moringa.

v8n1p79-92 | E-ISSN 2177-8841

PRESENÇA AUDITIVA E ESCUTA EM PRESENÇA:

por uma poética sonora do teatro

Aural Presence and Presence in Aurality: Towards a Sound Poeti-

cs for the Theater

Marcus Borja
Paris Sciences et Lettres
Conservatoire National Supérieur d’Art Dramatique de Paris

Resumo: Até que ponto o teatro é necessariamente dependente da visão? Pode-se

abordar a criação cênica a partir de sua dimensão sonora? São as questões levanta-
das no laboratório de pesquisa teatral Poétiques de la voix et espaces sonores des-
de outubro de 2014. Théâtre, espetáculo sonoro coral para cinquenta intérpretes em
trinta e sete línguas é o primeiro resultado desta pesquisa. Trata-se aqui de questio-
nar as possibilidades de construção do evento cênico – tanto na dramaturgia quanto
na organização dos movimentos da cena – a partir de materiais sonoros, sobretudo
vocais. Compor, através da escuta, um tecido de sentidos múltiplos e moventes no
presente partilhado da cena.

Palavras-chave: Dramaturgia sonora, escuta, coralidade

Abstract: To what extent is theater necessarily dependent on sight? Is it possible to

approach scenic creation from its sound dimension? These are the issues raised in
the theatrical research laboratory Poétiques de la voix et espaces sonores, that I
direct in Paris since October 2014. Théâtre, a choral sound play for fifty performers
in thirty-seven languages is the first result of this research. It is a matter of questio-
ning the possibilities of constructing the scenic event – both in dramaturgy and in the
movements of the scene – from sound materials, especially vocal ones. Compose,
through listening, a fabric of multiple and moving senses in the shared present of the
stage.

