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RESUMO
ABSTRACT
This work aims to investigate the meaning of the word torah both in the
Scriptures and in Judaism by bringing back the original meaning that has deviated to
the common idea of law. For this purpose its usage has been investigated within the
context of the Old Testament and how it is acceptedly used in Judaism, as well as the
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
de modo que as instruções dadas por eles deviam ser criteriosamente obedecidas
(Dt 17.10,11; 33.10). Entretanto, os profetas denunciaram as práticas corruptas
destes quando passaram a ensinar coisas falsas ao povo e a buscar lucros com
essa tarefa (Is 9.14,15; Mq 3.11).
O substantivo “torá” é geralmente traduzido como “lei”, mas este significado
está aquém de sua representação no contexto vetero-testamentário. Ele aparece
cerca de 220 vezes no AT (VANGEMEREN, 2011, v.4, p.868). Na literatura
sapiencial, na qual é usado sem o artigo definido, ele tem o significado de ensino.
Pode ser a instrução da mãe (Pv 1.8), do pai (Pv 4.1-2) ou dos sábios (Pv 13.14) a
fim de orientar os filhos em suas relações com a vida ou adverti-los sobre os perigos
que há no mundo. Era papel dos sábios e mestres instruir seus discípulos no temor
do Senhor (Pv 1.7):
A “instrução” dos sábios de Israel, que estavam encarregados
da educação dos jovens, era designada a cultivar nos jovens um
temor do Senhor, de forma que eles vivessem conforme as
expectativas de Deus. (VINE, 2007, p.165)
O dicionário Wycliffe (PFEIFFER, 2006, p. 1953) nos informa dos vários usos
de torá no AT:
Vine (2007, p. 103) expressa que o termo torá não trata de leis que se
resumem a restringir ou impedir o homem, mas um meio de se alcançar uma meta
ou ideal, ou seja, que a torá foi dada a Israel para capacitá-lo a permanecer o povo
especial de Deus. Contudo, ao invés de Israel usá-la desta forma, transformou-a
num legalismo que resultou na forma como era usada no período do NT, a qual
Paulo tenta combater em suas cartas. Assunto que trataremos mais adiante.
Assim podemos perceber que o termo torá tem um significado bem mais
abrangente que a ideia de lei entendida num sentido normativo e regulamentar
apenas. Embora não seja confirmado, seus variados usos indicam, de fato, uma
forte relação com o verbo yarah, nos fornecendo a ideia de algo que é dirigido,
direcionado, lançado, como a flecha que aponta para o alvo, ou como o ensino do
mestre para seu aluno ou a orientação dos pais para os filhos, a fim de mantê-los na
meta, no objetivo.
Portanto, torá, mais do que lei, é ensino, instrução, orientação que Deus
dirigiu a seu povo para guiá-lo em sua vontade e mantê-lo como povo da aliança.
Ela também é a história do povo de Deus que serve de exemplo para ensinar e
instruir as gerações posteriores para uma vida de piedade. Para que conheçam
como seus antepassados reagiram a Deus e como Deus respondeu a eles, a fim de
que não cometam os mesmos erros.
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Na divisão hebraica do cânon do AT, torá passou a ser o termo usado para
designar os cinco primeiros livros atribuídos a Moisés, isto é, o Pentateuco, de modo
que os judeus se referiam a eles como “A Torá”. Em um período mais recente, Torá
passou a ser usado para se referir a todo o Antigo Testamento, mas não somente na
sua forma escrita, pois para os judeus a Torá integral consiste também de uma
versão “oral”, criada e transmitida pela tradição, como veremos na próxima seção.
povo (cf. Ne 8.13). A partir disto, essa prática tornou-se uma atividade exegética de
aplicação da lei que era passada adiante a cada geração, transformando-se numa
tradição. “Na parte aramaica de Esdras, o hebraico torah torna-se o aramaico dath
que significa “lei” (7,12.14.21.26)” (DUNN, 2003, p. 171).
