertíeis, que eu não fosse
Enans velhes tota noch tro al dia. dorminhoco, senão que velasse a noite
Era no.us platz mos chans ni ma paria inteira até o amanhecer. E agora não vos
Et ades sera l'alba agradam meus cantos nem minha
companhia, “e logo será cedo”!

Bel dous companh, tan sui en ric sojorn Doce e bom companheiro, estou numa
Qu'eu no volgra mais fos l'alba ni jorn, morada tão rica (num lugar tão
Car la gensor que anc nasques de maire paradisíaco), que eu desejava não
Tenc et abras, per qu'eu non prezi gaire houvesse alvorada nem dia, pois a mais
Lo fol gilos ni l'alba. gentil que já nasceu de mãe, possuo e
abraço, e por isso pouco me importam a
madrugada e o louco ciumento.

Obra prima do trovador, trata-se de uma Alba, cujo conteúdo é a insistente


advertência do vigia e a rápida mas decisória resposta do amante que desfruta no castelo
do senhor, uma deliciosa entrevista. Esta última estrofe é, todavia, de autenticidade
controvertida. Nesta composição o sinal convencional entre o gaita (vigia encarregado
de velar pela segurança dos amantes) e o namorado é uma canção. O papel do vigia, que
mantinha seu posto nas imediações do sítio ou do castelo onde se desenrola a cena, não
era apenas o de advertência de possível regresso inesperado do marido ciumento (gilós),
mas ainda o de anunciar a estrela d’alva (Vênus) e preservar a entrevista contra a
maledicência dos aduladores (zengiers). As albas galego-portuguesas diferem das albas
provençais. A alba é um gênero que admite uma gama riquíssima de motivos e situações
poéticas: a maldição da brevidade das noites pelos amantes, a revolta destes contra a
anunciação do vigia, a função inútil do gardador (de que é exemplo a presente
composição), a dor incomparável de uma separação desta natureza, a promessa de um
regresso brevíssimo, etc., etc. As albas cujos conteúdos expressam precisamente o
contrário, isto é, a maldição da noite e o desejo incontido de que amanheça, não são da
mesma procedência e estão a atestar uma influência religiosa, uma oposição de ordem
cristã ao declarado caráter adulterino do amor cortês, cuja expressão máxima reside

23
nesta espécie poética. Seis são os exemplares desta modalidade de Alba sacra, em que a
noite é símbolo do pecado, e o amanhecer o símbolo da glória celestial ou da graça
virginal de Maria.
O conceito que aparece na última estrofe surge também numa Alba de autoria
duvidosa (Gaucelm Faidit ou Bertrand d’Alamano):
Doussa res, s’esser podia
que ia mais alba ni dia
no fos...
(Doce amiga, oxalá não existissem mais nem alba nem dia...)

NA POESIA PROVENÇAL, A SURPRESA MANEIRISTA


Fonte: FERNANDES, Geraldo Augusto. Fernão da Silveira, poeta e coudel-mor: paradigma da
inovação no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. 238p. Dissertação. (Literatura Portuguesa). 2006.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

Alguns trovadores provençais, à luz do conceito de originalidade, destacam-se de


forma evidente. Cerveri de Girona/Guilhem de Cervera (...1259-1285...) compôs uma
canção distribuída em estrofes de versos de uma só sílaba, com alternância de outros versos
com duas sílabas. Tal composição foge à rigidez de princípio, ou de princípios, que
norteava as composições poéticas, assim como prescreviam as Leys d’amors1. Na edição de
Riquer, a canção assim se apresenta:
Us
an
chan,
pe-
san,
dre-
çan,
ri-
man,
li-
man,
lau-
gan,
aman
il man
d’en-
ten-
di-
menz
ses
jau-
si-
menz.2

1
“’Las leys d’amors’ constituyen el mas extenso de nuestros tratados, de gran riqueza en sus partes
gramaticales, retóricas, estilísticas y versificatorias, que si en algo pecan es por el exceso de noticias
nimias y por el afán en clasificar y pormenorizar, pero que reúnen un auténtico tesoro de referencias”.
(RIQUER, Martín de. Los trovadores. Historia literaria y textos. Barcelona: Ed. Ariel, S. A., 2001, Tomo
I. Colección Letras y Ideas, p. 33-34). E, ainda, quanto ao uso das sílabas poéticas: “El cómputo de
sílabas en principio siempre es exacto en la poesía trovadoresca, como es lógico en textos compuestos
para ser cantados con una melodía culta y refinada.” (Ibidem, p. 36).
2
In: RIQUER, idem, ibidem, p. 35-36. A tradução encontrada em Elisa Garrido Gómez é a seguinte: Hace
un año que canto y voy considerando, y disponiendo, rimando, limando, alabando (y) amando los
24
Girona não foi feliz apenas na disposição de sua canção, mas também na
melodia, o que é tautológico, já que os poemas à época eram para ser cantados. Realiza-
se a intenção pontual de evidenciar as terminações em “an", cuja musicalidade não só
pode ter agradado a audiência como uniu forma e fundo: coloca no seu poema a
definição de poeta, que é dispor, rimar, limar, louvar e amar. Para Martín de Riquer,
Cerveri cultivou, assim como Arnaut Daniel, o “trobar ric”, em que “alcanza a veces
momentos muy logrados3 e “aunque por este camino llega a la extravagancia de
componer una canción con versos de una y dos sílabas4”.
Já um outro trovador provençal, considerado um dos mais criativos, por difícil e
obscuro, registra “el hápax, la voz popular no registrada en léxicos ni usada por otros
escritores y el modismo cuyo sentido no alcanzamos5”. O trovador é Marcabru (...1130-
1149...) que, no poema que segue, desenvolve um tipo de poesia visual, o qual
comprova tanto a originalidade e individualidade desse provençal, quanto as definições
a ele impingidas. A dificuldade e obscurantismo, segundo Martín de Riquer, não se
apresentam apenas na parte filológica do trabalho de Marcabru, mas também no “juego
de ingenio, el doble sentido de una palabra, el valor preciso de los conceptos abstractos
y su mutua relación, la incertidumbre ante la dicción que no se sabe si es grave o
irónica6”. A essas dificuldades quer-se demonstrar que, utilizando-se do conceito de
Maneirismo proposto por Ernst Robert Curtius, a intenção do poeta maneirista é
sobressair-se, e, assim fazendo, torna-se, ante seu público, um artista inventivo, desde
que, é claro, seja original e não se utilize desses maneirismos apenas como
artificialidade. O poema de Marcabru assim se apresenta na edição de Martín de Riquer:
Estornel, cueill ta volada
Estornel, cueill ta volada:
deman, ab la matinada,
iras m’en un’encontrada,
on cugei aver amia;
trobaras
e veiras,
per que vas
comtar l’as;
e.ill diras
en ei pas
per que’er trasalhia.7
Já pela disposição gráfica, nota-se o vínculo forma-fundo: os quatro primeiros
versos em redondilhos maiores assemelham-se às asas abertas para o voo, seguidos de
seis versos trissilábicos, assemelhando-se ao corpo do pássaro. O último verso em

mandatos de afectos sin gozo. A autora inclui mais uma parte à poesia de Cerveri: “Ni a Sobrepetz, / Ne
Is Cartz, / ne I Rey”, que traduz por “En este canto no puedo incluir de ningún modo a Sobrepetz, a los
Cardos ni al Rey”. (In: Los juegos poéticos de Los Trovadores. Universidad de Sevilla, Junio 2002.
Disponível em <http://boek861.com/juego_poetico.htm>. Acesso em 26.set.2005).
3
RIQUER, Martín de. Los trovadores. Historia literaria y textos. Barcelona: Ed. Ariel, S. A., 2001,
Tomo III. Colección Letras y Ideas, p. 1563.
4
Idem, ibidem, p. 1563.
5
Idem, ibidem, I, p. 175-176.
6
Idem, ibidem, I, p. 175-176.
7
“I. Estornino, emprende el vuelo: mañana, con el amanecer, irás de mi parte a una comarca donde me
imaginé tener amiga. La encontrarás, la verás y le contarás por qué vás; y le preguntarás en seguida por
qué se há comportado mal” (RIQUER, op. cit., I, p. 211-212).
25
redondilha menor conota, parece, os pés da ave. No poema, pede o “eu-lírico” que o
estornino vá, pela manhã, à procura da amada, diga-lhe o motivo da ida e repreenda-a
por ter-se comportado mal. Se, nessa mostra da poesia de Marcabru, o obscurantismo
semelha estar ausente – dada a simplicidade do enunciado – vale assinalar seu gosto
pela construção composicional aliada à motivação do tema.
Ainda dos trovadores provençais, observe-se uma das canções mais conhecidas e
difíceis. Arnaut Daniel (...1180-1195...), um trovador sempre preocupado com o fazer
poético, tendo criado, por exemplo, a sextina8, compôs, nas palavras de Martín de
Riquer, um “verdadero laberinto de rimas caras en breves unidades (a veces de una sola
sílaba), lo que implica una expresión elíptica y retorcida que hace posibles varias
interpretaciones”9. A ele se refere Petrarca como possuidor de um “dir strano e bello”,
pois cultivou um vocabulário rebuscado e original10; usou uma singularidade poética,
mesclando palavras que provocam surpresa com rimas raras11. Segue a canção, como
editada por Riquer:
L’Aur’amara fa.ls bruels brancutz
L’aur’amara fa.ls bruels brancutz
clarzir, que.l dous’espeys’ab fuelhs,
e.ls letz becx dels auzels ramencx
te balbs e mutz, pars e non-pars.
Per qu’ieu m’esfortz de far e dir plazers
a manhs? Per ley qui m’a virat bas d’aut,
don tem morir, si.ls afans no.m asoma.12
Martín de Riquer comenta que se nota nas criações do provençal uma esmerada
preocupação formal, tanto com relação à posição das palavras-rimas quanto pela escolha
daquela que siga um caminho “difícil y bello”13. O poeta iria se destacar pela
engenhosidade na escolha das rimas, principalmente porque as usa de forma diversa da
de seus camaradas trovadores, além de usar vocábulos considerados apoéticos. Adverte,
contudo, que é esse um meio de Daniel demonstrar seu desespero e fastio de forma
surpreendente. Assim, coloca na forma a própria expressão de seu sentimento “strano”,

8
Baseia-se a sextina na aparição combinada de palavras no final do verso, com reiteração de vocábulos-
chave, cuja maestria composicional repercutiu com êxito no Renascimento. (Cf. RIQUER, op. cit., II, p.
610).
9
RIQUER, op. cit., II, p. 624.
10
O rebuscamento e originalidade são próprios de qualquer poeta amaneirado, pois “o poema maneirista
mantinha um elo forte com o petrarquismo. Muitos de seus representantes eram seguidores declarados de
Petrarca, a cuja tradição aderiram. Usavam suas formas e expressavam-se com o auxílio de sua
linguagem, que se tornara artificial e impessoal.” (HAUSER, Arnold. Maneirismo: a crise da Renascença
e o surgimento da Arte Moderna. 2 ed. Trad. J. Guinsburg e M. França. São Paulo: Perspectiva, 1994. p.
397). Percebe-se, com essas assertivas, que Petrarca foi beber em Arnaut Daniel e tornar-se referência aos
poetas que nele mesmo beberam.
11
RIQUER, op. cit., II, p. 610.
12
“I. El aura amarga hace aclarar los bosquecillos ramosos, que la dulce espesó con hojas, y mantiene
balbucientes y mudos los alegres picos de los pájaros de las ramas, aparejados y no aparejados. ¿Por qué
yo me esfuerzo en hacer y decir cosas agradables a muchos? Por aquella que me há vuelto de arriba abajo,
de lo que temo morir si no me da fin a los afanes” (Idem, ibidem, p. 624-625). Percebe-se nesta poesia a
expressão montada de palavras “laura” e ela remete a inúmeras poesias de Petrarca escondendo o nome
de sua amada Laura, homenagem explícita a Daniel e louvação daquela a quem servia: “L’aura serena che
fra verdi fronde” (CXCVI), “L’aura celeste che ‘n quel verde lauro” (CXCVII), “L’aura soave al sole
spiega et vibra / l’auro ch’Amor di sua man fila et tesse” (CXCVIII); estas, entre outras, estão presentes
no seu Canzoniere (Torino: Einaudi, 1992. (Classici, 104). Registre-se ainda que há uma tradução desta
poesia de Arnaut Daniel em POUND, Ezra, op. cit., p. 182, elaborada por Haroldo de Campos.
13
RIQUER, op. cit., II, p. 610-624.
26
que passa a “dir bello”, como entendeu Petrarca. Ressalve-se que uma leitura afinca de
seus poemas leva a antever preocupações conceptistas pelo deslocamento da metáfora e
da combinação de sons14.
Uma observação ainda se faz necessária quando se remete ao modo
composicional dos trovadores provençais. Parece dividirem-se aqueles que versificavam
seguindo o trobar leu15, que pode ser entendido como simples, fácil, ausente de recursos
estilísticos complicados ou ornamentados, dos que se valiam do trobar clus16. Este seria
um versificar de forma hermética, usando sutileza e rebuscamento na escolha dos
termos com o intuito não só de criar dificuldades, mas demonstrar agudeza e requinte
morfo-conteudísticos. Ainda segundo Riquer, “el conocedor de la literatura castellana
de los siglos de Oro tendrá mucho adelantado si relaciona mentalmente el trobar clus al
conceptismo y el trobar ric al gongorismo”17. Os trovadores provençais desenvolveram,
na aplicação desses modos de “trobar”, os procedimentos da retórica medieval do
ornatus facilis – que “estriba en el empleo de los colores retóricos (o sea de las figuras),
de la annominatio (conexión entre palabras de la misma forma, pero de significado
diferente) y de las determinaciones (cierta graduación gramatical) – e do ornatus
difficilis – que “se caracteriza por el empleo de los tropos (metáfora, antítesis,
metonimia, sinédoque, perífrasis, alegoría, enigma, etc.)”, cujas distinções derivam da
Rethorica ad Herennium18.
Ao se escolher três trovadores19 que primaram, pela recolha do crítico espanhol,
no aperfeiçoamento do trobar clus, objetivou-se trazer exemplos que contribuem para a
discussão da proposta que aqui se dispôs delinear: a de analisar as formas de evidenciar
a inventividade naqueles poetas cuja individualidade aflora e, por isso, são expressão de
futuras estéticas. Sabe-se que os trovadores provençais forneceram a seus sucessores os
meios e artifícios para a criação poética própria de cada região europeia. Na Galiza, os
trovadores galego-portugueses foram beber naqueles antepassados para criarem o tipo
de poesia que seria característico da Península. À parte as cantigas de amigo,
consideradas pelos estudiosos como autóctones, pois revelariam o espírito, a alma do
lado ocidental peninsular, a maioria das cantigas de amor e as de maldizer e de escárnio
seria a continuação da produção provençal.
(...)