Keywords: sound dramaturgy, listening, chorality

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jul 2017, p. 79 a 92

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 Marcus Borja
Elemento mais sutil e mais maleável
do concreto, não é verdade que o som
constituiu e ainda constitui, no devir da
humanidade como no do indivíduo, o
lugar de encontro inicial entre o univer-
so e o inteligível?
Paul Zumthor (1983, p. 11)1
Teatro, sabemos, vem do latim theatrum
que vem por sua vez do grego antigo
ϑέατρον (theatron), combinação dos
morfemas θεα (ver) e τρον (indicador de
lugar). Assim, o teatro é o lugar onde (e
de onde) se vê. É interessante lembrar
também que, na França do Antigo Re-
gime, também se chamavam théâtre2
as laterais esquerda e direita do palco
das salas de espetáculo (fossem elas
jeux de paume ou, mais tarde, teatros
à italiana) onde se dispunham assentos
para os espectadores mais afortunados
que “dividiram” a cena com os atores até
1759. Lugar de onde se vê por certo, mas
também – e não é à toa que tais assentos
resistiram por quase dois séculos – lugar
de onde se é visto.
De fato, a noção de contemplação, ob-
servação, olhar (por parte do espectador)
voltado para uma ação (por parte do ator)
1 Todas as traduções de textos estrangeiros foram feitas por
mim.
2 «J’étais sur le théâtre, en humeur d’écouter / La pièce, qu’à
plusieurs j’avais ouï vanter» [Estava no teatro, disposto a es-
cutar / A peça, que por muitos eu ouvira elogiar.] (Molière,
Les Fâcheux, ato I, cena 1. Minha tradução). Notemos que,
neste trecho, é precisamente o traço auditivo, isto é, a ação
de escutar, que é associado à “prática do espectador” diante
da representação teatral. Contudo, não nos enganemos: é à
peça de teatro enquanto texto escrito – como não poderia
ser diferente na segunda metade do século XVII – que se
refere o personagem de Erasto na fala aqui transcrita. É o
texto do autor que lhe interessa escutar, na falta da possibi-
lidade (ou da vontade) de lê-lo.
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sempre foi, tanto para mal quanto para
bem, associada ao fenômeno teatral, sen-
do o elemento visual, frequentemente,
a condição indispensável para que tal
fenômeno possa simplesmente ser cha-
mado de “teatro”. Peter Brook escreveu:
“Posso chamar qualquer espaço vazio
de cena. Alguém atravessa esse espaço
vazio enquanto um outro o observa, e isto
é suficiente para começar a ação teatral”
(BROOK, 1991, p. 19). Foi esta mesma
“contemplação” que valeu ao teatro o pro-
cesso que lhe intentou Platão pela boca
de Sócrates no último livro da República
e os “socorros” que, segundo Jacques
Rancière (2008), tentaram prestar-lhe as
vanguardas teatrais do século XX, sobre-
tudo o teatro épico de Bertolt Brecht e o
teatro da crueldade de Antonin Artaud. Em
O Espectador Emancipado (Le Spectateur
émancipé), para definir o teatro a partir
do ponto de vista platônico, Rancière fala
de uma “máquina ótica que condiciona os
olhares à ilusão e à passividade” (2008,
p. 9). E é sempre em torno do paradigma
visual que o autor resume as teses do
alemão e do francês no que diz respeito
ao espectador de teatro.
Para um, [o espectador] deve afirmar
seu olhar, para o outro, ele deve ab-
dicar da própria posição do que olha
[regardeur]. As empreitadas modernas
de reforma do teatro constantemente
oscilaram entre esses dois polos: a in-
vestigação distanciada e a participação
vital, mesmo que por vezes mesclando
seus princípios e efeitos respectivos.
(RANCIÈRE, 2008, p. 10-11)
Mas até que ponto o fenômeno teatral é
80
 Presença auditiva e escuta em presença: por uma poética sonora do teatro
necessariamente tributário do fenômeno
visual? A presença cênica da presença vi-
sível? Até que ponto o elemento acústico
é o prolongamento ilustrativo ou confirma-
tivo do elemento ótico? Pode-se abordar
a cena unicamente – ou principalmente
– a partir de sua dimensão sonora ou ao
menos considerar tal dimensão antes de
qualquer delimitação visual?
Esta é uma das principais questões le-
vantadas pelo projeto de pesquisa em
arte Poéticas da Voz e Espaços Sonoros
(Poétiques de la voix et espaces sonores),
que desenvolvo há quase três anos no
Conservatoire national supérieur d’Art
dramatique de Paris dentro do progra-
ma doutoral de arte e de criação SACRe
(Science, Art, Création, Recherche) da
Communauté d’Universités et Établisse-
ments Paris Sciences et Lettres (PSL)3.
Trata-se de uma pesquisa multidiscipli-
nar, ao mesmo tempo teórica e prática,
que convoca, por sua própria natureza
e suas múltiplas ressonâncias, a varie-
dade e a alternância de seus suportes
e de suas ferramentas. A teoria, aqui,
não poderia definir-se como outra coisa
senão a estruturação e a relativização de
uma prática concreta, e a prática como o
movimento orgânico de abstrações teóri-
cas em cruzamento e mesmo em choque
permanente.
3 Este programa resulta da colaboração de seis grandes es-
tabelecimentos membros da ComUE Paris Sciences et Let-
tres: a École Normale Supérieure; o Conservatoire national
supérieur d’art dramatique; o Conservatoire national supé-
rieur de musique et de danse de Paris; a Fémis (école natio-
nale supérieure des métiers de l’image et du son); a École
nationale supérieure des beaux-Arts e a École nationale su-
périeure des arts décoratifs.
