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Educação e Imagens: instituições escolares, mídias e contemporaneidade

Aristóteles Berino e Conceição Soares (orgs.)

Aldo Victorio Filho Leandro Belinaso Guimarães


Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas Maja Vargas
Alik Wunder Marcos Reigota
Ana Godoy Nilda Alves
André Brown Paulo Sgarbi
Carlos Eduardo Ferraço Roberta Lobo
Cláudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas Rosângela Lannes Couto Cordeiro
Edméa Santos Stela Guedes Caputo
Geni Amélia Nader Vasconcellos Selma Ferro dos Santos
Isabel Machado Tânia Mara Pedroso Müller
Jean Beatriz Wermelinger
Conceição:

Para o meu pai

Aristóteles:

Para Caio Graco e Bernardo


SUMÁRIO

PRA COMEÇAR, QUEREMOS OS ENCONTROS...

PARTE I – INSTITUIÇÕES ESCOLARES EM IMAGENS

1. A trajetória de duas professoras negras contada através de fotografias


Isabel Machado
2. Imagens e narrativas: uma viagem pelo Colégio Nossa Senhora das Dores
Geni Amélia Nader Vasconcellos, Jean Beatriz Wermelinger e Selma Ferro dos Santos
3. O cotidiano do SAM: Histórias e imagens
Tânia Mara Pedroso Müller
4. A escola caricaturada
Paulo Sgarbi

PARTE II – PRÁTICAS COMUNICACIONAIS E IMAGENS

1. As imagens da escola e as redes de comunicações, conhecimentos e sentidos


Conceição Soares
2. Memórias de professoras sobre a televisão e o vídeo: narrativas, imagens e sons
Maja Vargas e Nilda Alves
3. Fotografia, educação e tempo: cortar-se cortado por imagens
Alik Wunder
4. As imagens e a educação online: convergências entre o cinema e os fóruns de discussão no contexto de uma pesquisa-formação
multirreferencial
Edméa Santos
5. ‘Divulgar para melhor compreender’ – o caso do Jornal Eletrônico Educação & Imagem
Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas e Rosângela Lannes Couto Cordeiro
6. Imagens de mulheres negras em álbuns coletivos
Cláudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas
7. Caricaturas e quadrinhos de Angelo Agostini: imagens de afro-brasileiros no século XIX
André Brown
PARTE III – TEMAS DA CONTEMPORANEIDADE E IMAGENS

1. Educação Ambiental: um prólogo e três episódios de re(existência)


Ana Godoy, Leandro Belinaso Guimarães e Marcos Reigota
2. Cotidianos das escolas e fotografias de atividades escolares: pistas dos currículos tecidos nas redes de saberes, fazeres e poderes
Carlos Eduardo Ferraço
3. Apontamentos sobre fotografias na pesquisa em terreiros de candomblé
Stela Guedes Caputo
4. Juventude da juventude no corpo da escola e cidade juvenil
Aldo Victorio Filho
5. Educação, tecnologia e crítica da cultura
Roberta Lobo
6. Antonioni e Platão: entre Blow Up e o diálogo da caverna – imagens
Aristóteles Berino


Pra começar, queremos os encontros...


1
As culturas audiovisuais constro-
em um entorno que faz pensar
Las culturas audiovisuales construyen um entorno que hace pensar com las imágenes, paisaje-cultura- com as imagens, paisagem-cul-
mundo audiovisual y tecnológico que brinda um repertorio común desde donde producir el sujeto tura-mundo audiovisual e tec-
contemporâneo; paisaje-cultura-local de imágenes e narrativas próximas y afectuales que reivindica las nológico que brinda um reper-
tório comum em meio ao qual
estéticas y las historias cercanas como tácticas legítimas de constitución de la subjetividad. Culturas
se produz o sujeito contemporâ-
audiovisuales de la sensibilidad y del pensamiento.1 neo; paisagem-cultura local de
Omar Rincón2 imagens e narrativas próximas e
afetivas que reivindica as esté-
ticas e as histórias locais como
Nós nos encontramos, mais ou menos há um ano, no/com o grupo de pesquisa Currículos, Redes Educati- táticas legítimas de construção
da subjetividade. Culturas au-
vas e Imagens e logo começamos a desenvolver projetos juntos e em conjunto com os pesquisadores do Laboratório diovisuais da subjetividade e do
Educação e Imagem, ambos coordenados pela professora Nilda Alves e vinculados ao Programa de Pós-Graduação em pensamento (tradução nossa).
Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/Uerj).
2
RINCÓN, Omar. Televisión, vi-
Uma jornalista e um historiador. Dois professores com Doutorado em Educação, realizados, contudo, em deo y subjetividad. Bogotá:
Grupo Editorial Norma, 2002.
ocasiões e instituições diferentes e atuando profissionalmente também em instituições distintas. Cada um com suas Integra a coleção Enciclopedia
memórias, suas histórias, suas expectativas, suas redes de significações e relações e já com alguns anos de estradas. Ex- Latinoamericana de Sociocultu-
ra y Comunicación.
periências, errâncias, itinerâncias, caminhos e descaminhos que, de repente, se cruzam em meio às nossas buscas por
conhecimentos e sentidos que nos orientem para uma vida alargada, criativa e afirmativa. Em comum, a atitude de se
pôr em movimento, a abertura para os encontros, a vontade de potência e o interesse (ou gosto?) pelas imagens e seus
usos nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos e nas práticas educacionais.

Esse encontro com o grupo de pesquisa e com os projetos do laboratório foi potente e nos possibilitou expan-
dir nossas redes. Dele resultou, entre outros projetos, a oportunidade para organizar o livro digital Educação e Imagem:
instituições escolares, mídias e contemporaneidade. Aceitamos o desafio e entramos nessa aventura sem medo dos riscos que
uma nova experiência pode produzir. O interesse pelas imagens e seus usos nas pesquisas e nas práticas educativas, que
nos uniu, é também o elo que une os vinte e um professores/pesquisadores, de diferentes instituições, que participam
dessa edição.


Nosso compromisso é com a tessitura de conhecimentos em meios às redes de significações e relações, consi-
derando e dialogando com todas as fontes a que temos acesso. O que buscamos é a expansão dessas redes. É por isso
que queremos os encontros... Com artefatos culturais, com novas e diferentes linguagens, com outros professores/pes-
quisadores e com usuários/leitores.

Breves considerações teórico-metodológico-epistemológicas

um campo tem terra


e coisas plantadas nela
a terra pode ser chamada de chão
é tudo que se vê 3
Letra da canção ‘Campo’, da qual
se o campo for um campo de visão
Arnaldo Antunes é compositor
Arnaldo Antunes3 e intérprete.

As discussões que temos desenvolvido em torno dos usos de imagens em nossas pesquisas nos/dos/com os co-
tidianos e nas nossas práticas de ensinaraprender4 têm nos permitido compreender que o desenvolvimento de questões 4
Nas pesquisas nos/dos/com os co-
teórico-epistemológico-metodológicas postas a esse tipo material é uma exigência. tidianos adotamos este modo
de escrever esses termos pela
A partir de diferentes perspectivas de abordagem, e em diversos contextos, temos usado imagens como ilustra- necessidade que sentimos de
mostrar os limites herdados do
ção, registro (ambíguo) da experiência, apontamento de memória, caso de pensamento e devir, desenvolvendo, simul- modo de criar conhecimento,
taneamente, questões teórico-metodológicas a respeito desses usos. Compreendemos que, de uma forma ou outra, as especialmente o pensamento
dicotômico, próprio da ciência
imagens operam como potência para a produção de teoriaspráticas que visem, para além da compreensão, a fabulação moderna.
sobre o vivido, permitindo, a partir desse processo, a criação de outros possíveis.

Consideramos que as imagens instituem um pensamento plástico, com uma lógica que lhes é peculiar, e que,
independente da intenção de quem as produziu, podem nos propor ‘olhares não familiares’ sobre o mundo. Como produto
material e simbólico, as imagens podem conter em si mesmas alguma coisa que potencialize o deslocamento do pensamento
e da experiência.

Entendemos, ainda, que praticar imagens, e aqui nos referimos especificamente a interpretar, produzir e usar
imagens, constitui um modo de conceber, expressar, imaginar e, principalmente, produzir o real. Assim, analisar o ato


de praticar imagens pode nos ajudar a compreender a existência humana na sociedade contemporânea, bem como os
modos pelos quais constituímos nossas memórias, nossas utopias e nossas histórias.
5
Alves, Nilda. Faz bem trabalhar a
Por fim, no grupo de pesquisa Currículos, Redes Educativas e Imagens defendemos que as imagens remetem às memória: criação de currículos
nos cotidianos, em imagens e
narrativas e que as narrativas remetem às imagens, em processos e conexões permanentes. Assim, ‘ver’ uma imagem im- narrativas In: VIII Encontro de
plica contar uma história. Por isso, para nós, o uso de imagens em pesquisas, especialmente em pesquisas nos/dos/com pesquisa em educação da região
sudeste - Desafios da Educação
os cotidianos, tem exigido, como necessidade epistemológica (da forma como problematiza Nilda Alves)5, a incorporação básica a pesquisa em educação.
das narrativas sobre elas ou por elas impulsionadas, inclusive as dos próprios pesquisadores. Vitória/ES: Universidade Fede-
ral do Espírito Santo. v.1. 2007,
p.10 – 25.
Os artigos e o modo pelo qual decidimos organizá-los
Os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f)
fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis,
k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cétera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que
de longe parecem moscas.
6
Foucault, Michel. As palavras e as
coisas. São Paulo: Martins Fon-
No prefácio de As palavras e as coisas, Foucault6 nos apresenta uma instigante provocação com essa referência a tes, 2007.
uma classificação dos animais em “uma certa enciclopédia chinesa” de Jorge Luis Borges. A forma de agrupamento e
caracterização dos animais, que de imediato provoca risos, nos impele também a pensar sobre algumas operações que
realizamos nos processos de criação, sistematização e comunicação de conhecimentos.

No caos semiótico em que vivemos, nos valemos da prática da ‘edição’ para tentar colocar uma ordem nas nos-
sas percepções e afetações pelas pessoas e pelas coisas e, assim, compreendê-las, identificá-las, reuni-las, combiná-las e
expressá-las de forma que ‘faça algum sentido’. Estamos todo o tempo, nem que seja apenas na nossa cabeça, editando:
os ruídos, os sons, as imagens, as palavras, as memórias, os pensamentos... De uma prática de edição depende a música,
o cinema, a televisão, o jornal, o álbum de fotografias, a fala das ruas e também o livro, a aula e a pesquisa científica.

A edição é uma operação nossa, um modo de organização da experiência, e não tem a ver com a ‘ordem natural
das coisas’. Editamos, e para isso selecionamos, classificamos, agrupamos, esquematizamos, da forma como nos parece
‘fazer sentido’. Com esse livro não foi diferente, embora o suporte digital assegure a possibilidade de que cada usuário/
leitor escolha, mais fácil e livremente, seu percurso de leitura. Contudo, há outra coisa que fazemos frequentemente em


nossas vidas cotidianas: desconstruir as edições alheias e construir tantas outras quanto forem possíveis e necessárias.

Assim compreendendo, e ainda sem conseguirmos nos desvencilhar da necessidade de uma organização formal,
optamos por agrupar os artigos da forma que nos pareceu ‘fazer mais sentido’. Ou seja, a partir dos temas aos quais
eles se referem. Esse processo resultou em três grandes grupos, que constituem as três partes do livro: 1) Instituições
escolares em imagens; 2) Práticas comunicacionais e imagens; e 3) Temas da contemporaneidade e imagens.

Parte 1 - Instituições escolares em imagens

Na primeira parte, Instituições escolares em imagens, reunimos os textos: As trajetórias de duas professoras negras con-
tadas com imagens e outras narrativas, de Isabel Machado; Imagens e narrativas: uma viagem pelo Colégio Nossa Senhora das
Dores, de Geni Amélia Nader Vasconcelos, Jean Beatriz Wermelinger e Selma Ferro dos Santos; O cotidiano do SAM:
histórias e imagens, de Tânia Mara Pedroso Müller; e A escola caricaturada, de Paulo Sgarbi.

Isabel Machado aborda em seu artigo alguns aspectos das trajetórias de duas professoras negras na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) revisitando, através de fotografias do acervo de J. Vitalino e de conversas com
uma delas, os caminhos percorridos por essas professoras em uma instituição de ensino superior marcada pelo racismo institu-
cional e estrutural. Na sua abordagem, Machado toma as fotografias como documentos visuais que portam informações
e detonam emoções.

Como na viagem do flaneur, Geni Amélia Nader Vasconcelos, Jean Beatriz Wermelinger e Selma Ferro dos San-
tos exploram possibilidades de sentidos não-hegemônicos em meio aos espaçostempos do Colégio Nossa Senhora das
Dores. Nessa viagem, elas ‘conversam’ com imagens e narrativas plurais produzidas por aqueles que lá transitam. Para as
autoras, as fotografias, como disparadoras de sentidos, possibilitam uma viagem livre que nos arrasta para outros tempos e
espaços muito além do aqui e agora do instante fotográfico.

Um encontro com centenas de fotografias do antigo Serviço de Assistência ao Menor (SAM) instigou Tânia
Mara Pedroso Müller a investigar a trama histórica que originou a produção e utilização dessas imagens. No artigo, a
pesquisadora discute o contexto histórico de produção das fotografias, problematiza a investigação realizada pela Co-
missão de Sindicância instalada para apurar denúncias feitas pela mídia e, por fim, apresenta o cotidiano dos meninos e


meninas nas escolas do SAM, revelados no relatório produzido por essa Comissão, cujas imagens fizeram parte. Con-
forme Müller, as fotografias constituem um universo pleno e fértil de informações.

Fechando esse primeiro bloco, Paulo Sgarbi nos apresenta caricaturas da escola e discute-as como modos de re-
presentação e expressão que satirizam as pessoas e os fatos ao se referirem aos cotidianos vividos. Sgarbi, que considera
o gênero caricatural como uma linguagem potente na “leitura” das acontecências de vários “reais” escolares, constrói sua narrativa
a partir de diversos e combinados modos de escrita.

Parte 2 – Práticas comunicacionais e imagens

Nesse segundo bloco, intitulado Práticas comunicacionais e imagens, reunimos artigos que tratam dos diversos
e diferentes ‘usos’ de meios e artefatos comunicacionais nas práticas cotidianas, coengendrando redes educativas. Os
artigos que compõem o bloco são: As imagens da escola e as redes de comunicações, conhecimentos e sentidos, de Conceição
Soares; Memórias de professoras sobre a televisão e o vídeo: narrativas, imagens e sons, de Maja Vargas e Nilda Alves; Fotografia,
educação e tempo: cortar-se cortado por imagens, de Alik Wunder; As imagens e a educação online: convergências entre o cinema e
os fóruns de discussão no contexto de uma pesquisa-formação multirreferencial, de Edméa Oliveira dos Santos; ‘Divulgar para
melhor compreender’ – o caso do Jornal Eletrônico Educação & Imagem, de Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas e Ro-
sângela Lannes Couto Cordeiro; Imagens de mulheres negras em álbuns coletivos, de Cláudia Regina Chagas; e Caricaturas
e quadrinhos de Angelo Agostini: imagens de afro-brasileiros no século XIX, de André Brown.

No artigo que abre esse bloco, Conceição Soares discute o uso de fotografias na pesquisa nos/dos/com os
cotidianos e nas práticas educativas em uma escola pública. A autora discute o contexto em que se dá a profusão de
imagens realizadas por não profissionais e toma de empréstimos as fotos da escola para problematizar as fabulações
sobre os currículos vividos e a produção de subjetividades. Para Soares, as imagens são documentos ambíguos de cotidianos
ambíguos, que contêm em si realidades e ficções, vivências e prospecções.