14
Idem, ibidem, p. 609-611.
15
Outras denominações seriam trobar leugier, pla. (Idem, ibidem, I, p. 74).
16
Também para esse modo versificatório, entendem-se os termos trobar ric, car, escur, cobert, sotil,
prim. (Idem, ibidem, I, p. 74-75).
17
Idem, ibidem, I, p. 75.
18
Idem, ibidem, I, p. 76.
19
Outros poderiam ser incluídos nesse rol: Raimbaut D’Aurenga, Raimbaut de Vaqueiras, Guilhem de
Montanhagol, Sordel e Peire Cardenal, entre os mais conhecidos.
27
POESIA MEDIEVAL: LITERATURA PORTUGUESA
Fonte: adaptado de VIEIRA, Yara Frateschi. POESIA MEDIEVAL: Literatura Portuguesa. São Paulo,
Ed. Global, 1987

As Artes Poéticas medievais e os próprios poetas estabelecem uma hierarquia entre


compositores e recitadores. Na região da poesia galego-portuguesa:
- trovador= compõe os poemas e as músicas por mero prazer, sem fazer disso o seu
ganha-pão. Para isso devia ser economicamente independente e na maioria dos casos
fidalgo
- jogral= canta e recita as composições. Papel de divulgador da cultura popular e
vernácula, atingindo desde as camadas mais baixas da população até os castelos reais e
senhoriais
- segrel= trovador que percorre a cavalo as terras, cantando nas diversas cortes e casas
ricas. Alugando a sua arte, mas não sendo um mero jogral, o segrel constitui um
elemento perturbador da ordem hierárquica trovadoresca.

Os cancioneiros= o Cancioneiro da Ajuda, porque se encontrava quando publicado na


Biblioteca Real da Ajuda, Lisboa. Talvez copiado no século XIII, na corte de Afonso X,
para uso do neto D. Dinis. Carolina Michaëlis de Vasconcelos apresentou edição crítica
com comentários em 1904. CA contém apenas cantigas de amor e não inclui poemas de
Afonso X, nem de D. Dinis e de seus poetas contemporâneos. (310 composições)
O Cancioneiro da Vaticana, descoberto na Biblioteca do Vaticano, publicado em
1875, por Ernesto Monacci, foi copiado nos fins do XV ou começo do XVI por Ângelo
Colocci. Cantigas de amor, de amigo, de escárnio e maldizer, inclusive as de autoria de
D. Afonso e de D. Dinis. (1205 cantigas)
O Cancioneiro da Biblioteca Nacional, copiado no séc. XVI, foi conhecido como
Cancioneiro Colocci-Brancuti, pois foi anotado por A. Colocci. É o mais completo, com
maior número de cantigas mais fragmentos da Arte de Trovar. (1647 cantigas)

Poética medieval= a poesia trovadoresca distingue-se das demais formas poéticas


medievais anteriores a ela por ser profana, em língua vernácula (por oposição às de
28
produções em latim), silábica (e não quantitativa) e ainda por ser lírica e obra de
indivíduos de identidade conhecida.
Cantigas de amor= ele fala; o emissor é um eu masculino e o destinatário eventual é a
mulher (minha senhor). Tema principal: a coita de amor, tópicos= elogio da dama,
sempre superior ao poeta; serviço amoroso do poeta, o desprezo da mulher, a coita do
amor não correspondido. A mulher é descrita em termos superlativos e abstratos; sua
superioridade é moral, mas nas de escárnio e maldizer é social. Fin’amors: é um amor
que renuncia à possibilidade de realização do desejo amoroso, “que não quer possuir,
mas gozar desse estado de não possessão, amor-Minne contendo não só o desejo sensual
de ‘tocar’ a mulher verdadeiramente ‘mulher’ como o casto afastamento, amor cristão
transposto para o plano secular, que quer ’have and have not’” (Leo Spitzer). O
exercício do amor acaba assumindo o caráter de forma de aprimoramento social, moral
e artístico. A descrição da coita de amor assume geralmente o caráter de argumentação
persuasiva que se expressa através de sintaxe complexa, com muita subordinação,
abundância de conjunções causais, temporais, conclusivas, adversativas.

Cantiga de amigo= ela fala; o emissor é um eu feminino, o destinatário é o amigo


(amado); em alguns o destinatário é um confidente: a mãe, a irmã(s), a natureza.
Ambiente campesino: a mulher em geral não é a dama da corte, mas a donzela dos
campos/aldeias. Tema de relação amorosa. Modalidades: dialoga com a cantiga de
amor= a mulher reclama da correspondência ao serviço amoroso do amigo; ora é a
mulher que se queixa de sua coita amorosa provocada pela incorrespondência do amigo
ou pela separação a que os obrigam diversos fatores, como a guerra, a proibição
materna, os trabalhos do mar, ora podemos ainda ouvir a celebração da felicidade do
amor correspondido. Conteúdo semântico mais variado que as de amor. Subespécies=
cantiga de romaria (a amiga convida as confidentes para a ermida a fim de encontrar o
amigo, ou para bailar na frente da igreja, à vista dos amigos, enquanto as mães acendem
velas no santuário); a barcarola ou marinha (confidente é o mar, com barcos, guerra, o
amigo que partiu no navio do rei, a esperança de regresso, os perigos do mar etc.),
alba= gênero provençal que a lírica galego-portuguesa teria adaptado, de tal forma que
se fala de alba quando o tema do amanhecer se relaciona de alguma forma ao amoroso.
Pastorela= original da França, o tema é o debate amoroso entre o cavaleiro e a pastora
(problema= participantes do discurso poético, pois é difícil saber se de amor se de
amigo). Na Arte de Trovar, o problema é resolvido dizendo que se determina pelo que
primeiro fala, ele ou ela.
Possíveis orígens das cantigas de amigo=
a) tese arábica (superioridade dessa cultura e a facilidade como ela teria se comunicado
com a cultura cristã. Talvez as carjas moçárabes sejam a origem das cantigas de amigo.
b) tese popular= porque a poesia popular é espontânea, anônima e primitiva, por ser
objetiva, natural e independente da cultura dominante. Ligadas a festividades pagãs
românicas (festas de maio, as maias, p. ex.)
c) litúrgica= não existiria algo puramente popular, mas sim uma estilização de formas
da cultura dominante.

Cantigas de escárnio e maldizer= intenção ofensiva, mais ou menos evidente: se usam


palavras encobertas, equivocadas, são de escárnio, se ofendem abertamente são de
maldizer. O emissor é sempre o homem, com raras exceções (255 de D. Lopo Lias e
talvez a de Pero Larouco, 395). Algumas cantigas de escárnio e maldizer assumem o
caráter de enunciativas, semânticas e métricas das cantigas de amor, consideradas
paródias das de amor. Sirventês= poesia política e moralista provençal, como a paródia

29
sacra e com temas da literatura carnavalizada. As cantigas de escárnio e maldizer
possuem uma autonomia, uma liberdade formal e expressiva que talvez venham de
outras linhas da tradição poética. Giuseppe Tavani= quatro campos semânticos dessas
cantigas= 1) ultraje; 2) alimentação; 3) polêmica entre os grupos sociais ou categorias
profissionais; 4) obsceno. Não são estanques, mas se sobrepõem de diversas maneiras.

Versificação trovadoresca= a maioria possui três ou quatro estrofes (cobras); a


minoria, de duas. A estrofe mais comum é a de seis versos (palavra na terminologia da
Arte de trovar), unidos por três rimas= abbacc ou ababcc; quando de sete versos, os
seis primeiros se unem por três rimas e o último retoma uma das duas rimas iniciais
(abbacca, abbacca, ababccb). Terceiro tipo= dístico monorrimo mais verso com rima
nova= aab. A maioria é de verso decassílabo (estrofes monométricas), outras são
estrofes monométricas compostas de versos de cinco a dezesseis silabas, e estrofes
polimétricas em 113 combinações diversas. Versos finais (de um a quatro versos)
complementam o desenvolvimento do tema (acabamento de razom). A Arte de trovar as
chama de fiindas que deveriam rimar com a última estrofe ou, se possuir refrão, rima
com este. Cantigas com refrão se opunham às de mestria (que não tinham refrão).
A característica formal da cantiga de amigo é a estrutura de repetição/retorno=
paralelismo, que é sujeito a variações – cada verso é composto de duas partes, uma
variável e outra invariável.
EXEMPLO EM JOAM ZORRO
Per ribeira do rio
Vi remar o navio
E sabor hei da ribeira (refrão) hei= tenho
Per ribeira do alto
Vi remar o barco
E sabor hei da ribeira (refrão)
Quanto às rimas, elas eram muitas vezes assonantes= rimavam as últimas vogais
tônicas, independentemente das consoantes. Na continuação do poema, o recurso
paralelístico pode apresentar nova maneira (numa sequência de oito versos, dispostos
em pares, ou seja quatro dísticos, apenas três versos introduzem novidade no poema).

Vi remar o navio
I vai o meu amigo, I= aí
E sabor hei da ribeira (refrão)
Vi remar o barco
I vai o meu amado
E sabor hei da ribeira (refrão)

E pode continuar:

I vai o meu amigo,


Quer-me levar consigo
E sabor hei da ribeira (refrão)

I vai o meu amado


Quer-me levar de grado de grado= com prazer
E sabor hei da ribeira (refrão)
30
Função do refrão= mnemônica; relacionado à musica; eram cantados por dois coros,
seguidas por uma parte cantada em comum. O paralelismo, no entanto, não é
exclusividade das cantigas de amigo. Algumas destas não o usam e algumas de escárnio
e maldizer o usam, mas isso é incidente.

Leixa-pren (leixa = deixa, e pren= prende) é um recurso estilístico característico das


cantigas de amigo galego-portuguesas. Consiste na repetição dos segundos versos de
um par de estrofes como primeiros versos do par seguinte. Um exemplo de uma cantiga
de Martín de Xinzo:
Como vivo coitada, madre, por meu amado,
ca m'enviou mandado que se vai no ferido: Ca= que
e por el vivo coitada! El= ele

Como vivo coitada, madre, por meu amado,


5 ca m'enviou mandado que se vai no fossado: serviço militar
e por el vivo coitada!

Ca m'enviou mandado que se vai no ferido,


eu a Santa Cecilia de coraçón o digo:
e por el vivo coitada!

10 Ca m'enviou mandado que se vai no fossado,


eu a Santa Cecilia de coraçón o falo:
e por el vivo coitada!

Como se observa, os versos 2 e 5 (os segundos das duas primeiras estrofes) repetem-se
como primeiros da 3ª e 4ª estrofes, respectivamente.

BREVE TERMINOLOGIA DA POÉTICA TROVADORESCA


Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp

Cobras doblas – estrofes com séries de rimas que se repetem a cada duas estrofes.

Vaiamos, irmana, vaiamos dormer


nas ribas do lago u eu andar vi (beiras) (onde)
a las aves meu amigo.

Vaiamos, irmana, vaiamos folgar


nas ribas do lago u eu vi andar
a las aves meu amigo.

Nas ribas do lago u eu andar vi


seu arco na mãao as aves ferir,
a las aves meu amigo.

Nas ribas do lago u eu vi andar,


seu arco na mãao a las aves tirar,
a las aves meu amigo. Fernando Esquio

31
Seu arco na mano as aves ferir
e las que cantavam leixa-las guarir, (sarar)
a las aves meu amigo.

Seu arco na mano a las aves tirar


e las que cantavam non'as quer matar
a las aves meu amigo.

Cobras singulares – estrofes com séries de rimas diferentes (embora com o mesmo
esquema rimático).

A tal estado mi adusse, senhor,


o vosso bem e vosso parecer
que nom vejo a mi nem d'al prazer
nem veerei já, enquant'eu vivo for
u nom vir vós que eu por meu mal vi.

E queria mia mort'e e nom mi vem,


senhor, porque tamanh'é o meu mal
que nom vejo prazer de mim nem d'al
nem veerei já, esto creede bem,
u nom vir vós que eu por meu mal vi. D. Dinis

Cobras uníssonas – estrofes com uma única série de rimas, que se repetem em todas as
estrofes (ou seja, além do esquema rimático, as terminações vocálicas dos versos são as
mesmas em todas as estrofes).

Senhor, que de grad'hoj'eu querria,


se a Deus e a vós aprouguesse,
que, u vós estades, estevesse
convosc'e por esto me terria
por tam bem andante
que por rei nem ifante
des ali adeante
nom me cambiaria.

E sabendo que vos prazeria


que, u vós morássedes, morasse
e que vos eu viss'e vos falasse,
terria-me, senhor, todavia
por tam bem andante
que por rei nem ifante
des ali adeante
nom me cambiaria.

Ca, senhor, em gram bem viveria,


se u vós vivêssedes, vivesse
e sol que de vós est'entendesse,
terria-me, e razom faria,

32
por tam bem andante
que per rei nem ifante
des ali adeante
nom me cambiaria. D. Dinis

Descordo – cantiga cujas estrofes não obedecem à norma da isometria.


