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verve

verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

16
2009
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº16 ( Outubro 2009 - ). - São Paulo: o Programa, 2009 -
semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicio­nismo
Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária


do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
Coordenadores: Vera L. Michalany Chaia e Lúcia Maria Machado Bógus.

Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Aline Passos, Anamaria Salles, Andre Degenszajn,
Beatriz Scigliano Carneiro, Bruno Andreotti, Edson Passetti (coordenador),
Eliane Knorr de Carvalho, Guilherme C. Corrêa, Gustavo Ferreira Simões,
Gustavo Ramus, Lúcia Soares da Silva, Luíza Uehara, Mauricio Freitas,
Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago
Souza Santos.

Conselho Editorial
Cecilia Coimbra (UFF e grupo Tortura Nunca Mais/RJ), Christina
Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM),
Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Margareth Rago (Unicamp), Rogério H.
Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José
Eduardo Azevedo (Unip), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade
Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam, Paulo-Edgar Almeida Resende
(PUC-SP), Robson Achiamé (Editor), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera
Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
revista de atitudes. transita por limiares e ins-
tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberdade.
verve é uma labareda que lambe corpos, gestos,
movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita
liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
diagramação: mauricio freitas
intervalos e capa: andre degenszajn
SUMÁRIO
A criança
Sébastien Faure 13

A utopia radical possível: anotações para a construção


de opções anarquistas para América Latina do século XXI
Nelson Méndez 48

Os arquivistas
C.I.R.A. Brasil [2ª parte]
Pietro Ferrua 84

A iniciativa da cooperativa
Cinéma du Peuple
Eric Jarry 141

A atualidade de Dubuffet:
cultura asfixiante
Dorothea Voegeli Passetti 150

Guerra, libertarismo e
relações internacionais
Thiago Rodrigues 167
s Poder e resistências: movimentações
Poder e resistências: movimentações
da multidão ― uma cartografia dos
movimentos antiglobalização
Bruno Andreotti 187

Quem não tem governo nem nunca terá,


Exu e o jeitinho brasileiro
Ivete Miranda Previtalli 204

Edgar Rodrigues (1921-2009)


Marcolino Jeremias e José Maria Carvalho Ferreira 217

Limiares da liberdade
Edson Passetti e Acácio Augusto 236
RESENHAS

Teatro e anarquia
Gustavo Ramus 285

Cinema libertário
Mauricio Freitas 291

Revolução e liberdade, porque Simone


Gustavo Simões 296

A primavera insolente de Michel Foucault


Edivaldo V. da Silva 300
quando a escolarização se torna um dispositivo que ul-
trapassa a obediência e a instrução para fazer funcionar
uma máquina de governo, é preciso voltar à atualidade
de sébastien faure e às inquietações que ultrapassaram
sua época.

é preciso mais do que coexistir nas diferenças anarquis-


tas e ressaltar a importância das tecnologias de comu-
nicação imagéticas desde o cinema, com as inovações
estético-políticas anarquistas; a arte e a atenção do
anarquista jean dubuffet; as peças do teatro anarquista
do início do século passado e as experimentações atuais
do nu-sol; a escrita libertária; a importância de arquivis-
tas como edgar rodrigues e pietro ferrua; as sutilezas de
simone weill, a coragem de verdade de michel foucault.

heterotopias realizando nossas urgências sem retórica,


solipsismo, tratado, ordenamento, encômio, proselitismo.
não falamos em nome de e tampouco somos condutores
de consciência. permanecemos livres e insurretos.

verve vive todos estes 8 anos, mostrando páginas anar-


quistas do passado e do presente em suas atualidades,
por vezes imprecisas, aproximando e afirmando sua
perspectiva, encontrando percursos, revirando o oito em
infinito em pé. verve não se deixa apanhar por identi-
dades, mantém seu vigor pela entrada libertária e com
portas livres para saídas. verve expõe os riscos; não é
fiel a doutrinas e propicia fugas: toda invenção do novo
começa por uma fuga.

com verve 16 encerramos uma fase que nos impul-


sionou para o que já aflorou em nossas vidas e será
mostrado a partir do próximo número. em verve 17
manteremos o formato, com novos intervalos; incor-
poraremos brevíssimas anotações; reduziremos suas
páginas por escolha própria, combinando artigos con-
sistentes, arquivos, resenhas, poesia, teatro e imagens
com outras experimentações libertaria-mente.

verve é ingovernável.
conversação contra um tempo conservador 1:
LEI ANTIFUMO.

é proibido proibir

O tabaco foi proibido pelas leis dos colonizadores


quando era uso dos indígenas; depois virou lucrativo
vício legal capitalista; hoje é conduta condenável a
ser administrada como transtorno medicalizável e
incômodo circunstancial. Mais uma vez se encontra
maneiras para aumentar a lucratividade! Agora são
farmacológicas e psiquiátricas, sob o coro do ramerrame
dos ecologistas de condomínios, politicamente corretos,
nas vitrines ricas e miseráveis. Trata-se de mais uma
puritana proibição ao uso dos prazeres.

[flecheira libertária, ano III, n. 121, 11 de agosto de 2009]

25 de agosto, 19hs, museu da cultura, puc-sp


[r. monte alegre, 984 - tel. 3670-8559]
nu-sol - www.nu-sol.org
verve
A criança

a criança1

0
sébastien faure*

Camaradas,

É da criança que vou lhes falar esta noite. Não co-


nheço assunto mais cativante: nenhum ultrapassa sua
importância.
Não conheço assunto mais cativante do que este
ser alternadamente grave e sorridente, indiferente e
apaixonado, cruel e sensível, calmo e colérico, sempre
gracioso e poético.
Não conheço assunto mais importante do que os nu-
merosos e graves problemas suscitados pelo estudo da
criança, pois a criança é a inteligência que se abre, o
julgamento que se forma, o coração que desabrocha,
a vontade que se afirma, a consciência que desperta;
pois a criança é, hoje, a fragilidade e a ignorância, e
amanhã, o saber e a força; em resumo, o problema da
criança é por inteiro o problema do futuro.

*Sébastien Faure (1858-1942) anarquista francês, realizou conferências pela


Europa e participou de diversos jornais, entre eles, Le Libertaire, fundado junto
com Louise Michel. Também colaborou com a cooperativa Cinéma du peuple.
Dedicou-se à La Ruche (1904-1917), uma escola autogestionária. Morreu aos
84 anos em Royan, França.

verve, 16: 13-47, 2009


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2009

O que é a criança? Um anjo descido dos céus, alguns


dizem; um demônio vomitado pelos infernos, outros
declaram. E aqui nos defrontamos, imediatamente, com
duas escolas: aquela que irei nomear de escola pessimista
e aquela que, por oposição à precedente, chamarei de
escola otimista.
A primeira declara que a criança nasce profundamen-
te má, que desde o berço traz todas as taras originais de
natureza nociva a seu desenvolvimento normal, que é
modelada totalmente a partir do lodo, inclinada às mais
perversas tendências, sujeita aos mais perniciosos e mi-
seráveis movimentos.
A outra escola afirma o contrário. Declara que a criança
nasce boa; que, por natureza, é justa, amável, fraterna, e que
ao nascer traz o gérmen das mais auspiciosas disposições, as
mais louváveis tendências, os mais valorosos impulsos, sendo
capaz de todas as virtudes.
A primeira escola declara que, dada a maldade original
da criança, é indispensável conduzir seu desenvolvimen-
to sob uma rigorosa vigilância, uma inflexível severidade,
pois apenas o chicote consegue guiar a criança, de quem
nada de bom pode se esperar fora de uma regra severa, de
uma austeridade irredutível; e, para utilizar uma expres-
são atualmente na moda, afirma que é necessário fazer
pesar sobre a criança uma ditadura sem fraquezas ou tré-
guas: a ditadura do medo, da repressão e da proibição.
A escola otimista declara ser preciso, ao contrário,
deixar a criança entregue a si própria, abandoná-la com-
pletamente a seus instintos e que, cedendo à pressão
de suas pulsões naturais, ela desabrochará como uma
flor, espalhando ao seu redor, como a dita flor, os mais
delicados e sutis perfumes. Nada de proibição, nada de
severidade; antes, a entrega da criança a si mesma, que
acabará crescendo por si só.
São estas, camaradas, as duas escolas e os dois mé-
todos educativos que a nós se apresentam e entre os
quais é preciso escolher.

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verve
A criança

Declaro que não pertenço a nenhuma das duas e que


estou igualmente distante de ambas.
Dizer que a criança é má, é um erro; dizer que ela é
boa é outro. Não existe criança naturalmente má, nem
criança naturalmente boa. Há certamente sujeitos ex-
cepcionais, crianças que receberam da natureza os me-
lhores instintos e os mais bem-vindos dons; outros, que
vieram ao mundo com hereditariedades perniciosas, e
aparentemente os primeiros são impulsionados para a
virtude e os outros para o mal. Trata-se de exceções, e
quando estou falando da criança, falo da criança em
geral, tomada em seu conjunto, e afirmo existir equiva-
lência entre os bons e os maus instintos, e que é preciso
voltar para a primeira questão: o que é a criança? Pois é
daí que partem os problemas que devemos examinar.
A criança não é nem um anjo descido dos céus, nem
um demônio vindo do inferno. A criança — aquela de
hoje — é apenas o resultado do acasalamento de um
homem e uma mulher vivendo em nossa época, homem
e mulher, eles próprios resultantes dos acasalamentos
anteriores produzidos no tempo e no espaço. A criança
é a sequência de uma interminável linhagem de homens
e de mulheres que constituem a genealogia de todos
seus ancestrais. A criança é a consequência de todas
as gerações que se sucederam na história. É o resumo
de todas as raças e de todas as civilizações anteriores.
Quando a criança nasce, ela é como uma página em
branco sobre a qual nada de definitivo ainda se encon-
tra escrito, nem no sentido do bem, nem no sentido do
mal. Ela não é nem boa nem má, ou mais exatamen-
te, ela é ao mesmo tempo boa e má, pois carrega em
si, desde seu nascimento, em estado de gérmen, todas
as qualidades e, lamentavelmente, todos os defeitos de
seus ascendentes.
Ela possui todas as suas virtudes e vícios, todas as
suas forças e todas as suas fraquezas, todas as igno-
râncias e todos os saberes, todas as ferocidades e todas
as mansuetudes, todas as submissões, todos os fra-

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2009

cassos e todas as vitórias, todos os progressos e todas


as regressões, todas as grandezas e todas as baixezas,
todas as perfeições e todas as misérias. Ela é a sín-
tese dos instintos, dos movimentos, das paixões que,
há séculos, agitaram e atormentaram a humanidade.
Portanto, ela resume em si uma espécie de conjunto
onde se combinam o melhor e o pior; ela é capaz dos
mais sensatos movimentos, mas também dos mais ir-
racionais, dos gestos mais loucos. Ela é capaz das mais
nobres ações, mas também das mais baixas e vis. Por
vezes, ela pode se elevar até o cimo, assim como pode
descer até o abismo.
Assim é a criança. De onde veio esse pequeno ser
amorfo, inconsistente, frágil e franzino, que chora em seu
berço, e que representa, num dado momento da história,
o resultado de todas as hereditariedades, e o que ele vai
se tornar? Em que se transformará mais tarde esse pe-
queno pacote de carne e ossos, sobre o qual se inclina
com ternura a mãe atenta? Ele será aquilo que três coi-
sas o tornarem: a hereditariedade, a educação e o meio.
A criança é como que a soma dessas três coisas. A
ascendência, o atavismo, a hereditariedade, três termos
que resumem todas as forças do passado das quais a
criança é a herdeira; a educação, de que falaremos em
breve, e finalmente, o meio, cuja influência e pressões
dominantes a criança sofre, do nascimento até a tumba.
Desses três fatores, é do segundo que quero, esta noite,
ocupar-me mais particularmente, ou seja, da educação,
pois ela é, ao meu ver, aquele que dentre os três exerce
a maior importância, desempenhando um papel prepon-
derante.
Ninguém poderia hoje desconhecer a gravidade da
questão da educação: perguntem a qualquer um. Inde-
pendentemente das ideias filosóficas, religiosas, políticas
ou sociais, haverá acordo sobre o fato de que o problema
da educação é de importância soberana, ocupando um
lugar preponderante nas preocupações de todos. De fato,
é da fonte das ideias, dos conhecimentos, dos métodos,

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verve
A criança

dos procedimentos em uso para a educação da criança


que mais tarde dependerá a vida intelectual do adulto.
As práticas às quais foi conduzido, os conselhos que re-
cebeu, os exemplos que teve sob os olhos, as influências
que sofreu, os ensinamentos que lhe tiverem sido dados,
irão levá-lo, mais tarde, a um caminho ou a outro, e serão
a base de toda a vida moral do indivíduo.
Não há dúvida que da criança de hoje depende o homem
de amanhã, e que o problema de seu desenvolvimento é
de primeiríssima ordem: a humanidade vale tanto quanto
vale a criança. Essa afirmação, enunciada não sei por
quem, e repetida por muitos, expressa uma verdade
profunda, a seguinte: quem tiver a criança em mãos, terá
toda a humanidade. Os dirigentes compreenderam isso
muito bem; assim, disputam asperamente a educação
da criança. Todos buscam torná-la a continuadora de
sua obra, o representante das ideias de sua classe.
Vejam a Igreja e a burguesia; duas escolas presentes em
nosso país: a escola livre, ou mais exatamente, religiosa,
e a do Estado. De um lado, a Igreja, que se esforça por
dominar precocemente o coração e o espírito da criança,
de modo a mantê-la enclausurada dentro das suas
práticas, tornando-a um crente servil, dócil; de outro, o
Estado, que também necessita de servidores submissos,
de eleitores bem pensantes, de soldados disciplinados,
de contribuintes que paguem seu imposto sem cara feia;
o Estado que, representando a sociedade temporal como
a Igreja representa a sociedade espiritual, joga todo seu
peso na direção da escola, nos métodos empregados,
nos princípios inculcados à criança, nos treinamentos
aos quais é submetida, nas imagens que povoam seu
cérebro, nos ruídos e cores que atingem seus ouvidos
e olhos. A criança não pertence nem à Igreja, nem ao
Estado, e à escola para e pelo Estado, à escola para e
pela Igreja, eu oponho a escola para a criança.
Mas abandonemos essas considerações de ordem ge-
ral sobre a escola, e vejamos juntos o que a educação
deve ser.

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2009

Pais e mães que me escutam, se eu lhes dissesse:


“Vejam, o dia 1º de janeiro está próximo; eu queria lhes
apresentar meus votos no que diz respeito ao seu filho:
o que vocês querem que eu lhe deseje? Qual é seu sonho
a respeito dele? O que vocês gostariam que seu filho fos-
se?” Conheço a resposta de antemão, pois é a resposta
que eu daria se estivesse no lugar de vocês. Eu diria:
“Desejo que meu filho seja belo, inteligente e bom.” Belo,
concerne ao corpo; inteligente, ao espírito; bom, ao cora-
ção e à consciência. E se meu filho conseguisse ter essas
três qualidades — a beleza, ou força física; a inteligência,
ou força intelectual; a bondade, ou força moral —, tenho
certeza que essa criança seria digna de minha ternura e
que mais tarde eu me orgulharia dela.
É isso que vocês responderiam, e teriam razão. Dessa
forma, vocês estariam ressaltando a necessidade de
uma tripla cultura: física, intelectual e moral. Cultura
física, que deve conduzir à beleza do corpo. É preciso
compreender o que beleza quer dizer. Não entendo por
essa palavra a beleza clássica, tradicional, acadêmica,
de alguma maneira oficial, que reside sobretudo na
fineza, na delicadeza ou na regularidade dos traços do
rosto. Entendo por beleza algo bem diferente. Alguém
pode ter traços irregulares e mesmo assim ser belo.
Bela é a criança que possui uma fisionomia móvel e
expressiva, olhos francos e abertos, um corpo robusto
e bem constituído, a criança que, em cada um de seus
movimentos, revela robustez, graça, agilidade. É essa a
verdadeira beleza na criança.
Direi quase o mesmo sobre a inteligência. Não con-
sidero como necessariamente inteligente a criança que
vai bem na escola por ser estudiosa, porque em casa é
vigiada para fazer direitinho seus deveres, por aprender
bem suas lições e porque em seu cérebro foi introduzido
um certo número de informações. Talvez ela saiba ler
nos dicionários, construir gramaticalmente uma frase,
ter noções de geografia e de história. Mas isso não sig-
nifica que sua compreensão seja muito aberta, seu es-

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verve
A criança

pírito judicioso, sua imaginação ardente e, consequen-


temente, que sua inteligência se encontre à altura dos
meus desejos.
E quanto à bondade, basta-me saber que esta criança
é leal e franca, disposta a jamais abusar da força contra
alguém mais fraco que ela, e que se presenciar algum
violento batendo num pequeno camarada, irá defender
o mais fraco contra o mais forte, e sem se preocupar com
os riscos que atrairá para si, irá tomar a defesa do mais
fraco, e que em todas as circunstâncias, na medida de
seus pequenos meios, ela se mostrará fraternal.
Como eu disse, cultura física, mais cultura intelec-
tual e cultura moral.
Cultura física: estamos de acordo sobre as condições
que devem estar reunidas para que a criança se de-
senvolva normalmente, para que atinja toda a soma de
força, beleza e harmonia de que é capaz.
Ar puro e revigorante, alimentação saudável e abun-
dante, rotina, cuidados higiênicos, e especialmente li-
gados à limpeza, e finalmente exercícios físicos ao ar
livre. Sinto vergonha de enumerar condições tão difíceis
de se reunir, não para os ricos, não para os privilegia-
dos da fortuna, que podem ter uma casa na cidade e
outra no campo; na cidade, um apartamento espaçoso
e bem localizado, no campo uma bela casa ou um caste-
lo, podendo enviar seus filhos para respirar nas alturas
das montanhas ou à beira-mar, sendo bem acolhidos
por toda parte devido à sua riqueza. Mas condições di-
fíceis de serem reunidas para os filhos de vocês, mo-
rando no quinto ou sexto andar, em que dois, três ou
quatro vivem num único cômodo, já que os alojamentos
hoje são tão raros e caros! E é nesse único cômodo que
quase tudo deve ser feito: cozinhar, lavar roupa, traba-
lhar, comer, dormir. Como imaginar que o ar respirado
nesses alojamentos tão pequenos e mal dispostos possa
ser puro e revigorante?

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2009

Alimentação saudável e abundante? Seria preciso


oferecer a seus filhos alimentos leves, ovos, laticínios,
frutas, legumes, pouca carne, nenhum vinho, álcool ou
café, pois eles não têm necessidade de recorrer à exci-
tação artificial dessas bebidas; isso iria mais tarde levá-
los a considerá-las necessárias. Mas esses ovos a que
me refiro, esses laticínios, essas frutas, esses legumes,
são abominavelmente caros.
De modo que sinto vergonha quando falo de tais
condições, que pareceriam no entanto tão fáceis de
reunir e que constituem um problema quase insolú-
vel para o simples trabalhador e sua família. Sinto-me
como esse médico que, chamado à cabeceira de uma
mulher doente, carcomida pela tuberculose, exaurida
pelo trabalho ou maternidades sucessivas, não tem di-
ficuldade de enxergar o que deve ser feito, se não para
salvá-la, ao menos para melhorar um pouco sua sorte
e prolongar sua existência. Ele a aconselharia a fazer
uma viagem para o Midi, sob o belo sol de Nice, a to-
mar vinhos fortificantes, comer carnes cruas ou mal
passadas; mas ele sente que a miséria encontra-se lá,
instalada nesse lar, e que essa mãe já tem tanta difi-
culdade para dar a seus filhos o alimento necessário!
Como ela própria poderia seguir o tratamento que lhe
seria necessário?
Estou na mesma situação que esse médico. Sei clara-
mente o que seria preciso para que seus filhos recebes-
sem o desenvolvimento físico indispensável, e isso pa-
rece fácil de ser realizado. E, no entanto, como é difícil!
Ar puro e revigorante, alimentação saudável, variada e
abundante, cuidados higiênicos, limpeza irrepreensível,
rotina, acordar e dormir à mesma hora; espécie de gi-
nástica na qual pouco a pouco são treinados o corpo e
o estômago da criança, condições quase indispensáveis
para uma boa saúde.
Rotina! Quando mesmo para vocês é tão difícil adotá-
la, já que pelas condições de trabalho são obrigados a
sair de casa cedo, só conseguindo retornar muito tarde...

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verve
A criança

Entretanto, eu lhes digo tudo isso, mesmo que vocês


não possam aproveitar de meus conselhos. Eu lhes digo
isso porque assim vocês irão detestar ainda mais essa so-
ciedade que priva seus corações de pais ou mães da ale-
gria de dar a seus filhos aquilo que eles necessitam para
se tornarem robustos, vigorosos, saudáveis e belos.
Não vou insistir sobre esse ponto. Estamos de acordo
quanto a isso, e estou convencido que no dia seguinte
a uma revolução que derrubasse o regime social atual,
que abolisse o contrato social que nos ata, tenho toda
certeza que não haveria, no que diz respeito à educação
de seus filhos, nenhuma discussão grave entre nós.
Então, falemos agora da cultura intelectual.
A criança, vive, come, dorme, bebe, agita-se, seu cor-
po de algum modo se desenvolveu. Ei-la na idade de re-
ceber os conhecimentos que devem mobiliar seu cérebro.
Chegou a hora da escola.
Ah! Nunca digam a seus filhos a seguinte frase,
que, no entanto, escutei com excessiva frequência
sair de lábios paternos ou maternos quando a criança
não se comportava bem: “Seu maroto, se você não for
bonzinho, vou te mandar para a escola!” Nunca digam
isso. Se ameaçarem a criança com a escola, é como se
estivessem dizendo a ela que a escola é um castigo. Isso
quer dizer: vou te punir te mandando para a escola
onde, em vez de encontrar uma mãe meiga e afetuosa
como eu, você vai encontrar um mestre severo que irá te
corrigir. Quando vocês falam assim, a criança imagina
imediatamente que a escola é uma espécie de prisão
na qual será muito infeliz. Ela vai ter receio de ter que
frequentá-la. Não digam isso a seus filhos. Ao contrário,
digam-lhes: “Se você se comportar muito bem, vou te
mandar logo logo para a escola. Até agora você era
muito pequeno, mas já está grande o suficiente para ir
à escola caso se comporte bem.” E a criança ficará feliz
de antemão com a ideia de que logo poderá ir à escola.
E quando finalmente isso acontecer, ele levará consigo

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toda sua alegria. Vocês compreendem que, devido a


esse fato, a criança terá as melhores condições para
desfrutar dela?
Ei-la na escola. Com que objetivo ela se encontra aí?
Evidentemente para se instruir, para aprender, para se
familiarizar com as noções mais úteis, e principalmente
para aprender a aprender.
Estou falando da escola primária, frequentada pelo
filho do trabalhador. Ele a frequenta para aí absorver o
gosto pelo estudo, para receber os conhecimentos indis-
pensáveis sobre os quais, mais tarde, a criança poderá,
graças a seu esforço pessoal e persistente, fundar toda
sua vida.
Falaremos daqui a pouco dos programas. Graças aos
conhecimentos que recebeu, ela em seguida deverá ser
capaz, caso se torne possuidora de um bom método de
trabalho, de procedimentos intelectuais judiciosos, e
se tiver contraído um mínimo gosto pelo estudo, deve
conseguir desenvolver seus primeiros conhecimentos,
ampliar o campo de suas observações, formar cada vez
melhor seus julgamentos, aumentar os tesouros arma-
zenados por sua memória, forjar em sua imaginação —
por aproximação e comparação — evocar novas ideias,
imagens, unir umas às outras. É esse o papel da ima-
ginação. Nela, há uma parte de criação, ao passo que
as outras faculdades são exercidas apenas sobre dados
precisos; a imaginação tem a particularidade de criar
sobre materiais que lhe são fornecidos pela memória, a
inteligência e o julgamento.
É esse o objetivo da escola e é o que nos propomos
a ensinar à criança, quando ela vem para a escola. Di-
rigiram à escola pública um requisitório muito severo.
Confesso compartilhar da maioria das críticas formula-
das contra ela. O que não impede de prestar ao corpo
docente, principalmente às professoras e professores
da escola primária, a homenagem que merecem. Um
grande número dentre eles cumpriram esforços meri-

22
verve
A criança

tórios, chocaram-se contra uma organização defeituosa


de ensino, contra a hostilidade das famílias, a rotina
dos regulamentos, contra as exigências abusivas dos
chefes, dos inspetores. Eles se encontraram, por assim
dizer, entre a cruz e a caldeirinha. De um lado, seus
chefes hierárquicos, o programa seco, brutal; de outro,
as exigências crescentes das famílias.
Nessas condições, reconheço que o papel dos profes-
sores e professoras é extremamente ingrato, e é por isso
que não estou aqui acusando os mestres, mas o ensino.
Em primeiro lugar, há alunos demais para um único
mestre.
Sabe-se que quando um professor ou professora tem
em sua classe 40, 50, e por vezes, 70 ou mais alunos, é
materialmente impossível que consiga se ocupar de for-
ma útil deles. Ele mal os conhece; sabe vagamente seus
nomes, por vê-los sentar-se todos os dias no mesmo lu-
gar, no mesmo banco, diante da mesma escrivaninha,
mas o que sabe deles? Será que os interrogou um a um?
Será que lhe é possível conhecer o espírito e o coração de
seus alunos? Será que terá tempo de corrigir os deveres
de cada um, garantir se eles aprenderam ou não, se eles
sabem suas lições? Não, isso não lhe é possível.
E o que acontece com a classe em tais condições?
Felizes dos mais inteligentes e estudiosos, que consegui-
rão aproveitar dos ensinamentos de seu mestre, que é
obrigado a se conformar a um programa estrito, do qual
é escravo e que deve percorrer com excessiva rapidez.
Sorte daqueles alunos com mais inteligência e me-
mória. Mas e os outros? Aqueles que formam a imensa
massa? Eles se arrastam, tropeçando, aos trancos e
barrancos, e têm muita dificuldade de acompanhar.
Suas pequenas pernas não lhes permitem correr. Então,
essas crianças são evidentemente sacrificadas. E elas
constituem a maioria. Para elas é muito difícil chegar ao
famoso certificado...

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Certificado cujas matérias, aliás, são muito pouco


conhecidas por aqueles que o obtém, matérias que,
além do mais, estes últimos praticamente não irão uti-
lizar a seguir e que tratam de esquecer o mais rapida-
mente possível, mal acabam de aprendê-las.
É preciso que o trabalho seja variado. A criança só
possui uma pequena soma de atenção sustentável.
Depois de três quartos de hora, no máximo uma hora,
essa soma de atenção encontra-se de alguma forma
esgotada. É indispensável deixá-la à vontade para
fazer alguns movimentos, é necessário proporcionar-
lhe alguns instantes de recreação, para que possa
desenferrujar as pernas. Após uma hora, ela não entende
mais nada. Sente comichões nas panturrilhas. Preferiria
estar lá fora, brincando, e isso é compreensível.
Se ela for maior, conseguirá manter-se no lugar e
atenta um pouco mais de tempo, mas com uma condição:
que o tipo de trabalho mude, e que façamos suceder a
um certo estudo, um trabalho de gênero tão diferente
quanto possível. Por exemplo, após uma aula de cálculo,
deem-lhe uma redação; depois de uma lição exigindo
memorização, que ela desenhe. Assim, apenas o fato de
mudar de estudo, de trabalho, constitui uma distração;
senão, é evidente que se você massacrá-la durante uma
hora e meia, duas horas, com o mesmo trabalho, este
vai se tornar penoso, e o escolar não conseguirá tirar
qualquer proveito dele. A criança precisa de trabalho
variado e de recreação frequente.
É preciso também que a sala de estudo seja clara,
alegre, ampla, de modo que as crianças não se atrapa-
lhem mutuamente, e que sintam prazer por se encon-
trar aí. Já vi escolas em que elas ficavam totalmente
amontoadas, não conseguindo nem mesmo mexer os
braços.
As crianças precisam de muito espaço: observem-
nas enquanto comem. Quase todas comem espalhan-
do os cotovelos sobre a mesa; os menores precisam de

24
verve
A criança

mais espaço que um adulto. Na escola, é a mesma coi-


sa: a criança precisa sentir-se à vontade. Se pudesse,
ela se deitaria. E se em casa ela é capaz de colocar os
pés num prato ao comer, seria também bem capaz de
colocar os pés sobre a mesa na escola.
As posições mais exdrúxulas são as melhores para
ela, enquanto a posição metódica, clássica, que consis-
te em se manter de tal ou tal maneira, com os cotovelos
perto do corpo, é uma posição que não lhe convém.
Portanto, seria preciso que a sala de aula fosse clara,
arejada, alegre e ampla; que houvesse coisas pendura-
das nas paredes, lembrando à criança pequena que a
hora do recreio vai chegar. E não essas máximas que
lembram, a cada instante, que ela tem uma lição a fa-
zer, não preceitos sobre suas obrigações.
Parem de importuná-las com máximas.
O resto é uma questão de programa, e ao mesmo tem-
po, de memória.
Apenas algumas palavras sobre o programa. O pro-
grama da escola primária é, a meu ver, carregado de-
mais. Ah! Conheço as ilusões tenazes e as exigências
absurdas da maioria das famílias. Pais e mães têm a
eterna fraqueza de ver em seu filho um ser prodigio-
so. Se ele não for realmente um horror, o pai e a mãe
estarão convencidos que seu petiz é um projeto de gê-
nio. Quando é um pouco robusto, os pais consideram-
no um Apolo ou um Hércules. Pais e a mães possuem
um prisma especial, o prisma de seu carinho através
do qual percebem o filho. Esperam dele que seja um
prodígio. É preciso que ele seja forte em gramática, em
cálculo, em história, em geografia; que ele leia de modo
inteligente os mais sutis autores.
Essa é uma exigência louca. A criança de dez ou
doze anos mal nasceu para a vida cerebral, sua inteli-
gência está ainda começando a se formar. Peçam, por
exemplo, para uma criança de dez anos erguer um peso

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16
2009

de vinte quilos e carregá-lo com braços estendidos; ela


não vai conseguir. Pois bem, é exigir um esforço igual-
mente ridículo e um resultado igualmente absurdo es-
perar que ela seja, aos doze anos, forte em gramática,
em matemática, em história, em geografia, em desenho,
em tudo. Então, o que acontece é que a maioria dessas
crianças prodígio, tais como limões cujo sumo foi es-
premido prematuramente, tornam-se frutos secos em
noventa por cento dos casos. Foram sobrecarregadas
num dado momento, e da vanguarda em que se encon-
travam passam para a retaguarda. Eram as primeiras,
tornam-se as últimas. Conheço muitas crianças que,
precoces e exigidas em excesso, foram a esperança de
sua família e que, ao entrar para a vida, tornaram-se
puros cretinos.
Muitas vezes, o cérebro da criança é comparado
a uma morada. Está correto. Muitas vezes se diz: é
preciso mobiliar o cérebro da criança. Isso não quer
dizer que o cérebro da criança seja um apartamento
muito amplo, composto de numerosos cômodos e que
pudesse ser abundantemente mobiliado. Ao contrário,
é uma habitação pequena, muito pequena; não deve-
mos entulhá-la de mesas, armários, bufês, cadeiras,
camas; isso atrapalharia a criança. É preciso apenas
alguns poucos móveis, de utilidade incontestável, e é
preciso que cada móvel esteja em seu lugar, de modo
a ocupar o menor espaço possível, para que a criança
possa circular e esteja à vontade nessa casa.
Considero que o programa da escola primária tem um
excesso de conteúdos. Esse programa deveria ser limi-
tado aos conhecimentos fundamentais, ou seja, àqueles
conhecimentos sem os quais não é possível adquirir ou-
tros; aos conhecimentos essenciais, aos conhecimentos
de base: a escrita, a leitura, o cálculo, as primeiras no-
ções de desenho; em ciências, bastam algumas noções
elementares. Senão, a criança irá possuir um verniz de
todas as coisas, mas na verdade não vai saber nada.

26
verve
A criança

Seria melhor que ela conhecesse menos coisas, mas


que conhecesse melhor cada uma delas. E o latim, que
dizia: Non multa sed multum, não muito em extensão,
mas muito em profundidade, tinha infinitamente razão.
Permitam-me uma comparação:
Temos dois homens. O primeiro tem uma biblioteca
que abarca mil volumes. Não é muito, mas é alguma
coisa (há muitos dentre nós que não possuem uma bi-
blioteca tão volumosa); ele tem mil volumes, mas nunca
os leu, ou tão pouco, que poderíamos dizer que ele não
os conhece. Conhece vagamente o nome de alguns au-
tores. Quando recebe visitas, ele as leva à sua bibliote-
ca, certo de que vai lhes causar uma boa impressão de
sua alta cultura, dizendo-lhes: “Eis meus livros!”
Durante a conversa, ele chegará mesmo a lançar,
ora bem, ora mal, algumas vezes bem, mas com
mais frequência mal, o nome de algum autor célebre,
ou de uma obra conhecida. Mas se precisar de uma
informação, de um dado preciso, de uma estatística, de
uma cifra, ele terá uma infinita dificuldade de encontrar
em sua biblioteca o volume que deverá consultar para
obtê-los; e mesmo quando tiver encontrado o volume,
ele o terá lido em outra época de forma tão distraída,
folheado tão rapidamente, que vai ser muito penoso
para ele encontrar a passagem de que necessita.
Ele tem muitos livros, mas conhece muito pouco
deles.
E agora, eis o outro homem. Este aqui possui apenas
uma biblioteca bem pequena, de quarenta ou cinquen-
ta livros — e pode ser até menos — muito poucos livros.
Pouco importa o número. Mas ele já leu cada um deles
durante o tempo necessário para conhecê-lo bem. Co-
nhece não somente o título, mas o conteúdo. Leu-o pá-
gina a página. Releu-o duas vezes, três vezes, dez vezes,
e exerceu sua reflexão em cada página.

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2009

Se este homem precisar de alguma informação, de


um documento, de uma citação, de uma cifra, não hesi-
tará. Sua biblioteca é bem organizada, seus livros estão
bem classificados; aqui, os romances; ali, o teatro; mais
longe, a ciência; lá, outra coisa. Consequentemente, ele
sabe em que lugar procurar o documento de que neces-
sita, onde está o livro a ser consultado e, nesse livro, a
página que deverá reler.
Poucos livros, mas ele os conhece. Isso vale mais do
que muitos livros desconhecidos.
Da mesma forma, prefiro uma criança que conhece
poucas coisas, mas que as compreendeu e se apropriou
bem delas, do que uma criança que possui um verniz de
tudo, mas que na realidade não conhece nada.
O programa é carregado demais. Ele deve se limi-
tar aos conhecimentos elementares, essenciais, fun-
damentais, permitindo mais tarde que a criança, caso
seja estudiosa e possua um bom método de trabalho,
desenvolva seus conhecimentos e torne-se uma espécie
de autodidata, ou seja, o homem que aprende tudo por
si só.
Melhor conhecer a fundo poucas coisas do que mui-
tas insuficientemente.
Há outra censura que lanço ao ensino, e aqui ela se
dirige mais ao método do que ao programa.
Acho que é reservado um lugar privilegiado para a
memória, um lugar importante demais no desenvolvi-
mento da força cerebral da criança. Vou evitar falar mal
da memória; ao contrário, aprecio a importância con-
siderável dessa faculdade, e dou valor, como convém,
aos serviços que ela é capaz de prestar. Se fôssemos
esquecendo conforme aprendêssemos, seríamos como
Sísifo empurrando em vão sua pedra, e nosso cérebro
seria como o barril das Danaides, que, por estar furado,
deixava cair por baixo aquilo que vertiam por cima.

28
verve
A criança

A memória é uma faculdade preciosa. Longe de mim


contestar esse fato. Mas ela tem seu papel, sua função,
que é reter, armazenar, classificar, categorizar os co-
nhecimentos que são pouco a pouco introduzidos no
cérebro da criança. Ela os classifica ordenadamente,
de modo que a criança possa, se for o caso, encontrá-
los. É a pequena biblioteca sobre a qual falei agora há
pouco. É necessário que haja ordem, que ela não esteja
entulhada, e para isso, que a memória apenas sirva à
inteligência. Ela não deve precedê-la.
O papel da inteligência é compreender; depois, quan-
do compreendemos, intervém a memória, cuja função é
reter. Portanto, a memória deve se limitar à função que
lhe convém, sem invadir as faculdades vizinhas.
A energia cerebral comporta quatro elementos ou
quatro fatores: 1) a inteligência propriamente dita, a
capacidade de compreender; 2) a memória; 3) a imagi-
nação; 4) o julgamento.
Cada uma dessas faculdades tem suas atribuições
particulares que permitem realizar o desenvolvimento
do cérebro nas melhores condições.
Em primeiro lugar, compreender: inteligência. Em
seguida, reter e classificar: memória. Associar os co-
nhecimentos adquiridos, as ideias armazenadas, os
ruídos, as cores que povoam o cérebro, evocar através
da imagem novas criações e aproximações inesperadas:
imaginação. Depois, comparar, aproximar ou separar
ideias, sensações, lembranças, estabelecer semelhan-
ças ou diferenças: julgamento.
Tudo isso comporta um mecanismo bastante com-
plicado. Mas ainda é preciso se reconhecer nisso e,
nesse sentido, deixar a cada faculdade o lugar que lhe
convém.
Farei uma outra e última censura à escola. Sou um
adversário ferrenho do que é chamado classificação;
do sistema que consiste em fazer com que as crianças

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entrem em competição, para reconhecer uma como


primeira da classe, outra como segunda, uma outra
ainda como última. Sou adversário desse sistema de
classificação por estar convencido que seus resultados
são nefastos. Muitas pessoas imaginam, a meu ver
de forma totalmente errônea, que essa classificação
é um estímulo, e que tal competição produz bons
resultados. Acredito que aqueles que pensam assim
estão enganados.
Os primeiros não são sempre os melhores, os mais
estudiosos. São aqueles que receberam da natureza as
mais preciosas capacidades e os mais brilhantes dons.
Mas nem sempre são eles os que mais trabalham. Fre-
quentemente, são os que trabalham menos, pois pos-
suem mais capacidades que seus coleguinhas. Eles
acabam por se tornar insuportáveis devido ao orgulho,
presunção e autossuficiência. Sem dúvida, vocês já co-
nheceram dessas crianças que sempre são as primeiras
e que ganham constantemente medalhas. Eles olham
com desdém, com desprezo, o pobre coleguinha que
se arrasta penosamente no último lugar, e acham na-
tural que exista na escola primeiros e últimos, os que
foram feitos para estar sempre na frente, para receber
todas as recompensas, todos os cumprimentos, todos
os sucessos, todos os sorrisos, e aqueles, ao contrário,
que são destinados a só conhecer os últimos lugares,
as broncas, as humilhações. E assim, eles acabam se
acostumando a uma concepção social perigosa.
Mais tarde, quando essas crianças entrarem na cir-
culação social, trarão consigo esse hábito e o resulta-
do desse sistema de classificação. Os primeiros ainda
distribuirão cotoveladas para conseguir os primeiros
lugares. Irão querer, a qualquer preço, desencavar as
melhores posições. Passarão por cima de todos os es-
crúpulos que poderiam retê-los. Para eles o principal é
conseguirem ser os primeiros. Na escola, havia os pri-
meiros e os últimos, os que recebiam os elogios e as
recompensas e aqueles que recebiam as censuras e as

30
verve
A criança

punições. Na sociedade, eles pensam que também deva


ser a mesma coisa, e efetivamente há os primeiros e
os últimos e, para serem os primeiros, farão de tudo,
tornando-se arrivistas ferozes.
Quanto aos últimos, eles olham os primeiros com
inveja e, pressionados por suas famílias, que dizem:
“Então, você nunca vai ser o primeiro?”, eles também
desejariam chegar em primeiro lugar e ganhar a meda-
lha, mas não possuem as mesmas facilidades. Sua me-
mória é ingrata, a imaginação preguiçosa, seu espírito
lento. Por mais que trabalhem, façam esforços, sejam
estudiosos — eles mereceriam cem vezes a medalha e o
primeiro lugar — estão de qualquer forma condenados
a serem os últimos.
Então, pouco a pouco, eles se desencorajam, come-
çam a odiar o estudo que não lhes proporciona qualquer
satisfação, reservando-lhes, pelo contrário, apenas dis-
sabores, humilhações, contrariedades. Eles chegam até
a odiar o próprio fato de se esforçar, diante da esterili-
dade dos esforços que realizam.
É isso que produz tal classificação: em uns, o orgu-
lho, a presunção, a dureza de coração, o arrivismo; nos
outros, a inveja, o desencorajamento, o ódio pelo estudo,
a aversão ao esforço.
Sem contar que existe, para os professores e profes-
soras, um caso de consciência difícil de ser resolvido.
Quando um mestre é obrigado a classificar seus alunos,
é um gesto de justiça que ele deve realizar, é um ato de
equidade que ele deve cumprir. Como ele irá estabelecer
sua escolha? No que irá basear sua apreciação?
Tomo duas crianças: uma delas é inteligente, tem
prontidão de espírito, a compreensão viva, a memória
fiel, a imaginação ardente, o julgamento relativamente
saudável e judicioso — tanto quanto tudo isso é pos-
sível quando somos crianças — estuda pouco e conse-
gue aprender bem.

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O outro, pelo contrário, tem o espírito lento e pre-


guiçoso, a imaginação curta e rara, a memória infiel
e ingrata, a compreensão difícil, o julgamento incerto.
Estuda muito, mas não tem sucesso.
Mestre, o que você faria? Você deve comparar os
deveres dessas duas crianças e pronunciar sobre eles
uma sentença. Você teria o direito de julgá-las, de al-
guma maneira: de recompensar uma delas, dando-lhe
o primeiro lugar, e de punir a outra, relegando-a ao úl-
timo. O que você faria? Você irá recompensar a nature-
za dando o primeiro lugar para aquela que, mais bem
dotada que a outra, faz uma lição melhor sem esforço
ou, ao contrário, você irá recompensar o esforço, dan-
do o melhor lugar para aquela que, carente de aptidão,
trabalhou mais e cuja lição, embora inferior, é ainda
mais meritória pelo fato de seu esforço ter sido maior?
Responda.
Confesso que, se eu fosse professor, não saberia, em
tal circunstância, como resolver a questão! Esse é um
problema de consciência, extremamente grave, delicado
para o professor ou a professora.
Além do mais, será que não basta que, mais tarde,
entrando na vida, na grande circulação social, nossas
crianças, tornadas adultos, homens, sejam obrigados a
participar da luta social, a se interessar pelas paixões
que nos agitam, a participar das querelas que nos agi-
tam? Será mesmo necessário que, tão cedo, por esse
sistema de classificação, elas sejam contrapostas umas
às outras, treinadas em rivalidade, quando mais tarde
inevitavelmente conhecerão os horrores da vida e cor-
rerão o risco de que essa rivalidade permaneça em seu
coração e espírito? A criança não deve ser comparada
a outras; ela deve ser comparada consigo própria; o es-
sencial é que ela esteja progredindo, não em relação a
seus colegas, mas a si mesma.

32
verve
A criança

Cheguei ao ponto mais delicado deste estudo: a cul-


tura moral. A cultura moral exigiria uma ou mesmo vá-
rias conferências, mas tenho que respeitar os limites.
No que diz respeito às condições e procedimentos
próprios para garantir o desenvolvimento físico,
estamos, pelo menos em princípio, quase todos de acor-
do. No que concerne à cultura intelectual, tampouco
existe desacordo entre nós, ainda que a concordância
não seja, nesse ponto, tão completa quanto sobre o
primeiro; mas é apenas sobre questões de detalhes que
temos algumas divergências. Pelo contrário, no que se
refere à cultura moral, a luta é áspera e apaixonada,
entre as duas escolas sobre as quais falei no início;
uma desejando a severidade, a outra a brandura; esta,
procedendo pela liberdade, a outra, pela coerção; uma
adestrando, a outra educando.
Vamos dar uma olhada geral nesses métodos opostos.
Severidade ou brandura? Não será surpresa se eu
lhes disser que prefiro o método da suavidade.
Não falem de suavidade, indulgência, benevolência
aos partidários da força! Eles lhes diriam: “Ah! Vocês
querem usar a persuasão com a criança! Querem ra-
ciocinar com ela e convencê-la! Quando ela cometer um
erro, querem que ela compreenda e esperam assim le-
vá-la a se arrepender? Estão completamente iludidos!”
Assim falam os partidários da severidade, acreditan-
do que a criança deve crescer em uma atmosfera de
autoridade implacável, e que deva ser tratada com dis-
ciplina ferrenha, numa impiedosa ditadura.
Todos os raciocínios que vocês desenvolverem irão
no máximo provocar neles o erguer de ombros que vo-
cês tão bem conhecem. Eles irão lhes lançar um olhar
estranho, vão medi-los da cabeça aos pés, pergun-
tando-se se vocês não estariam por acaso um pouco
doentes, um pouco malucos, considerando-os espíri-
tos quiméricos. Não irão conceder a seus argumentos

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qualquer atenção séria pois, a seu ver, eles nem mere-


cem ser examinados.
Pois bem, eu acredito que a severidade conduz aos
mais desastrosos resultados.
Através da violência, com surras, vocês não conse-
guirão nada da criança.
Evidentemente, caso se trate de conseguir dela que
permaneça quieta e tranquila em um cantinho, como se
fosse uma imagem; que ela evite pronunciar qualquer
palavra sem antes ter sido autorizada; que ela se abste-
nha de dizer tudo o que lhe foi proibido expressar, sob
pena de castigos ou privação de sobremesa, reconheço
que tudo isso pode ser obtido em troca de uns safanões
bem aplicados ou de ameaças sérias que se tornarão
efetivas na primeira falha.
Mas vocês não percebem que se a criança perma-
nece silenciosa e tranquila quando esse pequeno ser
aspira aos movimentos e gostaria de tagarelar, que é
contrário à sua natureza condená-la à tranquilidade e
ao silêncio? Isso é algo muito perigoso. Evitem dizer a
seu filho: “Cale-se, você não tem direito a falar quando
estiver perto de adultos.” Não se deve falar assim com
as crianças. Em primeiro lugar porque, se ela tiver algo
a dizer, ela tem o direito de falar e, em segundo, porque
vocês correm o risco, condenando-a dessa forma ao si-
lêncio, de quebrar nela o poderoso impulso à curiosida-
de que leva a criança a interrogar, discutir, raciocinar,
perceber, saber.
A criança a quem vocês dizem: “Cale-se, escute os
adultos”, não diz nada; vocês acham que ela vai escutar
os adultos? Não! Ao passo que os escutaria com prazer se
tivesse o direito de entrar na conversa e dar sua palavra.
Talvez isso permitisse muitas vezes que, sob a forma
ingênua que lhe é própria, ela colocasse questões sim-
ples sobre as quais vocês mesmos não teriam pensado.

34
verve
A criança

Mas condená-la ao silêncio e ir contra sua natureza,


será que isso é educar?
Vocês acreditam que irão enobrecer o coração de seu
filho, conduzi-lo às práticas salutares da virtude, des-
pertar em seu coração e consciência os pensamentos
mais nobres e generosos, obrigando-o a uma imobilida-
de artificial e ao silêncio imposto?
Não. E consequentemente, isso não tem nada em co-
mum com o ser moral que a educação tem a tarefa de
desenvolver.
Trata-se de algo totalmente diferente do que obter o
resultado que vocês obteriam pela severidade, em ge-
ral, a hipocrisia. Ah! Vocês vão conseguir da criança
sobre a qual acabei de falar que ela não faça nada de
proibido enquanto vocês estiverem presentes. Ela vai
permanecer tranquila enquanto vocês estiverem a seu
lado. Mas quando não estiverem mais ali, essa criança
que vocês terão impedido de falar vai tirar a desforra,
falando até sufocar; aquilo que lhe tiver sido proibido,
ela vai se apressar a fazer, assim que vocês tiverem lhe
dado as costas. Mas para não ser punida, ela terá o
cuidado de enganá-los. Recorrerá à mentira e à hipo-
crisia. Dissimulará seu erro. Vai dar um jeito de vocês
não saberem de nada para não puni-la, e o único resul-
tado que vocês obterão através dessa severidade será
simplesmente suscitar nessa criança a hipocrisia e a
mentira. É essa maneira da força que a terá tornado a
mais leviana, a mais turbulenta, a mais agitada, a mais
nervosa, e a seguir será dessa maneira forte que ela irá
cometer baixezas, desatinos, e até loucuras.
Talvez por enquanto isso não seja grave; mais tarde,
esse jovem animal vai se acalmar; vai chegar à idade da
sabedoria. Não será preciso colocar um freio em seus
exageros, sua turbulência, seu desatino. A experiência
e a idade irão se encarregar dessa tarefa. Se isso não é
certo, pelo menos é possível, e mesmo provável.

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Mas o grave é que a criança terá contraído o hábi-


to da mentira e da dissimulação; o hábito dessa frau-
de à qual terá frequentemente recorrido em vez de se
mostrar, assim como é, para aqueles com quem vive.
Terá constantemente desempenhado um papel, fingido
ser a criança calma, quando ao contrário era agitada e
turbulenta, terá fingido ser a criança silenciosa e bem
comportada, quando ao contrário desejava tagarelar, o
que aliás fazia muito bem desde que vocês não estives-
sem mais ali.
Reconheço que a severidade é um processo cômodo
para o educador. É tão fácil dizer à criança: “Se você se
comportar bem, vou te recompensar; se não se compor-
tar bem, vai ter que se haver comigo.” Não lhe é dada
qualquer explicação; se ela pede por alguma, tem uma
resposta dura: “Nada de discutir comigo, eu te proíbo de
fazer isso, e basta.” É fácil, cômodo, rápido. Para isso,
nem mesmo é preciso amar muito seu filho, nem possuir
grandes conhecimentos. É só dizer a seu próprio filho
o que se escutou do próprio pai ou mãe: “Você tem que
fazer isso, você tem que fazer aquilo.” Isso não tem nada
em comum com a educação e não dá à criança qualquer
elevação de pensamento, de caráter ou de coração.
Coerção ou liberdade? Não preciso lhes dizer que sou
contra a coerção.
A coerção tem inconvenientes graves porque ela só
funciona com seu cortejo de punições e recompensas.
Ela tem o inconveniente de regulamentar todos os atos
da criança, de catalogá-los como permitidos ou proibi-
dos, de categorizá-los como atos recompensados e atos
punidos.
Exemplo: a mamãe sai; ela deixa duas ou três crian-
ças em casa. Ela lhes diz: “Meus filhinhos, estou sain-
do, comportem-se bem, fiquem quietinhos; está aqui
um livro de figuras e um livro de histórias; leiam, assim
vocês vão se divertir. Não saiam, não vão para a rua;
se baterem à porta, não respondam, não abram; não

36
verve
A criança

brinquem com fósforos, não comam geleia. Se vocês se


comportarem bem, se vocês se conformarem àquilo que
estou lhes dizendo, quando eu voltar, vou lhes dar um
tablete de chocolate, e vou levá-los à noite ao cinema
ou ao circo. Mas se vocês não se comportarem, não vão
ganhar nenhum chocolate, não vai ter nenhum cinema,
e sim um bom castigo, uma boa surra.”
Vocês conhecem mães que dizem isso. Eu também.
Qual é o resultado dessa coerção exercida sobre a
criança? A seguinte. De duas, uma: ou as crianças vi-
giam pela janela para saber a hora que a mãe foi em-
bora, e assim que ela se afastar farão o diabo a quatro,
irão para a rua brincar com os coleguinhas, vão se lam-
buzar de geleia, acabar com os fósforos, em resumo,
não vão dar qualquer atenção às recomendações da
mãe. Mas como querem evitar a surra e fazem questão
do chocolate, do cinema, do circo, cuidarão de voltar a
tempo para arrumar tudo e quando a mamãe chegar,
estarão calmamente sentadas nas suas cadeiras, e le-
rão o livro de contos e olharão o livro de imagens.
A mamãe lhes dirá: “Vocês se comportaram bem,
meus filhos?” E eles responderão: “Sim, mamãe...” “Mui-
to bem, vocês estão de parabéns”, dirá a mamãe: “tomem
o chocolate, e esta noite iremos ao cinema ou ao circo.”
Ou então, ao contrário — o que é bem possível — as
crianças levarão a sério as recomendações da mamãe.
Elas dirão: “Que chato! Bem que gostaríamos de ir para
a rua encontrar nossos amigos; você está escutando fu-
lano nos chamando? ...mas não podemos ir. Ah! Alguém
está batendo à porta... vamos ficar quietos, não vamos
abrir; Ah! Essas geleias! Parecem bem apetitosas... mas
mamãe deve ter visto que só tinha um pouco; e os fós-
foros? ...só há quatro, mamãe deve ter contado quantos
tinha antes de partir, não vamos tocar neles.”
A criança irá estabelecer, na sua cabeça, o seguinte
cálculo: “Eu bem que comeria um pouco de geleia, mas
se fizer isso não vou ganhar chocolate, e prefiro um pe-

37
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daço grande de chocolate a um pouquinho de geleia.”


Ela irá obedecer, unicamente por interesse, ou ainda
por medo da surra. Será que se pode dizer que como
a mãe conseguiu o que queria, é só isso que importa?
Não. Em qualquer ato, é preciso ver os motivos. O valor
moral de um ato não é determinado pelo próprio gesto,
mas pelos motivos que o inspiraram.
Imagine que essas crianças, em vez de estarem ha-
bituadas à severidade, à repressão, tivessem uma mãe
afetuosa, um pai suave que as tivesse acostumado a
racionar sobre a situação e sobre as razões pelas quais
seria bom e sensato realizar algo. Suponham que essas
crianças respeitem as recomendações da mãe não para
evitar a surra ou para não perder o direito ao chocolate,
mas unicamente porque, pouco a pouco, a razão tivesse
se familiarizado com os atos a serem realizados e as coi-
sas a serem evitadas, pois sua inteligência teria pouco
a pouco compreendido porque é bom fazer isso e mau
fazer aquilo, e por dizerem a si próprias: “Não vamos
brincar com os fósforos, mesmo que seja agradável ver
o brilho da chama, porque isso nos foi proibido e por-
que poderíamos causar um incêndio, do qual seríamos
as primeiras vítimas; ainda não temos idade suficiente
para brincar com fósforos.” Ou então a criança dirá:
“Bem que eu comeria um pouco dessa geleia, mas só
tem um pouco, é melhor comê-la em família, é preciso
que ela figure esta noite na mesa comum, quando papai
e mamãe estiverem aqui, iremos comê-la todos juntos,
vai ser melhor.”
Ou ainda a criança dirá; “Não vamos para rua, a ma-
mãe não quer, e se ela ficasse sabendo, ficaria triste e
nós gostamos muito dela, ela fica tão carinhosa e feliz
quando fazemos o que ela gosta! Ela vai ficar bem con-
tente quando dissermos que a escutamos!”
Vocês veem que há uma grande diferença entre o
mesmo gesto realizado pelas primeiras apenas para
evitar a surra, e pelas segundas, para serem sensatas
e não deixar triste a mamãe que elas amam e que as

38
verve
A criança

ama? No primeiro caso, o gesto não tem nada de mo-


ral e é quase imoral. No segundo caso, é um gesto que
adquire, a partir dos motivos que o determinaram, um
caráter de alta moralidade.
É chocante escutar falar de educação pelos partidá-
rios da severidade, do método da coerção e da repressão.
Surpreendi muitos deles dizendo: “Vocês acham que es-
tão educando? Não, vocês estão adestrando!”
Isso me traz à memória uma lembrança muito vívida
e forte. Há um certo número de anos, um camarada, um
amigo, estava discutindo comigo sobre a educação, de
maneira muito livre e amigável, como acontece muitas ve-
zes entre amigos. Ele tinha ideias realmente muito rígidas
a respeito. Elas eram diametralmente opostas às minhas.
Na opinião dele, dar uma boa educação consistia em não
discutir com as crianças, que têm muita dificuldade de
compreensão, mas tratá-las realmente como pequenos
animais. “Mas isso, eu lhe disse, não é educação, é ades-
tramento!” — “Chame como você quiser, mas não há ou-
tro jeito” — “Repito que é adestramento!”
E fomos ao Circo-Novo, na rua Saint-Honoré. Não
me lembro mais qual artista — pois era um verdadeiro
artista — estava apresentando focas que realizavam um
trabalho realmente maravilhoso, exercícios espantosos.
Vocês conhecem esse animal pesado, de pequenas pa-
tas, corpo viscoso, excessivamente longo e desgracioso.
O artista em questão chegava a conseguir deles atitudes
que transformavam esses animais feiosos em seres gra-
ciosos, bonitos, que ficavam de pé, sucedendo-se, oito
ou nove, numa série de exercícios bem arranjados, tão
metodicamente regulados que tudo acabava formando
um número realmente notável.
Eu disse a meu amigo: “Veja como essas focas são
bem educadas” — “Não! adestradas”, ele responde num
sobressalto — “Ah, então você percebe que tenho razão
em querer fazer uma diferença entre educação e ades-
tramento.” Ele ficou sem palavras.

39
16
2009

Entre o adestramento e a educação, existe a enorme


diferença de que o adestramento consiste em se dirigir
à parte animal do indivíduo, enquanto a educação con-
siste em se dirigir à sua parte moral, a seu pensamento,
sua inteligência, sua consciência, seu coração, seu es-
pírito, às suas faculdades mais nobres e elevadas.
Em matéria de educação, camaradas, o melhor mé-
todo é o exemplo. Os preceitos morais quase não têm
eficácia. O exemplo, ao contrário, é determinante. Di-
zem, sobre o mal, que ele é contagiante: isso é verdade.
Mas o bem também o é. De fato, a criança é o reflexo
do meio no qual vive. Ela reflete esse meio de modo tão
fiel que quando vemos uma criança podemos adivinhar
o meio ao qual ela pertence e, inversamente, quando
conhecemos o meio, é fácil pressentir como deve ser a
criança que nele vive.
Por exemplo, tomem uma criança que curva a cabe-
ça assim que alguém chega perto dela, e que protege
imediatamente o rosto com o braço. Apenas por essa
atitude podem estar certos que tal criança é criada se-
gundo o método da repressão brutal.
Se a criança baixa os olhos, podem ter certeza que
ela pertence a um ambiente dissimulado, hipócrita.
Se fala de modo grosseiro, se emprega expressões de
baixo calão, é que seus pais não frequentam os salões
acadêmicos; evidentemente, é porque em casa, a toda
hora, ela sempre escuta serem proferidos os mais bai-
xos termos, que talvez não fossem usados se os adultos
pensassem em se controlar na sua frente.
A criança é sempre a imagem do meio ao qual per-
tence, e é sua imagem fiel.
Como querem conseguir que as crianças não os en-
ganem, se vocês próprios a enganam? Se, quando pro-
metem algo, não cumprem sua promessa? Se quando
assumem um compromisso com ela, não o respeitam?

40
verve
A criança

Se quiserem que seu filho nunca minta, comecem


nunca mentindo para ele.
Se quiserem que ele mantenha suas promessas, co-
mecem mantendo as suas.
Para ensiná-lo a respeitar um compromisso assumido,
respeitem em primeiro lugar os que assumiram com ele.
Outro fato. Caso esteja sendo longo, desculpem-me;
é um assunto que me apaixona tanto que me permito
desenvolvê-lo para que meu pensamento seja melhor
compreendido.
Há cerca de dezoito meses, um amigo veio um dia me
encontrar. Ele tivera a infelicidade, seis meses ou um
ano antes, de perder sua companheira, e ficara viúvo
com um menino de uns dez anos. Ele me disse: “Meu
caro, estou desolado. Não consigo que meu filho me obe-
deça em nada. Se lhe peço o menor favor, ele me manda
passear; caso faça algo que lhe peço, ele o faz xingando;
nunca vejo um gesto amável de sua parte; nunca um sor-
riso. Estou muito infeliz. Tenho vontade de me separar
dele. No entanto, gosto dele; e agora que somos apenas
nós dois, sinto quanto a presença de sua mãe, que não
está mais aqui, seria necessária. Mais necessária ainda
seria para mim a presença dessa criança, caso ela fosse
razoável. Nós dois poderíamos ser tão felizes juntos! Não
sei o que fazer. Vim te pedir um conselho.”
Eu lhe disse:
“Vejamos! Você tem queixas sobre seu filho. Conte-
me um fato preciso sobre o qual eu possa basear o con-
selho que você me pede. O que você está me dizendo é
vago demais.”
“Pois bem. Imagine que ontem de manhã eu esta-
va atrasado. Ele, pelo contrário, estava adiantado. Eu
vou trabalhar às oito horas, Ele vai á escola às oito e
meia. Geralmente, saímos juntos. Ora, ontem de ma-
nhã, acordei tarde, e como ele estava adiantado, eu lhe

41
16
2009

disse: ‘Engraxe meus sapatos...’ Pois bem! O espertinho


arranjou um jeito de ir embora sem engraxá-los.”
Então, eu disse a meu amigo:
“Acontece, às vezes, dele estar atrasado? E por vezes
é você que está adiantado em relação a ele: alguma vez
você engraxou os sapatos de seu moleque?”
“Era só o que faltava!” — exclamou meu amigo.
Eu continuei:
“Pois bem! É aí que está todo o mal. Se teu filho,
quando você está adiantado e ele atrasado, pudesse
contar com você para engraxar seus sapatos em seu
lugar, para ajudá-lo a recuperar o tempo perdido, se
ele soubesse que você engraxaria seus sapatos no seu
lugar, no dia seguinte, quando você estivesse atrasado,
poderia contar com ele para que ele engraxasse os seus;
a criança, por si só, começaria a engraxá-las, com cari-
nho, com prazer, sem que você precisasse pedir.”
“Outra coisa”, ele me disse. “No domingo, fazemos um
pouco de limpeza na casa. Domingo passado, eu tinha
que sair; precisava ir a meu sindicato, para uma reunião.
Eu disse ao pequeno: ‘Você vai limpar a casa, eu volto ao
meio-dia.’ Quando voltei, o menino não tinha feito nada,
ou tão pouco e mal que tive que refazer tudo.”
Disse ao meu amigo:
“Acontece muitas vezes de você sair no domingo e
deixar a seu filho a tarefa de fazer a limpeza?”
“É muito natural! Isso não é trabalho para um ho-
mem!”
“Se não é para um homem, tampouco o é para uma
criança; não é menos para você do que para ele, não é
mais para ele do que para você, é para vocês dois faze-
rem a limpeza, varrer, lavar a louça. Não são vocês dois
que sujam a louça? Não são ambos que trazem de fora
sujeira para dentro de casa? Por que sempre ele deve-

42
verve
A criança

ria fazer esses trabalhos, ter esses encargos, enquanto


você iria ao sindicato, passear ou tomar um aperitivo?”
Meu amigo me compreendeu. E seis meses depois,
contou-me:
“Estou maravilhado. Não tinha muita confiança,
mas empreguei seu sistema e hoje, meu filho e eu, en-
graxamos os sapatos juntos, fazemos a limpeza juntos,
lavamos a louça juntos, saímos juntos... somos dois
amigos!”
Gostaria ainda de lhes falar sobre a educação profis-
sional. Mas nesta noite não tenho mais tempo: falarei
disso uma outra vez. Precisamos terminar.
Quando lançamos um olhar à massa, deixamo-nos ar-
rastar ao pessimismo, às ideias sombrias, ao desânimo.
De fato, por toda parte existe tanta covardia, tan-
to ódio, tanta hipocrisia, tanta baixeza, que por vezes
chegamos a perguntar se será possível levar à grande
massa as nossas concepções. Ela continua sempre tão
ignorante, tão fraca, tão servil, apesar de toda propa-
ganda feita junto a ela, apesar de todos nossos esforços,
difundidos tão profusamente: nossos jornais, panfletos,
folhetos, livros, reuniões.
“Vocês se esforçaram tanto, e o que conseguiram?
Onde está o resultado? Será que não dispenderam sufi-
cientemente sua energia, seu saber, sua força, sua saú-
de, em favor dos outros? Vocês não percebem — dizem
os pessimistas —, que não há nada a fazer com relação
às massas, e que após ter trabalhado tanto em vão, é
melhor ir descansar?”
Quantas vezes, camaradas, escutei essas palavras,
quantas vezes, provavelmente, vocês também as escu-
taram! E nos olhos de todos que me davam esse tipo de
conselho, eu lia mais piedade que afeição ou interesse
verdadeiro.