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Neste projeto, buscamos pensar e desen-
volver uma prática do teatro a partir da
escuta e do fenômeno acústico no que
diz respeito tanto à representação quanto
à composição dramatúrgica. Esta última
não é puramente a transposição em sons
de uma forma dramática dada, como uma
peça radiofônica no sentido “clássico”,
mas antes, uma organização de signos
sonoros independentemente de qualquer
compromisso diegético pré-estabelecido.
Um equilíbrio sutil, no espaço e no tempo,
de fragmentos sonoros, timbres, ritmos,
texturas, dinâmicas e encadeamentos
harmônicos no sentido mais amplo a
serviço de uma dramaturgia sensorial e
transdiegética cuja significação estaria
situada aquém e além de qualquer dra-
maticidade imediata4.
[…] se os sons abandonam seus ca-
ráteres representativo e narrativo para
trabalhar em seus fluxos abstratos, a
partir de suas densidades e de suas
materialidades, qualquer questão tem-
poral está resolvida. A abstração sonora
se adapta a todos os tempos, a duração
é sem escala, sem medida. (DESHAYS,
2010, p. 21)
Tentarei, aqui, problematizar a questão da
existência sonora independente do teatro
sob a perspectiva da primeira criação
cênica oriunda desta pesquisa : Théâtre
(Teatro), espetáculo sonoro coral para
4 “[Trata-se de] Experimentar, na própria representação, o
fundamento maior da expressão, impedindo que a atenção
se focalize na narração, no conflito entre os personagens ou
numa temática determinada. O SOM torna-se a dimensão
crucial, inelutável, visto que, contrariamente ao campo vi-
sual, não pode ser modificado pelo espectador por um sim-
ples fechar de olhos ou um embaçamento do foco.” (FORE-
MAN, 2011, p. 34)
81
 Marcus Borja
cinquenta atores-performers em trinta e
cinco línguas criado em abril de 2015 et
retomado em 2016 em diversos festivais5.
Atuar para e pelo ouvido
Convém precisar que não há aqui nenhu-
ma intenção de condenar o fenômeno
visual ou de alimentar, por uma inversão
dos polos, qualquer tipo de hierarquia
sensorial: seria inútil e inevitavelmente fa-
dado ao fracasso6. Trata-se, ao contrário,
de “olhar” em outra direção, justamente
fora de uma hierarquia já bem estabe-
lecida que assegura ao visual o lugar
privilegiado na assimilação, apropriação
e interpretação – quer dizer, na confirma-
ção hermenêutica – das experiências do
mundo sensível. Em um belíssimo livro
dedicado precisamente à questão do au-
dível, Jean-Luc Nancy escreve:
Figura e ideia, teatro e teoria, espetá-
culo e especulação se convêm melhor,
se superpõem e mesmo se substituem
com mais conveniência que o audível
o inteligível ou o sonoro e o lógico. Ha-
5 A primeira versão de Théâtre estreou em 7 de abril de
2015 na sala Louis Jouvet do Conservatoire national supé-
rieur d’Art dramatique (dispositivo que figura nas imagens
apresentadas neste artigo), e foi reapresentado em 17 e 18
de fevereiro de 2016 no Festival JT16; em 3 e 4 de março do
mesmo ano, novamente no CNSAD, e em 7 e 8 de junho
na grande salle do Théâtre National La Colline no festival
Impatience. O espetáculo fará uma temporada de dez repre-
sentações no Théâtre de la Cité Internationale de 24 a 28 de
abril de 2017.
6 Jonathan Sterne (2003) denuncia esse discurso binário
de oposições estanques (e evidentemente redutoras) entre
audição e visão que ele chama de litania audiovisual. “A lita-
nia descreve a história dos sentidos como um jogo de ‘soma
nula’ onde a dominação de um sentido leva necessariamen-
te ao declínio do outro. Contudo, a afirmação segundo a
qual a utilização de um sentido provoca a atrofia do outro
não está fundamentada em nenhum dado científico.”
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veria, ao menos tendenciosamente,
mais isomorfismo entre o visual e o
conceitual, mesmo sendo em virtude
do fato de que o morphe, a “forma”
implicada na ideia de “isomorfismo”
é de saída pensada e assimilada na
ordem visual. O sonoro, ao contrário,
carrega a forma, ele não a dissolve,
mas, antes, alarga-a, dá-lhe uma ampli-
tude, uma espessura e uma vibração ou
uma ondulação cujo desenho apenas
dá uma vaga ideia. O visual persiste
mesmo em seu esvanecimento, o so-
noro aparece e desaparece mesmo em
sua permanência.
Por que e de que forma dá-se esta di-
ferença? Por que e de que forma uma
ou várias diferença(s) de “sentido” em
geral entre os sentidos sensíveis e o
sentido sensato? Por que e de que
forma um aspecto do sentido sensato
privilegiou um modelo, um suporte ou
uma referência na presença visual e
não na penetração acústica? (NANCY,
2002, p. 14)
De onde viria essa “incapacidade de dizer
o som e a audição sem […] tomar em-
prestado, adaptar, deturpar os conceitos e
processos nascidos das ciências ligadas
à ótica e à visão”? (BOVET, LARRUE,
MERVANT-ROUX, 2011, p. 17). O som
– ou a escuta – em virtude de seu caráter
mais descontínuo e mais “impermanente”,
esfumaça com mais facilidade os contor-
nos de qualquer postulado hermenêutico
que se queira aventar sem engano a uma
experiência sensível. Ao contrário: ele
se apresenta ao ouvinte como um enig-
ma aberto ou “o denominador comum de
mundos, de espaços sociais muitas vezes
heteróclitos e contraditórios.” (ROMIEU,
2014, p. 233).
Aceitar a porção de invisibilidade do mun-
82
 Presença auditiva e escuta em presença: por uma poética sonora do teatro
