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Qual o legado da ditadura civil-

militar na educação básica


brasileira?
POR CAIO ZINET

“Na ditadura militar a escola era boa”. Essa frase, repetida inúmeras
vezes, pode soar como verdade para alguns. Os fatos, porém, não
parecem corroborar essa tese. Diversos estudos e especialistas que se
debruçam sobre o tema apontam que a Ditadura Civil-Militar (1964-
1988) deixou marcas profundas na educação brasileira entre elas, a
prática de expandir sem qualificar.

No período, houve um aumento significativo do número de matrículas na


educação básica, mas com poucos recursos e pouca formação docente,
ou seja, sem se preocupar com a qualidade ofertada.

A Constituição de 1967, aprovada pelo Regime Civil-Militar, promoveu


duas alterações importantes na política educacional brasileira. Primeiro,
desobrigou a União e os estados a investirem um mínimo, alterando um
dispositivo previsto na Lei de Diretrizes e Bases, aprovada em 1961.

A legislação anterior, aprovada pelo Congresso Nacional durante o


governo João Goulart, previa que a União tinha que investir ao menos
12% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação e também obrigava
estados e municípios a alocarem 20% do orçamento na área.
No artigo “O legado educacional
do regime militar”, o professor da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), Dermerval Saviani, cita estudo que mostra que o governo
federal reduziu sucessivamente as verbas. Em 1970, esse percentual foi
de 7,6%, caindo para 4,31% em 1975 e recuperando um pouco em 1978,
quando foram gastos 5% do PIB na área.

Uma segunda mudança importante introduzida pela Carta de 1967 foi a


abertura do ensino para a iniciativa privada.

“Sempre que possível, o Poder Público substituirá o regime de


gratuidade pelo de concessão de bolsas de estudo, exigido o posterior
reembolso no caso de ensino de grau superior”, previa o artigo 168.

Em 1969, o Regime reforçou esse caráter por meio da Emenda


Constitucional nº1, considerada por muitos como uma nova
Constituição, que previa em seu artigo 176 que “Respeitadas as
disposições legais, o ensino é livre à iniciativa particular, a qual
merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive
mediante bolsas de estudos”.

Mudanças na estrutura

Paralelamente, a ditadura civil-militar também transformou radicalmente


a estrutura de educação básica no país. O modelo prévio, aprovado em
1939 durante a vigência do Estado Novo e mantido pela Lei de
Diretrizes e Bases de 1961, dividia o ensino em pré-primário (maternal e
jardim de infância), primário com duração de quatro anos, com opção de
mais dois em caso de cursos de artes aplicadas, e médio com 7 ou 8 anos
anos divido em ginasial (4 anos) e colegial (mínimo de 3 anos).

Apesar de mantida a essência da estrutura anterior, a LDB de 1961


tornava o ensino obrigatório apenas nos 4 primeiros anos (equivalente ao
Fundamental I). Apesar disso, a legislação previa que em casos de
pobreza dos pais, insuficiência de escolas e doença ou anomalia grave da
criança, as famílias não eram obrigadas a realizar as matrículas de seus
filhos.

Educação e economia

O início da década de 1960 no Brasil foi marcado por uma grande


efervescência política. De um lado, o presidente João Goulart, diversos
intelectuais e movimentos sociais propunham reformas populares. De
outro, militares, empresários e pensadores que se posicionavam contra
tais medidas.

Esse segundo grupo promoveu um golpe, depondo João Goulart e


colocando em prática um regime autoritário, a semelhança do que veio a
ocorrer em outros países da América Latina. É dentro desse contexto que
devem ser compreendidas as mudanças na política educacional do
regime militar.

Em 29 de novembro de 1961, um grupo de empresários de São Paulo e


do Rio de Janeiro formaram o Instituto de Estudos Políticos e Sociais
(Ipes) que teve papel decisivo para a derrubada do governo Jango e na
organização da política educacional do período militar. Já no final de
1964, o Ipes realizou um simpósio para discutir uma reforma
educacional…(Continue lendo).