Ver exemplo na página 54

Dobre – processo pelo qual se repetem palavras na mesma estrofe, em pontos que são
fixos em todas as estrofes (ou seja, exemplificando: se na 1ª estrofe se repete a mesma
palavra em dois pontos, nas estrofes seguintes deverá repetir-se outra palavra na mesma
posição). Também pode ser a repetiçao de uma única palavra em todos os versos.
Exemplo:

Ai eu coitad´! e por que vi


a dona que por meu mal vi!
Ca deus lo sabe, po-la vi,
nunca já mais prazer ar vi,
per boa fé, u a non vi;
ca de quantas donas u vi,
tão boa dona nunca vi. Pero Garcia Burgalês:

Finda/fiinda – remate de uma cantiga, constituído por um, dois ou três versos finais
(em casos raros, quatro). As cantigas podem ainda ter duas ou mais findas.
Ver exemplo na página 48.

Mozdobre/mordobre – processo semelhante ao dobre, mas com variação na flexão da


palavra (exemplo: amar/amei).

Palavra perduda – verso de uma estrofe que não rima com nenhum outro (mas
podendo ou não rimar com os versos correspondentes das estrofes seguintes).
Ver exemplos nas páginas 37, 56

Paralelismo: A característica formal da cantiga de amigo é a estrutura de


repetição/retorno, que é sujeito a variações – cada verso é composto de duas partes, uma
variável e outra invariável.
Ver exemplos nas páginas 35, 36, 39, 42, 48

Tenção – cantiga em que intervêm dois trovadores, que discutem, em estrofes


alternadas, um tema ou uma questão entre si. O primeiro a intervir é considerado, nos
manuscritos, o autor da cantiga. O seu interlocutor tem de manter, na sua resposta, o
esquema formal proposto na 1ª estrofe (métrico, rimático, etc.); a cada interveniente
cabe o mesmo número de estrofes (ou ainda de findas, se a composição as tiver).

- Ai, Paai Soárez, venho-vos rogar


por un meu omen que non quer servir,
que o façamos, mi e vós, jograr
en guisa que possa per i guarir; (ganhar)
pero será-nos grave de fazer,
ca el non sabe cantar nen dizer
ten, per que se pague d’el quen n’ ouir.
33
- Martin Soárez, non possi eu osmar (imaginar, calcular)
que no-las gentes queiran consentir
e nós tal omen fazermos poiar (subir, elevar-se)
en jograria; ca, u for pedir,
algun verá o vilão seer
trist’e [no]joso e torp’e sen saber,
e aver-s’á de nós e d’el rir (Martin Soárez e Paai Soárez; CBN 144) É

POESIA TROVADORESCA PORTUGUESA

CANTIGA DA RIBEIRINHA ou CANTIGA DA GUARVAIA


Fonte: PORTAL EDUCAÇÃO
http://www.portaleducacao.com.br/educacao/artigos/32033/cantiga-de-ribeirinha-literatura-
portuguesa#ixzz3SDYb3Imx

A chamada “Cantiga da Ribeirinha” ou “Cantiga da Guarvaia”, do trovador Paio


Soares de Taveirós é considerada a mais antiga composição poética documentada em
língua portuguesa, a data de sua redação foi provavelmente 1189 ou 1198. Essas datas,
no entanto, são motivos de muita discussão entre os filólogos que se dedicam a esses
estudos, e há quem prefira dizer que o poema não pode ter sido feito antes de 1200.
Além disso, o próprio texto ainda não foi definitivamente fixado, havendo
variantes interpretativas que chegam a permitir ver no poema uma cantiga de amor ou
uma cantiga de escárnio e maldizer. Somam-se a isso mais um motivo de dúvidas,
sendo provável que o texto originalmente apresentasse uma terceira estrofe, hoje
perdida. Há até uma hipótese recente que contesta a autoria de Paio Soares de Taveirós,
atribuindo a cantiga a Martim Soares.

No mundo non me sei pareiha,


Mentre me for como me vai,
Ca já moiro por vós – e ai!
Mia senhor branca e vermelha,
Queredes que vos retraia
Quando vos eu vi em saia!
Mau dia me levantei,
Que vos enton non vi fea!
E, mia senhor, dês aquel di’, ai!
Me foi a mim mui mal,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
D’haver eu por vós guarvaia,
Pois, eu, mia senhor, d’alfaia
Nunca de vós houve nen hei
Valia d’ua Correa.

(Em português atual)

No mundo não conheço quem se compare


A mim enquanto eu viver como vivo,
Pois eu morro por vós – ai!
Pálida senhora de face rosada,

34
Quereis que eu vos retrate
Quando eu vos vi sem manto!
Infeliz o dia em que acordei,
Que então eu vos vi linda!
E, minha senhora, desde aquele dia, ai!
As coisas ficaram mal para mim,
E vós, filha de Dom Paio
Moniz, tendes a impressão de
Que eu possuo roupa luxuosa para vós,
Pois, eu, minha senhora, de presente
Nunca tive de vós nem terei
O mimo de uma correia.

ENO SAGRADO, EN VIGO – DE AMIGO


Martin Codax
Fonte: http://www.filologia.org.br/anais/anais_022.html

Eno sagrado, en Vigo, (adro da ermida; na Idade Média, apenas uma pequena povoação)
bailava corpo velido : (belo)
amor ei! (tenho)

En Vigo, (e) no sagrado,


bailava corpo delgado: (esbelto)
amor ei!

Bailava corpo delgado,


que nunca ouver’amado :
amor ei!

Que nunca ouver’amigo,


ergas no sagrad’, en Vigo: (exceto, senão)
amor ei!

Que nunca ouver’amado,


ergue’en Vigo, no sagrado:
amor ei!

Quanto à Cantiga, vê-se manifesto um modelo mais complexo de cruzamentos


paralelísticos, a saber:

Padrão 1
Estrofe 1 linha 1 Eno sagrado, en Vigo
Estrofe 2 linha 1 En Vigo, (e) no sagrado,
Estrofe 4 linha 2 no sagrado, en Vigo
Estrofe 5 linha 2 en Vigo no sagrado,

Padrão 2a:
Estrofe 1 linha 2 bailava corpo velido
Estrofe 2 linha 2 bailava corpo delgado
Estrofe 3 linha 1 bailava corpo delgado

35
Padrão 2b:
Estrofe 3 linha 2 que nunca ouver’ amado
Estrofe 4 linha 1 que nunca ouver’ amigo
Estrofe 5 linha 1 que nunca ouver’ amado

Padrão 3
Estrofe 4 linha 2 ergas no sagrad’, en Vigo:
Estrofe 5 linha 2 ergue’en Vigo, no sagrado
(...)

Os cantares de amigo apresentam um quadro paisagístico com quase todos os


seus elementos: a costumada espera do amigo no porto depois de sua longa ausência; a
presença da mãe e da irmã como confidentes do drama sentimental da donzela; a igreja
como ponto de referência dos fatos mais importantes da vida amorosa das populações
burguesas da época; e a participação da natureza: as ondas, o mar encapelado, cuja
função é meramente utilitária. A feição paralelística, rudimentar, justifica a repetição
das pequeninas imagens que dão contorno poético a um conteúdo circunstancial. Nas
Cantigas apreciadas, o que se vê é uma evolução na utilização dos recursos que
definiam a criação poética da época, transformando-os numa astuciosa variedade de
combinações que, aliando forma e conteúdo, desenhavam quadros ímpares de situações
comuns e repetidamente vividas pelo lirismo medieval.

COMO MORREU QUEM NUNCA BEM – DE AMOR


Paio Soares de Taveirós Fonte: https://cadern0virtual.wordpress.com/category/literatura/

Como morreu quem nunca bem


ouve da rem que mais amou, (coisa; res – latim)
e quem viu quanto receou
d'ela e foi morto por ém: (por isso)
Ai mia senhor, assim moir'eu!
Como morreu quem foi amar
quem lhe nunca quis bem fazer,
e de quem lhe fez Deus veer
de que foi morto com pesar:
Ai mia senhor, assi moir'eu!

Com'ome que ensandeceu, (enloqueceu)


senhor, com gran pesar que viu,
e nom foi ledo nem dormiu (alegre)
depois, mia senhor, e morreu:
Ai mia senhor, assi moir'eu!

Como morreu quem amou tal


dona que lhe nunca fez bem
e quem a viu levar a quem
a nom valia nem a val:
Ai mia senhor, assi moir'eu!

A cantiga de Paio Soares de Taveirós trata da coita amorosa, a dor de não


receber amor de quem se ama. A coita amorosa é abordada logo no começo da poesia

36
quando o poeta diz: “Como morreu quem nunca bem/ ouve da rem que mais amou”,
tendo “ouve” como “recebeu” e “rem” como “coisa”; verificamos que ele não recebeu
afeto nenhum daquela que amava. O texto se dá através de comparações entre o poeta e
outros que também não receberam nada daquelas que amaram. Essas comparações se
dão no início de cada estrofe, através da repetição do termo “como” que inicia todas as
cobras. Por exemplo, no início da segunda estrofe: “como morreu quem foi amar...” e
ainda no refrão: assim morro eu!
Podemos ainda inferir do texto, que o poeta sofre por uma mulher já
comprometida, visto que na última estrofe ele se compara àquele que morreu quando
amou tal dona que nunca lhe retribuiu o amor, e que ainda viu a amada ser levada por
quem não merecia.
Podemos verificar que esta poesia de amor, obviamente não é de maestria, visto
que podemos perceber claramente o refrão que se repete ao fim de cada estrofe: “assi
moir'eu!” O paralelismo se dá nas comparações no começo de cada estrofe, como já foi
apontado acima, através do termo “como”. Ainda como paralelismo temos a repetição
constante do termo “morreu” e “morte” de mesmo valor. Constituindo um exemplo de
dobre, temos na segunda estrofe o vocábulo “morreu” no primeiro verso, e “morto” no
quarto verso. O mesmo fenômeno se verifica na primeira estrofe.
Verificamos um exemplo de atafinda (enjambement/cavalgamento) na quarta
estrofe, nos versos 1 e 2: “como morreu quem amou tal / dona que lhe nunca fez bem.”,
notamos nessa passagem a presença de uma única frase que foi dividida em dois versos
sem que isto interrompesse sua fluência e nem o ritmo da poesia. Esta poesia é
composta de versos de oito sílabas.

SEDIA-M'EU NA ERMIDA DE SAM SIMION – DE AMIGO


Mendinho
Fonte: http://www.notapositiva.com/pt/trbestbs/portugues/10_analise_de_poesias_d.htm

Sedia-m'eu na ermida de Sam Simion (seria?, na pequena ilha em Vigo)


e cercarom-mi as ondas que grandes som. Leixa-pren
Eu atendend'o meu amigo! (esperando)
Eu atendend'o meu amigo!

Estando na ermida ant'o altar,


cercarom-mi as ondas grandes do mar. Leixa-pren
Eu atendend'o meu amigo!
Eu atendend'o meu amigo!

E cercarom-mi as ondas, que grandes som,


nom ei [i] barqueiro, nem remador. Leixa-pren / palavra perduda
Eu atendend'o meu amigo!
Eu atendend'o meu amigo!

E cercarom-mi as ondas do alto mar, Leixa-pren / paralelismo não perfeito


nom ei [i] barqueiro, nem sei remar. Leixa-pren
Eu atendend'o meu amigo!
Eu atendend'o meu amigo!
Nom ei [i] barqueiro, nem remador,
morrerei eu fremosa no mar maior:
Eu atendend'o meu amigo!
Eu atendend'o meu amigo!

37
Nom ei [i] barqueiro, nem sei remar Leixa-pren
morrerei eu fremosa no alto mar.
Eu atendend'o meu amigo!
Eu atendend'o meu amigo!

Esta é uma cantiga de amigo, mais precisamente uma barcarola, onde a jovem
que narra afirma estar na capela de Sam Simion. Apesar da presença do tema religioso,
o poema se volta muito mais para o mar, onde a jovem espera seu namorado que
demora a chegar, diz ela que morrerá nas ondas do mar.
Podemos pensar nestas ondas a tomá-la como a falta de seu namorado que saiu
nas navegações, e ela o espera na igreja, onde talvez tenham firmado algum
compromisso. Por isso ela se sente sufocada pelo mar. Ela afirma ainda que morrerá no
alto mar, podemos julgar esta afirmação como se ela ameaçasse se lançar ao mar em
busca do namorado, e morreria pois não tem barqueiro, nem sabe remar.
O refrão se repete duas vezes “Eu atendend'o meu amigo!/Eu atendend'o meu
amigo!” esta repetição pode indicar que há muito ela o espera, e que a espera já se torna
cansativa.
Esta cantiga é formada por seis estrofes de quatro versos. É paralelística e de
refrão. Composta de versos decassílabos, e o refrão de versos de sete sílabas métricas.
Todo o texto é paralelístico verificando-se principalmente a existência de leixa-pren,
por exemplo, no segundo verso da terceira estrofe: “non ei [i] barqueiro nem remador”
este verso é retomado na quinta estrofe, e este é apenas um exemplo, o fenômeno ocorre
em todo o texto.
No refrão: “Eu atendend'o meu amigo!/Eu atendend'o meu amigo!” devemos
encarar este “atendend'o” como “esperando”.
O segundo verso da terceira estrofe caracteriza uma palavra-perduda, visto que
não rima com o outro verso da estrofe: “e cercarom-mi as ondas que grandes som, / nom
ei [i] barqueiro nem remador.”

SE EU PUDESSE DESAMAR – DE AMOR


Pero da Ponte

Fonte: http://www.filologia.org.br/anais/anais_022.html

Se eu pudesse desamar
a quem me sempre desamou,
e podess'algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
Se eu podesse coita dar, (sofrimento)
A quem me sempre coita deu.

Mais sol nom posso eu enganar (nem mesmo)


meu coraçom que m'enganou,
por quanto me fez desejar
a quem me nunca desejou.
E per esto nom dormio eu (isto / durmo)
Porque nom poss'eu coita dar,
A quem me sempre coita deu

38
Mais rog'a Deus que desampar
a quem m'assi desamparou,
vel que podess'eu destorvar (pelo menos, ao menos, sequer)
a quem me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
Se eu podesse coita dar,
A quem me sempre coita deu.