do, não como uma incompletude, mas
um enriquecimento da percepção e um
catalizador de novos modos de relação
e descoberta da alteridade. Confiar no
elemento sonoro não somente como um
meio, um caminho para se chegar en-
fim à fonte e à confirmação visual que
lhe dê sentido, mas pensá-lo ele próprio
como fonte e rio de sentidos móveis e
autônomos. Sentido sensato quo só pode
transbordar (se e quando transborda) do
sentido sensível. “O som produz sensa-
ções antes mesmo de produzir sentido. E
é pela sensação que se deve chegar ao
sentido” (DESHAYS, 2010, p. 23).
Em um banquete dado em sua homena-
gem pelo sindicato francês de crítica de
cinema no dia 25 de fevereiro de 1982
nos salões do Fouquet’s em Paris, Orson
Welles declarou:
Se o som e o ritmo do som – sobretu-
do o ritmo – estão errados, nenhuma
imagem os pode salvar. […] Acredito
que o som é o primeiro dos sentidos
humanos para o teatro, e não a visão.
Penso que o primeiro teatro foi uma
estória contada por um contador. E
de alguma forma a voz determina as
imagens. Não se trata apena do que
se diz, mas do ritmo e da velocidade
de todas as vozes em cena. Por isso
tenho o costume, quando dirijo, de dar
as costas à cena.7
Todo som se fragmenta em ritmo. Todo
7 Orson Welles déjeune avec la critique, programa Ciné-
ma Cinémas, dirigido por Claude Ventura e Michel Bou-
jut, transmitido no antigo canal francês Antenne 2 em 16
de março de 1982, disponível no site do Institut National
de l’Audiovisuel no endereço: http://www.ina.fr/video/
I00008532
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ritmo se traduz em som. Welles fala de
som, de ritmo e de andamento. Em outros
termos, fala de música. Não da “disciplina
música”, mas da musicalidade no sentido
mais amplo, indissociável do fenômeno e
da prática teatral: a música como princípio
organizador do tempo no espaço e como
sucessão e entrelaçamento das camadas
sonoras estruturadas em uma duração
que, mesmo não sendo imediatamente
significativa, desenha um caminho orde-
nado no caos dos ruídos que nos circun-
dam. “O mundo é barulho e é silêncio. A
música extrai som do ruído num sacrifício
cruento para poder articular o barulho e o
silêncio do mundo.” (WISNIK, 2011, p. 35).
É precisamente esta articulação das ca-
madas sonoras do mundo, alternadamen-
te (ou ao mesmo tempo) caótico e harmô-
nico, como vetor de sentido independente,
que me interessa interrogar nesta pes-
quisa a partir de um dado fundamental
do teatro, frequentemente presente no
discurso de diversos atores e diretores:
a escuta. Esta última é o espaço comum,
o terreno partilhado entre performers e
espectadores. Nem os primeiros nem os
últimos podem existir fora deste espaço
onde linhas são tecidas de performer a
performer, de performer a espectador,
de espectador a espectador, formando
uma trama maleável mas resistente que
sustenta a dramaturgia.8 A partir deste
8 Sobre este assunto, ver meu artigo « L’Écoute active et le
silence parlant. La musicalité comme base pour la direction
d’acteurs » in La Direction d’acteurs peut-elle s’apprendre ?,
Jean-François Dusigne (org..), Paris, Les Solitaires intem-
pestifs, 2015, pp. 377-402. “[A escuta] é percebida, aqui, não
somente como a execução e o resultado de um movimen-
to do exterior para o interior, um deixar-se atravessar, mas
também – por oposição, e logo, numa tensão fecunda e per-
83
 Marcus Borja
ponto-zero – escuta primordial que se
trabalha e se treina diariamente – pre-
tendo questionar pela prática da cena, as
possibilidades de ativação, cruzamento e
partilha de materiais sonoros no espaço
poético do palco.
Como seu título deixa facilmente adi-
vinhar, o projeto Poéticas da voz e es-
paços sonoros é amplamente tributário
das reflexões de Paul Zumthor sobre a
vocalidade, sobretudo no que a distingue
da oralidade e se desprende da função
de veículo linguístico-semântico, ou seja,
de transmissor de sentido.
A música das línguas, para além de
qualquer inteligibilidade imediata, res-
soa também naturalmente nesta grande
composição coral. Alemão, inglês, árabe,
armênio, bahasa indonesia, basco, bassa,
batak, crioulo de Guadalupe e do Haiti,
espanhol, filipino, fon, francês, grego an-
tigo e moderno, guarani, hebraico, hindi,
holandês, italiano, ioruba, japonês, cabila,
ki Kongo, latim, lingala, mandarim, persa,
português, romeno, russo, sânscrito, sue-
co, tâmul, ucraniano, xhosa, zulu... Trinta
e sete línguas são ouvidas ao longo deste
espetáculo que decididamente não foi
feito para ser compreendido, mas sen-
tido, atravessado, “experienciado” pela
escuta.9
manente – como um movimento do interior para o exterior,
uma travessia ativa do espaço e do outro. É precisamente
a tensão criada entre esses dois movimentos que gera um
estado de presença plena […] que, mesmo na ausência de
sons audíveis, torna o próprio silêncio palpável.” (p. 380).
9 As línguas listadas aqui são as que serão ouvidas nas dez
representações da temporada no Théâtre de la Cité Interna-
tionale em abril de 2017.
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Coros cíclicos
Uma das principais fontes de inspiração
do dispositivo cênico de Théâtre foi a ins-
talação sonora Fourty Part Motet, criada
em 2001 pela artista britânica Janet Car-
diff.10 Trata-se de uma elipse formada por