Maja Vargas e Nilda Alves nos apresentam vídeos feitos por professores, no contexto de uma pesquisa que dis-
cute: tessitura de conhecimentos e significações no cotidiano e valores; formação continuada de professoras e uso da tecnologia; autoria,
memória e narrativa; imagem e som. As memórias de professores sobre o meio televisão/vídeo, os vídeos criados sobre
narrativas feitas por eles e o material acumulado no making of do trabalho, constituem o corpus da análise, que possibi-
10

lita a compreensão dos processos de reprodução, transformação e criação de valores (éticos e estéticos) na própria ação de professoras
em processos de formação, nos usos que fazem de artefatos tecnológicos contemporâneos com imagens e sons e como essas praticantes
negociam mudanças em suas práticas curriculares cotidianas nesses processos.

A partir de uma lógica de sensações, Alik Wunder propõe que a fotografia pode ser pensada/sentida/usada como
cicatriz, que nos desloca e faz vazar os sentidos. O que interessa à autora são as passagens entre o olhar fotografias e
o pensar por elas, na intensidade do tocar e ser tocado, cortar e ser cortado. Assim, a partir de imagens de escolas produzidas
por educadores em cursos por ela realizados e que tinham como proposta a produção de ensaios fotográficos, Wunder
busca criar com eles um movimento de pensamento em que as imagens movimentassem os conceitos, ao mesmo tempo que os
conceitos movimentassem as imagens.

Edméa Santos nos apresenta uma experiência que faz convergir o uso do cinema em situações de aprendizagem
presenciais e a vivência em fóruns de discussões on-line. A experiência foi realizada no contexto de atividades forma-
tivas que procuram integrar universidade, escola básica e docência online, por meio de práticas mediadas por mídias
digitais em rede e que partiram da necessidade de ampliar os repertórios culturais dos sujeitos envolvidos. Segundo a
pesquisadora, as narrativas cinematográficas articulam saberes e conhecimentos fundamentados nas Ciências, nos Saberes dos Coti-
dianos, na Filosofia e nas Artes de uma forma geral.

A divulgação científica através da internet é o tema da reflexão de Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas
e Rosângela Lannes Couto Cordeiro, que discutem as narrativas e as imagens de professores/pesquisadores veicula-
das pelo Jornal Eletrônico Educação & Imagem. No artigo, as autoras analisam editorias e textos de algumas seções,
para abordar as discussões teórico-metodológicas em relação ao uso de imagens adotadas pelos diferentes grupos de
pesquisas que contribuem com o periódico. De acordo com elas, o jornal propõe a possibilidade de mudar o modelo de comu-
nicabilidade entre a universidade e a escola fundamental, desenvolvendo uma prática dialógica, recriando a proximidade e acompanhando
práticas curriculares.

Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas escreve sobre a história de mulheres negras contada a partir das
fotografias de álbuns coletivos. Esse tipo de álbum, conforme Chagas, possibilita um resgate da memória familiar dos grupos
sociais, representando o sistema de vida em determinado contexto, bem como nos convoca a perceber as ausências nos espaçostem-
pos vazios.
11

A memória da vida cotidiana brasileira no final do séc. XIX, no modo pelo qual foi representada nas carica-
turas e quadrinhos de Angelo Agostini, é a problemática que André Brown desenvolve em seu artigo. Considerando
que as histórias em quadrinhos são compostas por imagens e textos, o autor busca compreender as relações discursivas
no entrelaçamento das linguagens desenhadas e escritas. Brown defende que histórias em quadrinhos, caricaturas e charges
ajudam bastante em sala de aula, mas assume que os usos dessas linguagens são recursos, entre outros tantos, e não representam
uma fórmula milagrosa para aprenderensinar.

Parte 3 – Temas da contemporaneidade e imagens

Na última parte do livro, reunimos textos que se ocupam de pesquisas, como imagens e narrativas, voltadas a
questões emergentes na contemporaneidade: Educação Ambiental: um prólogo e três episódios de re(existência), de Ana Go-
doy, Leandro Belinaso Guimarães e Marcos Reigota; Cotidianos das escolas e fotografias de atividades escolares: pistas dos
currículos tecidos nas redes de saberes, fazeres e poderes, de Carlos Eduardo Ferraço; Apontamentos sobre fotografias na pesquisa
em terreiros de candomblé, de Stela Guedes Caputo; Juventude da juventude no corpo da escola e cidade juvenil, de Aldo Vic-
torio; Educação, tecnologia e crítica da cultura, de Roberta Lobo; e Antonioni e Platão: entre Blow Up e o diálogo da caverna
– imagens, de Aristóteles Berino.

De um encontro entre três pesquisadores que se ocupam da Educação Ambiental em suas relações com a con-
temporaneidade e com a existência, resulta o artigo assinado por Ana Godoy, Leandro Belinaso Guimarães e Marcos
Reigota. Desse encontro, para ministrarem o minicurso “Meio Ambiente, Cultura e Educação” (Anped, 2009), resulta
a parceira entre os autores e também o texto aqui apresentado em três episódios. Nos dois primeiros, Godoy e Gui-
marães, cada um a seu tempo, abordam questões originadas no minicurso. Já no terceiro episódio, Reigota apresenta
uma versão ampliada de uma conferência que deu no México. A preocupação comum, segundo os próprios autores, é
com o olhar que lançamos ao mundo e como esse olhar caracteriza nossas intervenções cotidianas, assim como a nossa produção teórica
e/ou imagética.

Carlos Eduardo Ferraço nos traz fotografias de escolas para discutir diversos usos que se faz delas nas pesquisas
nos/dos/com os cotidianos escolares. Para o autor, as fotografias nos oferecem pistas dos currículos tecidos nas redes
de saberes, fazeres e poderes. No contexto dessas pesquisas, as imagens, além de registrarem fragmentos de diferentes
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movimentos e momentos das práticas pedagógicas, também ampliam as redes dos sujeitos praticantes à medida que
potencializam outros modos de tecerem os currículos, outras possibilidades de experimentação-problematização de suas redes de
conhecimentos.

Pesquisando, há quase vinte anos, crianças em terreiros de candomblé, Stela Guedes Caputo nos apresenta
apontamentos sobre o uso de fotografias, suas e de outros, em pesquisas sociais. Para Caputo, as fotografias são fun-
damentais em sua pesquisa, pois mostram coisas que, além só poderem ser vistas e produzidas no ato fotográfico, as
palavras não conseguem expressar. Como pescadora fotográfica ela diz que buscou fixar rostos de crianças, adolescentes e
adultos, seus gestos, risos, olhares, roupas e artefatos religiosos, porém, eles não se deixaram fixar. Caputo diz ter apren-
dido muitas coisas com as fotografias, sobre ética, sobre metodologia e sobre o próprio tema estudado.

Encarando o desafio e a urgência de refletir sobre os acontecimentos que dizem respeito à juventude e seus
sujeitos, Aldo Victorio Filho se propõe a tentar elucidar as energias culturais juvenis que movimentam um mundo para-
metrizado pelas perspectivas adultocêntricas e o faz a partir de uma discussão da relação imagem, juventudes e escola. O
pesquisador se debruça sobre imagens de jovens estudantes de uma escola pública, cujos corpos em movimento oferecem
farta torrente de indícios sobre suas vidas, sobre a educação e a realização da cidade.

Entendendo educação como crítica da cultura e baseando-se no conceito de racionalidade tecnológica de Mar-
cuse, Roberta Lobo busca, com seu questionamento, compreender a relação entre processos educativos e processos de
produção com base nas novas tecnologias, em especial com as chamadas tecnologias livres. Sua proposta é descortinar
o fetiche da tecnologia com base na apresentação das relações sociais concretas, incluindo aspectos da ‘nova ordem mundial’, do mundo
do trabalho e da produção em larga escala do lixo tecnológico.

Aristóteles Berino, no último texto do livro, procura aproximar algumas questões referidas à dissimulação das
imagens que percorrem o filme Blow Up, História de um Fotógrafo, de Michelangelo Antonioni, e a alegoria da caverna, de
Platão. O autor parte de um dilema recorrente que a fotografia traz consigo a respeito da produção do conhecimento: é
possível acreditar na percepção que proporciona nossos sentidos, no conhecimento que nos dá a experiência? Posta a questão, Berino
problematiza a possível identidade entre o que existe e o que é visto, entre aquilo que ocorre e o que narramos através
da experiência vivida.
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Em seu conjunto, os textos acima relacionados remetem a algumas das inquietações que têm impulsionado
professores/pesquisadores a buscar outros modos de compreensão do mundo em que trabalham e que vivem, cada vez
mais midiatizado e povoado de imagens técnicas. Remetem também às discussões teórico-metodológico-epistemoló-
gicas que vêm sendo realizadas com o intuito de compreender e de constituir processos de criação de conhecimentos
por meio dos usos que fazem dessas imagens nas pesquisas. Dessa forma, encerramos esta apresentação convidando os 7
Sontag, Susan. Sobre fotografia.
São Paulo: Companhia das Le-
usuários/leitores a imergirem nesse universo, criando suas próprias trilhas, pois, parodiando Sontag7 em relação ao que
tras, 2004.
ela diz sobre a fotografia, acreditamos que as imagens são documentos impregnados de fantasia, tanto dos produtores,
quanto dos usuários/leitores. Ao revelar o que está lá, e também o que está ausente, as imagens propõem-se como
realismo da incerteza.

Aristóteles de Paula Berino


Conceição Soares
PARTE I

(animação)
15

As trajetórias de duas professoras negras1 1


“Negro. Denominação genérica do
indivíduo de pele escura e cabe-
contadas com imagens e outras narrativas lo encarapinhado e em especial
dos habitantes da África sub-
saariana e seus descendentes;
descendente de africano, em
Isabel Machado qualquer grau de mestiçagem,
desde que essa origem possa
ser identificada fenotipicamen-
te. No Brasil, o vocábulo, que
durante muitos anos foi sinôni-
Este texto aborda alguns aspectos da história de duas professoras negras na Universidade do Estado do Rio mo de “escravo”, passou, com o
de Janeiro (Uerj), Maria José e Lucia Maria, mãe e filha. A partir da análise de fotografias, procuro, com o auxílio de tempo, a ser um referente étnico
e político, reivindicado como
outras narrativas, (re)visitar os caminhos percorridos por essas professoras em uma instituição de ensino superior mar- autodenominação até pelos
cada pelo racismo institucional e estrutural – como acredito que são todas em nosso país. Nessa instituição, poucas afro-descendentes de pele clara.
Nos Estados Unidos, a conota-
mulheres negras ocupavam/ocupam cargos considerados de poder. Interessa-me, então, compreender como essas duas ção negativa ainda acompanha
professoras negras apropriaram-se/apropriam-se dos currículos como meio para ocupar, e assim tornar habitáveis com o qualitativo “negro” e sua va-
riante “nigger”, altamente ofen-
suas marcas de praticantes (Certeau, 1994), espaçostempos2 já marcados por práticas de segregação, buscando superar siva. Assim, lá, os afro-descen-
processos históricos de invisibilização, silenciamentos e discriminações. Santana (2004, p. 44) indica a importância dos dentes reivindicam para si o tra-
tamento de “african-americans”
estudos biográficos de professores(as) negros(as) dizendo que, (afro-americanos), a exemplo
nessa linha de abordagem, considero que cada percurso dos professores negros representa uma forma de outros grupos, como os ju-
singular de ver as relações raciais que é marcada, justamente, por suas vivências e pelos significados que eles deus americanos, ítalo-ame-
ricanos, hispano-americanos
atribuíram e atribuem a elas. Apesar de existirem muitos pontos em comum entre esses professores, cada
etc., cujas origens étnicas foram
um expressará uma concepção e uma atuação diferenciada. Algo comum é a vivência com a discriminação agregadas às respectivas defini-
racial, característica peculiar aos que são vistos como diferentes e desiguais. Mas o enfrentamento dessas ções de nacionalidade” (Lopes,
discriminações poderia compor um quadro de vários matizes. 2004, p. 47).

Pesquisar as trajetórias de professoras negras no ensino superior é uma forma de reivindicar mais um campo de
2
Nas pesquisas que desenvolve-
mos, mostrando os limites de
lutas, no qual a mulher professora negra recebe todo o ‘peso’ que estas adjetivações acarretam. Santana salienta que a nossas heranças da Ciência Mo-
história de vida de cada professor pode formar um quadro variado, pois a presença nesses espaços institucionais se trans- derna, grafamos assim certos
termos que aprendemos a ver
forma em uma forma de resistência para esses professores e professoras com as marcas das suas vivências singulares. dicotomizados.
16

A partir da indicação de Santana e do acervo fotográfico de J.Vitalino, com o qual venho trabalhando,3 analisei
os caminhos percorridos pela professora Maria José Alves de Oliveira – Zezé, como era conhecida. Essa trilha me levou
também ao encontro de sua filha Lucia Maria Alves de Oliveira. 3
A pesquisa desenvolvida tem
como título: Memórias Imagé-
Zezé foi professora do Instituto de Educação Física e Desportos da Uerj desde sua criação, em 1970, até 2008, ticas da Universidade do Estado
ano em que faleceu. Lúcia Maria também é professora desse Instituto desde 2003, muito por influência de sua mãe. do Rio de Janeiro – algumas
questões curriculares sobre um
Atualmente, ela é responsável pelo Laboratório de Programa de Culturas Populares e Folclore (LCPF), cujo projeto acervo fotográfico da Uerj.
foi gerado por sua mãe.

Essas professoras tornaram-se ‘personagens’ importantes de minha pesquisa, na qual segui um caminho meto-
dológico diferente daqueles que geralmente são percorridos em algumas pesquisas mais tradicionais. Examinando ima-
gens do acervo do fotógrafo da Uerj descobri uma dessas mulheres. A partir da análise das imagens, fui (re)construindo
sua trajetória e, em meio a esse movimento, buscando entender quais foram os processos engendrados para o perma-
necimento de professoras negras nessa instituição. Quais as táticas (Certeau, 1994) que elas lançaram mão para transpor
barreiras impostas pelo racismo institucional e social? Pouco a pouco, à maneira de um quebra-cabeça, juntando peça
por peça, fui produzindo dados que permitiram o desenvolvimento de minha pesquisa. Compreendo o “uso” de foto-
grafias na pesquisa social no modo como propõe Kossoy (2001, p. 28), quando ele indica:
é a fotografia um intrigante documento visual cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e
detonador de emoções. Segunda vida perene e imóvel preservando a imagem-miniatura de seu referente:
reflexos de existências/ocorrências conservados congelados pelo registro fotográfico. Conteúdos que
despertam sentimentos profundos de afeto, ódio ou nostalgia para uns, ou exclusivamente meios de
conhecimento e informação para outros que os observam livres de paixões, estejam eles próximos ou
afastados do lugar e da época em que aquelas imagens tiveram origem.