43
16
2009

Mas se eles sentiam pena de mim, eu sentia o mes-


mo em relação a eles: pois será que eles não entendem
que se despender, se dar, se entregar, trabalhar, lutar,
agir, é não somente uma necessidade para aquele que
pensa, que tem alguma coisa no coração e no espírito,
mas que é ainda a única coisa que torna a vida suportá-
vel? Que apenas isso pode embelezar nossa existência,
e nos ligar a ela?
A lentidão dos progressos sociais não deve provocar
o desânimo ou diminuir o ritmo de nossos esforços. No
corpo social, o trabalho acontece como na natureza.
Se não percebemos nada, pelo menos a elaboração
das novas forças acontece nos cérebros.
Paciência! Virá um dia, quando o trabalho de ges-
tação tiver sido suficiente, em que poderemos ver o re-
sultado na reviravolta social que esperamos, e em que
suas consequências acumuladas permitirão o advento
de um mundo novo.
Quanto tempo nos separa desse mundo? Não sa-
bemos.
Depende de nós, de nossos esforços, a aproximação
dessa época.
E como?
Através da criança!
Durante minha existência, já longa, pude constatar
que não há grande coisa a ser esperada dos velhos.
Quando chegamos à idade de cinquenta ou sessenta
anos, tudo no homem, por assim dizer, cristalizou-se;
tudo tomou nele uma forma de alguma maneira defini-
tiva, seu cérebro congelou como o resto. Ele se encontra
na idade em que as faculdades enfraquecem, em que
sua vontade se desfaz, em que a energia desaparece,
em que a tumba está tão próxima que parece inútil co-
meçar um gesto que será abandonado assim que for
iniciado. Nada a fazer com os velhos.

44
verve
A criança

Tampouco grande coisa com os homens de idade


madura. Quando chegam à idade de trinta ou quarenta
anos sem ter sentido necessidade de participar das lutas
sociais de nosso tempo, é bem difícil conduzi-los a isso.
Eles fundaram uma família, escolheram uma carreira
ou profissão; traçaram um plano para sua existência;
sua tranquilidade exige que nada mudem nesse plano.
E depois, eles já estão tão cansados com a luta pela
vida, e tão decepcionados pelos dissabores que foram
encontrando pelo caminho, que não querem se lançar à
batalha. Não querem correr seus riscos. Não, isso está
acima de seus esforços.
Mas se eu disse: nada a fazer com os velhos e pou-
ca coisa com os homens de idade madura, acrescento:
há muito a esperar, ao contrário, dos jovens. Os jovens
possuem ardor, energia, força, entusiasmo. Eles não
recuam diante de nada, de nenhum obstáculo. São fre-
quentemente censurados pela temeridade e exageros:
isso é um erro. Essas são condições indispensáveis
para o sucesso.
Basta apresentar aos jovens, cujo coração ainda não
sofreu decepções, cuja imaginação permanece arden-
te, cujo pensamento é lúcido, cuja vontade é forte, cuja
consciência ainda não foi corrompida, basta apresentar-
lhes um ideal puro, nobre, para que eles se tornem os
servidores desse ideal, seus defensores desinteressados,
fervorosos e generosos.
Nada a fazer com os velhos, não muito com os ho-
mens maduros, muito com a juventude.
E acrescento, para terminar: tudo com a criança. A
criança é o futuro; a criança é a semente: a semente
hoje, a espiga amanhã, a colheita depois de amanhã.
Pois bem! Nós, militantes, temos as mãos cheias de
verdades. Essas verdades, são as sementes que contêm
todo o futuro. Evitemos aprisioná-las e conservá-las
possessivamente em nossas mãos. Nós não as adqui-
rimos unicamente com nosso esforço. Nós as devemos

45
16
2009

aos esforços daqueles que vieram antes de nós, e por


isso devemos espalhar por todos essas verdades que
recebemos de todos. Abramos generosamente nossas
mãos, lancemos livremente essas verdades nos sulcos
recentemente cavados, nos sulcos da infância. Prepa-
raremos assim as mais belas colheitas. Sejamos como
bons lavradores. Se não aproveitarmos dessa colheita,
nossos filhos, aqueles que nos seguem e que amamos,
por quem trabalhamos, aproveitarão dela. E essa será
nossa recompensa.

Tradução do francês por Martha Gambini.

Notas
1
Conferência realizada em Paris, em 4 de janeiro de 1921. (N. E.)

46
verve
A criança

RESUMO
A criança não é nem um anjo, nem um demônio — Ela é a con-
sequência física, intelectual e moral das gerações anteriores —
Ela é resultado da hereditariedade, da educação e do ambien-
te — Importância capital do problema da educação — Cultura
física — Cultura intelectual: a escola atual: seu programa, seus
métodos, suas condições — Cultura moral: severidade ou bran-
dura? Proibição ou liberdade? — O exemplo. A reciprocidade.
— A criança é o futuro!!!

Palavras-chave: criança, educação, liberdade.

ABSTRACT
The child is neither an angel, nor a demon — He is the physical,
intellectual and moral consequence of earlier generations
— He is the result of the inheritance, the education and the
environment — Utmost importance of the education problem —
Physical culture — Intellectual culture: the current school: its
programs, methods, conditions — Moral culture: harshness or
mildness? Prohibition or freedom? — The example: reciprocity
— The child is the future!!!

Keywords: child, education, freedom.

Indicado para publicação em 16 de setembro de 2008.

47
16
2009

a utopia radical possível: anotações para


a construção de opções anarquistas para
américa latina do século XXI

nelson méndez*

Introdução

O século XX foi pródigo em relação ao socialismo.


Não apenas pela variedade de discussões teóricas, mas
porque, durante muitas décadas, quase a metade do
mundo viveu sob regimes que se declaravam no inte-
rior de alguma modalidade de socialismo: marxista na
URSS, maoista na China, vietnamita, socialcristão na
Itália e Chile, socialdemocrata em diversos pontos da
Europa, castrista em Cuba, apenas para citar alguns.
Também na Venezuela, durante os 40 anos de procla-
mada democracia representativa (1958-1998) se viveu
sob alguma modalidade de socialismo, democrático ou
cristão. Por isso, os que apregoam a possibilidade de
um novo socialismo para o século XXI, assinalam, cla-
ramente, que todas essas experiências resultaram em
fiasco manifesto, ainda que delas algo positivo sempre
possa ser extraído para não repeti-las. É suficiente para
referendar estes fracassos do chamado socialismo real

* Sociólogo. Professor Titular da Universidad Central da Venezuela,


Caracas, onde trabalha desde 1977 como docente e pesquisador. Autor
de 4 livros e de 20 publicações em revistas indexadas.

verve, 16: 48-83, 2009


48
verve
A utopia radical possível: anotações...

que o mais poderoso regime socialista do século XX, o


socialismo marxista, simplesmente caiu na ex-URSS.
O liberalismo capitalista privado, para muitos o
grande inimigo do socialismo, mudou e não foi, como
anunciava Marx, a rota para um colapso que se anteci-
pava como inexorável ou mesmo iminente para muitos.
Mais ainda, sobreviveu e se fortaleceu, devido quiçá aos
fracassos socialistas. O capitalismo de Estado, que é
a modalidade mais frequente adotada pelo socialismo,
seguindo a pauta marxista-leninista, mostrou incapaci-
dade manifesta para resolver os problemas dos povos,
tanto na URSS como no resto do mundo. Por si só foi
pouco e o saldo histórico deixou resultados horrendos
como a experiência do Gulag soviético — comparável ao
Holocausto nazista — e os massacres cambojeanos, que
fazem as atrocidades de Videla ou Pinochet parecerem
mínimas; ainda que o neoliberalismo tenha se expan-
dido com sua sequela de miséria e fome, em nenhum
outro país se matou de fome em um único ano milhões
de pessoas como na China comunista de Mao.
As comunicações e a cultura foram globalizadas, a
técnica alcançou níveis inimagináveis em 100 anos: em
pouco mais de seis décadas, depois de inventar o avião,
o homem chegou à lua, e meio século depois de desco-
brir os ácidos nucleares da célula se desvelou o código
genético humano, para citar apenas dois casos. Muda-
ram as circunstâncias, mas para se criarem as bases de
uma sociedade livre e igualitária é necessário mudar as
armas e o perfil dos atores, pois quem fracassou ontem
não terá oportunidades hoje e muito menos as terão
amanhã. Se há algo inegável é que os socialismos mais
difundidos e que chegaram ao poder — democrático,
cristão, leninista, maoísta, castrista, ou qualquer outro
—, se não foram míopes foram cúmplices dos podero-
sos de sempre ou se ocuparam por gestar novas oli-
garquias. Nenhum deles conseguiu levar o povo à terra
prometida.

49
16
2009

Nenhum desses socialismos podia ser testemunha


da luta por autênticas reivindicações humanas, ex-
ceto o anarquismo ou socialismo libertário, que Marx
tachou de socialismo utópico. Como o anarquismo foi
uma opção ignorada em certos âmbitos e foi quantita-
tivamente menor, salvo em alguns lugares e momentos
(Espanha, Argentina, Ucrânia, Itália, na primeira me-
tade do século passado), agora muitos se surpreendem
ao descobrirem que a ânsia por liberdade, a autogestão,
o cooperativismo, a federalização, a descentralização,
os direitos humanos, a defesa das minorias, o combate
aos privilégios, a igualdade e a solidariedade, a tolerân-
cia, o combate ao poder e à opressão, a educação como
via para a superação pessoal, a ajuda mútua no lugar
da competência e enfrentamento destruidor, a harmo-
nia social e com a natureza, a irmandade entre todos os
seres humanos, a consciência ativa frente aos proble-
mas ecológicos e o redimensionamento das cidades, são
bandeiras que o anarquismo sustentou por dezenas de
anos e pelas quais muitos de seus portadores deram a
vida. Um socialismo que deu origem a tamanhas pro-
postas, alimento das lutas pelo bem-estar, parece que
tem algo que vale a pena.
Hoje, estas ideias são moeda corrente, mas nem
sempre se reconhece que os “utópicos” as propõem há
muito tempo, enquanto os movimentos que pareciam
ser realistas, capitalistas e socialistas, desembocavam
em situações macabras e catástrofes inimagináveis.
Não há dúvida que o anarquismo é utópico, mas o é
pela maneira pela qual diante da história e perante as
necessidades dos povos, olha o futuro sem olhar para
trás. Foi Proudhon quem estudou em maiores detalhes
o que hoje podemos considerar o fundamento da au-
togestão em todas suas formas; Bakunin, de seu lado,
examinou as relações do indivíduo e suas aspirações
de liberdade contra o Estado defensor dos interesses
dos poderosos; Kropotkin, entretanto, desenvolveu as
novidades e contribuições trazidas pela ciência e a téc-
nica, tanto favoráveis quanto adversas; os anarquistas

50
verve
A utopia radical possível: anotações...

ibéricos colocaram em prática as formas mais originais


de organização sociopolítica do século passado; Ricardo
Mella foi o primeiro a evidenciar as fragilidades da de-
mocracia parlamentar representativa, que rouba do
povo sua soberania para depositá-la num grupo de
governantes que através do Estado dispõe de todos os
poderes de decisão para usá-los em seu benefício, mes-
mo quando este se autoqualifique de Estado revolucio-
nário. Convém esclarecer que ao dizermos Estado nos
referimos a um conjunto de instituições, em particular
as incumbidas da violência e da coerção, administradas
por pessoal próprio, esquadrinhadas dentro de um ter-
ritório delimitado, que monopoliza o estabelecimento de
normas para todos os habitantes dentro de sua juris-
dição, assim como o castigo por seu descumprimento.
A consequência é que a luta política ficou reduzida à
conquista de semelhante estrutura que é senhora da
vida, dos bens e ações de todos que habitam sob seu
domínio.1
A palavra anarquismo está impregnada de sinônimos
pejorativos: desordem, irracionalidade, espontaneísmo,
excentricidade, etc. Para evitar esta carga emocional ne-
gativa foi que muitos anarquistas optaram por chama-
rem-se socialistas libertários ou ácratas. Mas, se há uma
carga negativa, cabe perguntar: Quem nega o anarquis-
mo? É uma simples negação? Sabemos que as contribui-
ções que o socialismo libertário deu não foram somente
negações. O anarquismo é uma pulsão visceral pela jus-
tiça, pela liberdade, pela igualdade, que o leva a se opor
a todas as formas que o poder mostra capaz de inventar
para consolidar modos de submissão e domínio sobre os
seres humanos. E por isso nega todas as formas de po-
der de um sobre outros; nega o Estado que é a máxima
expressão desse poder, grande produtor de toda violên-
cia, nega a representação porque o indivíduo autônomo
pode falar por si próprio e que os únicos que necessitam
de representantes são as crianças; nega a ordem que tem
por objeto a submissão, como nas democracias liberais
e muito mais nos regimes autoritários, socialistas ou di-

51
16
2009

taduras. Mas, não nega a ordem em si mesma, porque


todo sistema anarquista sempre foi uma complexa e or-
denada organização. Apenas uma organização de baixo
para o alto porque, como dizia Proudhon, coloque São
Vicente de Paula no poder e este se fará um ditador. No
socialismo libertário há uma nova ordem de organização,
e é o único que permite abrigar esperanças para o século
que se inicia. Em relação às demais opções, cabe recor-
dar a sentença de Descartes, é prudente desconfiar de
quem nos enganou alguma vez, e os outros socialismos o
fizeram mais de uma vez durante longo tempo. Os que se
apegam, por ignorância, às velhas estruturas, porque se
beneficiaram delas, porque esperam pelos benefícios ou
por estas razões juntas, sempre catalogarão o anarquis-
mo de desordem. Sócrates foi acusado de desordem, os
cínicos o foram, os cristãos em certo momento o foram,
os bárbaros o foram, os burgueses capitalistas o foram,
os bolcheviques o foram, e os anarquistas permanecem
sendo. Sem dúvida, é no anarquismo que está o início do
caminho para a utopia social positiva do século XXI, se
isso alguém busca.

Um caminho por transitar...

O anarquismo é provavelmente a corrente política


em torno da qual houve mais desinformações ou equí-
vocos descritos. No essencial, é um ideal que preconiza
a modificação radical das atuais formas de organização
social, que tanta injustiça, dor, sofrimento e miséria
acarretam para a maioria das pessoas, buscando supri-
mir todas as formas de desigualdade e opressão vigen-
tes, que considera responsáveis por esses males, sem
com isso reduzir um milímetro a liberdade individual.
Para alcançá-lo não propõe nenhuma receita preconce-
bida nem oferece nenhum plano ou figura milagrosa.
O modo de alcançá-lo é o exercício pleno da liberdade
de cada um, em um plano de igualdade com os demais
e antepondo a solidariedade a qualquer outro benefí-

52
verve
A utopia radical possível: anotações...

cio. Parece singelo dizê-lo, e são muitos os que o dizem,


mas alcançá-lo implica uma verdadeira revolução não
somente na sociedade, mas em cada pessoa, pois sécu-
los de dominação estatal e autoritária levaram a perder
a esperança de sua concretização e a autonomia que
se requer para concretizá-la. A conjunção de elemen-
tos individuais e sociais que conformam o ser humano,
sobre os quais se apoiam os ideais anarquistas, não se
modificou.
Isto não tem nada a ver com adorar e instigar o
caos, a morte e a destruição, como se pretende identi-
ficar a anarquia, a ponto de nos dicionários a palavra
ser sinônimo de desordem, perturbação, confusão. Os
anarquistas não atiram bombas a torto e a direito, nem
lhes parece virtude agredir brutalmente aos demais em
nome do ressentimento social ou individual, obedecen-
do um líder messiânico ou agitando a bandeira de uma
ideologia superior. Busca-se o menos estrondoso que a
iluminação pela pólvora, mas quando o provoca sacode
os cimentos de uma estrutura de dominação que, por
suportá-la, parece natural, mas não o é.
Não é acidental a tão difundida caricatura sinistra do
terrorista ácrata. O Estado e todo tipo de instituições au-
toritárias, que obtiveram e obtêm suas prebendas da de-
sigualdade e da limitação à liberdade de cada um, usam
todos os meios à sua disposição para apresentar a anar-
quia como orgia irracional de desordem e assassinato,
enquanto se assumem como defensores imprescindíveis
da lei e da ordem, base para o progresso segundo a clás-
sica receita positivista. Os detentores do poder supõem
que não teriam nenhuma supremacia caso o anarquis-
mo se impusesse. A história mostra como nos últimos
150 anos o socialismo libertário foi o movimento que com
maior paixão e solidez argumentativa se opôs aos privilé-
gios dos poderosos e à degradação da condição humana
de milhões de pessoas derivada desses privilégios,2 sem
fazer concessões amparadas em alguma circunstância
particular, nem desculpando de alguma maneira as mí-

53
16
2009

nimas debilidades decorrentes de qualquer estrutura de


autoridade hierárquica, sob qualquer pretexto de justifi-
cativa. É evidente que a identidade de anarquista apro-
priada por alguns não corresponde, em todos os casos,
a quem realmente adere ao socialismo libertário, assim
como nem sempre o é quem se proclama revolucionário
ou católico. Por isso, para os anarquistas, isso tem pou-
ca importância.
Com a necessidade de afiançar seus domínios e as
correspondentes submissões para proseguir seus abu-
sos, o Estado, os meios de difusão de massa, a edu-
cação autoritária e as diferentes religiões pregam de
mil maneiras, aberta ou implicitamente, a obediência
acrítica, porque é nisso que embasam suas vantagens
e proveitos, visto que não há dominio sem a obediên-
cia correspondente. Consequentemente, a anarquia é
o único e real inimigo contra toda ânsia de poder e por
isso, quando mencionada, o é como sinônimo de des-
truição causada por alienados. Neste enfrentamento, a
atitude dos defensores do poder se explica porque, para
remontar a opressão e o privilégio, é necessário que a
liberdade e a igualdade, assim como a autonomia que
delas deriva, sejam combatidas por todos os meios. Evi-
dentemente, a liberdade e a igualdade são os pilares em
que se fundamenta o anarquismo em todas as partes e
em todos os lugares, para além das múltiplas varieda-
des mostradas e da riqueza de suas propostas.
A imagem perversa vinculada ao anarquismo é bas-
tante velha e emerge em uma época de apogeu do mo-
vimento socialista libertário — fins do século XIX e
primeiras décadas do século XX —, pelo óbvio temor
dos poderes autoritários diante do avanço de seu mais
consequente antagonista; renasce, agora, no princípio
do século XXI, quando diversos signos anunciam o res-
surgimento do ideal e das práticas ácratas, orientando
as possíveis opções de transformação do socialismo ao
enfrentar a ordem dominadora existente. Para os pode-
rosos permanece prioritário ocultar o sentido correto do

54
verve
A utopia radical possível: anotações...

que é o anarquismo e o que propõe. Romper com esta


mistificação interessadamente atribuída é necessário
para quem quiser se aproximar com mente aberta, e
sem preconceitos, desta expressão de pensamento e
ação radicais tão relevantes ontem como hoje. O anar-
quismo é a única proposta que exige autonomia para o
pensar e a ação, a qual não é outra coisa que abando-
nar todo suposto indiscutido, o preconceito dogmático,
a opinião preconcebida, a submissão à autoridade, a
crença em alguma revelação ou a obediência às van-
guardas iluminadoras.
A necessidade imposta por jurisdições opressoras está
tão arraigada na mente do cidadão médio que a anar-
quia, cujo significado podemos resumir em ausência de
autoridade hierárquica, resulta impensável para a maioria
das pessoas. Curiosamente, no mínimo, são as mesmas
irritantes pessoas, que admitem os regulamentos, regu-
lações, impostos, intromissões, limitações e abusos de
poder (para nomear alguns dos efeitos da ação governa-
mental) que são obrigadas a suportar. Levam as demais
pessoas a pensar que somente resta suportar em silêncio
porque a alternativa à ausência de poder, à autoridade e
todos realizando sua própria vontade, seria a anarquia,
associada falsa e espertamente com o caos, a destruição,
e o fim. Ao contrário, o anarquismo persegue a eliminação
de qualquer ponto de controle privilegiado de governo, o
desaparecimento de todo grupo que se assuma como pos-
suidor de algum privilégio para usufruí-lo em benefício pró-
prio, submetendo os outros. Como alternativa às diferentes
formas de governo — como a aristocracia, a teocracia, a
democracia representativa, a ditadura do proletariado, a
monarquia ou a tirania — sustenta a ausência de governo
ou acracia.
“O que é o Anarquismo (também chamado Socialismo
Libertário ou Acracia)? É uma filosofía social, centrada
em um enfoque que concebe a liberdade e a igualdade
plenas — exercidas no marco da solidaridade — como
condições indispensáveis para o progresso humano no

55
16
2009

indivíduo e no coletivo. Esta filosofía foi expressão ideo-


lógica e política assumida por diversos grupos sociais e
individualidades em contextos sócio-históricos em todo
o planeta, particularmente desde meados do século XIX
até a atualidade.”3
Por milênios, as coletividades humanas viveram e
prosperaram sem Estado ou estruturas de poder hie-
rárquico. A História e a Antropologia contemporâneas,
confirmam, com trabalhos de autores como o norte-
americano Marvin Harris,4 abundantes provas para
demolir o mito de que a aparição de formas estatais
melhorou as condições de vida nas sociedades onde isto
ocorreu. Pode ser que, em algum momento da evolução
cultural, a burocracia estatal regulamentada tivesse al-
guma utilidade perante os anteriores modelos de orga-
nização da vida coletiva, como o mando caprichoso de
um único indivíduo poderoso, mas sem dúvida, hoje, as
desvantagens superam com acréscimos as vantagens.
Do ponto de vista teórico, é válido conceber uma varie-
dade ilimitada de sociedades possíveis sem instituições
de poder autoritário, e nem todas seriam desagradáveis.
Ao contrário! Qualquer tipo de sociedade anarquista
nos pouparia das terríveis distorções que geraram as
estruturas de poder e o Estado, sua expressão mais
alta. O aparentemente destrutivo do anarquismo, isto
é, a abolição do Estado e de toda forma de hierarquia
opressora institucionalizada, estará equilibrado pelo
que se colocará em seu lugar: uma sociedade livre e de
livre cooperação.
Há diversas correntes no socialismo libertário — das
quais há uma concisa descrição na Anarcopedia5 —
com ideias diferentes a respeito da organização de uma
nova sociedade e como se chegar a ela. Todas têm em
comum que a felicidade individual somente se alcan-
ça com a felicidade coletiva; que o bem próprio só se
realiza fundamentado no bem de todos; que a liberda-
de pessoal se amplia com a liberdade do outro; que os
interesses pessoais são compatíveis com os interesses

56
verve
A utopia radical possível: anotações...

dos demais; que o bem-estar de cada um depende do


bem-estar das demais pessoas; que alcançar os ganhos
que nos propomos como indivíduos depende de que os
outros e o conjunto também os alcancem. Portanto, to-
das sustentam, firmemente, que o Estado e as atuais
organizações dominadoras, partindo de uma igualdade
formal, promovem uma desigualdade de fato e devem
ser substituídas por uma sociedade sem classes e sem
violência direta ou encoberta, que possibilita institucio-
nalizar essas diferenças.
Por acreditar na liberdade com igualdade, o anarquis-
mo se nega a estabelecer a pauta dogmática do que deve
ser, e, por isso, há tantas variantes a serem adotadas.
Apenas oferece modelos possíveis que se apoiam nas
ocupações diárias, na contribuição sempre renovada dos
membros do coletivo que responsavelmente dirigem suas
vidas e as dos outros, em suas mãos. De fato, a organiza-
ção social anarquista existiu, historicamente, em muitos
lugares e épocas. No período contemporâneo aconteceu
na Ucrânia, em 1919,6 e na Espanha, em 1936,7 e em
ambos os casos passou por ferozes repressões e guerras
para liquidar essas experiências, decorrentes dos evi-
dentes êxitos sociais alcançados.
A ausência de moldes obrigatórios ocorre porque o
anarquismo repudia a existência de um princípio único,
atemporal, supra-histórico, revelado por algum deus,
ou ser privilegiado, que ordena e manda sem apelação.
Esta é a origem etimológica do termo anarquia, (an: sem,
arché: princípio). Está equivocado interpretá-lo como
se em cada momento e lugar não houvesse condutas
e atitudes boas e más. Busca-se que as pessoas de
hoje, com a contribuição de experiências passadas da
história, possam tomar suas decisões e edificarem seus
próprios futuros a partir de um presente dinâmico,
sempre renovado. Apenas as pessoas livres, em um
diálogo igualitário com as demais pessoas que são e
serão, construirão o caminho para alcançar seu bem-
estar individual e coletivo. Um bem-estar que, por sua

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16
2009

vez, nunca será perfeito porque a humanidade vive,


essencialmente, um vir a ser sempre móvel, com novas
metas que mostram novos problemas que exigem novas
soluções, e isto exige um esforço constante para recriar
a vida no coletivo. Para encerrar este tópico, devo indicar
que a polêmica interna no interior do movimento ácrata,
por mais encarniçada que tenha sido no passado e o seja
no presente, não cabe a ninguém se atribuir o monopólio
da “verdade anarquista”, pois semelhante pretensão
dogmática é absolutamente alheia à essência do ideal
ácrata.

O básico de um ideal

São muito poucos os que entendem o anarquismo


apesar de ser uma ideia muito simples, sensível e cla-
ra. Sua mensagem, basicamente é a seguinte: dirigir
nossas vidas em vez de sermos manipulados e fazê-lo
em harmonia com todos. No passado foi um movimen-
to que alcançou sua maior força entre os trabalhado-
res, mas que também incorporou outros oprimidos e
explorados que aspiravam se liberar sem dominar ou
acionar uma revanche submetendo, por sua vez, os
outros grupos.
Não há nada especialmente complicado ou violento
no socialismo libertário exceto que algo tão elementar
como chamar cada um para dirigir sua própria vida se
transforma em uma conduta subversiva por impedir,
precisamente, a manipulação pelos outros, ou por al-
guns dos outros. Decorre daí as ridículas objeções que
lhes opõem, como “imagine a desorganização que haveria
se todos fizessem o que querem.” Para o anarquismo,
a fonte das divisões sociais está na estrutura de
dominação cujo eixo central é o Estado,8 a causa que
impede a vida plenamente humana, precisamente pela
opressão que nos submete por meio da concentração
de poder político, ideológico-cultural e econômico. Por
acaso, neste momento, não vivemos no caos? Milhões

58
verve
A utopia radical possível: anotações...

de pessoas carecem de ocupação digna, enquanto


outras estão sobrecarregadas de trabalho; trabalha-
se em empregos repetitivos e rotineiros, muitas vezes
perniciosos a nós, aos demais ou ao meio ambiente, que
somente geram benefícios a um pequeno grupo frente à
indiferença da grande maioria. Isto ocorre em qualquer
regime estatal, qualquer que seja a roupa que lhe veste.
Não é desordenado, nem irracional. É a universalidade
do desatino que nos leva à impotência do nada se pode
fazer. Há pessoas que morrem de fome toda vez que
se atira comida ao mar ou se armazena até apodrecer
para manter os preços; desperdiçamos recursos e
contaminamos o ar para que circulem automóveis
demasiadas vezes ocupados somente por uma pessoa,
beneficiando os donos da indústria e os produtores de
petróleo; todo o planeta encontra-se em sério perigo pela
destruição de sua atmosfera, o que parece inevitável
porque protegê-la afeta os interesses de uns poucos;
sacrifica-se a satisfação de necessidades primárias
em favor de benefícios supérfluos ou de propaganda
para os detentores do poder. A lista de loucuras, de
situações absurdas na sociedade atual é interminável,
gerada precisamente pelos que criticam o anarquismo
como fonte de desordem. E, além do mais, pedem-nos
que sacrifiquemos nossa liberdade para promover este
desastre cotidiano!
Os supostos frutos recebidos em troca da existência
do Estado, na essência, são ilusórios, quando não da-
ninhos. O cuidado com a saúde, a educação, a proteção
policial, são serviços que funcionam de modo insuficien-
te, e que por isso, servem para nos tornar dependentes
do Estado e, o pior de tudo, compra-nos por muito pou-
co. Freia a própria iniciativa de criar uma segurança
social autogestionária e focada em nossas necesidades,
para que o próprio poder defina o que seja saúde, o que
sempre deriva em ferramenta de submissão, à qual se
deve agradecer como um presente generoso. Por sua
vez, a segurança social, paga pelos assalariados, gera
uma disponibilidade de dinheiro das mais importan-

59
16
2009

tes no capitalismo moderno, que a utiliza para explo-


rar esses mesmos trabalhadores. O Estado impede que
possamos canalizar a educação de nossos filhos sem
submetê-los aos desígnios dos amos da ocasião, como
na Venezuela, onde a ingerência castrense no governo
impôs uma odiosa instrução pré-militar na educação,
da mesma maneira que encontramos outros exemplos
relativos a temas religiosos ou ideologias políticas. Em
todas as partes, os policiais, mais do que proteger dos
delinquentes, são sicários que vigiam e controlam a po-
pulação, e muitos exércitos são de fato forças de ocu-
pação em seus próprios países. Qualquer obra que se
realize com dinheiro público custa alto porque nela es-
tão incluídos os custos, os enormes sobrepreços que
demanda a corrupção. E assim é tudo!
O anarquismo é ácrata, não apoia a democracia e,
muito menos, a democracia representativa. A acracia é
a ausência de um governo central que assuma o poder.
Toda delegação de poder, sem dúvida, leva à geração de
um domínio por parte dos delegados sobre os que de-
legam. Por isso, o anarquismo não aceita a democracia
representativa, pois cedo ou tarde os representantes se
desprendem dos interesses dos representados e apenas
buscam sua própria conveniência. Isto é natural, pois
um pequeno grupo de pessoas, mesmo eleitas, não po-
dem materialmente decidir sobre todos os problemas
que acontecem na vida de uma sociedade durante um
transcurso que, no mínimo e no melhor dos casos, dura
5 ou 6 anos. Muito menos quando o governo está nas
mãos de poucas pessoas, ou em uma só, para decidir
com onipotência e onisciência sobre qualquer assunto.
A autoridade institucional, por sua própria natu-
reza, somente pode interferir e impor coisas em seu
beneficio. Neste sentido, certos pensadores não anar-
quistas coincidem em constatar que a força de um Es-
tado está no peso que a burocracia tem sobre seus
governados e é desnecessário referirmo-nos a respeito
do modo como o aparelho governamental, com seus

60
verve
A utopia radical possível: anotações...

controles, trâmites e o requerimento contínuo de per-


missões e autorizações, torna nossa vida miserável
com suas contradições, exigências e esterilidade, ter-
minando por nos transformar em servos que pedem
consentimento a todos. A burocracia serve também
para repartir cargos, favores, contratos, comprar von-
tades, e é portanto, uma arma eficiente de desmobi-
lização social nas mãos dos donos do Estado, seja o
capitalista ou o socialista.
Na América Latina vivemos com toda sua crueza o
que noutras regiões se mostra com menor vigor, mais
dissimulado, ou melhor, propagandeado, como é a es-
treita relação entre o poder econômico e o poder polí-
tico. Mesmo sob a alardeada liberdade de mercados,
nenhum empresário tem possibilidade de prosperar
— e mesmo de sobreviver em seus negócios — sem o
apoio governamental no legislativo, judiciário, finan-
ceiro e de controle social. Por sua vez, ninguém pode
aspirar assumir o comando do governo sem o apoio
dos grandes capitais para subvencionar suas preten-
sões. Sob esta situação, o habitante comum apenas é
um fantoche que se sacode, quando avalia com o voto
este círculo realmente vicioso. Em troca, o governo e
os donos da economia decidem, diariamente, a evolu-
ção dos assuntos que incumbem a todos e beneficiam
uns poucos.
É um princípio básico do anarquismo que as pessoas
diretamente atingidas são as mais indicadas para resol-
ver os assuntos relativos à sua comunidade, e o fazem
sempre melhor que os burocratas ávidos de poder ou
investidores ansiosos por rentabilidade. É certo que os
habitantes de um espaço urbano podem imaginar algu-
ma forma de seu uso que impeça a destruição de suas
casas e áreas verdes para construir edifícios de escri-
tórios, rodovias ou centros comerciais; ou mesmo que
os pais podem idealizar com seus filhos e professores
uma melhor educação que a oferecida pelo Estado, dos
comerciantes escolares privados, da Igreja ou de qual-

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2009

quer outra ideologia com pretensões de dominação,9 ou


que uma associação vizinha autônoma e enraizada pos-
sa planejar a segurança local com maior eficiência que
qualquer polícia institucionalizada.
“Definicões fundamentais do anarquismo:
* Justificar a utopia racional e possível de uma or-
dem social autogestionária, com democracia direta,
sem burocracia autoritária nem hierarquias perma-
nentes.
* A crítica radical ao Estado, por ser a expressão má-
xima de concentração autoritária do poder; a crítica à
delegação de poder nas instituições fixas e sobrepos-
tas à sociedade.
* A chamada a uma mudança revolucionária —
produto da ação direta consciente e organizada das
maiorias — que conduza ao desaparecimento imediato
do Estado, substituído por uma organização social
federal de base local.
* Defesa do internacionalismo e rejeição do conceito de
‘pátria’, vinculado à justificação do Estado-nação.”10
Todo caos, segundo o socialismo libertário, deriva da
autoridade opressora e do Estado. Sem classes dirigentes,
e seu imperativo de nos manter submetidos, não haveria
Estado. Sem Estado nos encontraríamos numa situação
de livre organização, segundo nossas próprias finalida-
des. Isto difícilmente daria base para uma sociedade tão
absurda como esta em que vivemos, pois a livre organi-
zação resultaria em uma sociedade muito mais tranquila
e harmônica que a atual, cujo maior interesse é o des-
pojo sistemático, a infelicidade e o extermínio prematuro
ou tardio da maioria de seus membros.
Corrobora o que dissemos o Informe sobre Desenvol-
vimento Humano do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento/PNUD,11 documento em que pese seu
oficioso credo nos progressos atingidos nos últimos de-
cênios traz dados significativos correspondentes a 2004,

62
verve
A utopia radical possível: anotações...

como por exemplo, que 40% da população mundial (mais


de dois bilhões de pessoas) deve se ajustar para subsis-
tir com menos de 2 dólares diários, e com renda total
anual equivalente a apenas 5% da renda mundial; isto
é o que as 500 pessoas mais ricas do planeta somam
anualmente — sem considerar sua riqueza em ativos
— rendimentos superiores que os 416 milhões mais po-
bres; ou que de 2003 a 2008, para os ativos financeiros
dos 7,7 milhões de “indivíduos de alta riqueza líquida”,
estima-se um crecimento de 28 a 41 bilhões de dólares.
Estes fatos, e outros similares, levam a concluir que: “a
acumulação de riqueza no nível mais alto de distribuição
mundial de renda foi mais impactante que a redução da
pobreza no nível mais baixo.”12 Estas gravíssimas desi-
gualdades reinam no planeta, cujo regime socio-político
é hoje totalmente estatal, e não se reverteu ou modificou
sob os variados modelos de Estado ensaiados no século
XX e que adentram pelo XXI.
Os não tão frios números geram nas pessoas sensí-
veis, um incontido sentimento de indignação e levam
a uma conclusão inexorável: a brecha crescente entre
ricos e pobres é tão grande que podemos afirmar, por
mais brutal que isso pareça, que uma alta porcenta-
gem da população mundial está excluída de qualquer
possibilidade, não mais de bem-estar, mas de mera
sobrevivência, e que nesse grupo está a maioria dos
latino-americanos. Não resta dúvidas, como disse o
Hamlet de Shakespeare, “algo está podre”, não somen-
te na Dinamarca, mas no mundo inteiro. Supor que tal
situação possa piorar porque as pessoas possam vir a
tomar o controle de seus temas em suas mãos é uma
afirmação sem fundamento, especialmente quando to-
das as outras opções fracassaram.

Esclarecendo dúvidas, respondendo objeções

Uma desqualificação típica entre aqueles que têm


algum conhecimento dos princípios libertários é sus-

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2009

tentar que o anarquismo é uma bela quimera intelec-


tual, uma ideia bonita, mas impraticável, adotando
assim uma posição realista, prática, que julga o dever
ser a partir do que é, o que Hume já indicava ser um
modo de crítica inadequado. Mas a desqualificação é
curiosa em outro sentido, porque o movimento ácrata
não surgiu de teóricos fechados em torres de marfim,
mas diretamente da luta pela sobrevivência de gente
oprimida comum, e tem uma grande trajetória histórica
que assim o prova. A anarquia sempre foi intensamente
prática nas suas pretensões e em sua forma de fazer
as coisas, como mostrou nas ocasiões em que pôde al-
cançar algum sucesso, às vezes com proeminência, às
vezes parcialmente. Mais ainda, o caráter do socialis-
mo libertário se mantém igual e, entre os anarquistas,
as opiniões valem por si e não pela hierarquia, cargo,
poder que as emita. Por isso, a liberdade para opinar,
para determinar fins e meios, os termos igualitários em
que sua voz é considerada, a autonomia de seu pensa-
mento, impõem a todos e a cada um dos anarquistas
a responsabilidade intelectual e moral das ideias que
sustentam e submetem à discussão em um coletivo.
Não entraremos aqui em uma análise detalhada de
tal objeção, mas basta acrescentar algo: se o anarquis-
mo fosse mesmo tão inviável, por que tanto empenho
para destruí-lo por parte do Estado, representante má-
ximo das forças opressoras, seja democrata liberal,
fascista, comunista ou religioso? Por que tanto esforço
especulativo de seus adversários do passado e do pre-
sente para refutar um ideal que se supõe absurdo do
princípio ao fim. Nenhum integrante dos grupos que se
mostraram tão eficientes para dominar vontades gasta-
ria esforço lutando por séculos contra um inimigo cujas
propostas não tivessem a possibilidade de se materia-
lizar. Mas acontece que, nas oportunidades em que se
concretizaram as propostas sociais anarquistas, ficou
bem evidente que o anarquismo desenvolve, e com su-
cesso, o que sua voz anuncia — liberdade, igualdade

64
verve
A utopia radical possível: anotações...

e solidariedade — mesmo quando se está nas piores


condições materiais.
Quando se propõe a autogestão e o autogoverno,
suprimindo as atuais estruturas de poder simboliza-
das e levadas ao seu mais alto grau no Estado, surgem
inúmeras perguntas referentes à maneira pela qual se
poderia organizar uma sociedade sem esse “ogro filan-
trópico” a que tanto estamos acostumados. Como é
possível viver sem a ordem que o Estado impõe? Reite-
remos que anarquismo não significa caos ou desordem,
ausência de organização. Ao contrário, quer dizer que a
ordem deve surgir das exigências da própria vida, dos
imperativos que impõe, assim como dos desejos e es-
peranças de cada um e do coletivo que integramos. De
modo algum devemos aceitar como única possibilidade
uma organização imposta por forças exteriores a toda
sociedade, ou que ambicionam fins setoriais, parciais,
como os interesses de um grupo particular (religioso,
étnico, militar, político ou econômico), na busca de lu-
cro ou o afã de poder de alguns indivíduos ou grupos de
indivíduos. O socialismo libertário tem bem claro que a
liberdade não é filha da desordem, mas mãe da ordem.
Em decorrência disso, ao mesmo tempo em que re-
chaça o poder, o anarquismo reconhece a autoridade
derivada das peculiares habilidades de cada um. O habi-
tante comum da cidade é inferior ao camponês no conhe-
cimento da agricultura, assim como o doente também
não supera o saber médico em sua especialidade, nem
o empregado do comércio ao engenheiro civil no projeto
de uma ponte. Mas essa autoridade é sempre restrita, li-
mitada, já que o médico pode entender de doenças tanto
como ignorar da semeadura, aquilo que sabe o campo-
nês, posto que fundado num saber particular, ninguém
pode pretender um domínio total sobre todos os outros
membros da sociedade, nem aspirar a uma posição de
privilégio invariável. Irremediavelmente, o Estado, como
poder total, alheio às qualidades de seus governados e às
necessidades pontuais que seria imperativo satisfazer,

65
16
2009

consolida os privilégios de uns sobre os outros sendo in-


diferente a méritos e penúrias.
Na vida cotidiana há muitos exemplos de que a
organização é perfeitamente compatível com a ausência
de um poder central (o Estado) ao qual submeter-se.
Considere-se como se estruturou a internet, para men-
cionar o caso mais óbvio. De outro lado, por acaso
as linhas aéreas, de trens ou marítimas, em viagens
multinacionais, não se organizam sem que nenhuma
delas perca sua autonomia e sem a necessidade de
que haja uma delas que domine todas as outras? Para
tanto, basta a coordenação de entes autônomos em prol
do benefício de todos, cedendo as instalações, serviços,
etc, de uma em benefício da outra em troca de similares
benefícios que recebe dela, e assim entre todas. Se
assim conseguem fazer empresas em feroz competição
por mercados e que só perseguem lucro, também podem
fazer outras instituições, e mais ainda os indivíduos,
que têm uma gama mais ampla de interesses comuns e
são naturalmente sociáveis.
Os anarquistas têm algum sistema econômico que
promovam? Nisso, como em tantas outras questões, o
anarquismo não defende nenhum modelo em particu-
lar, mas aspira que os membros de um coletivo, de for-
ma livre, selecionem a organização econômica que mais
os favoreça tendo em vista seus interesses particulares
e coletivos. Mas, vendo a história do movimento ácrata,
não é por acaso que se tenha assumido amplamente
a identificação com o socialismo libertário, pois sempre
chamaram a atenção dos anarquistas o mutualismo, o
coletivismo e até formas do comunismo.
O mutualismo nega a propriedade, mas aceita a pos-
se de uso, inclusive a pessoal, entendendo que a posse
surge do trabalho. A base do intercâmbio está na as-
sociação de consumidores e produtores, com um preço
derivado do custo de produção e suprimindo o lucro.
O coletivismo tem como lema de cada um segundo sua
capacidade, a cada um segundo seus méritos. Sustenta

66
verve
A utopia radical possível: anotações...

a propriedade coletiva dos instrumentos de produção,


mas o fruto do trabalho deve distribuir-se na proporção
do trabalho e de sua qualidade, com o que se mantém
um tipo diferenciado de salários. O comunismo anar-
quista tem como lema de cada um segundo sua capa-
cidade, a cada um segundo suas necessidades, com o
que se suprime o salário diferencial, os meios de pro-
dução são comuns e a distribuição é feita em função
das necessidades. A estas tendências, quis somar-se
em anos recentes uma vertente anarco-capitalista, di-
fundida particularmente nos Estados Unidos, inimiga
do poder estatal, mas também defensora radical da li-
vre iniciativa e do mercado. A pretensão de se assumir
como anarquista é rejeitada pelas demais correntes, em
especial pelas diferenças que existem entre o modo em
que vive a maioria dos habitantes da maior potência
contemporânea, ao se comparar com as desvantagens
que o mercado acarreta nos países onde exerce plena-
mente sua espoliação.13
Esta breve apresentação é suficiente para deixar en-
trever que as discussões entre os anarquistas sobre as
vantagens desses modelos econômicos, e de outros pos-
síveis, são parte importante do imaginado para a nova
sociedade, em cuja construção não há preconceitos
acerca da maneira em que se pode organizar, debatendo
livre e coletivamente as possíveis soluções, calibrando
vantagens e desvantagens, sem respostas pré-concebi-
das nem originadas de um saber autoproclamado como
superior. No contexto latino-americano, esse debate se
enriquece ao incorporar as experiências econômicas e
culturais comunitárias que vem da milenar história de
nossas sociedades originárias, posto que, em boa me-
dida, o que o anarquismo traz à discussão não é estra-
nho aos usos e costumes de indígenas e camponeses do
continente.14
Com frequência, surge a pergunta de como uma so-
ciedade libertária trataria os delinquentes violentos.
Quem os poderia parar sem um Estado que estives-

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2009

se a cargo do controle policial? Comecemos indicando


que apenas uma parte dos assassinatos e outros cri-
mes violentos são originados de desordens mentais ou
paixões individuais extremas, de modo que nem a po-
lícia nem ninguém os pode prevenir. É factível espe-
rar, entretanto, que numa sociedade menos frustrante
e que se ordene com mais sabedoria não haverá tantos
delitos desse tipo, como se pode constatar estudando
o que se passou em experiências de organização não-
estatal. Os demais assassinatos, e a maior parte das
outras ofensas, derivam da existência da propriedade
privada em grande escala, de modo que, se a forma do-
minante de propriedade fosse a coletiva, com muito me-
nos disparidade econômica, desapareceria um motivo
importante da delinquência contra pessoas e bens. A
história mostra que os grandes ciclos de aumento de
criminalidade se produzem em situações de grandes
desigualdades sócio-econômicas, enquanto que a vio-
lência e os assaltos diminuem em épocas de uma distri-
buição mais igualitária da riqueza. Soa cômico escutar
os dirigentes de governos latino-americanos buscando
assessoramento policial no Norte para a luta contra a
delinquência quando, no Canadá, por exemplo, não há
quase desemprego e o salário mínimo é seis vezes maior
que na Venezuela, país onde quase metade da força de
trabalho está desempregada ou em ocupação precá-
ria, sem proteção social de nenhum tipo, e com uma
das distribuições de renda mais desiguais do planeta,
apesar de viver na revolução autoproclamada socialis-
ta desde 1999. É fácil, então, imaginar as razões pelas
quais no Terceiro Mundo se vive uma situação de auge
dos delitos contra as pessoas e, em sua grande maioria,
contra a população de menos recurso, ainda que sejam
os crimes contra os poderosos aqueles colhidos pela im-
prensa. Trata-se da lógica consequência da ação do po-
der que exprime até um máximo grau a capacidade das
pessoas de suportar a injustiça. Por fim, um elemento
determinante na diminuição do delito é a educação, es-
pecialmente numa sociedade que faça da liberdade, da

68
verve
A utopia radical possível: anotações...

igualdade e da solidariedade o verdadeiro eixo da vida


individual e coletiva, fazendo da colaboração de cada
um na vida coletiva autogestionária um feito gratifi-
cante, participativo e autônomo. Isso será impossível
de alcançar enquanto houver um Estado que mantém,
precisamente, a apatia temerosa, a não-participação e
a delegação de poderes.
É evidente que as comunidades necessitam de al-
gum meio para tratar aqueles indivíduos que preju-
diquem aos demais. No lugar de vários milhares de
policiais profissionais, a melhor solução é através da
organização comunal de proteção mútua. Os que go-
vernam proclamam que as forças de segurança (oficiais
e privadas) existem para nos defender uns dos outros,
quando sabemos que na realidade somente lhes inte-
ressa que possam proteger a eles próprios, sua proprie-
dade e seu poder sobre a sociedade. Além disso, são
instituições condicionadas para responder à violência
com mais violência, o que gera um círculo vicioso que
apenas beneficia o Estado policial e seus delinquentes,
que juntos se fazem donos das cidades. De outro lado,
já são numerosas as tentativas de assumir a proteção
independentemente da polícia, e sobre elas os agentes
do Estado exercem fortes pressões para controlá-las e
evitar que a população tome consciência de que não ne-
cessita de uniformizados para salvaguardar suas vidas
e interesses.
As prisões são um fracasso para melhorar, reformar
ou dissuadir os infratores e operam somente no campo
do que melhor sabe fazer o Estado, reprimir. Os vizi-
nhos de uma comunidade, conhecendo as circunstân-
cias pessoais de cada qual, trariam soluções melhores
e mais adequadas tanto para a vítima quanto para o
acusado. Por outro lado, o atual sistema penal é um
dos principais promovedores da conduta criminosa.
Os réus que cumprem uma pena mais ou menos longa
frequentemente se convertem em seres inadaptados à
convivência fora das grades. Como é possível imaginar

69
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que encarcerar uma pessoa, sob o cuidado de outras de


caráter tão antissocial quanto o dela (pois assim costu-
mam ser os carcereiros), vá desenvolver um modelo de
comportamento responsável e sensato? Como pensar
que se alcançará esse comportamento depois de pas-
sar pelo inferno das prisões na América Latina, ou em
quase qualquer lugar do mundo? Naturalmente, ocorre
exatamente o contrário e a maioria dos presos reinci-
dem e com um grau maior de agressividade.
Mas ainda assim, pode ser que encontremos indi-
víduos que cometam delitos na sociedade libertária,
indivíduos que mesmo reforçando as medidas de rea-
bilitação seja impossível reincorporar à sociedade. Em
tais casos, de uma sociopatia manifesta e insuperável,
a sociedade tem o direito de se proteger expulsando o
indivíduo de seu convívio, não por vingança ou casti-
go, mas como reconhecimento de uma relação inviável,
que ao se manter coloca em perigo os demais integran-
tes. Isso, talvez, possa ser considerado um castigo que
provoque sorrisos, mas queremos mencionar um par
de casos para mostrar sua força. Entre os gregos do
período clássico, o exílio da própria comunidade era
considerado a pior pena e Sócrates, condenado e frente
à opção, preferiu a morte. Ademais, sabemos que se
alguém é sancionado por não honrar os pagamentos
de um cartão de crédito ou por passar um cheque sem
fundos, o culpado perde a possibilidade de utilizar esse
meio de pagamento tão usado hoje em dia, uma vez
que nenhuma outra instituição lhe abre crédito ou lhe
permite operar com contas, razão pela qual se evita que
o faça regularmente. Não é pequena a pena de ser exi-
lado, e muito menos se alguém é exilado de forma igno-
miniosa, seja onde for. A única condição que se requer
é a obrigação de todos em cumpri-la sem exceção, dado
que, para ser efetiva, exige uma mudança tanto nos que
castigam quanto nos castigados.15
Outra das perguntas com as que se tem enfrentado o
anarquismo durante anos é: quem faria todo o trabalho

70
verve
A utopia radical possível: anotações...

sujo, o trabalho duro que ninguém quer fazer? Também


se coloca a dúvida do que aconteceria com quem se ne-
gasse a trabalhar. Para responder devemos ter claro que
as pessoas necessitam trabalhar, precisam fazer algo.
As pessoas têm uma verdadeira urgência criativa que
se expressa ao realizar algum trabalho. Basta atentar
a como nos sentimos mal quando não temos trabalho
ou reparar como passamos horas arrumando uma má-
quina, cuidando do jardim, confeccionando uma peça
de roupa, fazendo música. Todas essas tarefas podem
ser muito divertidas, só que com frequência elas são
consideradas mais passatempos que autênticas ativi-
dades laborais. O problema está que nos foi ensinado a
qualificar o trabalho como um tormento que é irremedi-
ável aguentar, pois o temos desvinculado da satisfação
de necessidades reais para convertê-lo e um meio para
fomentar o êxito de capitalistas e dominadores.
Na sociedade atual, o trabalho é efetivamente um
tormento, e o rechaçamos porque está estreitamente
relacionado a um sentimento de injustiça e exploração.
Em tais condições, o trabalho é pouco gratificante, mas
nem todo trabalho o é como pretendem nos convencer
e, assim, impedir que possamos ser livres para escolher
inclusive aquilo que nos é mais próprio, nosso ofício.
Não se trata de que sejamos indolentes por natureza,
mas que nos incomodamos quando tratados como se
fôssemos máquinas, obrigados a fazer um trabalho em
sua maior parte desprovido de qualquer relação com o
que somos, ou com a satisfação de alguma necessidade
coletiva, sem justas avaliações e para satisfazer interes-
ses econômicos alheios. O trabalho não tem porque ser
assim e, se estivesse administrado pelas pessoas que o
desempenham, de fato não seria. É fácil ver que numa
sociedade livre nunca vão faltar voluntários para fazer
um tipo de tarefa ou outra, em especial se essa diferen-
ça de ocupações não for acompanhada de uma inopor-
tuna hierarquização de renda ou de valoração social.
É claro que há trabalhos desagradáveis que são neces-
sários executar, e há poucas formas de fazer com que a

71
16
2009

coleta de lixo seja uma atividade agradável. Mas esses


problemas não são tantos nem tão graves e, em última
instância, uma comunidade pode resolver esse ponto
acordando que todos seus membros compartilhem de
uma tarefa ingrata ou com alguma outra solução equi-
tativa, especialmente quando existe, como hoje, cada
vez mais disponibilidade técnica para resolver essas di-
ficuldades. Sem contar que a diversidade humana faz
com que aquilo que pareça penoso para um não seja
para outro.
Questão importante é indicar a desocupação como
um problema criado pelo capitalismo. Num mundo
mais justo ela não existiria. Se houvesse um excesso de
mão-de-obra, em especial graças ao desenvolvimento
tecnológico, a solução não seria a atual em que alguns
trabalham muito e outros pouco ou nada, favorecen-
do assim a diminuição do salário e o emprego infor-
mal, para não falar no desemprego. Numa sociedade
na qual o trabalho é o modo de geração de riqueza, o
mais conveniente é que todos trabalhem, mas que tra-
balhem menos horas tornando possível que se desfrute
dos benefícios com equidade. Se nos desfizéssemos da
exploradora classe dominante e de seu inflexível afã por
aumentar a rentabilidade de seus investimentos, nos
livrariamos da maior parte da pressão econômica que
impõe a algumas pessoas longas jornadas de trabalho
com baixa remuneração, levando outros à desocupa-
ção. No sistema vigente, isso é grave para os dominados
porque o trabalho é hoje o mecanismo, muitas vezes
arbitrário e injusto, de distribuição de bens, uma vez
que há milhões de desocupados que nada recebem. Tal-
vez haja no mundo países com seguro desemprego que
aplacam esse problema, no entanto, na América Latina,
esses seguros brilham por sua ausência ou são anedo-
tas irônicas, o que faz com que carecer de trabalho seja
sinônimo de miséria.
Se, no limite, houvesse quem resistisse por todos
os meios a se integrar mediante seu trabalho ou ati-

72
verve
A utopia radical possível: anotações...

vidade ao conjunto de ocupações requeridas por uma


sociedade libertária, deveria colocar-se seriamente em
discussão seu interesse em se manter nesse coletivo,
a partir da qual, por mútuo acordo ou de todo modo
unilateralmente, a comunidade poderia excluí-lo. Mas,
uma vez mais, é impossível que alguém queira perma-
necer sem fazer nunca absolutamente nada, agregando
que, devido ao desenvolvimento da técnica, cada vez há
menos tarefas obrigatórias e desagradáveis por fazer.
Finalizemos a discussão sobre o enfoque anarquista do
trabalho remetendo os leitores a dois ensaios provoca-
tivos que se aprofundam nesse tópico: A abolição do
trabalho, de Bob Black e “A técnica e o desafio do século
XXI”, de Alfredo Vallota.16
Outra objeção típica é que isso talvez funcione em pe-
quena escala, em um atrasado vilarejo rural, mas como
pode funcionar em uma sociedade complexa sem a ne-
cessidade de hierarquias permanentes? Em primeiro lu-
gar, o anarquismo entende que a sociedade necessita
ser dividida em núcleos menores que os atuais, sempre
que seja possível, para que os conglomerados adquiram
uma dimensão mais humana e possam ser dirigidos di-
retamente pelas mesmas pessoas que os integram. Hoje
em dia, a teoria da organização empresarial do capitalis-
mo reconhece o que sempre foi um princípio básico do
anarquismo: que os grupos pequenos trabalham juntos
de forma mais eficaz e são capazes de se coordenar me-
lhor com outros conjuntos laborais parecidos, enquan-
to que os agrupamentos informes e de grande tamanho
são comparativamente mais débeis em seu desempenho
e que lhes é mais difícil conectar-se com o entorno. Nes-
se mesmo tema, é interessante destacar que em tempos
recentes se tem questionado profundamente o modelo
de industrialização sustentado em fábricas que ocupam
enormes superfícies e com capacidade de produzir vo-
lumes gigantescos. Chega a um certo tamanho em que
as fábricas, as atividades agropecuárias, as instituições
de serviço, as educativas, os sistemas administrativos
e outros, perdem a eficácia à medida que crescem, as-

73
16
2009

sim como acontece se são muito pequenas. De outro


lado, a todos é perceptível, especialmente na América
Latina, a desumanidade que confina a vida em grandes
conglomerados de gente, com maus serviços, habitações
precárias, muitas vezes em situações que nada deixam
a dever às prisões e campos de concentração. Se em al-
gum momento histórico tal agrupamento foi necessário,
por qualquer razão, na situação tecnológica e comuni-
cativa de hoje ele não tem mais sentido.
Pode acontecer que em projetos de envergadura,
pontuais, específicos e de interesse comum, seja ne-
cessária a união de várias comunidades, mas isso não
é um problema insolúvel nem sua existência justifica
um poder central permanente como o Estado. De fato,
a classe trabalhadora na Espanha encontrou soluções
desse tipo para grandes problemas na década de 1930.
Assim, a Companhia de Ônibus de Barcelona ao mesmo
tempo em que dobrava seus serviços, contribuiu com o
Coletivo de Entretenimento Cidadão (atividades recre-
ativas) e produziu armas para o front nas oficinas de
ônibus. Tudo foi conseguido com um número de traba-
lhadores bastante reduzido, já que muitos haviam ido
ao campo de batalha para combater o fascismo. Esse
grande aumento da eficiência, apesar da guerra e da
escassez de materiais, não é tão surpreendente por que
quem pode dirigir uma companhia de ônibus de forma
mais idônea, com menor esforço e o mais alto rendi-
mento? Obviamente que seus trabalhadores e ninguém
melhor que eles para coordenar com outros trabalhado-
res a solução de problemas comuns, quando a nenhum
deles move o afã de explorar aos demais em benefício
próprio.
Para estender esse caso ilustrativo, destaquemos
que todos os trabalhadores de Barcelona estavam orga-
nizados em sindicatos, formados por quem trabalhas-
se no mesmo ramo, sub-divididos em grupos de tarefa.
Cada grupo tomava suas próprias decisões relativas ao
trabalho cotidiano e nomeava um delegado que repre-

74
verve
A utopia radical possível: anotações...

sentava seus pontos de vista em temas mais gerais con-


cernentes a toda fábrica ou até mesmo a toda região.
Esses representantes eram portavozes das decisões
tomadas em assembleia por todos os companheiros e
o cargo se alternava com frequência. Os delegados po-
diam ser substituídos imediatamente caso não respei-
tassem o compromisso de serem meros portavozes da
assembleia (é o princípio da revogabilidade). Os dele-
gados eram atores que apenas podiam apresentar de-
clarações que os autores da obra, na assembleia dos
trabalhadores, escreviam para eles, sem se apropriar
da função de compor suas próprias linhas, como acon-
tece na ilusória “democracia representativa” de nossos
dias. Somando-se mais níveis de delegação é possível
alcançar uma atividade em grande escala sem abando-
nar a liberdade de trabalhar na linha que cada pessoa
escolha. Para saber mais das experiências de organiza-
ção autogestionárias que promoveram os anarquistas
na Revolução Espanhola de 1936, é possível buscar na
extensa bibliografia sobre esse assunto.17 Um enfoque
teórico mais desenvolvido sobre o tema da autogestão
expusemos em outro trabalho.18
Sigamos com outras objeções. Uma sociedade sem Es-
tado não estaria indefesa diante de ataques exteriores? O
fato de viver sob a tutela estatal não salvou os povos de
agressões armadas em grande escala e se poderia dizer
que ela as tem promovido. De fato, a maioria das nações,
as forças militares e policiais são utilizadas, aberta ou
dissimuladamente, contra seus próprios habitantes como
um exército de ocupação. O Estado não protege, mas vigia
e agride para defender uma elite dirigente que, dizendo as
coisas claramente, é um inimigo fundamental do povo de
cada país. Um Estado, que mantém e se apoia em um exér-
cito regular, cedo ou tarde deve embarcar em algum con-
flito, interno ou externo, ao menos para justificar o gasto
e manter o treinamento. Na América Latina é mais claro
que em outras regiões do mundo, mas todos sabemos que
a grande maioria das guerras e enfrentamentos armados
internacionais têm sido feitos em benefício dessas mino-

75
16
2009

rias dominadoras, ainda que invoquem pomposos pretex-


tos de defesa da pátria, dignidade nacional ou similares.
Além disso, a evolução tecnológica e organizacional dos
conflitos bélicos resultou que o exército não seja salva-
guarda de nada, porque hoje o máximo de sacrifício e a
maioria das vítimas se dá entre os civis que correm muito
mais riscos que os militares, que em tais circunstâncias
contam com a máxima proteção e até a possibilidade de
obter atraentes benefícios. Basta citar que nas guerras
mais conhecidas dos últimos anos (Iraque, ex-Iugoslávia,
Chechenia, Colômbia, Afeganistão etc.) os combatentes
formais têm registrado uma cifra muito menor de baixas
que os civis, que sofrem quase todos os rigores agres-
sivos de um ou outro lado do conflito. Até o momento, na
guerra do Iraque, conta-se um militar morto para cada
quarenta civis.
Uma resposta libertária clássica é reconhecer que a
defesa do coletivo está em suas próprias mãos e a solu-
ção é a de armá-lo. As milícias anarquistas espanholas
estiveram próximas de ganhar a Guerra Civil em 1936,
apesar da escassez de armamentos, da traição stalinis-
ta e da intervenção da Alemanha e da Itália a favor do
levante de Franco e seus partidários. O erro foi subes-
timar as próprias forças e deixar-se integrar ao exército
regular da República. Não há dúvida de que um povo
em armas seria difícil de subjugar por qualquer agres-
sor externo, como mostram a encarniçada resistência e
os sucessos das guerrilhas com autênticas raízes popu-
lares diante de tropas ocupantes numerosas e melhor
equipadas.
Mas é certo que um ensaio de sociedade libertária pode-
ria ser destruído do exterior. Os dignitários da oligarquia
norte-americana, como antes fizeram os dirigentes soviéti-
cos e como faria qualquer imperialismo, talvez quisessem
exterminá-la antes de permitir que vivesse em liberdade
e igualdade; isso, é claro, com a interessada colaboração
de todos que vissem a revolução ameaçar seus privilégios.
Contra essa ameaça de destruição a maior resposta é o

76
verve
A utopia radical possível: anotações...

movimento revolucionário em outros países. Dito de outra


maneira, a defesa mais eficaz contra as bombas atômi-
cas — ianques, russas, chinesas ou de qualquer outra
potência nuclear — será o movimento solidário de todos
que vivem sob o domínio do Estado agressor e de todos
os demais, entendendo que a maior esperança de evitar o
extermínio se baseia em privar a burocracia opressora do
privilégio do uso de armamentos de destruição em massa.
Poderíamos garantir um efetivo sistema mundial de segu-
rança se a solidariedade internacional chegasse ao ponto
em que os trabalhadores esclarecidos dos distintos países
inimigos fossem capazes de impedir que seus respectivos
governantes lançassem ataques externos.
E isso não é fantasia, pois há precedentes; como o
ocorrido na década de 1920, quando a Rússia soviética
se salvou de uma intervenção britânica massiva graças
a uma série de protestos e sabotagens dos operários
britânicos; ou da mobilização popular nos Estados
Unidos contra a intervenção no Vietnã no final dos
anos 1960. Mas dissemos esclarecidos porque também
há exemplos nos quais os povos foram arrastados a
enfrentamentos que nada os beneficiavam devido a
uma cegueira resultante da propaganda e do emprego
dos múltiplos recursos com que contam o Estado e as
classes dominantes.