A constituição de 1967 alterou essa estrutura, instituindo a Educação


Básica como obrigatória durante 8 anos, influenciando uma nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação aprovada em 1971 que implementou um
modelo mais próximo com o que existe atualmente.

Essas alterações tiveram como efeito um aumento significativo no


número de matriculados nas escolas, uma vez que a ditadura tornou o
ensino obrigatório. A expansão que se seguiu a tal medida, entretanto,
não foi acompanhada por aumento das verbas.

“Os gastos do Estado com a educação foram insuficientes e declinaram,


o que interferiu: na estrutura física das escolas, que apresentaram
condições precárias de uso; no número de professores leigos, que
aumentou entre 1973 e 1983, fato que se mostrou mais grave na região
Nordeste, onde 36% do quadro docente tinha apenas o 1º grau completo;
e nos salários e condições de trabalhos dos professores, que sofreram um
crescente processo de deterioração”, escreveu a professora
da Universidade Federal de Goiás (UFG), Renata Machado de Assis em
seu artigo “A Educação brasileira durante o período militar: a
escolarização dos 7 aos 14 anos“.

A docente conclui que apesar da ampliação do contingente de


estudantes, a política educacional promovida no período serviu para
reforçar as desigualdades educacionais, até hoje, um dos grandes
desafios a serem superados na educação brasileira. “Esse quadro
demonstra que, embora significativos contingentes das camadas
populares tenham tido acesso à escola, foi ofertada a esse público uma
educação de baixa qualidade e de segunda categoria. Isso manteve as
taxas de evasão e repetência em níveis elevados”, conclui a docente.
Faixa na parte de trás, com os dizeres “universidade para o povo”, expõe elitização da educação superior

O professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Amarilio


Ferreira Júnior, afirmou que a política de expansão da educação
promovida pela ditadura também teve impactos diretos na formação
docente.

Um dos exemplos foi a criação de uma modalidade de graduação


conhecida como Licenciatura curta. Os cursos das mais diversas áreas
tinham duração de dois anos e meio e davam condições formais para
milhares de profissionais lecionarem nas salas que estavam sendo
abertas.

“O Brasil não tinha o números de professores necessários para sustentar


a expansão da escolarização no ritmo e na dimensão que ocorreu. O
resultado foi o rebaixamento cultural e a precarização das condições de
trabalho dos professores que continua sendo a realidade de inúmeras
redes de ensino até hoje”, avalia o professor.
Saiba + Glossário: formação docente

Infraestrutura

O espaço físico também é algo essencial para uma educação de


qualidade, comprometida com o desenvolvimento integral de crianças e
adolescentes. Locais para alimentação, prática esportiva e
desenvolvimento de outras atividades são essenciais na formação do
aluno dentro de uma perspectiva integral.

A expansão veloz e sem recursos, no entanto, produziu prédios escolares


precários e sem os recursos necessários para o desenvolvimento da
educação, o que se tornou outra herança perversa do regime militar.

A precarização da escola pública e a queda na qualidade do ensino,


combinada com a abertura do país ao ensino privado, fortaleceu a
migração dos filhos das elites para colégios particulares.

Essa migração fortaleceu as desigualdades sociais e educacionais. A


partir desse momento, cria-se a lógica de que os filhos dos ricos têm
acesso a uma educação de qualidade e, portanto, mais chances de chegar
ao ensino superior, enquanto aos filhos dos pobres resta uma educação
pública e precarizada que praticamente impossibilita sua entrada na
universidade.

Qualificar mão de obra

O ex-ministro do Planejamento, Roberto Campos (1964-1967) afirmou


durante o seminário “A educação que nos convém”, realizado em 1968,
que a intenção do governo era formar os filhos dos pobres até o ensino
médio, apenas para qualificar a mão-de-obra. A universidade era um
local destinado para as elites.