Fotografias, marcas e pistas: caminhos percorridos

Quando comecei a trabalhar com as fotografias do acervo de J. Vitalino, e no contexto do meu interesse em
investigar as questões raciais em suas relações com a educação, detive-me, inicialmente, nas fotografias em que pude
identificar, visualmente, negros e negras. Para isso, tomei como referência a pigmentação da pele dos fotografados,
considerando ainda algumas características físicas que me são familiares, tais como: formato do nariz, boca e tipos de
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cabelos. A identificação, classificação, segregação e discriminação das pessoas a partir de critérios como esses está no
cerne das questões raciais e, no modo como sugerem autores como Paixão (2006), Guimarães (2008) e Teixeira (2003),
dão sustentação ao chamado preconceito de marcas, baseado no fenótipo ou aparência e que determina preterição. 4
“A Reserva de Cotas, em se tra-
tando de espécie de Ação Afir-
Saliento, contudo, que esses critérios para identificar negros e negras só podem ser pensados na contingência da mativa, propõe-se a representar
relação com o olhar do outro, do que está de fora (Gomes, 2006), ou seja, daqueles que, em meio a relações culturais, a efetivação do compromisso
assumido pela Constituição de
políticas e econômicas, se consideram não-negros e, em determinadas condições de saber/poder, produzem e tentam 1988 e pelos acordos interna-
fixar significados sobre aqueles que pretendem subalternizar. Por outro lado, reivindicar para a si próprio(a) a condição cionais de direitos humanos,
que nosso País é signatário. Por
de negro(a), em contextos de relações raciais, culturais, políticas e econômicas assimétricas, constitui um modo de po- esse sistema, é reservado, na
sicionar-se politicamente, com a perspectiva de afirmação, sensibilização, mobilização, enfrentamento e luta. área educacional, um percentual
de vagas em universidades pú-
Num primeiro momento, minha intenção ao pesquisar as fotografias daquele acervo era analisar a presença de blicas, as quais contemplariam
negros, índios e alunos que
negros e negras na universidade antes da implementação da reserva de vagas4 para aqueles(as) que se auto-declarassem cursaram o ensino fundamental
como tais. Ao analisar o material, percebi a necessidade de afunilar quais seriam os objetivos, qual seria o ponto prin- e médio em escolas públicas”
(Moura, Online, p. 3).
cipal de análise e que segmento da universidade elegeria para pesquisar (se funcionários, discentes ou docentes).
5
Total de professores por sexo e
Para tal escolha, busquei saber onde estariam os menores contingentes de pessoas negras nesses três segmentos. cor – Brasil/ Censo demográfi-
Baseada em dados do IBGE, apresentados por Teixeira (2006, p. 30), apontando números significantemente inferiores co 2000: Professores do ensino
superior: Homens brancos 23,3,
de professores negros em relação a professores brancos no ensino superior, fiz a minha escolha. E, mais ainda: compa- Homens pretos e pardos 8,0;
rando os números de professoras negras com o de professoras brancas, vi que entre as mulheres a desproporcionalidade Mulheres brancas 5,1, Mulheres
pretas e pardas 1,6.
era ainda maior.6

Uma vez decidida a pesquisar a presença de professoras negras, resolvi que seguiria os “rastros” (Ginzburg,
1989) delas através das fotografias em que aparecessem. Recorro ainda, uma vez, a Santana (2004, p. 43) quando nos
diz que “as biografias dos professores, por sua diversidade, permitem apreender os vários percursos de formação e
transformação”.

Retornei ao acervo lançando outros olhares. Uma figura, que já havia se destacado durante meu primeiro
contato com os álbuns de J. Vitalino pelas suas vestimentas características de algumas representações de mulheres do
continente africano, chamou mais uma vez minha atenção. Continuei seguindo seus rastros e algumas pistas, presentes
18

em outras imagens, indicavam que ela poderia ser uma professora, como quando, por exemplo, foi fotografada entre
alunos, identificáveis pelos uniformes, e ao lado do reitor Charles Fayal.

Em conversas com outros integrantes do grupo de pesquisa do qual faço parte, sobre a dificuldade em encon-
trar informações sobre a série de fotografias nas quais essa mulher negra aparecia, estes, ao verem tais fotos, reconhece-
ram-na como uma ex-professora do Instituto de Educação Física, Maria José.

A ausência ou escassez de informações sobre professores(as) negros(as) é uma das “estratégias” (Certeau, 1994)
utilizadas por aqueles(as) que tentam invisibilizar a presença dos negros no ensino superior. Santos (2002), em sua
proposta de uma “sociologia das ausências”, com a qual busca explicar e reverter certos mecanismos de invizibilização,
destaca que o que não existe é produzido ativamente como não-existente, como uma alternativa não-crível, como uma
alternativa descartável, invisível à realidade hegemônica do mundo.

Na tentativa de transpor tais “estratégias” recorri, tacitamente, às pessoas que a identificaram. Uma delas foi
Guilherme Locks, professor do mesmo Instituto de Educação Física e Desportos, que, ao saber que me interessava pela
história dessa professora, contou que sua filha, também professora do instituto, havia assumido a disciplina ministrada
pela mãe anteriormente. Então, marquei uma entrevista com a professora Lucia Maria.

O encontro com Lucia Maria e Maria José

O encontro foi no Laboratório de Programa de Culturas Populares e Folclore (LCPF), localizado no nono andar do
bloco F, na Uerj, em uma sala onde vi alguns objetos que havia identificado nas fotografias que analisei: algumas vestimentas
usadas em festividades, instrumentos musicais, adereços e outros objetos que já me eram familiares através das imagens.

Para essa conversa, levei as fotografias nas quais identifiquei Maria José, o currículo Lattes dela e o de Lucia
Maria. Por meio dos currículos soube que ambas tinham suas vidas acadêmicas interligadas, ao ponto de terem escrito
textos juntas e de Lucia ter sido orientada na graduação por sua mãe.

Nesse encontro, a história que conto sobre a trajetória dessas professoras continuou sendo tecida com múltiplos
e novos fios. Às imagens produzidas pelo fotógrafo, às minhas impressões sobre elas e às informações que havia levan-
tado sobre a vida acadêmica das duas, articulavam-se agora com as memórias e as fabulações de Lucia Maria.
19

Lucia viu as fotografias, identificou a mãe e falou sobre algumas situações retratadas. Em algumas das fotos notou a
presença de suas irmãs e dela própria. Contou que participava dos eventos realizados pela mãe desde criança e que Maria
José fazia questão que as filhas participassem de sua vida profissional. Segui conversando sobre as atividades desenvolvidas por
Lucia e esta me disse que falar sobre sua trajetória era inevitavelmente falar sobre sua mãe.

Com a pesquisa que realizei sobre a atuação de Maria José na Uerj percebi que ela, por meio dessa disciplina e
do laboratório, trouxe para a universidade aqueles(as) que estavam em seu entorno, mas que, no pensamento de tantos,
ali não deviam estar presentes. Um movimento que continua realizado por sua filha, principalmente, a partir das ativi-
dades do Laboratório de Programa de Culturas Populares e Folclore.

Essa ligação de Maria José com as comunidades vizinhas, consideradas como de ‘fora’ do espaço acadêmico – e
que agora são parceiras de sua filha –, foi registrada em várias fotografias. Contudo, questiono a ideia do que seja estar
‘fora’, pois tais comunidades, de alguma maneira, sempre estiveram presentes nesse lugar, apesar dos processos de des-
qualificação e invisibilização. A esse respeito, Guimarães (2008, p. 49), em sua descrição sobre discriminação, afirma:
Nesse caso, o preconceito age de modo ativo em detrimento de seu desafeto. Seu comportamento procura
impedir os membros de um determinado grupo de usufruírem certos tipos de emprego, áreas residenciais,
direitos políticos, oportunidades educacionais ou recreativas, igrejas, hospitais, ou algum tipo de privilégio
social. A segregação é uma forma institucionalizada de discriminação, protegida pelas leis ou pelos costumes.

No Brasil, muitas vezes essa discriminação não ocorre de forma explícita, mas sutilmente. Lucia, em um mo-
mento de sua fala, lembra que sua mãe, por vezes, era considerada mística em função do trabalho dela. Entendo que essa
pode ser uma forma de desqualificar o que fazia, não apenas por basear-se na ideia do negro como o ‘exótico’, mas
principalmente por tentar caracterizar as práticas daquela professora como não-científicas, não-acadêmicas.

O racismo, o preconceito e a discriminação produziram/produzem desigualdades sociais profundas na socieda-


de brasileira. As maneiras como eles se manifestam tornam-se ainda mais perversas quando são sutis, fazendo com que,
muitas vezes, aqueles que os sofrem sequer os percebem.

A compreensão do envolvimento de Maria José com as questões raciais perpassa o reconhecimento do lugar
que ela ocupou, tendo sido uma professora negra em um ambiente marcado pelo racismo estrutural, institucional e
social. Gomes (1995, p. 142) escreve que:
20

ser negra e discutir a questão racial é um processo muito complexo. Representa ser confrontada a todo
momento com o racismo vivido na história, no cotidiano e com a introjeção dos valores racistas. Para
desconstruí-los há que se fazer um longo processo de repensar a própria trajetória da vida.

As fotografias nas quais Zezé aparece são aquelas realizadas para retratar eventos. Entre eles: festivais de música,
atividades com a presença de integrantes de escolas de samba, apresentações de cantores e cantoras brasileiras e um
encontro com comitiva do governo do Senegal. O envolvimento dela com esses projetos não deve ser considerado
uma mera coincidência, pois suas práticas e sua presença em tais acontecimentos, embora a filha relate que Maria José
não era integrante de nenhum movimento organizado relacionado a questões raciais, eram modos de se posicionar
politicamente.

Entre as fotografias que apresentei a Lucia, está uma série de imagens por meio das quais infiro o posiciona-
mento de Maria José em relação às questões que envolvem as relações raciais. Nessa série, ela aparece em uma foto
feita para registrar uma cerimônia em que o reitor Charley Fayal confere um diploma de honra e amizade a Nelson
Mandela. No diploma, datado de 11 de outubro de 1985, pode-se ler:
O reitor da Uerj, no uso de suas atribuições, confere este diploma de honra e amizade a Nelson Mandela,
como elo importante da corrente de solidariedade que o mundo vem construindo pela causa da liberdade,
igualdade, justiça e dignidade de nossos irmãos sul-africanos.
6
O fotógrafo Januário Garcia, ne-
Na referida fotografia, Maria José está ao lado de um homem negro reconhecido por Lucia como o fotógrafo gro e militante, vem documen-
tando, com imagens, histórias
Januário,6 importante fotógrafo brasileiro. Essa cerimônia foi coordenada pelo Instituo Com África, fundado em 1985
de negros brasileiros. Outras
com a intenção de unir pesquisa acadêmica e ações políticas empreendidas pela sociedade civil na luta contra o racismo informações sobre o fotógrafo
e sua obra estão disponíveis em
em todo o mundo.
http://imagesvisions.blogspot.
com/2008/10/exposio-do-fot-
As práticas de Maria José e Lucia Maria se inscrevem entre os múltiplos modos de lutas contra o racismo, teci- grafo-janurio-garcia.html.
dos incessantemente em nossa sociedade pelos praticantes da cultura em seus múltiplos contextos cotidianos, inclusive
na universidade.

Nessas idas e vindas, vou tecendo minha pesquisa articulando essas histórias a outras histórias de diferentes mu-
lheres negras, com suas lutas, conquistas, constituição processos identitários, superações e mudanças, tecidas em meio
às suas práticas nos diversos contextos cotidianos em que viveram e vivem.
21

Referências bibliográficas
ALVES, Nilda. Memórias Imagéticas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – algumas questões curriculares sobre um acervo fotográfico da Uerj.
Rio de Janeiro, 2008. (Projeto de pesquisa).
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
GUIMARÃES, Antonio. Preconceito racial: modos, temas e tempo. São Paulo: Cortez, 2008.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
GOMES, Nilma. Sem perder a raiz: o corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
________. A mulher negra que vi de perto. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
MOURA, Adriana Galvão. A questão das ações afirmativas – a reserva de cotas para negros, à luz do princípio constitucional da igualdade. Disponível em:
http://www.feb.br/revistafebre/ARESERVACOTASNEGROS.pdf. Acesso: 04 de março de 2010.
PAIXÃO, Marcelo. Manifesto anti-racista: idéias em prol de uma utopia chamada Brasil. Rio de Janeiro: DP&A; LPP/Uerj, 2006.
SANTANA, Patrícia. Professores Negros: trajetórias e travessias. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2004.
SANTOS, Boaventura. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 63, p. 237-280,
out. 2002.
TEIXEIRA, Moema. A presença negra no magistério: aspectos quantitativos. In: Oliveira, Iolanda de.(org.) Cor e Magistério. Niterói, RJ: Quartet/
EDUFF, 2006.
_________. Negros na universidade: identidade e trajetória de ascensão social no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
22

Imagens e narrativas: uma viagem pelo Colégio


Nossa Senhora das Dores
Geni Amélia Nader Vasconcelos

Jean Beatriz Wermelinger

Selma Ferro dos Santos

Quem vai a Olinda com uma lente de aumento e procura com atenção pode encontrar em algum
lugar um ponto não maior do que a cabeça de um alfinete que um pouco ampliado mostra em seu
interior telhados, antenas, clarabóias, jardins, tanques, faixas através das ruas, quiosques nas praças,
pistas para as corridas de cavalos. Aquele ponto não permanece imóvel: depois de um ano, já está
grande como um limão; depois, como um cogumelo; depois, como um prato de sopa. E eis que se torna
uma cidade de tamanho natural, contida na primeira cidade: uma nova cidade que abre espaço em
meio à primeira cidade e impele-a para fora.
Ítalo Calvino. As cidades invisíveis

Tornarmo-nos viajantes, ao modo de Marco Pólo na obra de Calvino (1999), é abrirmo-nos para possibilidades
fantásticas de percursos. Percursos que nos impulsionam a buscar rotas diversas, a transitar por meandros que escapam
aos caminhantes de pouca sensibilidade, apressados, incapazes de percebê-los. Percursos que esgarçam itinerários pro- 1
Esse modo de escrita, aprendido
gramados, roteiros pré-definidos, apontando-nos novas e incessantes descobertas e aventuras. com Nilda Alves e presente em
outros momentos deste texto,
As cidades invisíveis de Calvino convidam-nos a conhecer o outro, os tantos outros em sua alteridade, em seus indica que cada um dos termos
reunidos nessa palavra está es-
modos de fazer, sentir e pensar. Cada uma das cidades de Calvino pode ser considerada espaçotempo1 de busca, de ques- treitamente ligado ao outro e só
tionamentos criados e recriados com a presença dos que as percorrem. existe nessa relação.

Como Olinda, narrada em epígrafe, outros espaços ganham densidade, movimento e novos sentidos por meio
23

de narrativas e imagens trazidas por aqueles que neles transitam. É essa possibilidade que abraçamos na elaboração
deste texto. Contrapondo-nos aos que preferem os circuitos programados para turistas, que tudo pretendem apresentar
sem perceber o quanto lhes escapa, preferimos a viagem do flaneur, do passeante “ocioso” (Pais, 2003) sem destino apa-
rente. Preferimos rotas não estabelecidas, abertas ao imprevisto.

A Olinda pela qual viajamos é o Colégio Nossa Senhora das Dores, escola confessional católica da região ser-
rana do Rio de Janeiro, conhecida também como CNSD, “Colégio das Irmãs”, ou simplesmente, “das Dores”. Cada
uma dessas denominações constitui pista para as tantas histórias que essa escola abriga em seus mais de cem anos de
existência.

Como ex-alunas, mães, avós e professoras, nossas vidas nos enredam, nessa instituição, a muitos outros sujeitos
que, com gramaticalidade e temporalidade distintas das nossas, a constituem. Viajarmos pela nossa Olinda é mergu- 2
As irmãs doroteias pertencem à
Congregação de Santa Doroteia
lharmos em imagens e narrativas trazidas pelas irmãs doroteias,2 colegas, filhos, netos, alunos, famílias e muitos outros da Frassinetti do Brasil, da qual
constituintes dessa rede, percorrendo rotas diversas, desdobrando em outros espaçostempos, aqueles que, para muitos, faz parte o Colégio Nossa Se-
nhora das Dores.
parecem únicos. Percorrermos nossa Olinda é, assim, abraçarmos o gosto pela exploração de outras possibilidades de
sentido, além daquelas veiculadas pelo modo de conhecer hegemônico. É entendermos a escola como polissêmica. Os
sujeitos que a fazem acontecer cotidianamente são sujeitos concretos, plurais, encarnados historicamente, que se rela-
cionam com a estrutura mais ampla em uma trama de relações complexas, de conflitos, imposições, acordos, submissão
e rebeldia.