Vel que ousass'eu preguntar (pelo menos, ao menos, sequer)


a quem me nunca preguntou
por que me fez em si cuidar,
pois ela nunca em mim cuidou.
E por isto lazeiro eu, (sofrer, penar)
Porque num posso coita dar
A quem me sempre coita deu

Poema de amor, paralelístico e de refrão, onde se verifica a coita amorosa. O


poeta se lamenta por sofrer de amor por certa mulher que por ele nunca sofreu. No
poema ele busca uma maneira de dar a ela a mesma tristeza que ele teve.
Diz ele no final da primeira estrofe: assim me vingaria eu, mostrando o seu
desejo de fazer mal a esta senhora. Apesar disso, na segunda estrofe ele diz que não
pode enganar seu coração que o fez amar a essa pessoa que nunca o amou; afirma nesta
mesma estrofe que não dorme porque não pode fazê-la sofrer. Compreendendo-se esta
incapacidade de fazer mal como indício de que ele não teria a coragem necessária para
cumprir sua vingança e que seu amor por ela o impede de fazer-lhe mal.
Ainda assim, se sentindo incapaz de fazê-la sofrer, ele afirma na terceira estrofe
que pede a Deus que a deixe desamparada.
O refrão se repete ao fim de cada estrofe através de paralelismo, e se alterna em:
“se eu podesse coita dar, a quem me sempre coita deu” na primeira e na terceira
estrofes, e “porque nom poss'eu coita dar, a quem me sempre coita deu” na segunda e na
quarta estrofes. Verificamos um exemplo de leixa-pren, nesta poesia, na retomada na
terceira estrofe do termo “dormiria” que foi retomado a partir do termo “dormio” que
pertence à segunda estrofe. O texto é composto de muitos mordobres, que são
justamente o elemento que vai trazer a rima para o texto. Podemos indicar, por exemplo:
“mais sol nom posso eu enganar / meu coraçom que m'enganou” versos da segunda
estrofe. Versos compostos de oito sílabas métricas.

NOUTRO DIA, QUANDO M’EU ESPEDI – DE AMOR


Johan Soarez Coelho
Fonte: MONGELLI, Lênia M. Fremosos Cantares... SP: Martins Fontes, 2009, pp. 25-26

Noutro dia, quando m’eu espedi


de mia senhor, e quando mi-ouv’ a ir (quando tive de ir-me)
e me non falou, nen me quis oïr,
tan sen ventura foi que non morri!
Que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!

U lh’eu dizi: “con graça, mia senhor”! (quando lhe disse: “com licença, senhora”)
catou-me um pouqu’ e teve-mi en desden; (olhou-me, ponderou)
e porque me non disso mal nen ben,
39
fiquei coitad(o), e con tan gran pavor
que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!

E sei mui ben, u me d’ela quitei


e m’end’eu fui, e non me quis falar, (dali me fui)
ca, pois ali non morri con pesar,
nunca jamais con pesar morrerei:
que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!

Cantiga de refrão, 3 cobras singulares. a10 b10, b10, a10 C10 C10 (160:141)

“Morrer mil vezes” é coita preferível à indiferença e à ausência da amada: no


refrão concentra-se o modo hiperbólico de formular não só dor da partida, mas,
principalmente, os efeitos do desden da senhor, tão mais notório porquanto contraposta
ao pesar dele.
Como o refrão se inicia por uma conjunção consecutiva, que, os quatro versos da
estrofe, amarrados por rimas uniformes abba, oferecem minuciosa descriptio das causas
do infortúnio, superlativizadas pelos advérbios de intensidade tan (vv. 4 e 10), bem
como pelo pleonasmo nunca jamais (v. 16), dispostos com simetria e semanticamente
complementares às mil vezes em que a morte assoma como solução. Daí o pavor (v. 10)
para que evolui o estado de espírito inicial.
Ainda garantida a coesão entre refrães e estrofes está a derivatio etimológica
[mordobre] coita / coitado, criando estreita relação, em termos de causalidade, entre
sofrimento e morte. Note-se que o destaque dado a fiquei coitad(o) (v. 10) se deve à
estrutura anastrófica do período, antepondo a oração subordinada (porque me non disso
mal nen ben, v. 9) à principal, em início de verso.
A fala do amante em discurso direto, no v. 7, confere vivacidade à cena de
aproximação frustrada.

EU DIGO MAL, COM’OME FADIMALHO – DE ESCÁRNIO


Pero da Ponte

Fonte: Os Homens entre si: os fodidos e seus maridos nas cantigas de Pero da Ponte, séc. XIII. Paulo
Roberto Sodré. In: LOPES, Denílson. Imagem e diversidade sexual. [s.l.]: Nojosa Ed., 2004, p. 252...

Eu digo mal, com’ome fadimalho, (viril)


quanto mays posso d’aquestes fodidos,
e trob’a eles e a seus maridos;
e hun deles mi pôs mui grand’ espanto:
topou comigu’ e sobraçou o manto (arregaçou)
e quis en mi achantar o caralho. (plantar, cravar)

Ando-lhes fazendo cobras e sões (estrofes e sons)


quanto mays poss’, e and’escarnecendo
d’aquestes putos, que ss’andan fodendo; (pederastas)
e hun d’eles de noit[e] aseitou-me (espreitou-me)
e quis-me dar do caralh[o]: erou-me
e lançou depos min os [seus] colhões! (atrás)

40
Assim como outras cantigas do repertório de Pero da Ponte dedicadas ao
homoerotismo, “Eu digo mal, com’ome fadimalho” parece implicar a acusação que se
solicita aos súditos no Título XXI, “De los que fazen pecado de luxuria contra natura”,
da “Setena partida” de Alfonso X (...). A cantiga do “fadimalho” apresentaria,
considerando-se essa perspectiva acusatória, a gravidade de um delito e apontaria uma
denúncia, por meio da cantiga, dos atos luxuriosos dos “fodidos”. A injúria que o
trovador sofre, ao ser assaltado sexualmente, desencadeia o canto mal humorado cuja
finalidade parece ser a da correção, da punição, iniciada já pela irrisão das “cobras e
sões”. Essa leitura é a que o senso comum geralmente atribui às sátiras produzidas no
medievo: dedo em riste contra os vícios. (...)

FOI UM DIA LOPO JOGRAR – DE MALDIZER


Martim Soares
Fonte: http://www.filologia.org.br/anais/anais_022.html

Foi um dia Lopo jograr (jogral)


a cas d'um infançom cantar (casa)
e mandou-lh'ele por dom dar (como pagamento)
três couces na garganta;
e fui-lh'escass'a meu cuidar, (e foi forreta, na minha opinião)
Segundo com'el canta.

Escasso foi o infançom


em seus couces partir entom, (repartir)
ca nom deu a Lopo entom (pois, porque)
mais de três na garganta;
e mais merece o jograrom, (jogralão – pejorativo)
Segundo com'el canta.

Trata-se de uma poesia satírica, mais especificamente de maldizer visto que o


poeta explicita claramente de quem ele fala. Lopo era jogral, certamente, visto estar
escrito “foi um dia Lopo jograr”, e este tal Lopo foi jograr na casa de um fidalgo em
troca de dinheiro que na poesia é tratado por “dom”. Inferimos pois que o tal fidalgo
não deu a Lopo o pagamento correto, visto que o poeta diz: “escasso foi o infançom”,
onde escasso significa avaro. O poeta afirma que Lopo talvez merecesse que o fidalgo
fizesse pior, pois afirma que mais merecia o jograrom.
O texto é formado de duas estrofes de cinco versos, é de refrão, os três primeiros
versos rimam entre si, o quarto verso rima com o refrão, o quinto verso rima com os três
primeiros.
Percebemos o encadeamento dos versos três e quatro da primeira estrofe “e
mandou-lh'ele por dom dar/ três couces na garganta”. Temos nesta poesia um exemplo
de leixa-pren que se dá entre o quinto verso da primeira estrofe e o primeiro verso da
segunda estrofe com a palavra “escasso” onde no primeiro verso o sentido é de “pouco”
e no segundo o sentido é de “avareza”, no primeiro quer significar que o poeta que narra
não deu ajuda a Lopo, e no segundo quer dizer que o fidalgo foi injusto no pagamento;
como dobre podemos apresentar no segundo e no terceiro versos da segunda estrofe a
existência em ambos da palavra “entom”.
O refrão: “segundo como ele canta” nos permite inferir, que talvez Lopo fosse
de contar vantagem e, no entanto, foi enganado. Alternam-se os versos de sete e seis
sílabas.

41
MARIA PÉREZ SE MAENFESTOU – DE MALDIZER
Fernão Velho
Fonte: MONGELLI, Lênia M. Fremosos Cantares... SP: Martins Fontes, 2009, pp. 247-248

Maria Pérez se maenfestou (confessou-se)


n’outro dia, ca por [mui] pecador
se sentiu, e log'a nostro Senhor
pormeteu, pelo mal en que andou,
que tevess' un clérig' a seu poder
polus pecadus que lhi faz fazer (pelos)
o demo, com que x'ela sempr' andou.

Maenfestou-sse, ca diz que s'achou


pecador muyt’, e por én rogador (rogante, pedinte)
foy log' a Deus, ca teve por melhor
de guardar a el ca o que aguardou;
e mentre vyva, diz que quer teer
hun clerigo con que se defender
possa do demo que sempre guardou.

E poys que ben seus pecados catou, (considerou)


de sa mort[e] ouv’ ela gran pavor
e d' esmolnar ouv' ela gran sabor; (dar esmola)
e logu’ enton hun clerigo filhou (recebeu, aceitou)
e deu-lh’ a cama en que sol jazer, (costuma, tem por hábito)
e diz que o terrá, mentre viver.
E est’ afam todo por Deus filhou! (trabalho, cuidado)

E poys que s' este preyto começou (promessa, pacto)


antr'eles ambus, ouve grand'amor.
antr'ela sempr'[e] o demo mayor
ta que se Balteira confessou.
Mays, poys que vyo o clerigo caer (meter-se, instalar-se)
antre'eles ambus, ouvi-a perder
o demo, des que s' ela confessou. LP 50.2 CEM 146

Cantiga de maestria, 4 cobras uníssonas


a10 b10 b10 a10 c10 c10 a 10 (161:31)

Esta é outra das numerosas sátiras contra a soldadeira Maria Pérez, a Balteira,
tendo por tema seu arrependimento – assim o sugere a confissão (vv. 1-3) – agora na
velhice, pela vida desregrada que levou. A singularidade irreverente da cantiga está no
pacto que Maria mantém com o Demônio e no fato de colocar-se entre ele e Deus,
relação autorizada pelo paralelismo em que a Idade Média costuma conceber as duas
entidades ou o sagrado e o profano.
Por essa óptica, o texto mantém lado a lado dois campos semânticos, cujo jogo
de proximidade, entrecruzamento e recuo cria a equivocatio própria da burla: 1)
maenfestou, pecador, pormeteu a nosto Senhor, rogador foy a Deus, gran pavor de as
mort[e], gran sabor d’ esmolnar, hun clérigo filhou, afam por Deus – são todas
expressões que culminam na penitência a que a Balteira parece disposta a se entregar
para purificação das culpas; 2) o demo lhi faz fazer, com que x’ ela sempr’ andou, Ca o
42
que aguardou [o demo], o grand’ amor antr’ ela e o demo mayor, ouvi-a perder o demo
– são referências ao Demônio com quem a Balteira se dá muito bem (sempre, v. 14) e a
quem atribui as reincidências no vício. Entre os dois, Deus e o Diabo, e a interseccioná-
los, está a figura ambígua do clérigo, filhado para garantia de proteção contra as
tentações (vv. 13-14); contudo, os vv. 18-20 revelam outra realidade: deu-lh’ a cama en
que sol jazer, o que suscita o comentário sarcástico do trovador (v. 21). Desse ângulo, a
estrofe IV, cheia de subentendidos na gradatio do poema, opõe demo mayor a demo,
duas personalidades fundidas no gosto resistente da Balteira por pecar.
As cobras uníssonas, de rimas oxítonas, colaboram para manter a harmonia da
polaridade, e os dobres utilizam verbos de ambos espaços sêmicos: andou / aguardou /
filhou e, na última estrofe, confessou.

EXEMPLO DE CANTIGA DE SANTA MARIA


Fonte: MONGELLI, Lênia M. Fremosos Cantares... SP: Martins Fontes, 2009, pp. 281-283

As Cantigas de Santa Maria foram reunidas por Afonso X, o Sábio, na segunda


metade do século XIII. Chegaram até nós por meio de quatro códices: o escurialense I
(E), chamado de “códice de músicos” por trazer iluminuras com instrumentalistas,
indispensáveis aos estudos iconográficos e musicológicos medievais; o códice
escurialense II (T), denominado “rico” pelo requinte de sua composição; o códice
florentino (F), não terminado; e o códice de Toledo (identificado por To), com notação
musical diferente dos demais e muitas vezes propiciando as lições mais satisfatórias dos
textos. (...)
O Cancioneiro mariano afonsino tem uma estrutura de conjunto que o torna
único entre seus congêneres. Baseado em fontes antigas e diversas (...); recolhendo
milagres, lendas, louvores e ladainhas mariológicas (...), Afonso X inovou: deu à sua
coletânea o formato de um rosário, pois a cada dez narrativas de milagres insere uma
cantiga de louvor, reconhecidamente mais pessoal e mais subjetiva do que as outras. (...)
Ainda se poderia acrescentar a este “achado” estrutural uma outra singularidade:
para falar das coisas sagradas, de Maria e de seu Filho, Afonso X utiliza como língua o
galego-português, idioma de prestígio reservado à produção poética peninsular na Idade
Média, sendo que sua obra científica e jurídica foi escrita em castelhano; e,
coerentemente com essa escolha, serve-se dos modelos amatórios cortesãos em voga.
(...)