Violência e anarquismo

Uma das características dos governos latino-ame-


ricanos tem sido a repressão agressiva aos protestos
coletivos, o que evidencia a incapacidade dos políticos
dessas latitudes em assumir ou solucionar os confli-
tos sociais de forma tolerante. Em cada caso que o
governo da vez tirou as amarras de suas forças repres-
sivas, argumentou que o fazia para defender a ordem
e os bens (não os cidadãos) da ameaça da subversão
e da “anarquia”, pois é um lugar comum para o poder
reinante e seus defensores equiparar anarquia com

77
16
2009

barbárie e desordem que se atribui aos de baixo. Mas


que dizem os próprios libertários quando se identifica
desse modo seu ideal?
Negar a possibilidade da violência como um momen-
to de luta revolucionária está distante do anarquismo.
Em algum instante, o enfrentamento destrutivo que ela
comporta se faz presente, pois sempre haverá que res-
ponder a grupos que apelem à força como argumen-
to para defender seus privilégios. Mas, se a violência
pode ser necessária, de modo algum ela é a guia para a
transformação que se aspira, que é uma mudança total
na organização social e econômica da humanidade que
se funda na alteração dos valores de cada indivíduo.
De nenhuma maneira essa transformação radical pode
ser resultado de uma revolução pontual ou catastrófica,
que quando muito poderia chegar a dominar o poder
político, o que é contraditório com a essência do movi-
mento anarquista que objetiva destruí-lo. Está fora da
tradição ácrata pensar que um distúrbio de rua, assim
como tomar a Bastilha ou o Palácio de Inverno, consi-
ga transformar a sociedade tal como se deseja, mesmo
que seja o primeiro passo. Em todo caso poderia ser o
último, porque o ideal anarquista não se limita à mera
socialização da economia, menos ainda à tomada do
poder autoritário em alguma de suas formas, mas ele
busca modificar as relações entre os homens fundando-
as na liberdade, na igualdade e na solidariedade, o que
faz com que a revolução se estenda por todos os as-
pectos da vida de todos e cada um e compreenda tanto
uma mudança nas relações comunitárias quanto uma
transformação pessoal.
Não é, portanto, que o anarquismo negue a violên-
cia, mas que ele a rechace enquanto manifestação da
paixão destrutiva que não esteja subordinada à ação
construtiva, e que nem sirva sequer de detonante de
um vasto movimento popular revolucionário. Não será
no furor colérico de um grupo onde há de surgir a cria-
ção de um novo mundo, mas da participação e incor-

78
verve
A utopia radical possível: anotações...

poração de todos e cada um nessa tarefa geradora. A


violência como momento destrutivo é apenas um ponto
de um processo construtivo muito mais longo e amplo.
Sem esquecer que entre finais do século XIX e come-
ços do século XX certo número de ácratas — impacien-
tes diante da enorme injustiça e desigualdade que os
rodeava — apoiou ações de força daquilo que se chamou
de “propaganda pela ação”, isso é insuficiente para as-
sociar anarquia e violência de maneira tão direta como
se tem pretendido. Em todo caso, é preciso recordar
que tanto naquele momento histórico quanto em todos
os outros desde então, a grande maioria do movimento
libertário não seguiu vias estratégicas ou táticas que
implicassem no uso sistemático do chamado terroris-
mo revolucionário. Tampouco se pode esquecer que os
anarquistas sofreram, no mundo inteiro e sob qualquer
regime, mais derramamento de sangue do que possam
ter ocasionado, pois o fato é que a repressão policial
de qualquer governo democrático-representativo latino-
americano matou mais gente que, por exemplo, os fa-
lecidos por causa do grande movimento filo-anarquista
do maio de 1968 francês. Os libertários imolados se
contam aos milhares, muito poucos pela exaltação cega
que eles pudessem ter propiciado e sim, no entanto,
vítimas quase todos por defender — frente a explorado-
res e opressores — ideias que são capazes de elevar a
humanidade a um novo estágio de dignidade.
Houve menos violência originada nos anarquistas
que nas guerras santas das religiões, nos conflitos para
conquistar mercados ou nos movimentos para se apo-
derar do poder político; todavia, os anarquistas, com
seu permanente ativismo, contribuíram como ninguém
com as manifestações pacifistas, na defesa das mino-
rias e em prol dos direitos de todos e de cada um.
Se o que dissemos é correto, de onde surge a as-
sociação anarquia-violência? Um percurso pela história
ajuda a explicá-la. A violência ácrata nunca foi ao modo
dos combatentes fundamentalistas (religiosos, étnicos

79
16
2009

ou políticos) atuais, que indistintamente atacam uma


patrulha do exército, massacram um povoado indefeso
ou detonam bombas em zonas comerciais muito fre-
quentadas. A violência anarquista se caracterizou por
ser pontual, específica, por atentar contra um rei, um
bispo, um presidente, um torturador, por roubar ban-
cos, distribuir bens estocados, atacar instituições ou
empresas símbolos da opressão. Os libertários sempre
golpearam nas estruturas do poder, onde os privilegia-
dos se sentem seguros, atacando-os diretamente. Por
isso que os afetados se ocuparam em sobre-dimensio-
nar essas ações, porque elas chegaram perto, fazendo
com que os meios de comunicação indiquem a desgraça
de um deles como mais notável do que o padecido dia-
riamente pelos milhares que sofrem os danos da opres-
são institucionalizada.

A título de conclusão

O exposto antecipa que estas páginas não têm final,


mas em todo caso, continuação. Por isso, nesse ponto
não pode haver senão um convite ao diálogo, à refle-
xão, à ação, ao voltar-se a si e buscar, com os outros,
alternativas políticas e filosóficas que impeçam que o
século XXI seja continuação do mal que nos trouxe o
século XX, resgatando o que de bem foi aportado, ape-
sar de tudo e de uns poucos. O futuro positivo não está
ali esperando; temos que construí-lo, pois aceitar pas-
sivamente o que nos foi oferecido desde o Estado e das
instâncias de poder associadas não resultou num bom
refúgio. Nos compete fazê-lo a nós mesmos e para isso
não parece que haja outra alternativa que a anarquia
nossa de cada dia, o que se aplica para o mundo em
geral e para a América Latina em particular.

80
verve
A utopia radical possível: anotações...

Agradecimentos

A Alfredo Vallota, com quem mantenho há muitos


anos uma linha de trabalho em conjunto sobre esses
temas; de modo que muito do exposto aqui vem des-
sa reflexão em comum. A Minas Vivas (professora na
Universidad Central de Venezuela, UCV, e, além disso,
minha mulher), por sua leitura cuidadosa e perspicazes
comentários sobre esse trabalho. Ao Coletivo Editor do
El Libertario, Caracas, Venezuela.

Tradução do espanhol por Edson Passetti & Thiago


Rodrigues.

Notas
1
John W. Barchfield. Estatismo y Revolución Anarquista. Tradução de I. de
Llorens. Madrid, Fundación Anselmo Lorenzo, 2003.
2
Para uma visão razoavelmente ampla de sua rica trajetória histórica no mundo,
ver: http://libertarixs.tk, 2008; sobre a América Latina, é indispensável a
consulta de: Ángel Cappellettiy e Carlos Rama (Compiladores). El Anarquismo
en América Latina. Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1990.
3
Nelson Méndez e Alfredo Vallota. Bitácora de la Utopía. Caracas, Ediciones
Biblioteca UCV, 2001, p. 14.
4
Marvin Harris. Nuestra Especie. Tradução de Eduardo Gil. Madrid, Alianza,
1997.
5
Anarcopedia. “Categoría: Escuelas”. Disponível em: http://spa.anarchopedia.
org/Categoría:Escuelas (acesso em: 20/11/2008). (N. E.)
6
Volin. La Revolución Desconocida. Buenos Aires, Proyección, 1977.
7
José Peirats. Los anarquistas en la Guerra Civil Española. Gijón, Jucar, 1976.
8
Alfredo Errandonea. Sociología de la Dominación. Montevideo, Nordan-
Comunidad, 1990.
9
Sobre as ideias e as experiências anarquistas sobre educação uma referência
imprescindível e atual é: Josefa Martín Luengo. La Escuela de la Anarquía.
Móstoles-Madrid, Madre Tierra, 1993. E o trabalho da Escuela Paideia, em
Mérida, Espanha.

81
16
2009

10
Nelson Méndez e Alfredo Vallota, 2001, op. cit., p. 21.
Programa de las Naciones Unidas para el Desarollo — PNUD. El Estado de
11

Desarrollo Humano: Informe sobre desarrollo humano 2006. Disponível em: http://
hdr.undp.org/en/media/indicadores2.pdf (acesso em: 20/11/2008).
12
Idem, p. 269.
13
Para mais detalhes sobre a crítica socialista libertária ao anarco-capitalismo
ou libertarianismo, veja a opinião de Noam Chomsky em: Noam Chomsky.
Conversaciones Libertarias. Móstoles-Madrid, Madre Tierra, 1993. (Também
disponível em: http://www.ucm.es/info/bas/utopia/html/convlib.htm).
14
Há uma interessante reflexão sobre esse tópico no extenso e documentado
prólogo que Ángel Cappelletti escreveu em: Ángel Cappelletti e Carlos Rama,
1990, op.cit. (Também disponível em: http://bibliotecaayacucho.com/fba/
index.php?id=97&backPID=103&begin_at=56&tt_products=157).
15
Considerações mais detalhadas sobre os pontos de vista anarquistas acerca
da penalização e criminalidade se encontram no que foi divulgado sobre esses
tópicos, desde 1999, no jornal El Libertario, da Venezuela e nas publicações
brasileiras do Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol) Verve, desde 2002,
e Hypomnemata, desde 1999.
16
Bob Black. La Abolición del Trabajo. Disponível em: http://www.geocities.
com/samizdata.geo/Abolicion.html (acesso em: 20/11/2008); Alfredo
Vallota. “La Técnica y el desafío del Siglo XXI” in El Cuervo, nº 31. Dpto. de
Humanidades de la Universidad de Puerto Rico — Recinto Aguadilla, 2004,
pp. 56-67.
17
Vale destacar como particularmente informativos os livros: Frank Mintz.
Autogestión y Anarcosindicalismo en la España Revolucionaria. Madrid, Traficantes de
Sueños, 2006; Walter Bernecker. Colectividades y Revolución Social. Tradução de G.
Muñoz. Barcelona, Crítica, 1982.
18
Nelson Méndez e Alfredo Vallota, 2001, op.cit.

82
verve
A utopia radical possível: anotações...

Resumo
Retomando e atualizando a linha de trabalho exposta inicial-
mente no livro Bitácora de la Utopía, discute-se alguns elemen-
tos teóricos e propostas do anarquismo ou socialismo libertário,
pensados atualmente na América Latina, entendendo que se
trata de uma filosofia e experiência social que renasce no mundo
contemporâneo como fundamento para a utopia radical possível
e desejável, colocando em relevo sua razoável vigência diante
das circunstâncias socio-políticas de hoje no continente, repa-
rando enganos ou equivocadas interpretações sobre o tema, e
enfatizando respostas a dúvidas e objeções que surgem quando
se explica ou se leva adiante a prática do ideal ácrata.

Palavras-chave: anarquismo, mudança social, autogestão.

Abstract
Retaking and updating the line of work first presented in the book
Bitácora de la Utopía (A Logbook of Utopia), this presentation
forwards the discussion of some theoretical elements and
proposals of anarchism or libertarian socialism, all currently
emerging from Latin America, on the understanding that we are
dealing with a philosophy and social experience that has come
back to life with a renewed vigor as a basis for a radical utopia
both possible and desirable. We underline its pertinence to the
social-political circumstances of our times in the continent and
clear up those errors and misunderstandings which have often
surrounded the topic of anarchism as a whole, laying particular
stress on responding to doubts and objections that tend to arise
when ideals and theories are explained or attempts are made
to put them into practice.

Keywords: anarchism, social change, self-government.

Recebido em 8 de dezembro de 2008. Confirmado em 19 de


abril de 2009.

83
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

a breve existência da seção brasileira do


centro internacional de pesquisas sobre o
anarquismo [2ª parte]
0
pietro ferrua*

Lista de documentos1

• Circular nº 1 do núcleo preparatório da seção brasileira do


C.I.R.A. (1967).
• Convocatória para a palestra de 23/01/1968.
• Cópia de uma carta do membro Roberto das Neves em visita
ao C.I.R.A. na Suíça.
• Cópia do prefácio ao livro do Daniel Guérin, O Anarquismo.
• Estatutos do C.I.R.A. em português.
• Estatutos do C.I.R.A. em esperanto.
• Circular nº 2 de 12/06/1968.
• Cópia de um artigo no diário O Globo, de 05/07/1968.
• Cópia de um artigo no diário Última Hora de 06/07/1968.
• Cartaz sobre o curso: Aspectos históricos do anarquismo.

* Professor Emérito do Lewis & Clark College, Portland, Estados Unidos,


fundador do Centre International de Recherches sur l’Anarchisme, C.I.R.A.,
viveu no Brasil entre 1963 e 1969.

verve, 16: 85-140, 2009


85
16
2009

• Série de bibliografias distribuídas aos discentes do curso:


a), b), c), d).
• Palestra do Prof. Carlos M. Rama em 13/07/1968.
• Entrevista de Carlos M. Rama a O Paiz, em 15/07/1968.
• Cópia de um artigo do Jornal do Brasil de 20/07/1968
anunciando nosso curso.
• John Cage. Sobre a palestra de John Cage publiquei um
artigo em Verve, São Paulo, 2003, v. 4, pp. 20-31.
• Outro artigo sobre o mesmo assunto: “O ‘testamento anarquista’
de John Cage”, em Verve, São Paulo, 2004, v. 5, pp. 219-229.
• Temário da primeira Assembleia Geral do C.I.R.A.-Brasil em
30/07/1969.
• Sugestões para o futuro do C.I.R.A.-Brasil em vista da
Assembleia Geral.
• Relatório de atividades do C.I.R.A.-Brasil entre julho de 1967
e julho de 1969.
• Atas da Assembleia Geral de 30/07/1969.
• Pesquisa: Sacco e Vanzetti no Brasil, por Regina Helena
Machado.
• Ordem de bloqueio da Caixa Postal do C.I.R.A.
• Auto de Busca, Apreensão e Prisão.
• Termos de Perguntas ao Indiciado.
• Denúncia do Procurador da Justiça Militar.
• Carta de Ideal Peres.
• Mandado de Citação da Primeira Auditoria da Aeronáutica.
• Sentença.
• Recorte do Jornal do Brasil de 02/12/1971 sobre a absolvição
dos anarquistas.
• Apêndice: Documento nº 10 acima mencionado.

86
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Documento 17
Temário da primeira assembleia geral dos membros do
C.I.R.A. residentes no Brasil

Convocado para o dia 30 de julho de 1969 às 21 horas e que terá


lugar no Rio de Janeiro, Av. Almirante Barroso nº 6, sala 1101, no Centro
de Estudos Professor José Oiticica (gentilmente cedida).

Após a nomeação do redator da Ata passar-se-á ao exame dos


seguintes pontos:
1. Aprovação do Relatório.
2. Aprovação das Contas.
3. Discussão do documento de trabalho elaborado pelo Comitê
Provisório:
a) definição do C.I.R.A.-Brasil
b) finanças
c) biblioteca
d) conferências
e) pesquisas
f) anais
4. Nomeação de um Comitê oficial do C.I.R.A.-Brasil ou, caso se
tenha chegado a uma decisão contrária, nomeação de uma Comissão de
Correspondência com a sede suíça e a filial de Marselha.
5. Assuntos vários.

O Comitê

Documento 18
Sugestões para o futuro do C.I.R.A. no Brasil

Documento de trabalho elaborado pelo Comitê Provisório


em vista da Primeira Assembleia Geral.

Após a leitura do relatório de atividades pedimos encarecidamente


aos membros que examinem detidamente as alternativas sugeridas a
seguir em vista da próxima Assembleia Geral, afim de que possam tomar
parte nela com sugestões precisas e opiniões amadurecidas depois de

87
16
2009

um estudo prévio dos problemas levantados, de maneira a chegar a uma


rápida definição das metas futuras.
Os membros que porventura estiverem impossibilitados de assistir à
Assembleia Geral, poderão enviar suas proposições e observações pelo
correio.

Questões a serem levantadas na Assembleia

I. O C.I.R.A. do Brasil deve permanecer como simples elo entre os da


Suíça e da França ou constituir-se em seção regional?
Neste último caso:
a) A denominação permaneceria a mesma?
b) Haveria necessidade de modificações estatutárias?
c) Deveríamos constituir um Comitê oficial e ter uma existência
jurídica?

II. Finanças
Até agora a cotização percebida no Brasil é igual à da Suíça. 50% do
dinheiro arrecadado é enviado à Suíça sob forma de numerário ou de livros. As
importâncias recebidas são, no entanto, insuficientes. Conviria adotar o sistema
do depósito anexo do C.I.R.A. na França que percebe uma cotização de 15
francos retendo 5 francos para as despesas locais e enviando integralmente
os 10 restantes ao C.I.R.A.-Suíça? Neste caso a cotização passaria a ser de
15 francos suíços para a adesão anual e de 150 para a adesão vitalícia. Os
membros vitalícios ficarão livres de corrigir sua cotização anterior e estabelecer
ou não um acréscimo de 50%. Dessa maneira se ajudaria mais validamente
o C.I.R.A.-Suíça sem no entanto aumentar a arrecadação local, a menos que
sejam enviados ao C.I.R.A.-Suíça só 50% e não os 2/3. Nesse propósito seria
recomendável que os que já são membros anuais se tornassem membros
vitalícios, que os que não estão em dia com as cotizações o fizessem, além de
encorajar os amigos que se interessam pelo anarquismo e pela pesquisa em
Ciências Sociais a dar sua adesão.

III. Expansão de atividades


Na eventualidade do C.I.R.A.-Brasil vir a se transformar em realidade,
poderia se tornar auto-suficiente só funcionando na escala continental.
Uma campanha de proselitismo poderia então ser feita através dos jornais
anarquistas (principalmente) que são publicados em espanhol, inglês, italiano,
russo e yiddish nas Américas.

88
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

IV. Biblioteca
Para se tornar importante, o C.I.R.A.-Americano deveria seguir o
exemplo do C.I.R.A.-Suíça. Começar com a documentação anarquista
de um grupo local (em Genebra Le Révil Anarchiste, no Rio, p. ex., a
documentação do C.E.P.J.O.2); com os de um companheiro colecionador
desaparecido (na Suíça: Luigi Bertoni, no Brasil, por exemplo, a biblioteca
de Edgar Leuenroth); com os de uma antiga biblioteca anarquista (na
Europa a C.R.I.A.-S.P.R.I.3 de Paris, na América Latina, a B.A.I.A.4 de
Montevidéu, por exemplo). Restaria a resolver o problema do local. Existem
duas soluções imediatas:
a) utilizar o C.E.P.J.O.
ou
b) confiar os livros a um membro que disponha de muito espaço
em casa e se comprometa a emprestá-los quando solicitados (neste
caso bastaria que o arquivo estivesse ao alcance dos membros). Já
se cogitou, inclusive, de copiar o arquivo do C.I.R.A.-Suíça para pô-lo
a disposição de eventuais leitores e pesquisadores brasileiros.

V. Outras atividades possíveis


a) Conferências: em local apropriado poderiam ser convidados
estudiosos nacionais ou continentais especializados em um
assunto de interesse anarquista (as palestras poderiam ser
reproduzidas no Boletim ou gravadas para os Arquivos).
b) Bibliografias: um levantamento bibliográfico das fontes anar-
quistas no Continente poderia ser realizado e posto ao alcance
das Universidades ou de Editores.
c) Pesquisas: não faltam assuntos a serem aprofundados. Basta
citar, para limitarmos a interesses locais: A Colônia Cecília,
nascimento do Partido Comunista do Brasil de uma cisão no
movimento anarquista; os falanstérios no Brasil; os anarquistas
estrangeiros imigrados para o Brasil; vida e obra de Maria Lacerda
de Moura, José Oiticica, etc.; precursores pouco conhecidos
como: Avelino Fóscolo; o anarquismo cristão de Aníbal Vaz de
Mello, etc.
d) Revista: uma importante colaboração ao C.I.R.A.-Suíça seria
a edição dos Anais, há muito projetados e nunca realizados na
Suíça por estarem os responsáveis atuais absorvidos totalmente
com o trabalho de classificação, catalogação, conservação e

89
16
2009

empréstimo dos livros e documentos da Biblioteca e pela volumosa


correspondência que ocupa todos seus lazeres.
Os Anais poderiam reproduzir artigos em várias línguas, de
colaboradores especialistas de todos os países. Existe já um plano
concreto com esse propósito que será dado a conhecer na Assembleia.

Conclusão
É bom não cultivar ilusões e não construir castelos no ar. O
horizonte é ilimitado porém se deve antes “querer”. A fundação do
C.I.R.A. continental só pode ser concebida como produto de um
esforço voluntário e coletivo. Sabemos por experiência que o trabalho
aumenta de início a tamanhas dimensões que chegamos rapidamente
a exigir a presença constante de uma ou mais pessoas com horário
integral. Seria então necessário uma dúzia de pessoas responsáveis
e devotadas que pudessem cada uma oferecer o equivalente a um dia
por semana de trabalho ou uma fonte de renda que pudesse assegurar
a quem por ventura se lançasse na tarefa em tempo integral, uma
remuneração fixa e conveniente.
Parece-nos oportuno acumular de antemão as dificuldades e os
obstáculos para evitar improvisações e diletantismo. Não consideramos
esgotado o assunto, mas isto pode bastar para início de reflexão e
como agenda de trabalho.

Documento 19
Relatório de atividades: julho 1967 a julho 1969

Em julho de 1967 alguns membros do C.I.R.A. residentes


no Brasil resolveram tentar a fundação de uma seção local e
iniciaram uma campanha de proselitismo cujos resultados
podem ser avaliados a partir dos dados que enunciamos a
seguir.

Discriminação das atividades:


* Redação, datilografia e expedição da circular nº 1 (Pietro e Eva).
* Tradução dos Estatutos para o Português (Eva).
* Tradução dos Estatutos para o Italiano (Pietro).
* Tradução dos Estatutos para o Esperanto (Dr. Francisco Viotti).

90
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Datilografia; mimeografia (Rosa e Eva):


* Conferência no Centro de Estudos Professor José Oiticica, em
26/1/1968 sobre “História e atividades do C.I.R.A. na Suíça” (Pietro).
* Organização do curso “Alguns aspectos históricos do Anarquismo”
Teatro Carioca. Rio de Janeiro. Julho-setembro de 1968: Circulares (Regina
Helena); Composição de cartaz (Jacques); Distribuição de cartazes
(Regina, Rosa, Ideal, MEL,5 C.E.P.J.O.); microfilmagem (José Alberto);
projeção “slides” (Antonio, Marcel); Bibliografia (Pietro); Datilografia,
mimeografia, distribuição (Regina, Rosa); Inscrições (Regina, Diana);
Transporte de material (Antonio, Marcel, Jacques, Roberto).

Conferências:
6/7 Introdução (Pietro);
13/7 “Os anarquistas na Revolução Espanhola de 1936-1939”
Professor Carlos M. Rama da Universidade de Montevidéu, membro
do Comitê Internacional do C.I.R.A.;
20/7 “Manifestações anarquistas na Europa contemporânea” (Pietro);
3/8 “O Anarquismo de Thoreau” pelo compositor norte-americano
John Cage (interpretação consecutiva: Diana);
10/8 “A Comuna de Paris de 1871” (Pietro);
17/8 “Os anarquistas na Revolução Mexicana” (Pietro);
26/8 “Origens do Anarquismo na Rússia. A Revolução de 1905” (Pietro);
1/9 “A Revolução Russa de 1917. Makhno e os anarquistas na
Ucrânia: 1917-1921” (Dr. Ideal Peres);
8/9 “A Comuna de Kronstadt de 1921”. “Marxismo e Anarquismo”
(Pietro).

Colaboraram também: o Prof. Daniel de Brito que traduziu do russo


algumas páginas do verbete Anarquismo da Enciclopédia Soviética.
Enviaram documentação: C.I.R.A.-Suíça; C.I.R.A.-Marseille; F.A.I.,6
Carrara; F.A.G.I.,7 Roma; Marco Smeraldi, Florença; Movimiento Libertario
Cubano en el Exilio, Miami; Federación Anarquista Mexicana e Grupo
Tierra y Libertad, México; André Bernard, Antonio Téllez, C.R.I.F.A.,8 Paris;
Edgar Leuenroth, São Paulo; Daniel Guérin, Paris; Ideal Peres e Edgar
Rodrigues, Guanabara.
* O curso foi noticiado pela imprensa local e internacional.

Outras atividades:
* Tradução: carta dirigida pelo Prof. Rama ao Embaixador da França

91
16
2009

no Uruguai, protestando contra a tentativa de expulsar do território


francês o historiador José Peirats, do espanhol (Eva); artigo de Charles
Hochauser Harmony de Haifa “Silhuetas israelianas”, do francês (Eva).
Reproduzido em O Dealbar; carta dirigida por Daniel Guérin ao Alto
Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, contra a tentativa de
expulsão do anarquista hispano-americano Octavio Alberola, do francês
(Eva); declaração conjunta libertária continental, do Movimiento Libertario
Cubano en el Exilio, do espanhol (Eva); trechos do folheto sobre a “Colônia
Cecília”, do italiano (Pietro). O serviço de tradução enviou todos os artigos
às redações dos jornais O Dealbar de São Paulo e O Protesto de Porto
Alegre.
* Entrevistas concedidas: ao diário de Rio de Janeiro, O Globo,
publicada em 6/7/1968 (Pietro); ao diário O Paiz (duas vezes), não
publicadas (Pietro).
* Reportagem: sobre história do Anarquismo, um artigo de 12 laudas
encomendado pelo Jornal do Brasil para um caderno especial, não
publicada (Pietro).
* Levantamento do fundo anarquista da Biblioteca Pública de Salvador,
Bahia (Pietro).
* Visitas a livrarias no Rio de Janeiro e na Bahia (Pietro) e São Paulo
(Rosa) para aquisição de livros para a nossa biblioteca.
* Correspondência (em português, espanhol, inglês, francês, italiano).
Tradução, correção, datilografia. Colaboração de Regina, Rosa, Eva, Dr.
Viotti, Diana, Pietro).
* Cartas escritas: 88. Países: Argentina, Austrália, Bélgica, Brasil,
Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Israel, Itália, México,
Peru, Suíça, Uruguai.
* Palestras sobre o C.I.R.A.: em São Paulo, no Centro de Estudos
Sociais (Pietro); em Buenos Aires, na Federación Libertaria Argentina
(Pietro).
* Envio de uma moção ao Congresso Internacional de Federações
Anarquistas de Carrara, Itália, agosto de 1968 (Pietro).
* Campanha para adesão de novos membros. Inscrições no Brasil
desde 1967: 27, das quais 3 membros vitalícios aderentes, 1 membro
vitalício nomeado, 23 membros com carteira anual.

Aquisição de livros:
ARVON: L’Anarchisme (dom. do Dr. Viotti); BANDEIRA-MELO-
ANDRADE: O ano vermelho: A Revolução Russa e seus reflexos no

92
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Brasil; CARR: The Romantic Exiles; LECOIN: La Nation face à l’Armée


(C.I.R.A.-França); CORNELISSEN: Les générations nouvelles: essai
d’une éthique moderne; EASTMAN: Reflexiones sobre el fracaso del
Socialismo; EFIMOV: História Moderna; FÉDÉRATION ANARCHISTE.
COMMISSION D’HISTOIRE: Circulaire nº 12, janvier 1968, (C.I.R.A.-
França); PROPP: Psicanálise da sociedade contemporânea; GARCÍA
PRADAS: ¿Revolución proletaria? (dom. do Dr. Viotti); GARÓFALO: A
superstição socialista; GOODMAN: “Uma controversia sobre a revolta
dos estudantes de Berkeley” in Sociologia da juventude, IV; GUERÍN:
Où va le peuple américain?; HAMPDEN JACKSON: Marx, Proudhon e o
socialismo europeu; ZUBOK: História contemporânea; KULSEN: A Teoria
política do Bolchevismo; LEUENROTH: Anarquismo (dom. do C.E.P.J.O.);
MARX: Miseria da filosofia; MIRSKY: Les juifs et la Révolution Russe;
MENEZES: Proudhon, Hegel e a dialética; MOSCA-BOUTHOUL: História
das doutrinas políticas desde a Antiguidade; NOGUEIRA: Notas para a
história do socialismo em Portugal; OITICICA: A doutrina anarquista
ao alcance de todos (dom. do C.E.P.J.O.); RECLUS: Estados Unidos
do Brasil; RELGIS: Umanitarismo e suo significato (Envio do autor);
Revista CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA. Caderno especial. A Revolução
Russa: Cinqüenta anos de história; ROCKER: As ideias absolutistas
no socialismo (dom. do C.E.P.J.O.); SPENCER: O individuo e o estado
(dom. do Dr. Viotti); ZANOLLI MISEFARI: L’anarchico di Calabria (envio
da autora); ZAVARZINE: Souvenirs d’un chef de l’Okrana; ALBERT: O
amor livre; COSTA: Sindicalismo independente; LUZ: Os emancipados;
KROPOTKIN: La conquête du pain; FERRAZ: Etudes sur la philosophie en
France; TRAVERS-BERGSTROEM: Le Mutualisme; HARRIS: La bomba
(La confesión de un anarquista); BELLAMY: Daqui a cem anos; SOMBART:
Socialismo y movimiento social; GUÉRIN: Pour le peuple tchecoslovaque
(envio do autor); TIERRA Y LIBERTAD: Al movimiento anarquista en
general y en particular a cuantos se interesan de una o otra forma por
la edición en castellano de la Enciclopedia Anarquista (envio do editor);
MASINI: Antonio Gramsci e L’Ordine Nuovo visti da un libertario (envio
C.I.R.A.-Suíça); RUSSELL: A tragédia de Sacco e Vanzetti; KROPOTKIN:
O Anarquismo; FERREIRA DA SILVA: Três enganos sociais; KROPOTKIN:
A Grande Revolução; LACERDA DE MOURA: Clericalismo e Fascismo;
TCHERKESSOFF: Erros e contradições do Marxismo (dom. do C.E.P.J.O.);
VIOLA: L’inaccessibile Dio (dom. do autor); DWYER: Anarchy now (dom.
da Federação Anarquista Australiana); VOLONTÀ, ano 1967, nº 1-12 (dom.
do Dr. Viotti).

93
16
2009

* Algumas dessas obras foram enviadas a Lausanne, outras estão


ainda em nossas mãos. Todas estão à disposição de eventuais leitores.
Os dados bibliográficos completos serão reproduzidos no Boletim. Foram
igualmente fornecidos livros ao depósito anexo do C.I.R.A. de Marselha
em troca de material de lá recebido.
* Redação de um breve folheto sobre a história dos dez primeiros
anos de funcionamento do C.I.R.A. (Pietro).
* Visita ao arquivo do militante Edgar Leuenroth em São Paulo
(Rosa).
* Artigo sobre a vida de Edgar Leuenroth (Rosa).
* Dois membros residentes no Brasil utilizaram com sucesso o serviço
de empréstimo internacional domiciliar do C.I.R.A.-Suíça.
* Alguns membros ofereceram individualmente livros ao C.I.R.A.-
Suíça (Valdecir e Roberto).
* Membros brasileiros visitaram a sede do C.I.R.A. em Lausanne
(Valdecir, Roberto, Regina Helena está a caminho de visitá-lo também).
* Notícias do C.I.R.A. foram dadas em vários jornais: Umanità Nova
(Roma); Le Monde Libertaire (Paris); Noir et Rouge (Paris); Bulletin de
la C.I.F.A. (Paris); Berner Student (Bern); Solidaridad (Montevidéu); Tierra
y Libertad (México); L’Essor (Genebra); Gacetilla Austral (Montevidéu);
L’Adunata dei Refrattari (Nova York); Befreiung (Hamburg); etc.
* O C.I.R.A. da Suiça reuniu-se em Assembleia Geral ordinária em 30
de março de 1969 para examinar as atividades de 1968, das quais damos
um resumo: a sede foi visitada por mais de 250 pessoas; 300 livros foram
emprestados; 650 novas aquisições foram feitas; saiu o Boletim nº 18 (a
notar que o nº 17 não chegou ao Brasil); 36 novos membros se inscreveram;
um artigo sobre o C.I.R.A. foi traduzido em 4 línguas, reproduzido na
imprensa internacional e distribuído ao Congresso de Carrara; os locais da
sede se ampliaram com mais uma sala na grande mansão de Beaumont;
a responsável atual fez uma viagem aos Estados Unidos onde entrou em
contato com ambientes anarquistas e associações culturais estabelecendo
novos correspondentes e propagandistas de nossa obra, tendo ido também
como observadora ao Congresso de Federações Anarquistas de Carrara
onde apresentou um relatório de atividades, distribuindo propaganda em
várias línguas e ajudando como intérprete (os jornais italianos reproduziram
sua fotografia na mesa da presidência).
* O depósito anexo do C.I.R.A. de Marselha inaugurou sua nova sede
e acaba de editar o nº 1 de seu Boletim regional contendo interessantes
estudos históricos.

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verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

* Um estudo sobre as figuras de Sacco y Vanzetti na literatura de


cordel do Brasil foi empreendido por Regina Helena e será reproduzido no
Boletim de Lausanne.
* Por fim temos que lamentar o desaparecimento de vários membros
do C.I.R.A.: Edgar Leuenroth (São Paulo); Charles Frigerio (Genebra);
Ugo Fedeli (Ivrea); Sir Herbert Read (Stonegrave); André Prudhommeaux
(Versailles); Helmut Rüdiger (Madrid).

Finanças:
1º de julho de 1967 — 30 de junho de 1969.

* Despesas:
correspondência, expedição circulares e boletins NCr 88,03
material (Stencils, papel, tinta, etc.) NCr 59,75
serviços (fotocópias, carimbo, etc.) NCr 25,70
remessa C.I.R.A.-Suíça NCr 42,00
compra livros para C.I.R.A.-Suíça + França NCr 103,50
livros C.I.R.A.-Brasil NCr 130,60
total despesas NCr 449,58

* Entradas:
Inscrições NCr 412,89
Déficit a 30 de junho de 1969 NCr 36,69

* Dívidas:
50% sobre inscrições de 1968 NCr 60,95
50% sobre inscrições de 1969 NCr 105,00

Total NCr 165,95


créditos 1968 1 inscrição de 1968 NCr 7,50
créditos 1969 21 inscrições de 1969 NCr 210,009

Total NCr 217,50


H NCr 217,50
D NCr 165,95

Diferença NCr 51,55

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2009

Documento 20
Ata da Assembleia Geral

Aos trinta dias do mês de julho do ano de mil novecentos e sessenta


e nove, ocorreu no C.E.P.J.O. (Centro de Estudos Professor José Oiticica)
a reunião do C.I.R.A.-Brasil, presidida por Pietro Ferrua.
Ao início dos trabalhos, Ferrua deixou claro que o representante do
C.I.R.A. no Brasil é o Sr. Ênio Cardoso. Este, porém, não se apressou
em representar o C.I.R.A. nesta reunião, mesmo recebendo o relatório e
avisos distribuídos também aos demais associados. Após esta reunião,
ser-lhe-á enviada uma carta comunicando o que foi resolvido e elaborado,
e visando saber se ele, como parece, considera-se demissionário.
Após a aprovação do relatório das atividades de 1968, passou-se aos
seguintes ítens:
a) Ferrua deu-nos conhecimento de toda a correspondência por ele
realizada, estando a mesma à disposição de quem a queira ler, ou
saber do mecanismo pelo qual se mantém contato com o C.I.R.A.;
b) Sobre o arquivo do finado Edgar Leuenroth, de São Paulo, o
que se pode dizer após seu falecimento, é que se fará uma seleção
do material em duplicata, o qual será distribuído da melhor maneira
possível. Porém, no momento, nada de concreto se pode afirmar,
ficando este item aberto para outra ocasião, quando dispusermos de
mais dados;
c) Finanças: Foi apresentado o levantamento financeiro, mostrando
que até julho de 1969 tínhamos um déficit de NCr 36,69, tendo sido
enviada à Suíça a quantia de NCr 42,00 como pagamento das
inscrições e o resto, correspondente a 50% das arrecadações, sob a
forma de livros; por sugestão do próprio C.I.R.A.-Suíça esse dinheiro
não mais será enviado, sendo aplicado na compra de livros em língua
portuguesa para o arquivo de Lausanne;
d) Sugestões para o futuro C.I.R.A.-Brasil: 1) O C.I.R.A. no momento
permanecerá como simples elo entre o da Suíça e o da França, dada
a realidade brasileira, qual seja: elementos reduzidos, problemas
financeiros e a ideia vaga sobre o que é na realidade o C.I.R.A., o que
não permitiria um trabalho coletivo satisfatório. Será mais prudente
continuar como viemos até agora, pois ainda não é o momento de nos
formarmos como uma seção regional. Iremos acumulando material ou
estudando uma maneira segura de que o C.I.R.A.-Brasil se constitua
o quanto antes;

96
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

O documento está incompleto e não foi possível localizar


a(s) página(s) seguinte(s). Tampouco nos lembramos quem
transcreveu as Atas, mas presume-se que tenha sido Regina
Helena Machado ou então Rosa Maria de Freire Aguiar.

Documento 21
Pesquisa: Sacco e Vanzetti no Brasil. Presença e Acção da
literatura de cordel, por Regina Helena Machado

O texto a seguir foi escrito em 1968 pela hoje licenciada


em Letras, pesquisadora, cineasta (entre 1976 e 1990),
autora, bacharel em Direito e gestora em Direitos Humanos
e publicado no nº 1 (de abril 1995) páginas 73-83, da revista
lusitana Utopia de Lisboa, dirigida pelo Prof. José Maria
Carvalho Ferreira, a quem eu o mandei depois de tantos anos
e que o aceitou com entusiasmo.

“As mãos são do artista, mas a arte é do povo” (Franz Boas).

Em todo o processo cultural brasileiro, a forma de expressão mais


autêntica, por ser direta, a maior fonte de conhecimento do povo, reside
sem dúvida na poesia popular, folclórica ou de cordel. O número de
trovadores é imenso, sendo fluente o versejar entre as pessoas simples.
As tradições orais passam de geração em geração, sendo por todos
assimiladas, tal como na Idade Média havia os trovadores da rua, que é o
espaço do povo.
O poeta popular age adentro de uma estrutura urbana e rural que se
estende a todo o país, sendo porém o Nordeste a região onde tal forma de
expressão assume maior relevo. Isto se deve ao fato mesmo da formação
e conformação do homem nordestino, que, juntamente ao da região
Norte, é hoje aquele que mais conserva as características populares
nativas ou brasílicas; por seu isolamento das grandes zonas ou regiões
industriais (Leste e Sul), mola do surto desenvolvimentista do país, onde
se fixaram os núcleos emigratórios, o Norte e o Nordeste puderam, mais
do que qualquer outra região, manter-se afastados das superestruturas
alienígenas inerentes ao desenvolvimento, à importação de hábitos,
modas, culturas, comportamentos. Etnicamente também, é nesta faixa

97
16
2009

geográfica que menos se verificou mistura, sendo o mulato, o caboclo e


o cafuso seus tipos físicos representativos, oriundos da fusão básica de
negro, índio e branco.
É a região mais pobre e menos desenvolvida do país, onde há, ainda
hoje, considerando-se o Amazonas, milhares e milhares de quilômetros
quadrados onde o homem jamais sequer pisou. No Nordeste, por seu
lado, verifica-se uma densidade populacional muito grande nas capitais,
ao passo que no hinterland o homem é devorado pelo sol, onde é normal
haver seca durante dois anos ininterruptos. E o nordestino vive neste
ambiente, nestes desertos em geral completamente isolados de qualquer
comunidade mais adiantada ou constituída diferentemente.
O homem-povo é aí essencialmente um marginal que vive, na cidade,
de biscates e empreitadas e, no campo, de menos ainda, pois caso
encontre um pedaço de terra onde se estabeleça, esta, por ser estéril,
nada tem para lhe oferecer. A população rural nordestina, quase por regra,
é ambulante, nessa sua itinerância buscando uma seca menor. O homem
se dedica a pequenas culturas, a pequenos comércios, a pequenos
serviços, invariavelmente em luta dramática pela sobrevivência, na qual
sempre obtém muito magra recompensa.
O poeta popular é, em essência, homem-povo. É fecundado neste
meio. Em sua grande maioria tem a vida traçada nos caminhos da
coletividade que o envolve, fazendo os mesmos serviços, e por isso mesmo,
se locomovendo com certa frequência, sempre à cata de lugares novos e
melhores. Em qualquer de suas horas vagas e durante suas noites, tendo
perto uma viola, mergulha na poesia. Em dias de festa, sozinho ou com
parceiros, dedica-se a esta arte, comungando com os que o rodeiam suas
novidades, alegrias e tristezas.
Neste ponto é necessário diferenciar, segundo meu testemunho e
experiências pessoais, três tipos distintos de cantadores, numa escala
estabelecida com relação à função criativa de poeta e cantador:
a) esporádicos e/ou diletantes, que se inserem na descrição feita
acima;
b) semi-profissionalizados, os sem-destino, que cantam sempre,
de aldeia em aldeia, e que disso vivem;
c) os profissionalizados, que atingem certa popularidade e têm
oportunidade de se estabelecer num centro urbano relativamente
importante e com bom mercado, ou na capital estadual, onde então,
quase sempre, passam a editar suas e outras composições.
(Dá-se uma certa comercialização desta literatura de cordel nos

98
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

perímetros urbanos do Rio e de São Paulo, onde é reeditada, perdendo


então, neste processo, seus primitivos valores e características formais).
Com o nome de folheto ou folhetim, no Norte, ou com o de volante, no
Sul, as tradições históricas, éticas e políticas deixam assim de pertencer a
um clã, a uma tribo, a um grupo social, e passam ao domínio popular:

Os operários diziam:
Morreu o meu protetor
Um outro Getúlio Vargas
Não nos manda o Criador
Rolava em todas as faces
O pranto de seu amor.
(Rodolfo Coelho Cavalcante A Chegada de Getúlio Vargas no Céu
e o seu julgamento)

A poesia folclórica ou oral contém assim fontes diversas: tradições,


fatos criados pelo trovador, tramas intrincadas de literatura anteriormente
conhecida, qualquer notícia, em suma, que ofereça elementos para uma
ação onde ocorram motivos que sigam uma ordem clara e de alcance
popular. Clara e de amplo interesse, porque aquele que canta os versos
o faz para um determinado grupo que encontra em suas deambulações,
num mercado, numa feira, no coreto de uma praça em dia de festa ou ao
domingo:

Basta um cabra não ter disposição


pra viver do serviço de alugado,
pega numa viola e bota ao lado…
sai no mundo a gabar-se em toda parte
e a berrar por vintém em meio da feira.
(Dimas Batista, Cantoria)

E o poeta que se dedica à poesia oral, tenta depois dá-la à


estampa. Surgem grupos dedicados ao trabalho de expansão deste
produto literário popular: os que fazem os versos e também os cantam,
os cantadores propriamente ditos, os impressores, os xilógrafos, os
vendedores (que amiúde são os próprios cantadores).
Após esta transformação de oral em escrita, a poesia folclórica
adquire nova forma, passa à categoria de poesia dita popular e escrita,
já com características técnicas de impressão, e expande-se em outros

99
16
2009

meios. Produto de artesanato popular, o é não apenas na sua confecção


lírica, mas também na confecção gráfica que reveste. O próprio autor
muitas vezes dedica-se à gravura (xilo), passando então a ilustrar sua
publicação com temas e formas essencialmente pertencentes a seu
mundo de imaginação e de intuição primitivas, isto quando não faz uso
de fotografias que possam sugerir o romance tematizado.
É desta poesia que tratamos, da já impressa, mas que conserva
as mesmas características da oral: espontaneidade, improvisação,
despojamento e, sobretudo, a mais simples identificação com o fato
narrado:

Leitores esta história


Um velho contou a mim
Isto eu versei assim
Satisfeito com a glória.
Descrevi esta vitória
Em contato com o Divino
Lutando com o destino
Imerso neste sistema
Representando em poema
As bravuras de Silvino.
(Luis de Lira, As Bravuras de Antônio Silvino em honra de um
velho amigo)

O restante dos sucessos


Direi no livro “Revoltas”
Que sairá brevemente
Escrito com linhas tortas:
Caindo de mão em mão, vendendo-se pelas portas.
(Pacífico Pacato Cordeiro Manso, O Tiroteio de Maceió, Zé
Povo e os Maltinos)

A dualidade de motivos é também constante:

Do homem velho ao menino


Do ricaço ao jornaleiro.
(João Martino de Ataíde, Sacco e Vanzetti aos Olhos do
Mundo)

100
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Ou a assimilação instintiva da natureza:

Adeus montanhas divinas


Adeus lapa onde eu morei
Adeus primeiro lugar
Onde meu pranto enxuguei
Adeus aquela cascata
De onde salva saltei.
(Teodoro Ferraz da Câmara, Os Martírios de Rosa de Milão)

Convém notar que, devido à sua falta de cultura, sem jamais ter tido
qualquer orientação quanto à educação formal, o poeta popular verte
na obra toda a confusão de valores que recebe de seu mundo caótico,
mostrando-se as mais das vezes incapaz de os distinguir, não possuindo
os seus próprios valores, reflexo óbvio de sua sociedade faminta e
sedenta, geralmente analfabetizada. Ao mesmo tempo, por exemplo, que
louva João Goulart, elogia Getúlio Vargas, ou Castelo Branco. O mesmo
autor do folheto Sacco e Vanzetti aos Olhos do Mundo, que se identifica
com a luta de princípios travada pelos dois emigrantes italianos contra o
fascismo norte-americano, não tem noções concretas acerca do que tenha
sido a Primeira Guerra Mundial, conforme se verá no próprio texto. Assim,
pode um outro poeta clamar:

Todo poeta é ativo


Não lhe falta aspiração
Escreve qualquer notícia
Sem agravar a nação
Embora que para todos
Não seja satisfação.
(Moisés Matias de Moura, Pavoroso desastre de trem no dia 31 de
Outubro de 1949, 7 mortos e 9 feridos)

Vem em primeiro a adaptação nacional de lendas alienígenas, contos


de fadas, príncipes e princesas, história de anjos e demônios, conquistas
e reinos, filtradas por seu estatuto social, político e financeiro:

Num alfarrábio francês


Foi essa lenda encontrada
O caso foi doloroso

101
16
2009

A cena foi complicada


Do falso duma madrasta
E o sofrer duma enteada.

Numa cidade da Itália


Denominada Milão
Residia um alfaiate
Chamado Pedro Bairão
Casado segunda vez
Com uma fera dragão.
(Teodoro Ferraz da Câmara, Os Martírios de Rosa de Milão)

Depois, a História. Os trovadores assenhoreiam-se dos fatos sociais e


políticos e deles extraem sua obra. Como exemplos, vejam-se os primeiros
folhetos narrando o cangaço, louvando suas ações, voltando-se contra as
milícias armadas, vejam-se também aqueles que narram a vida e morte de
políticos, que versejam sobre guerras, etc. Aqui, como nos outros casos,
na falta de documentação histórica precisa, o poeta investe toda sua força
de imaginação de homem e cidadão:

Em Plutão disse Getúlio


Que ali não demorava
Recuso todos convites
Porque Hitler ali estava
Trabalhando de mineiro
Pelo crime que pagava.

Em “Capela” um ramalhete
De flores celestiais
Recebeu Getúlio Vargas
Por dois grandes Marechais
Deodoro e Floriano
Que se tornaram imortais.
(Rodolfo Coelho Cavalcante, A Chegada de Getúlio Vargas no Céu
e o seu julgamento)

Você que leu a história


Não pense que é invenção
Nem julgue que o trovador

102
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Foi cabra de Lampeão


Não fui cabra nem menti
Toda história eu escrevi
Porque tive informação.
(Antônio Teodoro dos Santos, Lampeão, o Rei do Cangaço)

E enfim estórias nacionais e regionais de cunho tradicional, glosadas


durante anos e sempre passíveis ou não de sofrer novas versões:

O monstro do Rio Negro


O seu pai foi um pajé,
Que viveu no Rio Negro
Regendo a tribo Maué
O Brasil inda não era
Uma nação como é.
(José Carmelo de Melo Resende, O Monstro do Rio Negro)

Leitores no Ceará
A 21 de Janeiro
Deu-se um exemplo assombroso
Com a filha dum fazendeiro
Jesus Cristo a castigou
Porque ela profanou
Do Padre de Juazeiro.
(Severino Gonçalves, A Moça que virou Cobra)

Todas essas influências geralmente refletem uma posição individual


no seio de um determinado contexto social, mas nem por isso deixam
de obedecer às normas impostas pela poética popular: tramas de fácil
alcance, intensas e constantemente repetidas, ação central de agrado
popular, muitos jogos de palavras que levam ao deleite imediato causado
sobretudo pelas repetições, acúmulos, identidade de rimas, disseminação
e recolocação de elementos através de estrofes, o que de certa maneira
provoca a sensação de atividade lúdica e de participação no ouvinte ou
no leitor:

É como filho sem mãe


É como a ave sem ninho
É como a planta que nasce

103
16
2009

Desprezada no caminho,
A ave não tem parada
A planta não é tratada
O filho não tem carinho.
(João Martins de Ataíde, Sacco e Vanzetti aos olhos do mundo
Folheto publicado sem indicação de local e data)

É importante sublinhar que o leitor, quando acontece ser leitor, mantém


estatuto de ouvinte, visto esta poesia impressa ser feita para acompanhar
os espetáculos de cantoria ao ar livre. Ser cantada é o primeiro objetivo
da poesia popular, para atingir muito mais de perto a recepção. Tenha-
se, pois, em conta, que os autores praticamente desconhecem o que seja
sílaba métrica, gráfica ou fonética, e que tampouco possuem noções de
teoria literária ou princípios poéticos de caráter universal:

Agora peço desculpa


Deste versinho mal feito
E se acharem ruim
Não foi pelo meu respeito
Foi apenas demonstrando
Que a crise vai levando
Tudo no mundo do eito.
(José Bernardes da Silva, Os horrores do Nordeste)

O romance de Sacco e Vanzetti

O romance em que nos detemos é dos que vão beber à História.


Os elementos reais são fornecidos ao autor por uma notícia de jornal,
passando ele de certo modo a identificar-se-lhes. É a crônica de dois
brancos assassinados ferozmente, de dois anarquistas célebres, por
defenderem uma causa humana, por pregarem o amor entre os homens,
por não praticarem o mal. Acusados e declarados culpados por um júri que
julgou sem provas, esperaram sete anos na prisão a condenação final, a
da cadeira elétrica. Mesmo com a confissão do verdadeiro responsável
pelo ato de que se viam acusados, já detidos, mesmo com o apoio e o
apelo de milhões de pessoas no mundo inteiro, Nicola Sacco e Bartolomeo
Vanzetti serão assassinados legalmente.

104
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Caro leitor este livro


É de verdades reais
Trata da lei de um país
E três sentenças fatais
A história aqui contada
Foi igualmente tirada
Da notícia dos jornais.

Este caso compungiu


O coração brasileiro
Do homem velho ao menino
Do ricaço ao jornaleiro
Tudo teve compaixão
Causando grande impressão
Na face do mundo inteiro.

São eles Sacco e Vanzetti


E Celestino Madeiros
Este último se acusava
Porém os outros primeiros
Falavam com insistência
Comprovando esta inocência
Nos momentos derradeiros.

Eu mesmo vi senhoritas
Antes da execução
Passar a noite fazendo
Promessa no coração
Ante a imagem de um santo
Os olhos cheios de pranto
Ajoelhados no chão.

Muita gente também disse


Da Ásia a Oceania
América África Europa
Contra a grande tirania
Da capital ao sertão
Um pedido de perdão
De toda boca partia.

105
16
2009

Não teve perdão algum


Houvesse ou não inocente
A lei tornou-se implacável
Forte cruel inclemente
Conforme o destino quis
Um por um cada infeliz
Foi morto instantaneamente.

Agora caro leitor


Fazemos ponto final
Eu vou narrar a história
Pelo lado principal
Como isto começou
Até quando terminou
Nessa tragédia fatal.

Numa cidade da Itália


Nicola Sacco nasceu
Até 17 anos
Junto à família viveu
Trabalhando pobremente
Por ser muito inteligente
Uma ideia concebeu.

Sabendo que em sua terra


Não podia progredir
E tendo no pensamento
A nova luz do provir
Com ardor no coração
Dali pra outra nação
Ele tratou de partir.

Então escolheu a América


Por ser um bom continente
Onde há tempo se encontrava
Um seu amigo e parente
E seguiu sem mais tardança
Levando a grande esperança
De prosperar de repente.

106
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Porém em qualquer lugar


O sofrimento é do pobre
A miséria só não gosta
De visitar quem é nobre
Isto é em toda nação
Quem quiser ter cotação
Arranje primeiro o cobre.

Mesmo os Estados Unidos


Seduz qualquer homem moço
Por ser rico e potentado
Lugar de muito alvoroço
Chegue lá sem trabalhar
Veja se alguém vem chamar
Para pagar um almoço.

Foi justamente o que deu-se


Com o pobre do estrangeiro
Chegou ali sendo estranho
Sozinho sem companheiro
Em grave situação
Sem achar colocação
Onde ganhasse dinheiro.

De maneira que Nicola


Sofreu a calamidade
De passar várias semanas
Passando necessidade
Sem ter pão nem agasalho
A procurar um trabalho
Dentro daquela cidade.

Mas como Deus é bom pai


Não despreza os desgraçados
Na cidade onde ele estava
Depois de meses passados
Quase sem calma e sossego
Nicola achou um emprego
Numa fábrica de calçados.

107
16
2009

Então trabalhava muito


No novo emprego que tinha
Ganhando o pão torturado
Numa tarefa mesquinha
A sorte assim prometeu
E ele ali conheceu
A sua esposa Rosinha.

Enamorou-se com ela


Depois tratou de casar
O matrimônio foi feito
Naquele mesmo lugar
Daquele dia em seguida
Seguiu-lhe uma nova vida
Com a esposa e o lar.

Vanzetti também nasceu


Numa aldeia italiana
Criou-se religioso
Em uma Igreja Romana
Seu pai um bom cidadão
Cujo nome era João
E sua esposa Susana.

Depois entrou no colégio


Onde aprendeu bem a ler
Pois ali é obrigado
Qualquer pessoa aprender
Estudou com paciência
Pois a sua inteligência
Fazia gosto de se ver.

Aos 13 anos de idade


Sua vida teve início
Abandonou os estudos
Embora com sacrifício
Achando que estava ruim
Seguiu dali para Turim
Onde aprendeu um ofício.

108
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Depois tomou novo rumo


Conforme ditou-lhe a sorte
Procurando a terra ingrata
Onde encontrou sua morte
Julgando de progredir
Por isso resolveu ir
Para a América do Norte.

Ele conforme diziam


Era bom trabalhador
Para ganhar sua vida
Não encarava rigor
E abraçando o sofrer
Vanzetti chegou a ser
Servente de construtor.

Porém vendo que o emprego


De servente de pedreiro
Era um trabalho pesado
E não rendia dinheiro
Arranjou outro lugar
Começando a trabalhar
Na profissão de peixeiro.

Neste tempo de miséria


A Europa se batia
A Alemanha e a França
A Bélgica e a Áustria-Hungria
No grande furor da guerra
A Itália e a Inglaterra
Portugal, Grécia e Turquia.

Começou a aparecer
As grandes calamidades
A fome invadindo logo
Aldeia vila e cidade
Nesse tempo temerário
Surgiu o povo operário
Formando as sociedades.

109
16
2009

Sacco e Vanzetti guardavam


O ideal das conquistas
Começaram a frequentar
A sede dos comunistas
Com poucos dias passados
Estavam já alistados
No quadro dos anarquistas.

Faziam vários discursos


Nas grandes reuniões
Sobre a guerra tão sangrenta
Que devastava as nações
E os governos malvados
Expondo os pobres soldados
Aos projéteis dos canhões.

Um dia eles voltavam


De certa reunião
Onde foram protestar
No meio da multidão
A morte de um companheiro
E o outro prisioneiro
Nas grades de uma prisão.

Então os dois estrangeiros


Viajavam calmamente
De volta do tal comício
Foram presos de repente
Dali seguiram escoltados
Por um grupo de soldados
Um sargento e um tenente.

Em novecentos e vinte
No centro de uma cidade
Deu-se um assalto e um crime
Com toda perversidade
Em dois homens que passavam
E uma bolsa levavam
Com dinheiro em quantidade.

110
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Este crime foi levado


De dia em pleno clarão
No meio da ira pública
Por entre a população
Foram 6 os assaltantes
E os dois pobres viajantes
Ficaram mortos no chão.

Praticado o negro crime


Fugiram por uma estrada
Metidos dentro de um auto
Que corria em disparada
Deixando acolá somente
Aos olhos daquela gente
Uma impressão desgraçada.

Muitas pessoas diziam


Que pelos traços ligeiros
E a maneira de agir
Dos terríveis bandoleiros
Tudo dava opinião
Que eles tinha as feição
De bandidos estrangeiros.

Então deram logo queixa


À primeira autoridade
E começaram a fazer
Suposições à vontade
Em tudo o povo se mete
Acusando Sacco e Vanzetti
De toda cumplicidade.

Os pobres italianos
Meteram numa prisão
Com a entrada na célula
De criminoso e ladrão
E o juiz foi estudar
Pra depois explicar
Se eles tinham razão.

111
16
2009

De Sacco e Vanzetti foram


Os dois processos formados
Também não demorou muito
Surgir os advogados
Depois dos depoimentos
Trazendo seus documentos
Pra defender os culpados.

Depois surgiu uma causa


Onde o juiz se apegou
De que em uma das vítimas
A bala que se encontrou
De Sacco havia partido
Então logo decidido
Duas sentenças lavrou.

Duas sentenças de morte


Muito embora os condenados
Mostrassem constantemente
De que não eram culpados
Dentro da negra prisão
Implorando compaixão
Sendo os seus rogos baldados.

Houve alguém que arranjou


Revisar o processado
Porém com tudo esse arranjo
Não deu nenhum resultado
Formou-se até comissão
Porém no fim da questão
O processo foi lavrado.

A justiça americana
Não concedeu o perdão
Dos pedidos que chegavam
De quase toda nação
Estava tudo acabado
Nem mais o advogado
Se envolvia na questão.

112
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Sacco e Vanzetti passaram


Vários dias sem comer
Apenas só aceitavam
A água para beber
Tomaram tal decisão
Para ver se na prisão
Assim podiam morrer.

Baldados todos recursos


Chegou a desilusão
Sacco e Vanzetti esperavam
A maldita ocasião
No meio da tirania
O juiz marcou o dia
Da cruel execução.

Quando tocou meio dia


Em 24 de agosto
Foram pra sala da morte
Levando grande desgosto
Debaixo da indiferença
Cumpria negra sentença
Que o destino havia posto.

Em frente à cadeira elétrica


Sacco pediu permissão
Para dizer umas frases
Antes da execução
Já no término da vida
Sua triste despedida
Compungia o coração.

Adeus minha mãe querida


E minha esposa fiel
Adeus filho de minh’alma
Neste momento cruel
Vou morrer sem ser culpado
Como um feroz afogado
Num oceano de fel.

113
16
2009

Nisto veio um empregado


Foi fazendo a ligação
Botou logo as ligaduras
No pé, na perna e na mão
O fato foi consumado
Pobre de Sacco coitado
Ficou da cor do carvão.

Chegou Vanzetti depois


No meio da assistência
Ainda reafirmou
A sua grande inocência
Entrou na sala da morte
Entregando a sua sorte
Ao poder da providência.

Despediu-se dos amigos


Da terra que viu nascer
De sua mãe que o prezava
E não podia esquecer
Na cadeira ali sentado
Com um minuto passado
Acabava de morrer.

Quando chegou em New York


A nova da execução
Houve lágrimas sentidas
E triste lamentação
Grandes gemidos e prantos
Partidos de vários cantos
Daquela população.

Era o término horroroso


De uma tragédia fatal
De um drama que provocou
Agitação mundial
Quadro funesto e sinistro
Livro negro do registro
Na história universal.

114
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Um guarda acolá contou


Uma história comovente
Que fez alguém conformar-se
De que tudo era inocente
Pois antes da execução
Eles dentro da prisão
Dormiam tranquilamente.

Celestino de Medeiros
Também morreu fulminado
Com um sorriso nos lábios
Alegre e resignado
Confessando a toda a gente
De que morria contente
Pois era um grande culpado.

Duas vidas que se foram


Duma forma dolorosa
Para as quais a esperança
Sempre fugiu caprichosa
Morrer assim tão fatal
Que sonhava o ideal
De uma existência de rosa.

Passar a noite agitados


Sob cruéis impressões
E ver os sonhos desfeitos
Em horrorosas visões
Dentro da angústia e do tédio
Morrer sem ter um remédio
Pra tantas desilusões.

Viúvas das esperanças


Noivas da fatalidade
Escravas do infortúnio
Sem a menor piedade
Da pátria muito distante
Padecendo as torturantes
Agonias da saudade.

115
16
2009

Foi condenado à tragédia


Envolto em tremendo véu
Quando a inocência padece
E vai ao banco do réu
Seja na paz ou na guerra
Contra a justiça da terra
Vem a justiça do céu.

Foram pois Sacco e Vanzetti


Dois filhos da mesma dor
Dos mesmos padecimentos
No mesmo quadro de horror
Irmãos dos mesmos gemidos
Dos instantes doloridos
Sem paz sem luz sem amor.

Sair da Pátria natal


Seguir para a terra alheia
Sonhando com Liberdade
Morrer dentro da cadeia
É engraçada esta vida
Quanta esperança perdida
Quanto castelo na areia.

É como filho sem mãe


É como ave sem ninho
É como planta que nasce
Desprezada no caminho
A ave não tem parada
A planta não é tratada
O filho não tem carinho.

(João Martins de Ataíde, Sacco e Vanzetti aos olhos do mundo


Folheto publicado sem indicação de local e data)

À margem do texto

É de insistir na identificação do trovador ao fato narrado. Este


processo de identificação faz-se com base num coletivo social: por

116
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

força das condições de vida, formação, condicionamentos, o poeta


popular nunca é indivíduo ao compor os seus poemas. Através da
rima ele passa a ser um reflexo de toda a estrutura social em que se
insere. Conforme o tema vai sendo desenvolvido, emite julgamentos
de valor, mas estes só são expressos na medida em que possam ser
aceitos, assimilados e identificados pelo povo. A imaginação criadora
do poeta, fertilíssima, o faz criar o cenário físico e psicológico onde
a história se enquadre, estando estas ocorrências estreitamente
vinculadas à tradição do artesanato literário-folclórico. A comunicação
desejada com o público permite assim ao humilde homem nordestino
estabelecer relações naturais e quase de companheirismo com os dois
anarquistas. São também recorrentes as ilustrações enumerativas dos
conhecimentos gerais do autor, referindo-se a situações tão difundidas
que possam de imediato ser reconhecidas por quem ouve ou lê. Aqui
e ali o autor intervém, procedimento também corrente na literatura de
cordel, fugindo ao tema inicial e a ele regressando logo.
Por outro lado, os dados de que o autor dispõe são puramente
jornalísticos. Há uma ausência de conhecimento da causa mesma que
movia e dava força a estes dois anarquistas, ausência essa clara nas
palavras de despedida de cada um, inteiramente desprovidas de conteúdo
político, como, aliás quase todo o poema. O que importa, porém, é que,
como homem, como pobre, o trovador depara neste processo com pontos
de semelhança com o seu próprio estatuto. Sendo por isso que o cantador,
de mentalidade aberta aos temas, se impressiona e manifesta sobre a
injustiça, o sofrimento, as desigualdades sociais, quer esses elementos se
refiram ao indivíduo ou ao sistema político.

Documento 2210
Comando de Transporte Aéreo
Quartel General

Ofício nº 008/69-IPM Rio de Janeiro, em 15 de outubro de 1969

Do Major Aviador ISALMIR MENDES DE


CASTRO VELOSO, Encarregado do IPM

Ao Senhor Chefe dos Serviços de Correio


da Agência de Ipanema (ZC-95)

117
16
2009

Assunto: bloqueio de Caixa postal (Solicita)

I – Tendo comprovado que a caixa postal 5475 — (ZC-95) dessa


agência é utilizada para recebimento de correspondência de teor subversivo,
solicita a V. S. que todo o material a ela dirigido seja bloqueado e remetido,
via ofício, ao Encarregado do Inquérito Policial Militar, no Esquadrão de
Polícia da Aeronáutica, do Comando de Transporte Aéreo (Base Aérea do
Galeão).