Assim, a Torá oral consistiu das interpretações feitas por aqueles que ficavam
incumbidos de ensinar as Escrituras ao povo, semelhante aos sacerdotes e levitas
antigos, e que foram transmitidas oralmente pela tradição rabínica. Os rabinos
passaram a acreditar que eram sucessores dos sacerdotes na tarefa de ensinar e
interpretar a lei para o povo (LOPES, 2007, p. 50). Com o tempo, essas
interpretações foram se expandindo a ponto de ganhar uma versão por escrito
depois da revolta de Bar Kochba, no segundo século depois de Cristo. Falaremos
dela na terceira parte deste trabalho, abaixo.
Este modo tradicional de interpretar e aplicar a lei de acordo com as
necessidades e desafios do momento é mencionado no NT como a “tradição dos
anciãos” (Mt 15.1; Mc 7.3). Jesus, de certo modo, demonstra uma rejeição a essa
tradição, ou parte dela, porque seu ensino invalidava a lei do Senhor (Mt 15.6; Mc
7.13) (DUNN, 2009, p. 141).
Como o uso do hebraico declinou em função do exílio, com o advento do
império grego de Alexandre e sua política helenista, o uso do aramaico também
declinou em muitos centros helenísticos em favor do grego. Nestes centros, muitos
judeus tiveram a dificuldade de ler as Escrituras hebraicas, assim, no terceiro século
antes de Cristo, em Alexandria, a Torá, isto é, o Pentateuco, fora traduzida para o
grego, versão que ficou conhecida como Septuaginta (LXX). O restante do AT, assim
como os apócrifos, foram traduzidos no século seguinte (PFEIFFER, 2006, p. 1994).
Na LXX, o termo torá foi traduzido pelo grego nomos (νόμος), cujo significado
principal é “lei”. Acerca do termo nomos, Vine (2007, p.743) nos diz:
Significava primariamente “aquilo que é prescrito”; por
conseguinte, “uso, costume”, e, portanto, “lei, lei prescrita por
costume ou por estatuto”; a palavra ethos, “costume”, foi retida para
designar “lei” não escrita, enquanto que o termo nomos tornou-se o
nome estabelecido para apontar “lei” decretada por estado e
estabelecida como padrão para a administração da justiça.
contra Sócrates que resultou na sua morte partiu daí: violou o nomos do Estado
quando deixou de reverenciar os deuses de acordo com o costume. Ele coloca ainda
(p. 1154) que o termo foi muito usado na literatura extra-canônica do período
intertestamentário, indicando a importância da lei no pensamento judaico nos três
últimos séculos antes de Cristo. Além disso, como Dunn (2003, p.171) nos informa
que em textos da época do Segundo Templo, torá, assim como nomos, “continuam a
ser usados para denotar ordens divinas que devem ser 'cumpridas'”, por exemplo:
Salmos de Salomão 14.1-2; Eclesiástico 45.5; Baruc 4.1.
Com essas definições e o que vimos acima acerca da tradição iniciada a partir
do período do Segundo Templo, com o advento do helenismo, da LXX e mudanças
tão drásticas que aconteceram no mundo, sobretudo para os judeus, podemos
começar a entender o que torá passou a significar para os judeus no período do NT.
Fica evidente que o AT já não era a única fonte de autoridade para o judaísmo do
primeiro século depois de Cristo, mas também a tradição que emergiu do
desenvolvimento histórico do pensamento e dos costumes judaicos a partir do
Segundo Templo. Como resultado dela, surgiram as sinagogas e o Sinédrio, além
dos partidos religiosos como os fariseus e saduceus, e também festas que não
constam no AT como a Hannukah (Festa da Dedicação). Josefo nos conta que esses
partidos tinham maneiras diferentes de encarar a Torá. Segundo ele a tradição oral
fora difundida pelos fariseus, sendo que ela era rejeitada pelos saduceus que
compreendiam que a únicas leis válidas são as escritas por Moisés (JOSEFO, 2004,
p.611).
Além disso, o mundo contemporâneo ao NT era fortemente influenciado pela
cultura helênica, marcado pela unidade da língua e tolerância à diversidade cultural
e religiosa herdadas da política grega, o que, no passado, por um lado, forçou a uma
reação judaica como no caso da resistência macabeia, cujo “zelo pela Lei” foi marca
da identidade do povo da aliança (DUNN, 2011, p.222), e por outro, tal reação foi a
razão de ser dessas instituições e celebrações de que falamos acima.