quarenta caixas de som suspensas em
tripés, viradas para o centro e divididas
em oito grupos de cinco caixas. Os es-
paços entre esses grupos permitem que
os visitantes circulem fora e dentro dos
limites desenhados pelos quarenta tripés.
Cada caixa transmite uma das quarenta
vozes do célebre moteto Spem in alium
nunquam habui de Thomas Tallis – obra-
-prima de ourivesaria contrapontística
composta em 1573 – reconstituindo pela
superposição simultânea das vozes, uma
imensa polifonia coral. A peça, gravada
pelo coro da catedral de Salisbury, é ouvi-
da repetidamente segundo uma faixa de
quatorze minutos, onze de música e três
de silêncio. O dispositivo imersivo provoca
uma sensação de escuta introspectiva
apesar do caráter publico dos espaços
onde é exposto11.
10 A obra faz parte do acervo permanente de dois centros
de arte: a National Gallery of Canada, em Ottawa, onde está
exposta na antiga capela da rua Rideau desde sua criação
em 2001, e o Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas
Gerais.
11 “Quando ouvimos um concerto, nos sentamos nor-
malmente de frente para o coro, na posição tradicional da
plateia. Com esta peça, eu quero que o publico possa expe-
rimentar a composição musical a partir do ponto de vista
dos cantores. Cada performer ouve uma mixagem única da
obra musical. Dar ao público a possibilidade de se mover
através do espaço, lhe permite estar intimamente conectado
com as vozes. O que também revela a peça musical como
um construto em mutação. Também me interessa a manei-
ra como o som pode construir fisicamente um espaço de
maneira escultural e como um espectador pode escolher
um caminho através desse espaço ao mesmo tempo físico e
84
 Presença auditiva e escuta em presença: por uma poética sonora do teatro
Minha intenção foi reinterpretar esta for-
ma pondo-a em diálogo com o efeito de
presença humana real: uma performance
no aqui e agora do teatro, entendido prin-
cipalmente em sua dimensão relacional,
ou seja, « o que se passa entre atores
e espectadores » (GROTOWSKI, 1993
[1971], p. 31). Não há cenário, não há
figurinos, não há iluminação : a escuta é
a única ferramenta de que dispomos, nós
atores, e nosso guia do início ao fim da
peça. Tudo parte dela e a ela retorna. É
pela escuta que transformamos o espa-
ço. Esta nos pareceu a forma ideal para
dar conta, no teatro, da descontinuidade
sempre renovada, globalizante e seletiva,
da escuta do mundo, fazendo eco ao que
diz Nancy a propósito do elemento sonoro
que “aparece e desaparece mesmo em
sua permanência” (NANCY, 2002).
Théâtre é assim um poema sonoro poli-
fônico e poliglota para cinquenta artistas
em trinta e sete línguas12, um passeio ao
mesmo tempo enganador e tranquiliza-
dor que explode as referências espaço-
-temporais para reconstruí-las e descons-
truí-las continuamente. Uma trama de
vozes estendida num campo de escuta.
Grandes textos épicos, líricos, dramáticos
e filosóficos em suas línguas originais,
assim como músicas de diferentes cul-
turas tornam-se matéria de composição
como também as memórias, estórias,
virtual.” Descrição de Janet Cardiff, consultável em seu site
pessoal:
http://www.cardiffmiller.com/artworks/inst/motet.html
12 O número e a lista das línguas ouvidas no espetáculo
pode variar de uma temporada a outra em função das even-
tuais mudanças de elenco.
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depoimentos, cartas, e-mails, mensagens
de voz e de texto, passagens de diários
íntimos trazidos pelos atores em suas
línguas respectivas. Inúmeras unidades
dramatúrgicas para uma composição con-
trapontística de conjunto.
Na maior parte do tempo, estes mate-
riais são escolhidos e harmonizados no
espetáculo em função de critérios es-
sencialmente musicais: contrastes rítmi-
cos, texturas similares ou marcadamente
opostas que se respondem, durações
variadas que trazem constantemente no-
vas dinâmicas ao conjunto, aliterações
e assonâncias, complementaridades
harmônicas ou fricções dissonantes de
alturas ou timbres, encadeamentos de
sons e silêncios, entre outros.
Assim, por exemplo, um canto polifônico
corso entoado por um coro masculino que
desenha uma diagonal atravessando o
espaço de um extremo ao outro cruza um
lamento falado (ou chorado) em filipino
por uma mulher só, imóvel no centro da
cena. Um lied a duas vozes femininas e
piano de Félix Mendelssohn dialoga com
a frase « arrête ! » (pare) repetida diver-
sas vezes em uma gradação de estados
emocionais que vão do sussurro malicioso
quase inaudível à súplica desesperada no
limite do suportável. Um trava-língua em
guarani ritmado por um coro masculino
percussivo é progressivamente sufocado
por um canto gregoriano que acaba por
transformar o coro em baixo contínuo
sobre um intervalo de quinta justa (bai-
xos-tenores). As últimas linhas de Finne-
gans Wake de James Joyce (em inglês)
85
 Marcus Borja
são sacodidas por imprecações em Fon,
um canto tradicional romeno, um trecho
de C’est l’extase langoureuse de Claude
Debussy (poema de Paul Verlaine), o todo
sustentado por um cluster coral em cons-
tante movimento. Dois personagens de
um dos episódios do Mahabharata, um
falando Hindi e o outro Batak, se procu-
ram e se evitam no seio de uma densa
floresta de onde escapa um canto em
sânscrito extraído do Bhagwad Gita...
As poltronas dos espectadores estão