“A educação secundária de tipo propriamente humanista devia, a meu


ver, ser algo modificada através da inserção de elementos tecnológicos e
práticos, baseados na presunção inevitável de que apenas uma minoria,
filtrada no ensino secundário ascenderá à universidade; e para a grande
maioria, ter-se-á que considerar a escola secundária como uma formação
final”, afirmou Campos.

Para Amarilio, porém, é uma leitura simplista colocar toda


responsabilidade da situação atual da educação nas costas da ditadura
militar, uma vez que o país já tinha uma história de 450 anos de
privilégios das elites, em detrimento da garantia de direitos para as
maiorias sociais. Entretanto, ele afirma que o Regime agudizou algumas
tendências.

Expansão sem destinação de verbas suficientes aumentou precarização da educação pública e acentuou

desigualdades sociais

“A ditadura não criou, mas acentuou a dualidade entre o ensino público e


o privado, da pré-escola ao ensino superior. A consequência é que as
escolas públicas perderam a qualidade e passou a ser destinada aos mais
pobres, enquanto o ensino privado começou a ser uma alternativa para os
mais ricos e para as elites que secularmente governaram o país”, afirmou
o docente.

Currículo

Durante a ditadura militar também foram introduzidas mudanças


curriculares com a inclusão da matéria Educação Moral e Cívica para os
alunos do 1º e 2º grau. Também foi alterado o objetivo da disciplina
Organização Social e Política do Brasil (OSPB).

A OSPB foi pensada pelo ex-ministro da educação do governo João


Goulart, Anísio Teixeira, como forma de formar dos estudantes
conhecerem melhor a legislação. A ditadura mudou o caráter da
disciplina, tornando-a um espaço que previa o culto à pátria e aos valores
do Regime. A matéria se tornou, portanto, uma forma de exaltar o
nacionalismo presente.

Eram abordados, também, conteúdos que “aprimoravam o caráter do


aluno por meio de apoio moral e dedicação tanto à família quanto
à comunidade”. Outra herança importante da ditadura civil-militar no
Brasil é o recorrente uso de livros didáticos que serviam a um duplo
proposito: uniformizar o discurso dos professores na sala de aula,
evitando que saíssem do discurso imposto pelo regime militar e servir
como guia para os professores que foram levados à sala de aula com
pouca formação.

Juliana Miranda Filgueiras estuda o tema e escreveu um artigo


chamado “O livro didático de educação moral e cívica na ditadura
militar de 1964: a construção de uma disciplina” e explica que durante a
o período, a educação básica tinha um papel importante em difundir as
noções de cultura brasileira que se pretendia instaurar.
Notícia sobre a obrigatoriedade da disciplina de Educação Moral e Cívida/ Crédito: Arquivo Estadão

“Das diversas maneiras possíveis de divulgar os padrões de conduta


pretendidos pelo Regime Militar, o livro didático de Educação Moral e
Cívica pode ter tido um papel de suma importância. Antigos livros
didáticos foram reestruturados e novos livros foram publicados”,
afirmou Juliana no artigo.

A lógica de padronização do ensino por meio de livros didáticos ainda é


uma constante em muitas redes de ensino hoje. Dentro da perspectiva
da educação integral, o currículo deve ser pensado para contemplar o
desenvolvimento de todas as potencialidades do sujeito e isso exige que
ele seja mais discutido entre os atores que fazem parte do processo de
ensino.

Alterações curriculares

Ao mesmo tempo, foram excluídas as aulas de Sociologia e Filosofia do


currículo básico dos estudantes e também foram promovidas alterações
importantes em outras disciplinas, notadamente as de humanas, como
História e Geografia. A Campanha de Assistência ao Estudantes (Cases),
nascida em 1958 durante o governo Juscelino Kubitschek, organizou a
coleção História Nova do Brasil (HNB) que tinha como proposta
redefinir o programa e o currículo de história ensinado nas escolas.