Portanto, a partir do período do Segundo Templo a Torá foi se tornando um
conjunto de regras rígidas, embora não estritamente num sentido legal, mas em um
modo de vida judaico orientado pela tradição, porém como norma divinamente
outorgada e, consequentemente, absoluta. Como Schlesinger (1985, p. 16) coloca:
“A Lei contém os fatos passados, o código de vida material e espiritual, a
organização da vida e, enfim, a tradição”. O significado de torá para o judeu da
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época do NT deve ser compreendido nesses moldes. A Lei, então, era uma espécie
de mediadora entre eles e Deus que devia regular toda a vida, que lhes conferia
identidade como povo da aliança e distinção dos demais povos. Os ritos quais se
apegavam com rigor eram tudo que lhes denominavam (DUNN, 2011, p. 200 ss.).
Em outras palavras, não há Judeu, no sentido mais religioso e étnico da palavra,
sem a Torá.
10.34, onde Jesus diz: “não está escrito na vossa Lei... vós sois deuses?”, trata-se
de uma referência que se encontra no livro dos Salmos (82.6).
Nomos é usado 191 vezes no NT, das quais, 119 só nos escritos de Paulo,
com mais frequência na Carta aos Romanos, onde é empregado 72 vezes, seguido
por Gálatas, 32 vezes e 1ª aos Coríntios, 9 vezes. Nos demais livros ocorre 17 vezes
em Atos, 14 em João, 14 aos Hebreus, 10 em Tiago, 9 em Lucas e 8 em Mateus
(COENEN, 2000, p.1157).
Essa predominância do uso de nomos por Paulo indica que o apóstolo teve
que enfrentar em grande escala os problemas relacionados à questão colocada no
primeiro paragrafo desta seção, visto que seu ministério era direcionado aos gentios,
e por isso, forçado a fazer apologia contra a doutrina dos chamados judaizantes.
Antes de falar sobre isto, vamos verificar o que a Lei representa no ensino de Jesus.
Holwerda (2005, p. 89), em sua discussão sobre Jesus e a Lei, coloca a
seguinte questão: “que acontece com a lei quando Jesus vem?”.
Embora, para alguns, possa haver a noção de que Jesus descartou a Lei do
AT, a verdade não é bem esta. Logo no capítulo 5 de Mateus e versos 17 e 18,
Jesus declara que não veio abolir a Lei (refere-se à Lei de Moisés), mas cumpri-la, e
que o menor traço dela não deixaria de se cumprir. E no verso 20, adverte aos seus
ouvintes que a justiça deles deveria exceder em muito a dos fariseus e mestres da
Lei. Trata-se de uma reorientação acerca da compreensão e aplicação da Lei
naquela época. Isto é indicado pelos versos seguintes onde a fórmula "ouvistes o
que foi dito aos antigos... eu porém vos digo” é usada contrastando o ensino que
fora difundido naquela época com a nova realidade da revelação de Deus em Jesus.
Como exposto na primeira seção deste trabalho, Deus é a finalidade, a meta da
Torá, e essa meta se cumpre em Cristo, concordando com Romanos 10.4, que
trataremos um pouco mais adiante.
Jesus não apresenta outra Lei, antes faz uma radicalização da mesma,
contudo, não em termos de observância ritual, mas de uma atitude mais elevada
baseada naquela justiça que devia exceder a dos fariseus. Justiça que consistia de
uma observância à Lei com base no amor, cuja inclinação é para a misericórdia e
para o bem. É para esta “direção” que ele aponta no final do capítulo quando diz
para amar até aos inimigos e orar pelos perseguidores (v.44), porque assim eles
seriam identificados como pertencentes (filhos do) ao Pai (v.45), concordando com
as bem-aventuranças do início do discurso (v.3-10). Na compreensão dos fariseus e
12
práticas, mantendo uma pureza ritual. Até mesmo Paulo, antes de sua conversão,
assumia este zelo judaico, como Dunn (2011, p.76) aponta:
O "zelo" pré-cristão de Paulo estava orientado para preservar o
status "imaculado" dos judeus, inclusive uma santidade não
maculada pelo contato com outras nações, e para perseguir as
pessoas que ameaçavam essa separação sagrada (Fl 3.4-6).