Em uma primeira aproximação da ideia de escola, é possível que sejamos tomados pelo conceito de trabalho,
de aulas, de estudo, de saberes e fazeres que marcam o dia a dia da escola e a tornam um espaço privilegiado de re-
lações de ensinaraprender. Mas, quem conhece uma escola por dentro sabe que isso não diz tudo a seu respeito. Uma
escola, na memória de cada um de nós, é muito mais que isso: é espaço de encontros, de afetos, de intercâmbios, de
sonhos, de sentimentos que vão, por certo, muito além do previsto em qualquer fluxograma de uma instituição. Para
quem a conhece por dentro, a escola é sempre muito mais que o olhar do alto – distanciado da prática, pretensioso,
mas empobrecedor – permite-nos detectar. Quem conhece uma escola por dentro, quem se deixa envolver por seu
cotidiano de forma sensível e atenta sabe que, para além de sua história oficial de domínio público, há centenas de pe-
quenas histórias, únicas, singulares, carregadas de emoção que a fazem marcante na vida dos sujeitos que a constituem
24

(Vasconcelos, 2000). Esse entendimento nos convida a deixarmo-nos intrigar por sua trama, pelos processos reais que
se dão em seu interior, pelo reconhecimento da autoria dos sujeitos que a constituem. Esse entendimento orienta-nos
na viagem à nossa Olinda.

Em nosso trabalho no CNSD, nas situações mais diversas – a chegada de um novo aluno, a observação do
espaço por um familiar à espera de uma criança, o desenrolar de uma cerimônia artística, religiosa ou de uma ativida-
de física –, somos convocados a viajar no tempo, impulsionadas por falas daqueles que frequentaram essa escola ou a
imaginaram através de muitos outros. São narrativas que trazem à cena experiências e situações que não se encontram
em documentos e registros oficiais, contribuindo para pluralizar a leitura de sua história e romper com interpretações
lineares dos fatos. São narrativas diversas, provocadoras de risos, espantos, capazes de despertar dúvidas, aguçar a curio-
sidade e impulsionar novas conversas. Narrativas oportunizadas, com frequência, por fotografias expostas em murais,
projetadas em telões nos eventos, fixadas em quadros, visualizadas em álbuns de alunos ou no amplo acervo fotográfico
da escola. Diante das fotografias, o desejo de falar, tecer comentários, expor pensamentos e emoções, intercambiar
experiências se avoluma.

Há sempre histórias a serem contadas, lembrando-nos com Manguel (2001, p. 28), que uma imagem dá origem
a uma história que, por sua vez, dá origem a uma imagem. Histórias que se desdobram em muitas outras, indicando-nos
o dinamismo da narrativa a ser retomada. Se a informação adquire significado e desperta interesse enquanto nova, a
narrativa oferece outras possibilidades. Certamente nisto reside a sua força: em sua incompletude, em seu movimento,
em sua vitalidade ao se retomar a narração. A narrativa não se entrega. Sua preocupação não é transmitir o “puro em si”
da coisa narrada, não é elaborar um relatório ou expor algo quantificável, mas mergulhar o narrado na vida do nar-
rador, em suas experiências e nas experiências narradas por outros e imprimir-lhes a sua marca, encharcá-los com sua
vivência. A narrativa, diferentemente da informação, conserva sua força e depois de muito tempo ainda é capaz de se
desenvolver (Benjamin, 1987), de ganhar novas faces tecidas pelos ecos de outras narrativas, por meio da ilusão de autor-
reflexo, por meio do conhecimento técnico e histórico, por meio da fofoca, dos devaneios, dos preconceitos, da iluminação, dos escrúpulos,
da ingenuidade, da compaixão e do engenho (Manguel, 2001, p. 24).

Nas lembranças evocadas, no ato de contar, surgem emoções diversas, gestos incontidos, olhares atentos e curio-
sos, reações de apreensão, espanto e questionamento diante do narrado. Nesse processo de ver e escutar, como temos
25

experimentado no CNSD, inúmeros sujeitos oferecem-nos outras imagens – do próprio acervo, de um parente ou de
um conhecido – conferindo densidade à história apresentada e possibilidade de outros desdobramentos. Aliado à dis-
posição de mostrar novas fotografias, se manifesta o desejo de contar outras histórias, referentes às imagens apresentadas.
Desse modo, a narrativa recomeça, trazendo à cena outras falas e imagens, retomando a prática de contar experiências.
Narrativa e imagens se mesclam e as fotografias, aparentemente estáticas, são dinamizadas pela verbalização. É muito
raro que alguém apresente uma foto sem comentar o que ela significa ou levantar questões a seu respeito. Histórias
guardadas em álbuns, em fotos isoladas, esperando quem as ouça para serem transmitidas, encontram aí uma oportu-
nidade de serem verbalizadas.

Revisitar fotografias não significa apenas contemplar imagens arquivadas por uma pessoa. É mais. É conhecer
parte de sua história e das histórias que nos constituem, trazendo à cena situações que nos formam enquanto cole-
tividade. A memória, como aprendemos com Halbwachs (1990), não é apenas algo individual. Está impregnada das
memórias de muitos outros com os quais nos relacionamos e partilhamos experiências. Essa memória coletiva con-
tribui para o sentimento de pertença a um grupo, sustenta o sentimento de identidade do indivíduo, ancorada numa
memória compartilhada no campo histórico e, também, no campo simbólico.

Aguçando lembranças, as imagens permitem que, a partir de registros aparentemente gélidos, as situações ad-
quiram novos significados. Nesse processo, não suspendemos a vida atual para voltar ao passado, para percebê-lo tal
como aconteceu. Reconfiguramos a imagem original, engendrando uma interlocução entre o momento fotografado
e o presente. O que desapareceu pode ser visualmente refeito, mas nunca trazido totalmente de volta. Imagens regis-
tradas por um fotógrafo apresentam significados ocultos até mesmo para o fotógrafo que as registrou (Manguel, 2001).
Falam de seu autor para aqueles que as contemplam. Registram algo a respeito do mundo nelas apreendido, mas os que
as observam extrapolam o que foi capturado pelo fotógrafo em um dado espaçotempo. Na fotografia, como em outros
textos, quem a observa se introduz no lugar do autor. Faz, da propriedade do outro, um lugar tomado de empréstimo.
Aí, em terras alheias, caça por conta própria (Certeau, 1994) acionando vivências, saberes e fazeres elaborados nas
múltiplas redes de subjetividade nas quais sua existência se dá.

Atuando como disparadoras de sentido, as fotografias promovem uma viagem livre, porque absorvida na evoca-
ção do presente de imagens que não são dali, mas estão ali expostas, reveladas aos olhos que as observam (Koury, 2001).
26

Fotografias levam-nos a visitar outros espaçostempos. Transportam-nos de um tempo cronológico a um tempo memo-
rial, afetivo. Essa viagem do observador entre o então-lá sugerido pela imagem e o aqui no qual está situado (Barthes,
1977) faz-nos percorrer um território complexo, no qual lembranças e imaginação se mesclam, conferindo às nossas
memórias um certo caráter de ficção, propiciador de leituras plurais. A imaginação permite perceber, sentir, ouvir os
eventos para além de sua compreensão literal. Coloca sob suspeição ou mesmo rompe com o que é apresentado como
objetivo, definido. Conecta imagens provenientes do mundo exterior a outras, geradas pelo “cinema interior” no dizer
de Machado (1997). Nessa viagem recriada pela imaginação se mesclam o presente e o passado, o conhecido e o sur-
preendente, introduzindo elementos novos na conversação.

Ao longo de nosso percurso, visitamos inúmeros territórios, denominados por Pollak (1992) elementos cons-
titutivos da memória: acontecimentos, pessoas e lugares. Experimentados pessoalmente ou presentes no imaginário
com grande força, torna-se difícil ou mesmo impossível perceber se o narrador os vivenciou de fato. O que importa é
compreender que esses elementos forjam nossas lembranças.

O mergulho em imagens e em narrativas trazidas por fotografias do CNSD permite-nos realçar, na história
desse colégio, diferentes sujeitos e projetos, questionando, assim, abordagens que generalizam situações particulares e
identificam como pertencendo a uma memória comum o que muitas vezes é próprio de grupos hegemônicos. Tal
mergulho aponta a complexidade do real, a multiplicidade de fios e teias que aí se trançam, esgarçando ou mesmo
rompendo propostas teóricas que tentam aprisioná-los em uma perspectiva definida, incapaz de compreender a vida
em seu acontecer.

Na contramão de discursos generalizantes sobre a escola e a educação, pesquisas do/no cotidiano possibilitam
trazer à cena situações que não foram registradas. Ressignificam particularidades e singularidades como fios consti-
tutivos da própria teia na qual a vida se tece. Captam práticas e emoções que escapam ao olhar janeleiro (Pais, 2003),
capaz de privilegiar apenas o pré-estabelecido. Por essa maneira de compreensão, o vivido é previamente delimitado,
contornado, enquadrado. Pesquisas no/do cotidiano convidam-nos a perceber os diversos sujeitos presentes na escola
como criativos, autores de saberes e fazeres irredutíveis à mera repetição de uma ordem social. Apontam-nos usos e
táticas de praticantes que, na contramão do proclamado oficialmente, tornam as escolas inovadoras, plurais. Dessa forma,
contradizem generalizações sobre o passado, ampliam a percepção histórica, permitindo “mudança de perspectiva” (Al-
27

bertini, 2004). Trazem à cena modos de fazer cotidianos, artes que, para além da racionalidade dominante, jogam com
emoções, intuições e imaginação criadora e, sem dúvida, com outra racionalidade (Alves e Garcia, 2000). Permitem
que nos encontremos de outro modo com o passado. Quantas situações inéditas experimentamos, por esse viés, em
nossa Olinda. Narrá-las permite que outros modos de ser e estar no mundo não sejam ignorados ou obscurecidos.
Concordamos com Maturana (2008, p. 127) ao afirmar que
Cada vez que um ser humano morre, um mundo humano desaparece, muitas vezes de maneira
irrecuperável. Isto não é uma banalidade sentimental, é uma realidade biológica. (...) Não sabemos fazer
os muros incas porque o último pedreiro que podia fazê-lo ao viver, morreu, e com sua morte acabou uma
linhagem da história humana. Talvez se houvesse ficado algum relato... talvez se houvesse sobrevivido
algum aprendiz... A falta da prática leva ao esquecimento e à morte, ao fim da história. E quando isso
acontece, às vezes um mundo se acaba de forma irrecuperável.

A trajetória metodológica abraçada no presente texto se insere em um movimento que busca compreender a
escola a partir de seu fazer cotidiano,3 de seu dinamismo, utilizando fontes negligenciadas ou rejeitadas pela historio-
3
Entre os pesquisadores que fa-
zem acontecer esse movimento
grafia tradicional. Cadernos, diários de classe, livros de visita, salas de aula e tantos outros artefatos ganham espaço em no Brasil citamos Nilda Al-
propostas dessa ordem. Fotografias constituem mais uma possibilidade de trazer à cena esses artefatos, tecer novas his- ves e Inês Barbosa de Olivei-
ra (Uerj), Regina Leite Garcia
tórias, convidando-nos a outros percursos. Esse modo de trabalho requer uma sensibilidade epistemológica específica, (UFF) e Carlos Eduardo Ferra-
aguçada (Pollak, 1992), possibilitando-nos compreender o cotidiano escolar a partir de seus praticantes. ço (UFES).

Neste trabalho com imagens e narrativas que circulam no CNSD, procuramos trazer significados que emergem
nas diversas redes em que nos incluímos enquanto pesquisadoras praticantes, estimulando possíveis leitores para que, a
partir das tantas redes cotidianas em que vivemaprendem, procurem outros significados para o que vão ler e ver para
além dos que apresentamos. Com Alves e Oliveira (2004, p. 19), é possível entender esse trabalho como o entrelaça-
mento de redes que ligam imagens vistas com o que é contado sobre elas e sobre o que delas está ausente, mas presente na memória
de professoras e de outros praticantes do cotidiano escolar.

Não é nossa intenção apresentar como únicas as narrativas de nossa Olinda, construídas por nós e pelos diver-
sos sujeitos com os quais conversamos. Interessa-nos a possibilidade de trazer à cena outras histórias do cotidiano do
CNSD que escapam ao olhar do alto (Certeau, 1994). Tal possibilidade intima-nos a buscar o que, mesmo desligado,
desconsiderado ou rejeitado por um paradigma excludente, esteve presente. Convoca-nos a uma aproximação não
28

linear ou dogmática da realidade, assumindo a incompletude como própria do sujeito encarnado (Najmonovich, 2001)
e convidando outras vozes para o diálogo.

Percorrer imagens e narrativas, debruçarmo-nos sobre os múltiplos processos cotidianos de criar e recriar a
vida, permite-nos, como afirmamos em outra ocasião, entender, com Prigogine (2000, p. 6)
a história como uma sucessão de bifurcações, na maioria das vezes múltiplas, indicando que, para cada ramo
seguido, inúmeras possibilidades foram ficando para trás. Esse entendimento é um convite à esperança,
à utopia. O caminho entre as bifurcações não está dado, está prenhe de incertezas. É constantemente
definido e redefinido pelas ações dos atores sociais.

As fotografias com as quais tivemos longas conversas estiveram por longos anos em caixas e envelopes. A sua 4
Referimo-nos à pesquisa Fotogra-
utilização foi possível a partir de minucioso trabalho de identificação, seleção, catalogação e digitalização, etapa inte- fias de uma escola centenária
grante de uma dissertação de mestrado.4 O rico acervo fotográfico, zelosamente guardado pelas religiosas, abriu novos – pistas para repensar o currí-
culo no cotidiano, desenvolvida
caminhos para o entendimento do fazer pedagógico do Colégio Nossa Senhora das Dores. Muitas situações vividas por Jean Beatriz Wermelinger,
em nossa Olinda foram registradas em imagens estampadas em fotografias desse acervo que se constitui em mais uma sob orientação da professora
Nilda Alves, na Uerj.
fonte relevante para o entendimento da história do seu cotidiano.
5
Estratégias, segundo Certeau
Trabalhar com esse acervo possibilita mergulharmos nessa escola a partir de imagens que outros fotografaram (1994, p. 46), são ações e cál-
e outras – as religiosas de muitas épocas – haviam olhado e entendido que era importante guardar. Esse acervo tem culos que têm um próprio, um
lugar do qual governam. As es-
muito a contar, provocando narrativas que possibilitam a produção de novos significados sobre as múltiplas estratégias5 tratégias escondem sob cálculos
da ordem que sempre geriu e organizou os processos pedagógicos do colégio, bem como sobre as diferentes táticas6 objetivos a sua relação com o
poder que os sustenta, guarda-
de seus tantos sujeitos praticantes. do pelo lugar próprio ou pela
instituição.
Ampliar o significado original da fotografia através de um campo dialógico é abrir caminhos para que novos
sentidos sejam negociados.Vai-se da imagem à palavra e da palavra à imagem, alargando-se dessa forma as possibilidades 6
Certeau (1994, p. 47) fala das tá-
e os modos de interpretá-la. Não é sem razão que o poeta Antonio Cícero (1996, p. 11) afirma: guardar uma coisa é olhá- ticas: sua síntese intelectual tem
por forma não um discurso, mas
la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Cada uma delas, com seus ‘segredos’, fala-nos de a própria decisão, ato e maneira
conhecimentos sobre a escola, de seu currículo e de processos pedagógicos que nela se desenvolveram, a partir de redes de aproveitar a ocasião. Muitas
práticas do cotidiano são do
múltiplas de valores, significados e conhecimentos: da Igreja Católica; da ordem religiosa a que pertence a instituição; tipo tática.
do sistema vigente de ensino; das ideias pedagógicas de cada período; dos visitantes que recebia; das alunas que atendia
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e suas famílias, entre outras. São diferentes fios que se trançam, criando novos modos de pensar, fazer e expressar, em
movimentos constantes, introduzindo nos espaçostempos escolares novas questões e desafios a serem enfrentados. São
práticas de sujeitos e instituição que precisam ser contadas para que se possa conhecer um pouco mais do seu interior,
para além da sua homogeneidade, indo fundo para encontrar e fazer emergir o diverso, as vivências que ultrapassam os
limites dos currículos oficiais, das práticas cotidianas que escapam ao controle rígido e circunscrito pelo planejamento
ou mesmo pela legislação. Práticas mostrando-nos que as escolas, para além de serem ‘lugar’ (Certeau, 1994) – entendi-
do como espaço apropriado – são movimento (Alves, 1998), porque nelas existem pessoas e artefatos culturais vários que
se entrecruzam e que estabelecem relações entre si, em diálogos frequentes e diversificados (Wermelinger, 2007).