Estudantes foram protagonistas na luta contra a ditadura militar. Crédito: Arquivo Nacional. Correio da

Manhã. PH FOT 554 24

Os signatários da coleção, Joel Rufino dos Santos, Maurício Martins de


Mello, Nelson Werneck, Pedro de Alcântara Figueira, Pedro Celso
Uchoa e Rubem César Fernandes, elaboraram várias monografias que
foram compiladas em um material distribuído pelo então Ministério da
Educação e Cultura (MEC)aos professores.

Em artigo, o professor da Universidade Federal de São Paulo


(Unifesp), Cléber Santos Vieira, diz que um das primeiras medidas do
golpe militar foi proibir a circulação da publicação e promover
inquéritos contra alguns de seus autores. A ditadura militar decidiu
manter o nome da publicação, mas fazer uma nova versão onde foram
apresentadas três monografias.

O objetivo era consolidar outra visão de História, na qual o nacionalismo


era ressaltado. “Por esta lógica, as monografias ‘Conceituação de
Estudos Brasileiros’ nos três níveis de ensino, ‘Feriados Nacionais’ e ‘A
Educação Cívica e o Trabalho’ teriam sido parte do ensaio geral da
obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica nos estabelecimentos
escolares de todos os níveis, estabelecida pelo Decreto-Lei 869/1969 e
toda enxurrada de livros didáticos publicados após sua edição, cujos
conteúdos buscaram interromper a reforma de base no ensino de
história”, afirmou o professor no artigo “Da História Nova do Brasil à
Coleção de Educação Cívica: Histórias da Divisão de Educação Extra-
Escolar do MEC (1963-1966)”.

A Educação Moral e Cívica deixou de ser obrigatória em 1992 e foi


abolida em 1993.

Gestão Democrática

Outro princípio
importante para educação integral é a gestão democrática, prevista na
atual legislação brasileira. Nesse ponto a ditadura foi desastrosa,
fomentando uma organização hierarquizada e vertical do ambiente
escolar. Além disso, impedia a ação política dos estudantes. O Regime
perseguiu e matou alunos da educação básica e jogou na ilegalidade
grêmios estudantis e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas
(UBES) pela Lei nº 4.464, de 6 de abril de 1964, conhecida
como Suplicy de Lacerda.

Um dos marcos mais importantes foi o assassinato do secundarista


Edson Luis por um soldado durante manifestação contra o preço do
restaurante estudantil, no Calabouço, Rio de Janeiro.
Enterro de Edson Luís morto pela Ditadura Militar. Crédito: Arquivo Nacional. Correio da Manhã PH

FOT 55427

O velório na capital fluminense levou mais de 50 mil pessoas para as


ruas e se tornou um ato de resistência à ditadura, transformando o jovem
em um grande símbolo da luta contra a opressão. A liberdade de
organização dos estudantes secundaristas voltou a ser garantida somente
em 1985, durante a presidência de José Sarney, com a aprovação da lei
Nº 7.398.

“Aos estudantes dos estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus fica


assegurada a organização de Estudantes como entidades autônomas
representativas dos interesses dos estudantes secundaristas com
finalidades educacionais, culturais, cívicas esportivas e sociais”, previa o
artigo 1º da lei.

Com a redemocratização, a discussão sobre a importância da gestão


democrática das escolas volta com força. Segundo o professor
da Universidade Federal de Minas Gerais, Jamil Cury, durante a
elaboração da constituinte voltou a se discutir o tema.

“Uma das primeiras movimentações em prol de uma educação


democrática ocorreu no âmbito da constituinte e, posteriormente, na
montagem do capítulo da educação da Constituição”, afirmou o
professor no vídeo Princípios e Bases da Gestão Democrática (ver
abaixo).

De acordo com o Erasto Fortes Mendonça, as discussões sobre gestão


democrática continuaram e influenciaram na elaboração da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1995 que começou a
aprofundar uma visão de que a democracia na escola não se limita
apenas a eleger diretores.

“Esse princípio se expande um pouco mais com algumas características,


como a formação de conselhos escolares, participação dos professores na
formulação do Plano Político Pedagógico da escola. A concepção de
gestão democrática se amplia para além da eleição de diretores”, afirmou
no mesmo vídeo.

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