Contudo, Jesus enfatizou o lado altruísta da Lei (Mt 7.12; Lc 10.25-37), além
da misericórdia e amor, que culminou no seu excepcional resumo em dois grandes
mandamentos, dos quais dependem toda a Lei e os Profetas: o amor a Deus e ao
próximo (Mt 22.34-40; Mc 12.28-34). Entretanto, é errado concluir daí que o amor
invalida a Lei, como se, havendo amor, tudo se torna aceitável. Antes, a obediência
deve ser motivada pelo amor, não pelo orgulho ou interesses escusos como aponta
Jesus no restante do sermão do monte (Mt 6-7).
Na igreja primitiva do livro de Atos o centro do pensamento agora é Cristo,
todavia, algumas ideias acerca da Lei são confrontadas, como, por exemplo, no
discurso de Estevão a ênfase no Templo, que era crucial para o judaísmo, sobretudo
para o farisaico, é enfraquecida (7.47-50). Na visão de Pedro sobre os alimentos
impuros, concluiu que alimentos e pessoas não devem mais ser considerados
impuros (10.9-16,28 cf Mc 7.19). Ainda, o Concílio de Jerusalém decidiu que os
gentios não precisavam observar os rituais da Lei (At 15.1-29).
Na Carta aos Hebreus vemos que o sacerdócio levítico, com seus sacrifícios
de animais, é revogado em função do sacrifício e sacerdócio eterno de Cristo (7.11-
18; 9.11-14).
Percebe-se com tudo isso que há certa tendência em prescrever aqueles
elementos da Lei que consistem de rituais, que no meio judaico se tornaram obras
vazias, despidas de sentido e de verdadeira piedade (Is 29.13; Ez 33.31; Mc 7.6-7),
pois faltava-lhes o elemento misericórdia (Mt 12.7). Colocavam sua pureza acima de
coisas mais importantes como fazer o bem (Mt 12.10-13; Lc 13.10-17), algo que até
um samaritano demonstrou, na ocasião em que um sacerdote e um levita deixaram
de fazer (Lc 10.30-37). Em resumo, esqueciam de praticar o amor, a maior obra e o
principal dos mandamentos a cumprir, como um próprio escriba judeu declarou:
“Amá-lo de todo o coração, de todo o entendimento e de todas as forças, e amar ao
próximo como a si mesmo é mais importante do que todos os sacrifícios e ofertas”
14
(Mc 12.33). Sendo que ao dizer isto, Jesus lhe respondeu: “Você não está longe do
Reino de Deus” (v. 34).
Portanto, o amor deve ser a base de toda obra, pois dele depende toda a Torá
(Mt 22.40). Semelhantemente, Holwerda (2005, p.96) nos afirma:
Qualquer interpretação de qualquer mandamento que não seja
informada pelo mandamento do amor deixa de lado a vontade de
Deus expressa no mandamento específico. O cumprimento da lei
deve ser avaliado pela conformidade com essa “ideia-raiz”.
justos. Será que Paulo estava se contradizendo? Ambos os versos são melhores
compreendidos à luz de outros dois textos nas mesmas cartas, Rm 3.20 e Gl 2.16,
nas quais o apóstolo declara que ninguém será justificado pelas “obras da Lei”. Em
todo conteúdo de ambas as cartas fica evidente que Paulo quer eliminar o equívoco
introduzido entre os crentes daquelas regiões em se conceber a justificação por
meio das obras, quando ela é só possível mediante a fé em Cristo.
Mas o que quer dizer “obras da Lei”? Podemos compreender o que isto
significa considerando o que temos falado até aqui acerca da observância tradicional
judaica da Torá. Em relação a isto, Dunn argumenta:
"Obras da Lei" denota tudo que a Lei exige do judeu devoto.
Contudo, exatamente porque se trata aqui da Lei como identidade e
marcadora de fronteiras, a Lei como a Lei de Israel enfoca naqueles
ritos que expressam da maneira mais clara a distinção judaica [...]
Por causa do fato de desempenharem um papel tão crucial em definir
o "ser judeu", a participação no povo da aliança, a circuncisão e as
leis alimentares são tão proeminentes na discussão sobre as obras
da Lei e sobre a justiça. (DUNN, 2011, p. 200)
Assim, explica que aquilo que Paulo tinha em mente quando usava esta
expressão era a circuncisão e as regras alimentares, embora certamente tivesse
outras, mas principalmente estas se sobressaiam, porque elas eram fundamentais
para a prática do judaísmo, pelo menos, desde o período dos macabeus. E podemos
concordar com ele tendo em vista a quantidade de referências que Paulo faz a elas
em suas cartas, principalmente em Romanos e em Gálatas. Também aponta que o
contexto da passagem em Rm 2.13 é escatológico, é acerca do Juízo Final,
reforçado por 3.20 que afirma que “nenhuma carne será justificada diante de Deus”.