O trabalho realizado de identificação, catalogação, digitalização e organização em álbuns contempla cerca de


quatrocentas fotografias. As legendas encontradas nas fotos e as indicações nos envelopes que as guardavam se consti-
tuíram como pistas a serem seguidas nesse processo. As fotografias que não eram legendadas, a grande maioria, foram
observadas a partir do modo como eram arrumados os artefatos e móveis nos espaços, das cenas, pessoas fotografadas e,
até, detalhes como expressões faciais e corporais das alunas, as vestimentas que usavam, a maneira como arrumavam os
cabelos, entre outros aspectos. Em cada um dos álbuns aparece uma lista, indicando as fotografias que constam daquele
arquivo.

Todas as fotografias que constituem o acervo de nossa Olinda são representativas de cenas escolares. São situ-
ações de alunas em sala de aula, no jardim, fazendo recreio, em festas cívicas e religiosas; são espaços pedagógicos, salas
especiais, todas elas evidenciando conhecimentos, valores, regras de convivência, comportamentos, processos pedagó-
gicos e curriculares que têm muito a dizer. Percebemos que essas fotografias foram feitas por fotógrafos profissionais.
O enquadramento, a luz, a revelação cuidadosa são dados que apontam para a qualidade do trabalho realizado. Grande
parte das fotografias é frontal, permitindo a observação de detalhes, tais como: a quantidade e diversidade de sujeitos
e artefatos presentes nas fotos, a organização dos espaçostempos, a presença de símbolos representativos da religiosidade
da instituição, entre outros.

É importante observar, mais do que a beleza da coleção, as inúmeras seriações possíveis e, consequentemente,
os desdobramentos e possibilidades de pesquisa. Nota-se que é possível seriá-las segundo o critério de vestuário; muitas
das fotografias dão conta do uso de diferentes uniformes em ocasiões diversas – uniforme próprio para uma solenidade,
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para uma partida de vôlei, para um passeio pela praça. Poder-se-ia, também, arrumá-las de acordo com os eventos mais
comuns na instituição, além das aulas, é claro. Formaturas, apresentações artísticas diversas, exposições, desfiles cívicos
e, principalmente, atividades de caráter religioso – celebrações na capela, participação da escola em procissões, enfim,
múltiplas combinações e possibilidades de leituras.

Para este artigo recorremos a algumas imagens do acervo. Refletindo a respeito dos critérios que nortearam
nossa escolha, percebemos que, ao percorrermos nossa Olinda folheando os álbuns da escola, fomos surpreendidas
pelo nosso aprisionamento por algumas imagens. Na verdade, não fomos nós que as escolhemos. Elas se insinuaram,
capturaram nossa atenção, seduziram-nos, evocando lembranças. Na medida em que dialogávamos com as fotografias,
murmúrios, burburinhos e até algazarras das alunas nos corredores e pátios dessa escola pareciam saltar daquelas ima-
gens, dando-lhes vida, conferindo movimento àquelas jovens estampadas nas fotos. Os seus risos e conversas, seus se-
gredinhos, sons e ruídos iam imprimindo outros ritmos na vida dessa escola, e que só podem ser ‘pensados’ por aqueles
que, como nós, conhecem os burburinhos e movimentos de hoje.

Ao serem trazidas para o hoje, essas imagens despertam uma forte sensação de estar lá, fazer parte daqueles mo-
mentos, tocar aqueles objetos, afinal, ao deslizar o olhar pelas fotografias agregamos a esse olhar nossas vivências, nossas
próprias lembranças. Essa é uma experiência fantástica e, a partir dela, criamos e recriamos novas representações que
vão sendo assimiladas como nossas. É como estar dentro da imagem; é um ver que pode ser entendido como momento
de caça não autorizada (Certeau, 1994); um ver que é insistente, curioso e integrador, próprio de quem deseja investigar
o cotidiano. Nessa caça incessante, as imagens fotográficas apontaram indícios que sugeriram o tipo de educação dada
às alunas da instituição.

Com esses elementos, convidamos nossos possíveis leitores a aventurarem-se conosco nos percursos de reco-
nhecimento e ressignificação que fizemos através das imagens fotográficas da instituição de ensino centenária. São
imagens instigantes que nos abrem possibilidades fantásticas de percursos.Vale a pena fazer essa viagem.

As duas primeiras fotografias que selecionamos nos mostram normalistas impecavelmente vestidas, postadas
segundo uma disciplina e uma ordem próprias do tempo escolar que procurava normatizar e enquadrar os diversos
comportamentos das alunas. O alinhamento das normalistas, a forma como estão dispostas nas fotos parece ter sido
geometricamente pensada e arrumada. Certamente, na materialidade dessas fotografias, é possível perceber a intenção
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da escola de ser representada a partir de um modelo de educação de ordem e disciplina, testemunho de uma prática
escolar, de uma forma de escola comprometida com essa proposta. Cumpria-se um ritual que, de certa forma, transmi-
tia os códigos sociais que deveriam moldar o modo de compreensão do entorno e de inserção das alunas no mundo.
Fortalecendo os esquemas de docilidade dos corpos, a pose nas fotos é indicativa do caráter disciplinar exercido na
época na qual as coerções são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus movimentos e gestos,
gerando corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis” (Foucault, 2001).

As fotos ao redor do lago central do colégio e na escadaria do jardim impressionam pela harmonia, pela dis-
tância estabelecida entre os corpos, pela postura irrepreensível, pelos sorrisos esboçados e os uniformes impecáveis,
uma quase musicalidade, um balé reforçado pelo reflexo nas águas do lago. Imagens feitas em épocas diferenciadas, mas
semelhantes quanto à arrumação e, certamente, ao sentido.

O que a imaginação nos leva a interrogar? A arrumação das alunas, a escolha do lugar onde as alunas são foto-
grafadas seriam frutos das decisões do fotógrafo? Alguma autoridade da escola ordenava a formação do grupo? Como
obter-se uma organização tão disciplinada de mais de trinta jovens mulheres? Quanto tempo foi preciso para se chegar
a essa formação? Que ocasiões sugeriam tais poses? Em algumas fotos há leves sorrisos, em outras, não – permissão dos
fotógrafos, astúcias de praticantes? A escola alvo de nosso estudo parece ser entendida, então, como lugar de conheci-
mento, de seriedade – corpos imóveis, estáticos, olhar fixo em um ponto, postura padronizada.

Em nossas lembranças, revivemos o momento no qual as alunas eram recebidas na escola e submetidas à crite-
riosa revista feita por uma irmã ou funcionária designada para essa função. Comprimento das saias, uso de combinação,
meia soquete branca de algodão, zelo com os sapatos pretos, utilização da boina azul-marinho eram alvos de vigilância
diária. Entretanto, apesar das normas rígidas, da preocupação por regular mentes e corpos, práticas de emancipação
(Santos, 2000) eram constantemente inventadas. As saias eram enroladas na cintura para ficarem mais curtas, nas andanças
fora do colégio; um lenço branco por baixo da blusa, simulava a presença da combinação diante do olhar perscrutador das
guardiãs dos costumes e da moral.

Outras duas fotos selecionadas são de momentos religiosos de alta representatividade da opção confessional da
escola. São trazidas para este texto por evocar lembranças marcantes nas nossas vidas. Fotografias têm a capacidade de
ativar os sentidos dos sujeitos que as observam. Segundo Manguel (2001), para aqueles que podem ver, a existência
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se passa em um rolo de imagens que se desdobra continuamente; imagens são capturadas pela visão e realçadas ou
minimizadas pelos outros sentidos de quem as captura. Em situações de festas litúrgicas, em que missas especiais eram
celebradas, após a cerimônia as alunas recebiam chocolate e pão doce, alimentos que chegavam como dádivas após um
longo jejum e em um tempo que o acesso a certas guloseimas não era, para muitos, tão frequente.

Ainda sobre essas imagens, percebemos no espaço da capela marcas dos moldes litúrgicos da época. A grade
delimitando os espaços indica o distanciamento e a autoridade de um, o celebrante, e outros, os fiéis. A capela, símbolo
maior da religiosidade da instituição, os momentos litúrgicos que aí se davam, instigam-nos a pensar na sua força mo-
deladora nos comportamentos das alunas.

A próxima fotografia chama atenção pela presença de materiais específicos para o ensino de geografia.

Mapas e globo terrestre, presentes em uma das fotos indicadas, nos levam a pensar na presença de certo espírito
inovador, talvez próprio do pensamento da Escola Nova. O armário repleto de livros. Seria uma biblioteca de classe?
Estariam ali guardadas publicações próprias do campo da geografia? Os alunos que frequentavam essa sala pesquisavam
nesses livros? Estabeleciam relações entre as experiências de leitura e as observações que faziam nos mapas e no globo?
Como esses recursos eram, efetivamente, usados pelos alunos? Há um tablado para a mesa do professor e a presença do
sagrado. Ambos, tablado e imagem do sagrado, indicando o sentido e a força normatizadora desse ambiente. A materia-
lidade dos artefatos presentes nesse ambiente exprime vestígios das relações pedagógicas aí estabelecidas.

Independente da existência do tablado, no entanto, a mesa do professor não está apoiada no tablado, nem sob a
imagem que indica a carga de religiosidade própria da instituição. Está mais à esquerda, mais próxima do armário com
livros. Seria possível inferir uma certa ousadia, um sinal de ruptura em relação à ordem estabelecida? Seria uma burla às
funções de controle e vigilância? Os sujeitos praticantes dessa sala de aula, professores e alunos, já estariam vivenciando
inovações pedagógicas? Como seriam realizadas as atividades nessa sala? Em grupo, em ambiente coletivo ou individual
e solitariamente? Afinal, as carteiras, sendo individuais, poderiam ser movimentadas, organizadas de modos diversos.

Cada artefato possibilita muitos usos. Em nossas lembranças, professores utilizando o tablado para posicionar sua
mesa e coordenar os trabalhos da classe apareceram com frequência, traduzindo diferentes modos de relacionamento
com a turma. A narrativa de uma ex-aluna da escola, recolhida ocasionalmente por uma de nós enquanto esta escrita
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era organizada, apontou para uma utilização diferente do tablado: local de castigo e exposição de uma aluna, das meno-
res. Tal medida adotada simplesmente pelo fato da criança ser irmã de outra aluna supostamente flagrada mentindo.

No processo de tecer imagens e narrativas, outras lembranças do tablado vivenciadas direta ou indiretamente
por nós indicavam outras possibilidades: em várias ocasiões, uma das pernas da cadeira do professor era colocada no
limite do tablado, com a intenção de provocar desequilíbrio do mestre e gargalhadas da turma. Táticas de praticantes,
lembrando-nos, mais uma vez, como nos diversos temposespaços, mesmo nos que se pensam mais controlados, o coti-
diano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada (Certeau, 1994).

As fotografias das salas de aula nos possibilitaram puxar narrativas referentes às práticas pedagógicas que se de-
senvolveram para além delas e trouxeram outras imagens para o texto.

Essas fotos nos remetem à década de 1960, quando longas viagens não eram frequentes, especialmente para os
habitantes do interior. Nesse período, as irmãs do colégio já propiciavam excursões a outras cidades para suas alunas.
Nas séries concluintes, o passeio era mais prolongado. Constituía-se em prêmio, em troféu pela conquista. A exemplo
dessa experiência, o relato de uma aluna da turma concluinte do Curso Normal, no início dos anos 1960 ilustra este
texto. O grupo realizou uma viagem a Brasília, logo após a inauguração da nova capital. Período de aventuras para as
alunas e preocupações para as religiosas que acompanharam mais de vinte jovens alunas, além de ex-alunas e professo-
ras. Os fios das lembranças de nossa narradora fizeram-na rememorar um episódio curioso e inusitado. Havia no grupo
uma aluna que tinha um irmão na Escola de Paraquedistas − Cadetes do Ar, da Aeronáutica, em Barbacena. Ao passar por
essa cidade, ela manifestou o desejo de visitar o irmão. Todo grupo insistiu para a realização da visita. As religiosas não
imaginavam o que as esperavam: tão logo as jovens adentraram a escola, foram cercadas por cadetes que surgiam de
todos os lados. A irmã responsável pelo grupo, ao ver suas alunas rodeadas por uma multidão masculina, ficou muito
aflita, exigindo que todas permanecessem juntas e dela não se afastassem. Obviamente, isso não aconteceu. A visita
ocorreu com os esperados flertes entre moças e rapazes.

Agora, examinaremos uma fotografia que indica modos diferentes de a escola fazer-se presente para além de
seus muros, participando de um desfile cívico durante os festejos de aniversário da cidade. Nessa fotografia podemos
ver representados valores de civismo, ordem, disciplina, respeito, entre outros. Entretanto, é possível observar também,
pelas expressões dos rostos, direção dos olhares e sorrisos marotos de algumas alunas, que elas encontravam maneiras
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de imprimir outros significados às normas de comportamentos estabelecidas. Como diria novamente Certeau (1994),
astúcias de praticantes.

Em um tempo no qual a movimentação das meninas era socialmente mais controlada, o desfile cívico servia
a outros propósitos, indicativos de sua polissemia para os diferentes sujeitos. Jovens rapazes, interessados em olhar as
meninas, ocupavam a rua, aplaudindo as jovens à medida que desfilavam. Muitos se apresentavam em grupos para in-
tensificar os aplausos àquela que cortejava. Alunas internas, que raramente circulavam pelas ruas da cidade, mereciam
especial atenção. Um fato curioso, quase hilário, ocorreu por ocasião do centenário da escola. Muitas ex-alunas, vindas
de todos os cantos do país, participaram do desfile especialmente organizado para a ocasião. As ruas foram povoadas por
dezenas de cinquentões que queriam saber a respeito das “meninas do Colégio das Irmãs”. Como estariam as beldades
de outrora?

As fotografias apresentadas no texto possibilitam compreender o fazer pedagógico no/do Colégio Nossa Se-
nhora das Dores. Indicam, certamente, marcas de uma época. Não só do CNSD, mas do espaçotempo no qual essa escola
se insere, lembrando-nos o imbricamento do cotidiano com a sociedade mais ampla.Tais fotografias fazem-se convites
para novas narrativas, trazidas pelos ecos de outras narrativas, fofocas, devaneios, ingenuidade e engenho. Evocam outras
imagens e narrativas que não se pretendem definitivas ou exclusivas (Manguel, 2001).