[assinatura]
ISALMIR MENDES DE CASTRO VELOSO
Major Aviador Encarregado do IPM

IMCV/CL

Recebido em 15/10/69
[assinatura ilegível]

Documento 23
Ministério da Aeronáutica
Comando de Transporte Aéreo
Quartel General

ATO DE BUSCA, APREENSÃO E PRISÃO

Aos quinze dias do mês de outubro do ano de mil novecentos e


sessenta e nove, nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em
cumprimento ao mandado retro, nos dirigimos à residência, sita à Avenida
Vieira Souto 490, apartamento 202, Ipanema, nesta cidade do Rio de
Janeiro, onde se encontra PIETRO MICHELE STEFANO FERRUA, se-
gundo fomos informados, e aí, depois de lhe ter sido mostrado e lido o
mesmo mandado, os intimamos para que, incontinente, nos franqueasse
a entrada na dita residência, a fim de procedermos à diligência, ordenada
e constante do referido mandado; de que, obedecendo o mesmo PIETRO
MICHELE STEFANO FERRUA o convidamos para assistir às diligências

118
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

desde o seu início, bem como as testemunhas HENRY LOUIS VAN DER
HAAS NETO, CB Q IG PM e ANTONIO CORUGEIRA DOS SANTOS,
CB Q IG PM abaixo assinados, e entrando na residência supra declarada
procedemos a uma [palavra ilegível] minuciosa busca examinando
todas as dependência da citada residência encontramos na biblioteca o
seguinte material: um (01) ENVELOPE (pardo) contendo um exemplar da
revista ANARQUISTA “L’ADUNATA DEI REFRATTARI”; Estatutos de la
Biblioteca Popular Juventud Moderna (Mar del Plata); um (01) folheto de
Eugenio Relgis “HUMANITARISMO E EUGENESIA”; duas (02) cadernetas
de “TELEPHONE” e ADRESSES; correspondências e papeis manuscritos
e impressos (diversos); um (01) ENVELOPE (pardo) contendo apostilas
sobre ANARQUISMO; um (01) ENVELOPE (pardo de 20 x 29 cm) contendo
varias correspondências pessoais com vários países; papeis impressos e
datilografados o Estatuto do C.I.R.A. — Seis (06) exemplares da revista
C.I.R.A. (Centre International de Recherches sur l’Anarchisme, Boletins 14,
15, 16, 17, 18, 19), cinco (05) exemplares da revista C.I.R.A., boletim nº 8,
de maio 1963 — uma pasta contendo recortes de jornais e revistas (Edgar —
dados biográficos) — uma (01) pasta contendo recortes de jornais diversos
(COMUNA DE PARIS) — e encontramos PIETRO MICHELE STEFANO
FERRUA, a quem prendemos e conduzimos ao Esquadrão de Polícia da
Aeronáutica do Quartel General do Comando de Transporte Aéreo onde
ficou recolhido à disposição da Justiça; de que, para constar, se lavrou o
presente auto o qual vai assinado por mim, OSWALDO COSTA LOBO, ASP
OF IG, que o escrevi e por DURVAL AUGUSTO DE QUEIROZ, IS Q IG FI,
também encarregado da diligência e pelas testemunhas já declaradas.

[assinatura]
OSWALDO COSTA LOBO
Asp OF IG — Encarregado da diligência
[o documento continua na página seguinte]

CONSTITUIÇÃO DO AUTO DE BUSCA, APREENSÃO E PRISÃO


SEGUEM MAIS ASSINATURAS

DURVAL AUGUSTO DE QUEIROZ


IS Q IG FI — Encarregado da diligência

HENRY LOUIS VAN DER HAAS NETO


GB Q IG PM — Testemunha

119
16
2009

ANTONIO CORUGEIRA DOS SANTOS


GB Q IG PM — Testemunha

Documento 24
Ministério da Aeronáutica
Comando de Transporte Aéreo
Quartel General

TERMO DE PERGUNTAS AO INDICIADO

Aos dezessete dias do mês de outubro do ano de mil e novecentos


sessenta e nove, nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, no
Quartel General do Comando de Transporte Aéreo, presente o Major
aviador ISALMIR MENDES DE CASTRO VELOSO, Encarregado deste
Inquérito, comigo CLAUDIO LANDI, segundo sargento escrevente, servindo
de escrivão, compareceu PIETRO MICHELE STEFANO FERRUA a fim
de ser interrogado sobre os fatos quanto à denúncia envolvendo militares
deste Quartel General, constantes de documentos sigilosos do Io Ex. — 4a
RM 4o DL/ID-4-EM-2a SEC e Núcleo de Parques de Aeronáutica de Lagoa
Santa, que lhe foi lido. Em seguida passou aquela autoridade a interrog-a,
digo, interroga-lo da maneira seguinte: Qual é seu nome, idade, filiação,
estado civil, naturalidade, profissão e residência. Respondeu chamar-se
PIETRO MICHELE STEFANO FERRUA, com trinta e nove anos de idade,
filho de LÍBERO FERRUA e de ANITA LÍBERA VITTORIA TAGGIASCO,
casado, natural de São Remo, Itália, Professor na Aliança Francesa, sita à
Rua Prudente de Morais, 1102, Ipanema e residente a Avenida Vieira Souto,
490, apartamento 202, Ipanema, nesta cidade do Rio de Janeiro, Estado da
Guanabara. Perguntado desde quando se dedica ao estudo e divulgação
do ANARQUISMO, respondeu que cerca de vinte (20) anos. Perguntado
quando ingressou no Centro de Cultura Professor JOSÉ OITICICA, e a
convite de quem, respondeu que no ano de 1963 e que ingressou por livre
e espontânea vontade por já conhecer a existência do Centro através do
jornal AÇÃO DIRETA, remetido mensalmente para o C.I.R.A. da Suíça, do
qual foi um dos fundadores. Perguntado o que significa a sigla C.I.R.A.,
respondeu que CENTRO INTERNACIONAL DE PESQUISAS SOBRE O
ANARQUISMO. Perguntado qual é o objetivo do C.I.R.A., respondeu que

120
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

o C.I.R.A. se propõe a recolher todo o material em qualquer idioma que


trata sobre ANARQUISMO, pró ou contra. Perguntado qual é o objetivo do
Centro de Estudos Professor JOSÉ OITICICA no Brasil, respondeu que a
difusão cultural e as tímidas tentativas artísticas culturais da sociedade.
Perguntado se nunca notou a objetividade do Centro em difundir o
ANARQUISMO no Brasil respondeu que considera que o objetivo principal
do Centro não era a difusão do ANARQUISMO no Brasil, reconhecendo
porém que ele mesmo e alguns fundadores do Centro são ANARQUISTAS
porquanto em tais condições poderão ter deixado transparecer ideias
ANARQUISTAS nas reuniões do Centro. Perguntado até quando funcionou
o Centro de Estudos Professor José Oiticica, respondeu que pelo que ele
sabe até o início de outubro de 1969. Perguntado que outros elementos
compunham o Centro JOSÉ OITICICA, respondeu que IDEAL PERES,
ANTÔNIO COSTA (pai), FERNANDO GONÇALVES e outros cujos nomes
não se lembra. Perguntado se sabia da existência do Movimento Estudantil
Libertário no Centro JOSÉ OITICICA, respondeu que ouviu da existência
do MEL, porém ignora onde seus componentes se reuniam e nunca assistiu
a suas reuniões. Perguntado se compareceu às reuniões da Diretoria do
Centro, respondeu que muito raramente. Perguntado qual a sua função na
Diretoria do Centro, respondeu que era Presidente Honorário. Perguntado
se durante as vezes que compareceu às reuniões do Centro se algum
assunto POLÍTICO DOUTRINÁRIO foi tratado, respondeu que nas que
ele compareceu apenas assuntos administrativos. Perguntado se o Centro
JOSÉ OITICICA foi uma filial do C.I.R.A. no Brasil, respondeu que nenhuma
relação tinha o Centro com o C.I.R.A. Perguntando se quando foi consultado
em uma das reuniões do Centro sobre o Manifesto MEC-USAID,11 não
desconfiou que estava havendo um desvirtuamento dos objetivos do Centro
OITICICA, respondeu que tem impressão que o Manifesto foi proposto
para aprovação, que ele próprio julgou precipitado prejulgar o Contrato
MEC-USAID uma vez que o teor do mesmo era desconhecido de todos.
Perguntado o que tem feito no Brasil para a divulgação do ANARQUISMO,
respondeu que uma série de conferências no Teatro Carioca no ano de
1968 em que se propunha elucidar objetivamente a história e as teorias
ANARQUISTAS. Perguntado se divulgando teorias de regime contrárias
ao do país não acha que está cooperando para a subversão da Ordem,
respondeu que considera que a oposição ANARQUISTA pode ter um
efeito fecundo sobre as Instituições de um país, sendo que — respeitando
escrupulosamente o jogo democrático e propondo apenas uma superação
gradual da Democracia — pode o ANARQUISTA ser encarado como o

121
16
2009

propugnador de uma vigilância ativa do progresso democrático visando,


por meio de uma crítica sincera e sadia e de exemplos construtivos evitar
que esse mesmo processo possa parar e se esclerosar. Perguntado se
foi consultado para que cooperasse financeiramente na compra do SÍTIO
em Mogi das Cruzes, em São Paulo respondeu que sim e que deve ter
cooperado com uma pequena quantia. Perguntado se escreveu algum
artigo para O DEALBAR de São Paulo ou O PROTESTO de Porto Alegre,
respondeu que mandou propaganda sobre o C.I.R.A. mas que as mesmas
nunca foram publicadas e que só lembra de ter remetido uma tradução
do artigo SILHUETAS ISRAELIANAS para O DEALBAR. Perguntado qual
o conteúdo do artigo SILHUETAS ISRAELIANAS respondeu que dizia a
respeito a acontecimentos da guerra dos seis dias. Perguntado a data da
última vez em que compareceu ao Centro de estudos Professor JOSÉ
OITICICA, respondeu que em agosto ou setembro deste ano, não sabe
precisar a data, e que lá foi para assistir a uma conferência sobre a arte
da mímica. Perguntado se sabe qual o objetivo da compra do Sítio de
Mogi das Cruzes, respondeu que a construção de residências para velhos
anarquistas e a fundação de uma colônia agrícola em moldes anarquistas,
à semelhança dos KIBBUTZ em Israel. Perguntado se tem mais algo a
acrescentar sobre todo o assunto coberto no presente interrogatório,
respondeu que não. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu o
encarregado deste inquérito por findo o presente interrogatório, mandando
lavrar este termo que, depois de lido e achado conforme, assina com o
indiciado, com as testemunhas e comigo, CLAUDIO LANDI, Segundo
Sargento Escrevente, servindo de Escrivão, que o escrevi.

[assinatura]
ISALMIR MENDES DE CASTRO VELOSO, Major Aviador,
Encarregado do IPM.

[assinatura]
PIETRO MICHELE STEFANO FERRUA, indiciado.

[assinatura]
OSWALDO CÔSTA LÔBO, Asp Of IG — Testemunha.

[assinatura]
WILMAR GOMES DE ARAÚJO, Asp Of IG — Testemunha.

122
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

[assinatura]
CLAUDIO LANDI, 2S Q ES — servindo de escrivão.

Documento 25
Poder Judiciário
Justiça Militar
1ª Auditoria da Aeronáutica

EXMO. SR. DR. JUIZ AUDITOR DA 1ª AUDITORIA DA AERONÁUTICA DA


PRIMEIRA CIRCUNSCRIÇÃO JUDICIÁRIA MILITAR

O Procurador da Justiça Militar, abaixo assinado, no exercício de suas


funções, vem denunciar:

1. PIETRO MICHELE STEFANO FERRUA, italiano, natural de


San Remo, casado, professor, filho de Libero Ferrua e de Anita Libera
Vittoria Taggiasco, residente em Ipanema, Av. Vieira Souto, 490, aptº 202,
Guanabara, com 40 anos de idade.
2. IDEAL PERES, brasileiro, natural da Guanabara, casado, médico,
filho de João Peres e de Carolina Bassi, residente no Leme, Rua Anchieta,
26, aptº 201, Guanabara, com 42 anos de idade.
3. ANTONIO DA COSTA, português, natural de Vizeu, casado,
barbeiro, filho de Antonio da Costa e de Virgínia de Jesus Costa, com 68
anos de idade, residente em Botafogo, Rua Voluntários da Pátria, 283, aptº
205, Guanabara.
4. FERNANDO GONÇALVES DA SILVA, português, casado, chefe
de produção de construções, filho de Manoel Gonçalves e de Arminda
Maria da Silva, com 51 anos de idade, residente em Lins de Vasconcelos,
Travessa Propriá, 17 Guanabara.
5. MANOEL DOS SANTOS RAMOS, português, solteiro, auxiliar de
Contador, filho de Georgina Amélia dos Santos, com 42 anos de idade,
residente em Botafogo, Rua Real Grandeza, 272, CO2, Guanabara.
6. PAULO FERNANDES DA SILVA, brasileiro, natural do Estado da
Guanabara, casado, cirurgião-dentista, filho de Manoel Fernandes da Silva
e de Isabel Eymard Fernandes, com 53 anos de idade, residente na Praça
da Bandeira, Rua Barão de Iguatemi, 370, aptº 101, Guanabara.
7. ANTONIO FRANCISCO CORREIA, brasileiro naturalizado,

123
16
2009

natural de Portugal, casado, construtor civil, filho de Manoel Francisco


Correia e de Alvina da Silva Santos, com 49 anos de idade, residente no
Meier, Rua Isolina , 109, Guanabara.
8. ROBERTO BARRETO PEDROSO NEVES, português, natural
de Pedrogão, escritor e editor, filho de Manoel Vicente Pedroso Neves, e
de Dalila Neves Barreto, com 64 anos de idade, residente no Leblon, Av.
Ataul, digo, Adolfo de Paiva, 80, aptº 605, Guanabara.
9. ELI BRIARÉU DE OLIVEIRA, brasileiro, solteiro, natural do
Pará, Soldado de Primeira Classe, servindo no Esquadrão de Polícia da
Aeronáutica, do QG do COMTA, filho de Danilo de Oliveira e de Altamira
da Silva Oliveira.
10. MÁRIO ROGÉRIO NOGUEIRA PINTO, português, natural do
Porto, solteiro, representante comercial, filho de Álvaro Pinto e de Isabel
Nogueira Pinto, com 25 anos de idade, residente à Av. Gomes Freire, 740,
aptº 207, Guanabara.
11. ANTONIO RUI NOGUEIRA PINTO, português, natural do Porto,
solteiro, gráfico, filho de Álvaro Pinto e de Maria Isabel Nogueira Pinto,
com 19 anos de idade, residente à Av. Gomes Freire, 740, aptº 207,
Guanabara.
12. MARIA ARMINDA SOL E SILVA, portuguesa, solteira, estudante,
filha de Fernando Gonçalves da Silva, residente em Lins de Vasconcelos,
Travessa Propriá 17, Guanabara.
13. ANTONIO DA SILVA COSTA, brasileiro, natural da Guanabara,
casado, auxiliar de escritório, filho de Antonio da Costa e de Alice da Silva
Costa, com 26 anos de idade, residente em Botafogo, Rua Voluntários da
Pátria, 283, aptº 205, Guanabara.
14. ELISA DA SILVA COSTA, brasileira, solteira, natural da
Guanabara, secretária, filha de Antonio da Costa e Alice da Silva Costa,
com 28 anos de idade, residente em Botafogo, Rua Voluntários da Pátria,
283, aptº 205, Guanabara.
15. ROBERTO DA SILVA COSTA, brasileiro, solteiro, natural da
Guanabara, estudante, filho de Antônio da Costa e Alice da Silva Costa,
com 24 anos de idade, residente em Botafogo, Rua Voluntários da Pátria,
283, aptº 205, Guanabara.
16. CARLOS ALBERTO DA SILVA, brasileiro, solteiro, natural da
Guanabara, estudante, filho de Abel da Silva e Zulmira da Silva Marques,
com 21 anos de idade, residente na Tijuca, Rua Lúcio de Mendonça, 33,
aptº 205, Guanabara.

124
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Pelos fatos a seguir narrados.

Os denunciados são todos implicados num movimento subversivo


anarquista, que tentava a implantação do ANARQUISMO no Brasil,
doutrina essa que segundo o livro “ANARQUISMO, ROTEIRO DE
LIBERTAÇÃO SOCIAL”, pág. 17, de Edgar Leuenroth (fls. 53), preconiza
a implantação de um regime baseado na “DESOBEDIÊNCIA ÀS LEIS”, no
“DESCONHECIMENTO DA AUTORIDADE” e na “QUEDA DO ESTADO”.

Este movimento subversivo anarquista estava ligado com a sua


matriz internacional denominada “C.I.R.A.” — Centro de Pesquisas sobre
o Anarquismo, com sede na Suíça (fls. 113), mas aqui no Brasil enroupava-
se com o nome de “C.E.P.J.O.” — CENTRO DE ESTUDOS PROFESSOR
JOSÉ OITICICA, cuja sede era um autêntico celeiro de material literário
anarquista, conforme Auto de Apreensão de fls. 53/58, 276/277.

O aliciamento para as fileiras desse movimento subversivo era feito


de maneira sub-reptícia, mediante anúncios em que ofereciam aulas
de PSICOLOGIA. Em seguida a essas aulas de psicologia, que eram
ministradas pelo Professor ARNALDO SANT’ANNA os alunos eram
doutrinados para a subversão anárquica (fls. 26, 93, 121, 153, 163, 138,
222).

O “C.E.P.J.O.” — Centro de Estudos Professor José Oiticica, estava


intimamente ligado a um movimento subversivo estudantil denominado
“MEL” — Movimento Estudantil Libertário (fls. 258), havendo fortes indícios
nestes autos de que tal movimento fosse uma ala ou desdobramento
estudantil do “C.E.P.J.O.”, pelo que se pode inferir dos depoimentos de fls.
138, 195, 255, 256, e 204.

O “MEL”, entidade estudantil subversiva, mantinha-se numa linha


de pregação da violência baseada na retaliação — “OLHO POR OLHO,
DENTE POR DENTE” (fls. 258).

O “MEL” redigiu, imprimiu e distribuiu os seguintes panfletos:

“O VERGONHOSO PROBLEMA DO ENSINO”;


“OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE”;
“O ACORDO MEC-USAID”;

125
16
2009

“SE VOCÊ FOR HONESTO, LEIA”;


“CIDADÃO, O SEU VOTO AJUDA OU PREJUDICA A COMUNI-
DADE?”;
“FORA COM ESTA CORJA DE VADIOS” (fls. 276).

Entre outras prédicas de incitamento à desordem e de desacato às


autoridades constituídas do País, contidas no panfleto editado pelo “MEL”,
que se acha às fls. 258, vêem-se as seguintes:

“QUANDO AS HORDAS ASSASSINAS, ÊMULAS DOS CAMPOS


DE CONCENTRAÇÃO NAZISTAS SE DESENCADEIAM IRRACIO-
NALMENTE, QUANDO ATINGEM O PONTO EM QUE QUALQUER
DIÁLOGO É IMPOSSÍVEL, PELA INSANIDADE PERIGOSA DE UMA
ALCATÉIA, SÓ RESTA AOS ESTUDANTES E AOS HOMENS COM
UM MÍNIMO DE DIGNIDADE REVIDAR EM DEFESA DA PRÓPRIA
EXISTÊNCIA COM A POLÍTICA DE “OLHO POR OLHO, DENTE POR
DENTE”.
“CONCLAMAMOS O POVO A QUE EXPULSEM ESTES VAGABUN-
DOS QUE COM O ESTRUME PARDO SE ESPALHAM PELAS RUAS”.
“CONCLAMAMOS O POVO A NÃO ASSINAR O MANIFESTO
DESTA CORJA DE SAFADOS QUE ODEIA DOM HELDER”.
“DESGRAÇADO O PAÍS EM QUE SEUS ESTUDANTES EXIGEM
EM PRAÇA PÚBLICA O DIREITO DE COMER DECENTEMENTE E DE
SENTAR NUMA UNIVERSIDADE”.
“MIL VEZES DESGRAÇADO, PORQUANTO SEUS GOVERNAN-
TES ESCLEROSADOS SÃO CADÁVERES MORAIS”.
“SÓRDIDO O PAÍS EM QUE UM FANTOCHE TRAVESTIDO DO
JAVERT FEROZ IMITA E SUPLANTA AS NAZISTAS DE TRISTE ME-
MÓRIA”.
“INFELIZ O PAÍS QUE TENTA RESOLVER OS PROBLEMAS DO
ENSINO A CUSTA DO CACETETE E DA BALA”.

Dadas as linhas gerais do movimento subversivo denominado


“C.E.P.J.O.” e da ala estudantil denominada “MEL”, passamos a apreciar as
atividades delituosas de cada indiciado:

1. PIETRO MICHELE STEFANO FERRUA


Cidadão italiano, foi um dos fundadores do “C.I.R.A.” Centro de
Pesquisas sobre o Anarquismo, em 1957, na Suíça. Chegou ao Brasil em

126
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

1963, filiando-se imediatamente ao “C.E.P.J.O.”, movimento anarquista


brasileiro que já conhecia na Europa através do jornal “AÇÃO DIRETA”,
que o movimento brasileiro remetia mensalmente para o “C.I.R.A.”, na
Suíça (fls. 113/114).
Confessa-se anarquista, tendo chegado a ser Presidente Honorário
de “C.E.P.J.O.” — Centro de estudos Professor José Oiticica, onde militou
sem interrupções desde o ano de 1963 a 1968 (fls. 113/114).
Contribuiu financeiramente para a aquisição de um sítio em MOGI
DAS CRUZES, Estado de São Paulo, (fls. 113), onde o “C.E.P.J.O.”
planejava fundar uma colônia agrícola em moldes anarquistas (fls. 223).
Em 15 de outubro de 1969, em sua residência sita a Av. Vieira Souto,
490, aptº 202, Ipanema, Guanabara, foi apreendido o material subversivo
constante do Auto de Busca e Apreensão de fls. 103/104.
Por todo o exposto, está denunciado PIETRO MICHELE STEFANO
FERRUA incurso nas sanções do art. 11, 12, 33, nº II e 38, nºs II, III, VII, do
Decreto-Lei nº 314/67, c.c. o art. 53 do Código Penal Militar.

2. IDEAL PERES
Anarquista confesso, Primeiro-Secretário do “C.E.P.J.O.”, foi um dos
elementos de maior atividade dentro desse movimento subversivo. (fls.
222).
Para aliciar novos adeptos para o anarquismo usava dois (2)
cognomes, SERGIO LEITÃO e ANTONIO GOMES, com os quais mantinha
correspondência nos contatos mantidos fora da Guanabara e mesmo no
Exterior, conforme se vê das cartas datadas de 30/09/67, enviadas a Maria
Bueno (fls. 36/46, 277 e 222/226).
Mediante essas correspondências nas quais usava seus cognomes,
conseguiu, em conivência com anarquistas de outros estados da
Federação, aliciar elementos na área estudantil e profissional para as
fileiras do movimento subversivo anarquista, que no Brasil se escondia
sob a denominação de “C.E.P.J.O.” — Centro de Estudos Professor José
Oiticica.
Possuía uma das mais completas bibliotecas, rica em material
subversivo anarquista, com o qual doutrinava os jovens que ingressavam
nas fileiras do “MEL” — Movimento Estudantil Libertário (fls. 258), que era
um departamento ou ala estudantil do “C.E.P.J.O.” (fls. 36/46, 138, 26, 93,
121, 153, 163, 222/226, 195).
Foi um dos redatores do manifesto subversivo de fls. 258, distribuído
por toda a cidade do Rio de Janeiro por volta dos meses de fevereiro e março

127
16
2009

de 1968 (fls.121 e 26) por toda a cidade do Rio de Janeiro e arredores, por
ocasião dos distúrbios que culminaram com a morte do estudante EDISON
LUIZ e o fechamento do Restaurante do Calabouço (fls. 26, 93, 121, 153,
163, 143, 195), manifesto esse que visava a lançar as camadas estudantis
e o povo em geral, contra o Governo mediante a divulgação de notícias
falsas e tendenciosas, as quais, além de promoverem a subversão,
punham em perigo o bom nome, a autoridade moral e o prestígio do Brasil,
não só internamente como, também, no Exterior.
Como se vê do Auto de Busca e Apreensão de fls. 36/46, o denunciado
era um dos maiores importadores de material de propaganda subversiva
anárquica, que utilizava na indigna e criminosa tarefa de aliciar e introduzir
a juventude brasileira nas veredas obscuras, tenebrosas e aviltantes do
crime e nos caminhos tortuosos e sem saída da subversão.
Pregava abertamente o ANARQUISMO em conferências realizadas
no “C.E.P.J.O.” — Centro de Estudos Professor José Oiticica, conforme
se vê, claramente, dos depoimentos (fls.126, 195), sendo que uma das
conferências foi realizada em janeiro ou fevereiro de 1968 (fls. 195).
Militou nas fileiras no movimento subversivo denominado
“C.E.P.J.O.”, desde a sua fundação, em setembro de 1961, até 1969
(fls. 222/226).
Foi membro fundador desse movimento anarquista, Presidente e
Primeiro-Secretário (fls. 222/226), sendo que ultimamente o exerceu em
1968/1969 (fls. 222/226).
Como se vê de todo o processo, era o denunciado um dos expoentes
desse movimento altamente nocivo à Segurança Nacional que tentava
implantar no Brasil o ANARQUISMO, com a sua tríplice e inglória bandeira
filosófica da “DESOBEDIÊNCIA ÀS LEIS”, “DESCONHECIMENTO DA
AUTORIDADE” e “ABOLIÇÃO DO ESTADO E DE QUALQUER PODER
QUE FAÇA LEIS PARA IMPO-LAS AOS OUTROS” “Anarquismo, roteiro
de libertação social, de Edgard Leuenroth, pág.17, (fls. 53).
Assim está o denunciado IDEAL PERES incurso nas sanções dos
art. 11, 12, 14, 33, nos I, II, e III e 38, nºs I, II, III, e VI, do Decreto Lei nº
314/67, c.c. o art. 53, do Código Penal Militar.

3. ANTONIO DA COSTA
Em 1968 o denunciado era o Segundo-Secretário do “C.E.P.J.O.” e
seus filhos, ELISA, ANTONIO e ROBERTO eram membros fundadores e
diretores do “MEL”, ala estudantil do “C.E.P.J.O.” movimento subversivo
responsável pelo manifesto (fls. 258, 126).

128
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

ANTONIO DA COSTA não participava do “MEL” mas sabia e


consentia que seus filhos dele participassem, tendo pleno conhecimento
da feitura do manifesto subversivo (fls. 258, 126), para a qual os seus filhos
colaboraram (fls. 126).
Embora o denunciado tivesse pouca expressão no movimento
subversivo denominado “C.E.P.J.O.” — Centro de estudos Professor José
Oiticica, já caracterizado nesta denúncia, contribuía para a manutenção
(fls. 127) e fazia parte da Diretoria, ocupando o cargo de Secretário (fls.
126), pelo que está incurso nas sanções do art. 12, do Decreto-Lei 314/67,
c.c. o art. 53 do Código Penal Militar.

4. FERNANDO GONÇALVES DA SILVA


Em 1969, o denunciado era o tesoureiro do “C.E.P.J.O.” — Centro
de Estudos Professor José Oiticica, entidade subversiva que difundia o
ANARQUISMO no Brasil, cujas atividades contra a Segurança Nacional
já estão relatadas na introdução desta denúncia.
Participou do movimento por sete (7) anos (fls. 47) e contribuiu
financeiramente para a sua manutenção (fls. 48) de 1962 a 1969.
Segundo se conclui de suas próprias declarações (fls. 47/48),
arrastou a sua própria filha, MARIA ARMINDA SOL E SILVA para a
filosofia anarquista, chegando ela a liderar o movimento denominado
“MEL” — Movimento Estudantil Libertário, ligado ao “C.E.P.J.O.” (fls.
258/259).
Isto posto, está o denunciado FERNANDO GONÇALVES DA SILVA
incurso nas sanções dos art. 12 e 38, nº 1 do Decreto-Lei 314/67, c.c. o
art. 53 do Código Penal Militar.

5. MANOEL DOS SANTOS RAMOS


O denunciado era o 2° Tesoureiro do “C.E.P.J.O.” — Centro de Estudos
Professor José Oiticica, entidade subversiva que difundia o anarquismo no
Brasil, cujas atividades contra a Segurança Nacional já estão relatadas na
introdução desta denúncia.
Em 1960 MANOEL DOS SANTOS RAMOS foi o bibliotecário do
“C.E.P.J.O.” e em 1967 exerceu as funções de Segundo-Tesoureiro (fls.
255).
Pelo seu depoimento de fls. 255/257, vê-se claramente a ligação
direta entre o “C.E.P.J.O.” e seu departamento ou ala estudantil “MEL”,
pois o denunciado confessa que: “os elementos do ‘MEL’ se reuniam
com a Diretoria para tratar de assuntos financeiros” o que demonstra,

129
16
2009

claramente, que o “C.E.P.J.O.” financia a subversão entre os estudantes,


através do “MEL”.
Assim, por ter participado da Diretoria do movimento subversivo
anarquista, como membro de sua Diretoria, está o denunciado, MANOEL DOS
SANTOS RAMOS incurso nas penas do art. 12 do Decreto-Lei nº 314/67, c.c.
o art. 53 do Código Penal Militar.

6. PAULO FERNANDES DA SILVA


O denunciado era o Vice-Presidente do “C.E.P.J.O.” — Centro de estudos
Professor José Oiticica, entidade subversiva que difundia o ANARQUISMO no
Brasil, cujas atividades, contrárias à Segurança Nacional já estão relatadas na
introdução desta denúncia. Participou da Diretoria durante o 1° semestre de
1968 (fls. 204).
Tomou conhecimento do manifesto subversivo de fls. 258, que
confirma ter sido redigido na sede do “C.E.P.J.O.”, pelos estudantes do
“MEL” (fls. 204).
Isto posto, por ter participado da diretoria deste movimento subversivo e
consentido na redação, preparação e distribuição do manifesto de fls. 258, está
o denunciado, PAULO FERNANDES DA SILVA, incurso nas sanções dos art.
12 e 38, nº 1, do Decreto-Lei nº 314/67, c.c. o art. 53 do Código Penal Militar.

7. ANTONIO FRANCISCO CORREIA


O denunciado era o Bibliotecário do “C.E.P.J.O.” — Centro de Estudos
Professor José Oiticica, entidade que difundia o ANARQUISMO no Brasil, (fls.
217), nos anos de 1968-69.
Embora tenha externado sua opinião contrária à existência do “MEL”
— Movimento Estudantil Libertário (fls. 217) e apenas aceitado o cargo de
Bibliotecário, sem exercê-lo, por falta de tempo (fls. 217), está da mesma forma
incurso nas sanções do art. 1 do Decreto-Lei 314/67, c.c. o art. 53 do Código
Penal Militar.

8. ROBERTO BARRETO PEDROSO NEVES


Conforme se vê de suas declarações de fls. 148, é anarquista confesso,
desde 16 anos de idade.
Estava intimamente ligado ao “C.E.P.J.O.” — em cuja sede proferia
conferências, frequentando-a de 1961 a 1969 (fls. 148).
Embora não participasse da Diretoria do “C.E.P.J.O.”, era elemento
que dava inteiro apoio a essa entidade, cuja sede sempre frequentava e
cujas atividades dava apoio franco. Era conhecedor das finalidades desse

130
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

movimento, pelo que está incurso nas sanções dos art. 12 e 38 nº VII do
Decreto-Lei nº 314/67, c.c. o art. 53 do Código Penal Militar.

9. ELI BRIARÉU DE OLIVEIRA


Era frequentador das reuniões do “C.E.P.J.O.” — Centro de estudos
Professor José Oiticica, entidade subversiva cujas atividades contrárias a
Segurança Nacional já estão relatadas na introdução a esta denúncia (fls.
195/196) de 1967 a 1968.
Convidou colegas para assistir as conferências pronunciadas no
“C.E.P.J.O.” (fls. 196) em fevereiro de 1968.
Isto posto, está o denunciado ELI BRIAREU DE OLIVEIRA incurso nas
sanções do art. 38, nº III, com a agravante do nº I, do art. 43 do Decreto-Lei nº
314/67, c.c. o art. 53 do Código Penal Militar.

10. MARIO ROGÉRIO NOGUEIRA PINTO


11. ANTONIO RUI NOGUEIRA PINTO
Os indiciados acima citados estavam ligados ao “MEL” — Movimento
Estudantil Libertário (fls. 258) em 1968 como consta dos autos, sua participação
limitou-se à distribuição dos panfletos subversivos redigidos e impressos por
aquela entidade estudantil subversiva, pelo que estão incursos nas sanções
do art. 38, nº II e VII e 14 do Decreto-Lei nº 314/67, c.c. o art. 53 do Código
Penal Militar.

12. Maria Arminda Sol e Silva (fls. 26)


13. ANTONIO DA SILVA COSTA (fls. 158)
14. ELISA DA SILVA COSTA (fls. 121)
15. ROBERTO DA SILVA COSTA (fls. 163)
16. CARLOS ALBERTO DA SILVA (fls. 153 e 96)
Estes denunciados eram todos fundadores ou integrantes do “MEL” —
Movimento Estudantil Libertário (fls. 258) de março de 1968 a setembro de
1969 (fls. 26, 121, 158), movimento esse que redigiu, imprimiu e distribuiu
o manifesto subversivo de fls. 258, que pregava a violência na base da
retaliação — “OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE”, além de ser aberta
e grosseiramente ofensiva às autoridades constituídas, esses denunciados
foram, ainda, os autores da distribuição das cópias de dito manifesto de fls.
258 (fls. 26, 121, 153, 163, 158), realizada nos meses de fevereiro e março
de 1968.
Estão assim os denunciados, MARIA ARMINDA SOL E SILVA,
ANTONIO DA SILVA COSTA, ELISA DA SILVA COSTA, ROBERTO DA

131
16
2009

SILVA COSTA E CARLOS ALBERTO DA SILVA incursos nas sanções dos


art. 33, nºs I e III e Parágrafo único, e art. 38, nºs I e II tudo do Decreto-Lei
nº 314/67, c.c. o art. 53 do Código Penal Militar.
Isto posto, requer o Ministério Publico seja a presente denúncia
autuada e recebida, citando-se os acusados para se verem processar e
julgar, intimadas as testemunhas abaixo arroladas, tudo na forma da Lei.

TESTEMUNHAS:

PAULO ROBERTO DA COSTA VILLALBA ALVIM (fls. 200)


TANIA ALVES PINHEIRO (fls. 76)
PEDRO CARLOS ALVES PINHEIRO (fls. 93)

Rio de Janeiro, Guanabara, 16 de dezembro de 1970.

JOSÉ MANES LEITÃO


Procurador da Justiça Militar

Documento 26
Carta de Ideal Peres

Carta não datada nem assinada, de Ideal Peres a Pietro


Ferrua, então já nos Estados Unidos, dando notícias do
processo.

Com exceção dele, do 8° e 16° denunciados, o marido de R.M.12


defende os 15 restantes.
Todos já foram interrogados e quanto a ele F.13 foi declarado réu
revel.
No dia 23 será iniciada a prova de acusação e ouvidas as testemunhas
arroladas no fim da denúncia.
O Lino14 considera bom o processo até aqui. A ele F. foi nomeado
defensor dativo.
Após a prova de acusação serão ouvidas as testemunhas de defesa
e depois de oferecidas as alegações finais o processo irá a julgamento a
1ª instância, provavelmente até o fim de junho.
Havendo absolvição haverá recurso obrigatório15 do promotor para o
Superior Tribunal Militar por força da nova lei de segurança nº 898/69.

132
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Documento 27
Poder Judiciário
Justiça Militar
1ª Auditoria da Aeronáutica da 1ª C.J.M.16

MANDADO DE CITAÇÃO

Eu, Dr. JOÃO NUNES DAS NEVES, Auditor substituto da 1ª Auditoria


da Aeronáutica da 1ª C.J.M., em exercício, em virtude da Lei, etc.
MANDO ao Oficial de Justiça deste Juízo a quem este for apresentado,
indo por mim assinado de conformidade com o art. 277, inciso I, do Código
de Processo Penal Militar que se dirija à Av. Vieira Souto, 490, aptº 202,
Ipanema — GB, e ai cite PIETRO MICHELE STEFANO FERRUA [segue
a lista dos outros acusados previamente mencionados]17 para
comparecerem todos à sede deste Juízo, sito à Av. Churchill n°. 157, 4°
andar, neste Estado da Guanabara, no dia 22 (vinte e dois) de Janeiro de
1971, às 13 horas a fim de se verem processar e julgar como incursos em
diversos dispositivos do Código Penal Militar e do Decreto-Lei n°. 314/67,
de conformidade com a denúncia oferecida pelo Dr. Procurador, anexo por
cópia.
Dado e passado no Cartório da 1ª Auditoria da Aeronáutica da 1ª
Circunscrição Judiciária Militar, com sede no Estado da Guanabara, aos 7
dias do mês de Janeiro do ano de mil novecentos e setenta e um.

[assinatura]
Eu, José Marinho de Mattos, escrivão que o fiz datilografar
e assino.

[assinatura]
JOÃO NUNES DAS NEVES, substituto de Auditor, em exercício.

Documento 28
Poder Judiciário
Justiça Militar
1ª Auditoria da Aeronáutica da 1ª C.J.M.

133
16
2009

SENTENÇA

Proc. n° 58/69.
Com base em IPM,18 instaurado no COMTA,19 o Dr. Procurador em
exercício ofereceu a denúncia de fls. 2/2J contra:

1. PIETRO MICHELE STEFANO FERRUA


[segue a lista dos outros acusados, já mencionados]
Pelos fatos a seguir narrados:
Narra o libelo inicial, serem os acusados seriamente implicados num
movimento subversivo em molde anarquista, que tentava a implantação do
regime anarquista no Brasil com base na doutrina filosófica preconizada
por Edgard Leuenroth em seu livro “Anarquismo, roteiro de libertação
social” que preconiza e defende como regime político ideal e baseado
em desobediência às leis, no desconhecimento do poder de autoridade
e a queda do Estado.
Refere, ainda, a denúncia que o citado movimento anarquista no
Brasil, mantinha como centro nuclear de catequese, o “MEL — Movimento
Estudantil Libertário” que era entidade subversiva que funcionava junto
ao Centro de Estudos José Oiticica — “C.E.P.J.O.”, com sede à Av.
Almirante Barroso, como filial da “C.I.R.A.” — Centro de Pesquisa sobre
o Anarquismo”com sede na Suíça.
Firmando seu entendimento pessoal resultante na análise dos
elementos trazidos aos autos na fase do inquérito, o M.P. aponta as
atividades subversivas que foram praticadas pelos denunciados com
vínculo ao C.E.P.J.O., inclusive o aliciamento de estudantes para a
pregação da violência através dos panfletos ali redigidos e impressos com
dizeres ou legendas contumeliosas contra as autoridades constituídas e
frases de incitamento à desordem.
Recebida a denúncia no despacho formal de fls. 305 [palavra
ilegível] a citação pessoal dos acusados, exceto a de Pietro Michele
Stefano Ferrua, que foi citado pelos editais de fls. 383, 245 ut 248, 362
ut 372, 383 e 387 ut 395 onde negam, formalmente as imputações que
lhes são atribuídas.
As cópias das alterações de SL — Eli Briareu vieram a fls. 344 e
os antecedentes criminais dos civis espelhando a situação de primários,
encontram-se às fls. 375, 380, 382, 385 e 386.
Os depoimentos das testemunhas numerárias foram prestados
às fls. 403, 405, e 454, enquanto os de defesa também colhidos às fls.

134
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

481/482, 487, 491/495, 500 e 501, seguindo-se a juntada, ainda pela


defesa, dos documentos oferecidos às fls. 507 ut 588.
Nas alegações finais o M.P. admitia a fragilidade da prova contra
Roberto Barreto Pedroso Neves, Mário Rogério Nogueira Pinto, Antonio
Ruy Nogueira Pinto, Maria Arminda Sol e Silva, Antonio da Silva Costa,
Eliza da Silva Costa, Roberto da Silva Costa e Carlos Alberto da Silva e
pediu que o Conselho fizesse Justiça.
Quanto a Antonio da Costa, Fernando Gonçalves, Manoel dos
Santos Ramos, Paulo Fernandes da Silva, Antonio Francisco Correia e
Eli Briareu de Oliveira, o M.P. também admitiu inexistir prova suficiente
contra esses acusados e pediu a absolvição.
Com referência ao réu Pietro Michele foi pedida a desclassificação
do crime para o art. 12 da Lei 314/67 e Ideal Peres manteve a acusação
nos art. 11, 12, 14 e 29 da mesma Lei de Segurança.
A defesa, por seu turno, postulou a absolvição dos acusados
sustentando a ausência de provas.
Na sessão destinada ao julgamento, as partes sustentaram
oralmente as teses a que se propuseram defender consubstanciadas
nas respectivas alegações finais, tudo como consta relatado na
respectiva Ata.
Isto posto, a prova colhida na instrução provisória não obstante ter
servido de fundamento para a denúncia foi infirmada perante o Conselho
na parte mais objetiva e substancial, não fornecendo ao Juiz os elementos
necessários e indispensáveis para o reconhecimento da culpabilidade
dos acusados e da autoria.
As buscas levadas a efeito nas diligências procedidas pelo
Encarregado do Inquérito na sede do Centro de Estudos José Oiticica
e nas residências dos diretores dessa Entidade resultaram apenas na
apreensão de livros de divulgação doutrinária e de matéria didática,
revistas, documentos particulares com anotações cuja posse não
constitui crime. Por outro lado, há uma afirmação contraditória no relatório
do Encarregado com referência ao panfleto junto às fls. 258, em cópia
xerox do original datilografado, anexado por termo nos autos datado de
16.11.69 ao passo que no termo de juntada lavrado posteriormente, em
28.11.69 às fls. 276, faz referência à juntada de “um envelope contendo
panfletos”, originais esses que não constam junto aos autos.
Também não ficou devidamente apurado por quem foram distribuídos
os panfletos, local e a data, que é condição indispensável da existência
do crime.

135
16
2009

Na instrução criminal o M.P. não conseguiu confirmar o libelo inicial,


ao passo que a defesa ofereceu robusta prova testemunhal e documental
de sorte a anular as imputações e a provar a inocência dos acusados.
Em suma: nenhuma das imputações atribuídas na denúncia resultaram
suficientemente provadas na fase judicial. E, assim reconhecendo, o
Conselho Permanente da Justiça da Primeira Auditoria da Aeronáutica
da 1ª C.J.M., por unanimidade de votos, julga improcedente a denúncia e
por insuficiência de provas absolve os acusados.
Registre-se, comunique-se e dê-se ciência.
Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1971.

[assinatura]
JOÃO VICENTE CARLOS VERCESI, Presidente.

[assinatura]
LUIS HENRIQUES, CAP. INT., Juiz.

[assinatura]
LUIZ CARLOS CASSANO, 1° TEN. DENT., Juiz.

Documento 29
Recorte de jornal sobre a absolvição dos anarquistas

Recorte de um jornal diário carioca (provavelmente o


Jornal do Brasil) sem data (prov. 1° de dezembro de 1971).

Médico, professor e 14 estudantes são absolvidos da denúncia de


subversão

Um médico, um professor e 14 estudantes acusados de subversão no


Centro de Estudos Professor José Oiticica, entre os anos de 1968 e 1969
foram absolvidos ontem pelo C.J.M. da 1ª Auditoria da Aeronáutica, que
considerou improcedente a denúncia.
A denúncia foi feita pelo Promotor Gastão dos Santos Ribeiro e a
defesa pelos advogados Lino Machado Filho e Marina Flora Ferreira.
Pietro Michele Stefano20 e Ideal Peres foram respectivamente o professor
e o médico absolvidos.

136
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

Os estudantes
São os seguintes os estudantes absolvidos pela 1ª Auditoria da
Aeronáutica, tendo como juiz auditor o Sr. João Nunes das Neves: Antônio
da Costa, Fernando Gonçalves da Silva, Manuel dos Santos Rana,21 Paulo
Fernandes da Silva e Antonio Francisco Correia.
E mais: Roberto Barreto Pedroso Neves, Eli Briareau22 de Oliveira,
Mário Rogério Nogueira Pinto, Antônio Rui Nogueira, Maria Arminda Sol
e Silva, Antônio da Silva Costa, Roberto da Silva Costa e Carlos Roberto
da Silva.

NB. Em data 2 de dezembro uma notícia parecida foi


publicada no diário carioca Correio da Manhã, aqui não
reproduzida devido ao fato que nosso recorte está mutilado
e portanto ilegível.

DOCUMENTO 30
Apêndice. Cartaz do Curso sobre Anarquismo em PDF23

DOCUMENTO EXTRA24
Última hora. Depoimentos de Regina Helena Machado

“Sim, estive visitando a biblioteca do C.I.R.A. em Lausanne, e não


escrevi nada, na época, sobre aquela visita…”
“Gostei imensamente do texto que você me enviou, importante para o
resgate de parte de uma história que não devemos deixar se apagar…”
“Com relação à minha visita ao C.I.R.A., em Lausanne, que realmente
empreendi no início de 1969… Foi uma visita rápida, porém muito
acolhedora, na qual me senti muito à vontade não apenas com o espaço
físico, com as pessoas, mas sobretudo com os ideais que as nutriam.
Conforme bem lembrado por você, aderi e colaborei com o C.I.R.A.,
movida pela identidade com ideais anarquistas, sobretudo mobilizada
por minha verve de pesquisadora, que sempre me marcou. É para mim
muito estimulante rever esse periodo de minha vida hoje, passados
quase quarenta anos, em um momento em que revejo alguma de minhas
práticas e me preparo para me lançar de cabeça em um projeto de direitos
humanos, fundado no princípio basilar da igualdade!”…

137
16
2009

… “a importância que teve para minha formação política e de


cidadania esses meus encontros com o anarquismo, a começar por
você… Depois, outras pessoas como a Roberto das Neves, companheiros
suiços… [Stoyadin?] e sua maravilhosa esposa [Marie-Christine],
cujo nome também esqueci… Esqueci as formas, porém os conteúdos
ficaram gravados em meu ser…”
“A única informação mais objetiva que encontrei, nessa busca por
anotações e documentos, é meu número de inscrição no C.I.R.A. — 253
de 1968. Tenho cópia da carteirinha até hoje!”
“Obs.: à margem, lembro-me dos muitos encontros que mantive com
Roberto das Neves, no Rio de Janeiro, para quem fiz a tradução de um
livro — Amor Plural, de Han Ryner.”

Nota de Pietro Ferrua: a numeração da carteira à qual a


Regina Helena se refere é a do C.I.R.A.-Internacional para o
ano indicado, pois o C.I.R.A.-Brasil nunca chegou a ter tantos
membros. A referência ao Roberto das Neves é interessante
pois eu não me lembrava desse encargo. O Roberto visitou
a sede do Centro Brasileiro de Estudos Internacionais, no
Colégio Brasileiro de Almeida, em Ipanema, em 1968, devido
ao prefácio que ele tinha me encomendado para o livro de
Daniel Guérin, Anarquismo. Numa dessas visitas conheceu a
Regina, outros encontros tomaram provavelmente lugar na
sede da Editora Germinal, no Centro.

Notas
1
A segunda parte do arquivo do C.I.R.A. inicia-se pelo documento 17:
“Temário da primeira Assembleia Geral do C.I.R.A.-Brasil em 30/07/1969”. Os
documentos anteriores encontram-se disponíveis na Revista Verve 15. (N. E.)
2
Centro de Estudos Professor José Oiticica. (N. E.)
3
Commission de Relations Internationales Anarchistes (C.R.I.A.), Secrétariat
Provisoire aux Relations Internationales Anarchistes (S.P.R.I.). (N. E.)
4
Biblioteca Anarquista Internacional Americana. (N. E.)
5
Movimento Estudantil Libertário. (N. E.)

138
verve
Os arquivistas: C.I.R.A. Brasil [2ª parte]

6
Federação Anarquista Italiana. (N. E.)
7
Federação de Jovens Anarquistas Italianos. (N. E.)
8
Comissión de Relations de l’Internationale de Fédération Anarchistes. (N. E.)
9
Se não houver novas inscrições ou aumento de anuidade.
10
Nos documentos a seguir: 22; 23; 24; 25; 27 e 28, optamos por manter a
formatação do documento policial. (N. E.)
11
Série de acordos entre o Ministério da Educação (MEC) e United States
Agency for International Development (USAID) para a reforma do ensino
brasileiro na década de 1960. (N. E.)
12
Rosa Machado, secretária da Aliança Francesa, esposa do advogado.
13
Pietro Ferrua.
14
Lino Machado, advogado da maioria dos acusados.
15
Nenhuma informação consta nos documentos em relação ao recurso
obrigatório contra a absolvição em virtude da Lei de Segurança acima
mencionada.
16
Circunscrição Judiciária Militar. (N. E.)
17
A lista mencionada corresponde a divulgada no documento 25. (N. E.)
18
Inquérito Policial Militar. (N. E.)
19
Comando de Transporte Aéreo. (N. E.)
20
Ferrua.
21
Ramos.
22
Briareu.
23
O cartaz não consta no interior dos documentos. (N. E.)
24
Este documento não consta na lista original. Foi acrescido posteriormente
por Pietro Ferrua. (N. E.)

139
16
2009

RESUMO
Segunda parte do ensaio arquivista de Pietro Ferrua sobre a
existência da seção brasileira do C.I.R.A. (Centro Internacional
de Pesquisas sobre o Anarquismo), composta por registros do
ano de 1969 até o encerramento de suas atividades em meio a
ditadura em 1971. Os documentos reunidos trazem uma breve
história da prática cotidiana de anarquistas, seus deslocamen-
tos ultrapassando fronteiras territoriais e suas lutas contra a
ditadura militar no Brasil.

Palavras-chave: cultura anarquista, C.I.R.A., libertarismos.

ABSTRACT
Second part of Pietro Ferrua’s archivist essay is about the
existence of C.I.R.A.’s (International Research Center about
Anarchism) Brazilian section. It is composed of records from
1969 to its locking up activities of the dictatorship in 1971.
These documents show a brief history of the anarchists’ daily
practice: their dislocation, exceeding territorial limits, and their
struggles against the military dictatorship in Brazil.

Keywords: anarchist culture, C.I.R.A., libertarisms.

Indicado para publicação em 2 de junho de 2008.

140
verve
A iniciativa da cooperativa Cinéma du Peuple

a iniciativa da cooperativa
cinéma du peuple
0 jarry*
eric

“Eu digo, você sabe que você deveria fazer um filme?”


“Eu fiz, Les Misères de l’aiguille.”
“Ah, e sobre o que é?”
“É um curta metragem produzido por uma cooperativa
conhecida como o ‘Cinéma du Peuple’.”
“É mesmo? Eu nunca ouvi falar a respeito.”
“É claro que não! É um grupo de artistas libertários
encorajados por Sébastien Faure e Jean Grave. Os fil-
mes são feitos a serviço da causa operária e são exibidos
nas Maisons du peuple e nos encontros do sindicato.”
“Mas o que você está fazendo no meio de todos esses
anarquistas?”
“Você se esquece que eu sou a filha de Jacques
Roques, o fundador do L’Idéal social, o primeiro jornal
escrito inteiramente por uma mulher.”
“Ah sim! Agora eu me lembro: igualdade sexual, votos
para mulheres, toda a coisa das sufragistas!”

* Escritor anarquista francês do Le Monde Libertaire.

verve, 16: 141-149, 2009


141
16
2009

“Venha, Monsieur Navarre. A razão pela qual eu fui


atrás do meu certificado quando eu tinha quinze anos foi
para que pudesse confrontar misóginos como você!”

Este diálogo imaginário entre os atores Musidora e


Navarre, retirado do filme Musidora de 1973, foi o jeito
pelo qual Jean-Christophe Averty introduziu Musidora
ao cinema.
Por alguns meses em 1913 e 1914, o Cinéma du
Peuple representou uma ferramenta de propaganda no-
velística para os libertários, o primeiro uso militante do
recém nascido cinema. Completamente esquecido pelos
anarquistas, incluindo os seus fundadores, ele é men-
cionado apenas por alguns historiadores do cinema,
como Sadoul. O artigo de Laurent Mandoni (“1913 na
França”) na revista 1985 e o escrito de Tangui Perron
no Le Mouvement social (nº 172) ajudaram a reviver sua
memória.
No começo, os anarquistas foram cautelosos com
o cinema. Não teriam as forças da lei e da ordem
utilizado o cinema para identificar os rebeldes durante
as lutas operárias? Uma das primeiras pessoas que o
utilizou com o propósito de projeção foi o anarquista
de Marselha Gustave Cauvin. Suas campanhas anti-
álcool, de controle de natalidade, e antimilitarista foram
atentamente monitoradas pela polícia. Temos aqui a
evidência de Jean Clandri como relatado por Henry
Poulaille no Mon ami Calandri:
“Meu amigo Gustave Cauvin foi o orador oficial e eu
fui o seu assistente determinado para fazer os arranjos
das suas palestras ilustradas. O meu papel era trazer
utensílios da estação ferroviária suburbana mais pró-
xima para a sala de palestras. Os utensílios consistiam
em — além do projetor — uma garrafa grande de gás
acetileno para projetar os filmes, pois a eletricidade ain-
da tinha que ser retirada do gás da cidade, e depois, eu
girava o cabo da manivela para avançar os slides con-

142
verve
A iniciativa da cooperativa Cinéma du Peuple

forme Cauvin discursava. Nós tinhamos viajado prati-


camente por toda Paris com aquilo e depois foi o mesmo
em Lyon.”
Em 1913, Paris tinha aproximadamente 200 cinemas
com um milhão de espectadores por ano. O congresso
da Federação Revolucionária Anarco-Comunista acon-
teceu na Maison des syndiqués, Rua Cambronne, 18,
Paris, nos dias 15, 16 e 17 de agosto de 1913. Um me-
morando foi feito no dia 18 de agosto pela polícia:
“Na conclusão do congresso anarco-comunista, foi
anunciado que um comitê seria formado com a finalida-
de de assegurar uma câmera filmadora para os próposi-
tos da propaganda anarquista.”
O Cinéma du Peuple, uma cooperativa de responsa-
bilidade limitada com capital e recursos pessoais varia-
dos, foi formalmente estabelecido frente a um notário no
dia 28 de outubro de 1913. O artigo 6 do seu estatuto
de fundação revela os seus princípios libertários: a em-
presa evitaria toda atividade e propaganda eleitoral; a
nenhum dos membros seria permitido usar seu nome
ou sua sede para tentar se eleger, sob pena de expulsão.
A companhia se esforçaria para aprimorar o nível inte-
lectual das pessoas. Deveria manter-se em comunhão
intelectual com quaisquer seções do proletariado que
tomassem posição baseada na luta de classes e cujo ob-
jetivo fosse acabar com a escravidão do salário por meio
de uma transformação econômica da sociedade.
Os fundadores eram quase todos libertários:
Sébastien Faure (fundador do Le Libertaire), Jean
Grave (administrador do Les Temps nouveaux), Pierre
Martin (membro da equipe editorial do Le Libertaire),
André Girard (editor do Les Temps nouveaux), Charles
Ange Laisant (matemático anarquista), Gustave
Cauvin (já mencionado), Robert Guérard (compositor
revolucionário), Félix Chevalier (cabelereiro), Jane
Morand, Henriette Tilly, Emile Rousset, Paul Benoist,

143
16
2009

Louis Oustry (advogado). Yves-Marie Bidamant (ativista


do sindicato ferroviário) tornou-se seu secretário.
O trabalho do Cinéma du Peuple ficou conhecido
principalmente por meio dos artigos que o comitê
dirigente havia publicado no Le Libertaire, La Guerre
Sociale, Les Temps nouveaux e, acima de tudo, La
Bataille syndicaliste, que era um jornal diário. Eis aqui
um dos mais interessantes artigos, um resumo trazido
pelo Le Libertaire em 30 de maio de 1914:

“Uma iniciativa digna de apoio


Há alguns meses, quando o Cinéma du Peuple anun-
ciou sua inauguração ao público, um único grito se deu:
‘Não outra iniciativa nati morta!’
Na realidade, os militantes já estavam fartos de tais
iniciativas que acabavam em um final desastroso. De
fato, por que apoiar uma iniciativa que nós sabemos
estar condenada ao fracasso? Esta é, no entanto, uma
tentativa que parece desmascarar os profetas do apo-
calipse.
O Cinéma du Peuple, fundado há cerca de oito me-
ses, vive! E, melhor ainda, pretende crescer! Lançado
nesse mundo em 28 de outubro de 1913, com um ca-
pital de 1.000 francos, sua assembleia geral, em 17 de
maio de 1914, já havia elevado o seu capital para 3.000
francos distribuindo 600 ações a 50 francos por vez. E
você sabe o que o Cinéma du Peuple fez com este inicio
modesto e escassos recursos?
Para começar, nós temos o Les Misères del’aiguille,
um emocionante drama que mostra uma mulher lidan-
do com as dificuldades da vida, uma mulher que é salva
graças à solidariedade dos trabalhadores.
Depois temos o La Commune de 18 a 28 março de
1871, um filme exibido com o sucesso que todos nós co-

144
verve
A iniciativa da cooperativa Cinéma du Peuple

nhecemos no Palais des Fêtes no final do mês de março


deste ano.
Finalmente, temos o Le Vieux Docker e Victimes des
exploiteurs, dois dramas altamente incisivos que trazem
um vislumbre da tristeza da vida de dois trabalhadores às
telas. O Cinéma du Peuple filmou o funeral de Pressensé.
Nenhum cinema burguês enviou um operador de câmera
para filmar os ritos funerários daquele grande socialista e
homem de bem.
Desde sua inauguração, o Cinéma du Peuple impri-
miu 895 metros de rolos de filme. Ele tem corresponden-
tes na Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Itália, América
do Norte e Havana. Esta é uma iniciativa que está no
caminho para se tornar internacional.
Vários roteiros já estão prontos para serem grava-
dos. Francisco Ferrer! O título será uma chamada para
rememorar a esplêndida vida de Ferrer e a terrível tra-
gédia de Montjuich. O fundador da Escola Moderna de
Barcelona será glorificado nas telas para que gerações
possam se lembrar do homem que foi morto a tiros pela
intolerância religiosa.
Biribi cobre o caso Aernoult-Rousset que deverá ser
reconstituído como uma projeção precisa e tocante,
um drama no qual um trabalhador pode se arrepiar
com a visão das torturas infligidas a um homem de
sua classe (...).
Nada disso pode ser alcançado sem dinheiro — no
encontro de 17 de maio, a assembleia geral decidiu
lançar uma quantidade de bônus de empréstimo de 5
francos, reembolsável por meio de um sorteio a ser feito
depois de julho de 1915.
O comitê diretivo, que tem um mandato para pros-
seguir com a reprodução desses filmes para que eles
possam ser oferecidos ao público a partir do começo do
outono, acredita que sua convocação será ouvida e que
os ‘bonus de empréstimo’ estarão em constante circula-

145
16
2009

ção entre grupos de vanguarda e um número de perso-


nalidades afinadas com os empenhos educacionais do
Cinéma du Peuple.
Demanda que organizações e cidadãos façam o que
estiver a seu alcance para adquirir estes bonus ou tê-
los adquiridos por pessoas de sua órbita. É uma boa
estratégia de propaganda para assegurar que o cinema
do povo possa continuar com o seu bom trabalho.
Que nós possamos ajudar o Cinéma du Peuple a ofe-
recer um antídoto aos cinemas decadentes, que tanto
na cidade quanto no interior, estimulam com suas pro-
duções prejudiciais uma propaganda que embrutece o
trabalhador e a classe camponesa.
Comitê diretivo.”

A sede do Cinéma du Peuple, localizada na Rua


Pouchet, 67, no 17º distrito de Paris foi um dos grandes
salões da CGT conhecido como Maison des syndiqués.
Construído em 1909 por um grupo de comerciantes,
suas paredes internas foram cobertas com afrescos por
Jules Granjouan e glorificavam o proletariado. Uma
sala de projeção com capacidade para 600 lugares foi
construída no segundo andar.
Gustave Cauvin alugou seu próprio equipamento de
projeção ao Cinéma du Peuple. Para a câmera e seus
operadores foram usados recursos da empresa Filmes
Rápidos de Bernard Natan, com sede na Rua Ordener,
6, no 18º distrito. No final de 1920, Natan formou uma
aliança com Pathé (que se tornou a partir de então
Pathé-Natan), mas a crise de 1929 trouxe problemas
para a empresa, que possuía subsidiárias nos EUA.
Gustave Cauvin foi indevidamente acusado, preso, e
por ser de origem judia, foi entregue aos nazistas pela
administração de Pétain, morrendo um pouco depois em
um campo de concentração.

146
verve
A iniciativa da cooperativa Cinéma du Peuple

O operador de câmera de Natan teve ajuda de Henri


Sirolle, secretário dos ferroviários anarquistas, que trei-
nou para ser o operador do Cinéma du Peuple.
Bidamant recebeu uma grande quantidade de cor-
respondências e se tornou o operador fixo com salário
de 100 francos por mês. Um italiano anônimo enviou
10.000 francos. Robert Guérard cedeu os direitos auto-
rais de suas canções ao Cinéma du Peuple. Em março
de 1914, o aluguel dos filmes rendeu 600 francos. Uma
subsidiária do Cinéma du Peuple foi aberta em Amiens.
Havia planos para uma sequência do filme Les Temps
Nouveaux 1895-1914 (900 edições) editada pela Comuna
Jean Grave, mas o seu lançamento foi adiado até que
o Cinéma du Peuple pagasse 500 francos a Natan, que
filmou a primeira parte.
Os esforços frenéticos da cooperativa pararam apenas
com a Primeira Guerra Mundial, que atrapalhou os seus
planos. Esse era um plano, publicado no La Bataille
syndicaliste em março de 1914:
“O Cinéma du Peuple lançaria um filme sobre a pro-
dução do La Bataille syndicaliste, do começo ao fim: ad-
ministração, edição, impressão, etc. Quanta gente que
não sabe nada sobre a produção de um jornal diário
pode estar interessada e quantos benefícios também
podem acrescer para o próprio La Bataille syndicaliste
de uma propaganda de cinema tão moderna! A produ-
ção de um filme como esse é cara e nós sabemos que o
Cinéma du Peuple não é abastado! Não mais do que La
Bataille syndicaliste. No entanto, a ideia tem apoio e nós
devemos chegar a um arranjo e preparar o trabalho para
tornar real esta proposta interessante.
No que diz respeito ao Misères de l’aiguille (alguns
trechos do qual seria cedido a Cinémathèque français),
Armand Guerra lista um detalhe muito interessante:
entre algumas cenas bem admiráveis, há uma locação
dentro de uma galeria de Paris com os fundadores do
Cinéma du Peuple atuando. A iniciativa não foi sem

147
16
2009

emoção. Armand Guerra relata a primeira cena de seu


filme La Commune no Palais de Fêtes na Rue Saint-Martin
no dia 18 de março de 1914:
“O vasto salão encheu até superlotar. Mais de 2.000
pessoas estavam presentes na exibição (...). O público in-
cluiu uma verdadeira legião de idosos que combateram
pela Commune, que são, e permanecerão sendo, revolu-
cionários até a morte, apesar de suas idades avançadas,
porque eles ainda carregam dentro de si a imperecível
inspiração da luta nas barricadas. Que imagem tocante
são esses velhos Communards ocupando os lugares na
primeira fila do salão, todos aconchegados juntos, com
seus cabelos brancos e seus traços enrijecidos pelas im-
placáveis rugas da velhice. Seus nomes circulam pelas
bocas no aconchegante amontoado de espectadores, e
quando a primeira leva de aplausos ecoa pelo salão, es-
ses heróis da revolução expressam a nós sua gratidão,
seus olhos cheios de lágrimas, lágrimas de consolo por
ver como, ainda hoje, as pessoas de Paris lembram-se
daqueles que lutaram pela liberdade e assistiram a um
número incontável de seus companheiros combatentes
morrerem ao lado deles, abatidos pelas balas dos solda-
dos... Será que essas mesmas pessoas que os admiram
teriam a capacidade de imitá-los?”
Entre os filmes entregues à Cinemathèque français,
existe um que foi um lançamento mundial. Algumas ima-
gens breves, silenciosas, gravadas durante o congresso
da CNT em Madrid em 1931. E nelas nós conseguimos
distinguir os rostos de Rudolf Rocker, Augustin Souchy,
Valeriano Orobón Fernández, Diego Abad de Santillán,
Albert de Jong, Albert Jensen. Um que não deve ser es-
quecido!