Assim, não há contradição em Paulo nestes pontos. Não é a Lei que ele quer
eliminar, mas o equívoco da justificação com base nos méritos, pois reforça em
muitos pontos de suas cartas que é pela fé em Cristo que o crente é justificado (Rm
4.16, 9.32; Gl 5.5; Fp 3.9).
Que ideia de Lei Paulo tem em mente quando escreve sobre ela? A palavra
aqui é, mais uma vez, nomos. VanGemeren, na obra organizada por Gundry sobre
cinco pontos de vista sobre a Lei e Evangelho, sustenta que a ideia que Paulo
trabalha quando fala de nomos é a legislação sinaítica, mas há ocasiões que se
refere ao AT, ao Pentateuco ou até a “princípio” (GUNDRY, 2003, p. 43). Coenen
(2000, p. 1158) concorda com essa postura, ressaltando que Paulo emprega o termo
especialmente para a Lei Mosaica.
16
Ele explica que “alvo” nos dá condições de falar tanto do que cessa,
pensando em termos do alvo sendo atingido, como do que continua, tendo em vista
a harmonia essencial que há entre o que aponta ou prepara para o alvo e o próprio
alvo. Assim, Holwerda coloca que o sentido disto é porque o apóstolo Paulo não
admitiria uma ideia de observância da Torá que não tivesse relação com a obra de
Cristo.
Kaiser, participando do debate sobre a Lei e o Evangelho, concorda com a
ideia de “alvo”:
Assim, explica que o aspecto civil da lei não é aplicável a nossa sociedade,
pois foi dada para regulamentar a vida na sociedade teocrática de Israel. A
cerimonial também não é aplicável, uma vez que foi cumprida em Cristo. Por outro
lado, coloca que a Lei moral é aplicável a qualquer época, porque ela é uma
expressão da graça de Deus e revela de forma objetiva a sua vontade. Os dez
mandamentos são o resumo da Lei moral. Estudiosos como Willen VanGemeren e
Walter Kaiser defendem essa divisão. Kaiser defende que a Lei moral tinha
precedência sobre a civil e cerimonial porque ela é “baseada no caráter de Deus”
(GUNDRY, 2003, p.204). Sendo baseada no caráter de Deus, é imutável, por isso,
nunca perde o valor. Assim, é o aspecto moral da lei que tem aplicação e que é
obrigatória para o crente.
Contudo, outros estudiosos argumentam que essa ideia é moderna, pois tal
divisão não é encontrada nas escrituras. Defendem que a Torá é uma unidade
indivisível, e mesmo Paulo quando pensa em nomos não enxerga essa divisão.
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Estudiosos como Wayne Strickland e Douglas Moo colocam que essa divisão carece
de argumentos bíblicos mais sólidos, pois nem Cristo, nem Paulo, nem os judeus da
época, faziam essas distinções quando falavam da Lei, sendo que um dos
argumentos diz que Cristo não cumpriu somente a Lei cerimonial na cruz, ele
cumpriu toda a Lei. Assim, se a crucificação encerrou o aspecto cerimonial da lei,
também encerrou o moral (GUNDRY, 2003, p. 228-245).
Longe de chegarmos a uma conclusão 3 acerca desses aspectos da Torá aqui
neste trabalho, podemos considerar que, de fato, a Bíblia não faz nenhuma dessas
categorizações, contudo, elas são proveitosas para delinear as bases para uma
compreensão acerca de elementos da Lei que diferem entre si em nível de
aplicabilidade, sobretudo para o cristão. Elas nos permitem enxergar que a Torá,
verdadeiramente, tem elementos que o cristão não pode desprezar, cujo resumo é o
amor. Não cometer idolatria, não tomar o nome de Deus em vão, honrar pai e mãe,
não roubar, não matar, e muitos outros preceitos, são plenamente atuais para todo e
qualquer cristão.