ESTA É DE SANTA MARIA (CSM 110)


Fonte: MONGELLI, Lênia M. Fremosos Cantares... SP: Martins Fontes, 2009, pp. 348-350

Tant’é Santa Maria de ben mui comprida,


que pera a loar tempo nos fal e vida. (louvar)

E como pode per lingua seer loada


a eu fez porque Deus a ssa carne sagrada
quis fillar e ser ome, per que foi mostrada fazer um filho / homem
as deidad’ em carne, vista e oyda? divindades
Tant’é Santa Maria de ben mui comprida,
que pera a loar tempo nos fal e vida.

43
Ca tantos son os bēes de Santa Maria, (bens)
que lingua dizer todos nonos poderia, (não nos)
nen se fosse de ferro e noite e dia
non calasse, que ante non fosse falida.
Tant’é Santa Maria de ben mui comprida,
que pera a loar tempo nos fal e vida.

Se purgamēo foss’o ceo estrelado


e o mar todo tinta, que grand’ é provado,
e vivesse por sempr’ un ome enssinado
de scriver, ficar-ll-ia a mayor partida.
Tant’é Santa Maria de ben mui comprida,
que pera a loar tempo nos fal e vida.

Cantiga de refrão, 3 cobras singulares, rima a uníssona


Refrão A12’ A12’
b12’ b12’ b12’a12’

As três estrofes desta cantiga, de grande beleza, são desdobramento amplificado


do “tópico do inexpremivel” (E.R.Curtius, “acentuação da incapacidade de dominar o
assunto”, pp.166-169), contida no estribilho: uma vida inteira é curta para loar Santa
Maria, tanto é Ela conprida de bēes. O verso alexandrino clássico ajusta-se com
propriedade ao tom grandiloquente e retórico usado para abordar o assunto central: a
maternidade da Virgem, o que A eleva sobre todas as mulheres e dá-Lhe lugar entre os
“mistérios gozosos” do rosário. É por decorrência dessa condição que o texto refere, por
duas vezes, o paradoxo carne sagrada (v. 4) e deidad’ en carne (v. 6), só apreensível à
luz do dogma da Encarnação: para que Jesus pudesse fazer-se Homem (carne), sem
perder sua natureza divina (sagrada), foi necessária a humanidade de Maria. Na mesma
ambiguidade se coloca a lingua (vv. 3 e 9) física, sempre aquém de poder tratar das
coisas intangíveis e sobrenaturais, embora, também paradoxalmente, estas tenham sido
“vistas” e “ouvidas” (v. 6).
Duas esplêndidas metáforas hiperbólicas avultam das estrofes II e III: 1) mesmo
que a língua fosse de ferro e trabalhasse noite e dia até gastar-se, nem assim as
grandezas marianas teriam sido todas ditas. A imagem do ferro (concreta) como
representação de palavras (abstratas) é bastante sugestiva dos interstícios
divino/humano por onde deve caminhar o cantor de Santa Maria; 2) se o céu fosse
pergaminho e o mar tinta – de novo a intersecção entre dois planos – não seria
preenchido mesmo por um escritor que vivesse para sempre, pois as graças de Maria
excederiam.
Conforme diz E. Fidalgo, convém lembrar que esta é a primeira cantiga decimal
depois de encerrado o projeto inicial das cem narrativas de milagres. Dando início,
portanto, às trezentas outras que se somaram àquelas, funciona como um bom Prólogo
ao novo conjunto, assentado no muito que se colheu e no restante, inesgotável, por
tratar.

44
D. DINIS

Sexto rei de Portugal (1279-1325), nascido em Lisboa, conhecido como o Rei Trovador
ou o Rei Lavrador. Filho de Afonso III e de sua segunda mulher, Beatriz, e neto de
Afonso X de Castela, casou-se com Isabel de Aragão, chamada a Rainha Santa. Desde
cedo foi preparado para ser rei pelo seu pai e quando subiu ao trono português,
aclamado em Lisboa (1279), impôs sua autoridade e consolidou a unificação
administrativa e cultural da nação. Quando subiu ao trono português o país encontrava-
se em conflito com a Igreja Católica e imediatamente procurou normalizar a situação
jurando ao Papa Nicolau III proteger os interesses de Roma em Portugal e criando a
Ordem de Cristo ligada à Ordem dos Templários.
Foi essencialmente um rei administrador e não guerreiro, pois embora tenha se
envolvido na guerra com Castela (1295), desistiu dela em troca das vilas de Serpa e
Moura. Pelo Tratado de Alcanises (1297) firmou a Paz com Castela, definindo-se nesse
tratado as fronteiras atuais entre os dois países ibéricos. Para estimular a agricultura,
distribuiu terras a colonos, mandou construir canais e secar pântanos e limitou os
privilégios territoriais da igreja e, por isso, foi cognominado O Lavrador ou O Rei-
Agricultor. Durante seu longo reinado, o comércio também prosperou, com o aumento
da extração de metais, a proteção às feiras e a reorganização da Marinha. Beneficiou a
literatura e mandou traduzir livros latinos e árabes, inclusive a Geografia de Razis.
Adotou o vernáculo nos documentos oficiais e fundou a primeira universidade do país,
que funcionou entre Lisboa e Coimbra, até se fixar nesta última cidade. Poeta e protetor
de trovadores e jograis, também foi apelidado de O Rei-Poeta ou O Rei-Trovador pelas
cantigas que compôs e pelo desenvolvimento da poesia trovadoresca a que se assistiu no
seu reinado. Compôs também cerca de 140 cantigas líricas e satíricas, e permaneceu no
poder até sua morte, em Santarém, e está sepultado no Convento de São Dinis, em
Odivelas. Os últimos anos do seu reinado foram marcados por conflitos internos quando
o herdeiro, futuro D. Afonso IV, achou que o rei favorecesse seu filho bastardo, Afonso
Sanches, entrou em conflito com o pai, mas não chegou a haver guerra civil. Foi o
primeiro rei português a assinar os seus documentos com o nome completo e por isso
presume-se que tenha sido o primeiro rei português não analfabeto.

Fonte: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/

Além dos poemas já vistos acima, do rei Dom Dinis, vejam-se mais alguns, juntamente
com uma análise deles.

PRIMEIROS EXEMPLOS
Fonte: Leticia Eirín García. A visión do amor no cancioneiro de Don Denis. Santiago de Compostela:
Laiovento, 2015.

(3)
Nunca Deus fez tal coita qual eu hei (tenho)
con a ren do mundo que máis amei, (coisa)
des que a vi, e am’e amarei:
noutro dia, quando a fui veer,
o demo lev’a ren que lh’eu falei
de quanto lh’ante cuidaara dizer.

45
Mais, tanto que me d’ant’ela quitei,
do que ante cuidava me nembrei, (lembrei)
que nulha cousa onde non minguei; (?)
mais quand’er quis tornar po-la veer
a lho dizer, e me ben esforcei,
de lho contar sol non houvi poder.

MÉTRICA
Cantiga de amor, do tipo de mestria. Consta de duas estrofas unissonans de seis
decassílabos agudos, polo que toda a composición presenta unha rima longa ou
masculina.
Rítmica: trátase dunha composición bastante irregular do punto de vista rítmico,
probablemente debido á coita sufrida pólo suxeito poético e ao desconcerto que lle
produce a imposibilidade de falar perante a súa dama.
Esquema métrico:
2 (10a 10a 10a 10b 10a 10b)
I ei er
II

COMENTARIO
O trobador afirma que Deus nunca ocasionou unha coita tan grande como a que
el sente pola muller que amou, ama e amará desde que a viu; e engade (acrescenta) que
dias atrás, cando a foi ver, o demo se apoderou das palabras que previamente pensara
dicirlle (I). Mais en canto se afastou dela lembrou sen falla todo o que trazara no seu
pensamento, e cando novamente quixo voltar a vela para llo dicir, a pesar dos seus
esforzos, non foi capaz de o facer (II).

Continúa esta cantiga glosando o tema da coita como resultado da visión da


dama propiciada por Deus, mais neste caso aparece un novo motivo que se erixe no
elemento central da composición: a impossibilidade da fala do poeta como un dos
efectos da presenza da senhor. Este “desregramento dos sentidos” no namorado,
segundo é denominado por José António Souto Cabo (...), é unha das consecuencias
máis evidentes da forza das cualidades da muller que, a pesar de habitualmente non se
faceren explícitas no cancioneiro de amor galego-portugués, son inherentes a ela e
constitúense en principio e fin do proceso amoroso. Trátase ademais dun topos xa
presente na poesia ovidiana ou na lírica trobadoresca provenzal e francesa.
A estrutura da cantiga está determinada pola aproximación ou separación entre o
namorado e a dama. Así, e despois do contacto visual e namoramento do poeta (vv. 1-
3), este vai ver a súa senhor mais non logra dicirlle as palabras que antes pensara (vv. 4-
6), palabras que lembra unha vez que se afasta da súa presenza (vv. 7-9), para logo
voltar perante ela coa intención de llas contar e, novamente, non ser quen de facelo (vv.
10-12). Aínda tendo en conta a relativa brevidade da composición – consta de doce
versos e dúas estrofas –, temos de ponderar a súa perfecta cohesión interna, debido a
que a metade de cada unha das estrofas refire un aspecto ou momento determinado,
téndomos así catro partes ben diferenciadas mais tamén perfectamente trabadas entre si.
A primeira parte defínese polo seu carácter exordial e polo sintetismo, xa que
unicamente en tres versos e a través dunha hipérbole continuada (Nunca Deus fez tal
coita qual eu hei / con a ren do mundo que máis amei, vv. 1-2), o namorado declara a
súa terríbel coita, da que Deus é novamente responsábel, mais tamén evidencia o amor
absoluto que sente pola súa dama. Este amor ilimitado do poeta atópase (encontra-se)

46
intensificado, desde o punto de vista retórico, pola acumulación polisindétca do terceiro
verso e pola iteración flexiva de carácter poliptótico que, a través da repetición do verbo
amar en pretérito, presente e futuro, incide na inevitábel pervivencia dese amor ao
longo dos tempos (amei, amo, amarei).
O comezo da segunda parte (vv. 3-6) sitúanos temporalmente noutro dia, cando
o namorado acode a ver a súa senhor e é precisamente de aquí en adiante onde se
detecta un desenvolvemento narrativo marcado non só por este tipo de referencias
temporais, senón tamén por unha acumulación de formas verbais – fronte á case total
ausencia de adxectivos –, frecuentemente colocadas en posición de rima. A segunda
estrofa da cantiga tamén presenta unha perfecta trabazón (travamento) delimitada pola
estrtutura anafórica dos versos 7 e 10 (Mais...) que, segundo a nosa proposta estrutural,
encabeza respectivamente as partes terceira e cuarta da composición. Para alén disto,é
facilmente detectábel nesta última agrupación estrófica unha tendencia para o hipérbato,
condicionada probabelmente por esa acumulación e colocación das formas verbais a que
acabamos de aludir.
Noutra orde de cousas, o desregramento dos sentidos do poeta, ou metus
praecludit vocem (Spína), non se limita aquí unicamente á impossibilidade da fala,
senón que tamén implica a “obliteração da razão, esquecimento da mensagem amorosa”
(Spina), segundo evidencian os versos Mais, tanto que me d’ant’ela quitei, / do que ante
cuidava me nembrei (vv. 7-8); isto é, unha vez que se afasta da senhor restabelécese o
seu entendemento e recupera da memoria aquilo que lle queria decir. Así, o namorado
atoparíase no paso previo á perda da razón, á loucura de amor.
Tampouco podemos obviar un aspecto realmente chamativo como é o feito de
non aparecer ningunha ocasión ao longo da cantiga o vocábulo senhor, de maneira que
as referencias á dama veñen dadas polo pronome persoal ou ben a través da perífrase a
ren do mundo que máis amei (v. 2), realmente insólita no corpus profano galego-
portugués. No cancioneiro de amor é habitual atoparmos enunciados do tipo que vos
amei sempre máis d’outra ren (B 404/V 15), Sempre vos eu d’outra ren máis amei (B
409/ V 20) ou que amei sempre máis ca outra ren (A 137/B 258), perífrases en que se
produce unha comparación de superioridade non reversíbel, pois o poeta quere á dama
máis do que a calquera ou cousa (ren) no mundo. Mais neste caso Don Denis introduce
unha variación, de maneira que por sinécdoque, o segundo termo da comparación, a ren,
pasa a se converter no termo absoluto, nun intento por parte do trobador de amplificar
até ao punto máximo o amor que sente pola dama a ren do mundo que máis amei.
Ainda a respecto deste termo, vemos que se produce unha reiteración de ren con
referentes diversos nos versos 2 e 5. O primeiro dos casos, que acaba de ser comentado,
alude á dama, em canto o segundo forma parte da expresión o demo lev’a ren, non moi
común na lírica profana, mais que tamén se documenta noutra cantiga – neste caso de
amigo – do rei Don Denis, Ca demo lev’essa ren (B 561/V164, v. 7). O enunciado
posúe un ton certamente negativo, estabelecéndose así o equívoco e o confronto entre
ambos os exemplos aparecidos no texto. Neste sentido, cómpre reparar en que o termo
demo aparece com certa frecuencia nas cantigas de escarnio e maldizer, mais non é en
absoluto habitual na cantiga de amigo nin na de amor, onde unicamente se rexistran seis
casos, incluindo o presente. Deborah González Martínez (...) di a respecto da presenza
deste vocábulo na composición do rei-trobador que “Deus pode aparecer como artífice
da coita e da dor, sendo a referencia ao demo parte dunha fórmula expresiva achegada á
maldición”, circunstancia que exemplifica á perfección a primeira cobra deste texto (vv.
1-6).

47
Por último, tamén a voz ante aparece reiterada en tres versos consecutivos (vv.
6-7-8), mais en dous casos funciona como adverbio co sentido de ‘antes, anteriormente’,
e noutro como proposición, vindo a significar ‘diante de, en presenza da senhor’.