Do Le Monde libertaire (Paris) 27/09/2001.1

Tradução do inglês por Ana Salles.

148
verve
A iniciativa da cooperativa Cinéma du Peuple

Notas
1
Publicado também em Arena: on anarchism cinema nº1. Disponível em: http://
www.christiebooks.com. Também em: http://www.nu-sol.org.

RESUMO
O Cinéma du Peuple representou uma importante ferramen-
ta de propaganda novelística para os libertários no início do
século XX. Entre os seus fundadores encontram-se Sébastien
Faure, Jean Grave, Pierre Martin e André Girard. O trabalho
do Cinéma du Peuple ficou conhecido principalmente por meio
dos artigos publicados no Le Libertaire, La Guerre Sociale, Les
Temps nouveaux, e La Bataille syndicaliste.

Palavras-chave: Cinéma du Peuple, anarquia, cinema anarquista.

ABSTRACT
The Cinéma du Peuple represented a novel propaganda weapon
for libertarians in the beginning of the 20th century. Among its
founders we find Sébastien Faure, Jean Grave, Pierre Martin
and André Girard. The work of the Cinéma du Peuple was made
known chiefly through the articles that its steering committee
had published in Le Libertaire, La Guerre Sociale, Les Temps
nouveaux and La Bataille syndicaliste.

Keywords: Cinéma du Peuple, anarchy, anarchist cinema.

Indicado para publicação em 17 de fevereiro de 2009.

149
16
2009

a atualidade de dubuffet:
cultura asfixiante

dorothea voegeli passetti*

A arte que desconhece as regras — para composição


de formas e cores, os estilos da História da Arte, a Es-
tética, o transmitido nas academias e escolas de Belas
Artes, a arte não produzida para o mercado ou para
apreciação e julgamento de críticos, marchands, gale-
ristas ou curadores, nem criada para ser colecionada
e guardada em museus —, é a arte daqueles que não
fazem parte deste mundo autodenominado civilizado,
dos que de alguma maneira estão do lado de fora: os
outsiders.
Algumas sociedades inteiras denominadas, até pou-
co tempo atrás, de sociedades primitivas, a partir de
uma visão que as coloca em oposição às civilizadas,
também são tidas como outsiders. Não fazem parte das
civilizações por não compartilharem de diversas de suas
características básicas: não inventaram a escrita, não
são monoteístas, muitas vezes não dominam a metalur-
gia nem outras tecnologias mais avançadas, não conhe-
cem o Estado, não usam dinheiro, não produzem arte...
Os primitivos são os índios, os aborígenes, os pequenos

* Professora do Departamento de Antropologia da PUC-SP, universidade em


que também dirige o Museu da Cultura. Autora de Lévi-Strauss, Antropologia e
Arte (Educ/Edusp, 2008).

verve, 16: 150-165, 2009


150
verve
A atualidade em Dubuffet: cultura asfixiante

povos da África e da Oceania, os que até recentemente


estavam do lado de fora.
Suas pinturas e esculturas, os objetos plumários,
as cerâmicas, os instrumentos de caça e guerra, suas
habitações, os adereços corporais, as máscaras, as ca-
noas, estão fora da categoria arte porque neles não po-
dem ser localizadas as normas que a definem. Algumas
vezes essas produções foram identificadas como arte
primitiva e admiradas como arte exótica. Nesta condi-
ção, serviram como meio para o impulso de vanguardas
artísticas e outros grupos questionadores das normas
nas artes e, também, de suas próprias sociedades, ne-
gando sua civilização e buscando outra coisa. O caso
emblemático de Paul Gauguin, que se refugiou no Taiti
na virada do século XIX ao XX, é sempre lembrado.
O século XX foi o período no qual o planeta foi in-
tegralmente conhecido, transformado, povoado e glo-
balizado. Essas pequenas sociedades que conseguiram
escapar à extinção passaram a conviver cada vez mais
intensamente com modos de vida que lhes eram estra-
nhos, incorporando algumas de suas características.
Suas artes foram transformadas em artesanato e mui-
tas vezes passaram a representar a melhor fonte para
se conseguir algum dinheiro. Frequentemente os belos
adereços, as máscaras, as armas, tudo acabou trans-
formado em pasteurizado souvenir ou em brinquedo
de criança. Essa foi uma das mais brandas formas de
inclusão. Acrescenta-se a isto festas e cerimônias que
repetidamente são encenadas e adaptadas ao gosto do
freguês, na ilusão de que com isto se divulgaria cultu-
ras ancestrais, criando uma “respeitabilidade” por meio
do turismo étnico e da possibilidade de melhor viver e
menos mendigar. Da produção em massa de exclusivos
objetos, da reprodução exaustiva de padrões estéticos
que atraem pela sua estranheza já incorporável, passa-
se para uma criatividade que visa única e exclusiva-
mente o mercado, massificando o exótico e ao mesmo
tempo diversificando-o, criando modas através de fór-

151
16
2009

mulas que garantem sucesso imediato, venda garanti-


da de bugigangas indígenas conforme as oscilações do
gosto e das demandas do consumidor.1 Paralelamente
a isto desenvolve-se um mercado de artesanato indíge-
na mais exclusivo,2 visando um público mais exigen-
te, mais preocupado com ações sociais consideradas
corretas, mas não menos globalizado e ignorante ou até
prepotente, pois, afinal, este consumo é frequentemen-
te tomado como uma forma de ajudar os “pobres indio-
zinhos”. Havendo selo de qualidade e de compromisso
social, dorme-se de consciência tranquila.
É impossível manter a prática de continuar a consi-
derar os contemporâneos índios brasileiros, mas não só
estes, como “os primitivos”. Não estão dentro nem fora,
nem incluídos nem excluídos da cultura brasileira. Fa-
zem parte dela como grupos que conseguiram resistir
à extinção e que continuam cultivando suas tradições,
ou até as recriam, para poderem ser reconhecidos como
índios, o que supostamente lhes traria algumas vanta-
gens como tutelados pelo Estado.
Também estão fora da possibilidade de serem produ-
tores desta arte culta os que ainda não tiveram acesso
a suas normas, ou seja, as crianças. Suas produções
infantis são admiradas pelas suas ingênuas e livres
tentativas de mostrar ou expressar algo, o que às vezes
traz resultados surpreendentes. Além das crianças, há
os que foram privados do acesso às normas: os incul-
tos, os não escolarizados, e portanto não qualificados;
as pessoas simples, que poderiam produzir o que já se
chamou no passado de arte popular, produto de tra-
dições rústicas, do campo, do trabalhador braçal, do
operário.
Uma terceira forma é a da arte dos que são separa-
dos da sociedade e da cultura no seu sentido mais am-
plo (ou estrito), os eximidos do convívio com os demais.
São os internos de asilos, hospícios, clínicas, prisões,
casas de reabilitação, estes tristes lugares de onde não

152
verve
A atualidade em Dubuffet: cultura asfixiante

se sai e, se for possível sair, não será como se entrou.


Faltará algo que foi perdido para sempre.
É esta arte que Jean Dubuffet denominou de Arte
Bruta, e que pode ser entendida como resultado da
recusa à cultura asfixiante, nome que deu ao seu texto-
manifesto publicado em 1968. Mas sua defesa da Arte
Bruta já existia pelo menos 23 anos antes deste seu
mais famoso e provocador escrito. Dubuffet começou a
pesquisar a arte de internos de hospitais psiquiátricos e
de prisões suíças e francesas em 1945, aos 44 anos de
idade, quando abandonou suas atividades de vinicultor,3
sem contudo deixar sua própria pintura e escultura4
de lado. Foi a partir destas visitas e do contato com
pequenos arquivos destas produções que começou
a elaborar o termo Arte Bruta, e a expô-la em Paris.
Primeiro, no Foyer de l’Art Brut, localizado no subsolo
da Galerie René Drouin, em 1947, onde expôs obras de
internos destas instituições que ganharam notoriedade
tanto pelas suas histórias particulares como pelas suas
obras. No ano seguinte fundou a Compagnie de l’Art
Brut, em Paris, com a participação de André Breton,
Jean Paulhan, Charles Ratton, Henri-Pierre Roché e
Michel Tapié.
Em 1949 a Compagnie de l’Art Brut mostra sua pri-
meira exposição,5 e no catálogo Dubuffet assina o texto
L’Art brut préféré aux arts culturels, no qual apresenta
sua crítica à arte culta, cultural, erudita: a Arte Bruta
é aquela produzida pelas pessoas que não seguem ne-
nhuma norma, não mimetizam nenhum procedimento
ou modelo. “Assistimos nela a operação artística toda
pura, bruta, reinventada por completo em todas as suas
fases pelo seu autor, apenas a partir de seus próprios
impulsos, (...) na qual somente se manifesta a função
da invenção.”6
Dois anos depois, Breton deixa a Compagnie, e ela
se dissolve em função de diversas dificuldades, nota-
damente pelo pequeno envolvimento de seus colabora-
dores.7 O pintor Alfonso Ossorio assume a guarda da

153
16
2009

coleção, levando-a a Long Island (EUA), onde fica até


voltar a Paris, em 1962. Dubuffet pretende dar estatuto
público à coleção, que cresce constantemente, e a ofe-
rece à municipalidade de Paris, para que reconheça sua
utilidade pública, visando transformá-la num museu.
A oferta foi recusada pelo conselho municipal e, assim,
Dubuffet a ofereceu a Lausanne,8 onde está até hoje.
Um pouco antes, em 1968, Dubuffet exterioriza sua fú-
ria em Cultura asfixiante:
“Sou um individualista, ou seja, considero que meu
papel de indivíduo é o de me opor a toda compulsão
ocasionada pelo interesse do bem social. Os interesses
do indivíduo são opostos aos do bem social. Querendo
servir a ambos ao mesmo tempo, só se desemboca em
hipocrisia e confusão. Se o Estado vela pelo bem social,
eu devo velar pelo do indivíduo. Do Estado só conheço
uma cara: a de polícia. Todos os departamentos dos mi-
nistérios de Estado têm, aos meus olhos, um só rosto e
somente posso imaginar o ministério da cultura como a
polícia da cultura, com seu prefeito e seus comissários.
Figura que me é extremamente hostil e repugnante.”9
É inevitável relacionar estas palavras às de Max
Stirner:
“O Estado tem sempre uma única finalidade; limitar
o indivíduo, refreá-lo, subordiná-lo, fazer dele súdito de
uma qualquer ideia geral; só dura enquanto o indivíduo
não for tudo em tudo, e é apenas a mais marcada ex-
pressão da limitação do meu eu, da minha limitação e
da minha escravidão. Nunca um Estado tem como obje-
tivo permitir a atividade de cada indivíduo, mas sempre
aqueles que estão ligados aos interesses do Estado.”10
Essa associação não é novidade.11 Michel Ragon,
historiador da arte que conviveu com ele desde a ex-
posição de Arte Bruta em 1949, lembra que Dubuffet
afirmou que:
“‘O importante (...) é ser contra. (...) Toma como an-
titético do consenso de grupo e da razão de Estado, o

154
verve
A atualidade em Dubuffet: cultura asfixiante

indivíduo define-se essencialmente pela objeção. (...) A


posição de subversão cessa evidentemente se ocorrer
de ela generalizar-se para tornar-se no final a norma.
Ela se inverte nesse momento de subversiva em esta-
tutária (...) revolução é virar a ampulheta. Subversão é
outra coisa; é quebrá-la, eliminá-la.’
Stirner e Bakunin não diziam outra coisa. As posi-
ções anarquistas de Dubuffet, pintor célebre adulado
pelos museus, pelos marchands, pelos colecionadores,
foram recebidas nos meios políticos como paradoxos.
É verdade que Dubuffet, no mundo que o cercava, era
singularmente cavaleiro solitário.”12
A própria arte, a verdadeira arte é, para Dubuffet,
arte antissocial:
“Conferir à produção de arte um caráter socialmente
meritório, fazer dela uma função social honrosa, falsi-
fica gravemente no sentido já que a produção de arte
é uma função natural e fortemente individual, e em
consequência totalmente antagônica a toda função so-
cial. Só pode ser uma função antissocial ou, ao menos,
associal.”13
Dubuffet associa, assim, arte e liberdade individual.
“A produção de arte só pode ser concebida como
individual, pessoal e feita por todos, não delegada a
mandatários.”14 Referindo-se à sua própria arte na
conferência Positions Anticulturelles realizada em 1951,
em Chicago, afirma que “aspiro a uma arte diretamente
propagada de nossa vida corrente, uma arte que se inicie
nessa vida corrente, que seja uma emanação imediata
de nossa verdadeira vida e de nossos verdadeiros
humores.”15
Recorre aos chamados selvagens para se fazer en-
tender: “Guardo grande estima aos valores da selva-
geria: instinto, paixão, capricho, violência, delírio”,16 e
contrapõe estes valores aos do Ocidente que julga ba-
searem-se unicamente no seu próprio pensamento, na
sua razão e principalmente na sua lógica, os mesmos

155
16
2009

que supostamente movimentariam o próprio mundo. “É


por isto que há tanta estima e admiração pelos estados
de espírito que chamamos de delírios. (...) Estou persu-
adido que a arte tem muito a ver com os delírios.”17 É
necessário, portanto, afastar-se da razão e da lógica.
“O objetivo da arte, a partir dos gregos, baseia-se na
invenção de belas linhas e belas harmonias de cores.
Abolida essa noção, o que será da arte? (...) A arte então
volta a sua verdadeira função, muito mais eficiente que
o arranjo de formas e cores para o pretenso prazer dos
olhos.”18
Mas, “a arte endereça-se ao espírito, não aos olhos. É
sob este ângulo que sempre foi considerada pelas socie-
dades ‘primitivas’, e elas estão com a verdade.”19 Além
disso, a arte é considerada por Dubuffet como lingua-
gem e instrumento de conhecimento e comunicação, o
que lhe possibilita pensar que “o entusiasmo dado à es-
crita por nossa cultura (...) levou-a a ver a pintura como
uma linguagem grosseira, rudimentar, boa apenas para
os iletrados. Após o que foi inventado, para dar à arte
uma razão de ser, esse mito da beleza plástica que para
mim é uma impostura.”20
Para Dubuffet a pintura é uma “linguagem muito
mais rica que a das palavras (...) muito mais imediata
que as palavras escritas e ao mesmo tempo bem mais
carregada de significação. Ela opera através de signos
que não são abstratos e incorporais como as palavras.”
Mais próximas aos próprios objetos, a pintura “manipu-
la matérias que são, elas mesmas, substâncias vivas.”
Como linguagem espontânea e mais direta que a das
palavras, a pintura está “mais próxima do grito, ou da
dança (...) e é por isto que a pintura é um meio de expres-
são de nossas vozes interiores muito mais eficaz.”21 Ela
pode traduzir o pensamento em seus diversos estágios,
até “os mais baixos níveis (nos quais o pensamento está
próximo ao seu nascimento), os degraus subterrâneos
dos jorros mentais.”22

156
verve
A atualidade em Dubuffet: cultura asfixiante

A arte que traduz os níveis mais subterrâneos da


mente pode ser buscada em domínios nos quais a es-
crita não tem acesso e, mais que isso, muitas vezes é
exercitada por pessoas que não escrevem, pois nunca
escreveram, não mais escrevem ou raramente o fazem,
talvez nem falem, apenas se expressam por imagens.
Esta é a Arte Bruta.
Conforme define Michel Thévoz, conservador da
Collection d’Art Brute de Lausanne desde sua funda-
ção, em 1975, até 2001:
“Os autores da Arte Bruta são marginais refratários
ao adestramento educativo e ao condicionamento cul-
tural, entrincheirados numa posição de espírito rebel-
de a qualquer norma e a qualquer valor coletivo. Não
querem receber nada da cultura, nem querem nada
lhe dar. Não aspiram comunicar-se, em todo caso não
segundo os procedimentos mercadológicos e publici-
tários próprios do sistema de difusão da arte. (...) A
Arte Bruta apresenta traços formais correspondentes:
as obras são, na sua concepção e técnica, altamente
indenes às influências vindas da tradição ou do con-
texto artístico. Aplicam materiais, um savoir-faire e
princípios de figuração inéditos, inventados pelos seus
autores e estranho à linguagem figurativa instituída.
Na maioria dos casos, essas características sociais e
estilísticas se conjugam e se ampliam por ressonância:
o desvio favorece a singularidade da expressão, e esta
acentua, por sua vez, o isolamento do autor e seu au-
tismo, se bem que à medida em que ele se engaja em
seu empreendimento imaginário, o criador se subtrai
do campo de atração cultural e às normas mentais.
A obra é pois vista pelo seu autor como um suporte
alucinatório; é da loucura que se deve falar, porquan-
to se isente o termo de suas conotações patológicas.
O processo criativo escapa assim imprevisivelmente de
um episódio psicótico, articulando-se segundo sua ló-
gica própria, como uma língua inventada. Aliás, quan-
do os autores da Arte Bruta também se exprimem pela

157
16
2009

escrita, é acomodando a gramática e a ortografia aos


seus ânimos. É uma criação impulsiva, muitas vezes
circunscrita ao tempo, ou esporádica, que não obede-
ce a nenhuma demanda, que resiste a toda solicitação
de comunicação, que talvez encontre mesmo sua força
opondo-se aos outros.”23
Esta forma extremamente fechada de comunicação
de alguém consigo mesmo, que é a Arte Bruta, negando
todas as formas usuais de sua própria cultura (tida,
sem dúvida, como asfixiantes), e recusando-as, pode
apenas ser encontrada na loucura das sociedades iden-
tificadas por Dubuffet como ocidentais, mesmo se essa
qualificação geográfica já não tem mais nenhum sen-
tido? Ocidente e Oriente estão na mesma situação e o
que se separa disto são as sociedades outrora chama-
das de primitivas ou selvagens, que tradicionalmente
se comunicavam e se expressavam por diversas formas,
menos através da escrita, e nas quais a loucura tam-
bém é outro assunto.24
No Brasil, a Arte Bruta, não com este nome, passou
a ser mais conhecida a partir de produções de internos
de duas instituições e de um caso isolado que nunca
precisou enfrentar uma instituição destas.
A primeira é o Museu de Imagens do Inconsciente,
criado por Nise da Silveira, no Rio de Janeiro, em
1952.
“Nise da Silveira entendeu os estados do ser vividos
e difundidos por Antonin Artaud. Disse não à loucura
como doença mental, afirmando a antipsiquiatria. Não
se deixou enganar pelos objetos inventados pelos lou-
cos do hospício e tomados pelos críticos como obras de
arte. Nem a vida dos seus loucos nem a sua, podiam ser
apanhados pela psiquiatria ou pela arte dos mecenas,
críticos, avaliadores e historiadores.
Nise da Silveira, como Antonin Artaud, não conce-
bia a arte separada da vida, teatro alheio à minha exis-

158
verve
A atualidade em Dubuffet: cultura asfixiante

tência, loucura como doença, artista como momento


profissional.”25
Já nos anos 40, Nise da Silveira lutava contra trata-
mentos como eletrochoques ou comas insulínicos. Tra-
balhando como médica no Centro Psiquiátrico Pedro
II (depois batizado como Engenho de Dentro), acabou
sendo deslocada, de tanto criticar esses horrores, para
uma nova modalidade terapêutica desacreditada pe-
los seus colegas, a Seção de Terapêutica Ocupacional,
onde criou, em 1946, ateliês de pintura e modelagem.
Pacientes que não se comunicavam mais de nenhuma
forma começaram a se expressar e ficou claro que de
longe isto não era apenas atividade para ocupar os in-
ternos. Eles faziam o que Thévoz descreveu: com suas
obras, falavam para si e, aos poucos, também de si.
Para pesquisar estes trabalhos, e também guardá-
los, Nise fundou o Museu de Imagens do Inconsciente,
em 1952, um equivalente à coleção criada por Dubuffet.
A intenção era, sempre, terapêutica: “um dos caminhos
menos difíceis que encontrei para o acesso ao mundo
interno do esquizofrênico foi dar-lhe a oportunidade de
desenhar, pintar ou modelar com toda liberdade. Nas
imagens assim configuradas teremos auto-retratos da
situação psíquica, imagens muitas vezes fragmentadas,
extravagantes, mas que ficam aprisionadas no papel,
tela ou barro. Poderemos sempre voltar a estudá-las.
(...) Foi observando-os, e às imagens que configuravam,
que aprendi a respeitá-los como pessoas, e desaprendi
muito do que havia aprendido na psiquiatria tradicio-
nal. Minha escola foram esses ateliês.”26
Internos tornaram-se célebres depois que suas obras
foram conhecidas e reconhecidas como verdadeiras ex-
pressões plásticas de seus interiores, alguns deles como
artistas únicos. É o caso de Adelina Gomes, Arthur
Amora, Fernando Diniz, Octavio Ignácio, Emygdio de
Barros e muitos outros. Mas, nem por isso deixaram a
condição de internos. Muitos, aliás, nem souberam que
realmente também eram artistas.27

159
16
2009

A segunda instituição é a Colônia Juliano Moreira,


também no Rio de Janeiro. De lá é Arthur Bispo do
Rosário, que se tornou conhecido por seus objetos, co-
leções de coisas como sandálias havaianas, colheres,
placas de nomes de ruas, uma cama, um navio, seu
manto. Assemblages, colagens e bordados feitos com
o material que conseguia guardar na própria Colônia,
como era chamado o hospital psiquiátrico. Seu manto,
com o qual pensava que seria enterrado quando mor-
resse, foi todo bordado com fios das roupas dos inter-
nos. Sua missão era apresentar o mundo a Deus, e foi
criando coleções que se preparou para o encontro.
“Quando eu subir, os céus se abrirão e vai recomeçar
a contagem do mundo. Vou nessa nave, com esse man-
to e essas miniaturas que representam a existência.
Vou me apresentar. (...) A hora está chegando, Amélia,
porque os concursos de misses estão acabando e os cir-
cos também. São peças muito importantes no mundo,
universais, que unem os povos. (...) A minha morte se
fará notar no mundo inteiro.”28
A obra atualmente renomada, exposta, entre outros,
na Bienal de Veneza (1995) e na Mostra do Redescobri-
mento em São Paulo (2001), possibilitou a criação do
Museu Bispo do Rosário, cujo principal objeto é o man-
to, mas também outros bordados e coleções de objetos
e nomes.
Por fim, uma arte que certamente é bruta, mas não
resulta de algum internamento ou até de uma terapia
clínica. São os desenhos e as pinturas de Moacir, ho-
mem simples, que nunca foi à escola nem aprendeu a
escrever e vive num vilarejo na Chapada dos Veadeiros,
em Goiás. Com problemas motores evidentes, assim
como distúrbios psicológicos, cobriu as paredes da casa
em que mora com seus pais e duas irmãs com imagens
do seu inconsciente. Bichos, plantas, gente, seres in-
classificáveis que se auto-devoram e muito sexo. Para
não assustar a população local, também há santos, mas
como contraponto, figuras chifrudas, diabinhos.

160
verve
A atualidade em Dubuffet: cultura asfixiante

Moacir não foi tratado, não o medicalizaram, não o


normalizaram. Sua pintura foi seu remédio. Sua família
e principalmente seu pai, talvez por pura ignorância
e falta de recursos, mas possivelmente motivada por
uma grande sabedoria, soube preservá-lo dos ataques
moralistas de alguns vizinhos e dos evangélicos do
povoado. Aos poucos sendo descoberto por artistas,
imprensa e turistas com sensibilidade para apreciar
essa arte, Moacir até melhora um pouco as condições
materiais da casa com recursos obtidos pela venda
eventual de alguma obra. Sabe que há um público para
apreciar seu trabalho e gosta disto.
Suas obras são Arte Bruta, imagens do inconsciente,
produto da loucura não confinada e a melhor forma de
conviver com ela. Dubuffet certamente gostaria de saber
que Moacir existe. A Dra. Nise da Silveira também.29
Parece ser necessário começar a pensar o que pode
ocorrer com essas artes — da loucura e dos índios
— nesta época em que vivemos, na qual nem índios
nem loucos estão reclusos e isolados das pressões
acadêmicas, sociais, políticas e econômicas. Esta é a
pergunta que Michel Thévoz se faz, em relação à Arte
Bruta, quando afirma que “na era da informação, da
mundialização, do pensamento único, da normaliza-
ção mental e dos neurolépticos,30 as fontes da Arte
Bruta se deslocam — e verdade seja dita, somando
tudo, elas tendem a se esgotar.”31 Falta acrescentar a
estes perigos, principalmente para os que não estão
reclusos, a existência de uma certa fúria crescente
do mercado museológico, que concerne não só aos
objetos musealizados, mas ao apetite individual por
fama e prestígio de diretores de museus e curadores
de coleções cuja especulação ultrapassa, em muito, o
real interesse pelos objetos e seus produtores. Loucos e
índios talvez estejam na rota dos seres considerados em
vias de desaparecimento. A cultura asfixiante cumpre
sua função: está acabando com a possibilidade de
respirar.

161
16
2009

Mas, fica uma certeza quase inabalável: enquanto


houver vida haverá arte, e vice-versa. Pinturas rupes-
tres são a mais remota evidência material da existência
de vida humana neste planeta. Isso faz pensar que não
vivemos sem arte. Ao menos para nós que sabemos o
quanto arte, vida e liberdade são imprescindíveis. Não
fosse isso, esboços de arte não seriam a forma mais
tênue, inicial e balbuciante de expressão, quando os
humanos começaram sua existência em diversas partes
do planeta, e quando eles diariamente quase se anu-
lam, nos confins dos seus interiores atormentados. A
arte é capaz de trazer de volta à vida e o prazer de viver
faz dela uma obra.

Notas
1
Ver, em especial, a produção dos índios Pataxó pesquisada por Rodrigo
Grünewald em: “Artes Turísticas e Autenticidade Cultural” in Veredas, vol. 1.
Cabedelo, julho 2002, pp. 7-21.
2
Uma forma exemplar desta tendência é a associação e a assessoria que o
Instituto Socioambiental mantém com os indígenas da FOIRN (Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro), e que criaram uma rede de produção
e venda de cestaria segundo padrões tradicionais a partir de recuperação de
técnicas já por muitos esquecidas e de uma rigorosa manutenção da qualidade
das matérias primas e dos padrões estéticos, conforme relata Beto Ricardo em:
Arte Baniwa — cestarias de Arumã. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2001.
3
As informações biográficas e históricas aqui comentadas, quando não há
outra indicação, podem ser encontradas no sítio eletrônico da Collection de l’art
Brut, em Lausanne (Suíça), instituição que atualmente guarda, expõe, pesquisa
e amplia a coleção criada por Dubuffet. Disponível em: http://www.artbrut.
ch/ (acesso em: 6/12/2009).
4
A obra de arte produzida por Dubuffet está em diversos museus de arte
e também na Dubuffet Foundation (Paris e Périgny-sur-Yerres). Disponível
em: http://www.dubuffetfondation.com/fondfset_ang.htm (acesso em:
8/12/2008).
5
A exposição chamou a atenção de diversas personalidades parisienses, como
Francis Ponge, Henri Michaux, Tristan Tzara, Joan Miró, Victor Brauner,
Georges Borgeaud, Michel Seuphor, René de Solier, Claude Lévi-Strauss,
André Malraux, Michel Ragon e Arnal (V. Rousseau e Collection de l’Art Brut).

162
verve
A atualidade em Dubuffet: cultura asfixiante

Como se sabe, Lévi-Strauss publicou no ano seguinte “A eficácia simbólica” e


“O feiticeiro e sua magia” (republicados em Antropologia Estrutural), os seus dois
únicos artigos nos quais trata explicitamente do inconsciente, da psicanálise e
da loucura, aos quais deve ser acrescida a abertura “A obra de Marcel Mauss”,
de 1951, que introduz o livro Sociologia e Antropologia deste autor. Lévi-Strauss
só voltou a abordar o tema em A oleira ciumenta, muitos anos depois, em 1985.
Também não devemos esquecer que Lévi-Strauss tornou-se muito próximo
de Breton (e de Max Ernst) a partir do exílio de ambos em N. York durante a
Segunda Guerra, o que se estendeu por mais um bom tempo em Paris. Arte,
loucura, inconsciente e sociedades “primitivas” eram, naqueles anos, seus
interesses comuns.
6
Jean Dubuffet. L’art brut préféré aux arts culturels. Paris, Galerie René Drouin,
1949. Parcialmente disponível em: http://www.artbrut.ch/index63d0.html
(acesso em: 6/12/2008).
7
Valérie Rousseau. “De la collection de l’Art Brut aux musées de ‘triangle d’or’”
in Sócio-Anthropologie, vol. 19, Les Mondes du Patrimoine, 2006. Disponível
em: http://socioanthropologie.revues.org/document623.html, (acesso em:
10/01/2009).
8
Idem.
9
Jean Dubuffet. Cultura asfixiante. Tradução de Juana Bignozzi. Buenos Aires,
Ediciones de la Flor, 1970, p. 11.
Max Stirner. O único e sua propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa,
10

Antígona, 2004, pp. 179-180.


11
A Federação Anarquista também afirmou recentemente esta relação, como
se lê na pequena matéria transmitida pela Radio Libertaire em 7/12/2006 com
Laurent Danchin: “L’Art Brut ou une esthétique de l’anarchie”. Disponível
em: http://rl.federation-anarchiste.org/article.php3?id_article=220 (acesso
em: 12/01/2009).
12
Michel Ragon. “De Fénéon a Dubuffet” in Libertárias: Arte e Anarquia, vol. 2.
São Paulo, dez. 1997 – jan. 1998, p.29.
13
Jean Dubuffet, 1970, op. cit., p.12.
14
Idem, p. 30.
15
Jean Dubuffet. Prospectus et tous écrits suivants, tome I. Hubert Damisch (org.).
Paris, Gallimard, 1967, p. 95.
16
Idem, p. 94.
17
Ibidem, p. 95.
18
Ibidem, pp. 98-99.

163
16
2009

19
Ibidem, pp. 99.
20
Ibidem.
21
Ibidem, pp. 99-100.
22
Ibidem, p. 100.
23
Michel Thévoz. Art brut, psychose et médiumnité. Paris, Editions de la
Différence, 1990, pp. 34-35. Parcialmente disponível em: http://www.artbrut.
ch/index63d0.html (acesso em: 06/12/2008).
24
Uma pequena reflexão sobre a relação entre arte e loucura nestas sociedades
está no capítulo XX de Olhar Escutar Ler de Lévi-Strauss, 1997, no qual ele relata
que as bordadeiras de padrões geométricos em couros, com espinhos de porco-
espinho, entre os índios das planícies da América do Norte, necessariamente
deveriam enlouquecer quando produziam um novo padrão, recebido em um
sonho com a Dama Dupla: esta era a condição imposta por sua cultura para
que fossem reconhecidas como artistas geniais. A partir deste momento, sua
inovação era incorporada aos padrões daquela sociedade, mas ela deveria
viver como louca: rindo compulsivamente e, sem se casar, mantendo relações
sexuais com qualquer homem e realizando atividades femininas e masculinas
(p. 134).
25
Edson Passetti. “Nise da Silveira, uma vida como obra de arte” in Anarquismo
urgente. Rio de Janeiro, Achiamé, 2007, p. 37.
26
Nise da Silveira. O mundo das imagens. São Paulo, Ática, 1992, p. 93.
27
Informações e imagens do Museu de Imagens do Inconsciente estão
disponíveis em: http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/ (acesso
em: 10/01/2009). E no vídeo Nise da Silveira, de Edson Passetti (1992).
28
Bispo do Rosário, apud Luciana Hidalgo, Arthur Bispo do Rosário — o senhor
do labirinto. Rio de Janeiro, Rocco, 1996, p. 185. (Ver também: Prisioneiro da
Passagem, de Hugo Denizart, 1982 — N. E.).
Moacir e sua obra podem ser atualmente vistos no filme-documentário
29

Moacir, de Walter Carvalho (2006).


30
Neurolépticos são medicamentos antipsicóticos.
Michel Thévoz. Quel avenir pour l’Art Brut?. Disponível em: http://www.artbrut.ch/
31

PDF/F-Quel_avenir_pour_l%27Art_Brut.pdf. (acesso em: 6/12/2008).

164
verve
A atualidade em Dubuffet: cultura asfixiante

Resumo
O artista plástico Jean Dubuffet, crítico vigoroso da cultura, pu-
blicou, entre outros, o ensaio Cultura Asfixiante, em 1968, que
definitivamente o associa ao anarquismo e, particularmente,
ao individualismo de Max Stirner. É também conhecido como
o criador da noção de Arte Bruta, que designa produções não
profissionais e fora dos padrões estéticos convencionais, rea-
lizadas por internos de manicômios psiquiátricos e de outras
instituições semelhantes, autodidatas isolados e médiuns.
Para guardá-la e pesquisá-la, criou a Collection de l’Art Brut,
em Lausanne (Suíça). No Brasil, destaca-se a atuação da Dra.
Nise da Silveira incentivando essas manifestações no Hospital
Engenho de Dentro, a obra de Arthur Bispo do Rosário, interno
na Colônia Juliano Moreira, ambos no Rio de Janeiro, e a de
Moacir, que vive com familiares na Chapada dos Veadeiros, em
Goiás, e que nunca foi internado.

Palavras-chave: Dubuffet, arte bruta, liberdade.


ABSTRACT
The plastic artist Jean Dubuffet, a vigorous critic of culture,
published, among others, the essay Suffocate culture, in 1968,
which definitely associates him to anarchism and, particularly,
to Max Stirner’s individualism. He is also known as the creator
of the Art Brut concept, that designates non professional
productions and outside conventional aesthetic standards,
performed by inmates of mental asylums and other similar
institutions, isolated self-taught and mediums. In order to keep
and research it created the Collection de l’Art Brut, in Lausanne
(Switzerland). In Brazil, it is highlighted Dra Nise da Silveira’s
performance encouraging those manifestations in the Engenho
de Dentro Hospital, the work of Arthur Bispo do Rosário, inmate
in the Juliano Moreira Colony, both in Rio de Janeiro, and the
work of Moacir, who lives with his parents in the Chapada dos
Veadeiros, in Goiás, and was never hospitalized.

Keywords: Dubuffet, art brut, freedom.

Recebido para publicação em 3 de abril de 2009. Confirmado


em 7 de julho de 2009.

165
conversação contra um tempo conservador 1:
LEI ANTIFUMO.

você
ecologia
tem fogo?
dos corretos

Primeiro o capitalismo poluiu, destruiu e corroeu a


natureza e as pessoas. Agora apoiado pelos amantes da
obediência pretende moralizar seus fétidos excrementos.
Em nome da saúde os governos no passado pretendiam
impedir a entrada ou expulsar a peste da cidade;
confinar as epidemias; prender os sujeitos perigosos.
Todavia, a podre ecologia dos politicamente corretos
não protege ninguém. Apenas culpa e justifica expulsões,
demissões, banimentos e ostracismos. Individualiza e
criminaliza a peste e a epidemia nas partes mais ou
menos perigosas de cada sujeito em cidadãos suspeitos.
Não é mais o mesmo fascismo!

[flecheira libertária, ano III, n. 121, 11 de agosto de 2009]

25 de agosto, 19hs, museu da cultura, puc-sp


[r. monte alegre, 984 - tel. 3670-8559]
nu-sol - www.nu-sol.org
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

guerra, libertarismo e
relações internacionais
0
thiago rodrigues*

I. Guerras, Estados, não-Estados

Nas costas da Somália, rota de petróleo e de produ-


tos que vão e vem da Ásia, desponta uma ameaça:
piratas. Grupos armados, em lanchas, sequestram
navios que buscam ou chegam de Suez, fazendo-os
atracar em portos sob seu comando. Na Europa, Ásia e
nos Estados Unidos, alarme. A chamada “comunidade
internacional”, reunida na Organização das Nações
Unidas (ONU), delibera. A aliança militar Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) começa a escoltar
navios dos seus sócios e a União Européia anunciou,
em dezembro de 2008, uma missão de um ano no Golfo
de Aden a fim de proteger as naves de seus membros.
Nesse mesmo mês, a ONU legitimou tais decisões com
uma resolução do Conselho de Segurança que autorizou
os Estados e organizações internacionais interes-

*Doutor em Relações Internacionais, pesquisador no Núcleo de Sociabilidade


Libertária (Nu-Sol) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), professor-credenciado do Programa de Pós-graduação em Estudos Estra-
tégicos (PPGEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador
associado ao Núcleo de Estudos Estratégicos (NEST/UFF) e ao Grupo de
Análise de Prevenção de Conflitos Interncionais da Universidade Cândido
Mendes (GAPCon/UCAM).

verve, 16: 167-186, 2009


167
16
2009

sados a “entrar nas águas territoriais da Somália a


fim de combater a pirataria e o roubo a mão armada
no mar.”1 Essa medida é justificada no documento
pela incapacidade do governo somali em governar seu
território, dando espaço para que milícias ocupassem
cidades, estabelecessem governos locais e navegassem
com liberdade em busca de presas no mar.
Na interpretação do Conselho de Segurança, se o
governo constituído da Somália não cumpre com suas
funções elementares — prover segurança para a pro-
priedade privada e aplicar a lei —, os Estados interes-
sados na região ficariam liberados para agir em seu
lugar. Os princípios do respeito à soberania e da não-
ingerência, que fundamentam o direito internacional,
não seriam violados porque a Somália teria chegado a
um grau de esfacelamento do poder político centraliza-
do que faria dela um “Estado falido”. Esse conceito de
“Estado falido” foi esboçado ainda nos anos 1980, mas
ganhou destaque a partir dos anos 1990, procurando
designar os Estados que não teriam capacidade efetiva
de governar seus territórios e populações (ou partes sig-
nificativas deles). A divulgação mais ampla desse con-
ceito, no entanto, veio após os atentados terroristas de
11 de setembro de 2001, principalmente pelas mãos do
cientista político estadunidense Francis Fukuyama. Se-
gundo ele, o fato da Al-Qaeda ter usado como base, em
2001, um “Estado falido” — o Afeganistão — sinalizou
que esses países sem autoridade central deixaram de
ser “uma questão humanitária ou de direitos humanos,
[assumindo], de um momento a outro, uma importante
dimensão de segurança.”2 Ainda segundo Fukuyama,
após o final da Guerra Fria, as ameaças à “ordem in-
ternacional” não viriam de um possível embate entre as
superpotências, tampouco entre seus prepostos, mas
de grupos criminosos e terroristas que encontrariam
seus oásis nesses territórios sem Estado.
Não é sem razão que Fukuyama tenha se esforçado
para identificar novas fontes de perigo nas relações in-

168
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

ternacionais. O fim do conflito bipolar trouxe um breve


período de euforia liberal — do qual participou o próprio
Fukuyama com sua tese do “fim da História” —, que foi
sucedido pela tentativa de teóricos das relações inter-
nacionais e formuladores de política externa nos EUA
e Europa de identificar novos inimigos da anunciada
nova ordem global capitalista e democrática. Genocídios
em Ruanda e nos Bálcãs, ainda na primeira metade dos
anos 1990, acompanhados da persistência de guerras
civis vindas do período da Guerra Fria, atestavam, no
entanto, a continuidade dos conflitos. Esses embates,
todavia, escapavam rapidamente das demarcações tra-
dicionais cristalizadas no direito internacional.
As guerras interestatais, reguladas pelo direito in-
ternacional desde os primeiros acordos do direito hu-
manitário na segunda metade do século XIX, passaram
a ocorrer com cada vez menos frequência após o final
da Segunda Guerra Mundial.3 Sobrevieram as guerras
civis, mesclando lutas revolucionárias e guerras de li-
bertação nacional: nos dois casos, guerras classificadas
como irregulares porque não eram travadas por exérci-
tos formais submetidos à autoridade de um comando
central estatal.4 Os combatentes ganharam as monta-
nhas, selvas e ruas lutando sem fardas e sem distinção
de sexo ou idade. Estados passaram, então, a enfrentar
forças não equivalentes às deles em capacidade destru-
tiva e em forma de organização; forças difíceis de serem
localizadas e eliminadas dedicadas a guerrear de forma
cotidiana e imprevisível.5
As guerras civis desafiaram o monopólio da violên-
cia e aquilo que Foucault chamou de “economia geral
das armas”, a fundamental distribuição do poder mi-
litar definindo a constituição política e a formação do
Estado: “uma economia dos homens armados e desar-
mados, num dado Estado, (...) com todas as séries ins-
titucionais e econômicas que derivam daí.”6 Os projetos
de formação do Estado desde o final da Idade Média
procuraram concentrar no Estado a capacidade militar,

169
16
2009

de modo a fazer da guerra um instrumento da política


em suas relações exteriores, como definiu Clausewitz.7
Para tanto, o controle dos recursos bélicos deveria es-
tar com o soberano e os grupos sociais dominantes. A
guerra entre grupos locais (milícias, senhores feudais)
seria pacificada pelo monarca no plano interno, sendo
possível apenas nas relações entre Estados. As guerras
civis no pós-1945, todavia, abalaram esse projeto de
uma “economia geral das armas” favorável ao Estado e
evidenciaram a guerra como força que lhe escapa.
Durante a Guerra Fria, as guerras civis anuncia-
ram uma transformação da prática da guerra, com
a emergência e proliferação das forças não-estatais,
como as guerrilhas, os exércitos de libertação na-
cional e a continuidade de terroristas nacionalistas
(como o basco ETA, o irlandês IRA e a palestina OLP)
ou revolucionários (como o Baader-Meinhof alemão
ou as Brigadas Vermelhas italianas). No entanto, foi
com o final do conflito Leste-Oeste, na passagem para
a década de 1990, que se intensificou esse movimen-
to de descentralização dos agentes de violência e de
fragmentação das guerras. Dos anos 1980 vieram or-
ganizações ilegais com atuação internacional, fortale-
cidas pela combinação entre tráfico de drogas, tráfico
de armas, facilidades de locomoção, agilidade nas co-
municações e rapidez na transferência eletrônica de
capital. Essas organizações motivaram declarações
de guerra e acordos internacionais repressivos que
acionaram conflitos regionais e transnacionais.8
Ao lado dessas guerras que Estados e organizações
internacionais declararam a agentes não-estatais, co-
meçou a despontar outro campo de combate trans-
nacional cujo primeiro ato de grande repercussão foi
o atentado com um caminhão-bomba ao World Trade
Center de Nova Iorque, em 1993. Essa ação foi atribu-
ída pelo governo dos EUA à Al-Qaeda, rede terrorista
islâmica chefiada pelo saudita Osama Bin Laden. De
1993 até o ataque que, em 2001, levou efetivamente

170
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

abaixo as torres nova-iorquinas, outros atentados fo-


ram assumidos ou atribuídos à Al-Qaeda.9 No entanto,
foram esses acontecimentos surpreendentes de 2001
que imprimiram uma nova diretriz geral à segurança
nacional estadunidense e a de seus aliados — a guerra
ao terror —, influenciando a definição do chamado
terrorismo fundamentalista como o principal inimigo à
ordem internacional no início do século XXI.10
Esse terrorismo não se confunde com o naciona-
lista ou o revolucionário mencionados acima, porque
não se restringe a um Estado ou região e não defende a
formação de um determinado Estado-nação. Do ponto
de vista político, visa um “Estado islâmico universal”11
— uma teocracia transfronteiriça unificando os muçul-
manos acima das divisões nacionais — que se coloca
frente a frente ao Estado universal democrático-liberal
defendido pelo Ocidente. Esse terrorismo, segundo
Passetti, é diferente dos anteriores porque se desloca
nos contemporâneos fluxos informacionais e de pes-
soas, e ataca em diversos pontos do planeta segundo
“um programa político terrorista utilizado por organiza-
ções não identificadas ou identificáveis.”12 Trata-se de
um terrorismo de prática global e caráter universal; por-
tanto, mais do que internacional ou transnacional, esse
terrorismo seria “transterritorial”13 e a guerra declarada
contra ele seria propriamente uma guerra global.
Essa guerra global tem sido rápida e incisiva em
seus momentos de hostilidade aberta (na guerra inter-
estatal) e duradoura nas ações continuadas de contra-
terrorismo, como mostram as guerras no Afeganistão e
no Iraque: o governo Talibã foi derrotado em poucos
dias, assim como foi o regime de Saddam Hussein. En-
tretanto, o processo de formação de novos governos
pró-ocidentais tem sido conduzido sob ocupação militar
e confrontos incessantes desde 2001, no Afeganistão,
e desde 2003, no Iraque. A superioridade tecnológica
dos Estados Unidos (e seus aliados diretos) fez com que
especialistas militares identificassem, nos anos 1990,

171
16
2009

uma revolução nos temas militares (revolution in military


affairs) representada pelo uso de satélites, computa-
dores e teleguiadas “armas inteligentes”.14 Todo esse
avanço, no entanto, não tem sido suficiente para der-
rotar terroristas que transitam nos mesmos fluxos da
economia legal e que também têm acesso a modernas
armas e recursos tecnológicos. Em nome do combate a
esses grupos fluídos e móveis, foi declarada uma guerra
que é cotidiana e capilar, ampliando controles e vigilân-
cias sobre pessoas, coisas e dados eletrônicos em por-
tos, aeroportos, correspondências, e-mails, chamadas
telefônicas. Nessa guerra, as forças regulares de países
como os EUA ou o Reino Unido operam com o apoio de
empresas de mercenários, como a Blackwater, que fa-
zem a segurança das forças de segurança, de empresas
com investimentos em zonas conflagradas e de postos
burocráticos e diplomáticos.15 Assim, a guerra entre Es-
tados e grupos não-estatais — terroristas, guerrilheiros
e mercenários — se perpetua e generaliza.
Se o propósito do Estado em monopolizar a violên-
cia física legítima é diretamente desafiado por novas for-
ças transterritoriais, estas não negam sua existência.
É possível notar exatamente o contrário: o terrorismo
fundamentalista islâmico defende uma forma de Estado
(teocrático) frente ao Estado democrático-capitalista, en-
quanto grupos ilegais como as empresas do narcotráfico
crescem e diversificam seus negócios nos interstícios do
Estado e da economia legal, sob o manto da proibição
às drogas e da guerra declarada contra o tráfico de psi-
coativos.16 A guerra entre Estados e não-Estados, tônica
dos conflitos internacionais a partir do final do século
XX, não abala, portanto, a lógica do poder centralizado,
ainda que não seja aquela do Estado westfaliano: hoje,
Estados-nação, coalizões de Estados, uniões federadas
de Estados (como a União Européia) e agentes não-es-
tatais — vivendo no Estado ou como alternativa a ele —
guerreiam pelo planeta.

172
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

O governo centralizado se redimensiona em novas


forma-Estado com territórios e instituições prontos
à fusão ou associação em grupos regionais políticos
e econômicos. Os novos Estados, surgidos no pós-
Guerra Fria, têm sofrido um investimento por parte
da ONU e seus membros para que sejam produzidos
como entidades jurídico-políticas aptas a participar da
economia global e dos novos modos de gerenciamento
do planeta. Não à toa, aos princípios tradicionais das
missões de paz da ONU — imposição e manutenção da
paz — foi incluída uma nova modalidade, a de construção
de Estados (state building), entendida como a produção
de estruturas estatais (polícia, poderes executivo,
legislativo e judiciário, burocracia administrativa, forças
armadas, etc.) em países nas quais elas não existem ou
são consideradas insuficientes para manter a soberania
sobre seu território e população.17 Assim poderiam ser
compreendidas as missões da ONU no Timor Leste, a
partir de 1999, e no Haiti, desde 2003: ações de tutela
para implementar um modelo de Estado democrático
e capitalista preparado para entrar nos fluxos globais.
Do mesmo modo, poderia ser encarada a situação na
Somália, já que a “falta de Estado” justifica a ação
emergencial de outros Estados.

II. As guerras para o governo do planeta

Com a emergência do terrorismo transterritorial


e a ampliação das empresas ilícitas transterritoriais,
os Estados tidos como falidos assumiram uma
posição de destaque no discurso diplomático-militar
contemporâneo: são tidos como interferências a mo-
lestar a passagem dos fluxos globais de capital e
informação, e o livre trânsito de produtos e de mão-de-
obra intelectual, além de serem identificados como por-
tos mais ou menos seguros para forças não-estatais
que de diferentes modos rivalizam com o Estado. O
combate a esses nódulos é parte constitutiva dessa

173
16
2009

nova guerra global, em sua combinação entre ações


militares rápidas e ocupações duradouras. Essa guer-
ra multifacetada, que se realiza permanentemente e em
diversas partes do planeta. Não está em jogo, apenas,
a segurança dos Estados Unidos e da União Européia,
que como potências mundiais historicamente projetam
seus interesses nacionais em todo o globo. Entra em
pauta, agora, um discurso mais explícito de segurança
global que implicaria no controle planetário de ameaças
e no governo desterritorializado de fluxos de dados, pes-
soas e produtos.
Autores como Negri e Hardt18 argumentam que a
própria noção de “segurança internacional” cede ra-
pidamente lugar a outra, de “segurança global”, na
medida em que o termo “internacional” caduca por
corresponder ao sistema formado a partir do século
XVI que estabeleceu uma rede de contatos, competi-
ção, cooperação e enfrentamento entre Estados sobe-
ranos.19 Viveríamos, ao contrário, tempos de economia
capitalista transterritorial, de universalização da de-
mocracia, de passagem daquele modelo da soberania
westfaliana para novos arranjos políticos exemplifica-
dos pelo federalismo de tipo europeu e do despontar
de regimes internacionais de proteção ao Homem e ao
meio ambiente que limitam a liberdade dos Estados
em governar suas populações e territórios.
Assim, uma política global se anuncia, sem desfazer-
se das políticas de cada Estado, mas dando vazão a
questões propriamente globais. Ainda segundo Negri e
Hardt, a guerra nessa realidade seria de tipo policial,
ou seja, aplicada de modo preventivo ou paliativo para
evitar ou reparar danos à ordem global, o que faria das
relações internacionais um “perpétuo estado de guerra
(...) [no qual] a noção de segurança sinaliza uma fal-
ta de distinção entre dentro e fora, entre o militar e o
policial.”20
Essa guerra global seria própria de uma época em
que o desenvolvimento tecnológico e da economia de

174
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

mercado exigiriam novas formas de governar pessoas,


produtos, fluxos de capital, ideias, territórios. Época
que não surge de um momento a outro, mas que emer-
ge a partir de um processo cujos inícios Gilles Deleuze
remontou ao período imediatamente posterior à Segun-
da Guerra Mundial. Para Deleuze, além da transforma-
ção das relações políticas internacionais, os anos após
1945 foram tempos de uma “mutação do capitalismo”21
que rapidamente processou a passagem de uma eco-
nomia baseada na lógica da concentração, produção e
propriedade para outra de sobre-produção. Segundo o
filósofo, o capitalismo do século XIX, existente até mea-
dos do século XX, poderia ser definido a partir das figu-
ras da fábrica, do proprietário e do operário.
No entanto, o capitalismo que despontou no pós-
Segunda Guerra não seria mais “dirigido à produção,
relegada com frequência à periferia do Terceiro
Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da
metalurgia ou do petróleo.”22 Esse capitalismo, de fato,
se transnacionalizou ao tornar progressivamente global
não só o mercado, como também a produção, borrando
a separação estanque entre países industrializados
e fornecedores de matérias-primas. A produção se
descentralizou ao mesmo tempo em que os centros de
pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, bem
como as sedes das grandes corporações mundiais e
os maiores pólos financeiros, seguiram nos países da
primeira revolução industrial. O que esse capitalismo
quer, afirma Deleuze, é “vender serviços, e o que quer
comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido
para a produção, mas para o produto, isto é para o
mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e
a fábrica cedeu lugar à empresa.”23 Nesse processo,
o trabalho mecânico cede lugar à robótica, o operário
ao trabalhador intelectual, o produto manufaturado
ao produto imaterial (softwares, mp4, informações
instantâneas etc.).

175
16
2009

Aquilo que Deleuze notou de distinto no capitalismo


do pós-guerra indicou-lhe o despontar de uma sociedade
de controle que, em linhas gerais, poderia ser identifica-
da pelas “formas ultra-rápidas de controle ao ar livre,
que substituem as antigas disciplinas que operavam na
duração de um sistema fechado.”24 Essa distinção se
reporta à noção de sociedade disciplinar, desenvolvida
por Foucault25 para compreender as relações de poder,
as formas de governo e os processos de subjetivação na
sociedade industrial que despontou no final do século
XVIII.
Na sociedade de controle, os traços da sociedade disci-
plinar não foram apagados, mas sobrepostos e reorgani-
zados — em parte superados — por uma planetarização
da economia que apresentou novos problemas políticos,
recolocando a questão do “como governar?”. A sociedade
de controle é uma “sociedade eletrônica, pautada em flu-
xos que se atualizam, confirma a desterritorialização não
só do capital, já sobejamente conhecida, mas também
dos trabalhadores, ou partes deles, libertados do confi-
namento territorial que impunha o Estado-nação.”26 É
a sociedade que opera por “máquinas de informática e
computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e,
o ativo, a pirataria e a introdução de vírus.”27 É a so-
ciedade, também, do mencionado trabalho imaterial ou
intelectual,28 o que faz com que as preocupações do Es-
tado se direcionem não para o indivíduo — que devia ser
dócil e saudável para produzir mecanicamente na fábri-
ca —, mas para o homem intelectualmente produtivo,
conhecedor das técnicas informacionais, conectado aos
fluxos de comunicação, elaborador de produtos e sujei-
tado às redimensionadas práticas de governo. Esse novo
trabalhador poderia transitar fisicamente pelo mundo ou
trabalhar com flexibilidade no espaço virtual da internet
e das teleconferências. O exercício do poder político na
sociedade de controle implicaria, então, na passagem da
vigilância nos confinamentos disciplinares para o con-
trole constante a céu aberto.

176
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

No campo das relações internacionais, a manutenção


da ordem global na sociedade de controle impulsionou
a passagem de um sistema baseado no equilíbrio de
poder entre Estados e nos arranjos diplomáticos pre-
cários para novas e ágeis modalidades de governo e
regulamentação das relações planetárias. Agora, está
em jogo ordenar fluxos globais e governar o planeta.
Nesse ponto, Edson Passetti observa um deslocamento
da biopolítica das populações da sociedade disciplinar
— conjunto de técnicas de governo e gestão da vida
das populações nacionais —, estudada por Foucault,
para uma ecopolítica do planeta: “ocupação pela
qual os Estados vão organizando a centralidade de
poder de modo federativo, diluindo nacionalidades e
relacionando-se com organizações não-governamentais,
segundo os processos de privatização de negócios e
serviços. O objetivo principal deste governo para o corpo
são é garantir certa restauração do planeta diante do
reconhecimento do inevitável estrago proporcionado
pelo capitalismo e o efêmero socialismo estatal. É um
investimento político-econômico em federar o planeta,
implicando compaixão pelos mais pobres, certa retórica
relativista a respeito das etnias e culturas, conexão
planetária da economia, comunicação e regimes de
direitos e governo, no qual, em especial, figura a
democracia midiática. A ecopolítica, parafraseando
Foucault, tem como alvo o planeta e os vivos dentro dele:
os produtivos e os que o legitimam politicamente.”29
O governo do planeta implica numa nova lógica
política que visa impulsionar e dar livre trânsito aos
fluxos de capital, produtos e trabalhadores intelectuais,
ao mesmo tempo em que se preocupa em conter as
populações miseráveis (e possivelmente perigosas ou
contestadoras) por uma dupla via: de um lado, inclusão
e participação — pela democracia representativa e
participativa e pela cessão de uma “pletora de direitos
que faz crer na mobilidade”30 —, de outro lado, repressão
e controle pela vigilância constante a céu aberto.

177
16
2009

No plano global, as ações de violência dessas práti-


cas de governo mundial são levadas adiante por seus
componentes — Estados, organizações internacionais e
coalizões de Estados — com a meta de coibir entraves e
ameaças à realização da economia e da política na so-
ciedade de controle. Essa guerra da ecopolítica — con-
tinuada, transterritorial e policial, visando um planeta
seguro para a ordem capitalista e democrática — é des-
territorializada e fluída; e enfrenta oponentes que cir-
culam com desenvoltura pelos mesmos fluxos globais.
Assim, a guerra na sociedade de controle é também
uma guerra em fluxos.31 E a ecopolítica como emergente
prática de governo do planeta tem nessa guerra-fluxo
um instrumento de violência para prover segurança aos
novos arranjos político-econômicos globais.

III. Uma analítica agônica da política internacional

A indistinção entre política doméstica e internacional


na sociedade de controle também se verifica na práti-
ca da guerra contemporânea, tornando difícil sustentar
a divisão estanque — proveniente da filosofia política
— entre política interna como sinônimo de paz civil e
política internacional como “estado de natureza” — em
termos hobbesianos — no qual a guerra entre Esta-
dos poderia ou não eclodir. O filósofo Michel Foucault
já sustentava, em seu curso Em defesa da sociedade,
que uma análise da formação dos Estados desde uma
perspectiva histórico-política apresentaria a constitui-
ção do poder político como a cristalização de uma dada
correlação de forças ou, em outras palavras, como a
consolidação de uma ampla vitória na qual os vencedo-
res ocupam e formatam instituições e leis, sujeitando
os derrotados. Assim, as relações de poder que confor-
mam a vida política teriam “como ponto de ancoragem
uma certa relação de força estabelecida em um dado
momento, historicamente precisável, na guerra e pela
guerra.”32 Ainda segundo Foucault, “se é verdade que

178
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

o poder político para a guerra, faz reinar ou tenta fazer


reinar a paz na sociedade civil, não é de modo algum
para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar
o desequilíbrio que se manifestou na batalha final da
guerra. O poder político (...) teria como função reinse-
rir perpetuamente essa relação de força, mediante uma
espécie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas insti-
tuições, nas desigualdades econômicas, na linguagem,
até nos corpos de uns e outros.”33
Ao compreender a política não como paz civil, mas
como uma perpetuação dos combates manifestados
na guerra, Foucault propõe inverter a fórmula de
Clausewitz, afirmando que “a política é a guerra con-
tinuada por outros meios.”34 Esse deslocamento de
Foucault é possível porque o filósofo desenvolvera uma
analítica do poder distanciada dos estudos clássicos
da filosofia política que entendem as relações de poder
como relações simplesmente de dominação e o poder
como força meramente negativa, exercida de cima
abaixo, por grupos, classes ou pessoas que deteriam o
poder como se ele fosse um objeto ou propriedade. Na
perspectiva da analítica foucaultiana, “o poder não é
uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa
potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado
a uma situação estratégica complexa numa sociedade
determinada.”35
O poder, para Foucault, manifesta-se quando exer-
cido numa relação de força, numa dada situação na
qual um pretende governar a conduta de outro que
resiste. Deste modo, só haveria relações de poder na
luta e com luta, nas tentativas incessantes de governar
outrem e de se resistir ao governo. Por esse motivo,
Foucault sugere que as relações de poder fossem
estudadas por um “modelo estratégico”,36 ou seja,
pela perspectiva da guerra. Para Foucault, as relações
de poder seriam menos um “‘antagonismo’ essencial
(...) [e mais] um ‘agonismo’ — (...) uma relação que é,
ao mesmo tempo de incitação recíproca e de luta.”37

179
16
2009

Essa analítica deveria ser não uma teoria geral do


poder, mas uma agonística do poder, um método que
visasse o poder em seus momentos de realização e
nos efeitos concretos de seu exercício. Nesse sentido,
a política não seria a pacificação advinda do contrato
social e da formação do poder político monopolizador
da violência, mas a continuação de infindáveis e
cotidianos combates.
Um século antes de Foucault, o pensador libertário
Pierre-Joseph Proudhon causou polêmica ao defender
no seu livro A guerra e a paz, de 1861, que a guerra era
a situação incontornável na qual sempre viveram os ho-
mens e que não havia ordem política, social e econômica
que não houvesse sido fundada e mantida por ela. Para
Proudhon, os juristas e filósofos políticos desde o final
da Idade Média se esforçaram para provar que política e
direito eram o oposto à guerra; e que o Estado era fruto
de um contrato entre homens ou da vontade de Deus,
mas nunca uma produção humana a partir de vitórias
e derrotas. Em sentido oposto, Proudhon afirmou que
a guerra era “uma espécie de ordália, ou como se dizia
na Idade Média, um julgamento de Deus”;38 a guerra,
em suma, era o momento que estabelecia a justiça e
não a negação dela: o mais justo sempre foi o vencedor,
aquele que pela sua superioridade em força fixou o que
é correto, moral, legal, elevado.
Proudhon afirmou existir, assim, um direito da força
expressado na guerra e que seria o instaurador de todo
direito e ordem política. O Estado e o regime de proprie-
dade privada, nesses termos, não seriam resultado de
um contrato entre homens ou da vontade divina, mas
resultado de uma determinada correlação de forças
que estabeleceu essa ordem das coisas. Desse modo, a
política — a “paz civil” dos juristas — não seria outra
coisa que uma guerra constante, uma “pequena guerra”
nas palavras de Proudhon, sem o fausto das campanhas
militares, mas vivida, sentida e excitada diariamente
por cada um. A guerra dos exércitos estatais, causa-

180
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

dora de tanta destruição, foi chamada por Proudhon


de “guerra material”,39 e seria praticada pelos Estados
em nome de sua saúde e da manutenção do regime de
propriedade privada.
Para Proudhon tal guerra material poderia ser supe-
rada quando o federalismo superasse o Estado centrali-
zado como forma de organização política das sociedades
e o mutualismo econômico sobrepujasse o regime capita-
lista como modo de geração e distribuição de riqueza.40
No entanto, a chegada à anarquia não significaria o
nascimento de uma idílica era de paz. Para Proudhon,
a história política dos povos era marcada pelo choque
entre os princípios da Liberdade e da Autoridade que
nunca se anulavam, mas que se tornavam hegemônicos
em determinadas épocas, determinando a existência de
regimes políticos de maior liberdade (como a democracia
e a anarquia) ou de maior centralização do poder (como
a monarquia e o comunismo).41 Tal dialética sem
síntese de Proudhon mostra, em si mesma, uma noção
de combate permanente, sem pacificação possível. A
anarquia, então, seria o regime político-econômico no
qual prevaleceria o princípio da Liberdade, mas nem
por isso as lutas deixariam de existir. As divergências
e discordâncias de opinião entre os homens sempre
existiriam e apenas com a presença desse antagonismo
haveria vida, estímulo, afirmação de si e do outro. A
anarquia em Proudhon seria uma “paz belicista” e não
o fim da História ou a paz civil dos juristas.42
É interessante notar que Proudhon, assim como
Foucault, apresentou a possibilidade de analisar as
relações políticas pela perspectiva da guerra, pelo mé-
todo estratégico ou pela agonística. Esse método se di-
ferencia da tradição da filosofia política que ampara o
discurso jurídico-político e fundamenta o Estado e seu
direito. No campo das Relações Internacionais, as prin-
cipais escolas teóricas — realismo e liberalismo — são
tributárias ou da vertente hobbesiana — a primeira —
ou da série kantiano-liberal — a segunda —, partilhan-

181
16
2009

do da premissa de que o Estado instaura a paz civil


expulsando a guerra para o espaço internacional. Já a
perspectiva agonística não estabelece essa oposição en-
tre guerra e política, ainda que reconheça as diferenças
marcantes entre as relações de poder dentro do Estado
e os enfrentamentos internacionais de forças militares.
Assumir a noção de política como guerra implica
compreender o poder como situação estratégica e a po-
lítica como uma malha infindável de combates. Nesse
sentido, a indistinção entre política interna e externa
apresenta-se fecunda para uma análise da guerra na
sociedade de controle, quando as fronteiras nacionais
são atravessadas por inúmeros fluxos econômicos e por
forças em luta e um espaço político-econômico global
que emerge. Esboçar um estudo da guerra no presen-
te exigiria, assim, pensar como se dão as relações de
poder na sociedade de controle. Estudar a guerra hoje
poderia ser, desse modo, uma forma de acesso à pro-
blematização da política na sociedade de controle e um
modo de analisar como se governa e como se resiste na
era da ecopolítica.
A produção de noções nesse campo é ainda inicial
e está em relação direta com os estudos e indicações
deixadas por Michel Foucault e Gilles Deleuze e com
a produção de pesquisadores contemporâneos, como
Edson Passetti. O amplo e inicial panorama apresentado
aqui tem a intenção de destacar a urgência em deslocar
a perspectiva de análise se o objetivo é compreender a
política global na sociedade de controle. Experimentar
esse movimento significa colocar-se fora do discurso
jurídico-político e, portanto, do conjunto de saberes que
pensa, justifica e legitima o poder político centralizado,
quer seja na forma do Estado moderno, quer seja na das
novas configurações políticas anunciadas pela União
Européia. Esse saber do direito e da filosofia política
modernos é, segundo Foucault, uma “encomenda
régia” cujo maior problema foi “desde a Idade Média,
(...) fixar a legitimidade do poder [soberano].”43 Tendo

182
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

em vista a procedência e alinhamento das teorias


internacionalistas ao discurso jurídico-político, seria
possível seguir ao lado de Foucault quando ele afirma
que “no pensamento e na análise política ainda não
cortaram a cabeça do rei.”44 Nesse sentido, pensar
a noção de guerra-fluxo implica encarar o desafio de
estudar as relações internacionais a partir dos con-
ceitos de sociedade de controle e ecopolítica; exercício
que é, ao mesmo tempo, um movimento em direção
à problematização do estudo das relações de poder
no presente e um desafio às teorias jurídico-políticas
vinculadas como produtoras de saber às novas formas
de governar o planeta. Experimentar percursos como
esse significa, desse modo, uma declaração de guerra
nesse incessante combate entre formulação de saberes,
produção de verdade, estratégias de governo e táticas
de resistências.