3. A TORÁ HOJE
Antes de se verificar o que a Torá é para o judeu nos dias atuais, é importante
tentar definir o que é um judeu ou o que é ser judeu. Chegar a esta definição não é
tão fácil como o é, por exemplo, o brasileiro. O artigo 12 da Constituição Federal de
1988, em resumo, define que são brasileiros os: “natos” – nascidos no país ou de
pais brasileiros no estrangeiro – e os “naturalizados” – sob determinadas condições
e enquadramentos legais. Neste exemplo, a definição é uma questão de
nacionalidade, conferida pelo lugar de nascimento, pela ancestralidade ou pelo
Estado.
No caso do judeu, a questão vai além da nacionalidade, pois há também o
caráter religioso. Pode se pensar que o judeu é aquele nascido no Estado de Israel,
3 As discussões acerca destes pontos são extensas, para aprofundamento consulte as bibliografias
citadas, em especial a obra organizada por Stanley Gundry: “A Lei e o Evangelho: 5 pontos de vista.”
19
mas como afirma um site judaico4, em toda história do povo judeu, com poucas
exceções, “a esmagadora maioria dos judeus não viveu ou sequer colocou os pés
no país judaico”. Outro equívoco é pensar que os judeus são uma raça. A própria
Bíblia, no livro de Rute, por exemplo, desmonta essa hipótese, visto que Rute era
uma moabita da qual descendeu Davi e Cristo. Há judeus de diversas cores de peles
e línguas e em diversos países. Quando olhamos para a Bíblia identificamos os
judeus com o “Israel de Deus”, o povo que recebeu a promessa. Mas hoje, que
relação há entre o Israel de Deus e os judeus?
O rabino Neusner (2004, p. 282) nos explica que há três tipos de “Israel” nos
dias atuais: um é o “Estado de Israel”, nação política e secular, outro é o “povo de
Israel”, o povo judeu como um grupo étnico de ancestralidade judia, e o terceiro é a
“comunidade sagrada de Israel”, os praticantes do judaísmo. É este último que nos
interessa neste trabalho. O rabino ainda explica que “nem todos os judeus, do
Estado de Israel ou os étnicos, praticam algum tipo de Judaísmo” ou vivem de
acordo com a Torá. Há inclusive judeus ateus ou confessos de outras religiões (p.
282-283). Porém há muitos Israelenses que praticam o Judaísmo, e também há
pessoas que não são de nenhum dos dois primeiros casos, mas fazem parte do
terceiro. Estes são aqueles que se converteram ao Judaísmo.
Pra resumir, há dois meios pelos quais alguém pode fazer parte da
comunidade sagrada de Israel, isto é, ser um judeu praticante do judaísmo e que
observa a Torá: por nascimento e por conversão (ASHERI, 1995, p. 3). No caso de
nascimento, somente aqueles que nasceram de mãe judia é que são considerados
judeus de nascimento. No outro caso, qualquer pessoa pode se tornar um judeu,
convertendo-se ao judaísmo e seguindo a Torá.
Assim, a definição que buscamos e que importa para este trabalho quanto a
ser judeu, está na palavra Judaísmo, ou seja, a religião judaica. Há diversos
aspectos de caráter nacional, étnico e secular do povo judeu, mas é no aspecto
religioso que buscamos o que a Torá representa.
Michael Asheri explica que no judaísmo a Torá constitui-se de duas partes: a
Torá Escrita (Torá Shebiktav) e a Torá Oral (Torá Sheb´al peh), ambas tem o mesmo
valor e autoridade. A Torá Escrita é o que conhecemos por Pentateuco, ela contém
possibilidade é seu uso no NT, a exemplo de Paulo, que expressa a liberdade cristã
em contraposição às obras da Lei. Os reformadores foram acusados de
antinomistas, porque enfatizaram sobremodo a Graça e a justificação pela fé em
resposta ao entendimento da igreja medieval de uma justificação meritória. Embora
os reformadores tenham tido a preocupação de expressar certa continuidade da Lei
no Evangelho (MATOS, [200-]), principalmente Calvino (outrora acusado
injustamente de legalista), surgiram daí muitos movimentos que criaram uma relação
antagônica entre a Lei e a Graça, como o dispensacionalismo, no qual a Lei é o
método de salvação ou dispensação do AT, e a Graça a do NT. (MEISTER, 1999).