dispostas em círculo e viradas para o
centro – já ocorreu que adotássemos,
por questões de afluência do público e/
ou de dimensões diversas dos diferentes
palcos em que a peça foi apresentada,
dois círculos concêntricos. Os especta-
dores podem assim se ver uns aos ou-
tros imediatamente antes e depois da
performance visto que durante os oitenta
minutos que dura o espetáculo, a sala é
mergulhada na mais completa escuridão.
A menor fonte de luz é ocultada e a escuta
torna-se o ponto comum, o fio de Ariadne
de atores e espectadores.
Imagem 113
13 As fotos presentes neste artigo são de Diego Bresani,
abril de 2015, publicadas com sua autorização.
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Imagem 2
Os primeiros, inteiramente nus, entram
em cena já no escuro – assim como saem,
ao final, antes que as luzes se acendam
novamente – e formam por sua vez um
outro círculo em volta daquele formado
pelo público, mergulhando-o num fluxo
sonoro ininterrupto de texturas múltiplas
e dinâmicas moventes. Esta circulari-
dade será diversas vezes relativizada
e desestruturada ao longo do espetácu-
lo por travessias, afastamentos, giros e
migrações de vozes nas trevas. A área
delimitada pelo círculo se povoa e se
despovoa continuamente e exploramos
também os ângulos da sala, inscrevendo,
através do som, o círculo num retângulo
e redesenhando o espaço com nossas
vozes e os ruídos de nossos corpos. Tra-
çamos diagonais, quebramos linhas e até
jogamos com a verticalidade (ou seja, a
altura: terceira dimensão de nossa “caixa
cênica”) elevando uma voz até os ares:
a de um ator-acrobata suspenso a um
tecido de circo que fazemos descer do
urdimento, e subir novamente, no escuro,
sem que o público perceba. Sua voz sobe
progressivamente, descreve movimentos
circulares nas alturas antes de cair verti-
ginosamente numa tripla pirueta, levan-
86
 Presença auditiva e escuta em presença: por uma poética sonora do teatro
tando uma lufada de ar que vem percutir
os espectadores, convocando também
a dimensão táctil ao nosso jogo sonoro.
Durante os últimos minutos do espetá-
culo, os atores se fazem ver (ou antes,
entrever) iluminando-se a si mesmos, um
após o outro, com pequenas lâmpadas
de LED individuais de baixa intensida-
de. Então, pela primeira e última vez, a
visão é solicitada e o público descobre
o número e a nudez daqueles que o cir-
cundaram durante todo o percurso, em
interação direta, sem separação entre
palco e plateia.
Neste exato instante, a economia sonora
muda substancialmente. Se, durante toda
a performance, os atores, mergulhados na
escuridão, dividiam uma comum invisibi-
lidade, agora acham-se individualizados
pela luz. Se antes produziam um con-
traponto de cantos, discursos, situações
dramáticas, gritos, risos, prantos, sus-
surros e imprecações do qual por vezes
se destacam corifeus transitórios, agora
entoam todos pela primeira vez a mesma
nota em uníssono: um lá mediano. A uni-
formidade sonora substitui a uniformidade
visual. E a diversidade visual sucede a
diversidade sonora. Ambas se equilibram
e se equivalem, uma revelando o avesso
da outra. Assim, não se trata de modo al-
gum de um coro monolítico de anônimos,
mas, ao contrário, da disponibilização e
partilha das potencialidades de cada um.
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Imagem 3
Cabe ressaltar que cada ator é chamado
a escrever uma parte da trama, trazendo,
em forma de som, suas memórias pes-
soais, vocalizando suas próprias raízes
(ou desraízes) culturais e sociais. A faixa
etária dos atores, que vai de vinte a se-
tenta anos, não impede a formação de
uma comunidade em trânsito, dentro e
fora da cena, assim como suas diferentes
nacionalidades, produzindo instantes e
espaços de uma riqueza estética e hu-
mana inestimável.
A escuridão, que remete tanto à solidão
de um espaço apertado quanto à vastidão
do infinito, garante uma mistura mais livre
e mais permeável das camadas alterna-
damente sucessivas e superpostas das
matérias sonoras que projetamos no es-
paço. Os diversos passados individuais se
entrecruzam num presente compartilhado
no qual a voz é um suporte e um catali-
zador de memórias íntimas e coletivas.
Pudemos verificar, através dos depoi-
mentos de um grande número de es-
pectadores – e também de atores – do
espetáculo, que o fato de encontrarem-se
87
 Marcus Borja
mergulhados na escuridão, expostos a
uma trama acústica ininterrupta mas mu-
tante, desencadeia fluxos de percepção
não usuais e sensações alternadas de
profunda solidão e de pertencimento a um
todo em presença ; de consciência aguda
de seu próprio corpo e de diluição deste
último num corpo coletivo. Lembranças
íntimas enterradas no fundo da memó-
ria emergem e desaparecem novamente
(para talvez reaparecerem mais tarde)
segundo as circunstâncias acústicas, que
mudam o tempo todo, às quais especta-
dores e atores são expostos.
O que a escuta do mundo me faz ouvir,
é uma sucessão de eventos que, tão
logo apreciados, apagam-se em minha
memória. Se existe um meio ambiente,
ele é mnésico. […] Nenhum suporte
pode dar conta da descontinuidade do
esquecimento. Para começar a poder
encenar um espaço sonoro, seria ne-
cessário partir da descontinuidade,
do surgimento, do desvanecimento.
(DESHAY, 2014, p. 30)
Dramaturgias sonoras
Após a saída dos atores de cena, quando
