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O discurso do asceta cristão cobriu os espaços e pode dar novos significados a eles.
Para o professor Paulo Augusto Tamanini (2015) , sobre novos olhares, o deserto, um
lugar que “não há civilização” passou também a significar um lugar não somente de
protesto, mas uma espécie de estágio para santificação, um lugar para purificação do
homem e da mulher de Deus. Tornou-se com o tempo um lugar de desprendimento do
mundo e uma escola para o autoconhecimento onde homens e mulheres ao entrarem ali
nunca mais seriam os mesmos. O deserto passou a ser o espelho da alma, o local de
encontrar com a verdadeira natureza humana e com o tempo transformou-se, sobretudo
onde eremitas mantinham suas vidas, em rotas de peregrinações, lugar de culto e
veneração. O deserto foi atravessado por centenas de pessoas em busca da verdade, da
espiritualidade, e de outros problemas a resolver. Essa construção do deserto foi possível
graças às investidas dos Pais da Igreja gregos e latinos.
No mesmo sentido, o professor Gabriel Castanho em um artigo intitulado A
Polissemia (social) do deserto: uma história dos tópos histórico e historiográfico da
solidão monástica no contexto latino medieval (2015) diz que o conceito de deserto
imensamente utilizado pela atual historiografia medieval qual seja, de que o deserto
medieval seria a floresta, lugar onde o monge cristão se isola totalmente para ficar a sós
com Deus, tratar-se-ia de uma ideia que contrapõe cultura erudita a natureza, ou coloca
em oposição, o espiritual e matéria.
Entre os medievalistas, esta forma de definição se tornou auto
evidente nos últimos anos. Pode-se dizer que ela se constituiu em
um tópos, um senso comum, de grande força e cuja eficácia
retórica levou historiadores a prescindir de uma de suas
ferramentas mais importantes: o aparato crítico e de erudição.
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“Oh, deserto (desertum) adornado com as flores de Cristo! Oh, solidão (solitudo)
na qual se encontram aquelas pedras com as quais no Apocalipse se constrói a cidade do
grande rei! Oh, ermo (heremus) que goza da familiaridade divina! Que fazes, irmão, no
século, tu que es maior que o mundo? Até quando os tetos te oprimirão com tuas sombras?
Até quando te reterá o cárcere fumegante destas cidades? Crê-me, aqui pode ver um não
sei o que de mais luminoso. É possível deixar a carga do corpo e voar ao puro fulgor do
céu. Temes a pobreza? Cristo chama bem aventurados os pobres. Assusta-te o trabalho?
Nenhum atleta é coroado sem suores. Preocupa-te a comida? A fé não sente fome! Tens
medo de deixar cair sobre a dura terra teus membros extenuados pelo jejum? Há teu lado
jaz o Senhor. Horroriza-te a descuidada cabeleira de uma cabeça suja? Tua cabeça é
Cristo. Aterra-te a imensidão infinita do deserto (heremi)? Passeará em espírito pelo
paraíso. Sempre que subas ali com o pensamento, deixarás de estar no deserto (heremo).
Que a pele se põe áspera por falta de banhos? O que se há lavado uma vez em Cristo não
necessita voltar a se banhar! Escuta, em suma, o que a tudo isto responde o apóstolo: ‘Não
são comparáveis o sofrimento deste mundo com a glória que se a de manifestar em
nós’(Rom. 8,18) Muito cômodo seria, querido meu, se pretendes gozar aqui com o século,
e depois reinar com Cristo. (SAN JERÔNIMO. Epístola 14.10 a Heliodoro, monge)
O termo eremus possui claramente um sentido muito próximo do signifcado de
desertum (lugar não habitado, não cultivado e distante do tecido social urbano), mas com
a vantagem de não estar ligado a uma morfologia geográfica ou ecológica exata e de
remeter a um espaço supostamente virgem (isto é, livre do domínio humano). Essa
mutação semântica do deserto foi realizada através de um processo de metaforização do
sentido concreto em direção a um sentido abstrato. O deserto nas Epístolas de São
jerônimo constitui-se tanto como um lugar quanto um estado. Se, como argumenta o
professor Castanho, o imaginário dos primeiros cristãos, a “uasta solitudo” bíblica faz,
assim, parte da tópica antiga do “locus horridus” (local terrível, sem civilidade) e do
“locus amoenus” (o lugar ameno que estimulava a prática da filosofa) na Idade Média, o
deserto é o meio que não chega a ser nem um local onde jamais pode haver erudição nem
um lugar agradável como as cidades, contudo é ele que irá favorecer a ascensão a Deus.