(pp. 83-87)
(25)
Senhor fremosa, pois no coraçon
nunca posestes de mi fazer ben
nen mi dar grado do mal que mi ven (grau)
por vós, siquer teede por razon, (tens)
senhor fremosa, de vos pesar
de vos veer se mi-o Deus [a]guisar (permitir)

Pois vos nunca no coraçon, senon mal,


de min fazerdes, senhor, senon mal,
nen ar atendo ja máis de vós al, (?)
teede por ben, pois assi passou,
senhor fremosa, de vos pesar
[de vos veer se mi-o Deus aguisar]

Pois que vos nunca doestes de min, (teve dó)


er sabedes quanta coita passei
por vós, e quanto mal lev’e levei,
tẽede por ben, pois que ést’assi,
senhor fremosa, [de vos pesar
de vos veer se mi-o Deus aguisar]

E assi me poderedes guardar,


senhor [fremosa], sen vos mal estar.

MÉTRICA
Cantiga de amor, do tipo de refrán. Consta de tres cobras singulars de
decasílabos agudos refrán de dous versos da mesma medida e carácter. A composición
presenta unha fiinda formada tamén por dous versos decasílabos agudos que riman co
refrán. A rima de todo o texto é, pois, longa ou masculina.
Rítmica: para alén do acento estrófico, algúns versos presentan un outro acento
na cuarta sílaba (decasílabo común ou a minore), mais este non se produce de xeito
sistemático ao longo do texto.

Esquema métrico:
3 (10a 10b 10b 10a 10C 10C) + 10c 10c
I on ɛn at
II ou al
III i ei

COMENTARIO
O trobador diríxese á dama e dille que posto que ela nunca tivo a intención de lle
facer ben nin de lle agradecer o mal que sofre por ela, pídelle que polo menos considere
a idea de que el a poida ver, se Deus así o dispón (I). E debido a que a dama nunca tivo
vontade doutra cousa que non fose facerlle mal ao poeta, nin el agrada xa nada máis

48
dela, solicítalle polo menos poder vela (II). Engade (acrescenta) o namorado que debido
a que a muller nunca tive dó del, e sabe todo o que sufriu por ela e o mal que soporta e
soportou, pídelle que non lle pese que el a poida ver, sempre e cando Deus o aprobe
(III). A cantiga finaliza coa declaración do suxeito poético de que así o poderá vixiar
sen ela sentirse mal ou incómoda (IV).

É sen dúbida o topos da visión o motivo fundamental desta composición; mais


aqui non se nos describe o contacto óptico inicial, como si acontece en tantos outros
textos dionisinos, senón que neste caso é tratada a necesidade de o poeta ver a súa dama,
circunstancia pola cal lle suplica ou solicita permiso, tal e como expresa o refrán, onde
introduce tamén o necesario consentimento ou venia de Deus: senhor fremosa, de vos
non pesar / de vos veer se mi-o Deus [a]guisar.
En termos formais, o texto caracterízase polos desenvolvementos paralelísticos,
o xogo de aníteses mal-ben, as iteracións de diverso teor etc. E todo isto inserido no
marco dunha coidada estrutura sintáctica que se repite de modo practicamente idéntico
en cada unha das agrupacións estróficas.
Como é habitual en cantigas destas características, é a estrofa exordial a que
recolle o contido semántico que será repetido, con pequenas variacóns, nas cobras
sucesivas. Debemos reparar igualmente na estrutura circular acadada (atingida) coa
reiteración da apóstrofe senhor fremosa no incipit da composición e no último verso da
fiinda, sintagma que tamén aparece reiterado no primeiro verso do estribillo, e que
obviamente non fal senón insistir na beleza da dama, na súa laudatio, para alén de
funcionar como un dos medios para acadar a ligazón interestrófica.
A respecto do mencionado paralelismo, debemos indicar que, dun ou douto
xeito, aparecen correspondencias nos catro versos que conforman o corpo de cada unha
das cobras, deixando á parte o estribillo. Porén, as dúas primeiras estrofas semellan
seren máis susceptíbeis a este procedemento, pois os versos 1-2 reflicten o mal que o
coraçon da dama xorde (surge) en relación ao trobador, mentres que o cuarto verso,
previo ao refrán, é moi semellante nos tres casos, especialmente nas dúas últimas
estrofas, onde o paralelismo posúe un carácter literal, dado pola substitución sinonímica
e pola transposición de termos no segundo hemistiquio teede por ben, pois assi passou,
v. 10 / tẽede por ben, pois que ést’assi, v. 16.
En canto ao xogo ben-mal xa referido, cómpre indicar que sumamos un total de
catro ocorrencias do termo mal e tres de ben nos vinte versos que conforman este texto.
O vocábulo mal atópase en tres casos referido ao sufrimento que o trobador padece en
relación á dama, e no último (que aparece na fiinda), está aplicado á muller, pois ela
poderá tamén observalo a el sen que se sinta mal pola súa presenza: E assi me
poderedes guardar,/ senhor [fremosa], sen vos mal estar. Por outra parte, nos versos 3-
4, e por medio da suspensio e do encabalgamento, revélasenos a causa dos
padecementos, do mal do eu lírico: nen mi dar grado do mal que mi ven / por vós; esta
estrutura é paralela á dos versos 14-15, aínda que neste caso o substantivo mal é
substituído por coita. Tamén no verso 15 a gradatio ascendente coa iteración poliptótica
do verbo levar pon novamente de relevo a intensidade dos sentimentos trobador e a súa
perdurabilidade ao longo do tempo, ao facer referencia ao presente e ao futuro: e quanto
mal lev’e levei.
En canto a ben, dous dos casos comparecen nas estrutuas paralelas dos versos 10
e 16 a que xa fixemos referencia (teede por ben), e que serven para introducir a petición
do trobador á senhor, a súa solicitude para que esta se ‘deixe ver’ ante o trobador como
unha sorte de recompensa aos padecementos por el sufridos. A outra ocorrencia deste
vocábulo áchase no verso 2 en posición de rima – e en clara correlación antitética co

49
mal do segundo verso da segunta cobra –, conformando aliás a unha litote co adverbio
nunca que principia o período versual: nunca posestes de mi fazer ben.
Por último, desexamos tamén reparar no coraçon, un dos elementos axentes
máis relevantes no proceso amoroso, xa que é neste órgano onde asenta o amor. O
elemento novidoso nesta cantiga é que non estamos a tratar do corazón da propia dama,
do cal brota o mal que ten como destinatario o poeta-namorado.
(pp. 217-221)

SEGUNDOS EXEMPLOS
Fonte: MENDES, Ana Luíza. A Imagem da Dama: O elogio à Senhor nas Cantigas de Amor de Dom
Dinis. ANAIS DO XI EIEM, DA ABREM, 2015

Para nada serve cantar


se o canto não parte do fundo do coração
e, para que o canto venha do fundo do coração,
é necessário que aí dentro exista um verdadeiro amor.
E é por isso que minha poesia é perfeita,
pois para o gozo pleno do amor emprego
a boca, os olhos, o coração e a inteligência.
(SPINA, 1991: 133)

Este é um trecho de uma composição do trovador provençal Bernard de Ventadour


(c.1150-c.1200) que revela a relação existente entre o cantar e o amar. Para o poeta, por
excelência, do amor cortês (SPINA, 1991: 56), a prática trovadoresca é legítima
enquanto deixa transparecer a real situação do trovador que também é amante. E é
justamente por realmente amar que Ventadour diz que sua poesia é perfeita, pois ela
reflete o estado de sua alma. (...)

Proençaes soen mui bem trobar


e dizem eles que é com amor;
mais os que trobam no tempo da frol
e non em outro, sei eu bem que nom
am tam gram coita no seu coraçom
qual m’eu por mha senhor vejo levar.

Pero que trobam e saem loar


sas senhores o mais e o melhor
que eles podem, sõo sabedor
que os que trobam quand’a frol sazom
a e, nom ante, se Deus mi perdom,
nom am tal coita qual eu ei sem parar.

Ca os que trobam e que s’alegrar


vame-no tempo que tem a color
a frol comsigu’e tanto que se for
aquel tempo, logu’em trobar razom
nom am, nem vivem em qual perdiçom
oj’eu vivo, que pois m’a de matar. (LANG, 2010: 228)

Nesta cantiga, Dom Dinis (1261-1325), reconhece a qualidade do trovar dos provençais,
porém, questiona se esse trovar provém de um sentimento sincero. Diante disso
50
podemos deduzir que o rei-trovador considera que o trovar se relaciona intimamente
com a sinceridade amorosa que intenta transmitir. Segundo o rei português, os
provençais amam somente no tempo da frol, ou seja, na primavera, o que significa dizer
que não amam verdadeiramente, pois o amor não tem estação, não é determinado por
ela.
Ora, Ventadour também é da mesma opinião. Na cantiga com que iniciamos
identificamos inclusive o reconhecimento da perfeição da sua composição pelo fato de
que ela foi inspirada por um sentimento verdadeiro. Como, então, podemos entender
esse questionamento de Dom Dinis? Primeiramente, devemos reconhecer o fato de que
Ventadour e Dinis são de séculos diferentes. Portanto, Dinis generaliza. Posiciona-se na
frente de todos os provençais. Questiona a arte trovadoresca provençal. Arte que lhe era
conhecida. Dinis foi educado para ser rei e para ser trovador, por isso conhecia as
técnicas do trovadorismo provençal. Um dos elementos que identificava os trovadores
era justamente a educação artística. Esta educação lhes conferia o nome trovadores, daí
se explica o orgulho dessa denominação (SPINA, 1991: 75) e a afirmação perante aos
jograis e segréis20, seres diferentes do ponto de vista social e artístico.
(...)
No tocante ao elogio à dama, que no contexto ibérico será a senhor, uma vez que não
havia o signo feminino desta palavra, ela será, assim como as diretrizes do amor cortês,
a mais fremosa de todas as mulheres. E é justamente por esse motivo que o trovador lhe
rende o seu amor e declara a sua coita por não ter esse amor correspondido. A senhor
também será amada por ter mesura, ou seja, delicadeza, cortesia. Tal característica é
cobrada, no amor cortês, ao amante. Ele deve tratar a dama com mesura. Instigante
pensar que em uma de suas cantigas, Dom Dinis reconhece o mesmo em sua senhor:

Pois mha ventura tal é ja


que sodes tam poderosa
de mim, mha senhor fremosa,
por mesura que em vós a,
e por bem que vos estará,
pois de vós nom ei nenhum bem,
de vós amar nom vos pes em,
senhor.
(LANG, 2010:235)

A mesura é, pois, um tema extremamente importante na construção da poética cortês.


Em outra cantiga, Dom Dinis brinca com este elemento, como se estivesse atormentado
por ter que cumprir a mesura e querer quebrá-la:

Vós mi defendestes, senhor,


que nunca vos dissesse rem
de quanto mal mi por vós vem;
mais fazede-me sabedor,
por Deus, senhor, a quem direi

20
Esse termo foi utilizado para designar, no século XIII, o jogral que além de executar também compunha
as cantigas, porém, não foi nesta acepção que o termo foi empregado pelos investigadores do assunto.
Além desses personagens do movimento trovadoresco também existiam as soldadeiras, dançarinas ou
cantoras que acompanhavam os jograis. Sobre esse assunto vide: LANCIANI, Giulia; TAVANI,
Giuseppe. Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993.
51
quam muito mal eu ja levei
por vós, se nom a vós, senhor.
(LANG, 2011: 130)
(…)
Nesta cantiga, Dom Dinis confessa sofrer pela sua senhor e pergunta a quem poderá
contar sobre esse sofrimento. Segundo as regras da mesura ele não deve contar a
ninguém, pois ninguém deve saber a quem devota o seu amor. Assim, ele canta o seu
pesar na cantiga, para a sua amada. Dinis joga com os lugares-comuns do amor cortês,
afirmando que não há como se ter mesura sem um indício de desmesura (NOBRE,
2001: 56). É nessa perspectiva que também podemos analisar outra cantiga:

Preguntar-vos quero por Deus,


Senhor fremosa, que vos fez
mesurada e de bom prez,
que pecados foram os meus
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Pero sempre vos soub’ amar


dês aquel dia que vos vi,
mais que os meus olhos em mi;
e assi o quis Deus guisar
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Des que vos vi, sempr’o maior


bem que vos podia querer,
vos quiji a todo meu poder;
e pero quis nostro senhor
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Mais, senhor, a vida com bem


se cobraria bem por bem.
(LANG, 2011: 229)

À senhor, mesurada e de bom prez, ou seja, de boas qualidades e, portanto, digna de ser
amada, Dinis pede por um bem. Ele reclama que nunca, desde o momento em que viu
sua senhor, momento a partir do qual passa a amá-la, ela quis lhe fazer o bem. Este bem
é uma recompensa pelo seu amor. A recompensa poderia ser um presente, poderia ser
um olhar, uma correspondência ao amor do trovador. Ou algo mais. Sim, pois o amor
cortês pregava certa continência, não a castidade. O amor cortês, com todos os seus
artifícios, dialoga com um sensualismo que pulsa sob a cobertura do amor idealizado.
(BARROS, 2007: 89)

A senhor de Dom Dinis é, assim como a dama dos provençais, idealizada, sem
correspondência na realidade. Talvez uma cantiga possa dizer o contrário:

Pois que vos Deus fez, mha senhor,


fazer do bem sempr’ o melhor,

52
e vós em fez tam sabedor,
unha verdade vos direi,
se mi valha nostro senhor:
erades bõa pera rei.

E pois sabedes entender


sempr’ o melhor e escolher,
verdade vos quero dizer,
senhor, que servh’ e servirei:
pois vos Deus atal foi fazer,
erades bõa pera rei.