Deste modo, no entendimento de muitos cristãos atualmente é que a Torá, ou
Lei, só tem a ver com o Antigo Testamento, e a Graça somente com o Novo.
Entretanto, como demonstrado nas seções acima, há uma evidente
continuidade entre o AT e o NT, entre a Torá e o Evangelho, e por que não, entre a
Lei e a Graça? Jeremias profetizou: “porei a torati (subst. fem. construto + sufixo
pron. 1ªp sg: “minha lei”) no seu interior e a escreverei no seu coração” (31.33b).
Apesar do substantivo torá estar presente, não se pode ter certeza que essa torá é a
Torá de Moisés. Contudo, alguns argumentam que não há razão para considerar
outra lei neste texto, primeiro porque a expressão “minha lei” aparece em outros
textos do discurso de juízo de Jeremias (6.19; 9.12; 16.11), ressaltando a
desobediência do povo (GUNDRY, 2003, p. 310). E segundo, pelo fato de que Deus
prometeu escrever a “minha lei”, não uma “nova lei”. Significa que ao ter dito “minha
lei” a audiência de Jeremias não pensaria em outra lei, senão a Lei de Moisés (p.
319). Além disso, a interiorização da Lei nos corações, no contexto de Jeremias, é
importante porque ele denunciou insistentemente a rebeldia e desprezo por parte do
povo pela Lei do Senhor (3.17; 7.24; 11.8; 13.10; 23.17).
Assim a promessa dessa Nova Aliança (Jr 31.33a) envolve, de algum modo, a
Torá. Sua relação com a Graça, como vimos anteriormente, se expressa como
vontade de Deus revelada, embora não aplicável em todos seus pormenores, mas
sempre válida para os cristãos, ao menos em seus aspectos morais.
Deus sempre quis que sua vontade estivesse no íntimo de seu povo e esta
seria a sua Nova aliança, diferente da antiga, que seu povo invalidou (v. 32). Se a
Antiga Aliança pudesse fazer isso, não haveria necessidade de uma Nova (Hb 8.7).
Considerando o advento de uma Nova Aliança, espera-se que a Antiga seja
suplantada e esquecida, como faz o autor aos Hebreus (8.13). Cristo é o mediador
23
da Nova Aliança que é superior à Antiga (v. 6) que estabeleceu por meio do seu
sangue, como ele próprio confirma na ocasião da Ceia (1Co 11.25). O autor aos
Hebreus ensina que foi a morte de Cristo que estabeleceu a Nova Aliança (Hb. 9.15;
12.24). Apesar disto, ele quer mostrar tanto uma continuidade quanto
descontinuidade entre ambas. Continuidade porque Deus, em ambos os casos, é
quem toma a iniciativa, e também ambas as Alianças são baseadas no sacrifício. A
descontinuidade se da no fato de que o sacrifício de Cristo foi definitivo e não seria
repetido. Assim, como Cristo mesmo afirmou, ele não encerrou a Lei, a cumpriu. E
se ele a cumpriu ela permanece nele através de seu cumprimento integral (Rm 8.4)
e sacrifício eterno (Ef. 5.2; Hb 9.12; 10.10,12), tendo em vista que ele vive
eternamente e é Sumo-Sacerdote desta Nova Aliança (Hb 6.20; 7.24).
Mas ainda falta responder se a tradução “lei” é a melhor opção para o cristão
brasileiro. Que entendimento o cristão brasileiro tem de torá neste sentido de lei?
Um dicionário da língua portuguesa pode nos dar o significado inicial de lei no
contexto brasileiro. O dicionário Michaelis define lei da seguinte forma:
sf (lat lege) 1 Preceito emanado da autoridade soberana. 2
Prescrição do poder legislativo. 3 Regra ou norma de vida. 4 Relação
constante e necessária entre fenômenos ou entre causas e efeitos. 5
Obrigação imposta. 6 Preceito ou norma de direito, moral etc. 7
Religião fundada sobre um livro [...] L. antiga: o código de Moisés.
[...] L. mosaica: a registrada no Pentateuco. [...] L. nova: a doutrina
do Evangelho de Jesus Cristo.6
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCAIS BIBLIOGRÁFICAS
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