Notas
1
Res. 1846/2008; § 10 a.
2
Francis Fukuyama. Construção de Estados: governo e organização no século XXI.
Tradução de Nivaldo Montigelli Jr. Rio de Janeiro, Rocco, 2005, p. 124.
3
Frank. R. Pfetsch. “Why was the 20th century warlike?” in Estevão Chaves de
Rezende Martins (org.). Relações Internacionais: visões do Brasil e da América Latina.
Brasília, FUNAG/Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, 2003, pp.
319-340.
4
Friedrich von der Heydte. A guerra irregular moderna, em políticas de defesa e como
fenômeno militar. Tradução de Jayme dos Santos Taddei. Rio de Janeiro, Bibliex,
1990.
5
Hans Magnus Enzensberger. Guerra Civil. Tradução de Marcos Branda
Lacerda. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
6
Michel Foucault. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão.
São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 191.
7
Carl von Clausewitz. Da guerra. Tradução de Maria Teresa Ramos. São Paulo,
Martins Fontes, 2002.

183
16
2009

8
Para uma discussão sobre a relação entre novos ilegalismos transnacionais e
conflitos internacionais consulte: Misha Glenny. McMáfia: crime sem fronteiras.
Tradução de Lucia Boldrini. São Paulo, Companhia das Letras, 2008; Thiago
Rodrigues. Política e drogas nas Américas. São Paulo, Educ/FAPESP, 2004; Moisés
Naím. Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006.
9
Em 1998, as embaixadas estadunidenses na Tanzânia e o no Quênia foram
destruídas com bombas e em 2000 um navio de guerra dos Estados Unidos
foi atacado em Aden, no Iêmen, por uma lancha com terroristas suicidas. Os
três atentados foram atribuídos pelos EUA à Al-Qaeda.
10
Andre Degenszajn. Terrorismos e terroristas. São Paulo, PUC-SP, Dissertação
de Mestrado em Ciências Sociais (Relações Internacionais), 2006.
11
Andre Degenszajn. “Terrorismos e invulnerabilidades” in Edson Passetti e
Salete Oliveira (orgs.). Terrorismos. São Paulo, Educ, p. 169.
12
Edson Passetti. Anarquismo urgente. Rio de Janeiro, Achiamé, 2007, p. 94.
13
Idem.
14
John Baylis, Steve Smith, Patricia Owens. The globalization of world politics: an
introduction to international relations. New York, Oxford University Press, 2008.
15
Ver Jeremy Scahill. Blackwater: a ascensão do exército mercenário mais poderoso do
mundo. Tradução de Cláudo Carina e Ivan Weiz Kuck. São Paulo, Companhia
das Letras, 2008; Olivier Hubac (org.). Mercenaires et polices privées: la privatisation
de la violence armée. Paris, Universalis, 2005.
16
Thiago Rodrigues. Narcotráfico, uma guerra na guerra. São Paulo, Desatino,
2003.
Luis Fernando Ayerbe. Ordem, poder e conflito no século XXI. São Paulo, Editora
17

Unesp, 2006.
Antonio Negri e Michael Hardt. Multitude ― war and democracy in the age of
18

Empire. Nova Iorque, The Penguin Press, 2004.


Michel Foucault. Seguridad, territorio, población. Tradução de Horacio Pons.
19

México, Fondo de Cultura Económica, 2006.


20
Antonio Negri e Michael Hardt, 2004, op. cit., p. 21.
21
Gilles Deleuze, “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” in Conversações.
Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo, Editora 34, 1998, p. 223.
22
Idem.
23
Ibidem, pp. 233-234.

184
verve
Guerra, libertarismo e relações internacionais

24
Ibidem, p. 220.
Michel Foucault. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis,
25

Vozes, 1997.
26
Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez, 2003,
p. 30.
27
Gilles Deleuze, 1998, op. cit., p. 223.
28
Edson Passetti, 2003, op. cit., p. 45.
29
Idem, p. 48.
30
Ibidem, p. 279.
31
Thiago Rodrigues. Guerra e política nas relações internacionais. São Paulo, PUC-
SP, Tese de doutorado em Relações Internacionais, 2008.
32
Michel Foucault, 2002, op. cit., p. 23.
33
Idem.
34
Ibidem, p. 22.
35
Michel Foucault. História da sexualidade: a vontade de saber, vol. 1. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de
Janeiro, Graal, 1999, p. 89.
36
Idem, p. 97.
37
Michel Foucault. “O sujeito e o poder” in Paul Rabinow e Hubert Dreyfus.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de
Janeiro, Forense Universitária, 1995, p. 245.
38
Pierre-Joseph Proudhon. La guerre et la paix, tome 1. Antony, Éditions
Tops/H. Trinquier, 1998, p. 95.
39
Édouard Jourdain. Proudhon, Dieu et la guerre. Paris, L’Harmattan, 2006, p.
46.
Paulo-Edgar Almeida Resende e Edson Passetti (orgs.). Proudhon. São Paulo,
40

Editora Ática, 1986.


41
Pierre-Joseph Proudhon. Do princípio federativo. Tradução de Plínio Coelho.
São Paulo, Imaginário/Nu-Sol, 2001.
42
Édouard Jourdain, 2006, op. cit.
43
Michel Foucault, 2002, op. cit., p. 31.
44
Michel Foucault, 1999, op. cit., p. 86.

185
16
2009

RESUMO
Em A guerra e a paz, livro de 1861, Pierre-Joseph Proudhon
afirmou que a guerra instituiria os direitos, os governos e as re-
sistências. A guerra não se limitaria às batalhas entre exércitos,
mas, ao contrário, seria cotidiana, fazendo da política uma pe-
quena guerra. Um século depois de Proudhon, Michel Foucault
estudou as relações de poder pela perspectiva do agonismo
(do combate), o que faria da política uma guerra continuada
por outros meios. Em tempos nos quais as relações de poder se
redimensionam em termos globais, os escritos de Proudhon e
Foucault têm a potência de impulsionar uma analítica das rela-
ções internacionais liberada dos referenciais jurídico-políticos,
comprometidos com a defesa do poder político centralizado, e
que experimente uma perspectiva libertária interessada em
compreender as correlações de força e as resistências transter-
ritoriais da sociedade de controle.

Palavras-chave: guerra, relações internacionais, libertarismo.

ABSTRACT
Pierre-Joseph Proudhon stands in his book La guerre et la paix
(War and peace), published in 1861, that war would be the
settler of rights, governments and resistances. War would not
be limited to the battles among armies, but instead, it would
be a daily event that would convert politics in a “small war”.
A century after Proudhon, Michel Foucault studied the power
relations through the agonistic perspective, which would
make politics a war by other means. Nowadays, when power
relations are refashioned in a global way, Proudhon’s and
Foucault’s writings can impulse an analytics of international
relations free from the juridical-political references which are
compromised with the defense of state power. An analytics
that could experience a libertarian perspective interested in the
comprehension of the correlations of force and the transterritorial
resistances in the society of control.

Keywords: war, international relations, libertarianism.

Recebido para publicação em 31 de março de 2009. Confirmado


em 7 de julho de 2009.

186
verve
Poder e resistências: movimentações da multidão...

poder e resistências: movimentações


da multidão ― uma cartografia dos
movimentos antiglobalização1
0
bruno andreotti*

Estamos acomodados e é contra a acomodação que


essa pesquisa se insurge. O contra-posicionamento ao
capitalismo neoliberal tornou o aprofundamento da
democracia e o pleno exercício da cidadania a panaceia
de todos os males. Tais elementos foram redimensio-
nados dentro do projeto político emancipatório da mul-
tidão. Mais que isso. A sociedade na qual vivemos tem
a característica de se redimensionar pelo inacabado e,
nela, as relações de poder não mais atuam para o com-
bate ou o extermínio de resistências, mas para capturas
que levam à sua inclusão.2 É nessa perspectiva que os
movimentos antiglobalização e seus desdobramentos
serão analisados.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial ocorre a
emergência do neoliberalismo. Em 1947, por iniciativa
de Friedrich August von Hayek, é fundada a Sociedade
de Mont-Pèlerin, da qual participam Milton Friedman,
Walter Lippman, Ludwig von Misses e Karl Popper, entre
outros. Esses pensadores e suas obras traduzem uma
reação contra o intervencionismo estatal e o Estado
de Bem-Estar Social.3 A posição dos pensadores neo-

* Pesquisador no Nu-Sol, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, bacharel e


licenciado em História também pela PUC-SP.

verve, 16: 187-203, 2009


187
16
2009

liberais começa a ganhar destaque em 1974 quando


o capitalismo passa por uma nova crise.4 O programa
neoliberal formalmente entra em cena com o governo de
Margareth Thatcher, em 1979, na Inglaterra, e com a
eleição de Ronald Reagan nos Estados Unidos em 1980,
e pode ser entendido, em linhas gerais, como o fim dos
limites impostos ao capital pelo Estado-nação, com o
desmantelamento do controle político e social exercido
pelos Estados sobre a circulação do capital no planeta.
Entre o final da década de 80 e início dos anos 90
o colapso da União Soviética, cujo símbolo maior é a
queda do Muro de Berlim, põe fim ao chamado mun-
do bipolar, dividido entre os Estados Unidos e a União
Soviética, com seu socialismo estatal e autoritário que
se apresentava como a grande alternativa ao modelo
capitalista, agora já na sua configuração neoliberal. O
capitalismo havia vencido a Guerra Fria e uma nova
Ordem Mundial se conformava.
A predominância do capital financeiro, privilegiando
a atividade especulativa em detrimento das atividades
produtivas, gera o desemprego em massa.5 A adminis-
tração neoliberal da economia, com o recuo do controle
dos Estados-nação sobre o capital, levou ao desmante-
lamento do Estado de Bem-Estar Social. O capitalismo
neoliberal, contornando pequenos resquícios socialis-
tas, declara-se como único sistema econômico mundial,
em que, paralelamente ao enfraquecimento da sobera-
nia dos Estados-nação, os acordos multilaterais entre
instituições financeiras como o FMI e o Banco Mundial
ganham força, caracterizando o que se convencionou
chamar de globalização.
Dentro desse quadro, o que se chamou de esquerda
durante o século XX sofreu um duro golpe.6 A queda do
Muro tornou visível tanto a impossibilidade do socialis-
mo estatal e autoritário como o modelo de organização
marxista-leninista, no qual as massas seriam organiza-
das no Partido, que, liderado pela Vanguarda, levaria à
revolução socialista, tomando o Estado da burguesia e

188
verve
Poder e resistências: movimentações da multidão...

entregando-o aos trabalhadores, que o renovariam e o


fariam definhar.
Em primeiro de janeiro de 1994, o Exército Zapatista
de Libertação Nacional (EZLN) se insurge contra o neo-
liberalismo representado pelo Tratado Norte-Americano
de Livre Comércio (NAFTA, de acordo com a sigla em
inglês). As reivindicações dos Zapatistas eram por dig-
nidade, democracia e autonomia. Não reivindicavam o
controle do Estado, nem formavam uma Vanguarda ou
um Partido, marcando diferenças claras com o mode-
lo de organização marxista-leninista. Foi sob inspira-
ção dos zapatistas que os movimentos antiglobalização
tomaram forma e ganharam força, constituindo novas
formas de organização e práticas de resistências que
emergiam no cenário político mundial a partir do ciclo
de protestos organizados pela Ação Global dos Povos
(AGP), que vai de Seattle (1999) à Gênova (2001), dos
Fóruns Sociais Mundiais e da revista Global Brasil,
podendo esses três momentos e movimentos serem
agrupados, genericamente, sob o termo movimentos
antiglobalização.
Esses movimentos constituem organizações dissemi-
nadas em rede, cuja principal característica é manter gru-
pos diferentes e contraditórios agindo em comum, sem
qualquer autoridade única, por meio de processos deci-
sórios democráticos.7 As organizações em rede aparecem
como alternativa à organização marxista-leninista.
O conceito de multidão foi elaborado por Antonio
Negri, cientista político e filósofo italiano, para apreender
conceitualmente essas resistências e as possibilidades
de sua organização, juntamente com o advento do que
se chama tradicionalmente de globalização, que já não é
apenas um fato, “mas também uma fonte de definições
jurídicas que tende a projetar uma configuração única
supranacional de poder político”,8 o Império. Multidão
é o conceito de uma nova classe global resistente ao
Império, capaz de realizar a “democracia radical em
escala global.”9

189
16
2009

O presente texto constitui uma cartografia10 das re-


sistências que emergem a partir dos movimentos anti-
globalização e apreendidas sob o conceito de multidão.
Em 1998, em Genebra, foi lançada uma coordenação
mundial de resistência contra o mercado globalizado,
inspirada pelos zapatistas, que objetivava servir como
um instrumento de comunicação e coordenação das lu-
tas contra o mercado global e construção de alternativas
locais que ficou conhecida como AGP. Sua proposta era
uma “postura de confronto através da ação direta e,
ao mesmo tempo, a construção de alternativas globais
para o poder do povo.”11
Nessa primeira reunião da AGP foram elaborados
também os três principais documentos que a definem:
os cinco princípios básicos, os princípios de organização
e seu manifesto. Existem alguns pontos de tangência en-
tre os princípios da AGP e certos princípios libertários,
como a desobediência civil, a ação direta, a descentrali-
zação e a autonomia.
Apesar do número de ações e protestos que contaram
com a coordenação da AGP ser enorme, há um tipo
específico que é considerado uma inovação e um sucesso
pela AGP, os Dias de Ação Global, que poderíamos definir
como várias ações diretas coordenadas ocorrendo em
diversos locais ao redor do globo com o objetivo de impedir
o encontro dos gestores do capitalismo internacional
(Organização Mundial do Comércio, Banco Mundial,
Fundo Monetário Internacional, etc.) e deslegitimar
tanto o próprio capitalismo quanto essas instituições.
Tais ações diretas de protesto são organizadas por
grupos de afinidade de forma autogestionária,12 um dos
princípios básicos do anarquismo.
Foi durante a segunda conferência da AGP, realizada
em agosto de 1999, na Índia, que o chamado para o 30
de novembro (N30),13 em Seattle, data e local escolhidos
para coincidir com o terceiro encontro da Organização
Mundial do Comércio, aconteceu, motivado pelo sucesso

190
verve
Poder e resistências: movimentações da multidão...

dos Dias de Ação Global anteriores.14 No informe sobre


o N30 que circula no boletim também há informações
sobre seu objetivo e a tática que serão utilizados para
alcançá-lo: o cancelamento da reunião da OMC por
meio da ação direta não-violenta.
Algumas organizações que estavam presentes não fi-
zeram parte das diretrizes estabelecidas do N30, entre
elas a Seattle Anarchist Response, que ajudou bastan-
te a formação e atuação dos Black Blocks em Seattle,
e que claramente adotou uma postura que violou as
diretrizes sobre “não-violência” que circularam pelos
boletins da AGP.
A tática de confronto praticada pelos Black Blocks já
começa na própria vestimenta de seus participantes:
todos vestidos de preto, usando também máscaras
negras, de preferência com o maior número de pes-
soas possível para confundir a polícia. Apesar do
preparo para o eventual confronto, o Black Block não
é necessariamente violento, muitas vezes participa de
manifestações não-violentas, no entanto, está sempre
pronto a responder à violência policial num confronto
direto. Também costuma-se associar os Black Blocks
à destruição da propriedade, sobretudo bancos,
instituições financeiras, multinacionais e câmeras
de segurança. Outra ação comum dos Black Blocks é
prestar os primeiros socorros às pessoas que foram
vítimas de violência por parte das autoridades durante
algum protesto, e também de servir como “escudo” para
manifestantes não-violentos quando há um confronto
entre estes e a polícia. Essas são apenas suas práticas
mais comuns, mas não é possível generalizar, uma
vez que os Black Blocks não compartilham de nenhum
princípio comum.15
Essa tática, em Seattle, constituiu-se na destruição
das propriedades de grandes lojas de marcas conheci-
das. O Black Block não é formado exclusivamente por
anarquistas, embora um número considerável de seus
participantes o seja. Também se utilizam da organiza-

191
16
2009

ção horizontal e não-hierárquica, por grupos de afini-


dade, e nisso não diferem das demais organizações em
rede que estiveram no N30.
Mesmo com essa cisão já indicada, os acontecimen-
tos de Seattle tiveram maior repercussão que nos Dias
de Ação Global precedentes e foi no pós-Seattle que
o movimento ganhou notoriedade. Muito mais que o
sucesso midiático do movimento, muitos intelectuais
foram obrigados a voltar suas análises ao “movimen-
to antiglobalização”. Vários Dias de Ação Global ocor-
reram com relativo sucesso, até os acontecimentos do
J20, sigla dos protestos ocorridos em Gênova.
As mobilizações em torno do J20 iniciaram alguns
dias antes devido ao Fórum Social de Gênova (FSG),
um desdobramento do primeiro Fórum Social Mundial
realizado em 2001, em Porto Alegre. A ação policial já
havia sido iniciada, com a cidade sendo dividida por
zonas de cores, cada cor com uma restrição ao desloca-
mento de pessoas específicas, o fechamento de aeropor-
tos (cerca de 200 vôos cancelados) e com várias blitzes
organizadas pela polícia.
Mesmo com toda a ação policial os protestos se ini-
ciaram no J20 com o objetivo de fechar a reunião do G8
através da prática de diversas ações diretas coordenadas,
como nos Dias de Ação Global anteriores. Os relatos
indicam uma ação inicial da polícia sem nenhum tipo
de provocação por parte dos manifestantes, mas, após
a primeira ação, que teria sido tomada contra grupos
não-violentos, os Black Blocks e demais grupos de con-
fronto tomaram uma posição ofensiva. O confronto en-
tre a polícia e os manifestantes teve seu ápice na morte
de Carlo Giuliani, estudante de 23 anos de idade partici-
pante dos protestos, elevado à condição de mártir.
Os acontecimentos de Gênova marcam um ponto im-
portante na cartografia do movimento de movimentos,
momento de cisão entre os adeptos das ações diretas
violentas e não-violentas, chegando a um ponto irrecon-

192
verve
Poder e resistências: movimentações da multidão...

ciliável, e, nesse momento, a diversidade de táticas, es-


tratégias e posições políticas, reconhecida como um de
seus pontos fortes e inovadores, e que marcava sua dife-
rença dos demais movimentos políticos até então, sofre
uma quebra. A potência da multidão vem exatamente
dessa capacidade de agregar movimentos díspares sob
uma reivindicação comum ou um objetivo comum, po-
tência que é alcançada através da estrutura organizativa
da rede. Mas há um limite para as composições de forças
dentro do comum multitudinário; certas práticas são in-
componíveis com a multidão, não podem mesmo com-
por com o comum multitudinário sob pena de não mais
serem experimentações de liberdade, tendem mesmo a
evadir-se e escapar à captura.
Quando o uso da violência é utilizado como crité-
rio de avaliação das ações diretas executadas por uma
parte dos anarquistas dentro do movimento, crivo ado-
tado pela vertente reformista que o compõe, formada
principalmente, mas não só, por membros ou ex-mem-
bros de partidos políticos, sindicatos e ONGs, é que
podemos notar a introdução de um elemento moral, e
nisso a marca da captura desses movimentos, pois até
mesmo uma parcela dos anarquistas que o compõem
passa a reconhecer tal divisão. É quando os anarquis-
tas adeptos da ação direta como prática de liberdade
não podem mais compor com a multidão, as relações
características do corpo formado por ela não mais con-
vêm às práticas de liberdade.16 Esse ponto de esvazia-
mento do movimento por uma parte dos anarquistas
que até então procuravam atuar em seu interior é a
consolidação da multidão como seu principal agente.
A partir de então, nos Fóruns Sociais Mundiais, a mul-
tidão segue coesa e unitária, uma forma de coesão e
unificação que não se realiza no Partido ou na Van-
guarda, mas na estrutura organizativa da rede.
O Fórum Social Mundial (FSM) é um “espaço per-
manente de busca e construção de alternativas”, que
visa fazer prevalecer “uma globalização solidária que

193
16
2009

respeite os direitos humanos universais, bem como


os de todos (as) os (as) cidadãos e cidadãs em todas
as nações e meio ambientes, apoiada em sistemas e
instituições internacionais democráticos e a serviço da
justiça social, da igualdade e da soberania dos povos”,
mas “não pretende ser uma instância representativa
da sociedade civil mundial” e seus encontros não têm
caráter deliberativo, mas “propugna pelo respeito aos
direitos humanos, pela prática de uma democracia
verdadeira, participativa.”17 Nesses pequenos trechos
selecionados encontram-se os principais eixos do
modelo alternativo ao capitalismo neoliberal propos-
tos pelo FSM: a articulação da sociedade civil pelo
aprofundamento da cidadania e democracia através da
conquista e ampliação de direitos.
Um dos objetivos primordiais do FSM é justamente
contribuir para a organização de uma sociedade civil
planetária que possa funcionar como limitadora das
políticas neoliberais, apta a pressionar governos e ins-
tituições por reformas democráticas, exercendo uma
certa regulação ou controle cidadão dessas mesmas po-
líticas.
A organização da sociedade civil em escala planetária
dentro do contexto do FSM cumpre a função de limitar e
regular o poder do Estado e do mercado, operando limi-
tes legais ao exercício da autoridade, ao mesmo tempo
em que dele participa e o reforça. A noção de sociedade
civil proposta no FSM está intimamente ligada à noção
de igualdade de direitos, à autonomia desta em relação
ao Estado e ao mercado, à criação de canais institucio-
nais de participação política e ao aprofundamento da
cidadania também em escala planetária.
E aqui é oportuno problematizar a noção de sociedade
civil junto à analítica do poder feita por Foucault a partir
do deslocamento operado com a introdução da questão
do governo e do conceito de governamentalidade, no cur-
so Segurança, Território, População. Por governamenta-
lidade Foucault entende “o conjunto constituído pelas

194
verve
Poder e resistências: movimentações da multidão...

instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os


cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma
bem específica, embora muito complexa, de poder que
tem por alvo principal a população, por principal forma
de saber a economia política e por instrumento técnico es-
sencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar,
por ‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha
de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir,
e desde a muito tempo, para a preeminência desse tipo
de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos
os outros — soberania, disciplina — e que trouxe, por
um lado, o desenvolvimento de toda uma série de apa-
relhos específicos de governo [e, por outro lado], o de-
senvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por
‘governamentalidade’, creio que se deveria entender o
processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o
Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e
XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a
pouco ‘governamentalizado’.”18
Portanto, para Foucault a governamentalização do
Estado marca uma mudança na economia do poder:
não mais o Estado de justiça medieval, nascido numa
territorialidade feudal, marcado por um jogo de com-
promissos e litígios, não mais o Estado administrativo,
nascido numa territorialidade de fronteira, com seus
regulamentos e disciplinas, mas um Estado de governo,
que não é definido essencialmente por sua territoria-
lidade, mas por uma massa: a massa da população.
Estado de governo, que tem a população como objeto
e que se refere e utiliza a instrumentação do saber econô-
mico, com uma sociedade controlada pelos dispositivos
de segurança.19 Uma análise em termos de governamen-
talidade implica entender o poder como um conjunto
de relações estratégicas e é desse modo que o concei-
to de governamentalidade interessa nessa pesquisa.
Avançando na problemática do governo em seu curso
seguinte, O nascimento da biopolítica, Foucault estuda
a arte de governar, a maneira pensada de governar o
melhor possível e a reflexão sobre a melhor maneira

195
16
2009

possível de governar, ou o estudo da racionalização


da prática governamental, do governo entendido como
“atividade que consiste em reger a conduta dos homens
num quadro e com instrumentos estatais” no exercício
da soberania política.20
Nesse curso, Foucault apreende a sociedade civil
como um espaço de referência à arte de governar, uma
realidade a partir da qual esta arte de governar se exerce,
portanto um “conceito de tecnologia governamental”,21
mas não é seu produto puro e simples, se constitui no
jogo das relações de poder e do que sem cessar lhes
escapa, é dessa interface dos governantes e dos gover-
nados, nisso que é transacional e transitório, reversível,
estratégico, que a sociedade civil ganha realidade.22
Dentro do contexto do FSM a “sociedade civil as-
pira a um papel de agente direto da decisão, da apli-
cação e do controle das políticas públicas nacionais e
supranacionais”,23 portanto, ao contrário de fazer valer
a distinção proposta no FSM entre sociedade civil, Es-
tado e mercado, sendo que a primeira funciona como
uma reguladora legítima dos demais, pode-se ver no seu
funcionamento uma forma de esquematização própria
de uma tecnologia particular de governo: convocada a li-
mitar o governo e o Estado ao mesmo tempo em que dele
participa, construindo alternativas ao modelo neoliberal
de governo ao constituir uma outra forma de governo. A
concepção de sociedade civil encontrada no FSM pode
ser problematizada como uma forma de tecnologia go-
vernamental que compõe com o que Foucault denomi-
nou de liberalismo: uma tecnologia de governo que tem
por objetivo sua própria autolimitação, pois a função da
sociedade civil é limitar o Estado e o mercado, operar
uma regulação do Estado e do mercado, uma regulação
cidadã e participativa.
Destaca-se, portanto, como a pluralidade de reivindi-
cações dos diversos grupos que participavam dos Dias de
Ação Global foi unificada pelos Fóruns Sociais Mundiais
através de uma demanda por democracia participativa

196
verve
Poder e resistências: movimentações da multidão...

e direitos que se constitui numa espécie de regulação


cidadã do capital, para qual o Estado é imprescindível,
fazendo com que a organização horizontal da rede, apar-
tada dos grupos de afinidade e da ação direta, fique su-
bordinada ao modelo central e centralizador do Estado.
O que desponta nos Fóruns Sociais Mundiais é a
emergência de uma governamentalidade que consiste em
reger a conduta da multidão, convocando à participação,
num quadro e com instrumentos estatais, um Estado de
governo que conta com a participação dos governados
para que se exerça de forma racional e legítima. Essa
governamentalidade surge como elemento importante
dentro do contexto da ecopolítica, onde a problemática
do governo de si e dos outros passa a incidir sobre o
planeta.
Lançada no Fórum Social Mundial de Porto Alegre de
2003, a revista Global pretende ser um interlocutor dos
movimentos antiglobalização. Ela é produzida dentro do
movimento e para o movimento, sendo um espaço de
articulação de resistências e produção em redes, para
dentro desses espaços tornar possível processos consti-
tuintes e democráticos. É o objetivo desses movimentos,
e da revista, contribuir para a institucionalização de tais
espaços, encontrando brechas de constituição democrá-
tica na globalização. Para tanto, a única política possível
seria a da multidão, pois conseguiria juntar resistência e
produção como democracia. É dessa forma que se efetua
a codificação estratégica dos pontos de resistências, não
mais tendo como modelo de organização a construção de
partidos e as vanguardas, mas a organização em rede,
codificação que passa necessariamente pelo molar.
Nas páginas da revista Global24 tenta-se a unificação
de vários movimentos, minorias, organizações, ONGs,
partidos (notadamente o Partido dos Trabalhadores/PT)
e iniciativas governamentais, dos quais destacam-se:
CUFA (Central Única das Favelas), MPF (Movimento
Popular das Favelas), MST (Movimento dos Trabalhado-
res Rurais Sem-Terra), os panelaços argentinos, Grupo

197
16
2009

Cultural Afro Reggae, o apoio às Ações Afirmativas,


sobretudo às cotas para afrodescendentes no Ensino
Superior, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto), os Fóruns Sociais realizados no mundo, a defesa
de projetos que garantam uma Renda Cidadã (desde
a Renda Social Garantida na Europa até o Bolsa-
Família no Brasil), as lutas por democracia sobretudo
nos países da América Latina. Todas essas propostas
são abarcadas e traduzidas sob a forma de demanda
por direitos e democracia, pressionando para uma
nova institucionalidade radicalmente democrática,
constituindo a unidade pontual formada em redes
almejada pela revista, conceitualmente o que Negri
chamou de multidão.
Ao entender alguns governos democráticos (como
o brasileiro, o argentino e o venezuelano, exemplos
abordados na Global) como abertos às dinâmicas dos
movimentos sociais, ou da multidão, pretende-se que a
participação política, pressionando as instituições por
fora, diminua o fosso da representação democrática,
tornando a democracia mais participativa na medida em
que a mobilização produz efeitos concretos na conquista
e universalização de direitos. É isso o que significa
organizar os movimentos, tema recorrente nas páginas
da revista, ao mesmo tempo em que se organiza a
produção. Ao organizar essa produção de vida nos
movimentos, codificam-se os fluxos de resistência
na luta por direitos com o objetivo de radicalização
democrática. Vale ressaltar que frente ao Estado não
pode haver liberdade, apenas pessoas autorizadas a
fazer milhares de coisas, que desejam e precisam dessa
autorização. Frente ao Estado o que existe, o que só
pode existir de concreto, é o direito dos governados.
Deleuze25 chamou atenção para o fato de que não
existe Estado democrático que não esteja totalmente
comprometido com a fabricação da miséria humana
gerada pelo capitalismo, uma vez que não há Estado
universal, mas o mercado universal, cuja as sedes são

198
verve
Poder e resistências: movimentações da multidão...

as Bolsas e os Estados. Em outras palavras, não pode


haver Estado democrático que universalize concreta-
mente os direitos do homem. Não obstante, essa é a
utopia presente na multidão que deseja a plena inclu-
são democrática na sociedade de controle, que almeja
a codificação de resistências, sua recodificação e sobre-
codificação em governos e Estados.
Ao longo dessa cartografia, o estudo das linhas
presentes no movimento de movimentos permitiu
acompanhar a composição de uma máquina abstrata
de sobrecodificação, agenciando resistências que são
totalizadas, homogeneizadas e fechadas no conceito
de multidão. É dentro dessa máquina que a multidão
funciona: codificação de resistências, um novo código
sob o qual as resistências tornam-se resistência
multitudinária, e, pelo menos, diante da situação atual,
muito reativa, crendo na constituição de Estados
ocupados por governos democráticos que expressam um
novo pacto social com o Estado. Sobrecodificação.26
Mas “toda máquina abstrata remete a outras máqui-
nas abstratas”27 que efetuam agenciamentos concretos.
É que também existe “uma máquina abstrata de muta-
ção que opera por descodificação e desterritorialização.
É ela que traça as linhas de fuga: pilota os fluxos de
quanta, assegura a criação-conexão dos fluxos, emite
novos quanta. Ela própria está em estado de fuga, eri-
ge máquinas de guerra sobre as suas linhas.”28 Essa
máquina atua nas práticas de liberdade, e são essas
práticas que os segmentos duros, molares, obtiveram
sucesso em vedar, obstruir e barrar. Da perspectiva
das resistências ativas resiste-se em devir, desvia-se
das condições históricas para inventar algo novo. Hoje
é preciso desviar-se da multidão.

199
16
2009

Notas
1
Esse texto é uma apresentação dos resultados da pesquisa de mestrado Poder e
resistências: movimentações da multidão ― uma cartografia dos movimentos antiglobalização.
São Paulo, Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais: Política, PEPG/
PUC-SP, 2009.
2
Edson Passetti. “Poder e anarquia. Apontamentos libertários sobre o atual
conservadorismo moderado” in Verve, vol. 12. São Paulo, Nu-sol, 2007, p. 12.
3
François Houtart e François Poulet. O outro Davos. Mundialização de resistências e
de lutas. Tradução de Mariclara Oliveira. São Paulo, Cortez, 2002, p. 19.
4
Idem, p. 20.
5
François Chesnais. A mundialização do capital. Tradução de Silvana Finzi Foá.
São Paulo, Xamã, 1996, pp. 23-30.
6
José Corrêa Leite. Fórum Social Mundial. A história de uma invenção política.
São Paulo, Perseu Abramo, 2003.
7
Michael Hardt e Antonio Negri. Multidão ― Guerra e democracia na era do Império.
Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2005.
8
Michael Hardt e Antonio Negri. Império. Tradução de Berilo Vargas. Rio de
Janeiro, Record, 2001, p. 27.
9
Michael Hardt e Antonio Negri, 2005, op. cit., p. 17.
10
Uma cartografia tem por objeto de estudo as linhas que compõem
sociedades, indivíduos ou grupos. O estudo dessas linhas aparece, em
Deleuze e Guattari, sob diferentes nomes: esquizoanálise, micro-política,
pragmática, diagramatismo, rizomática. A linha molecular é segmentária,
mas é uma segmentaridade flexível, capaz de traçar pequenas modificações,
realizar desvios, embrenhar-se nas singularidades e nas suas interações,
formando códigos e territórios. A linha molar, também segmentária, mas
de segmentaridade dura, opera uma unificação, uma totalização das forças
moleculares, grandes conjuntos e grandes formas de gregaridade, opera uma
organização dual dos segmentos, sobrecodifica e generaliza, implicando um
aparelho de Estado. Há também a linha de gravidade ou celeridade, que
atravessa segmentos e limiares, é a linha de fuga, que possui primazia sobre as
demais, ou seja, é a linha molar que unifica, totaliza, organiza e sobrecodifica a
linha molecular, impedindo-a de seguir a linha de fuga. É a tarefa de destruição
e ao mesmo tempo positiva de uma cartografia: desfazer molaridades para
liberar molecularidades, desterritorializar fluxos para dar vazão às linhas de
fuga. Para um aprofundamento no conceito de cartografia, consutar: Gilles
Deleuze e Félix Guattari. O Anti-Édipo. Tradução de Joana Moraes Varela e

200
verve
Poder e resistências: movimentações da multidão...

Manuel Maria Carilho. Lisboa, Assírio, 2004; Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. III. Tradução de Aurélio Guerra
Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo,
Editora 34, 1996; Gilles Deleuze e Claire Parnet. Diálogos. Tradução de Eloísa
Araújo Ribeiro. São Paulo, Escuta, 1998.
11
Notes from Nowhere (org). We are everywhere ― the irresistible rise of global anti-
capitalism. New York, Verso, 2003, p. 96.
12
Ned Ludd. Urgência das ruas. Black Block, Reclaim the Streets e os dias de Ação
Global. Tradução de Leo Vinicius. São Paulo, Conrad, 2002, p. 10.
13
A escolha da sigla, composta pela letra inicial do mês e o dia do mês em
que ocorre o Dia de Ação Global, tem o objetivo de refletir a diversidade e o
alcance mundial dos eventos, não se referindo a nenhum grupo ou localidade
geográfica específica.
14
O N30, o acontecimento de Seattle, foi precedido por dois outros, que
ocorreram em 16 de maio de 1998 e em 18 de junho de 1999, ambos para
impedir encontros do G8.
15
One Off Press (org). On fire ― the battle of Genoa and the anti-capitalist
movement.2001. Oakland, One Off Press, 2001.
16
Daniel Colson assinala o fato de que no pensamento libertário, multidão,
utilizada sem artigo, sem ser una, como ressalta Negri, remete à anarquia, ao
múltiplo e ao diferente, a uma composição potencialmente ilimitada dos seres
a partir de uma proliferação de forças e subjetividades singulares, e não presa
à produção do comum que remete ao trabalho como fundamento ontológico
do homem. Se pensarmos multidão com Deleuze, cuja leitura de Espinosa
tem um viés nietzschiano e não marxista, como na leitura que dele faz Negri,
talvez a melhor maneira de constituí-la seja na prática anarquista das associações,
entendida como “a arte de suscitar bons encontros”. Daniel Colson. Pequeño
léxico filosófico del anarquismo de Proudhon a Deleuze. Tradução de Heber Cardoso.
Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión, 2003, p. 22.
17
Fórum Social Mundial. Carta de Princípios. Disponível em: http://www.
forumsocialmundial.org.br (acesso em: 20/08/2009).
18
Michel Foucault. Segurança, Território, População. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 144.
19
Idem.
20
Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão.
São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 4.
21
Idem, p. 402.

201
16
2009

22
Ibidem, p. 404.
23
François Houtart e François Poulet, 2002, op. cit., p. 175.
24
Revista Global. Rio de Janeiro, Rede Universidade Nômade/Do Lar Desing
Ltda. Edições 0 a 8.
25
Gilles Deleuze. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo,
Editora 34, 2000, p. 213.
26
Segundo Deleuze o capitalismo é o sistema que funciona sob fluxos
descodificados, aí está sua potência e o seu limite: ao mesmo tempo que
funciona descodificando fluxos precisa conter essa descodificação (Gilles
Deleuze e Félix Guattari, 2004, op. cit.). Codificar aquilo que escapa no
horizonte, aquilo que foge. É assim que se codificam fluxos de resistência,
tornando-os aptos a uma molarização que os codifica e sobrecodifica; a
multidão não pode deixar de passar por esse processo: direitos, um novo pacto
social, uma institucionalidade democrática. A luta por direitos já é uma entrada
em fluxos de inclusão, que se dá pela própria atuação da multidão. Ao lutar por
direitos, a multidão está no âmbito de uma resistência reativa, visto que pretende
radicalizar, o que aqui é sinônimo de reformar, o que já está dado, a democracia.
Assim a luta por direitos da multidão e a tentativa de radicalização democrática
global podem ser entendidas como resistências reativas, apresentando-se como
alternativa diante das possibilidades de inovação, integrando-se a dispositivos
de inclusão. Uma codificação e sobrecodificação de resistências em sua aliança
com o Estado através de governos democráticos, fora das resistências ativas,
que estariam no âmbito de uma descodificação, da invenção de espaços de
liberdade, resistir de uma maneira que não seja codificável, embaralhar códigos,
o devir revolucionário dos indivíduos, atemporal e incessante.
27
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia.
Vol. V. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Costa. São Paulo, Editora
34, 1997.
28
Idem, p. 104.

202
verve
Poder e resistências: movimentações da multidão...

Resumo
Os movimentos antiglobalização emergem no cenário político
em meados dos anos 90 como formas de resistências ao
neoliberalismo e à globalização, rapidamente desdobrando-
se em iniciativas de unificação: os Fóruns Sociais ao redor do
mundo e tentativas de elaboração de plataformas políticas
que investem no aprofundamento da cidadania e participação
democrática. Alguns autores apreendem essas formas de
resistências no conceito de multidão, apontando para a
possibilidade de organização e resistência no plano molar. O
presente artigo é uma cartografia dessas resistências.

Palavras-chave: multidão, resistências, reformas democráticas.

ABSTRACT
The anti-globalization movements emerged in the political
scenery in the middle of the 90s as ways of resistance to
neoliberalism and globalization, rapidly unfolding itself into
an initiative to unify: World Social Forums around the world
and efforts to elaborate political platforms that invest in the
strengthening of citizenship and democratic participation.
Some authors understand these forms of resistance in the
concept of multitude, pointing to the possibility of organization
and resistance in the molar plane. This article is a cartography
of those resistances.

Keywords: multitude, resistances, democratic reforms.

Recebido para publicação em 29 de junho de 2009. Confirmado


em 24 de agosto de 2009.

203
16
2009

quem não tem governo nem nunca terá,


exu e o jeitinho brasileiro

ivete miranda previtalli*

Exu

No panteão das religiões afro-brasileiras, Exu é sem


dúvida o mais polêmico de todos os orixás. Trapaceiro,
gozador, boa vida, perturbador, fomentador de brigas,
intrigante, maldoso, vaidoso, orgulhoso, dono dos dese-
jos sexuais, são algumas das inúmeras características
que lhe são atribuídas pela sua capacidade de lidar e
subjugar aquilo que no homem se mostra como ano-
malia.
Para nossa cultura, a instauração da incerteza cau-
sa a insegurança que é associada à fragilidade. Na re-
alidade, a ordem, a certeza, parece que nos trazem a
segurança, a estabilidade. Sendo assim, quando nos
deparamos com um símbolo como Exu, que carrega
consigo a ambiguidade, a constante presença de ruí-
dos, a desestabilidade e a presença de uma fraqueza da
consciência, que o remete ao horizonte da loucura, per-
cebemos o quanto ele desconcerta o pensamento que
está relacionado à ordem e a uma verdade única.

*
Doutoranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais
da PUC/SP, bolsista CNPq. Autora de Candomblé: agora é Angola (São Paulo,
Annablume, 2008).

verve, 16: 204-215, 2009


204
verve
Quem não tem governo nem nunca terá...

Exu é o orixá dinamizador que propicia as mudan-


ças que geram inseguranças e dúvidas. Isso se reflete
na permanente necessidade que o homem tem de fazer
escolhas para reorganizar sua vida. Todavia, essa di-
nâmica desestabilizadora, porque modifica, é a mesma
energia que propicia a criação que está na arte da so-
brevivência sob todos os aspectos, uma vez que o ho-
mem se constitui nas interações das diversas esferas
da vida.
Desta forma, a desordem permanente na dinâmica
de Exu nos permite compreender a complexidade do
ser humano e de suas relações, uma vez que nesta di-
nâmica, aquilo que ilumina é aquilo que permanece à
sombra.
Contudo, o temperamento revolucionário de Exu que
se apresenta na mitologia sempre questionando as re-
lações de poder e a todo o momento a desassossegar
a razão, é responsável pela sua associação com o mal.
Porém, Exu é a divindade que atua como mediadora
entre o homem, as forças benevolentes e as hostis. É o
princípio da ordem e o agente da reconciliação, embora
na sua maneira de agir, esteja sempre desconstruindo
para construir.
Assim é Exu, representante mais fiel do homem e o
mais polêmico de todos os orixás.

A dinâmica

Nenhum orixá pode por uma ação em movimento


sem Exu. É Exu quem propicia a dinâmica ritual que
faz as ligações simbolizadas pela encruzilhada de três
caminhos, que liga e separa.1
É o orixá que permanentemente lida com a oposi-
ção entre o caos e a ordem. Exu, devido ao seu caráter
revolucionário, está sempre a apontar para a transfor-
mação, e é no transito entre o acaso e a organização,

205
16
2009

que a dinâmica de Exu revela a complexidade do ser


humano.
Exu representa a força dinâmica que caminha junto,
lado a lado; é o divino mensageiro que sustenta impar-
cialmente o homem ou a divindade que realizam sa-
crifícios propiciatórios. Não governa e tampouco aceita
governo de alguém.
Analogamente, nas relações de poder, é o contesta-
dor que exerce com liberdade a crítica à uma sociedade
ou governo.

A informação e a narrativa

O candomblé é uma religião de tradição oral. Por isso


os ensinamentos e os mitos são passados de geração
para geração no contato do o dia a dia, na convivência
com os mais velhos. Contudo, hoje em dia, a tradição
oral tem se resignado às modernidades tecnológicas,
em que gravadores, a escrita e computadores passaram
a fazer parte do aprendizado.
A propósito, sobre o entendimento dos mitos, nós es-
tamos acostumados com a informação e, por isso, mui-
tas vezes sentimos dificuldades para entendermos este
tipo de narrativa. A informação é a história informal, é
rápida e explicativa, fala do outro e não envolve aquele
que a recebe. Atualmente, com o desenvolvimento dos
meios de comunicação de massa, podemos receber os
mais diversos tipos de informações, que trazem consi-
go os mais diferentes níveis de violência, na intimida-
de do lar, durante nossas refeições familiares sem que
nos atrapalhe o apetite, e com a “vantagem” de nos tor-
narmos pessoas informadas. A notícia é exibida como
um fato verdadeiro e inquestionável, por outro lado, a
narrativa exige de nós um questionamento e uma par-
ticipação ativa quanto a seu entendimento. Ela tem o
poder de mudar a experiência.

206
verve
Quem não tem governo nem nunca terá...

Walter Benjamin, em seu trabalho Magia e técnica. Arte


e política, mostra na sua análise a essência da narrativa:
“A informação só tem valor no momento em que é
nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se in-
teiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar
nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela
conserva suas forças e depois de muito tempo ela ainda é
capaz de se desenvolver.”2
Ao contar os mitos afro-brasileiros, percebi que ao final
deles, os ouvintes embora muito interessados e envolvidos
no processo, ficavam com interrogações. Na verdade, os
relatos são secos e ao terminar perguntavam-me: E daí?
É como se ele estancasse no melhor da história, o que
parece deixar um vazio.
Mesmo assim as pessoas gostavam de ouvi-los. Contu-
do, depois de repetidas vezes que eram narrados, percebi
que havia certa satisfação e entendimento. Acredito que
quando as pessoas estavam mais envolvidas no contes-
to da comunidade religiosa, os mitos se tornavam mais
claros e embora eles não trouxessem soluções prontas e
diretas, certamente poderiam ser encontradas boas res-
postas através deles.
Acontece que o melhor da história está no vazio que
é provocado quando termina a narrativa. Mesmo que o
sentido possa ser encontrado na etnicidade, o mito não
nos impõe nenhum contexto psicológico, a interpretação
é livre, permitindo que o interlocutor termine esta história
segundo sua experiência.
O mito a seguir foi relatado em uma das conversas de
roncó,3 porém acredito que algum autor já possa tê-lo es-
crito. Ele traz à tona a questão da autoridade e o que a
liberdade de ação implica em seu reconhecimento.
Exu é amigo muito próximo de Orunmilá.4
Orunmilá viajava com Exu. A cada cidade em que
passavam Orunmilá era recebido com muitas honras.

207
16
2009

Comidas e bebidas lhes eram oferecidas, pelo reconhe-


cimento da sabedoria e a honra de chefe Orunmilá. A
viagem transcorria bem, e os dois amigos caminhavam
pela estrada, indo de cidade a cidade e passavam o
tempo a conversar sobre suas aventuras. Orunmilá se
vangloriava de seu reconhecimento social. Dizia que era
respeitado por onde passava e que não importava onde
estivessem, por mais longínquas que fossem as terras,
ele era conhecido e todos estariam lhe esperando com
honrarias.
Exu caminhava lado a lado com Orunmilá e apenas
dizia: “É mesmo babá? A despeito do que fizer todos
sempre o reconhecerão? Seu poder é muito maior que
qualquer desonra? O babá é mesmo muito poderoso...”
Orunmilá confirmava.
Passaram por uma vila e foram, como predizia
Orunmilá, recebidos com muitas honrarias. Um grande
banquete os esperava, com fartura de comida e bebida,
músicos tocaram os tambores falantes em sua homena-
gem e todos dançaram. Cansados depois de farta comi-
da e muita festa foram dormir.
Na manhã seguinte, despediram-se do chefe e saíram
pela estrada a seguir viagem.
Orunmilá continuava a se vangloriar de seu poder.
Exu caminhava ao seu lado, comentando a festa do dia
passado. Num determinado momento Exu se afastou de
seu amigo e entrou no mato.
Logo em seguida volta e se põe a andar novamente ao
lado de Orunmilá.
Orunmilá sem compreender o afastamento do amigo
lhe pergunta: “Onde foi, Exu?”
Exu despretensiosamente respondeu: “Não foi nada.
Eu já estou de volta.”
Continuaram caminhando.

208
verve
Quem não tem governo nem nunca terá...

Após alguns momentos, Orunmilá percebeu que do


bolso de Exu respingava sangue, que deixava um rastro
no chão de terra.
Sem compreender aquilo, perguntou: “Exu, o que é
isso? Há sangue pingando do seu bolso. O que tem aí?”
Exu, muito tranquilo, respondeu: “Ah meu amigo.
Isso... não é nada. Quando entrei no mato vi uma criação
de galinhas, peguei uma, cortei sua cabeça e coloquei a
galinha no bolso.”
Orunmilá, estupefato, exclamou: “Como você pôde fa-
zer isso? Você não sabe que isso é proibido? Você não
sabe que pelo roubo nos darão pena de morte? Eles vão
nos seguir e nos achar, ainda mais com este rastro de
sangue que você deixou.”
Exu sem se abater disse: “Ora Orunmilá, você não vai
se incomodar com isso, afinal um chefe tão respeitado, tão
reconhecido, certamente estará acima destas punições.
Quando virem que fomos nós que roubamos e matamos a
galinha, eles nada farão contra o chefe Orunmilá!”
Orunmilá, inconformado, retrucou: “Não tem nada
disso, Exu. É melhor corrermos porque já escuto a grita-
ria do povo atrás da gente.”
Saíram os dois correndo e do bolso de Exu continuava
a pingar sangue.
Ao saber do roubo, a população da vila se armou de
porretes e saiu à caça dos ladrões. Logo perceberam o
rastro deixado na estrada, seguindo-o na direção certa
em que ia o ladrão.
Exu e Orunmilá correram muito e ao perceberem que
não conseguiriam fugir, Orunmilá se jogou no chão e se
transformou num rio, Exu se curvou e, de cócoras, trans-
formou-se numa pedra.
O povo que vinha no encalço deles logo chegou e todos
cansados perceberam que não encontrariam os ladrões.

209
16
2009

Cansados, pararam todos ali perto daquele rio onde


alguns beberam água e outros se sentaram naquela pe-
dra.
Exu, nesse mito, provoca uma revolta contra a or-
dem. Isso pode parecer um desacato à autoridade su-
perior, uma vez que Orunmilá é um chefe, alguém que
se gabava de deter o poder acima de qualquer suspeita.
Porém, quando Exu o provoca com o roubo da galinha
e ao deixar um rastro, ele problematiza a verdade sus-
tentada pela autoridade de Orunmilá. Certamente esta
foi uma atitude libertária de Exu.
Também foram contestados os poderes disciplina-
res vigentes naquela sociedade uma vez que a punição
prevista não chegou a ser impingida aos que haviam
cometido o roubo.
A constrangedora ação de Exu acarreta modifica-
ções, altera a lei e adequa os costumes.
Exu age com liberdade tal que resulta em uma ati-
tude pouco pacífica, pouco diplomática, uma vez que
a perseguição só não termina em luta porque ambos
tinham no mito a capacidade de transformação.

Exu e o jeitinho brasileiro

Exu, orixá oriundo da religião tradicional ioruba,


quando chega ao Brasil, encontra-se com outras deida-
des que de alguma forma tinham coisas em comum. O
candomblé se organiza como religião com diversos ele-
mentos de diferentes nações africanas que conservam
algumas características próprias da origem africana.
Segundo Liana Trindade, no Brasil: “Exu é o resulta-
do de um processo onde se perderam os quadros sociais
de referência pela degradação sócio-cultural do escravo
africano. Houve o deslocamento de símbolos de uma
estrutura lógica de pensamento, para adquirir novos

210
verve
Quem não tem governo nem nunca terá...

sentidos fornecidos por um outro contexto de relações


estruturais.”5
Contudo, mesmo que esse símbolo seja ressignifica-
do, o Exu brasileiro conserva as suas características
fundamentais que são reveladas nos mitos.
Uma associação de Exu é com a atividade sexual.
Ele está relacionado tanto com ancestralidade feminina
quanto com a masculina e conserva em si caracterís-
ticas de ambos os sexos. Podemos observar que Exu
é representado por um ogó, que é um porrete de ma-
deira com aparência fálica, porém vemos esculpido em
alguns deles a representação plástica de uma mulher,
significando a transversalidade sexual de Exu. Por ser
assim, Exu, ao tornar-se brasileiro, encontra a brecha
para se desdobrar em macho e fêmea.
É interessante notar que no Brasil, nos terreiros
de candomblé angola e muitos candomblés de nação
queto,6 Exu assume dois diferentes papéis: um dos pa-
péis é aquele em que Exu acompanha o Orixá. Para esse
Exu normalmente fica reservado um cômodo do terreiro
onde o acesso não é permitido a qualquer pessoa. Ele
“trabalha” somente junto e para o inquice ou orixá e a
única pessoa que tem acesso a seu assentamento para
obter benefícios é o próprio iniciado.
Outra representação de Exu é aquela em que ele
representa o guardião. Sua morada é na entrada dos
terreiros e tem a finalidade de proteger a casa de can-
domblé das demandas, além de atender aos desejos dos
homens que o procuram para que ele os ajude a resol-
ver os mais diversos problemas do dia a dia.7
Esse Exu é carinhosamente conhecido pela comu-
nidade como “companheiro” ou “compadre”. É nessa
categoria que o Exu brasileiro se divide em macho e
fêmea.

211
16
2009

Curiosamente, o nome do inquice bombogira8 sofre


uma corruptela e se transforma em pombagira, a Exu
fêmea.
Os adeptos têm certo grau de intimidade, carinho e
respeito por essas “entidades”, que representam o espí-
rito de pessoas que viveram à margem da moral social.
São espíritos de mulheres, delinquentes, malandros,
prostitutas, gente que viveu à margem da sociedade e
que o complexo simbólico de Exu permite formar uma
força peculiar, às avessas, que nesse movimento vem se
inserir, pode-se dizer, com certo glamour, na vida social
sem contrariar nenhuma norma moral. No limite, po-
demos encarar esse arranjo como uma insurreição dos
marginalizados e adequação dos costumes.
Ao ler um artigo do professor João Neto sobre a
“genealogia do malandro”, fiz a pergunta: Será que essa
ressignificação do Exu no Brasil não tem a ver com a
forma de ser de alguns grupos sociais brasileiros?
Seguindo a pista fornecida pelo autor, podemos en-
tão, também flanar sobre o pensamento de Nietzsche,9
e confrontar a dicotomia ocidental entre o bem e o mal
com a complexidade de Exu onde o bem e o mal estão
devidamente vinculados.
No ocidente, os valores morais que orientam a ética
são aqueles que desprezam a vida terrena para valori-
zar um mundo pós-morte. Herança do cristianismo e
do platonismo no ocidente, o mundo espiritual é supe-
rior à vida terrena considerada transitória, grosseira e
inferior.10
Por outro lado, Exu trata da vida, do bem estar hoje,
da sobrevivência do homem. Não é no reino de Deus
que o homem vai ser feliz, a felicidade plena tem que
ser agora. Vida tem que ser boa e prazerosa. O prazer
está em ter alimento, em trabalhar e que esse trabalho
renda bons frutos, em amar e ser amado, em ter saúde,
bons filhos, bons maridos e esposas, está também no
sexo e no descanso.

212
verve
Quem não tem governo nem nunca terá...

Para João Neto, da mesma maneira como já havia


ressaltado a antropóloga Lívia Barbosa: “o jeitinho, a
malandragem e congêneres surgem como uma espécie
de mecanismo de adaptação às situações perversas da
sociedade brasileira”,11 constituindo-se assim um arti-
fício de sobrevivência, uma espécie de “drible” “(...) nas
adversidades da vida, num país, historicamente, reple-
to de desigualdades.”12
Ainda segundo esse autor, esta categoria é aceita
porque “a vida se impôs perante as leis e os costumes
éticos formalizados, fazendo as circunstâncias efetivas
se sobreporem à moral vigente.”13
Por conseguinte, mesmo que essa “marginália” aja
de maneira ilegal e reprovável ela é uma massa de so-
breviventes e neste caso a vida é o referencial que afir-
ma a transgressão.
Assim, fiquei curiosa de saber por que as consultas
com Exus são tão concorridas e perguntei a um fre-
quentador por que gostava tanto deles e ele me respon-
deu: “Porque eles são ótimos. Sempre dão um jeitinho.”
Certamente um “jeitinho bem brasileiro”.
Podemos então, em uma analogia, pensar que o com-
padre e as pombagiras também fazem parte do caráter
do povo brasileiro. Detentores da ginga, do malemolejo
ao falar, do jogo de cintura, essas entidades encantam
os que as procuram por transitarem entre a ordem es-
tabelecida e as condutas transgressivas.
E se a transgressão passou a ser um elemento
constituinte da identidade de alguns grupos sociais no
Brasil, quando os compadres e pombagiras despon-
tam, há uma identificação de parte do povo com essa
marginália sobrevivente e admirada por ser vitoriosa
na luta pela vida.

213
16
2009

Notas

1 Juana Elbein dos Santos. Os Nagôs e a Morte. Petrópolis, Vozes, 1993.


2
Walter Benjamim. Magia e técnica. Arte e política ― Ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 204.
3
Roncó: lugar reservado no candomblé onde os iniciados passam meses rece-
bendo lições de culto e participando de ritos propiciatórios para receberem a
aproximação do orixá a que se dedicam.
4
Orunmilá que é o Orixá da sabedoria, segundo o mito, é ele que está presente
para ouvir a escolha do destino do ser humano, quando este vem nascer na
Terra (ayê). Acredita-se que o destino tem duas formas de ser obtido, ou ele é
dado para o ser humano ou é escolhido. Contudo, não importa de que maneira
o destino fora adquirido, uma vez que no momento o importante é saber que
no ato da escolha há um Orixá presente chamado Orunmilá e por isso ele é o
conhecedor de todos os destinos. Essa condição lhe proporciona, através de
jogos divinatórios, a possibilidade de ajudar os homens a encontrar seu melhor
destino nos momentos de dúvidas.
5
Liana Trindade. Exu ― poder e perigo. São Paulo, Icone, 1985, p. 35.
6
Queto: nação de candomblé originária do povo ioruba.
7
Ivete Miranda Previtalli. Candomblé: agora é angola. São Paulo, Annablume,
2008.
8
Nos candomblés de nação Congo/Angola Exu é sincretizado com Bombogira,
Aluvaiá, Carococi, Pangira, Jiramavambo, Mavambo.
9
Friedrich Nietzsche. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza.
São Paulo, Schwarcz, 1992.
10
João E. Neto. “Genenalogia da Malandragem” in Ciência & Vida: Filosofia, n°
37. São Paulo, 2009, pp. 19-29.
11
Idem, p. 25.
12
Ibidem, p. 26.
13
Ibidem, p. 26.

214
verve
Quem não tem governo nem nunca terá...

RESUMO
Exu é um dos orixás do panteão afro-brasileiro que, devido a
seu dinamismo e seu comportamento perturbador, tornou-se o
mais polêmico de todos os orixás. Contudo, ele é o princípio da
ordem e o agente da reconciliação, embora na sua maneira de
agir esteja sempre desconstruindo para construir. Ao chegar ao
Brasil esse símbolo é ressignificado, e mesmo que conserve as
características fundamentais que são reveladas no orixá afri-
cano, o Exu brasileiro se desdobra em macho e fêmea. Nesse
contexto surgem as pombagiras e compadres que, embora se-
jam representantes de uma marginália característica brasilei-
ra, são muito estimados. Essa insurreição dos marginalizados,
por ter como referencial a vida, produz uma inversão de papéis
que, desta forma, afirma a transgressão.

Palavras-chave: Exu, religião afro-brasileira, transgressão.

ABSTRACT
Exu is one of the Afro-Brazilian pantheon’s orixás who due
to its dynamism and disturbing behavior became the most
polemic orixá. However, he is the principle of order and the
agent of reconciliation, although in his way of acting, he
is always deconstructing in order to construct. Arriving in
Brazil, the symbol is reframed and, even though it retains the
fundamental characteristics that are revealed in the African
orixá, the Brazilian Exu unfolds itself in male and female. In
this context the pombagiras and compadres show up and are
much appreciated although representing a marginalia Brazilian
feature. This insurrection of the marginalized, for having life as
a reference, produces an inversion of roles that, in this way,
affirms the transgression.

Keywords: Exu, Afro-Brazilian religion, transgression.

Recebido para publicação em 4 de agosto de 2009. Confirmado


em 1 de setembro de 2009.

215
conversação contra um tempo conservador 1:
LEI ANTIFUMO.

você tem fumaça


fogo?

A burguesia sempre soube regozijar-se nas proibições


do fascismo e do nazismo e, ao mesmo tempo, saciar seus
desejos no que os intelectuais apreciam chamar de
perversões. Para ela não há proibições; lei universal
somente para os demais. A liberdade é a que lhe serve
bem. No futuro, alguém lembrará com saudades o tempo
em que havia um bom-senso no uso público da delícia de
fumar (assim como das delícias do não-fumante e da
raiva fascista dos policiais do fumo)?