E pois vos Deus nunca fez par


de bom sem nem de bem falar,
nem fará ja, a meu cuidar,
mha senhor, por quanto bem ei,
se o Deus quizesse guisar,
erades bõa pera rei.
(LANG, 2011: 204-205)

A senhor aqui cantada, assim como a das demais cantigas, não se compara a nenhuma
outra no mundo. Deus a fez sem par, tanto no julgamento quanto no falar. Porém, nesta
cantiga acrescenta-se mais uma característica extremamente interessante. A senhor é tão
perfeita que erades bõa pera rei. Ou seja, ela era perfeita para um rei. Que senhor seria
perfeita para o rei Dom Dinis? Sim, rei. Nesta cantiga não é somente a voz do trovador
que aparece. Dom Dinis não tira a coroa ao trovar. E, se a dama do amor cortês é
superior ao trovador, quem seria a dama superior ao trovador que é superior a todos?
Para alguns estudiosos esta cantiga foi inspirada em Isabel de Aragão (1270-1336),
esposa de Dom Dinis, rainha culta e santa. Pode-se dizer que Isabel foi escolhida a
dedo. Um enlace com a filha do rei de Aragão traria inúmeras vantagens políticas. Ela,
de fato, tinha muitos pretendentes, e o escolhido foi Dom Dinis, também um excelente
partido. Dessa forma, o casamento de Dinis e Isabel foi um bom negócio. Como deveria
ser um casamento no período medieval. Isabel era culta e uma rainha extremamente
ativa, auxiliando o reinado de Dom Dinis com suas habilidades diplomáticas com
Aragão e com seu próprio filho que se insurge contra o pai e com suas atividades de
caridade e assistência. É possível afirmar, então, que Isabel foi uma excelente rainha.
Além disso, cumpriu seu papel de mulher: deu um herdeiro a Dom Dinis, o futuro
Afonso IV, além de uma filha, Constança, que seria rainha de Castela.
Então, diante disso, poderíamos afirmar que a cantiga foi destinada a Isabel. Podemos
dizer que é possível. Isabel, de fato, era boa para rei. Era boa para ser rainha, como o
foi. Porém não há como comprovar. Além do mais, devemos lembrar que Dom Dinis
tinha amantes, ou barregãs para nos atermos ao termo da época. Os nomes de algumas
delas eram conhecidos e constam no Livro de Linhagens do conde Pedro de Barcelos,
um dos filhos bastardos do rei. Inclusive, um destes bastardos teria sido o motivo pelo
qual Afonso, o filho legítimo, se insurge contra o pai, por conta do poder que o irmão,
Afonso Sanches, estaria recebendo no comando do reino. Uma luta gerada por ciúme.
Mas um ciúme político. Afonso não fez nada mais que assegurar o seu trono.
Diante disso, fica a questão: quem era boa para rei? As regras do amor cortês impedem
Dinis de dizer. Ele nunca diria, pois ele é um trovador, de fato. E não o é simplesmente
por ter sido o mais profícuo trovador português, com 137 composições, mas também
pela sua qualidade e por promover “uma condensação, recapitulação e síntese da
53
tradição poética em que se formou e, ao mesmo tempo, uma espécie de confronto
criativo com os textos que ‘cita’ ou aos quais ‘alude’” (PIZARRO, 2008: 321).
Assim, ao fazer o elogio à senhor Dom Dinis faz um elogio ao trovadorismo galego-
português, a si e ao seu reino. Tanto ele quanto os provençais irão afirmar a perfeição do
seu fazer poético e cada qual quer que o seu seja o mais sincero. Através do elogio à
senhor que se mantém nos moldes do amor cortês e da pretensa vontade de querer
trovar como os provençais, como sugere a cantiga Quer’eu em maneyra de proençal, o
rei-trovador, na verdade faz um elogio ao seu reino. Utilizando-se da emulação, que é
um tipo de imitação, mas que se pretende diferente porque sua meta é superar os
provençais. E, para tanto, atualiza a recepção de forma consciente (GUIMARÃES,
2014: 58), ou seja, imitando ou se utilizando das técnicas provençais de trovar ele
estabelece o público em uma tradição poética que passa, então, a ser compartilhada e
transformada numa expressão de identidade.

NOS CANCIONEIROS GALEGO-PORTUGUESES, A QUEBRA DOS


CÂNONES

Fonte: FERNANDES, Geraldo Augusto. Fernão da Silveira, poeta e coudel-mor: paradigma da


inovação no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. 238p. Dissertação. (Literatura Portuguesa). 2006.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

Nos cancioneiros galego-portugueses, a inovação desponta em alguns trovadores


que, se no tema permaneciam fiéis aos cânones, na forma ousavam. No Cancioneiro da
Ajuda21, encontra-se um descordo22 singular de Nuneannes Cerzeo, de número 389, que
assim se apresenta na lição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos:

Agora me quer’eu ja espedir (despedir-se)


da terra, e das gentes que i son,
u mi Deus tanto de pesar mostrou, (onde)
e esforçar mui ben meu coraçon,
e ar pensar de m’ir alhur guarir.] (e pensar de novo em ir viver para outra terra)
E a Deus gradesco porque m’én vou.

Ca [a] meu grad’, u m’eu d’aqui partir’, (vontade / quando)


con seus desejos non me veeran
chorar, nen ir triste, por ben que eu
nunca presesse; nen me poderan (tomar. receber)
dizer que eu torto faç’en fogir (agir mal, fazer mal)
d’aqui u me Deus tanto pesar deu.

Pero das terras averei soidade


de que m’or’ei a partir despagado; (descontente)
e sempr’i tornará o m]eu cuidado (e sempre a elas voltará meu pensamento)
por quanto ben vi eu en elas ja;

21
Essa cantiga-descordo de Nuneannes Cerzeo também aparece no Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
(Org.) Elza Paxeco Machado e José Pedro Machado. Lisboa: Edição da Revista de Portugal, 1949, vol. I,
p. 192-195.
22
O descordo já era conhecido pelos trovadores provençais e “se caracteriza, como su nombre indica, por
ser una composición en la que cada una de las estrofas tienen una fórmula métrica distinta, y por lo tanto
también una melodía individual, lo que va en contra del rígido princípio de isometría a que obedecen los
demás géneros. Ello supone una gran variedad y riqueza de metros, rimas y melodías.” (RIQUER, op. cit.,
I, p. 49).
54
ca ja por al nunca me veerá (outra coisa)
nulh’om(e) ir triste nen desconortado. (ninguém / desconsolado)

E ben digades, pois m’én vou, verdade, ] (E bem digo a verdade a Deus, pois me vou daqui)
se eu das gentes algun sabor avia, (gosto)
ou das terras en que eu guarecia. (salvar-se)
Por aquest’era tod’, e non por al; (era apenas por isso e mais nada)
mais ora ja nunca me será mal
por me partir d’elas e m’ir mia via. (ir-me embora)

Ca sei de mi
quanto sofri
e encobri
en esta terra de pesar.
Como perdi
e despendi, (gastei)
vivend’aqui,
meus dias, posso-m’én queixar. (disso)

E cuidarei,
e pensarei
quant’aguardei
o ben que nunca pud’achar.
E[s]forçar-m’ei,
e prenderei]
como guarrei]
conselh’agor’, a meu cuidar.] (e saberei o que fazer agora, creio, para me salvar)

Pesar
d’achar
logar
provar
quer’eu, veer se poderei.
O sen
d’alguen,
ou ren
de ben
me valha, se o en mi ei!

(Entenda-se: Quero eu ver se poderei tentar pensar em achar um outro lugar. O bom
senso de alguém, ou um pouco de bem que em mim tenha, me valha).
Valer
poder,
saber
dizer
ben me possa, que eu d’ir ei.
D’aver
poder,
prazer
prender
poss’eu, pois esto cobrarei.

55
(Entenda-se: Poder saber dizer me possa bem valer, que tenho de ir-me; de ter poder
para tomar prazer possa eu, pois isso recuperarei)
Assi querrei (quererei)
buscar palavra perduda
viver palavra perduda
outra vida que provarei, (tentar)
e meu descord’acabarei.23
O que chama a atenção nessa peça é a desigualdade com que se montam e se
distribuem as estrofes e as rimas, além da inclusão de duas palavras perdudas na estrofe
final e do enjambement na segunda estrofe das sextilhas, bem como na cauda, em que
esse processo fica mais evidente. Essa dissimetria, diga-se de passagem, não é novidade.
Vimos nos exemplos anteriores – com os provençais – que esse artifício, apesar de raro,
existiu e foi resultado de uma releitura que todos os poetas “antenados” promoveram ao
remontarem ao passado. (...)
Feito para o canto, o descordo de Cerzeo traz, também, um ritmo diferenciado
que deve ter causado estranhamento e, ao mesmo tempo, deleite aos ouvintes. No
subcapítulo precedente, observou-se que Marcabru havia composto uma canção cuja
visualidade evidente lembra as formas de um pássaro. Apesar de uma forma alargada
nos primeiros versos, aquela canção afunilava nos últimos, mantendo, entretanto, certa
regularidade dentro das redondilhas (as maiores, na forma alongada, e as menores, na
adelgaçada). No descordo de Nuneannes, há identidade de forma
(alargamento/afunilamento) com a de Marcabru, contudo, há maior extensão de número
de versos, destacando-se a irregularidade. No conteúdo, há igualmente certa identidade
de fundo: ambos aludem à partida: uma em busca da amada, outra, em fuga da terra
querida. Acrescente-se que, além da irregularidade própria deste subgênero poético,
essa partida é condensada no último verso que fecha com a palavra “descordo”,
denominação do tipo de poesia que criou para expressar seu sentimento. Se esse tema –
o da partida – não é novo, aliás, é recorrente na literatura medieval24, o exemplo desse
poema serve para destacar como, numa forma assimétrica em estrutura e ritmo, um
espírito poético inquietante se serve de recursos diferenciadores para destacar sua
individualidade poética.
Também Dom Dinis, num poema encontrado no Cancioneiro da Biblioteca Nacional,
compõe uma interessante peça, a de número 496, “Assi me Trax coytado”. O uso de enjambements
parecia ser do agrado do monarca, haja vista a proficuidade de seu emprego em diversas peças, o que
demonstra, parece, destreza e visão lúdica do poetar próprios de Dom Dinis. Nessa, entretanto, o
procedimento conjuga-se com a visualidade, se se tomar como parâmetro a lição dos organizadores.
Veja-se a transcrição do poema, como editado nesse último Cancioneiro:

Assy me Trax coytado (triste)


E aficad Amor, (aflito)
E tan atormentado
Que, se Nostro Senhor
A mha senhor non met en cor (não põe no coração, não se decide)
Que se de min doa, a mor (condoer-se)
T auerey praxer e sabor. (prazer)

23
In: Cancioneiro da Ajuda. [s.l.]: INCM, 1990. v. I, p. 764-767.
24
O tema não é evocado somente na literatura medieval, é óbvio; mas é no medievo mais intensamente
explorado.
56
Ca vyu en tal cuydado,
Come quen sofredor
[H]E de mal afficado, (afincado, tenaz)
Que non pode mayor
Se mi non ual a que en for
Te ponto ui, ca ia da mor (em desgraçada hora)
T ey prax[er] e nenhum pauor.

E fazo mui guisado, (fazer acertadamente)


Poys soo seruidor
Da que mi non da grado, (agradeceu)
Querendo lh eu melhor
C a min, nen al, por en Conor (que a mim mesmo ou a qualquer outra coisa)
T eu non ey ia, senon Da mor
T ande soõ deseiador.25 (e isso desejo)
(conorte = conforto)
Eivado de maneirismos, apraz o monarca fazer brincadeiras com os
cavalgamentos de palavras, exacerbando sua coita de amor, bem ao gosto trovadoresco.
À parte o tema recorrente, o poeta-monarca alterna versos hexassílabos com
octossílabos e acentua seu sofrimento – e o resultado que espera dele – no jogo entre os
termos “morte”, “forte” e “conorte”, encadeando as últimas sílabas entre um e outro
verso. Desse modo, como que condensa na forma e no conteúdo o seu morrer de amor.
(...)

NOVELAS DE CAVALARIA
Fonte: MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008.

O Trovadorismo ainda se caracteriza pelo aparecimento e cultivo das novelas de


cavalaria. Originárias da Inglaterra ou/e da França surgiram a partir das canções de
gesta, antigos poemas de temas guerreiros, que em Portugal foram traduzidos, com
algumas modificações que buscavam adaptar as novelas à realidade de Portugal.
Circulava entre a nobreza e, traduzidas do francês, era natural que na tradução e
cópia sofressem voluntárias e involuntárias alterações com o objetivo de adaptá-las à
realidade histórico-cultural de Portugal. A cavalaria, na literatura, apresenta-se em três
ciclos:
1) ciclo bretão ou arturiano, tendo o Rei Artur e seus cavaleiros como
protagonistas;
2) ciclo carolíngio, em torno de Carlos Magno e os doze pares de França;
3) ciclo clássico, referente a novelas de temas greco-latinos.
As novelas de cavalaria têm uma forte conotação religiosa e eram permeadas por
ensinamentos cristãos implícitos no enredo das histórias, refletiam o culto à vida
espiritual, a busca pela perfeição moral, e a valorização de qualidades como a honra, a
bravura, a castidade, a lealdade, a generosidade, a justiça entre outras. Chegaram aos
nossos dias as seguintes novelas: Amadis de Gaula, História de Merlim, José de
Arimateia e A Demanda do Santo Graal.
Amadis de Gaula marca com relevância a ficção da época, através do enredo
amoroso e guerreiro, bem ao gosto do gênero, do cavaleiro perfeito, destruidor de
monstros, tímido e heroico, apaixonado e fiel a sua amada Oriana, seguindo o modelo
25
In: Cancioneiro da Biblioteca Nacional, op. cit., III, p. 122-123. Os destaques são grifos meus.
57
dos cantares de amor. A novela surpreende, sobretudo, pela atmosfera de sensualidade
que une o par amoroso, em especial pelo fato de a amada ter-se oferecido, gentilmente,
antes do casamento.
A Demanda do Santo Graal é uma novela mística, tem começo numa visão
celestial de José de Arimateia e no recebimento dum pequeno livro (A Demanda do
Santo Graal). José parte para Jerusalém; convive com Cristo, acompanha-lhe o martírio
da Cruz, e recolhe-lhe o sangue no Santo Vaso. Deus ordena-lhe que o esconda. Tendo-
o feito, morre em Sarras. O relato termina com a morte de Lancelote: seu filho, Galaaz,
irá em busca do Santo Graal.
Conforme Moisés “(...) A Demanda do Santo Graal contém o seguinte: em torno
da "távola redonda", em Camelot, reino do Rei Artur, reúnem-se dezenas de cavaleiros.
É véspera de Pentecostes. Chega uma donzela à Corte e procura por Lancelote do Lago.
Saem ambos e vão a uma igreja, onde Lancelote arma Galaaz cavaleiro e regressa com
Boorz a Camelot. Um escudeiro anuncia o encontro de maravilhosa espada fincada
numa pedra de mármore boiando na água. Lancelote e os outros tentam arrancá-la
debalde. Nisto, Galaaz chega sem se fazer anunciar e ocupa a seeda perigosa (= cadeira
perigosa) que estava reservada para o cavaleiro "escolhido": das 150 cadeiras, apenas
faltava preencher uma, destinada a Tristão. Galaaz vai ao rio e arranca a espada do
pedrão. A seguir, entregam-se ao torneio. Surge Tristão para ocupar o último assento
vazio. Em meio ao repasto, os cavaleiros são alvoroçados e extasiados com a aérea
aparição do Graal (= cálice), cuja luminosidade sobrenatural os transfigura e alimenta,
posto que dure só um breve momento. Galvão sugere que todos saiam à demanda (= à
procura) do Santo Graal. No dia seguinte, após ouvirem missa, partem todos, cada qual
por seu lado. Daí para frente, a narração se entrelaça, se emaranha, a fim de acompanhar
as desencontradas aventuras dos cavaleiros do Rei Artur, até que, ao cabo, por
perecimento ou exaustão, ficam reduzidos a um pequeno número. E Galaaz, em Sarras,
na plenitude do ofício religioso, tem o privilégio exclusivo de receber a presença do
Santo Vaso, símbolo da Eucaristia, e, portanto, da consagração de uma vida inteira
dedicada ao culto das virtudes morais, espirituais e físicas. A novela ainda continua por
algumas páginas, com a narrativa do adulterino caso amoroso de Lancelote, pai de
Galaaz, e de D. Ginebra, esposa do Rei Artur. Tudo termina com a morte deste último.