Nossa Olinda apresenta grande vitalidade em seus mais de um século de existência. Os sujeitos que a fazem
existir, em meio a múltiplos e diversos embates, ajustes, conflitos e entendimentos, a reinventam cotidianamente. Mui-
tas outras imagens e narrativas emergem desse contexto. Nesse processo de criar e recriar esse colégio, como na Olinda
de Calvino (1999, p. 119-120),
as velhas muralhas se dilatam levando consigo os bairros antigos, ampliados, mantendo as proporções
sobre um horizonte mais largo nos confins da cidade; estes circulam os bairros um pouco menos velhos,
também maiores no perímetro mas afinados para ceder lugar aos mais recentes que fazem pressão de
dentro para fora; e assim por diante até o coração da cidade: uma Olinda inteiramente nova que em suas
dimensões reduzidas conserva os traços e o fluxo de linfa da primeira Olinda e de todas as Olindas que
despontaram uma de dentro da outra; e no meio desse cercado mais interno já despontam – mas é difícil
distingui-las – as Olindas vindouras e aquelas que crescerão posteriormente.
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– Faculdade de Educação, Uerj. Rio de Janeiro, 2007.
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O cotidiano do SAM: histórias e imagens


Tânia Mara Pedroso Müller

Iniciei este estudo1 a partir do encontro fortuito de centenas de fotografias do Serviço de Assistência ao Menor,
perdidas nos arquivos da Faetec, onde se localizava a antiga Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (Funabem), 1
Este texto foi escrito tomando
antes, Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Tive como objetivo investigar a trama histórica que originou a pro- como referência a minha tese
dução e a utilização das imagens do cotidiano de meninas e meninos do SAM no ano de 1961 pelo Estado, especifi- de doutoramento (cf. Muller,
2006).
camente pela Agência Nacional.

Seguindo a informação de que foi constituída uma Comissão de Inquérito para apurar denúncias divulgadas
pelo Jornal do Brasil, saí à procura de documentos produzidos por esse grupo, que pudessem revelar sua proposta de
trabalho, trajetória metodológica, resultados e como as fotografias foram utilizadas no relatório.

Recuperando o caminho do SAM, descobri que todo o seu acervo faz parte do Fundo da extinta Fundação
Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FCBIA), órgão que substituiu a Funabem, mas que ainda não estava
catalogado. Contando com a gentileza e presteza dos funcionários do Arquivo Nacional que se dispuseram a procu-
rá-lo, entre tantos materiais guardados, conseguimos, surpreendentemente, encontrar o Relatório Final da Comissão.
Acasos!?!.

Este texto foi organizado da seguinte forma: começo contextualizando a produção de imagens pela Agência
Nacional, resgatando um pouco de sua história. Em seguida, relato o processo de constituição da Comissão de Sin-
dicância e sua trajetória de investigação, para ao final apresentar o cotidiano dos meninos e meninas nas escolas do
SAM revelados no relatório produzido, cujas fotografias fizeram parte. Assim situadas, me proponho a fazer a leitura
de algumas imagens.

As fotografias da Agência Nacional

Vários governos, em diferentes momentos, utilizaram-se da fotografia para registrar seus feitos. Mas essa prática
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se firmaria com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável por toda a produção
e controle das notícias e fotografias do Estado, durante o Governo Vargas (Oliveira, 2001, p. 53). Tinha como objetivo
disseminar os ideais do Estado Novo, as realizações governamentais e o controle sobre as informações que deveriam
ser noticiadas pela imprensa.

O DIP exerceu esse controle de diferentes maneiras: pela censura, quando um censor permanecia diariamente
dentro dos jornais, definindo as matérias que poderiam ou não ser publicadas; pela isenção nas importações das cotas
de papel, “no caso dos jornais que deixassem de colaborar essa isenção era suprimida”; e também, pela concessão das
verbas de publicidade, visto que o Departamento coordenava a distribuição dos recursos oriundos de diferentes ins-
tituições públicas, repassando apenas aos jornais de sua predileção ou que apoiavam o governo. Com isso, conseguia
garantir e manter o monopólio das informações.

A criação do DIP resultou das modificações ocorridas na política de propaganda do Governo. O primeiro
órgão fundado foi o Departamento Oficial de Propaganda (DOP), em 1931, subordinado ao Ministério da Justiça e
Negócios Interiores. Em 1934 tornou-se Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), substituído em
1938 pelo Departamento Nacional de Propaganda (DNP). Em 1939 virou DIP. Esse órgão passou a ser subordinado à
Presidência da República, tendo entre seus objetivos fiscalizar as atividades da imprensa e propaganda em todo territó-
rio nacional. Seu poder foi ampliado em 1940 com a criação de um Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda
(DEIP) em cada estado brasileiro. Com o enfraquecimento do Estado Novo, o DIP perde sua função inicial. Extinto
em 1945 teve suas atribuições transferidas para o Departamento Nacional de Informações (DNI), que comandava
diversos órgãos, entre eles a Agência Nacional.

A Agência Nacional tinha como função a “distribuição do noticiário e serviços fotográficos vinculados ao
Governo à imprensa da Capital e Estados” (art. 14, Decreto 7.582, de 25/05/45). Apesar de ser referida pela primeira
vez no decreto que criou o DNI, o próprio documento traz indícios de sua existência desde 1934. Em 1967 ampliou
sua importância ao ser desvinculada do DNI, subordinando-se diretamente ao Gabinete da Presidência da República.
Tornou-se Empresa Brasileira de Notícias (EBN) pelo decreto 83.993, em 19 de junho de 1979.

Até a década de 1950, a AN foi responsável pela distribuição de 60% das matérias publicadas nos jornais, de-
crescendo para 20% na década de 1960 (Oliveira, 2001, p. 53). Ainda assim, somente os jornalistas registrados no DIP
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podiam cobrir organismos oficiais, o que subjugava o repórter ao departamento. Tanto as notícias quanto as imagens
oficiais reproduzidas nos jornais representavam a ótica do Estado e carregavam a ideologia do governo ou da adminis-
tração a qual estavam submetidos.

Essas informações nos fazem entender o modo de produção e usos das fotografias realizadas pela Agência
Nacional, e compreendê-las como fotodocumentarismo, como definiu Sousa (2000), por comportar as seguintes ca-
racterísticas: as fotografias apresentam um tema bem demarcado; são atemporais; retratam histórias de sujeitos margina-
lizados e anônimos (ainda que representem a visão do Estado sobre eles); e foram produzidas em quantidade suficiente
para compor um conjunto documental. Em relação ao SAM, pode-se dizer que a qualidade e profundidade do material
produzido permitiram salvaguardar o passado de crianças e adolescentes tutelados pelo Estado, e, portanto, podem ser
vistos como documento/monumento da memória coletiva (Le Goff, 1990).

Antes de analisar as fotografias produzidas, tentei responder algumas questões: Como foi composta essa comis-
são? O que fez e o que produziu? A partir de que documentos e argumentos o grupo organizou seu discurso? Com
que tipo de dados sustentou sua argumentação? O que pretendia com o documento final? A quem se dirigia? De que
forma a fotografia foi incorporada no texto? Enfim, essas são algumas das perguntas que direcionaram os próximos
passos.

O relatório da comissão de sindicância

Um inquérito, como disse Foucault, é


o procedimento pelo qual, na prática judiciária, se procurava saber o que havia ocorrido. Tratava-se de
reatualizar um acontecimento passado através de testemunhos apresentados por pessoas que por uma ou
outra razão – por sua sabedoria ou pelo fato de terem presenciado o acontecimento – eram tidas como
capazes de saber (1996b, p. 60).

Trata-se de apurar os dados através de testemunhos e documentos de modo que permitam reconstruir uma
história de forma rigorosa e criteriosa.

A comissão – CSSAM como se intitulou – instalou-se no dia 29 de março, no gabinete do ministro no Rio de
Janeiro. Comprovando desde o início as irregularidades – maus tratos; superlotação; ausência de registro de identifica-
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ção dos menores e prontuários; existência de meninos e meninas maiores de dezoito anos internados; inadequação das
instalações e ausência de espaços próprios para higiene dos internos; funcionários residindo na instituição, ocupando
salas destinadas às crianças; inexistência de serviço de triagem; convívio de meninos e meninas de diferentes idades;
entre outras –, propôs medidas imediatas para atenuar “os danos que vinham causando aos menores, desvalidos e trans-
viados ali internados ou em trânsito, sob inteira responsabilidade do Estado” (idem, p. 5).

Após citar as primeiras providências adotadas, afirmara que esse panorama generalizado de deteriorização ins-
titucional era “consequência da absoluta falta de administração decorrente de incapacidade, desinteresse, displicência e
irresponsabilidade dos principais responsáveis pelo funcionamento daquele estabelecimento assistencial” (idem, p. 8).
Acusara especialmente os inspetores dos alunos, responsáveis pelos “maus tratos, espancamentos (constatados no Ins-
tituto Macedo Soares, no Instituto Coração de Maria, na Escola João Luiz Alves, e na Casa do Menor Trabalhador) e
corrupção de menores” (ibidem). Surpreende que tais denúncias não foram amplamente divulgadas, solicitando igual-
mente a prisão dos responsáveis e do Diretor por sua conivência e omissão.

Estabelecera uma metodologia de trabalho “fundamentada em pressupostos científicos”, que valorizava os se-
guintes procedimentos: entrevistas, questionários, leitura de documentos, processos e a observação in loco, seguidos de
análise de dados. Enfatizou que “essa metodologia pressupunha um registro preciso da situação investigada, na qual a
fotografia permitiria dar visibilidade à realidade” (idem, p. 20), além de confirmá-la.

O material obtido, apurado e analisado, e as visitas realizadas tiveram como diretriz o Regimento do SAM
(aprovado em 26/10/57 pelo dec. 42.510) e resultaram na produção de um relatório composto de dezenove volumes
(oito volumes e onze anexos, totalizando 7.547 folhas e 340 fotografias), encadernado em brochura pelo DNI, e en-
viado ao Ministro da Justiça, em 24 de outubro de 1961, quando se desfez a comissão.

Ao utilizar o regimento da instituição como marco do trabalho e da avaliação de sua organização, o grupo
definira sua proposta de identificar a adequação institucional através do documento que a rege. A sua intenção era ve-
rificar se o SAM estaria cumprindo adequadamente seu papel, a partir do desvendamento dos dispositivos disciplinares
estrategicamente exercidos. Assim, se o previsto era cumprido e se o espaço e tempo eram organizados conforme o
regulamento significaria que a instituição desempenhava sua função principal: dirigir condutas (Foucault, 1996a).
40

Tomo esse material como narrativas do cotidiano de crianças e adolescentes sob tutela do Estado. Minha proposta
era recuperá-las, visto sua importância para a compreensão das histórias do cotidiano das diversas vidas que passaram
pelo SAM, e não expô-las significaria calá-las mais uma vez, condenando-as novamente ao abandono e esquecimento.
Empilhar, arquivar, silenciar é o que se tem feito com as histórias de meninos e meninas que ficaram, autoritariamente,
ou por total falta de opção, sob os cuidados do Estado.

Defino essas crianças e adolescentes como aqueles que “ainda que encarcerados num mesmo perfil, mostraram-
se diferentes em suas singularidades porque tiveram suas próprias formas de resistência” (Bernal, 2004, p. 34). Resis-
tências tramadas silenciosamente, reveladas na inadequação do comportamento ou por burlarem as regras impostas, nas
fugas constantes ou por formas mais violentas como as rebeliões. E como disse Foucault,
existem várias formas de lutas de resistência ao poder, dentre as quais merecem destaques as lutas contra
o assujeitamento; as lutas de contestação e insubmissão. Lutas de recusa à aceitação de violação das
identidades e subjetividades. Lutas contra a imposição de formas de ser. Luta contra as normalidades
(1996a, p. 28).

Lutas – denominadas táticas por Certeau – que foram travadas no cotidiano institucional, que subverteram a
ordem estabelecida, que podem ser reveladas nos relatos encontrados, e, por isso, a importância em recuperá-los. A
leitura dessas narrativas fez-me lembrar das poéticas palavras do autor quando ressaltou que “é preciso despertar as his-
tórias que dormem nas ruas que jazem de vez em quando num simples nome, dobradas neste dedal como as sedas da
feiticeira” (2003, p. 201). Despertar essas histórias, escondidas entre as folhas de papel, permitem não somente dar voz
a “sujeitos invisíveis”, mas revelar as marcas de um cotidiano de omissão e violência, porém também de resistências.

Entendo ser necessário resgatar as conclusões apresentadas pela comissão, para ajudar na leitura das imagens
produzidas. Esse recurso, que propicia a intertextualidade, permite recuperar a história das fotografias de crianças e
adolescentes do Serviço de Assistência ao Menor e situar a fotografia como instrumento e objeto de pesquisa.

Histórias de meninos e meninas do SAM

Começarei por narrar a trajetória de um ex-aluno do SAM, que se encontrava cumprindo pena no Presídio
Lemos de Brito no Rio de Janeiro, em 1961.
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M.G.M. nasceu em quatro de junho de 1934, em Minas Gerais. Era filho de boiadeiro e ainda pequeno perdera
a mãe. Ficara sob a guarda de um tio, funcionário do Ministério da Aviação, que o trouxera para o Rio de Janeiro para
estudar. Morou no Largo da Abolição e cursou a 3ª série primária no Colégio Guarani. Fugiu de casa nessa época,
quando foi preso, levado para a Delegacia de Menores e encaminhado para o SAM em treze de abril 1947, quando foi
classificado como “desvalido”. Fugiu novamente. Em 24 de junho de 1954, já adulto, foi preso por homicídio e assalto
à mão armada e condenado a sessenta e quatro anos de reclusão.

Sua história de vida, dos doze aos vinte anos, marcou-se por entradas, fugas e transferências nas diferentes insti-
tuições do SAM, como descrito: alojamento provisório; Patronato Agrícola Lindolfo Coimbra; alojamento provisório;
desligado; alojamento provisório; Patronato Agrícola São José; evadido; alojamento provisório; Patronato Agrícola Lin-
dolfo Coimbra; alojamento provisório; Instituto Governador Macedo Soares; evadido.

Ele fora visitado na penitenciária pela comissão, que pediu a narração de sua história e que, transcrita no rela-
tório, revela como o esquecimento de meninos ou meninas era parte da estratégia institucional. Por outro lado, reflete
a avaliação do jovem sobre a instituição e do período em que lá esteve, servindo de referência para compreender o
cotidiano dos diversos meninos e meninas que passaram pelas escolas do SAM.

Ao ler os relatos e ver as fotos dos meninos que residiam na Ilha do Carvalho, o sentimento no olhar, entre
ameaçado e ameaçador, dominando a fotografia, não foi difícil lembrar a frase dita no romance O Atheneu, de Raul
Pompéia: “Olhe, um conselho: faça-se forte aqui, faça-se homem: os fracos se perdem” (1998, p. 46). Quando Pompéia
inicia a frase de seu personagem dizendo “olhe, um conselho”, e não “escute, um conselho”, ele situa o olhar acima do
ouvir. Não basta ouvir, é preciso mais: olhar. Perceber, observar, estar atento, notar os detalhes, as diferentes situações. O
conselho necessário àquele que chega, por alguém que já experimentou, provou do dissabor de descobrir, na “marra”,
as maldades dos homens.

“Faça-se forte, faça-se homem”. Na frase está implícita a informação: – não chore, não demonstre dor, não seja
criança. Negue a infância e a fraqueza que ela traz ou representa. Esqueça-a. Infância perdida...

“Menores do SAM”, “menores transviados”, “delinquentes”, “desvalidos”. Meninos e meninas solitários e


abandonados nas instituições que os protegiam. Sem saudade, sem esperança, sem começo, sem fim...
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Muitos casos descritos pela Comissão exemplificam a situação de violência e maus tratos que frequentemente
os alunos do SAM foram submetidos e a conivência e inoperância administrativa de seus diretores na apuração dos
fatos e punição dos culpados.

As cenas observadas nas fotografias, complementadas por esses relatos, não somente causam indignação como
responsabilizam toda a sociedade pelas condições de vida desses meninos e meninas e todos aqueles que passaram pelo
SAM. Nesse momento, é impossível não lembrar os versos do poema Legião Estrangeira, de Clarice Lispector (1964, p.
107) que acusam e condenam essa omissão:
Nós, os adultos, já teríamos encerrado o sentimento.Mas nos meninos havia uma indignação silenciosa,E
a acusação deles é que nada fazíamos....

Indignação! Essa é a palavra.