[flecheira libertária, ano III, n. 120, 4 de agosto de 2009]

25 de agosto, 19hs, museu da cultura, puc-sp


[r. monte alegre, 984 - tel. 3670-8559]
nu-sol - www.nu-sol.org
0
edgar rodrigues (1921-2009)
16
2009

em forma de despedida: síntese sobre


a vida e obra de edgar rodrigues

Antônio Francisco Correia, que utilizava o pseudôni-


mo de Edgar Rodrigues, nasceu em Angeiras, ao norte
da cidade de Matosinhos, distrito do Porto (Portugal),
em 12 de março de 1921, filho de Manuel Francisco
Correia e Albina da Silva Santos.
Seu pai era militante anarco-sindicalista e participava
do “Sindicato das Quatro Artes”, filiado à Confederação
Geral do Trabalho (C.G.T.) e à Associação Internacional
dos Trabalhadores (A.I.T.), envolvendo vários ofícios da
construção civil de Matosinhos. Seus primos, Armindo
da Silva Sarilho e Manuel Sarilho, também pertenciam
ao Sindicato.
No final de 1933, esse sindicato foi obrigado a fechar
sua sede oficial por causa da repressão da ditadura
militar comandada por Antônio Oliveira Salazar. Parte
do seu acervo cultural foi guardado na casa da família
de Manuel Francisco Correia, onde também passou a
realizar-se reuniões noturnas de sua diretoria clandes-
tinamente.
O garoto Antônio Francisco Correia, atrás da porta,
escutava com muita curiosidade tudo o que era conver-
sado naquelas reuniões.
Em 1936, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado
(P.V.D.E., depois P.I.D.E.), invadiu de madrugada a mo-
radia de Manuel Francisco Correia e o prendeu.

verve, 16: 218-234, 2009


218
verve
Edgar Rodrigues (1921-2009)

Antônio Francisco Correia foi várias vezes visitar o


seu pai no presídio da polícia política, durante as dez
semanas em que ele esteve preso, sem nenhum proces-
so ou julgamento. Quando Manuel Francisco Correia
foi solto, foi punido mais uma vez ao ser despedido do
seu emprego, o que fez a família passar por uma situa-
ção econômica muito difícil.
Dois anos depois, Correia (como era chamado pe-
los mais próximos) escreveu seu primeiro artigo para
o diário “Primeiro de Janeiro” (Porto), mas este não foi
publicado por causa da censura. Nessa mesma época,
já havia começado a escrever os rascunhos que forma-
riam seu primeiro livro.
No dia 1º de maio de 1939, Antônio Francisco Correia
e alguns amigos faltam ao serviço como forma de protesto
(nessa época era proibido manifestar-se no 1º de maio) e
reúnem-se para reafirmar as origens anarquistas dessa
data, que é um marco universal.
No dia 1º de março de 1940, filia-se ao Grupo
Dramático Flor da Mocidade (teatro amador), de
Santa Cruz Bispo, município de Matosinhos, onde
conhece Ondina dos Anjos da Costa Santos, que foi
sua companheira por toda a vida. Também fez parte
da diretoria do Grupo Dramático Alegres de Perafita,
onde conheceu o histórico militante anarquista José
Marques da Costa.
Em setembro de 1946, o anarquista Luis Joaquim
Portela e mais cinco presos políticos fogem da Fortaleza
de Peniche. Dois anos depois, Antônio Francisco Correia
conhece pessoalmente Luis Portela1 na clandestinidade
e ajuda o companheiro a obter documentação falsa,
porém, devido uma delação, Luis Joaquim Portela é
preso novamente.2
No dia 19 de julho de 1951, Antônio Francisco Correia
conhece pessoalmente o notório escritor anticlerical
Tomás da Fonseca e, no dia seguinte, para fugir da

219
16
2009

perseguição política da ditadura portuguesa, embarca


para o Brasil.
Assim que chegou ao Rio de Janeiro, conheceu
os companheiros: Roberto das Neves, Manuel Perez,
Giacomo Bottino, Ida Bottino, Germinal Bottino, Pascoal
Gravina, José Romero, Ondina Romero, Angelina Soares,
Diamantino Augusto, José Oiticica, João Peres Bouças,
Carolina Peres, Ideal Peres, Afonso Vieira entre outros.
A pedido dos dois últimos, entregou um texto de sua
autoria, sobre a ditadura em Portugal, que foi publica-
do no jornal anarquista Ação Direta3 e logo estava parti-
cipando do grupo editor do mesmo. Em seguida, com a
ajuda de companheiros como Enio Cardoso, Domingos
Rojas e Benjamim Cano Ruiz (entre outros), passou a
publicar também textos na imprensa libertária interna-
cional e adotou o pseudônimo de Edgar Rodrigues.4
Entre os dias 9 e 11 de fevereiro de 1953, participou
de um encontro anarquista brasileiro, na residência de
José Oiticica, onde conheceu outros militantes ácratas
que atuavam em São Paulo: Edgard Leuenroth, Adelino
Tavares de Pinho, Lucca Gabriel, Osvaldo Salgueiro e
outros. Nesse período, também conheceu pessoalmen-
te o escritor e jornalista espanhol Victor Garcia (Tomás-
Germinal Garcia Ibars), o poeta e escritor romeno Eugen
Relgis e o companheiro paraguaio Ceríaco Duarte.
Publicou seu primeiro livro Na Inquisição do Salazar
em maio de 1957, pela Editora Germinal, de Roberto
das Neves. Tornou-se membro da Sociedade Naturista
Amigos de Nossa Chácara (S.N.A.N.C.).5
Em 7 de março de 1958, por iniciativa do Grupo
Libertário Fábio Luz,6 foi fundado o Centro de Estudos
Professor José Oiticica (C.E.P.J.O.), em homenagem
ao recém-falecido José Oiticica (22/07/1882 —
30/06/1957), com o propósito de continuar a prolífera
obra do valoroso companheiro. O grupo que assinou a
ata de fundação do C.E.P.J.O. era composto por: Edgar
Rodrigues, Afonso Alves Vieira, Ideal Peres, Esther de

220
verve
Edgar Rodrigues (1921-2009)

Oliveira Redes, Seraphim Porto, Manuel dos Santos


Ramos, Francisco de Magalhães Viotti, Germinal
Bottino, Fernando Gonçalves da Silva, Pedro Gonçalves
dos Santos, Roberto Barreto Pedroso das Neves, Enio
Cardoso e Raul Vital (Atayde da Silva Dias).
Entre as atividades do C.E.P.J.O., constavam confe-
rências, cursos e leituras comentadas sobre arte, políti-
ca, história, vegetarianismo, psicologia, teatro, cinema,
literatura, geografia, sociologia e anarquismo. Os convi-
tes para as atividades eram feitos na imprensa diária. O
Centro também promoveu, em conjunto com outros gru-
pos, comícios do movimento estudantil e uma campanha
pela libertação e asilo político do espanhol anarquista
José Comin Pardillos.
Outra iniciativa do C.E.P.J.O. foi a criação da
Editora Mundo Livre que publicou os seguintes livros
anarquistas: O Retrato da Ditadura Portuguesa de Edgar
Rodrigues (1962), A Doutrina Anarquista ao Alcance de
Todos de José Oiticica (2ª Edição — 1963), Anarquismo
— Roteiro de Libertação Social de Edgard Leuenroth
(1963), O Humanismo Libertário e a Ciência Moderna
de Piotr Kropotkin (1964) e Erros e Contradições do
Marxismo de Varlan Tcherkesoff (1964).
O Centro de Estudos Professor José Oiticica teve
uma atuação anarquista durante doze anos (cinco de-
les sob a repressão da ditadura militar brasileira, 1964
— 1985), até ser invadido, assaltado e fechado pelas
forças armadas.7 As prisões começaram no dia 8, e con-
tinuaram nos dias 9, 10, 15 e 21 de outubro de 1969.
Entre os presos, acusados e denunciados estavam:
Edgar Rodrigues, Pietro Michele Stefano Ferrua, Ideal
Peres, Antonio Costa, Fernando Gonçalves da Silva,
Manoel dos Santos Ramos, Paulo Fernandes da Silva,
Roberto Barreto Pedroso das Neves, Eli Briareu de
Oliveira, Mário Rogério Nogueira Pinto, Antonio Rui
Nogueira Pinto, Maria Arminda Sol e Silva, Antonio
da Silva Costa, Elisa da Silva Costa, Roberto da Silva

221
16
2009

Costa e Carlos Alberto da Silva. Foram impronunciados:


Michelangelo Privitera e Esther de Oliveira Redes.8
Militantes anarquistas anônimos (pela conjuntu-
ra política da época) de São Paulo e de outras partes
do Brasil contribuíram financeiramente com os gastos
judiciais, numa grande demonstração de solidarieda-
de libertária. O processo durou até 30 de novembro de
1971.
No mesmo período em que foi vítima desse proces-
so militar, Edgar Rodrigues iniciou, numa atitude pio-
neira, a publicação de livros resgatando a história do
movimento anarquista no Brasil,9 e posteriormente, a
história do movimento libertário português.10
Edgar Rodrigues escreveu 62 livros (entre 1957-
2007), publicados sobretudo no Brasil e em Portugal,
mas também na Itália, Venezuela e Inglaterra (alguns
na terceira edição).
Por volta de 1976, participou junto com a companheira
Elvira Boni, do documentário O Sonho Não Acabou de
Cláudio Khans, exibido algumas vezes na televisão e em
eventos libertários.
Colaborou com o jornal anarquista O Inimigo do Rei
enquanto ele existiu (1977 — 1988) e também escreveu
mais de 1760 artigos na imprensa de 15 países, entre
eles: Voluntad (Uruguai), Solidaridad Obrera (França), A
Batalha (Portugal), El Libertario (Cuba), Tierra y Libertad
(México/Espanha), El Sol (Costa Rica), C.N.T. (França),
La Protesta (Argentina), Solidaridad Gastronómica
(Cuba), L’Adunata Dei Refrattari (Estados Unidos), Ruta
(Venezuela), Reconstruir (Argentina), Voz Anarquista
(Portugal), El Libertario (Venezuela) e muitos outros.
Entre abril e maio de 1986, participou do congresso
pela reorganização da Confederação Operária Brasileira
(C.O.B.), na sede do Centro de Cultura Social de São
Paulo, na rua Rubino de Oliveira, número 85, Brás.

222
verve
Edgar Rodrigues (1921-2009)

Em 21 de agosto de 1986, foi um dos sócios-


fundadores do arquivo Círculo Alfa de Estudos Históricos
(C.A.E.H.) juntamente com: Nito Lemos Reis, Antonio
Martinez, José Carlos Orsi Morel, Jaime Cubero,
Francisco Cuberos, Felix Gil Herrera, Liberto Lemos
Reis, Fernando Gonçalves da Silva e Ideal Peres.11
Nesse arquivo deixou boa parte dos materiais de
estudo (livros, jornais, fotos, cartas, atas, memórias
manuscritas e demais documentos, muitos deles cópias
únicas) que reuniu durante toda uma vida dedicada
ao resgate da trajetória das atividades anarquistas no
Brasil e no Mundo. Conseguiu todo esse acervo visitando
velhos companheiros anarquistas, convencendo-os a
escreverem suas memórias, entrevistando-os, tendo
correspondência com eles, comprando e conseguindo
doações desses materiais com militantes históricos do
movimento (novamente numa iniciativa pioneira para
seus contemporâneos), tais como: Joaquim Fernandes,
Manuel Lopes, Luís Saturnino, Manuel Perez, Ideal
Peres, José Marques da Costa, José Francisco dos
Passos, João Perdigão Gutierrez, Manuel Marques
Bastos, Pedro Catallo, João Navarro, Adriano Botelho,
Elias Iltchenco, entre outros.12
Não obstante, o sofrido esforço de Edgar Rodrigues
para adquirir esses materiais e todos os riscos que en-
frentou durante a ditadura militar para preservar esses
documentos, os membros remanescentes do Círculo
Alfa de Estudos Históricos, na pessoa de José Carlos
Orsi Morel, trocou as fechaduras do imóvel do arquivo,
localizado na rua Gonçalves Dias, número 220, no bair-
ro do Brás (São Paulo), impedindo que Edgar Rodrigues
tivesse acesso ao arquivo, para logo em seguida, numa
manobra obscura, expulsá-lo da entidade sem direito à
defesa, demonstrando uma atitude completamente an-
tagônica com os princípios anarquistas e os conceitos
básicos de justiça.
Em abril de 2002, Rute Coelho Zendron fez Um
Estudo Sobre Edgar Rodrigues pela PUC,13 que virou

223
16
2009

um interessante vídeo documentário sobre a vida e


obra de Edgar Rodrigues.14
Edgar Rodrigues faleceu na noite de 15 de maio de
2009 (quinta-feira), na sua residência, no bairro do
Méier (Rio de Janeiro), devido uma parada respiratória.
Deixa esposa, filhos, netos, uma vasta obra anarquista
para ser estudada e um grande exemplo a ser seguido.

Por Marcolino Jeremias15

Notas
1
Ambos tinham trocado correspondência entre 1932-1937, enquanto Luis
Joaquim Portela estava preso.
2
Em 10 de setembro de 1952.
3
“Fala Um Operário Português” foi o primeiro artigo publicado por Antônio
Francisco Correia, o texto saiu no jornal Ação Direta (Rio de Janeiro), número
80, em maio/junho de 1952.
4
Antônio Francisco Correia também chegou a escrever usando pseudônimos
como Varlin, Zola, dentre outros.
5
A Sociedade Naturista Amigos de Nossa Chácara foi registrada em 9 de
novembro de 1939, e o grupo que iniciou o trabalho de construção desta era
composto por: Germinal Leuenroth, Nicola D’Albenzio, Virgilio Dall’Oca,
Justino Salgueiro, Salvador Arrebola, Antônio Castro, João Rojo, Benedito
Romano, José Oliva Castillo, Roque Branco, Antônio Valverde, Cecílio Dias
Lopes e Lucca Gabriel. A Nossa Chácara/Nosso Sítio foi uma iniciativa
essencial para a reorganização do movimento anarquista no Brasil, após o
final da ditadura de Getúlio Vargas, e foi palco de importantes congressos e
encontros libertários entre 1948 até o final dos anos sessenta.
6
O Grupo Libertário Fábio Luz (depois Grupo de Ação Libertária), formado
por militantes como: Edgar Rodrigues, Seraphim Porto, Roberto das Neves,
Enio Cardoso e Afonso Vieira, existiu entre a morte de José Oiticica e a
fundação do Centro de Estudos Professor José Oiticica. Com o passar do
tempo após a fundação do Centro, o Grupo Libertário foi absorvido pelo
C.E.P.J.O.

224
verve
Edgar Rodrigues (1921-2009)

7
Os militares também invadiram moradias, escritórios profissionais, a Editora
Germinal e roubaram centenas de pertences desses locais.
8
Edgar Rodrigues ajudou a esconder Esther de Oliveira Redes num sítio em
Jacarepaguá, e através de troca de serviços “comprou” o impronunciamento
dela e retirou vários documentos do processo que poderiam comprometer
outros companheiros.
9
Entre os livros clássicos de Edgar Rodrigues que resgatam a história do
movimento anarquista no Brasil, estão: Socialismo e Sindicalismo no Brasil (1675-
1913) de 1969, Nacionalismo e Cultura Social (1913-1922) de 1972, Trabalho e
Conflito (1900-1935) de 1977 e Novos Rumos ― Pesquisa Social (1922-1946) de
1978.
10
Os principais livros de Edgar Rodrigues que refazem a trajetória dos
anarquistas em Portugal são: O Despertar Operário Em Portugal (1834-1911) de
1980, Os Anarquistas e os Sindicatos Em Portugal (1911-1922) de 1981, A Resistência
Anarco-Sindicalista à Ditadura (1922-1939) de 1981 e A Oposição Libertária em
Portugal (1939-1974) de 1982.
11
Esther de Oliveira Redes não assinou a ata de fundação, mas esteve presente
nas reuniões e contribuía para a manutenção do arquivo até comunicar seu
desligamento do mesmo.
Conseguiu com Sônia Oiticica, por exemplo, cartas de quando seu pai José
12

Oiticica, esteve preso na Ilha Rasa (Rio de Janeiro) entre 1924-1925.


13
PUC-RJ. (N. E.)
14
Outros estudos acadêmicos sobre Edgar Rodrigues foram feitos, entre
eles, constam-se: a tese “Edgar Rodrigues: I Tempi e Le Opere” de Marco
Mazzeo, Universidade de Nápoles/Itália (2005) e o trabalho de pós-doutorado
(monografia) “A Sementeira de Idéias ― Edgar Rodrigues: Uma Vida
Dedicada Ao Anarquismo”, de Anna Gicelle Garcia Alaniz, para a Faculdade
de Educação da Unicamp (2009).
15
Pesquisador da história do Anarquismo, editor da editora Opúsculo Libertário
e membro do CCS-SP (Centro de Cultura Social - São Paulo). (N.E.).

225
16
2009

edgar rodrigues: o homem e a obra1

Escrever sobre Edgar Rodrigues não é uma tarefa


fácil. No meu caso, na medida em que amizade, com-
panheirismo e reconhecimento do trabalho de pesquisa
realizado por este homem é enorme, sinto que provavel-
mente não serei a pessoa mais indicada para elaborar
um depoimento a seu respeito.
Todavia, não obstante, a subjetividade que acom-
panha o meu raciocínio, é de elementar justiça reco-
nhecer o gigantesco trabalho de investigação que Edgar
Rodrigues realizou sobre a história social do Brasil e
de Portugal, como também acerca da história do movi-
mento libertário em escala mundial. No sentido global
do termo, poderemos considerar o seu trabalho de pes-
quisa e a sua vida inscritos em quatro níveis de análise
básicos:
1. A história dos trabalhadores anônimos que luta-
ram pela emancipação social.
2. A crítica e a denúncia da ditadura salazarista.
3. A história universal do ideal ácrata.
4. A difusão de uma perspectiva ética e humanista
do anarquismo.
Se há algum autor que resgatou do anonimato a luta
de milhares de trabalhadores que não se vergaram às
vicissitudes do capitalismo e do bolchevismo soviético,
como inclusive dos vencidos da história que foram si-
lenciados pelos profissionais normativos da história ofi-

226
verve
Edgar Rodrigues (1921-2009)

cial, um entre um pequeno número que nunca poderá


ser esquecido: Edgar Rodrigues. Com um trabalho in-
cansável e minucioso, Edgar Rodrigues construiu uma
base de dados com biografias únicas de homens e mu-
lheres que lutaram generosa e estoicamente contra a
opressão e a exploração. Depois do que ele fez, poucos
poderão fazer melhor. Agora importa continuar a sua
pesquisa e dar visibilidade social a esse legado histórico
que nos deixa.
Em segundo lugar, quando viveu em Portugal e so-
bretudo desde que emigrou para o Brasil, é importante
lembrar a denúncia e a crítica sistemática da ditadura
salazarista feita pelo autor em jornais e livros e, por ou-
tro lado, a solidariedade que deu a exilados portugue-
ses no Brasil. Nos tempos pós-modernos persiste uma
tendência a esquecer esta atitude de solidariedade de
crítica às perversões do fascismo português. Neste do-
mínio é imperioso que se reconheça a Edgar Rodrigues
o labor intenso que realizou nas décadas de 50 e de 60
do século XX, exprimindo e demonstrando com fatos
indiscutíveis a natureza da fome que atravessava a vida
cotidiana do povo português humilde. A mesma atitude
teve com todos que, ao lutarem pela emancipação so-
cial, morriam barbaramente nas masmorras e nos cam-
pos de concentração da ditadura salazarista.
Como terceiro nível de análise, na minha opinião,
subsiste a vontade férrea em divulgar o ideal anarquis-
ta por todos os cantos do Mundo, com especial inci-
dência nos países que escreviam e falavam as línguas
portuguesa e espanhola. A compilação da história do
movimento libertário de diferentes países e nomeada-
mente de biografias de atores influentes na luta pelas
ideias e práticas confinadas aos princípios e aos obje-
tivos históricos do anarquismo é, sem dúvida alguma,
um grande trabalho de atualização e sistematização de
uma investigação que foi iniciada por Max Netlau nas
primeiras décadas do século XX.

227
16
2009

Do ponto de vista ético e filosófico, na vida e obra


de Edgar Rodrigues persiste sempre um denominador
comum: uma atitude humanista e uma moral atraves-
sada pela solidariedade, pelo pacifismo, pela liberdade,
a igualdade e a fraternidade. A sua profícua escrita
em milhares de artigos e jornais de diferentes países e
regiões da América Latina e na Europa do Sul são um hino
de revolta e lucidez contra os malefícios do capitalismo
e das ditaduras, mas são também importantes como
um elemento de pedagogia de um anarquismo ético e
moral que pretende expandir as sementes da anarquia
pelo povo trabalhador e por todos aqueles que vivem as
vicissitudes da alienação e da ignorância provocadas
pelo Estado, pelos partidos, as igrejas e o mercado.
Finalmente, embora já esteja com 82 anos, Edgar
Rodrigues ainda pode dar a sua contribuição como
historiador social do movimento libertário. Nessa
caminhada incansável, que espero perdurará por
muitos anos, não poderia deixar de referir uma mulher
que tem sido inestimável em todo o trajeto histórico
de Edgar Rodrigues. Edgar Rodrigues foi aquilo que
é e reconhecemos de forma inquestionável, porque
também ao lado dele, sempre esteve Ondina, nos bons
e maus momentos, como companheira de muitos anos
na luta pela emancipação social.

Por José Maria Carvalho Ferreira2

Notas
1
Este documento foi publicado em fevereiro de 2002 no catálogo da exposição
Edgar Rodrigues: pesquisador libertário da história social de Portugal e do Brasil, que ocorreu
no mesmo ano em Portugal e também no Brasil, no espaço da PUC-SP.
2
José Maria Carvalho Ferreira é Professor do Instituto Superior de Economia
e Gestão — Universidade Técnica de Lisboa.

228
verve
Edgar Rodrigues (1921-2009)

bibliografia de edgar rodrigues:

• Na Inquisição de Salazar. Rio de Janeiro, Brasil,


Editora Germinal, 1957.
• A Fome em Portugal. Rio de Janeiro, Brasil, Editora
Germinal, 1958.
• O Retrato da Ditadura Portuguesa. Rio de Janeiro,
Brasil, Editora Mundo Livre, 1962.
• Portugal Hoy. Caracas, Venezuela, Ediciones
F.I.J.L. (Juventudes Libertárias Espanholas no
Exílio), 1963.
• Portogallo D’Oggi Di Salazar. Milão, Itália, Editora
Anarchia, 1963/1964 (publicado em capítulos).
• Socialismo: Síntese das Origens e Doutrinas. Rio
de Janeiro, Brasil, Edição de Edgar Rodrigues,
Manuel Matos e Antonio Cavalcanti, 1968.
• Socialismo e Sindicalismo no Brasil (1675-1913).
Rio de Janeiro, Brasil, Editora Laemmert, 1969.
• Nacionalismo e Cultura Social (1913-1922). Rio de
Janeiro, Brasil, Editora Laemmert, 1972.
• Conceito de Sociedade Global. Rio de Janeiro,
Brasil, Edição de Edgar Rodrigues e Manuel
Matos, 1974.
• Violência, Autoridade e Humanismo. Rio de
Janeiro, Brasil, Edição de Edgar Rodrigues e
Manuel Matos, 1974.

229
16
2009

• ABC do Anarquismo. Lisboa, Portugal, Editora


Assírio & Alvim, 1976.
• Breve História do Pensamento e das Lutas Sociais
em Portugal. Lisboa, Portugal, Editora Assírio &
Alvim, 1977.
• Trabalho e Conflito: As Greves Operárias (1900-
1935). Rio de Janeiro, Brasil, Edição de Edgar
Rodrigues, Manuel Matos, Manuel Ramos, Victoria
Ramos e Fernando Neves, 1977.
• Deus Vermelho. Rio de Janeiro, Brasil (publicado
no Porto com a colaboração do Professor Manuel
Pedro Filho), Editora Mundo Livre, 1978.
• Novos Rumos (1922-1956). Rio de Janeiro, Brasil,
Editora Mundo Livre, 1978.
• Alvorada Operária, Os Congressos (1887-1920).
Rio de Janeiro, Brasil, Editora Mundo Livre,
1979.
• Socialismo: Uma Visão Alfabética. Rio de Janeiro,
Brasil, Editora Porta Aberta, 1980.
• O Despertar Operário em Portugal (1834-1911).
Lisboa, Portugal, Editora Sementeira, 1980.
• Os Anarquistas e os Sindicatos (1911-1922).
Lisboa, Portugal, Editora Sementeira, 1981.
• A Resistência Anarco-Sindicalista em Portugal
(1922-1939). Lisboa, Portugal, Editora Sementeira,
1981.
• A Oposição Libertária à Ditadura (1939-1974).
Lisboa, Portugal, Editora Sementeira, 1982.
• Os Anarquistas: Trabalhadores Italianos no Brasil.
São Paulo, Brasil, Global Editora, 1984.
• Lavoratori Italiani in Brasile. Casalvelino Scalo,
Itália, Galzerano Editore, 1985.

230
verve
Edgar Rodrigues (1921-2009)

• ABC do Sindicalismo Revolucionário. Rio de


Janeiro, Brasil, Achiamé, 1987.
• Os Libertários: Idéias e Experiências Anárquicas.
Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil, Editora Vozes,
1988.
• O Anarquismo na Escola, no Teatro e na Poesia.
Rio de Janeiro, Brasil, Achiamé, 1992.
• Quem Tem Medo do Anarquismo? Rio de Janeiro,
Brasil, Achiamé, 1992.
• A Nova Aurora Libertária (1945-1948). Rio de
Janeiro, Brasil, Achiamé, 1992.
• Entre Ditaduras (1948-1962). Rio de Janeiro,
Brasil, Achiamé, 1993.
• O Ressurgir do Anarquismo (1962-1980). Rio de
Janeiro, Brasil, Achiamé, 1993.
• Os Libertários. Rio de Janeiro, Brasil, VJR Editores
Associados, 1993.
• O Homem em Busca da Terra Livre. Rio de Janeiro,
Brasil, VJR Editores Associados, 1993.
• O Anarquismo no Banco dos Réus. Rio de Janeiro,
Brasil, VJR Editores Associados, 1993.
• Os Companheiros — Volume 1. Rio de Janeiro,
Brasil, VJR Editores Associados, 1994.
• Os Companheiros — Volume 2. Rio de Janeiro,
Brasil, VJR Editores Associados, 1995.
• Diga Não à Violência. Rio de Janeiro, Brasil, VJR
Editores Associados, 1995.
• Sem Fronteiras. Rio de Janeiro, Brasil, VJR
Editores Associados, 1995.
• Pequena História da Imprensa Social no Brasil.
Florianópolis, Brasil, Editora Insular, 1997.

231
16
2009

• Os Companheiros — Volume 3. Florianópolis,


Brasil, Editora Insular, 1997.
• Os Companheiros — Volume 4. Florianópolis,
Brasil, Editora Insular, 1997.
• Os Companheiros — Volume 5. Florianópolis,
Brasil, Editora Insular, 1997.
• Notas e Comentários Histórico-Sociais. Rio de
Janeiro, Brasil, CC&P Editores, 1998.
• O Universo Ácrata (Volumes 1 e 2). Florianópolis,
Brasil, Editora Insular, 1999.
• Pequeno Dicionário das Idéias Libertárias. Rio de
Janeiro, Brasil, CC&P Editores, 1999.
• Anarquismo à Moda Antiga. Rio de Janeiro, Brasil,
Achiamé, 2001.
• O Homem e a Terra no Brasil. Rio de Janeiro,
Brasil, CC&P Editores, 2001.
• O Porto Rebelde. Porto, Portugal, Editor Fernando
Vieira, 2001.
• Anarquismo à Moda Antiga. Rio de Janeiro, Brasil,
Achiamé, 2001 (2ª edição).
• Três Depoimentos Libertários. (Jaime Cubero,
Edgar Rodrigues e Diego Gimenez Moreno), Rio
de Janeiro, Brasil, Achiamé, 2002.
• “O indivíduo, a sociedade mercantilista, bélica e
o anarquista” in Revista Verve, vol. 4. São Paulo,
Nu-Sol, 2003.
• Against All Tyranny — Essays on Anarchism in
Brazil. Londres, Inglaterra, Kate Sharpley Library,
2003.
• Socialismo: Síntese das Origens e Doutrinas. Rio
de Janeiro, Brasil, Editora Porta Aberta, 2003 (2ª
edição).

232
verve
Edgar Rodrigues (1921-2009)

• Rebeldias — Volume 1. Rio de Janeiro, Brasil,


Achiamé, 2003.
• “Figuras exemplares do anarquismo e/ou
“escritos” pouco convencionais” in Revista Verve,
vol. 5. São Paulo, Nu-Sol, 2004.
• ABC do Socialismo Revolucionário. Rio de Janeiro,
Brasil, Achiamé, 2004 (2ª edição).
• Rebeldias — Volume 2. Santos, Brasil, Editora
Opúsculo Libertário, 2004.
• “Os pedreiros da anarquia” in Revista Verve, vol. 7.
São Paulo, Nu-Sol, 2005.
• “Os pedreiros da anarquia 2” in Revista Verve,
vol.8, São Paulo, Nu-Sol, 2005.
• Anarquismo à Moda Antiga. Rio de Janeiro, Brasil,
Achiamé, 2005 (3ª edição).
• Um Século de História Político-Social em
Documentos — Volume 1. Rio de Janeiro, Brasil,
Achiamé, 2005.
• Rebeldias — Volume 3. Santos, Brasil, Editora
Opúsculo Libertário, 2005.
• “A “ordem” do Estado, as peculiaridades humanas
e anarquia!” in Revista Verve, vol. 9. São Paulo,
Nu-Sol, 2006.
• Socialismo: Síntese das Origens e Doutrinas. Rio
de Janeiro, Brasil, Achiamé, 2006 (3ª edição).
• “Neno Vasco, Emma Goldman, a revolução
mexicana de 1910 e a tese de Pietro Ferrua” in
Revista Verve, vol. 11. São Paulo, Nu-Sol, 2007.
• “Os motivos que originaram a história da F.A.I.” in
Revista Verve, vol. 12. São Paulo, Nu-Sol, 2007.
• Um Século de História Político-Social em
Documentos — Volume 2. Rio de Janeiro, Brasil,
Achiamé, 2007.

233
16
2009

• Lembranças Incompletas. Santos, Brasil, Editora


Opúsculo Libertário, 2007.
• Mulheres & Anarquia, Rio de Janeiro, Brasil,
Achiamé, 2007.
• Rebeldias — Volume 4. Rio de Janeiro, Brasil,
Achiamé, 2007.
 

234
conversação contra um tempo conservador 1:
LEI ANTIFUMO.

você tem fogo?


fogo

Certos fumantes buscam a cura em medicamentos; certos


homossexuais a buscam em psiquiatras e psicólogos...;
os governantes pretendem limpar as cidades de drogados
e bandidos; as crianças já nascem sob o diagnóstico da
necessidade de cura. Vivemos sob a polícia de direito
com a estranha disposição para a cura levada adiante
pelos cidadãos de bem. Vivemos uma era dos normais
medicalizados, dos policiais da existência, dos
refestelados em direitos inexeqüíveis. Não há lei
diante da revolta!

[flecheira libertária, ano III, n. 120, 4 de agosto de 2009]

25 de agosto, 19hs, museu da cultura, puc-sp


[r. monte alegre, 984 - tel. 3670-8559]
nu-sol - www.nu-sol.org
AULA-TEATRO 5

limiares da liberdade
8 e 9 de junho de 2009
19h30
Tucarena, PUC-SP

Retirada de ingressos na bilheteria do Tucarena


8 e 9 de junho, das 18hs às 19hs

Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - PUC-SP


Projeto CEPE - PUC-SP www.nu-sol.org
verve
Limiares da liberdade

limiares da liberdade1
0
edson passetti & acácio augusto*

Personagens:

Corifeu
Homem 1, Anastas
Homem 2, Domingos Passos, Mulher 7
Homem 3, Presidente da seção eleitoral
Homem 4, Estátua
Voz do polícia (em off)
Homem 6, Immanuel Kant
Mulher 1, Nise da Silveira
Mulher 2
Mulher 3, Vera, Outra garota no Campo de concentração,
Anã, Poetisa
Mulher 4
Mulher 5
Mulher 6, Professora
Narrador (em off)

*
Edson Passetti é Professor no Departamento de Política e no Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol.
Acácio Augusto é Professor de Ciência Política na Faculdade Santa Marcelina,
mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisador no Nu-Sol.

verve, 16: 237-283, 2009


237
16
2009

Abertura

Elenco na arena dançando Chi chi, com Charlie Parker.


Silêncio.

Corifeu: “Parece mesmo que, lá onde reinam a simpli-


cidade e a ordem, não pode haver teatro nem
drama, o verdadeiro teatro nasce, como a poe-
sia, por outras vias, de uma anarquia que se or-
ganiza, após as lutas filosóficas que são o lado
apaixonante dessas primitivas unificações.”2

“ao contrário do caracol, a gente carrega a


casa dentro da gente, o que nos capacita a
voar, ou ficar para apreciar
tudo. Mas cuidado com o que for assustadoramente
belo.”3

1ª Parte

Paladas de Alexandria

Pendurados Homem 4, Homem 3, Homem 6. Coro na borda da arena.

Homem 1: “Muita coisa pode acontecer entre o cálice e o


lábio.”4

Coro: TSSSSSSSSSSSS.

238
verve
Limiares da liberdade

Homem 2: “A filha do gramático ajuntou-se e teve uma


criança do gênero masculino, feminino e
neutro.”5

Homem 1: “Só isso, a vida: um instante de prazer. Para


longe, mágoas.
Se é tão breve a existência dos homens, que
venha Baco...

Coro: “que venha Baco...

Homem 1: Com suas danças, coroas de flores, mulheres.

Homens 2, 3, 4 e 6:
“mulheres.

Homem 1: Hoje eu quero ser feliz — ninguém sabe nada do


amanhã.”

Homem 4: Hoje eu quero ser feliz — ninguém sabe nada do


amanhã.” 6

Homem 2: “Nenhum magistrado apareceu que fosse


puro e bom,
duas noções provavelmente inconciliáveis;
benévolo é quem rouba, o puro está cheio de
arrogância:
ambas as qualidades [são órgãos do poder].”7

Homem 1: “Acaso estamos mortos e só aparentamos estar


vivos?

239
16
2009

Coro: “Acaso estamos mortos e só aparentamos estar


vivos?...

Homem 1: Nós gregos caídos em desgraça,


que imaginamos a vida semelhante a um sonho,
ou estamos vivos e foi a vida que morreu?”

Mulher 6: ou estamos vivos e foi a vida que morreu?”

Mulher 3: e foi a vida que morreu?”8

Homem 2: “Muita coisa pode acontecer entre o cálice e o


lábio.”

Coro: TSSSSSSSSSSSS.

O maluco

Homens 1, Homem 2 e Coro.

Homem 1: “Saudações, maravilhosos meninos norte-


americanos
chamados a lavar a lepra hereditária
irrompendo na sala quando o pai e a mãe viam
televisão
com uma saudável, perfeita apunhalada, com
um golpe de ferro na cabeça
(...) Saudações, jovens heróis, assassinos de um
tempo proxeneta.
Legítima defesa, rapazinho, estão tentando te
estuprar, te encurralam
(...) Vai derrota-os

240
verve
Limiares da liberdade

não te vendo palavras, mata-os de verdade para


que vivam,
quero dizer: arranca-os pela raiz,
quebra em pedaços a roda das rodas, destrói a
cusparada da história
que masturba seus macacos ao ritmo das
máquinas da Time,

Coro: “Time Time Time...”

Homem 1: “que entroniza princesas de roleta católica,


que engendra putas para desprezá-las no leito
legítimo
com um desprezo que não irá jamais a um
almirante ou bispo.
Oh, crianças assassinas, oh, selvagens tochas
(...) Uma lata de gasolina, um fósforo e se
acabou; a fogueira é uma rosa,
começa a noite de São João, hosana!

Coro: “Hosana!

Homem 1: “Enquanto se viver assim no Grande Costume,


enquanto a história continuar sua cópula
gosmenta com a História
enquanto o filho for filho do Tempo
e preservarmos as efemérides podres
e os podres heróis de desfile,
os caras serão sombras, as cruzes serão Cristo,
a luz o amargo quilowat do amor (Coro canta
Let’s dance)
revanche e não leopardo.

Homem 2: (Alguns poucos, vivem se desacostumando.


São mortos aos montes, mas sempre

241
16
2009

Há algum que escapa,


Que espera na saída da escola
Para incentivar o colegial de olhos de gelo
E lhe oferecer um canivete).”9

Coro: TRRRRRRRRRRR.

Cortazarianas

Homem 1, Homem 2, Coro, Mulher 1, Mulher 2, Mulher 5, Mulher 6,


Homem 6 e Mulher 3.

Homem 1: “A diferença entre um doido e um maluco é que


o doido tem a tendência de se achar cordato

Coro: “Cordato, cordato, cordato, cordato”

Homem 1: “enquanto o maluco, sem refletir sistematica-


mente sobre a coisa, sente que os cordatos são
muito sementeira simétrica e relógio suíço,

Coro: “relógio suíço: tic-tac, tic-tac...

Homem 2: ... os dois depois do um e antes do três, de maneira


que sem emitir juízo, porque um maluco nunca
é um bom-pensante (Cessa o tic-tac, tic-tac...) ou
uma boa consciência ou um juiz de plantão, esse
camarada continua o seu caminho por baixo da
calçada e meio a contrapelo, e vai daí...

242
verve
Limiares da liberdade

Coro: “(circulando pela arena) e vai daí, e vai daí, e vai


daí.

Homem 2: ... e vai daí que enquanto todo o mundo freia o


carro quando vê o sinal vermelho,

Homem 1: ... ele pisa no acelerador e Deus te livre.

Homem 2: Para entender um doido convém um psiquiatra,

Homem 1: ... mas nunca é suficiente; para entender um ma-


luco basta o senso de humor.”10

Homem 2: Todo maluco é cronópio,

Coro: O quê?

Homem 2: Cronópio.

Mulher 1: Cronópio!?

Homem 2: “Todo maluco é cronópio, ou seja, o humor


substitui parte das faculdades mentais que cons-
tituem o orgulho de um professor ou um doutor
cuja única saída em caso de fala é a loucura, ao
passo que ser maluco não é nenhuma saída, mas
uma chegada.”11

Silêncio. Todos sentam.

243
16
2009

Homem 1: “A gênese do conto e do poema é contudo a


mesma, nasce de um repentino estranhamento,
de um deslocar-se que altera o regime ‘normal’
da consciência.”12

Homem 2: “A poesia continua sendo a melhor possibili-


dade humana de realizar um encontro que nin-
guém descreveu melhor que Lautréamont (Coro
cantarola: I know it’s only rock’n roll but I like it)
e que pode fazer do homem o laboratório cen-
tral de onde algum dia sairá o definitivamente
humano, a menos que antes disso todos nós te-
nhamos ido para a casa do caralho.”13 (Coro re-
pete: But I like it).

Homem 1: “A única coisa imutável no homem é sua voca-


ção para o mutável: por isso a revolução será
permanente, contraditória, imprevisível, ou não
será.

Coro: (pula, agacha e repete) Ou não será!

Homem 1: As revoluções-coágulo, as revoluções pré-fabri-


cadas, contêm em si mesmas sua própria nega-
ção, o Aparelho futuro.”14

Homem 2 e Mulher 6:
“Nos oitenta mundos da minha volta ao dia há
portos, hotéis e camas para os cronópios, e além
disso citar é citar-se, como já disseram e fizeram
mais de meia dúzia,

244
verve
Limiares da liberdade

Homem 1: ... com a diferença de que os pedantes citam por-


que veste bem e os cronópios são terrivelmente
egoístas e querem monopolizar seus amigos,

Homens 2 e 6, mulheres 1, 2 e 5:
... como eu.”15

Homem 1: Como eu.

Mulher 6 e Mulher 5:
Como eu.

Homem 1: “Sempre serei criança para muitas coisas, mas


dessas crianças que trazem em si o adulto desde
o princípio, de maneira que quando o monstri-
nho vira realmente adulto acontece que este por
sua vez traz em si a criança, e nel mezzo del camin
se dá uma coexistência poucas vezes pacífica de
ao menos duas,

Coro: “duas,

Mulher 6 e Mulher 5:
[Nós duas...]

Homem 1: duas aberturas para o mundo.”16

“No entanto estou aqui, de porta aberta.


Depois sairei, sairemos, para construir a cidade.

245
16
2009

Quem está disponível para a hora futura


Sabe que a vida vale a pena.”17

(Coro canta e dança: Deus e o diabo de Caetano Veloso).

Homem 2: (sobe na pilastra)


“Como isto só vai durar um dia, como isto só
vai durar um tempo ou dois
como isto e todo o resto se acaba, queira ou
não o Estado
ou o Indivíduo (esse pequeno Estado) isto se
acaba porque
já está nascendo o tempo aberto o tempo
esponja... 18

Homem 1: “Quanto a mim, tenho certeza de que só cir-


cunstâncias externas (uma música, o amor, um
estranhamento qualquer) me isolam por um mo-
mento da consciência vigilante, isso que aflora e
assume uma forma traz consigo a certeza total,
um sentimento de exaltante verdade.

Homem 2: ... aquele momento em que Charlie Parker co-


meça a voar Out of Nowhere (ouve-se a música de
Charlie Parker).

Homem 1: Após beber os mares nos surpreende


que nossos lábios continuem secos como
as praias
e buscamos outra vez o mar para nele nos
molhar, sem ver
que nossos lábios são as praias e nós, o mar.”19

246
verve
Limiares da liberdade

Mulher 2: “abandonar tudo, conhecer praias, amores novos.


poesia em cascatas floridas com aranhas
azuladas nas samambaias.

Mulher 3: todo trabalhador é escravo. toda autoridade


é cômica. fazer da anarquia um
método & modo de vida.

Mulher 2: estradas.

Mulher 3: bocas perfumadas.

Mulher 2: cervejas tomadas


nos acampamentos.

Mulher 2 e Mulher 3:
Sonhar Alto.”20

A terceira margem

Homem 1, Homem 2, Homem 6, Homem 3, Homem 4, Mulher 1,


Corifeu e Coro.

Homem 1: “Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, posi-


tivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo
que testemunharam as diversas sensatas pessoas,
quando indaguei a informação. Do que eu mesmo
me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem
mais triste do que os outros, conhecidos nossos.
Só quieto. (...) Mas se deu que, certo dia, nosso pai
mandou fazer para si uma canoa (…).

247
16
2009

Homem 2: Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo


remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela
por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Homem 6: “comprida longa.

Homem 2: Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhu-
ma parte. Só executava a invenção de se perma-
necer naqueles espaços do rio, de meio a meio,

Homem 6: “de meio a meio,

Homem 2: “sempre dentro da canoa, para dela não saltar


nunca mais.

Homem 6: “nunca mais.

Homem 2: A estranheza dessa verdade deu para estar-


recer de toda gente. Aquilo que não havia,
acontecia.”21

Homem 3 e Homem 4:
“aquilo que não havia, acontecia.”

Mulher 1: “Em meu país, as provas tenras da primavera e as


aves mal
vestidas são preferíveis às metas longínquas.
A verdade aguarda a aurora ao lado de uma vela.
Negligencia-se vidros e janelas. Não interessa ao
atento.

248
verve
Limiares da liberdade

Em meu país, não se questiona um homem


comovido.
Não há sombra maligna sobre o barco virado.
Bom-dia mal dado não se conhece em meu país.
Só se pede emprestado o que pode voltar
dobrado.
Há folhas, muitas folhas, nas árvores de meu país.
Os galhos são livres para não ter frutos.
Não se crê na boa fé do vencedor.
Em meu país, se agradece.”22

Corifeu: (Coro em movimento) “Ocorre com frequência


que as reais tragédias da vida acontecem de tal
maneira, sem qualquer apelo artístico, que elas
nos ferem por sua violência crua, sua absoluta
incoerência, sua absurda ausência de sentido,
sua completa falta de estilo. Elas nos afetam
assim como a vulgaridade nos afeta. Elas nos dão
uma impressão de pura força bruta, e nós nos
revoltamos contra isso. Por vezes, entretanto, uma
tragédia que possui elementos artísticos de beleza
atravessa nossas vidas (cessam os movimentos).
Se esses elementos de beleza são reais, tudo
simplesmente desperta nossa percepção de efeito
dramático (retomam os movimentos). De repente,
nos damos conta que não somos mais os atores,
mas os espectadores da peça. Ou melhor, que
somos ambos.”23

Black-out.

249
16
2009

2ª Parte

Campo de concentração

Corifeu: “Ergueu-se a muralha


em volta do povo
bodes se matavam
chifre contra chifre.”24

Gueto

Mulher 2, Mulher 6, Mulher 3, Mulher 1, Homem 3, Coro, Homem 1.

Mulher 2: “É verdade que o capitalismo manteve como


constante a extrema miséria de três quartos da
humanidade, pobres demais para a dívida, nu-
merosos demais para o confinamento: o con-
trole não só terá que enfrentar a dissipação das
fronteiras, mas também a explosão dos guetos e
favelas.”25

Mulher 6: “Cunhado por derivação do italiano giudecca,


borghetto ou gietto (do alemão Gitter ou do he-
breu talmúdico get), a palavra “gueto” se referia
inicialmente à consignação forçada de judeus
a distritos especiais por parte das autoridades
políticas e religiosas da cidade. Na Europa me-
dieval, os judeus eram comumente alocados em
bairros onde residiam, administravam seus pró-
prios negócios e viviam segundo seus costumes.
(...) No entanto, entre os séculos XIII e XVI, como
réplica aos motins causados pelas Cruzadas, o
benefício aos poucos se transformou em obriga-

250
verve
Limiares da liberdade

ção. (...) Os judeus tinham autorização para sair


durante o dia para exercer suas ocupações, mas
tinham de vestir um traje distintivo e retornar
para o interior do recinto antes do pôr do sol,
sob pena de graves punições (…).”26

Mulher 3: O uniforme! A identificação; a acusação; a peste...

Mulher 1: “(...) O Judenstadt de Praga, o maior gueto da


Europa no século XVIII, tinha sua própria pre-
feitura — o Rathaus, símbolo da relativa auto-
nomia e de força comunitária de seus residentes
— e suas sinagogas se encarregavam não só da
direção espiritual como da supervisão adminis-
trativa e judicial da população. A vida social do
gueto judeu era voltada para seu interior e ten-
dia à sobreorganização, de maneira que reforça-
va tanto a integração interior como o isolamento
em relação ao exterior (…).”27

Mulher 3: Endogamia; amor separado; amor por si; amor


de si; tanto amor para perdão e traição, deses-
pero e holocausto. Separados eles permanecem
juntos até que um poder de fora alicie um poder
de dentro, levando destruição e auto-aniquila-
mento: no gueto só há vida provisória!

Mulher 1: No gueto só há vida provisória! (Ouve-se Strange


fruit com Billie Holiday.)

Mulher 2: “(...) Os afro-americanos não tiveram outra es-


colha senão buscar refúgio no perímetro restrito
do Cinturão Negro e tentar desenvolver ali uma

251
16
2009

rede de instituições próprias, capaz de satisfazer


as necessidades básicas da comunidade exilada.

Mulher 1: Surgiu, assim, uma cidade paralela, ancorada


em igrejas e jornais negros, lojas maçônicas e
clube de bairros negros, escolas e empresas ne-
gras, associações políticas e civis negras, ani-
nhada no coração da metrópole branca...

Mulher 2: ... e, no entanto, hermeticamente separada dela


por uma cerca intransponível, feita de costu-
mes, pressão legal, discriminação econômica
(por agentes imobiliários, bancos e Estado) e
violência, que se manifestava em agressões e
espancamentos, incêndios punitivos e levan-
tes contra aqueles que ousavam se aventurar
do outro lado da linha de demarcação racial
(color line).”28

Mulher 6: Hoje pelos direitos de minorias, os chamados


direitos de terceira geração, e depois da for-
mação de sólidas linhagens de vida confinada
já se pode sair e entrar na paz. Sair para o tra-
balho; entrar como turista. A raiva de cada um
se transforma em amor pelo local; o medo do
gueto em amor pela identidade.

Mulher 3: Vivemos pela sensação de estar vencendo.


(Pausa) O quê?

Homem 3: O inimigo imediato... o passado, a separação...


o terror.

252
verve
Limiares da liberdade

Coro: O terror!

Mulher 3: “O terror é a homenagem que solitários ranco-


rosos rendem à fraternidade dos homens.”29

Homem 1: Não há terror sem irmandade, sem o que nos


identifica e que nos é insuportável. Na irman-
dade está o apreço insustentável pelo amor. E
onde há amor há tolerância com o outro desde
que ele seja nosso espelho e se reconheça infe-
rior. (Volta Strange fruit). Não se queira com
identidade, com nenhuma; pronuncie um não
afirmativo pra você e me responda: “pode a
vida genuína acontecer sem alguma loucura,
algum excesso?”30 Nada acaba fora se não es-
tiver arruinado dentro. O incompatível não é
uma mera questão filosófica.

Arquipélogo

Homem 2 e Homem 1.

Homem 2: “A todas as horas para lá voam aviões,


navegam barcos e marcham trens sem que
neles se veja uma só inscrição que indique o
lugar de destino. (...) Aqueles que vão dirigir
o arquipélago chegam lá por intermédio da
Escola do Ministério do Interior. Aqueles que
vão ser guardas no arquipélago são convocados
por intermédio de seções militares. Aqueles
que vão morrer, como você ou eu, esses
devem passar infalível e exclusivamente pela
detenção.

253
16
2009

Homem 1: (...) Nem com a vista nem com o pensamento


tentamos penetrar no que há por trás, quando
é ali mesmo, bem perto, a dois metros de nós,
que começa. Nem ainda distinguimos, nesses
tapumes, a inúmera quantidade de portas es-
treitas e bem ajustadas, bem camufladas. To-
das, todas essas portas foram preparadas para
nós! E eis que uma se abre rápida e fatal, e que
quatro mãos brancas, masculinas, não habitu-
adas ao trabalho, mas como garras, nos pren-
dem pelas pernas, pelos braços, pelo colarinho,
pelo boné ou por uma orelha e nos arrastam
como um fardo, enquanto a porta fica para trás
de nós, a porta da nossa vida passada, fechada
para sempre. E é tudo!”31

Homem 2: “As milhares de ilhas desse enfeitiçado ar-


quipélago (...) são invisíveis, mas existem, e é
de modo invisível mas constante que se deve
transportar, de ilha em ilha, escravos também
invisíveis, embora estes tenham carne, vo-
lume, peso. Mas como transportá-los? E por
que meios? Há para isso grandes portos: as
prisões de trânsito; e outros menores: os cam-
pos de trânsito. Há também navios de aço bem
fechados.”32

Homem 1: “Num instante, todos os hábitos de convivên-


cia humana em que se tinha vivido estalam e
se quebram.”33

Homem 2: “Os condenados devem compreender que a sua


maior culpa residiu na tentativa de comunica-
rem ou unirem-se de qualquer forma uns com
os outros, fora do controle do organizador.”34

254
verve
Limiares da liberdade

Theresienstadt

Narrador (em off), coro de mulheres, Coro, Mulher 1, Mulher 2.

Narrador (em off):


“Durante a Guerra, alguns rumores sobre os epi-
sódios horríveis e extremos perpetuados sob o
Terceiro Reich se espalharam pelo mundo. Os
nazistas precisaram responder a esta preocu-
pação crescente principalmente em relação aos
judeus e no entanto continuar com a sua solução
para a questão judaica. Então, foi mostrado ao
mundo que Hitler reformou uma cidade espe-
cialmente para os judeus em final de 1941, para
protegê-los das pressões da guerra. Isso ocorreu
em Terezín, cidadezinha do século XVIII, perto
de Praga.

Coro de mulheres:
PRAGA! PRAGA!

Mulher 1: (...) Para lá foram mandados músicos famosos,


cientistas, escritores, artistas, líderes políticos, to-
dos na maioria judeus. Antes da guerra, a cidade
contava com 5 mil pessoas. No auge da guerra, o
campo de concentração/ghetto Terezín chegou a
contar com 55 mil residentes. A fome e epidemias
se mostraram avassaladoras, milhares morreram,
os cadáveres eram queimados em crematórios
com fornos de gás.

Coro: TSSSSSSSSSSSS.

255
16
2009

Mulher 2: (...) A Cruz Vermelha foi uma vez autorizada


a visitar Terezín para checar denúncias de que
os judeus estavam sendo maltratados. A cidade
passou a ser arrumada e enfeitada para a oca-
sião. (...) As vitrines de lojas ao longo daquele
percurso cuidadosamente vigiado apareceram
lotadas de produtos naquele dia. (Depois da
visita, os nazistas ficaram tão impressionados
com sua façanha propagandística que decidiram
fazer um filme no local). (...) A Cruz Vermelha
reportou secamente que, apesar das condições
de guerra terem tornado a vida difícil, viver em
Terezín era aceitável, considerando-se todas as
pressões. A Cruz Vermelha concluiu que os ju-
deus eram bem tratados.”35

Um preto anarquista

Polícia (em off), Domingos Passos, Homem 2 e Homem 1...

Polícia (em off):


Nome?

Domingos Passos:
Domingos Passos, militante anarquista do Rio
de Janeiro.

Polícia (em off):


Cor?

Domingos Passos:
Preto.

256
verve
Limiares da liberdade

Polícia (em off):


Destino?

Domingos Passos:
... deportação para o Oiapoque [Amapá, ano]
1924.

Homem 2: “Passos foi um dos raros deportados que


conseguiu fugir daquele inferno graças a seu
espírito de luta, a sua decisão e a sua resistência
física (Coro batendo os pés). Pôde realizar essa
façanha porque a vigilância não era rigorosa,
uma vez que se sabia que, todo fugitivo que
se aventurasse pelas matas morreria de fome,
de sede e geralmente comido pelas feras. Teve
de atravessar rios a nado, alimentar-se de
ervas silvestres e comer a casca de uma árvore
conhecida na região para combater a terrível
febre palustre ali adquirida e que graçava na
região da Clevelândia. (...) Quando foi deportado
para o Oiapoque já havia percorrido a maioria
dos estados do Brasil, e em todos eles conhecia
as prisões. (...) Quando Domingos Passos
chegou a São Paulo fugido das terríveis regiões
inóspitas da Clevelândia, a campanha [para a
libertação] de Sacco e Vanzetti estava em franco
andamento. (...) Muitas vezes teve de abandonar
apressadamente as nossas reuniões, tremendo e
ardendo em febre, para ir acamar-se em sua casa
até a crise da palustre passar.”36

Homem 2 canta Jorge da Capadócia, de Jorge Ben.

257
16
2009

Homem 1: “Enquanto tu e eu tivermos lábios e vozes que


Servem para beijar e cantar
Que importa que um qual quer limitado filho
da mãe
Invente um instrumento que sirva para medir
a primavera?”37

Uma criança

Homem 3, A professora, Anastas e Vera.

Homem 3: “‘Aquele que recorda o passado perde um olho.


E aquele que o esquece perde os dois!’ (...) A polí-
tica dos Gulags, colocada já para Lênin, era uma
questão de ‘profilaxia social’ que devia se esten-
der a crianças e jovens. A caça aos anarquistas
passou a se entrelaçar com a caça a crianças e
jovens.

A professora: O berçário também era parte do complexo do


campo. Tinha sua própria guarita, seus próprios
portões, seus próprios barracões, seu próprio
arame farpado. (...) ‘Quando [tentei] ensinar
algo às crianças sob [meus] cuidados, [consta-
tei] que apenas uma ou duas — aquelas que ha-
viam mantido algum contato com as mães — se
mostravam capazes de aprender alguma coisa.
E mesmo a experiência dessas poucas crianças
era limitadíssima: ‘Olhe’, Anastas, [e mostrei a
casinha que desenhei] O que é isso?

Anastas: ‘Alojamento.’

258
verve
Limiares da liberdade

A professora: Com algumas canetadas, pus um gato ao lado


da casa. Mas ninguém, nem mesmo Anastas,
reconheceu o bicho. Nunca tinham visto aquele
animal raro. Aí desenhei uma cerca rústica, tra-
dicional, em volta da casa. (Silêncio) ‘E o que é
isso?’

Vera: ‘A zona prisional’ ([ela] gritou encantada).”38

Uma dieta

Narrador (em off), Homem 3, Coro, Homem 3, Outra garota no


Campo de concentração, Homem 4, Anastas.

Narrador (em off):


“Há pouco tempo, a veracidade de um episódio
particularmente horripilante, que durante muito
tempo fora parte do folclore dos sobreviventes
dos campos, viu-se confirmada por um docu-
mento encontrado nos arquivos de Novossibirsk.
Assinado por um funcionário do Comitê do Par-
tido em Narym, na Sibéria ocidental, e enviado à
atenção pessoal de Stalin em maio de 1933, des-
creve com precisão a chegada à ilha de Nazino,
no rio Ob, de um grupo de camponeses desterra-
dos, descritos como “elementos retrógrados.”

Homem 3: “O primeiro comboio trazia 5.070 pessoas, e o


segundo, 1.044. Ao todo, 6.114.”

Coro: Seis mil cento e quatorze elementos retrógados.

259
16
2009

Homem 3: “As condições de transporte eram chocantes: a


pouca comida disponível não estava em con-
dições de consumo, e os deportados ficavam
apinhados em espaços nos quais o ar quase não
circulava. (...) O resultado foi uma mortalidade
diária de trinta e cinco a quarenta pessoas. Con-
tudo, essas condições de vida eram luxuosas se
comparadas ao que aguardava os deportados
em Nazino.

Outra garota no Campo de concentração:


(...) A ilha é um lugar totalmente desabitado,
desprovido de povoações de qualquer tipo. (...)
Não havia ferramentas, sementes nem comida.
Foi assim que começou a nova vida.

Homem 4: Em 19 de maio, no dia seguinte à chegada do pri-


meiro comboio, recomeçou a nevar, e o vento fi-
cou mais forte. Famintos, emaciados após meses
de alimentação insuficiente, sem abrigo e sem
ferramentas (...), estava [mos] presos em uma
armadilha. Nem sequer conseguia [íamos] acen-
der fogueiras para espantar o frio. Começam[os]
a morrer em número cada vez maior. (…)

Outra garota no Campo de concentração:


No primeiro dia enterraram-se 295 pessoas. Foi
somente no quarto ou quinto dia depois da che-
gada do comboio à ilha que autoridades envia-
ram de barco um pouco de farinha, não mais que
algumas libras por cabeça. Depois de recebida a
mísera ração, as pessoas corriam para a margem
e tentavam misturar um pouco de farinha com
água, usando seus chapéus, suas calças ou seus
casacos. A maioria [de nós] simplesmente tentou

260
verve
Limiares da liberdade

comê-la assim mesmo, e alguns engasgaram até


a morte. Essa minúscula quantidade de farinha
foi a única comida que [recebemos] durante toda
a [nossa] estada na ilha (…).

Anastas: O funcionário do Partido contava que, três me-


ses depois, em 20 de agosto já haviam [morrido]
quase 4 mil dos 6.114 “colonos” originais. Os
sobreviventes só não tiveram o mesmo destino
porque comeram a carne dos mortos. Segundo
um preso que encontrou alguns desses sobrevi-
ventes na prisão de Tomsk, eles pareciam “ca-
dáveres ambulantes”, e todos estavam detidos
— acusados de canibalismo.”39

Coro: Canibais! Canibais! Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!

Para dar um fim à compaixão

Homem 3, Mulher 1, Mulher 5 e Corifeu.

Homem 3: “Um dia você dirá, estou cansado, vou me sentar,


e sentará. Então você dirá, tenho fome, vou me
levantar e conseguir o que comer. Mas você não
levantará. E você dirá, fiz mal em sentar, mas já
que sentei, ficarei sentado mais um pouco, depois
levanto e busco o que comer. Mas você não
levantará e nem conseguirá o que comer. Ficará
um tempo olhando a parede, então você dirá,
vou fechar os olhos, cochilar talvez, depois vou
me sentir melhor, e você os fechará. E quando
reabrir os olhos, não haverá mais parede. (Pausa)
Estará rodeado pelo vazio do infinito, nem
todos os mortos de todos os tempos, ainda que

261
16
2009

ressuscitassem, o preencheriam, e então você


será como um pedregulho perdido na estepe.”40

Mulher 1: “Ainda há povos e rebanhos, em algum sítio,


mas não entre nós: aqui há Estados (…). (Pausa)
Chama-se Estado o mais frio de todos os mons-
tros frios. E com toda a frieza, também mente;
e esta mentira sai rastejando da sua boca: ‘Eu,
o Estado, sou o povo!’ É mentira! Criadores, fo-
ram os que formaram os povos e suspenderam
por cima deles uma fé e um amor; assim servi-
ram a vida. Destruidores, são os que preparam
armadilhas para muitos e as chamam Estado; e
suspendem por cima deles uma espada e cem
cobiças. Onde ainda existe um povo, este não
compreende o Estado e o odeia como má sorte e
ofensa aos costumes e à justiça (…).

Mulher 5: “(...) a caridade é uma forma inadequada e ri-


dícula de restituição parcial, uma esmola sen-
timental, geralmente acompanhada de uma
tentativa impertinente, por parte do doador, de
tiranizar a vida de quem a recebe.”41 Não tenha-
mos compaixão de nós. Não tenha compaixão de
mim.

Corifeu: (...) Onde cessa o Estado, somente ali começa


o homem que não é supérfluo, ali começa
o canto do necessário, essa melodia única e
insubstituível.”42

Ouve-se A base de Guantánamo, com Caetano Veloso; elenco se


despe, explode Guantánamo e sai para a plateia como bando de guer-
rilheiros armados. Ao final da música ingressam na arena, vestem-se
cantando Batucada de bamba de Ataulfo Alves.

262
verve
Limiares da liberdade

3ª Parte

O voto e os filósofos

O presidente da seção eleitoral, Anã, Homem 1, Coro, Estátua,


Mulher 1, Mulher 5, Immanuel Kant, Mulher 4, Mulher 6, Homem 2
e Coro de mulheres.

Coro caminha desencontrado pelo espaço. Cada um procura a fila de


sua seção eleitoral.

O presidente da seção:
Lamento informar mas as urnas quebraram.
“Podem ir embora. Não há previsão se a urna
voltará a funcionar. Vocês têm 60 dias para justi-
ficar o voto.”

Anã: Logo na minha vez, parece discriminação!

Homem 1: Como assim? Justificar o quê, se eu vim até aqui,


o voto não é obrigatório? Que porra de democra-
cia é essa, que obriga a votar, exige que me jus-
tifique, que saco! Além do mais, foi a máquina
que quebrou.

Coro: Que porra de democracia é essa, que obriga a


votar, exige que me justifique, que saco!

Estátua: Eu daqui do alto vos saúdo!

263
16
2009

Coro: Cala a boca!

Mulher 1: Você já viu estátua falar?

O presidente da seção:
Tem que justificar porque faz parte do pro-
cedimento.”43

Homem 1: E você só está fazendo seu trabalho, né?

Anã: Japa, traz uma água aí, porque eu não alcanço...


o “bebedor”.

Mulher 5: Ei anã, você quer ser chamada de verticalmente


prejudicada e me chama de “japa”? Minha mãe
me disse que eu não sou “japa” e que não tenho
sotaque do interior (forçando o sotaque interiora-
no paulista). E fique sabendo que não é bebedor,
mas bebedouro!

Anã: Ai, colega, magoei!

Mulher 5: Onde cabe tanta água em tamanha altitude?!

Anã: Que falta de coleguismo!

Estátua: Cidadãos, do alto desta pirâmide, quatro séculos


de história vos contempla.

264
verve
Limiares da liberdade

Mulher 1: Já não disse que monumento não fala? Este


(para a plateia referindo-se à estátua de Napoleão
Bonaparte) também era anão... Vou te mostrar
outra maneira de perder a guerra! (volta-se
para a plateia) Informação histórica: está é uma
história baseada em fatos reais. Qualquer se-
melhança com pessoas vivas ou mortas é mera
coincidência.

Immanuel Kant:
Sabe quem eu sou mocinha?

Mulher 4: Você conhece esse senhor?

Mulher 1: Não sei... será o presidente da outra seção?

Immanuel Kant:
Você sabe que eu saí da minha cidade só para vir
votar, aqui onde fui designado.

Mulher 1: O cara é doido, saiu da cidade dele para votar.


Então você não é o presidente.

Immanuel Kant:
Eu sou um filósofo.

Mulher 1: Mas nada prático.

Mulher 4: Ih, ele me parece purinho, purinho.

265
16
2009

Mulher 1: Olha uma barata! (O filósofo desmaia).

Homem 2: Epa, que biozona!

Mulher 6: Deixa que eu reanimo. Fiz “falculdade”, tenho


certificado, fiz o curso Florence Nightingale.
Tradução: “rouxinol de Florença”.

Immanuel Kant:
Dia de eleição é dia de lei seca.

Mulher 4: Sabe... ele até que é bonitinho.

Mulher 6: Eu também acho.

Anã: Eu sou anã, mas não sou míope!

Mulher 1: Neste caso, miúda, fecho com você! Prático para


ele é ser puro.

Homem 2: Tô seco por uma cerveja. Tá um puta calor... Esse


cara é americano?

Mulher 4: Deixa eu pensar.

Mulher 1: Você já viu filósofo americano?

266
verve
Limiares da liberdade

Mulher 4: É mesmo. Esse cabeludo (Homem 2) está me con-


fundindo.

Homem 2: (Para Mulher 4) Deixa que eu te esclareço. Qual


seu nome?

Mulher 4: Folgado.

Immanuel Kant:
Dá licença que eu vou pegar o meu ônibus para
voltar para Koenigsberg.

Mulher 6: Você não vai me convidar? Ai, me conta a cláu-


sula secreta da paz perpétua!

Immanuel Kant:
Você está parecendo uma Maria Anpocs, uma
alpinista acadêmica.

Mulher 6: (Tocando na genitália do filósofo). Eu só quero con-


ferir seu Lattes.

Coro de mulheres:
Au, au!

Homem 1: E aí... espera um pouco. Você vai embora agora?


Nunca saiu daquela porra de aldeia, veio cum-
prir sua responsabilidade de cidadão, e agora
vai afinar?

