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Metodologia de inspiração etnográfica em pesquisas de práticas corporais artísticas

Suzane Weber
PhD (UQAM)
Departamento de Teatro/ Instituto de Artes/ UFRGS

Resumo: Este artigo busca apresentar alguns aspectos de uma metodologia de inspiração
etnográfica capaz de auxiliar pesquisas na área de processos de criação e práticas
corporais artísticas nas artes cênicas, utilizando-se de alguns exemplos de dança. Esta
metodologia pode estabelecer relações que são importantes para a dança e o teatro,
fazendo a transição entre o que se vê para o que se escreve. Segundo Laplantine (1996), a
etnografia como atividade perceptiva, compreende um olhar que engloba uma visibilidade
não somente óptica, mas também tátil, olfativa, auditiva e gustativa.

Palavras-chave: etnografia, práticas corporais artísticas, dança

Práticas corporais artísticas circunscritas no terreno


Para compreender as práticas artísticas advindas de artistas, de professores de
artes e de indivíduos ligado a essas práticas é necessário se inserir em espaços
privilegiados de desenvolvimento das obras. No caso das práticas corporais artísticas
desenvolvidas no âmbito das artes cênicas, as salas de ensaio e de apresentações ou os
espaços ligados a comunidade das artes, são considerados como terrenos etnográficos da
prática artística (FORTIN, 2009), onde é possível circunscrever estas práticas e processos.
Nestes espaços é possível observar a prática artística no seu momento de instauração da
criação. Trata-se de compreender a prática sob o aspecto da “arte que se faz” mais do que
da “arte que se consome” (PASSERON, 1974). Ou seja, a prática sob o ponto de vista da
invenção, da composição, dos meios e dos procedimentos que dão suporte as ações de
instauração da obra. No meu doutorado1, a esta visão artística da prática, eu busquei
contrapor certos aspectos da noção de prática que estão no centro da obra de Pierre
Bourdieu. Para este autor, a noção de prática pode ser entendida como lógica da ação, do
conhecimento, da razão e dos sentidos que são evidenciados sobretudo no e através do
corpo. Como exemplo, o conceito de habitus desenvolvido por Bourdieu (1982, 1994) esteve
presente ao longo do meu estudo como motor para compreender as características e o
dinamismo das práticas do bailarino contemporâneo. No meu doutorado, utilizei este
conceito como princípio mediador dos bailarinos e suas condições de existência. Trata-se da
compreensão das práticas corporais artísticas levando em consideração a aprendizagem e a
incorporação de certos valores de determinados artistas (em determinados grupos), valores
explicitados no corpo e nas ações. Desse modo, pensando os participantes do estudo como
indivíduos em uma troca constante com a realidade da qual eles fazem parte, todos,

1
Em minha experiência do doutorado, a etnografia me auxiliou com ferramentas conceituais e metodológicas
para a observação da prática de bailarino-criadores. Ela também foi importante no auxílio a descrições
detalhadas e reflexivas das minhas observações. O nome da tese é “ Les pratiques du danseur-créateur vis-à-vis
des pratiques dominantes en danse contemporaines : trois études de cas”.
indivíduos e sociedade, em processo de transformação. A etnografia leva em consideração
aspectos socio-culturais do fenômeno estudado.
A inserção do observador no terreno
Segundo Laplantine (1996), a observação direta de comportamentos sociais
particulares e a familiaridade com certos grupos que procuramos conhecer - através do
convívio para fins de pesquisa - requer atenção sensível, inteligente e imaginativa por parte
do pesquisador. De acordo com este autor, a etnografia é basicamente uma atividade visual,
do olhar, e transformar este olhar em linguagem. A etnografia, como a atividade perceptiva,
inclui um olhar que não se restringe a visibilidade em termos ópticos, mas também inclui o
tato, o olfato, a audição e o paladar. Segundo Laplantine (1996), a visibilidade nos afeta, ao
mesmo tempo que nós afetamos o que está sendo percebido. Ele argumenta que a
etnografia é uma experiência de imersão física - do campo da prática - em uma sociedade
ou um grupo específico, no qual o pesquisador, além de entender, deve partilhar e
estabelecer trocas. A etnografia envolve a integração do observador no campo que ele
observa. "Nós nunca somos testemunhas objetivas observando objetos, mas sujeitos
observando outros sujeitos em um experimento no qual o observador é ele próprio
observado2 (LAPLANTINE, 1996, p. 23.).
Uma metodologia de inspiração etnográfica requer confiança e intercâmbio
através da passagem de olhares cruzados a olhares compartilhados, entre o observador e
aqueles que são observados (LAPLANTINE, 1996). Em minhas aulas como professora de
práticas corporais na área de artes cênicas trabalhando com atores e bailarinos, eu muitas
vezes destaquei aos alunos a importância de uma qualidade de presença, a força de estar
disponível, de ser e estar atento, de não deixar nada escapar em cena3. Eu utilizei este
background de professora, mas também de artista, para minhas observações. Em minhas
pesquisa, eu solicitava minha própria qualidade de presença, mesmo que ela fosse discreta.
A maioria das criações observadas no meu estudo tratavam-se de improvisação em dança,
propostas que demandam grande atenção do espectador em relação ao que esta sendo
desenvolvido em cena; o espectador torna-se parcialmente responsável por dar um certo
sentido a criação. Durante as minhas observações, sentado em um canto da sala,
presenciei os dançarinos frente as suas escolhas mais evidentes, mas eu também estive
vigilante frente aos pequenos detalhes, principalmente em relação aos olhares e gestos dos
bailarinos em minha direção, como um sinal de troca, de cumplicidade e de presença
atentiva de ambas as partes. Como sugerem alguns autores da dança (Fortin, 1994; Frosh,

2
« Nous ne sommes jamais des témoins objectifs observant des objets, mais des sujets observant d’autres
sujets au sein d’une expérience dans laquelle l’observateur est lui-même observé. ». Tradução da autora
3
Atores e bailarinos são especialistas nesta consciência do olhar que se expande pelo corpo.
1999) ao encontro das idéias de Laplantine (1996), a observação não é apenas visual, ela é
também uma troca de amplitude cinestésica.