O que fizemos por esses tantos meninos e meninas? Como reagimos às notícias e informações apuradas sobre
as condições de vida na instituição? Quais as providências tomadas sobre os fatos? Quais os sentimentos despertados
no resgate das histórias e pelas leituras de tantos documentos? E, sobretudo, o que se fez para mudar o cotidiano desses
tantos meninos e meninas nos lugares que os abrigavam?

O cotidiano do SAM

O SAM surgiu “como uma tentativa de centralizar a assistência no Distrito Federal” (Rizzini, 1995, p. 276) com
a responsabilidade pela orientação e fiscalização das instituições de atendimento a crianças e adolescentes órfãos que
cometiam infrações penais. Em 1944 passou a coordenar as ações assistenciais em nível nacional.

Era assim a trajetória dos meninos e meninas no SAM: primeiro as crianças e adolescentes deveriam ser acolhi-
dos pelo setor de triagem, e após o necessário período de observação e de acordo com o resultado dos exames realiza-
dos, eram encaminhados para internação em uma de suas unidades, a fim de ministrar-lhes ensino, educação e tratamento
“sômato-psíquico” até o seu desligamento. Para tal, pressupunha um grande aparato institucional. O que de nada valia,
pois não funcionava como estabelecido.

O SAM era constituído de: I − Órgão Central; e II − Órgãos Executores que englobavam: Instituto Profissional
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Quinze de Novembro, Escola Agrícola Artur Bernardes, Escola Wenceslau Braz, Escola Granja, Casas-lar, Instituto São
João Batista, Escola Feminina de Artes e Ofícios, Pavilhão Anchieta, Instituto Governador Macedo Soares, Escola João
Luiz Alves, Instituto Padre Severino, Instituto Coração de Maria e Hospital Central.

O Pavilhão Anchieta, o Instituto Governador Macedo Soares, a Escola João Luiz Alves e o Instituto Padre
Severino destinavam-se a meninos infratores das leis penais. O Instituto Coração de Maria, a meninas infratoras. As
Casas-lar eram para meninos de um a seis anos e o Instituto São João Batista acolhia meninas de um a seis anos. A
Escola Granja e o Hospital Central atendiam a meninos excepcionais de mais de doze anos.

Havia no relatório, após cada descrição, uma indicação – vide fotos – para que o leitor se reportasse ao volume
no qual estavam as fotografias, afirmando: “as fotografias anexas dizem melhor do que as palavras o que aí ocorre”
(idem, p. 137).

A comissão circunscreveu minuciosamente as condições degradantes e desumanas em que viviam mais de três
mil crianças e adolescentes confinadas nas instituições. Cada uma delas com uma série de problemas, que submete-
ram os alunos e alunas ao máximo de privações: amontoamento, promiscuidade, maus-tratos, negligência, abandono e
inexistência de qualquer privacidade ou preservação de sua individualidade, além de não existir nenhum projeto edu-
cacional e de inclusão social. Esse cenário permite que se caracterize o SAM como um espaço meramente repressivo,
segregador, punitivo, de permanente desrespeito à dignidade e aos direitos humanos. Na verdade, retrata o desinteresse
do Estado, mas também a inoperância, a incompetência e em alguns casos até a perversão dos seus dirigentes.

A comissão definira o SAM como “um depósito de sucata”. Entendendo sucata como coisa que não se quer
mais, como um “depósito de restolho humano”. Situava-o como um lugar para aqueles que ninguém queria: crianças
pobres. Por isso, é possível compreender por que a sociedade se calou ante aos fatos como também os seus dirigentes.
De outro modo, o silêncio perante a situação narrada é incompreensível e injustificável.

Pensar esse cotidiano implica em analisar os elementos que o compõe, desvelando suas origens, seu significado
e sua relação com os objetivos sócio-políticos e econômicos daquele momento histórico (Alves, 2003). As narrativas
apresentadas demonstram que as falhas e as deficiências institucionais se acumularam e não foram corrigidas por falta
de vontade política das autoridades competentes – apesar dos diversos planos, comissões, projetos, denúncias e críticas
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apresentadas –, ou por quase todos aqueles que tiveram poder para alterar o destino de crianças e adolescentes que
estavam sob a tutela do SAM. O panorama traçado traduz a falência do sistema até então adotado, comprovadamente
condenado, do qual o SAM era um simples instrumento, e o desinteresse da sociedade em questionar o tratamento dis-
pensado pelo Estado a esse grupo populacional.

Leitura das imagens do cotidiano

A disciplina é uma tecnologia política capaz de ordenar os espaços e controlar os tempos dos indivíduos, de-
fendeu Foucault (1996a). Ela se exerce em locais fechados, protegidos, tornados um universo em si mesmo, com regras
e valores absolutos para seus moradores, cujo horizonte mais longínquo que podem vislumbrar era seus muros.

A arte de disciplinar se impõe particularmente ao que é rotineiro, indissociável e inconsciente, com o fito de
impregnar no “disciplinado” as marcas de sua subordinação. Ela esquadrinha e compartimentaliza todo o tempo dos
sujeitos, exercendo o controle total sobre seus corpos.

Ao dispor um universo cujo espaço era calculado, o tempo esquadrinhado, as atividades regularizadas, e assim
passíveis de punições pelo menor erro, estabelecem um sistema marcadamente corretivo, em que “castigar é exercitar”.
Nesse contexto, “o internato aparece como um regime de educação o mais perfeito” (Foucault, 1996a, p. 130).

Não é possível pensar o internato sem considerar as estratégias de ordenação dos espaços e o controle dos
2
Nilda Alves chama a atenção para
tempos dos sujeitos. Não se pode separar os espaços onde as atividades são aprendidas dos tempos destinados a elas, essa questão quando afirma que
pois espaço e tempo são indissociáveis. Espaços e tempos de aprender: aprender pelo trabalho, pelo exercício, pela ocupa- algumas palavras, por sua na-
tureza, não podem funcionar
ção, cujos corpos são tornados dóceis. Ao tentar organizar séries com essas fotografias, essa reflexão se concretiza. Elas separadas, pois uma não existe
compõem um único conjunto que denominei como espaçotempo2 de aprender. sem a outra e assim sugere a sua
grafia de forma inseparáveis:
Se considerarmos a assertiva de Sontag – “fotografar é conferir importância a algo realizado ou acontecido” espaçotempo é uma delas (cf.
Alves, 2003).
(1979, p. 34) –, pode-se dizer que as fotografias da AN garantiram a autenticidade do texto, logo importância, servindo
tanto como testemunha, mas também como sustentação da narrativa e, com isso, como informação.

Assumindo a ideia de fotografias como um universo pleno e fértil de informações, a leitura do relatório preen-
cheu as lacunas e dúvidas na interpretação das imagens, possibilitou responder como, por que, para quê foram geradas
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e conhecer o cotidiano institucional, permitindo a interrelação entre texto e imagem e sua contextualização.

Numa primeira leitura das imagens, vejo: crianças correndo; moças brincando de roda; meninos posando para
a foto; garotos sorridentes carregando cestas de verduras; alunos uniformizados em sala de aula frente ao quadro de giz
cheio de matérias; uma ampla área de plantio; meninos em atividades nas diferentes oficinas de aprendizagem – car-
pintaria, barbearia, culinária, marcenaria, agricultura, pecuária – com seus equipamentos. As imagens aparentam um
cotidiano tranquilo e harmônico, como se estivessem num ambiente perfeitamente funcional. Essas imagens podem
induzir o leitor/observador à ideia de que no SAM, apesar das críticas, as crianças eram felizes, tratadas e educadas.

As imagens retratam também os diferentes espaços onde se constroem os cotidianos: banheiros, refeitório, cozi-
nhas, dormitórios e pátios. Algumas são carregadas de dramaticidade pelo seu estado de depredação. Outras enfatizam
a sua grandiosidade e abandono: os galpões das oficinas, os terrenos, as plantações e os campos cultivados.

Numa segunda leitura, confrontada com o texto produzido pela comissão, que se reportou às fotografias, ou
como disse, “as fotografias anexas dizem melhor do que as palavras o que aí ocorre”, pode-se ver o cotidiano vazio de
objetos pessoais e de atividades dinâmicas e interessantes. O conjunto de imagens representa o estado de decadência
e de penúria em que as crianças viviam, constatado pela escassez do mobiliário, de material e de vestuários, ou pelo
desmonte e destruição dos ambientes de uso diário e coletivo.

As imagens fizeram-me recordar da análise de Pedro Vasquez, quando estudou as fotos de escravos e seus se-
nhores produzidas por Militão no séc. XIX:
Chama a atenção, como sempre nas fotografias de escravos, os pés descalços, evidência maior da condição
servil, a tal ponto que a primeira posse almejada pelo escravo alforriado era um par de calçados (1993, p. 11).

O que as pessoas vestem conduz a uma interpretação de sua conduta e papel social, por isso, a imagem dos
pés descalços dos meninos denota uma condição de submissão e ressalta sua ausência de posses. Mas, a leitura também
revela a negligência do Estado em fornecer o mínimo para garantir o bem estar e reforça a ideia de descaso.

Ao retratarem uma quase maioria de alunos negros (pretos e pardos), as imagens indicam que esse segmento
compunha um número bastante alto, confirmando a tese de que a pobreza tem cor, a exclusão tem cor e a cor é negra
(Lima, 2004, p. 170).
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Algumas fotos se destacam do conjunto, permitindo uma leitura mais particularizada. Tomo como referência
tanto a forma de leitura do mundo ocidental, que se inicia da esquerda para a direita, ou o modo de leitura em diagonal,
do canto superior esquerdo ao canto inferior direito, seguindo o mapa da zona ótica, como definiu Collaro (1996).
Ao observar a foto dos meninos enfileirados começaremos a olhar do primeiro ao último, quando nos depararemos
com um muro e um matagal atrás, podendo ser esse o elemento privilegiado na leitura. O mato, por representar algo
Agência Nacional/1961
que cresce sem previsão e planejamento, dá a sensação de descontrole, instabilidade, juntamente com a inadequação da Instituto Macedo Soares
roupa pendurada no muro; revela o desequilíbrio simbólico da imagem, logo da instituição, em contraposição à cena
de disciplinamento que a fila representa. Desse modo, sobre os personagens coletivamente retratados repercute essa
noção de abandono.

Outros elementos ajudam na leitura: a ausência de camisas e sapatos, os gestos e olhares dos meninos, como
também o chão de terra batida, que retira a ideia de progresso tão apregoada na época. A inexistência de qualquer obje-
to que os identificassem como alunos e aprendizes não permite situá-los num contexto institucional de aprendizagem,
mas, ao contrário, remete a ideia de que são meninos submetidos a duras condições de vida. Alguns teriam uma idade
acima de dezoito anos, o que denuncia a impropriedade e irregularidade em permanecerem numa instituição destinada
a meninos na faixa etária de catorze a dezoito anos.

Ver as moças brincando de roda pode ser um indicativo de que o fotógrafo tenha sugerido tal ação. Ainda
que a brincadeira seja inadequada para a idade das meninas, humaniza-as, e destaca que, apesar de grandes, elas eram
meninas como todas as outras, mas que estavam ali trancadas, descalças, de cabelos curtos, despersonalizadas nos largos Agência Nacional / 1961
camisolões, sem nenhum enfeite que valorizasse sua feminilidade. A centralização do foco nas “moças brincando” deixa Instituto Coração de Maria
ver: os quartos ao fundo que se abriam para o pequeno quadrado de cimento onde elas passavam seus dias; a menina
esticando no chão a roupa lavada para secar ao sol e, portanto, a responsabilidade impingida; a obrigatória roupa branca
e larga, sem forma e sem cor que vestiam, amarrada por tiras de pano, que as uniformizavam e despersonalizavam-nas.
E que a grande maioria é negra.

Olhar a imagem dos muitos meninos agrupados no refeitório escuro, de paredes azulejadas, com longas mesas
de cimento, sentados sem pratos, talheres ou toalhas, alguns muito sérios e entediados, lembrou-me de uma descrição
Agência Nacional / 1961
de Certeau: “Uma comida feita para muita gente, sem sabor e sem identidade – nos refeitórios barulhentos e sombrios, Instituto Coração de Maria
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e só me lembro daquelas batatas de todo dia, daquele arroz empapado e daquela carne de nome indefinível” (2003, p.
213). Que cheiro teria esse espaço?

Para prosseguir trago uma foto de um grupo de meninos raspando, lavando ou enxugando (não há como saber)
os pratos tortos de alumínio, com os pés descalços no chão frio da copa, sob o olhar rigoroso do inspetor, enquanto Agência Nacional / 1961
o último menino da fila próxima a ele observa seu olhar. Como que a emoldurando, destacam-se as paredes sujas da Escola Wenceslau Brás

cozinha. Pergunto-me: era ali onde diariamente três refeições eram feitas e servidas aos diversos meninos internados? É
possível compreender as afirmações feitas pela comissão, quando apontara que os meninos eram obrigados a participar
dos serviços de limpeza e manutenção e que isso era considerado um castigo. Ao ver os meninos ali trabalhando, surge a
questão: o que fizeram para estarem sendo punidos?

Essa cozinha ainda é um retrato um pouco melhor do que a frequentada pelas meninas do Instituto Coração de
Maria. Paredes descascadas, azulejos quebrados e cheios de limo. Embaixo de uma bancada encontra-se guardada uma
panela de alumínio, velha, suja e gasta, utilizada, talvez, no cozimento das refeições diárias. Conclui-se que a alimen- Agência Nacional / 1961
tação e nutrição não eram consideradas como parte dos cuidados obrigatórios dispensados às alunas, mas, sim, parte Escola Artur Bernardes

de um processo de disciplinamento, cujo princípio em vigor baseava-se no mote: “quando o corpo padece, a alma se
fortalece”.

As imagens das salas de aula são iguais às de tantas outras salas: a professora séria à frente da turma, o quadro
de giz cheio de “deveres” e os meninos sentados em fila, uniformizados e calçados. O que causa espanto e surpreende
nessa foto é exatamente essa cena: sua perfeição. Ao olhá-la tem-se a ideia do pleno funcionamento das atividades es-
colares e que o ensino, apesar de rigoroso, ocorre da forma esperada.
Agência Nacional / 1961
Instituto Coração de Maria
Cotejá-la com os documentos e com outra foto chama a atenção para a carteira escolar, provocando estranheza:
o trilho montado no chão, no qual carteira e cadeira se encaixam, não permitindo qualquer alteração ou modificação
do lugar. O pedestal sob o banco o fixava no lugar, mantendo os meninos imobilizados, sem poderem ir para frente ou
para trás. Entra-se certeiro como um parafuso, produzindo uma fileira ordenadamente montada e solidamente presa ao
chão. Essa imagem denota a ideia de que a sala de aula é organizada como uma engrenagem perfeita e, portanto, parte
do universo onde a arte de disciplinar se impõe. Agência Nacional/1961
Pavilhão Anchieta
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Ao analisar o contexto constata-se, não que uma foto mente, já que aquilo realmente estava acontecendo, mas
que um cenário pode ter sido arrumado. Ao juntar textos e imagens ou ao olhar outra foto, o teatro se desfaz. A sala
de aula, de tão pouco usada, toma outro destino ou uma nova função. E por que não usá-la como área coberta para
secagem dos uniformes e calcinhas das meninas?
Agência Nacional / 1961
A foto da oficina de trabalho revela sua amplitude e a grandiosidade dos equipamentos, mostrando o inves- Instituto Padre Severino

timento empregado na atividade e a expectativa nessa proposta pedagógica, que tinha o trabalho como princípio
educativo, descrita por Maria Ciavatta como “escola do trabalho” (2002). Mas, isso se contrapõe ao ver o retrato dos
meninos sozinhos, sem professores ou um adulto próximo para orientá-los e na desordem do espaço: materiais e ferramentas
espalhados, amontoados pelos cantos, jogados uns sobre os outros.