267
16
2009

Immanuel Kant:
Você sabe que o cidadão é livre para discordar
da lei, mas tem de obedecer.

Homem 2: Obedecer, obedecer. Assim eu perco a cerveja, a


bonitona lá de trás…

Mulher 4: Vamos dizer que você não pode perder o que


não ganhou. Certo?

Homem 2: Eu queria que você fosse minha!

Mulher 4: Minha, minha. Minha-sua. Eu não queria es-


tar aqui, nem justificar, nem votar, entendeu?
‘Tá achando que eu quero que alguém faça por
mim? Errado.”

Homem 2: Adoro mulher brava...

Anã: Adoro homem alto! (para Homem 2).

Homem 2: Minha causa é você! (para Mulher 4).

Mulher 4: Me poupe! E quer saber de uma coisa (abre a bol-


sa, retira o título de eleitor e o faz em pedacinhos). E aí?

Mulher 2: “Cada um de nós tem o seu governo interior:


tudo o que vem de fora, não constituindo uma
nota de beleza, de harmonia vibrando em unís-
sono com a nossa harmonia, é violência que

268
verve
Limiares da liberdade

gera violência, é ódio que gera ódio. Mandar


como obedecer, é covardia: degrada, avilta,
imbeciliza.”44

Homem 1: “Talvez, o objetivo hoje em dia não seja desco-


brir o que somos, mas recusar o que somos.

Mulher 1: A conclusão seria que o problema político, éti-


co, social e filosófico de nossos dias não consiste
em tentar liberar o indivíduo do Estado nem das
instituições do Estado...”45

Homem 1: “Resistir também não é mais uma atitude que


ocorre em lugares ou atravessa a estratificação.
É preciso se desdobrar velozmente. É preciso ser
intenso, virar vacúolo. (...) Outras (...) associabi-
lidades. Diante da ideia, o fato; da perfeição, o
imperfeito; da utopia a heterotopia; do futuro, o
presente; da fraternidade, a amizade.”46

Coro: (Voltado para a plateia, mostra o título de eleitor,


cada um diz) Tá vendo? E aí. (Depois pica o seu e
atira os pedaços para o alto).

Anã: (Corre para o centro da arena) Tá vendo, também


piquei!

Mulher 4: (Encara a plateia do centro do palco e diz) E aí?

Black-out.

269
16
2009

Um sonho

Narrador (em off) e Anastas.

Narrador (em off):


Qual seu sonho?

Anastas: Fazer 18 anos.

Ouve-se Romaria, de Renato Teixeira, Vera se aproxima e pega na


mão de Anastas; mais tarde Homem 3 se posiciona do outro lado
de Anastas: “como não sei rezar/só queria mostrar/meu olhar/meu
olhar/meu olhar...”

Limites

Papo de dondocas

Mulher 3, Mulher 7, Mulher 4 e Mulher 6.

Mulher 3: “Diante da crise, o meu [marido] que fala pelos


cotovelos, ficou mudo.

Mulher 7: O meu dormia e acordava com a TV na Bloomberg.


Começou a tomar remedinho pra dormir, aparece-
ram alguns cabelos brancos.

Mulher 3: No meu, teve um agravante: ele perdeu o ânimo.


A gente parou de sair. E meu marido é ‘o inclu-
ído social’. São três almoços todo sábado. Não

270
verve
Limiares da liberdade

que eu não goste de ir, mas a gente vai por algo


além do prazer. Ele acha que precisa. (…) [Por
conta disso] Temos uma regra em casa. Tudo
pode faltar, menos a babá.

Mulher 4: O meu perdeu aquela alegria. Nas férias, a gente


viajou pra dentro do Brasil. Foi um lugarzinho
bárbaro, em Santa Catarina. Era mais pra não
gastar dinheiro.”

Mulher 7: Que pobreza!

Mulher 3: Pra não gastar em dólar, né?

Mulher 4: Os homens se uniram.

Mulher 4: O meu, de primeiro, ficou irritado; depois, ca-


rente.

Mulher 7: Em casa, ele dizia: ‘Vamos evitar esse assunto?’.

Mulher 3: Amigas, nossas histórias são café pequeno per-


to de outras. Tenho uma conhecida que a vida
do marido acabou. Ele perdeu dinheiro aplicado
da família inteira. Da irmã milionária, do irmão
triliardário. Esse cara é mais velho, quase 50, da-
quela fase que os nossos meninos não pegaram,
em que um cara, com 30 anos, já tinha feito US$
2 milhões.

Mulher 6: [Já dá até para ter filhos!]

271
16
2009

Mulher 3: Ôpa! A coisa mais comum nesse meio é ouvir:


‘Como assim, você vai ter um filho antes de fazer
o primeiro milhão de dólares?’.

Mulher 7: É papo de menino. É o equivalente a: ‘Como


você não tem uma enfermeira, só uma babá?,’
valoriza o status proporcionado.

Mulher 3: [Assim como] O carro, o relógio, o sapato.

Mulher 7: Principalmente o carro.

Mulher 3: Quando eu comecei a namorar, eu achava que


ele era milionário. Eu nasci bem, morei em Nova
York, mas, mesmo assim, ele me impressionou.
Pensei: “Que sorte encontrar um cara lindo,
rico...”. Ele morava sozinho em um apartamen-
to enorme, e era chiquérrimo nos detalhes: na
abotoadura, no bico do sapato. Ele sempre diz:
“Para alguém colocar o dinheiro comigo, tem
que acreditar que eu sou muito rico, muito prós-
pero”.

Mulher 4: O meu ama vinho.”

Mulher 7: Emergente!

Mulher 4: “Tem duas adegas, que deram uma boa esvazia-


da. E, no auge [da crise], ele não repôs. Só agora,
recentemente.

272
verve
Limiares da liberdade

Mulher 6: O meu dizia: ‘Você não sabe como eu tô po-


bre!’. Eu o animava. Outro dia fomos comer
num japonês que é mais carinho e vivia lotado,
estava vazio. Mas a gente tava lá.” Eu não vi
você lá, baby (para Mulher 7).

Mulher 3: “90% do mercado financeiro faz pólo. Na cri-


se, meu marido não jogou nenhuma vez. Custa
uma fortuna. Tem que ter sete cavalos. Então,
nessas sutilezas é que você sente a crise.

Mulher 6: Uma amante faz parte do arsenal de status do


investidor.

Mulher 4: Claro, de todos. Mas eu não penso nisso.

Mulher 3: Não é coisa de investidor, é de homem.”

Mulher 7: Pode parar! Isso já é discriminação!

Mulher 3: “É até feio falar, mas a ex-namorada dele era


uma ‘baianinha’. Tenho certeza de que o fato
de eu ter morado no mundo inteiro, falar lín-
guas, conhecer pessoas o levou a pensar: ‘Vou
ficar com esse fim de mundo [a ‘baianinha’] ou
fazer essa troca?’ E me escolheu.”47

Silêncio prolongado. Black-out.

273
16
2009

Outro sonho

Narrador (em off):


Qual seu sonho?

Silêncio.

Ouve-se Variations XXVI-XXVII Beethoven, por Glen Gould.

A surra

Narrador (em off) e Nise da Silveira.

Narrador (em off):


Nise da Silveira, mulher subversiva.

Mulher 1: “(...) ‘Nos livros, lia-se que os esquizofrênicos


não possuíam afetividade. Fiquei muito des-
confiada... Morando no hospital, compreendi
que não havia nada disso. Eu vi e senti que eles
possuíam sensibilidade; o problema era como vir
à tona. Logo após me mudar para lá, uma das
internas, que se chamava Luíza, foi se tornan-
do minha amiga. Ela não falava, mal se expres-
sava. Me olhava, de longe. Aos poucos, tentei
uma aproximação, comecei a conversar [com
ela]. Com o tempo, se apegou a mim. Era con-
siderada, por todos os médicos, uma comple-
ta idiota, imprestável. Então deu-se uma coisa
curiosa: Luíza começou a me trazer o café da
manhã por iniciativa própria. Bem cedo, pelas

274
verve
Limiares da liberdade

quatro da madrugada, ela batia na porta do meu


quarto. Eu não acordava tão cedo assim. Tinha
o sono pesado, sempre tive. Por isso, era difícil
levantar e abrir a porta. Então, inventei a se-
guinte coisa: eu dormia com um barbante perto
da cama, ele ficava ligado à maçaneta da porta.
Quando Luíza chegava eu puxava o fio, a porta
se abria e ela entrava com o meu café da manhã,
para me agradar. Silenciosa, colocava a bandeja
em cima da mesa, para eu comer depois. Senta-
va-se em uma cadeira, num cantinho do quarto,
esperando que eu acordasse. Então, eu tomava
o café frio... paciência. Valia a pena. Assim era
nossa amizade.’ Foi exatamente a louca Luíza
que, após saber, em março de 1936, que [eu] sua
amiga Nise fora presa pela ditadura de Getúlio
Vargas, deu provas de sua lealdade. Quando lhe
contaram que a detenção se deu por conta da de-
lação de uma enfermeira da ala Morel, se vingou
da delatora, dando-lhe uma surra triunfal. (...)
Afinal, a maldita enfermeira arrancou de Luíza
sua única amiga naquele hospício. ‘Aquela surra
foi histórica. Mudou os rumos da psiquiatria...’
(...) Me contaram que ela bateu para valer, só
não matou a outra porque os enfermeiros segu-
raram. E depois dizem que esquizofrênicos não
têm sentimentos, são anafetivos... Não sei de onde
tiraram essa ideia idiota de que esquizofrênico é
indiferente. Não é não...”48

1964

Homem 2: Nenhuma ditadura começa ou acaba com golpe,


decretos, leis, votação. Teria sido uma grande
mentira, aquele 1º de abril de 1964? Uma ditadu-
ra é sempre ditadura.

275
16
2009

“Céu escuro...
Por que não limpas...
E iluminas o meu mundo...”49

Hoje

Poetisa: “pelo mar,


viagem

do convés, o vento

desenho no azul
atlântico
água

fluida, a trilha incerta


antes que em
terra, firme lembrança

náusea, odor
de algas.”50

À espera dos bárbaros

Homem 1 e Narrador (em off).

Homem 1 e Narrador (em off):


“O que esperamos na ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.

276
verve
Limiares da liberdade

Por que tanta apatia no Senado?


Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo


E de coroa solene se assentou
Em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.


O nosso imperador conta saudar
O chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
Um pergaminho no qual estão escritos
Muitos nomes e títulos.

Por que os dois cônsules e os pretores


Usam togas de púrpura, bordadas,
Pulseiras com grandes ametistas
E anéis com tais brilhantes esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
De ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,


Tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores
Derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros, chegam hoje


E aborrecem arengas, eloquências.

Homem 1: Por que subitamente esta inquietude?


(que seriedade nas fisionomias)

277
16
2009

Por que tão rápido as ruas se esvaziam


E todos voltam para a casa preocupados?

Por que é já noite, os bárbaros não vêm.


E gente recém chegada das fronteiras
Diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?


Ah! Eles eram uma solução.”51

1º de janeiro

Homem 2.

Homem 2: “Hoje percebo que o que escrevi ontem na ver-


dade escrevi hoje: tudo que correspondia a 31
de dezembro escrevi no dia 1º de janeiro, isto é,
hoje, e o que escrevi dia 30 de dezembro é o que
escrevi dia 31, isto é, ontem. Na realidade, o que
estou escrevendo hoje escrevo amanhã, que para
mim será hoje e ontem, e também de certo modo
amanhã: um dia invisível. Mas sem exagerar.”52

Livres e firmes

Homem 1.

Homem 1: “Que a minha mão não trema


ao deitar no fogo forte e primitivo
todos os traidores que me deram veneno.

278
verve
Limiares da liberdade

(...)
E só ficará comigo
o riso rubro das chamas, alumiando o preto
das estantes vazias.
Porque eu só preciso de pés livres,
de mãos dadas,
e de olhos bem abertos.”53

My way, por Sid Vicious, elenco dança.

Silêncio.

Elenco compõe uma mandala ao som de Creep, com Radiohead.

Fim

Notas
1
Aula-teatro 5 do Nu-Sol. Pesquisa de texto por: Acácio Augusto, Anamaria
Salles, Andre Degenszajn, Beatriz Carneiro, Bruno Andreotti, Edson Passetti,
Eliane Knorr, Gustavo Ramus, Gustavo Simões, Lucia Soares, Mauricio
Freitas, Salete Oliveira, Thiago Rodrigues. Com Acácio Augusto, Aline Passos,
Anamaria Salles, Andre Degenzsajn, Beatriz Carneiro, Edson Passetti, Eliane
Knorr, Gustavo Ramus, Gustavo Simões, Klaus Peter Warkentin, Lucia Soares,
Luiza Uehara, Mauricio Freitas, Salete Oliveira, Thiago Rodrigues. Produção
gráfica: Andre Degenszajn. Operador de Luz: Thiago Rodrigues. Operador
de Som: Bruno Andreotti. Sonoplastia: Vitor Osório (convidado). Preparação
corporal e coreografias: Juçara Amaral (convidada). Trilha sonora: Edson
Passetti e Acácio Augusto. Coordenação e ambientação: Edson Passetti. A
versão deste texto confere com a última apresentação em 9 de junho de 2009,
no Tucarena-São Paulo.
2
Antonin Artaud. O teatro e seu duplo. Tradução de Teixeira Coelho. São Paulo,
Max Limonad, 1984.
3
John Cage. De segunda a um ano. Tradução de Rogério Duprat e Augusto de
Campos. São Paulo, Hucitec, 1985, pp. 105-106.

279
16
2009

4
Paladas de Alexandria. Epigramas. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo,
Nova Alexandria, 2001, p. 59.
5
Idem, p. 57.
6
Ibidem, p. 47.
7
Ibidem, p. 57.
8
Ibidem, p. 71.
9
Julio Cortazar. “Aumenta a criminalidade infantil nos Estados Unidos” in
A volta ao dia em 80 mundos, vol. 1, (1967). Tradução de Ari Roitman e Paulina
Wach. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, pp. 91-95.
Julio Cortazar. Último round, vol. 2, (1969). Tradução de Ari Roitman e Paulina
10

Wach. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, pp. 128-130.


11
Idem, pp. 77-78.
12
Ibidem.
13
Ibidem, p. 102.
14
Ibidem, p. 114.
15
Julio Cortazar (1967), 2008, op. cit., p. 11.
16
Idem, p. 35.
17
Ibidem, p. 161. De Anton Arrufat, “Escritos nas portas”.
18
Julio Cortazar (1969), 2008, op. cit., p. 87.
19
Julio Cortazar (1967), 2008. op. cit., pp. 167-168.
20
Roberto Piva. 20 poemas com brócoli. São Paulo, Massao Ohno/Roswitha
Kempf, 1981, p. 74.
21
Guimarães Rosa. “A terceira margem do rio” in Primeiras estórias. Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1977, pp. 27-28.
22
René Char. “Que ele viva!” in O nu perdido e outros poemas. Tradução de
Contador Borges. São Paulo, Iluminuras, 1995, p. 91.
23
Oscar Wilde. The picture of Dorian Gray. Londres, Penguin Books, 2006, p. 98.
[Tradução do trecho escolhido por Andre Degenszajn].
24
Fernando Paixão. Fogo dos rios. São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 35.
25
Gilles Deleuze. Conversações. Tradução de Peter Pal Pélbart. São Paulo,
Editora 34, 1992, p. 224.

280
verve
Limiares da liberdade

26
Loïc Wacquant. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo Cezar Castanheira.
São Paulo, Boitempo, 2008, pp. 78-80.
27
Idem.
28
Ibidem.
29
Albert Camus. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de
Janeiro/São Paulo, Record, 2003, p. 284.
Hakim Bey. Caos. Tradução de Patrícia Decia e Renato Resende. São Paulo,
30

Conrad, 2003, p. 88.


Alexander Soljenitsin. Arquipélago Gulag. Tradução de Francisco Ferreira, Maria
31

M. Llistò e José A. Seabra. São Paulo, Circulo do Livro, 1975, pp. 15-16.
32
Idem, pp. 467-468.
33
Ibidem, p. 478.
34
Ibidem, pp. 479-480.
35
Terezin (Theresienstadt) Concentration Camp. Disponível em: http://www.jewish
virtuallibrary.org/jsource/Holocaust/terezin.html (acesso em: 15/02/2009).
Tradução do inglês por Beatriz Scigliano.
36
Pedro Catallo. “Subsídios para a história do movimento social no Brasil” in
Revista Verve, vol. 11, São Paulo, Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP),
2007, p. 25.
37
E. E. Cummings. Eu: seis inconferências. Tradução de Cecília Rego Pinheiro.
Lisboa, Assírio & Alvim, 2003. p. 76.
38
Anne Aplebaum. Gulag: Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos.
Tradução de Mário Vilela e Ibraíma da Fonte. Rio de Janeiro, Ediouro, 2003,
pp. 374-376.
39
Idem, p. 119.
40
Samuel Beckett. Fim de partida. Tradução de Fábio de Souza Andrade. São
Paulo, Cosac e Naify, 2002, p. 86.
Oscar Wilde. Alma do homem sob o socialismo e escritos do cárcere. Tradução de
41

Heitor Ferreira da Costa. Porto Alegre, LP&M, 1983, pp. 13-14.


42
Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998, pp.
75-77.

281
16
2009

43
Arleth 99. “Baratas, percevejos, eleições e afins” in Revista Libertárias, vol. 4:
Rebeldias, São Paulo, 1998, pp.77-78. (Ligeiramente modificado; “Arleth 99” foi
pseudônimo de Salete Oliveira — N. A.).
44
Maria Lacerda de Moura. “A política não me interessa” in Revista Verve, vol. 10.
São Paulo, Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos
Pós Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP), 2006, p. 235.
45
Michel Foucault. “O sujeito e o poder” in Hubert Dreyfus e Paul Rabinow.
Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de
Janeiro, Forense Universitária, 1995, p. 239.
46
Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez, 2003,
p. 251.
47
Crise? Credo!. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/
fq0802200907.htm (acesso em: 8/02/2009). Seleção dos autores.
48
Nise da Silveira Apud Bernardo Carneiro Horta. Nise, arqueóloga dos mares. Rio
de Janeiro, Edições do autor/Biblioteca Nacional, 2008, pp. 156-288-289.
49
Roberta Imbiriba Salgado. “Poema-objeto” (poema integrante do ambiente
Tropicália, de Hélio Oiticica, 1967).
50
Virna Teixeira. “Migrante” in Distância. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2005, p. 15.
51
Konstantinos Kaváfis. “À espera dos bárbaros” in Poemas. Tradução de José
Paulo Paes. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, pp. 106-107.
52
Roberto Bolaño. Os detetives selvagens. Tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 571.
João Guimarães Rosa. “Bibliocausto” in Magma. Rio de Janeiro, Editora
53

Nova Fronteira, 1997, pp. 138-139.

Indicado para publicação em 25 de junho de 2009.

282
verve
Limiares da liberdade

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conversação contra um tempo conservador 1:
LEI ANTIFUMO.

você tem
fazer
fogo?
fumaça

Começa nesta semana, em São Paulo, a perseguição legal


aos fumantes pela polícia de direitos. Composta de
cidadãos comuns (ricos e pobres), ela postula uma
normalização na conduta. Pretende zelar e delatar em
nome da lei que proíbe fumar. Porém, nada tem a dizer
sobre como se arrancam as peles, inteligências e
vontades de quem trabalha. A polícia de direitos
realiza o fétido pacto entre quem domina e os que amam
a obediência, os assujeitados.

[flecheira libertária, ano III, n. 120, 4 de agosto de 2009]

25 de agosto, 19hs, museu da cultura, puc-sp


[r. monte alegre, 984 - tel. 3670-8559]
nu-sol - www.nu-sol.org
verve
Teatro e anarquia

Resenhas
teatro e anarquia gustavo ramus*

Avelino Fóscolo, Marino Spagnolo, Pedro Catallo. Antologia


do teatro anarquista. Maria Thereza Vargas (org.). São Paulo,
Editora Martins Fontes, 2009, 316 pp.

O teatro foi por muito tempo uma experiência


de propaganda libertária com o objetivo de difundir
os ideais anarquistas. No Brasil, a princípio, eram
montadas peças vindas da Europa, e com o passar
do tempo começaram a surgir alguns dramaturgos
brasileiros e alguns imigrantes que escreviam em
português. Os autores eram, muitas vezes, também
atores e diretores de suas peças. Esses escritores
eram influenciados não só por pensadores anarquistas
como Proudhon, Tolstoi, Reclus, Bakunin, Kropotkin,
entre outros, mas também tiveram contato com duas
antologias de teatro muito difundidas por anarquistas
italianos, o Teatro populare I e II. O livro Antologia
do teatro anarquista traz três peças de escritores
anarquistas: Avelino Fóscolo, Marino Spagnolo e Pedro

* Bacharel em Ciências Sociais, mestrando no Programa de Pós-Graduação


em Ciências Sociais da PUC-SP, bolsista CNPq e integrante do Nu-Sol.

verve, 16: 285-291, 2009


285
16
2009

Catallo, respectivamente autores de O Semeador, A


bandeira proletária e Uma mulher diferente.
As três peças têm em comum uma crítica à socieda-
de moderna e trazem personagens emblemáticos muito
parecidos, como ricos industriais ou proprietários que
simbolizam a exploração capitalista; um operário hu-
milde que luta por seus direitos; uma mulher inferiori-
zada diante da sociedade por não concordar e não agir
conforme os valores morais estabelecidos; e um jovem
idealista defensor da anarquia que luta por igualdade e
pelo fim das injustiças. As peças eram encenadas por
pessoas comuns, geralmente por militantes anarquistas
ou por alguns trabalhadores de origem humilde. “Assim
queriam os anarquistas. Exercitar uma arte que fosse a
expressão de um momento vivido, um exercício atento
às falhas da sociedade, suas contradições e violências.
Uma dramaturgia perfeita, portanto, seria aquela cujas
palavras conseguissem tecer mostras de vida, de certa
forma ainda incompletas enquanto não conquistassem
o direito de se tornarem livres, no sentido amplo da pa-
lavra” (p. X).
O livro é organizado por Maria Thereza Vargas,
formada em Crítica Teatral pela Escola de Arte Dramática
de São Paulo e que ajudou a fundar o departamento
de Informação e Documentação Artísticas/IDART da
Secretaria Municipal de São Paulo. Juntamente com
Mariângela Alves de Lima, realizou um levantamento
sobre Teatro Anarquista publicado em 1980 pela
Secretaria Municipal de Cultura. A censura não autorizou
a publicação com a palavra anarquista, passando a
ser publicado como O teatro operário na cidade de São
Paulo.
Avelino Fóscolo (1864-1944), autor de O semeador,
viveu em pequenas cidades mineiras. Decepcionado
com o regime republicano e influenciado por pensado-
res como Eliseé Reclus, Jean Grave e Piort Kropotkin,
aderiu ao anarquismo. Fóscolo era órfão e trabalhou
junto com escravos nas minas de Morro Velho. Autodi-

286
verve
Teatro e anarquia

data, interessava-se por geografia, política e farmaco-


logia, profissão que exerceu grande parte de sua vida.
Escreveu alguns romances como O mestiço, O cabloco e
O vulcão e fundou o periódico anarquista A nova era.
O semeador é uma obra dramática em três atos que
estabelece uma crítica à propriedade. A história se pas-
sa em uma fazenda onde há uma tentativa de diluir
a propriedade, sobre o ideal de cada um obter apenas
o necessário para si. Júlio, o personagem principal,
entra em contato com o pensamento anarquista após
uma viagem à Europa. Ao regressar, tenta modificar os
hábitos instituídos na fazenda de seu pai, começando
por não se reconhecer como superior diante dos traba-
lhadores, mesmo sendo o herdeiro das terras. Tratava
todos por igual, inclusive os ex-escravos. Propôs o fim
do salário, visto como uma nova forma de escravidão,
podendo todos usufruir do fruto do trabalho comum, e
reduziu as horas de trabalho para que os trabalhadores
pudessem gozar mais de seu tempo livre. Para isso, im-
plantou o uso de máquinas na produção, lançando mão
do uso das novas técnicas e saberes desenvolvidos para
o benefício de todos.
A peça não critica somente a propriedade, ela tam-
bém denuncia a injustiça sobre os trabalhadores braçais
e a falta de instrução, a opressão sofrida pelas mulheres,
a devastação do solo e o mau uso da terra. Idealiza a
construção de comunidades auto-suficientes onde pre-
valece a igualdade e a liberdade, o amor mútuo e a so-
lidariedade. Uma transformação social vivida por todos,
uma experiência próxima da autogestão proudhoniana.
Júlio tenta dividir suas terras entre os trabalhadores,
assim como o anarquista Liev Tolstoi tentou fazer com
sua propriedade, impedido por sua mulher que alegou
loucura do escritor russo e passou desde então a contro-
lar todos os bens da família.
Pode-se reconhecer na peça vários princípios cristãos,
começando pelo título “o semeador”, o homem que traz
a “boa nova”, que semeia a semente da igualdade e do

287
16
2009

amor fraternal. Júlio idealiza transformar a humanidade


numa imensa família universal por meio da solidarie-
dade. Contudo, Fóscolo se distancia do pensamento de
Tolstoi quando o herói de seu drama decide pegar em
armas para defender os trabalhadores contra a repres-
são de seu pai e de seu cunhado que eram contrários
às inovações implantadas. Ao decidir pela ação violenta,
o autor se afasta do pacifismo próprio do pensamento
tolstoiano e se aproxima de Kropotkin.
A segunda peça, A bandeira proletária, é de Marino
Spagnolo, militante anarquista de São Paulo, e foi apre-
sentada pela primeira vez em 28 de outubro de 1922 no
Salão das Classes Laboriosas. Apesar de não ter mui-
tas informações sobre autor, como datas de nascimen-
to e de morte, sabe-se que era de origem hispânica, e
exerceu as profissões de vidreiro e alfaiate. O drama
também escrito em três atos discute os vícios como o
jogo e o alcoolismo, tema muito combatido no interior
da militância anarquista, por afastar os operários da
luta e minimizar o sentimento de revolta. O alcoolismo,
principalmente, era muito recorrente no meio operário,
muitas vezes para enganar a fome e o cansaço de mais
de doze horas de jornada de trabalho. Em determinado
momento da peça executa-se a música “marselhesa”,
hino nacional francês, porque a censura não permitiu
a execução do hino da Internacional. Paulo, o persona-
gem principal, é um soturno operário, pobre e amante
das letras, portador de uma humilde biblioteca e que,
por vezes, se arriscava em alguns versos. Líder no movi-
mento operário, foi preso acusado de agitar uma greve.
Ao sair, vê um amigo morrer assassinado e toma a ima-
gem de seu companheiro morto como um exemplo de
luta. Realiza um culto aos mártires exaltando o sangue
do proletário como bandeira de luta, o que torna a peça
um tanto quanto enfadonha.
Pedro Catallo (1900-1963), o terceiro autor desta
antologia, iniciou sua experiência com teatro em
1928 com o Grupo Teatral da União dos Artífices em

288
verve
Teatro e anarquia

Calçados, e depois no Grupo Teatral Aurora, cujas


peças eram encenadas em espanhol. Catallo nasceu na
Itália, cresceu na Argentina e mudou-se para o Brasil
aos dezessete anos. Escreveu O herói e viandante, uma
adaptação do tango Silêncio; e também A Madrid, uma
história que conta a luta contra o fascismo. Traduziu
textos de Florêncio Sanchez, dentre eles Os mortos
e Nossos filhos. E finalmente escreveu uma trilogia
de peças feministas: A insensata, O coração é um
labirinto e Uma mulher diferente. Essa última peça,
apresentada no livro, faz uma crítica à sociedade
da época, questionando seus valores e a posição da
mulher no seu interior. Estabelece uma crítica ao
matrimônio e defende a ideia que a mulher é dona de
si, de seu corpo, de seu coração, que é capaz de ser
independente, sem viver à sombra de um marido.
A história narra o drama de uma jovem que resolve
se entregar por uma noite para um rico empresário na
condição de que o mesmo retirasse seu pai da prisão. A
corajosa mulher sofre represália da sociedade, inclusive
de seu próprio pai, por quem é rejeitada. A peça é bem
humorada em alguns momentos, mas contundente ao
formular a crítica ao casamento: “Porque o matrimônio
destrói a candidez e a beleza que envolve as almas que
se querem bem. O matrimônio confunde o amor com a
cozinha, as contas com o idílio, as premências grosseiras
da vida com a ternura sequiosa dos sentimentos, tor-
nando tudo banal e sem encantos.” (C, p. 285). No en-
tanto, o autor não confunde a crítica ao matrimônio
com a formação de uma família pelo laço do amor, pois
a personagem principal tem um filho e ama um homem,
apenas recusa-se casar. A peça termina com um ideal
de alguns anarquismos que também pode ser reconhe-
cido no cristianismo primitivo: a formação de uma famí-
lia universal, todos se reconhecendo como irmãos, sem
ódio, miséria, guerras e dominação.
O livro traz uma breve cronologia que data de 1867
a 1967 e traz nomes como Pietro Gori, Luigi Damiani,

289
16
2009

Fábio Luz, Neno Vasco, Marcelo Gama, José Oiticica,


Afonso Schmidt, além dos autores das três peças pu-
blicadas. Indica a fundação de grupos de teatro e dra-
maturgia, assim como os Centros de Cultura, e data de
apresentações teatrais.
Ao longo dos anos, o teatro anarquista quase de-
sapareceu, mas ressurgiu de uma outra maneira, trazendo
novas problematizações. O Centro de Cultura Social de
São Paulo recuperou a prática de leituras dramáticas
entre seus frequentadores. Renata Pallottini escreveu
Colônia Cecília, um pouco de ideal e polenta, publicada
pela editora Achiamé, um poema dramático para teatro
que conta a história da Colônia anarquista bra-sileira
fundada no final do século XIX por Giovanni Rossi. Outro
anarquista brasileiro com grande importância para o
teatro foi Roberto Freire que dirigiu e escreveu diversas
peças para o teatro como O&A e Quarto de empregada,
Quarto de estudante e Quarto de hotel, pequenas peças
publicadas em um pequeno livro intitulado 3/4. Freire
foi presidente da Associação Paulista da Classe Teatral,
diretor do Serviço Nacional de Teatro e diretor artístico
no TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo).
Também no teatro da PUC-SP, o Nu-sol vem realizando,
desde 2007, uma atividade semestral, a aula-teatro,
rompendo o espaço disciplinar da sala de aula, dando
lugar a uma experimentação artística que une música,
dramaturgia, literatura, invenções cênicas com o corpo,
filosofia, poesia e ciências sociais. Sem representa-
ção, sem atores. Apresenta novas inquietações, expõe
problemas; desde a Revolução Russa sob a perspectiva
de uma mulher anarquista (Emma Goldman na Revolução
Russa); de um jovem anarcoterrorista na França do
século XIX (Eu, Émile Henry); a apresentação de um
filósofo contemporâneo de um ponto de vista libertário
(Foucault); o abolicionismo penal e os campos de
concentração da vida cotidiana (Estamos todos presos); a
liberdade (Limiares da liberdade), todas publicadas aqui
em Verve.

290
verve
Cinema libertário

A acuidade do teatro ao longo da história da militân-


cia anarquista é de vital importância. Uma arte única
que, assim como o anarquismo, é vivida à flor da pele.
A cultura libertária lançou mão da dramaturgia ence-
nada em palcos e teatros improvisados em ateneus ou
Centros de Cultura, não só para afirmar seus ideais e
difundi-los, mas também para propiciar novas experi-
mentações e um outro método de instrução direcionada
para uma vida livre. O pensamento libertário expres-
so em forma artística, não só emociona o público, mas
desperta o sentimento de revolta. Uma forma de ação
direta, de “tornar pública a anarquia”. E por meio dessa
prática propagou-se e habitaram-se diversas formas de
anarquismos.

cinema libertário mauricio freitas*

Isabelle Marinone. (2004) Cinema e Anarquia: Uma história


“obscura” do cinema na França (1895-1935). Tradução de
Adilson Inácio Mendes, Carlos Roberto de Souza, Fernanda
Murad e Flávia Lago. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2009,
216 pp.

Michel Foucault em “Nietzsche, a genealogia e a


história”, um pequeno texto de 1971, explicita a noção
de história a partir de uma perspectiva genealógica
voltada para os baixos começos dos acontecimentos.
Ela exige a minúcia em vasculhar documentos quase
esquecidos em meio à poeira que lhes cobre.

* Integrante do Nu-Sol e estudante de História na USP.

verve, 16: 291-295, 2009


291
16
2009

Um estudo sobre Cinema e Anarquia na França entre


1895-1935, se trabalhado por um historiador tradicional,
seria uma sucessão cronológica de fatos ordenados em
uma linha do tempo. Indicaria o cinema como uma
arte usada para a propaganda e que teve dentre suas
temáticas o anarquismo. Uma conclusão próxima
aos frankfurtianos. Não é possível dizer que Isabelle
Marinone, uma historiadora do cinema, professora-
pesquisadora na Université Paris 3 — Sorbonne Nouvelle,
tem como tática de pesquisa a análise genealógica, mas é
importante notar que seu texto encontra-se atravessado
por uma preocupação com os saberes sujeitados, que
busca em diversos momentos os baixos começos de
alguns acontecimentos, vasculhando documentos e
papéis esquecidos tanto pela historiografia tradicional, e
até mesmo por alguns historiadores anarquistas.
Seu estudo, apesar de ter uma grande carga cronoló-
gica, não lida nem com o cinema e nem com a anarquia
em uma linha de continuidade, que teria por objetivo
um fim esperado; o foco não é nem o cinema enquanto
uma arte em função de, nem o anarquismo como uma
doutrina, mas suas relações e rupturas.
Marinone, abandona a ideia de tratar o anarquismo
como uma doutrina única em que se pretende afirmar
um verdadeiro anarquismo ou uma forma correta de
anarquismo, o que historicamente seria a captura da
potencialidade da anarquia, ainda que involuntaria-
mente.
O período de recorte para a análise das relações entre
cinema e anarquia escolhido pela autora é uma época de
diversos acontecimentos anarquistas pelo planeta. A pro-
ximidade da recente experiência libertária da Comuna de
Paris, em 1871, marca alguns aspectos das produções
cinematográficas da época, da mesma forma que as teses
anteriores de Proudhon, Bakunin e as posteriores como
as de Kropotkin seguidas das repercussões da Revolução
Russa no início do século XX.

292
verve
Cinema libertário

Segundo Marinone a relação entre cinema e anarquia


se dá por meio de diversos homens e mulheres atraves-
sados pela revolta, libertários, que se relacionam ao mo-
vimento com humor, seriedade e radicalidades políticas
e estéticas. Estabelece, enfim, uma importante distin-
ção, entre cinema libertário e cinema anarquista, e que
de certa maneira, reflete a distinção entre libertário e
anarquista.
Se no fim do século XIX essas palavras foram toma-
das como sinônimos por alguns, é necessário ressaltar
suas diferenças. No caso específico do cinema, as pro-
duções libertárias, atravessadas pelo humor, por uma
perspectiva estética mais elaborada, e por temas mais
cotidianos se contrapunham em certa medida às pro-
duções anarquistas; essas mais revolucionárias intitu-
lavam-se mais objetivas, pretendendo funcionar como
uma propaganda para o movimento, e buscavam a fil-
magem de fatos históricos para ressaltar a potência do
movimento anarquista. Tal distinção explicita-se quando
Marinone mostra que as produções do cinema libertário
eram muito pouco divulgadas pela impressa anarquista,
sendo por vezes esquecidas e negligenciadas.
Se a história oficial do cinema tem seu início
com a invenção do cinematógrafo pelos famosos e
conhecidos irmãos Lumière, em meados de 1895, uma
história “obscura” do cinema, como denomina Isabelle
Marinone, tem outros começos. Foi Paul Delesalle,
em 1895, um operário anarquista dos telégrafos, com
importante papel na fundação da CGT (Confederação
Geral do Trabalho), que recebeu em meados de junho
do mesmo ano um esboço da invenção do cinematógrafo
dos irmãos Lumière, e incumbido de construí-lo, não
só o fez como o aperfeiçoou. De acordo com Marinone,
“o episódio de Delesalle ensina que por trás da tração
da película esconde-se um pensador da ação, do
‘movimento’, da transformação individual e social. O
kinema (‘movimento’ em grego), retoma de maneira
surpreendente uma das bases teóricas do Anarquismo

293
16
2009

(...) baseado na transformação, na ‘modificação’ do


humano” (p. 29).
É a partir dessa noção de kinema que a autora de-
senvolve suas observações e apontamentos sobre essa
relação entre cinema e anarquia, construindo seu per-
curso a partir das figuras de diversos libertários. En-
tretanto, diferentemente do que se poderia imaginar,
sua argumentação se distancia do que se convencionou
chamar de a história dos grandes nomes. Os homens e
mulheres libertários produziam seu cinema, suas ma-
nifestações e suas vidas de forma associativa, como nos
anarquismos, sem preocuparem-se com grandes nomes
ou em obter o reconhecimento elitista ou vanguardista.
Foi por meio das associações que as relações entre os
movimentos cinematográficos e de produção libertária
se estabeleceram.
Assim, apareceram grupos autogestionários para a
produção dos filmes. Dentre eles, o único que além de
libertário se autodenominou anarquista foi a coopera-
tiva do Cinema du Peuple (ou, Cinema do Povo), ligada
às experiências do cinema educador. O Cinema do Povo
tinha, entre seus objetivos, produzir filmes para a classe
operária que afirmassem posições antimilitaristas, an-
ticlericais, contra o álcool e demais iniquidades sociais.
De caráter mais rígido, o Cinema do Povo, buscava tratar
com mais objetividade os problemas da classe operária.
Se existia o viés do cinema mais ligado a uma condu-
ta revolucionária, existia também, em contrapartida, um
movimento que se mostrava mais atento a uma estética
libertária, que trabalhava com o humor e com a perspec-
tiva do sonho. Mas, esta perspectiva, como já dito ante-
riormente, não se denominou como cinema anarquista,
mas cinema libertário.
No interior deste cinema mais bem humorado estão
os movimentos Dadá e Surrealista, e autores como Man
Ray e Buñel, mas Marinone recua no tempo para mos-
trar as procedências deste cinema livre do século XX. O

294
verve
Cinema libertário

grupo dos Incoerentes surge na França em meados da


década de 1890, e se denomina um terremoto no espíri-
to, buscando inverter os valores estabelecidos por meio
do escárnio. Com produções autogestionárias, esse grupo
monta pequenos filmes que abalam a moral, dentre eles
vale ressaltar um: Le diable au convent (1899), em que um
bando de diabos aparece num convento e o transformam
numa grande festa, escandalizando freiras e seminaris-
tas. É também em meio ao movimento dos Incoerentes
que surgem os primeiros desenhos animados da história
do cinema.
A linha cronológica seguida no livro desemboca ao fi-
nal num outro cineasta libertário de extrema importân-
cia, Jean Vigo, que produzira seus filmes já na década de
1930 e que se constituiu na “síntese de duas tendências,
até então separadas, do cinema de vanguarda e do cine-
ma educador e social” (p. 144).
Num percurso repleto de idas e vindas, Marinone es-
boça uma história do Cinema e da Anarquia na França
entre o fim do século XIX e o início do XX, deixando o
leitor atento para procurar os filmes ali mencionados e
os textos desses libertários tão cheios de vida a que ela
se refere. Assim, aos interessados em se perder com o
cinema e a anarquia, vale a pena deliciar-se nas páginas
da revista Arena: On Anarchist Cinema (disponível para
leitura no site do Nu-Sol: http://www.nu-sol.org) que
traz, além de mais um texto da autora sobre o cinema
educador, um breve escrito de Armand Guerra, um dos
importantes nomes da cooperativa do Cinema do Povo,
além de outros textos sobre cinema e anarquia.
Cinema e Anarquia. Uma história “obscura” do cinema
na França (1895 — 1935) inquieta seu leitor pelo traba-
lho paciente em mostrar nuances de uma relação entre
o cinema e a anarquia sugerindo que na estética do ci-
nema em kinema há uma posição política que foge a mo-
delos pré-determinados. É inventiva e carrega consigo a
revolta.

295
16
2009

revolução e liberdade,
porque simone gustavo simões*

Simone Weil. Reflexões sobre as causas da liberdade e da


opressão social. Rio de Janeiro, Achiamé, 2008, 95 pp.

Hoje, a palavra revolução, para além de estampar


camisetas de grifes da moda ou sobreviver circulando
nos megafones colados à boca de algum jovem morno,
tornou-se o slogan preferido para a divulgação de uma
rede fast food. Entretanto, esta palavra “pela qual se
mata, se morre, se enviam as massas trabalhadoras à
morte” (p. 27), designava no momento em que Simone
Weil escreveu sua obra Reflexões sobre as causas da
liberdade e da opressão social, em 1936, uma relação
de forças que se invertia, um acontecimento.
Os horrores da revolução ainda não haviam sido lar-
gamente discutidos quando no final da década de 1920,
Simone Weil passou a combater o autoritarismo socia-
lista com seus escritos no jornal operário Revolution
Prolétarienne, periódico criado por dissidentes do Parti-
do Comunista e que contou com a colaboração ativa de
Jean Maitron e Daniel Guérin. Em 1933, Weil questio-
nou Trotsky acerca dos desdobramentos da Revolução
Russa e da terrível opressão que se abateu sobre os
operários, afirmando que a revolução somente acentua
a necessidade de explorar e de oprimir as massas traba-
lhadoras, visando, com isto, o fortalecimento do Estado
diante de seus potenciais inimigos. Três anos depois
deste conturbado debate, na introdução de seu livro,
escreve que “o primeiro dever que o presente período

* Bacharel em Ciências Sociais, mestrando no Programa de Pós-Graduação


em Ciências Sociais da PUC-SP, bolsista FAPESP e integrante do Nu-Sol.

verve, 16: 296-300, 2009


296
verve
Revolução e liberdade, porque Simone

nos impõe é o de ter bastante coragem intelectual para


nos perguntarmos se a palavra revolução, simplesmen-
te, não passa de uma dessas inúmeras mentiras que o
regime capitalista suscitou quando se implantou e que
a crise atual nos presta o serviço de dissolver” (p. 10).
Pergunta corajosa, persiste a pensadora francesa, por
“toda a gente nobre e pura que sacrificou tudo, inclusi-
ve a vida, por esta palavra” (Idem).
Prosseguindo com a contundente crítica proferida por
Emma Goldman, em 1924, sobre a Revolução Russa,
Simone Weil conclui que as ações revolucionárias qua-
se sempre se perdem na inversão e distinção entre os
meios lançados e os fins desejados. A revolução seria
para ela a reviravolta que garantiria a perpetuação da
opressão visto que “os oprimidos conseguem expulsar
uma equipe de opressores e substituí-la por outra”,
mas não esgota as próprias fontes da opressão, ou seja,
não abole “todos os monopólios, os segredos mágicos
ou técnicas que dão poder sobre a natureza, armas,
moeda, coordenação dos trabalhos” (p. 40). Livre, diz
Weil, seria aquele “cujas ações, todas elas, procedes-
sem de um juízo prévio sobre o fim que ele se propõe e
o encadeamento dos meios próprios que levam a esse
fim” (p. 55).
Escrevendo diante da emergência e ascensão do na-
zismo que combateu a seu modo, incessantemente, pla-
nejando fugas de amigos presos e abrigando em sua
casa, na França, quem conseguisse escapar dos cam-
pos de concentração, Simone Weil afirma que somente
com o exercício de um pensamento liberado da servidão
é que as relações de opressão podem ser ultrapassadas,
pois “tudo o mais pode ser imposto de fora pela força,
inclusive os movimentos do corpo, mas nada no mundo
pode obrigar um homem a exercer seu poder de pensa-
mento” (p. 66). Portanto, a existência de um pensamen-
to próprio, “pois o pensamento só se forma num espírito
que se acha só, diante de si mesmo” (p. 65), seria a
arma mais eficaz para resistir à opressão e, por con-

297
16
2009

seguinte, viver a vida, estar no mundo. Conclui que “é


injusto dizer, por exemplo, que o fascismo anula o pen-
samento livre; na verdade é a ausência de pensamen-
to livre que torna possível impor pela força doutrinas
oficiais inteiramente sem significado” (p. 84). Na bus-
ca insistente da expressão deste pensamento livre foi
em Aragón, à margem do rio Ebra, na Espanha, pouco
menos de um ano depois de redigir Reflexões sobre as
causas da liberdade e da opressão social, que Simone
Weil se juntou a Durrutti e às centenas de anarquistas
em combate pela liberdade contra os franquistas.
A ocupação das fábricas pelos próprios trabalhado-
res; as relações imediatas entre as pessoas em algu-
mas regiões provocadas pela abolição do dinheiro; as
lutas pela liberação da mulher como as empreendidas
pelas Mujeres Libres; a convivência no interior da colu-
na Durrutti, esse acontecimento extraordinário, enfim,
contou com a míope Simone Weil de corpo inteiro. Ao
retornar a Paris devido a um grave ferimento na perna,
embrenhou-se na luta, durante a II Guerra Mundial,
para libertar Antonio, militante libertário espanhol pre-
so num campo situado na França destinado a man-
ter detidas as pessoas foragidas dos países fascistas.
Simone Weil escreveu cartas e enviou alimentos para
Antonio e interpelou diretamente autoridades francesas
e estadunidenses sobre a situação de todas as pessoas
encerradas junto com ele neste espaço. A correspondên-
cia entre os dois prosseguiu nas lutas mundo afora e
não cessou nem mesmo quando ele foi preso novamente
na Argélia.
Simone Weil escreveu sobre a condição operária e
também experimentou na própria carne os dissabo-
res desta condição quando trabalhou como fresadora
numa fábrica de automóveis. Dizia que os formuladores
das teorias da revolução nunca se entregaram a uma
experiência como esta que ela passou e por isso, sus-
tentavam a divisão entre trabalho intelectual e manual
e mantinham, após as reviravoltas revolucionárias, as

298
verve
Revolução e liberdade, porque Simone

mesmas condições insuportáveis para os operários nas


fábricas.
Em 1936, simultaneamente à redação de Reflexões
sobre as causas da liberdade e da opressão social,
Simone Weil levou adiante o antigo projeto de debater
as tragédias gregas com mulheres operárias. Dizia que
o pensamento trágico de Sófocles era mais próximo da
existência destas trabalhadoras do que qualquer lite-
ratura francesa moderna, e concluía que estas mulhe-
res, por viverem na própria pele as condições terríveis
às quais eram submetidas no interior das fábricas, em
suas casas, pelas ruas, entenderiam melhor as tragé-
dias gregas do que qualquer especialista. Buscava ani-
mar nas operárias a revolta de Antígona.
Suas análises dos efeitos da racionalização do tra-
balho sobre a desesperadora condição do operário, no
capitalismo ou no interior de um governo socialista —
visto que, segundo ela, em ambos os regimes a questão
da técnica é valorizada em detrimento de qualquer in-
fortúnio vivido pelo trabalhador —, provocaram o in-
teresse agudo do escritor Albert Camus. Em O homem
revoltado, escrito após o encerramento da II Guerra
Mundial, Camus, que já havia se interessado também
pelos projetos escritos por Weil no interior dos comitês
de resistência francesa sobre a reconstrução da Europa
depois da guerra, incorpora, atualiza e ultrapassa a
problematização acerca da revolução presente na refle-
xão da pensadora militante francesa. No embate com
os existencialistas que enxergavam a revolução como
um inevitável progresso histórico, Camus dirá que uma
revolução que não fosse animada constantemente pela
revolta consolidaria a formação de policiais e funcioná-
rios contra a própria revolta.
Sempre que podia, Weil ia ao encontro do mar para
recobrar suas forças. Em sua batalha incansável pela
vida livre não buscou refúgio nem descanso. Irredutível,
atravessou fronteiras e oceanos, andou com homens
e mulheres libertários. Presa durante a agitação nos

299
16
2009

comitês de resistência francesa durante a II Guerra


Mundial, em nenhum momento submeteu sua vida
à força do governo. Entre revoluções e guerras da
primeira metade do século XX, tendo a liberdade como
norte, seguiu adiante na navegação incerta e perigosa
da vida.

a primavera insolente
de michel foucault edivaldo v. da silva*

Michel Foucault. Le Courage de la Verité. Le gouvernement de


soi et des autres II. Cours au Collège de France (1983-1984).
France, Seuil/Gallimard, 2009, 351 pp.

Vinte e cinco anos após sua desaparição, Michel


Foucault continua a produzir ressonâncias e estender
as fronteiras histórico-sociais que tornam a enunciação
discursiva possível. Último curso proferido no Collège
de France, “Le Courage de la verité”, dá prosseguimento
à analítica da relação sujeito e verdade que marcara os
últimos doze anos de suas pesquisas. Desde o curso
de 1982, “Hermenêutica do Sujeito”, Foucault, anali-
sando a ‘direção de consciência’ e as ‘práticas de si’ na
antiguidade greco-romana, nos séculos I e II de nossa
era, detém-se na técnica nomeada parrehsía — o ‘falar-
franco’, o ‘tudo dizer’ — dispositivo, ao mesmo tempo,
técnico e ético, exigência do discurso verdadeiro como
base ontológica do discurso filosófico.
Em 1983, no mesmo Collège de France, ministra o
curso “Le gouvernement de soi et des autres” onde irá
dedicar-se à analítica da parrehsía política, na configu-

* Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP.

verve, 16: 300-304, 2009


300
verve
A primavera insolente de Michel Foucault

ração da cidade grega como democracia ou tirania, e os


riscos extremados — o exílio, a escravização, a morte —
em que incorre o parresiasta, seja diante do tirano, seja
diante da multidão em praça pública.
Em “La courage de la verité”, trata-se de analisar o
regime de veridição grega, no qual o parresiasta divide
a condição de produtor do ‘dizer a verdade’ com três
ordens distintas: a) a ordem da profecia; b) a ordem da
sabedoria; c) a ordem do ensino ou tekhnê.
O profeta não se confunde com o parresiasta, por-
que não fala em seu próprio nome, geralmente se coloca
como emissário de um deus; seu discurso não é orien-
tado para a clareza e simplicidade, mas para o obscuro,
ou mais precisamente para o enigma que envolve, não
raras vezes, revelações e premonições sobre o devir.
O sábio é aquele que detém uma sabedoria por de-
mais abstrata sobre o mundo e as coisas, carrega uma
tradição de conhecimentos imemoriais, porém sem se
postar em uma economia utilitária, seu traço essencial
é o silêncio estrutural, o mutismo que recua somente
quando a cidade se encontra em situações emergen-
ciais.
O professor ou técnico é aquele que detém conheci-
mento e tem a obrigatoriedade da palavra, do ensino,
da transmissão de conhecimentos e verdades aos ou-
tros, no entanto, ao avesso do parresiasta, não corre
nenhum risco, não tem que ser forçosamente corajoso.
Estes elementos formam, de acordo com Foucault,
um retângulo dos quatro grandes modos de veridição,
o regime de verdade da cultura ocidental na Antigui-
dade, porém, tais elementos podem se recombinar de
formas diversas em outras culturas, espaços e tempos
históricos.
Os quatro modos de veridição do mundo helênico
encontravam-se, a princípio, reunidos na figura his-
tórica do filósofo Sócrates: a missão parresiástica de

301
16
2009

abordar os homens para que aprendessem a cuidar de


si mesmos lhe é revelada profeticamente no Oráculo de
Delfos; o domínio de si, o controle dos prazeres, a ca-
pacidade de se abstrair do mundo e, principalmente, de
cultivo do silêncio, por conta de seu próprio método de
produção de conhecimento, baseado na interrogação,
assegurava-lhe uma similitude com o sábio; por fim, o
grande dilema socrático, o de como ensinar os homens
a epiméleia heautoû, o cuidado de si, o colocava na con-
dição de professor ou tekhnê.
Nas próximas aulas, Foucault se dedica ao que pa-
rece ser quase que uma obrigação para um professor
de filosofia, “dar um curso sobre Sócrates e a morte de
Sócrates” (p. 143), porém, sua intenção vai muito além,
trata-se de distanciar Sócrates dos modos de dizer a
verdade do profeta, do sábio e do professor, afirman-
do-o decididamente como fundador da parrehsía ética.
Não menos importante, irá sacá-lo da tradição metafí-
sica platônica do Alcibíades, da máxima gnôthi seautón
— conhece-te a ti mesmo — e levá-lo de volta à tradição
grega da epiméleia heautoû, o cuidado de si, a partir da
analítica de uma outra obra de Platão, que reproduz os
diálogos socráticos, o “Laches”.
Não se trata mais da psukhê, da alma como “reali-
dade ontológica do corpo”, substância etérea e essência
de uma narrativa metafísica do mundo, mas do bios,
a vida, feita e refeita na intensidade de sua imanên-
cia, estilo de vida ou maneira de viver sistematicamente
posta à prova pela parrehsía socrática, trabalho contí-
nuo de elaboração da existência como uma ‘obra bela’.
A coragem da verdade se introduz nesta economia do
cuidado de si para a produção da vida como ‘estética da
existência’, demanda de completude e harmonia entre
estilo de vida e discurso verdadeiro. Na estilística par-
resiástica analisada e construída por Michel Foucault,
Sócrates se constitui como obra de arte única por levar
sua coragem de verdade ao extremo não no plano da tri-

302
verve
A primavera insolente de Michel Foucault

buna política, mas em um campo de experiência novo,


o espaço do ethos, do exercício da ética.
Na segunda hora, por assim dizer, do curso Courage
de la verité, Foucault se dedica à analítica da parrehsía
constituída como escândalo, por uma troupe de filósofos,
os cínicos, que circundava o mundo greco-romano ins-
crevendo a verdade no próprio corpo, articulação mais
radical do dizer a verdade com o modo de vida.
Na acepção mais corrente, o cínico é o filósofo que
se encontrava convictamente na economia da mendi-
cidade, no caminho da errância nômade, da ausência
de laços afetivos, da exposição pública da alimentação
e do sexo — é a relação sexual de Crato e Hiparquia, a
masturbação de Diógenes —, a visibilidade absoluta da
vida, no espetáculo pirotécnico de Peregrinus, ateando
fogo em seu próprio corpo.
No entanto, Foucault considera o cinismo como ex-
pressão parresiástica que atravessa regimes de veri-
dição diversos, fenômeno trans-histórico, assumindo
formas diversas na história do mundo ocidental. O ci-
nismo penetra na Europa cristã através da mística de
ascetas, apóstolos, ordens de mendigos se contrapon-
do à organização institucional do cristianismo que irá
desembocar, com a queda do mundo pagão, no poder
pastoral.
Entre os séculos XIX e XX, o cinismo se reconfi-
gura enquanto práticas políticas, modo ou estilo de
vida revolucionário, forma escandalosa e insolente de
enunciação da verdade. Foucault reconhece três mo-
dalidades de práticas revolucionárias, porém, somen-
te a terceira se materializa enquanto parrehsía cínica:
“1º) as sociedades secretas com objetivos milenaristas;
2º) a vida revolucionária como organização visível (sin-
dicatos e partidos políticos); 3º) o militantismo como
testemunho para a vida, sob a forma de um estilo de
existência” (p. 170).

303
16
2009

A primeira modalidade carece de uma analítica mais


detida de Foucault, possivelmente por se tratar de uma
correlação de forças formadas nas “dobras” da Idade
Média e na constituição do poder pastoral.
A vida revolucionária como organização visível apre-
ende toda segunda metade do século XIX e quase todo
o século XX, da constituição de sindicatos da classe
operária aos partidos políticos comunistas e socialistas,
ou antes, a longa trajetória de captura e dissolução do
escândalo cínico nos valores e padrões de conduta nor-
mativos de estruturas partidárias, que institucionaliza
e legaliza supostas resistências.
A terceira modalidade, ou antes, a parrehsía cínica
adota nas diversas modulações que se espalham na
imanência do mundo — o carnaval, as festas, sabats
da Idade Média, o niilista russo, o anarquista, o ter-
rorista, o artista moderno —, a explosão da verdade
como violência que se arroja contra a matriz ontológi-
ca dominante no pensamento ocidental, o cuidado da
“alma” platônico que se renova como poder pastoral,
razão científica ou consenso democrático.
“Courage de la vérite” é o esforço último de Foucault
de afirmação deste outro fazer filosófico, negligencia-
do e banido no pensamento ocidental, que não aspira
um outro mundo, mas uma vida outra a partir de um
pensamento que se constitui no corpo como campo de
experiência e locos de produção do “dizer a verdade”. Na
primavera europeia de 1984, Foucault se faz basanos,
“pedra de toque” do bios philosophikos, da vida filosófi-
ca que afronta escandalosamente a mentira canonizada
como o “bem absoluto”. Nada mais atual, nada mais
necessário!

304
conversação contra um tempo conservador 1:
LEI ANTIFUMO.

você
brevíssima
tem fogo?
história

Cidade de Hamburgo, Alemanha, Segunda Guerra Mundial.


No meio de uma madrugada o escritor João Guimarães Rosa
desperta com uma vontade imensa de fumar e nota que seu
maço havia acabado. Sai e anda, inúmeras, infindáveis
quadras para conseguir cigarro. Ao encontrá-lo já fuma
um ali mesmo. Ao retornar para casa, depara-se com os
escombros do prédio onde morava. Ele fora bombardeado e
todos que ali residiam estavam mortos. Os anos se
passaram; Guimarães Rosa jamais deixou de fumar. E toda
vez que alguém o advertia ou o repreendia dizendo que
ele ainda morreria deste vício, Rosa divertido e lépido
respondia: Foi um cigarro que salvou a minha vida.

[flecheira libertária, ano III, n. 106, 14 de abril de 2009]

25 de agosto, 19hs, museu da cultura, puc-sp


[r. monte alegre, 984 - tel. 3670-8559]
nu-sol - www.nu-sol.org
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conversação contra um tempo conservador 1:
LEI ANTIFUMO.

quando o bom senso é


interceptado pela
lei,
presencia-se a
arrogância
dos
autoritários

ou a dos corretos
25 de agosto, 19hs, museu da cultura - prédio sede, puc-sp
[r. monte alegre, 984 - tel. 3670-8559]

nu-sol - www.nu-sol.org
16
2009

NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

Hypomnemata, boletim eletrônico mensal, 1999-2009.


Flecheira libertária, semanal, 2007-2009.
Ágora, agora, apresentação da série ao vivo de setembro a outubro de 2007;
reapresentação de janeiro a março de 2008 e de fevereiro a abril de 2009.
Ágora, agora 2, apresentação da série de setembro a dezembro de 2008;
reapresentação de abril a julho de 2009 e de julho a outubro de 2009.
Os insurgentes, apresentação de abril a junho de 2008; reapresentação de
junho a agosto de 2008, de dezembro de 2008 a fevereiro de 2009.
Canal universitário/TVPUC e transmissão simultânea em http://tv.nu-sol.org.

Aulas-teatro
Emma Goldman na Revolução Russa, maio e junho de 2007.
Eu, Émile Henry, outubro de 2007.
FOUCAULT, maio de 2008; remontagem outubro de 2009.
Estamos todos presos, novembro de 2008 e fevereiro de 2009.
Limiares da liberdade, junho de 2009.

DVD
Ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo.
Os insurgentes, edição de 9 programas.

Vídeos
Libertárias, 1999.
Foucault-Ficô, 2000.
Um incômodo, 2003.
Foucault, último, 2004.
Manu-Lorca, 2005.
A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola, 2006.
Cage, poesia, anarquistas, 2006.
Bigode, 2008.
Video-Fogo, 2009.

308
verve

CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo).

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004


1. a anarquia Errico Malatesta
2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston
3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.
4. municipalismo libertário Murray Bookchin
5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux
6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky
7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua
portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva
8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin
9. deus e o estado Mikhail Bakunin
10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin
11. escritos revolucionários Errico Malatesta
12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares
13. do anarquismo Nicolas Walter
14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,
Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero
15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton,
Schuster, Kyrou, Legrand
16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,
Berkman
17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti
18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo
Colombo
19. o essencial proudhon Francisco Trindade
20. escritos contra marx Mikhail Bakunin
21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud
22. a instrução integral Mikhail Bakunin
23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,
Enckell
24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag
25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón
Safón
26. a revolução mexicana Flores Magón
27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo
Colombo

309
16
2009

28. bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval


29. autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta

Livros
Edson Passetti e Acácio Augusto. Anarquismos e educação. São Paulo,
Autêntica, 2008.
Edson Passetti. Anarquismo urgente. Rio de Janeiro, Achiamé, 2008.
Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). Terrorismos. São Paulo, Cortez,
2006.
Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). A tolerância e o intempestivo. São
Paulo, Ateliê Editorial, 2005.
Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,
Editora Revan/Nu-Sol, 2004.
Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê Editorial,
2004.
Beatriz Scigliano Carneiro. Relâmpagos com claror: Lígia Clark e Helio Oiticica,
vida como arte. São Paulo, Ed. imaginário/FAPESP, 2004.
Thiago Rodrigues, Política e drogas nas Américas. São Paulo, Educ/FAPESP,
2004.
Thiago Rodrigues, Narcotráfico, uma guerra na guerra. São Paulo, Desatino,
2003.
Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone
Editora/Nu-Sol, 2003.
Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário/
Nu-sol, 2001.

310
verve

recomendações para colaborar com verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho


Editorial para possível publicação. Os textos enviados à revista Verve
devem observar as seguintes orientações quanto à formatação:

Extensão, fonte e espaçamento:

a) Artigos: os artigos não devem exceder 26.000 caracteres contando


espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times New Roman,
corpo 12, espaço duplo.

b) Resenhas: As resenhas devem ter no máximo 05 páginas (até


9.000 caracteres com espaço), em fonte Times New Roman, corpo 12,
espaço duplo.

Identificação:

O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas, para


identificá-lo em nota de rodapé.

Resumo:

Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 linhas —


em português e inglês — e de três palavras-chave (nos dois idiomas).

Notas explicativas:

As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de


fim de texto.

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto


observando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Guilherme Corrêa. Comunicação, educação, anarquia: pro-


cedências da sociedade de controle no Brasil. São Paulo, Cortez,
2006, p. 74.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,


página.

311
16
2009

Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol.


I. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os
pensadores, 1987, p. 76.

III) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não sequencial: Nome do autor, ano,


op. cit., p. número da página.

IV) Para obras traduzidas:

Nome do autor. Título da Obra. Tradução de [nome do tradutor].


Cidade, Editora, ano, número de páginas.

Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. Tradução de Salma


T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

V) Para textos publicados na internet:

Nome do autor ou fonte. Título. Disponível em: http://[endereço


da web] (acesso em: data da consulta).

Ex: Claude Lévi-Strauss. 60 anos da Unesco. Disponível em:


http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/indexn1.htm (acesso em:
24/09/2007).

VI) Para resenhas:

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o título,


da seguinte maneira:

Nome do autor. Título da Obra. Tradutor (quando houver) Cidade,


Editora, ano, número de páginas.

Ex: Roberto Freire. Sem tesão não há solução. Rio de Janeiro, Ed.
Guanabara, 1987, 193 pp.

As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico para o


endereço nu-sol@nu-sol.org salvos em extensão rtf. Na impossibilidade
do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete ou cd seja
encaminhada pelo correio para:

312
Revista Verve
Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro Godói,
969, 4o andar, sala 4E-20, Perdizes, CEP 05015-001,
São Paulo/SP.
Informações e programação das atividades
do Nu-Sol no endereço: www.nu-sol.org
Leia também...

Revista Utopia
Publicação da Associação Cultural A VIDA
www.utopia.pt
Portugal

Letralivre
Revista de cultura libertária, arte e literatura
Robson Achiamé, Editor
www.achiame.net
Brasil

Deriva
Editora Deriva
www.deriva.com.br
Brasil

El Libertário
Vócero ácrata de ideas y propuestas de acción
www.nodo50.org/ellibertario
Venezuela

El Libertário
Publicación de la Federación Libertaria Argentina.
www.flying.to/fla
www.anarquia.org.ar (versão digital realizada pelo Colectivo Libertario Mar
del Plata
Argentina

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