Escrever, descrever, interpretar e analisar

A atividade etnográfica também inclui a atividade lingüística: além de ver e


compreender, é preciso mostrar, dar a ver através da escrita. Segundo Laplantine (1996), a
etnografia é o desenvolvimento da transformação da experiência de ver para descrever. A
percepção ou o olhar da experiência desencadeiam a escrita que é menos uma transcrição
e mais uma construção. De acordo com Fortin (2009), o pesquisador que acompanha o
projeto de um artista por um tempo, não produz uma descrição da realidade tal e qual, mas
sim ajuda a reconstruí-la. Em qualquer descrição, há uma margem de interpretação a partir
de uma seleção de informações e de uma atribuição de significados a esta seleção. Esta
descrição conta também com o referencial individual e coletivo (memória e imaginação) do
pesquisador.
Para Fortin (2009), quando um artista faz uma coleta de dados sobre a prática de
outros artistas, é a partir de sua posição como artista que ele observa. As relações entre o
que está sendo visto e o observador são fundamentais. Para Laplantine (1996) e Bourdieu
(1982), o pesquisador deve discernir que muito do que se vê como “natural” é, na verdade,
cultural. Nos estudos sobre as práticas artísticas, onde muitas vezes o pesquisador também
é artista ou professor de artes, ou seja, o pesquisador esta diretamente implicado no meio
que observa, é importante buscar um olhar crítico sobre o fenômeno de estudo. O fato do
pesquisador-artista estar envolvido com a área que ele analisa pode tornar mais difícil o
reconhecimento de certas crenças e incorporações do seu próprio meio. Mas é através
desta prática reflexiva que o pesquisador-artista pode desenvolver um perspectiva crítica
sobre a sua própria criação, a criação de outros artistas, ou sobre certas práticas artísticas.
Para mim, este é o grande desafio do pesquisador-artista. No meu caso, o fato de escolher
a dança contemporânea como pesquisa me parecia inevitável, já que o meu investimento no
doutorado visava qualificar minha prática como professora e artista. Na minha pesquisa, foi
no última etapa de meu estudo, no momento de análise dos dados (notas de observação,
registros em vídeo, entrevistas, programas) que este sentido crítico tornou-se mais aguçado.
Além disso, os quadros conceituais e teóricos desenvolvidos na primeira parte do estudo,
alguns vindo das artes e outros das ciências sociais também me serviram de base para
busca de um olhar critico na análise do objeto da pesquisa. Estes caminhos de ida e volta
entre os dados empíricos e os textos teóricos fazem parte do que Payllé (1994) chama de
uma análise por teorização enraizada (théorisation ancrée). Este tipo de análise propõem
uma teorização embasada e construída através da comparação entre a teorização em
construção e a realidade dos dados empíricos. Segundo Paillé (1994) para uma análise de
teorização enraizada, o corpus é o mesmo do antropólogo: notas de terreno, transcrições de
entrevistas formais e informais, registros em vídeo e documentos variados.4

Conclusão

A etnografia tem sido usada como uma abordagem de pesquisa em muitos


setores de estudos da dança, do folclore a dança contemporânea. Estudos em dança
moderna e contemporânea tais como os de Dantas (2005, 2007), Davida (2006), Fortin
(2008), (1999), Novack (1990), Sorignet (2004a, 2004b, 2004c, 2006) e Thomas (2003)
confirmam a importância do uso de aspectos e ferramentas da etnografia como um método
capaz de auxiliar a análise da dança contemporânea e de suas práticas corporais à partir
de uma perspectiva crítica. Para os pesquisadores que são também artistas ou professores
de artes, implicados no meio no qual querem pesquisar, a etnografia possibilita ampliar
nosso olhar sobre a prática artística levando em consideração seus aspectos sociais. Ao
final de uma pesquisa, a experiência de uma escritura de inspiração etnográfica remete o
observador a um novo olhar. No entanto, sob esta perspectiva, resta a certeza que as
conclusões de uma pesquisa não fixam a realidade do fenômeno estudado, elas ampliam e
explicitam diferentes perspectivas do olhar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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dança: reflexões sobre escolhas metodológicas no âmbito da pesquisa em dança”. Revista
da Fundarte n.13/14, janeiro/dezembro, 2007, p. 13-18.

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FORTIN, Sylvie. (dir. publ.). Danse et santé : du corps intime au corps social. Montréal:
Presses de l’Université du Québec, 2008, 312 p.

4
Também me utilizei o que se nas ciências sociais se chama de uma análise temática, utilizando como
“categorias” verbos e expressões tirados do próprio discurso verbal dos bailarinos, expressões verbais
recorrentes nas entrevistas. Eu tentei identificar no discurso dos bailarinos-criadores verbos que
correspondessem a aspectos significativos de suas práticas, tais como: “administrar o julgamento”, “captar tudo”,
“manter a proximidade”, “interpretar” e “colaborar”. Este tipo de análise foi utilizada buscando corresponder ao
aspectos dinâmico das práticas observadas que tratavam-se de improvisação em dança.
FORTIN, Sylvie. Contribuições possíveis da etnografia e da auto-etnografia para a pesquisa
na prática artística. Revista Cena, n. 7, 2009.

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