as luzes da sala são de novo acesas, o
público encontra novamente os contornos
do espaço em que entrou logo antes do
início do espetáculo. Porém, já não pode
mais ser o mesmo espaço.
Por um lado, este (novo) espaço visível
não confirma o espaço audível incessan-
temente construído e desconstruído pre-
viamente na escuridão, isto é, ele não dei-
xa ver “enfim” o que antes fora “apenas”
Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jul 2017, p. 79 a 92
ouvido. Ele não é o avesso do cenário
que revela as extraordinárias máquinas
acústicas que criaram para os ouvidos,
durante uma hora e vinte minutos, um
ambiente perfeitamente real que agora
os olhos desmistificam constatando (mais
uma vez) que tudo é falso fora da esfera
do visível. Não. Não haverá aquela sensa-
ção de “Ah, então era isso!”; ou de “Então
era com isso que eles criavam aquele
efeito!” O visual não terá interferido nem
durante a performance, para alimentar ou
desfazer a “ilusão” do sonoro, nem depois
dela, para dizer tranquilizador: “Sim, tudo
se explica, tudo era apenas teatro!”.
Por outro lado, além de não poder prece-
der nem condicionar o sonoro no proces-
so de construção de imagens mentais, o
espaço visível, uma vez acesas as luzes,
terá sido inevitavelmente transformado
pelo som (autônomo) que o precedeu. A
impressão, descrita por diversos espec-
tadores, de um “era aqui mesmo que eu
estava durante todo esse tempo?” ou de
um “Que estranho, não consigo reconhe-
cer o espaço onde eu cheguei no início”,
ou ainda de um “Eu tinha a sensação de
que o espaço era bem maior…” sugere
uma contaminação mnésica do visível
pelo audível. Os dois contextos são vo-
luntariamente dissociados um do outro
– com exceção dos três minutos finais,
eles jamais dividem o mesmo espaço-
-tempo na estrutura dramatúrgica – mas
sua justaposição imediata faz com que o
espaço acústico contamine o espaço visu-
al imprimindo-lhe a memória de sons que,
mesmo não podendo mais ser ouvidos na
sala visível desertada pelos atores, ainda
88
 Presença auditiva e escuta em presença: por uma poética sonora do teatro
ali ecoa e transforma esta mesma sala
que já não é mais a mesma. É a persistên-
cia da memória de um espaço, projetada
no interior de um « novo » espaço, que o
torna, de fato, novo. E nós sublinhamos
essa transformação do espaço-tempo
através da exposição dos retratos de cada
um dos atores suspensos nas paredes
da sala, em volta do círculo14: uma pre-
sença pela ausência ou uma ausência
presentificada.
Imagem 4
Mais uma vez, a imagem não vem com-
pletar ou confirmar o dado sonoro, já que
é impossível identificar com exatidão a
que rosto mudo pregado na parede per-
tence esta ou aquela voz ouvida antes, no
escuro. No entanto, parte dos espectado-
res têm prazer neste jogo, investigando
durante vários minutos esses retratos ex-
postos aos olhares como numa galeria de
arte (espaço eminentemente associado,
ainda mais que o teatro, à contempla-
ção e ao prazer dos olhos). Invertem-se,
assim, os valores: o espaço sonoro do
14 Os retratos são afixados no escuro, durante o espetácu-
lo, sem que os espectadores percebam. Quando as luzes se
acendem novamente ao fim da representação, só então o
dispositivo é desvelado.
Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jul 2017, p. 79 a 92
teatro, criado pelo encontro presencial
de atores e espectadores, dá lugar ao
espaço visual da exposição, registro do
passado. Mas, assim como a memória de
um está contida no outro, o visual pode
emergir do sonoro e vice-versa. Se vários
espectadores frequentemente têm prazer
em nos contar todas as imagens, formas
e cores que viram (insistem em usar este
verbo!) na escuridão, outros continuam
ouvindo vozes que escapam dos retratos
calados na galeria visível, sem atores.
O que nos interessava no processo de
Théâtre não era montar uma peça no
escuro ou contar uma história cuja voz
acusmática do narrador desenrolasse
um fio narrativo de Ariadne nas trevas.
Também não se tratava de fazer os ba-
rulhos de uma história invisível por meio
de efeitos sonoros ilustrativos que impu-
sessem imagens acústicas superficiais
e necessariamente tributárias daquelas
descritas “ao pé da letra” pela fábula con-
tada. Procedimentos deste tipo podem,
é claro, denunciar uma pesquisa sonora
complexa que em certas produções atinge
níveis notáveis de refinamento mimético
cuja exatidão hiperrealista do dispositivo
sonoro substitui perfeitamente um discur-
so visual.  Porém não nos interessava
trocar um sentido pelo outro ou medir o
poder ilustrativo do som em um exercício
de estilo que consistisse em “narrar com
barulhos”.
Pelo contrário, importava-nos não apenas
extrair o som de sua posição de “segun-
do” – atrás do visual – na recepção do
evento cênico, mas, sobretudo, relativi-
89
 Marcus Borja
zar a função frequentemente redutora de
“trilha sonora” a que ele é comumente
associado na montagem de um espetá-
culo, ou seja, a serviço de uma dramatur-
gia previamente dada, seja pelo texto ou
pela encenação, que ele deve sublinhar
ou ilustrar, não sendo considerado em si
como vetor de sentido. Tratava-se, antes,
de pensar não a composição de uma trilha
ou uma paisagem sonora, mas uma dra-
maturgia a partir do som, dos sons – de
naturezas, densidade e funções diversas
–produzidos e compartilhados ao longo