CRONICÕES E LIVROS DE LINHAGEM


Além da poesia e das novelas de cavalaria no Trovadorismo, ainda foram
cultivadas outras manifestações literárias: os cronicões, as hagiografias e os nobiliários
ou livros de linhagem.
Os cronicões, de pouco valor literário, deram origem à historiografia portuguesa
e serviram de material de suporte para Alexandre Herculano compor sua Portugaliae
Monumenta Historica. Outros cronicões: Crônicas Breves do Mosteiro de Santa Cruz
de Coimbra, Crónica Geral de Espanha (1344), provavelmente elaborada por D. Pedro,
Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis.
As hagiografias (= vidas de santos), escritas em Latim, possuem ainda menos
significado literário.
Os livros de linhagens eram relações de nomes, especialmente de nobres, com o
objetivo de estabelecer graus de parentesco que serviam para dirimir dúvidas em caso
de herança, filiação ou de casamento em pecado (= casamento entre parentes até o
sétimo). Ao lado de informações tipicamente genealógicas revelam veleidades literárias:
nas referências às ligações genealógicas se intercalam, com realismo, colorido e
naturalidade, narrativas breves, mas de especial interesse, como a da Batalha do Salado.

58
A DAMA PÉ DE CABRA
Dom Diego Lopez era mui bõo monteiro e, estando üu dia en sa armada e atendendo
quando vêrria o porco, ouviu cantar muito alta voz üu molher en cima deüu pena e el foi
pêra lá e viu-a seer mui fermosa e mui ben vistida e namorou-se logo dela mui fortemente e
préguntou-lhe quen era e ela lhe disse que era üu molher de muito alto linhagen, e el lhe
disse que, pois era molher d’alto linhagen, que casaria con ela, se ela quisesse, ca el era
senhor daquela terra toda, e ela lhe disse que o faria, se lhe prometesse que nunca se
santificasse, e ele lho outorgou e ela foi-se logo con ele. E esta dona era mui fermosa e mui
ben feita en todo seu corpo, salvando que avia un pee forcado, como pee de cabra. E
viveron gran tempo e ouveron dous filhos e un ouve nome Enheguez Guerra e a outra foi
molher e ouve nome dona…
E, quando comian de suun don Diego Lopez e sa molher, asseentava el apar de si o
filho e ela asseentava apar de si a filha, da outra parte. E üu dia foi ele a seu monte e matou
un porco mui grande e trouxe-o pera sa casa e pose-o ante si, u sia comendo con sa molher e
con seus filhos, e lançaron un osso da mesa e vëeron a pelejar üu alão e üa podenga
sobr’ele, en tal maneira que a podenga travou ao alão ena garganta e matou-o. E don Diego
Lopez, quando esto viu, teve-o por milagre sinou-se e disse:
— Santa Maria, vai! quen viu nunca tal cousa. E sa molher, quando o viu assisinar,
lança mão na filha e no filho, e don Diego Lopez travo do filho e non lho quis leixar filhar,
e ela recudi con a filha por üu fresta do paaço e foi-se pera a montanha en guisa que a non
viron mais nen a filha.
Depois, a cabo de tempo, foi este don Diego Lopez a fazer mal aos mouros e
prenderon-no e levaran-no para Toledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesava muito
de sa prison e vêo falar con os da terra, per que maneira o poderia aver fora da prison. E
eles disseron que non sabian maneira por que o podesse aver, salvando se fosse aas
montanhas e achasse sa madre e que ela lhe diria como o tirasse. E el foi alá soo, en cima de
seu cavalo, e achou-a en cima de üu pena, e ela lhe disse:
— Filho Enheguez Guerra, ven a min, ca ben sei eu ao que veens.
E el foi pera ela e ela lhe disse:
— Veens a preguntar como tirarás teu padre da prison.
Enton chamou o cavalo que andava solto pelo monte, que avia nome Pardalo, e
chamou-o per seu nome, e ela meteu üu freo ao cavalo que tiinha e disse-lhe que non
fezesse força polo desselar nen polo desenfrear, nen por lhe dar de comer nen de bever, nen
de ferrar, e disse-lhe que este cavalo lhe duraria en toda sa vida e que nunca entraria en lide
que non vencesse dele. E disse-lhe que cavaigasse en ele e que o poria en Toledo, ante a
porta a jazia seu padre logo en esse dia e que, ante a porta u o cavalo o posesse, que ali
decesse, e que achairia seu padre estar en üu curral e que o ficasse pela mão e fezesse que
queria falar con ele, que o fosse tirando contra a porta u estava o cavalo e que, des que ali
fosse, que cavalgasse eno cavalo e que posesse seu padre ante si e que ante noite seria en sa
terra con seu padre e assi foi. E depois, a cabo de tempo, morreu dou Diego Lopez e ficou a
terra a seu filho don Enheguez Guerra.

Fonte: http://www.consciencia.org/a-dama-pe-de-cabra-conto-popular-medieval-portugues

ATIVIDADE - TROVADORISMO

PARTE I

1. A que hierarquia obedecem os trovadores?


2. Quais os tipos de cantigas compostas pelos trovadores?
3. Quais as características de cada uma delas?

59
4. Quais os três cancioneiros em que são reunidas as cantigas trovadorescas
portuguesas?
5. O que são “novelas de cavalaria”?

PARTE II

1. Leia a cantiga a seguir e responda às questões:

BAILEMOS NÓS JÁ TODAS TRÊS, AI AMIGAS


Airas Nunes, de Santiago

Bailemos nós já todas três, ai amigas,


So aquestas avelaneiras frolidas, (floridas)
E quem for velida, como nós, velidas, (formosa)
Se amigo amar,
So aquestas avelaneiras frolidas (estas)
Verrá bailar. (virá)
Bailemos nós já todas três, ai irmanas, (irmãs)
So aqueste ramo destas avelanas, (este)
E quem for louçana, como nós, louçanas, (formosa)
Se amigo amar,
So aqueste ramo destas avelanas (avelaneiras)
Verrá bailar.
Por Deus, ai amigas, mentr’al non fazemos, (enquanto outras coisas)
So aqueste ramo frolido bailemos,
E quem bem parecer, como nós parecemos (tiver belo aspecto)
Se amigo amar,
So aqueste ramo so lo que bailemos
Verrá bailar.
(Airas Nunes, de Santiago. In: SPINA, Segismundo. Presença da Literatura Portuguesa
– I. Era Medieval. 2.a ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1966.)

a) A que tipo de cantiga pertence o poema lido?


b) Quem é o sujeito lírico?
c) Como se distribuem as rimas (agudas ou graves)?
d) Qual é a métrica da cantiga?
e) Qual é o esquema rimático da cantiga?
f) A cantiga é de refrão ou de mestria?
g) Interprete o conteúdo da cantiga.
2. Leia a cantiga a seguir e responda às questões:
UN CAVALO NON COMEU
Joan Garcia de Guilhade.
(CD Cantigas from the Court of Dom Dinis. harmonia mundi USA, 1995.)

Un cavalo non comeu


á seis meses nen s’ergueu
mais prougu’a Deus que choveu, (agradou)
creceu a erva,
e per cabo si paceu, (pastou ali por perto)
e já se leva! (levantar)
60
Seu dono non lhi buscou
cevada neno ferrou: (nem o)
mai-lo bon tempo tornou, (mas o)
creceu a erva,
e paceu, e arriçou, (recobrou)
e já se leva!

Seu dono non lhi quis dar


cevada, neno ferrar;
mais, cabo dum lamaçal
creceu a erva,
e paceu, e arriç’ar, (de novo)
e já se leva!

a) A que tipo de cantiga pertence o poema lido?


b) A cantiga é de refrão ou de mestria?
c) Como se distribuem as rimas (agudas ou graves)?
d) Qual é a métrica da cantiga?
e) Qual é o esquema rimático da cantiga?
f) Interprete o conteúdo da cantiga.

3. Leia a cantiga a seguir e responda às questões:

SEDIA LA FREMOSA SEU SIRGO TORCENDO


(Estêvão Coelho, Cantiga n° 321 - Cancioneiro da Vaticana)

Sedia la fremosa seu sirgo torcendo, (fio)


Sa voz manselinha fremoso dizendo (harmoniosa)
Cantigas d'amigo.

Sedia la fremosa seu sirgo lourando, (bordando)


Sa voz manselinha fremoso cantando
Cantigas d'amigo.

- Por Deus de Cruz, dona, sey que avedes


Amor my coytado que tan ben dizedes
Cantigas d'amigo.

- Por Deus de Cruz, dona, sey que avedes


D'amor my coytada que tan ben cantastes
Cantigas d'amigo.

- Avuytor comestes, que adevinhades, (abutre)

a) A que tipo de cantiga pertence o poema lido?


b) Quem é o sujeito lírico?
c) Como se distribuem as rimas (agudas ou graves)?
d) Qual é a métrica da cantiga?

61
e) Qual é o esquema rimático da cantiga?
f) A cantiga é de refrão ou de mestria? Demonstre o paralelismo na cantiga.
g) Interprete o conteúdo da cantiga.

ESTAVA A FORMOSA SEU FIO TORCENDO

(paráfrase em: In BERARDINELLI, Cleonice. Cantigas e Trovadores Medievais em Português


Moderno. Rio de Janeiro: Organ, Simões, 1953, pp. 58-59.)

Estava a formosa seu fio torcendo,


Sua voz harmoniosa, suave dizendo
Cantigas de amigo.
Estava a formosa sentada, bordando,
Sua voz harmoniosa, suave cantando
Cantigas de amigo.
- Por Jesus, senhora, vejo que sofreis
De amor infeliz, pois tão bem dizeis
Cantigas de amigo.
Por Jesus, senhora, eu vejo que andais
Com penas de amor, pois tão bem cantais
Cantigas de amigo.
- Abutre comeste, pois que adivinhais.
Fonte:
http://projetomedicina.com.br/site/attachments/article/481/exercicios_trovadorismo_literatura_portugues.
pdf
4. Leia a cantiga a seguir e responda às questões:

AI FLORES, AI FLORES DO VERDE PINHO D. Dinis

Ai flores, ai flores do verde pinho .....


se sabedes novas do meu amigo, .....
ai deus, e u é? = refrão (e onde ele está?)

Ai flores, ai flores do verde ramo, .....


se sabedes novas do meu amado, .....
ai deus, e u é? = refrão

Se sabedes novas do meu amigo, .....


aquele que mentiu do que pôs comigo, .....
ai deus, e u é? = refrão

Se sabedes novas do meu amado, .....


aquele que mentiu do que me há jurado .....
ai deus, e u é? = refrão

Vós me perguntades pólo voss’ amigo .....


e eu bem vos digo que é sano e vivo .....
ai deus, e u é ? = refrão

Vós me perguntades pólo voss’ amado .....


e eu bem vos digo que é vivo e sano .....
ai deus, e u é ? = refrão

62
E eu bem vos digo que é sano e vivo .....
e seraa vos c’ante o prazo saído .....
ai deus, e u é ? = refrão

E eu bem vos digo que é vivo e sano .....


e seraa vos c’ante o prazo passado .....
ai deus, e u é ? = refrão

a) A que tipo de cantiga pertence o poema lido?


b) Quem é o sujeito lírico?
c) Como se distribuem as rimas (agudas ou graves)?
d) Qual é a métrica da cantiga?
e) Qual é o esquema rimático da cantiga?
f) Interprete o conteúdo da cantiga.

5. Leia a cantiga a seguir e responda às questões:

FREMOSAS, A DEUS GRADO

Fremosas, a Deus grado,


tan bon dia comigo!
Ca novas mi disseron,
ca ven o meu amigo,
ca ven o meu amigo,
tan bon dia comigo!

Tan bon dia comigo!


Fremosas, a Deus grado,
ca novas me disseron
ca ven o meu amado,
ca ven o meu amado,
fremosas, a Deus grado! Bernal de Bonaval

a) A que tipo de cantiga pertence o poema lido?


b) Quem é o sujeito lírico?
c) Como se distribuem as rimas (agudas ou graves)?
d) Qual é a métrica da cantiga?
e) Qual é o esquema rimático da cantiga?
f) Demostre o leixa-pren nesta cantiga.
g) Interprete o conteúdo da cantiga.

63

You might also like