do processo15.
Esta paleta de possibilidades acústicas,
optamos por restringi-la aos sons corpo-
rais não transformados eletronicamente,
amplificados ou gravados, emitidos ape-
nas pelo corpo em movimento e a vibra-
ção das cordas vocais16. A organização
e a harmonização de todos estes sons,
todas essas línguas, no espaço-tempo
da performance, na falta de um regen-
te visível, só foram possíveis graças à
memória fônica e à escuta longamente
15 «  Pour cela, il faut modifier notre façon d’écouter, que
l’oreille s’ajuste aux nouveaux objets sonores sans qu’il soit
nécessaire de les justifier par l’image, ce qui est possible
si ces sons se trouvent chargés d’un contenu émotionnel.
Celui qui écoute recompose la trame sonore, lui prête des
intentions et du sens. Il fabrique ses propres images en y
injectant quelque chose de personnel : il participe à l’expé-
rience. » (BEAUGRAND, 2002, p. 147-148).
16 Exceção feita à utilização pontual de instrumentos musi-
cais – piano, acordeão, violão, cajón e nickelharpa (instru-
mento de corda friccionada da Europa do Norte, equipado
com teclas e cordas simpáticas) – a às duas montagens so-
noras eletrônicas de cerca de dois minutos cada, que utili-
zamos ao início e ao fim do espetáculo por razões de en-
cenação (ocultar o barulho da entrada e saída de cena dos
cinquenta atores). É, no entanto, a partir da voz e segundo
uma lógica vocal que mesmo essas outras manifestações so-
noras vêm somar-se ao tecido dramatúrgico global.
Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jul 2017, p. 79 a 92
treinada e aprimorada de todos os artis-
tas. Durante todo o processo de ensaio e
construção da dramaturgia de Théâtre, eu
assumi ao mesmo tempo as funções de
encenador, preparador vocal e regente de
coro. Era fundamental, dada a natureza
específica de certos materiais – cantos
polifônicos a três, quatro ou seis vozes,
por exemplo, aos quais frequentemente
superpúnhamos novas “vozes” faladas
ou cantadas em línguas diferentes da-
quela da letra do canto de base – que
houvesse um enquadramento musical
presente na figura de um organizador dos
sons na performance (regente). Este, no
entanto, estava desde o início fadado a
desaparecer progressivamente, já que
não poderia ser visto pelos atores-can-
tores na escuridão do dispositivo final.
Assim, a batuta de maestro foi fragmen-
tada em cinquenta pedaços, cinquenta
responsabilidades de escuta e confiança
no outro e no presente, para que, a cada
nova apresentação, a polifonia e a trama
sonora complexa e delicada de Théâtre
pudesse ser novamente tecida diante dos
olhos cegos dos espectadores.
A forte presença de coralidade neste tra-
balho – desde a sala de ensaio, como
ferramenta técnica de treinamento,17 até
a cena, como carpintaria e estrutura de
uma dramaturgia contrapontística frag-
mentária – não é reivindicada aqui como
uma metáfora da comunidade “consen-
sual” (condenada a inércia), mas como
um espaço de harmonização dinâmica da
dissidência, da discordância, e da disso-
nâncias, onde o estar-juntos não significa
17 Consultar, sobre este assunto, Borja 2015.
90
 Presença auditiva e escuta em presença: por uma poética sonora do teatro
uma acumulação de soma nula de indiví-
duos, mas o bordado contrapontístico de
memórias acústicas e realidades sonoras.
O princípio coral nos interessa menos
pela aglomeração que pela diversificação
geradora de polifonia. A música no sentido
mais amplo, ou melhor, a musicalidade
como princípio organizador do som no
espaço-tempo, é o que nos permite fazer
soar em conjunto todas essas vozes e
extrair, aqui e ali, a sinfonia da cacofonia.
Partir da voz e dos cruzamentos de vo-
zes em sua relação com o presente ime-
diato e a escuta como únicas garantias
da composição dramatúrgica, mantida e
renovada em cada nova performance,
nos parecia um desafio mais interessante
para o ator, confrontando-o com a dupla
tarefa de compositor e intérprete agindo
simultaneamente. Sobretudo, porque é
exatamente a acepção ontológica do te-
atro que defendemos, isto é, a mediação
performativa de uma experiência relacio-
nal, onde atores e espectadores dividem
o mesmo espaço-tempo. A escuta isolada
de qualquer outra referência externa nos
remete diretamente a essa verdade do
teatro segundo a qual ele “reclama quo-
tidianamente a reformulação total de sua
entidade [...] sonora: nenhuma outro capi-
talização senão a memória” (DESHAYS,
2010, p. 21). É precisamente disto que se
trata: propor, a partir do elemento acústico
e da vocalidade, um espaço-tempo de
ativação e cruzamento de mundos sensí-
veis, de memórias sonoras sobrepostas,
reconvocadas no presente da cena sem
a intermediação do visual18.
18 Integraram o elenco de Théâtre, desde a criação em abril
Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jul 2017, p. 79 a 92
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Yuanye Lu, Ada Luana, Esther Marty Kouyaté, Laurence
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Cordis Paldano, Clément Peletier, Wilda Philippe, Ruchi
Ranjan, Juliette Riedler, Andrea Romano, Tristan Rothhut,
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Soudieux, Tatiana Spivakova, Kiyomi Tisseyre, Isabelle To-
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 Marcus Borja

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