Em outra oficina o fotógrafo privilegiou o enquadramento cujo foco é o espaço, ressaltando as bancadas de Agência Nacional / 1961
Instituto Coração de Maria
trabalho, as condições dos instrumentos e do material disponibilizados displicentemente para os meninos, desprovidos
de quaisquer medidas de segurança. Os sapatos produzidos não eram para o próprio consumo, visto estarem perma-
nentemente descalços. Exemplifica que não tinham acesso àquilo que produziam e não se apropriavam do produto de
seu próprio trabalho.

A imagem de meninos com idade entre doze a catorze anos trabalhando no campo sob o sol, carregando na
Agência Nacional / 1961
cabeça grandes cestos de couve recém colhidas, vestidos com velhos uniformes, descalços no chão de terra batida, pa- Escola João Luiz Alves
rando sorridentes, pelo minuto de alívio, talvez, para posar para a foto, tendo ao fundo os terrenos onde realizavam as
muitas idas e vindas, retrata a dureza do trabalho executado por garotos tão novos.

As fotos dos ambientes interiores, principalmente as dos banheiros, revelam que a higiene não era objeto de
preocupação dos dirigentes das instituições. Os modelos de sanitários primavam pelo primitivismo – vaso turco, onde
o sujeito faz suas necessidades fisiológicas de cócoras – e a total ausência de privacidade – ou sanitários sem portas e Agência Nacional / 1961
mictórios sem vaso. Instituto Profissional Quinze de Novembro

Uma foto adiante mostra os quadros na parede do banheiro cujas escovas de dente enfileiradas ficavam pen-
duradas. Essa pretensa organização não impediu o fotógrafo de retratar o tempo de uso e a sujeira das escovas, que só
perdiam para as paredes com sua crosta de limo. Ele foi muito feliz em fazer essa imagem que serve como símbolo do
Agência Nacional/1961
Escola Wenceslau Brás
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SAM: o descontrole da instituição de controle.

Mas é possível compreender realmente o que foi o cotidiano de meninos e meninas do SAM? Para tentar res-
ponder essa questão, tomo a lição que aprendi com Nilda Alves, quando alerta que:
Para apreender a “realidade” da vida cotidiana, em qualquer dos espaçostempos em que ela se dá, é
preciso estar atenta a tudo o que nela se passa, se acredita, se repete, se cria e se inova, ou não. Mas é
Agência Nacional / 1961
preciso também reconhecer que isso não é fácil, pois o ensinado/aprendido me leva, quase sempre, a Pavilhão Anchieta
esquemas bastante estruturados de observação e classificação e é com grande dificuldade que consigo sair
da comodidade do que isto significa, inclusive a aceitação pelos chamados “meus pares”, para me colocar
à disposição para o grande “mergulho” na realidade (2002, p. 6).

Nesse sentido, para entender o cotidiano vivido e tecido pelos praticantes, é preciso sentir, mais do que ver.
Sentir o cheiro de banheiro sujo pelo uso; sentir a pele roçando no forro áspero do colchão de palha; sentir o corpo
apertado na cama, sem poder se mexer, preso entre outros corpos no meio da noite; sentir cãibras por dormir sentado
com as pernas dobradas num cubículo de um metro quadrado; sentir o cheiro da comida azeda ou de corpos suados
quando se entra num refeitório lotado; sentir o frio do chão gelado ou as pedras da estrada de terra sendo pisadas pe-
los pés descalços; sentir a pele arder após horas de exposição ao sol ou a garganta seca de sede; sentir o calor e o suor
escorrendo pelo corpo, sabendo que não há uma água fresca para asseá-lo e uma toalha macia e limpa para secá-lo;
sentir a barriga doendo de fome e a tontura que dá e saber que nada pode ser feito para saná-la; sentir a dor no dente
latejando sem parar um só instante; sentir a mão inchada das pancadas da palmatória, ou os pernas queimando pela
surra de “vara de marmelo” ou de cinturão... (como a lembrança de Infância contada por Graciliano Ramos) e tantos
outros sentires possíveis no cotidiano de um internato.

Será que há algo mais a se ver nas fotos que o fotógrafo não tenha visto? Para essa reflexão me aproprio das
ideias de Certeau que podem me ajudar nessa resposta. Mesmo que os meninos e meninas não possam sair ou fugir
das normas estabelecidas pela instituição onde estão internados, os praticantes do cotidiano instauram ali mesmo formas
criativas de resistência, as táticas, que “não obedecem à lei do lugar” (2003, p. 93). Os praticantes, que são todos aqueles
que realizam as práticas cotidianas – ler, comer, cozinhar, brincar – reorganizam à surdina novas formas de agir e circular
nesses espaçostempos, inventando e combinando para si novas “maneiras de utilizar a ordem imposta do lugar” (idem, p.
95).
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Como disse Certeau, são “articulações práticas desenvolvidas no diálogo diário com outros praticantes do cotidiano”
(idem, p. 66). Diálogos estabelecidos que permitiram superar as dificuldades ou suportá-las. Criar confrarias, apoian-
do-se mutuamente, amenizando a dureza do cotidiano e possibilitando a interação e a construção de afetividades. Os
meninos e meninas submeteram-se, não de forma passível, mas reagindo e resistindo, através do uso de táticas que ga-
rantiram a sobrevivência, a sanidade e a construção de redes de subjetividades, numa “hábil utilização do tempo”.

Até quanto resistiram? Pode-se dizer que muito, haja vista as centenas de pessoas que passaram pelo SAM, e
que apesar dele, constituíram família, trabalharam, estudaram... fizeram histórias. Eis o sentido em contá-las. Esse tema
simples e humilde, que revela um grupo permanentemente humilhado, da trajetória escondida de uma população in-
justiçada, sem direito à justiça, embora tutelado por ela. E como narrou o poeta Ferreira Gullar:
E a história não se desenrola apenas

nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais.

Ela se desenrola também nos quintais, entre

plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas

de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas.

Nos namoros de esquinas.

Disto eu quis fazer minha poesia.

Desta matéria humilde e humilhada, dessa vida

obscura e injustiçada, porque o canto não pode

ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o

nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz...

Por isso, precisava contar esse conto, não como fantasia, ficção, mas narrativa organizada de fatos que permitiram
revelar às pessoas que, apesar das denúncias e de todo o investimento na montagem de uma nova comissão para apurar
as irregularidades no SAM, esses meninos e meninas não tiveram vez e não eram ouvidos. Apesar das fotos mostrarem
as condições cotidianas de vida das crianças e adolescentes, eles foram vistos apenas como objetos que compunham
um cenário e não sujeitos que deveriam ser olhados, cuidados e protegidos.
51

Contudo, o SAM existiu (e os meninos e meninas resistiram) por mais três anos, pois somente em 1964 foi
extinto, dando lugar à outra instituição, Funabem, criada para corrigir as distorções e transformar totalmente as escolas
do SAM. Na análise do pedagogo Luiz Bazílio, a instituição surge com uma proposta diferenciada do SAM, mas que
pouco foi concretizada:
Oficialmente, aponta-se para uma mudança de enfoque. A visão do “menor” como ameaça social cede
lugar à da criança carente e abandonada. As práticas assistencialistas passam a ter prioridade maior que as
práticas punitivas. (...) legalmente, a internação seria a última alternativa de assistência e ressocialização
do “menor”. A prática, no entanto, termina consolidando a Funabem com a mesma lógica carcerária com
a qual dizia romper, ampliando o controle e a centralização do poder de tutela do Estado (Bazílio, 1985,
p. 71).

E essas fotografias? Foram posteriormente guardadas e esquecidas numa gaveta qualquer, de uma mesa qual-
quer, quando foram, e só agora, novamente reveladas. Novas leituras, outras interpretações...

Uma história de fundação e fundamento...

Não se pode negar a importância da fotografia como documento/monumento da memória coletiva de um


grupo, de uma instituição ou de uma sociedade e como recurso que possibilita a reconstrução da história. As fotografias,
neste estudo, permitiram recuperar as histórias de meninos e meninas que tiveram seu passado silenciado quando os do-
cumentos, os quais as fotografias faziam parte, foram arquivados, e desvendar a imagem de criança desejada pela sociedade,
que se utilizou da imprensa para expor seus projetos.

E, ao contrário do que fora divulgado nos jornais da época, sobre a internação ser um ato de irresponsabilidade
ou descaso dos pais, os dados apresentados podem significar que essa era vista como o único recurso da população
pobre para a sobrevivência de seus filhos, de oportunidades de estudo e, portanto, alteração na trajetória de vida da
família.

As narrativas permitem dizer que, ao final de tudo e após todo o massacre, o destino das crianças, em sua maio-
ria, era o de ser devolvidas à rua, sem dinheiro, sem domínio da leitura e escrita, sem profissão, entregues à própria sorte.
O esquecimento da história do SAM e de seus tutelados significa uma tentativa de apagar os vestígios dessa inoperância
52

institucional, da opressão e do longo tempo de descaso da sociedade para com os meninos e meninas (des)protegidos
pelo Estado.

A fotografia pode ser concebida como instrumento e objeto de pesquisa quando ela é tomada como fonte
privilegiada para estudos e pesquisas, ou seja, como recurso utilizado pelo pesquisador para buscar informações sobre
ela mesma ou sobre fatos, lugares e pessoas por ela retratados, produzindo uma reflexão ou investigação que tenha valor
histórico. Mas não há um caminho prévio na pesquisa qualitativa e historiográfica com fotografias. Estabelecer esse
caminho faz parte dos procedimentos metodológicos. As perguntas vão surgindo à medida que as pistas e documentos
vão sendo encontrados, como ensinou Ginzburg.

Entre fotos e papéis, textos e poemas, revirando caixas e arquivos, entre documentos e narrativas, fui revelando
histórias e refazendo as andanças e imagens de gentes que mereciam outras vidas, outras trajetórias...

Termino com um pedaço do conto de Galeano, que vem dizendo...:


Marcela esteve nas neves do Norte. Em Oslo, uma noite, conheceu uma mulher que canta e conta. Entre
canção e canção, essa mulher conta boas histórias, e as conta espiando papeizinhos, como quem lê a sorte
de soslaio.

Essa mulher de Oslo veste uma saia imensa, toda cheia de bolsinhos.

Dos bolsos vai tirando papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história para ser
contada, uma história de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por
arte de bruxaria.

E assim ela vai ressuscitando os esquecidos e mortos; e das profundidades desta saia vão brotando as
andanças e os amores do bicho humano, que vai vivendo, que dizendo vai...
53

Referências bibliográficas
ALVES, Nilda. Cultura e cotidiano escolar. In: Revista Brasileira de Educação. São Paulo: Cortez, n. 23, p.13-38, maio/jun./jul./ago. 2003.
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54

A escola caricaturada
Paulo Sgarbi

Era uma vez...

... uma escola em que, ao terminarem as aulas...

Creio que o Tonucci linkado aí em cima (1997, p. 151) é um bom exemplo de expressão caricatural sobre a
escola. Se não, vejamos o que diz Ferreira (2009):
1. Desenho que, pelo traço, pela escolha dos detalhes, acentua ou revela certos aspectos caricatos de pessoa
ou fato. 2. Teatro. Representação burlesca em que se arremedam ou satirizam comicamente pessoas e
fatos. 3. Reprodução deformada de algo. 4. Pessoa ridícula pelo aspecto ou pelos modos.

Os sentidos 1 e 2 cabem nessa imagem com rara precisão, seja na acentuação da tristeza do afastamento, seja
pela exacerbação da alegria pelas férias, o que, de certa forma, não deixa de ser a alegria pelo mesmo afastamento.
Neste texto, o foco é a escola, propositalmente, aqui, generalizada pela singularização, pois o que me é possível trazer,
ao compreender o gênero caricatural como uma linguagem potente na “leitura” das acontecências de vários “reais”
escolares, são fatos que, por sua recorrência, fazem sentido em muitas escolas de espaçostempos bem diversos.

Numa categorização mais técnica, o desenho de Tonucci é classificado como charge [Representação pictórica,
de caráter burlesco e caricatural, em que se satiriza um fato específico, em geral de caráter político e que é do conhe-
cimento público. (Ferreira, 2009)] ou cartum [Desenho caricatural que apresenta uma situação humorística, utilizando,
ou não, legendas (ib.)], sendo o elemento caricatural a constante nesse tipo de produção gráfica. Pelo senso comum, as
caricaturas são mais identificadas como desenhos de pessoas, mas temos uma produção muito ampla, principalmente
na esfera política, em que os fatos são o centro da cena.
55

Antes de adentrar a escola pela caricatura,

penso ser interessante conversar com Herman Lima (1963, p. 5) sobre essa linguagem:
Na página de abertura de seu livro Rules for drawing Caricatures, with an Essay on Comic Pointing,
editado em Londres em 1788, e que se presume seja a primeira obra dedicada ao estudo sistemático da
caricatura, diz o autor, Capitão Francis Grose, antiquário e armador inglês de muito talento:

“A arte da caricatura é geralmente considerada como um dom perigoso, mais próprio a tornar seu
possuidor temido do que estimado; mas é certamente injusto condenar o abuso a que qualquer arte está
sujeita, como argumento contra a própria arte. Para julgar com isenção o mérito dessa que tencionamos
falar, não devemos esquecer que ela é um dos elementos da pintura satírica, e que, como a poesia desse
gênero, é talvez empregada com maior êxito em vingar a virtude e a dignidade ultrajadas, apontando os
culpados ao público, único tribunal a que êles não podem fugir; e fazendo tremes à simples idéia de ver
suas loucura, seus vícios, expostos à ponta acerada do ridículo, aquêles mesmos que enfrentariam com
desdém censuras atrozes”. [Foi mantida a grafia original nessa e nas demais citações.]

Francis Grose traz um aspecto muito interessante em sua definição, que é a comparação da caricatura com um
tribunal� [e não está sozinho nisso, segundo Oliveira e Almeida, 2006, que apontam Ramon Columba, [que] a denomina “Supremo tribunal”,
pois, “ante ela se inclinam os próprios juízes e as autoridades da nação”. Na caricatura, o grande júri é formado pelos leitores, o caricaturista é
o temido promotor e a sentença é a opinião pública.], ���������������������������������������������������������������������������
o que enfatiza o “dom perigoso a que ele se refere”. Assim, é interessante
observar, como o faz Lima (ib., p. 6-7), que
a caricatura não é sòmente, como entendiam os italianos que lhe lançaram a moda na era do Renascimento
– o ‘ritrato ridículo di cui siansi esagerati i difetti’. É ainda, e de preferência [...] a arte de caracterizar. Porque
um artista verdadeiro [...] não caricatura para troçar dum homem e menos ainda para deformar o tipo
humano. Caricatura para caracterizar, para sublimar algum gesto, para notar algum jogo de fisionomia,
para unir tão intimamente todos os aspectos inesperados, inéditos, da máquina humana, [... e] isso não
difere muito, aliás, da sentença de Aristóteles, quando afirmava que “quando se tem que representar
certas personagens pela imitação, deve-se necessàriamente pintá-las melhores ou piores do que são”.

Além de constatarmos a longevidade do burlesco – muitas vezes, ao mesmo tempo, ferino – como forma de
“expressar” os cotidianos [vide a sentença de Aristóteles], é fundamental pensarmos, também, que a compreensão das per-
sonagens ou situações trazidas pela caricatura [em forma ou não de charges] depende de um conhecimento contextual de
56

quem vêlê essa produção.

Pensando nessas questões durante meus estudos de mestrado (Sgarbi, 1999), procurei mostrar que, nesta figura
de Tonucci (1997, p. 127),
as várias situações apresentadas caracterizam a instituição escola pela junção de texto e imagem e
manifestam leituras avaliativas a partir de um conceito de escola socialmente construído, sendo, portanto,
comum ao autor e aos leitores: a aparência fabril “taylorista” da escola como representação dos processos
didáticos como uma linha de montagem, com os vários “setores pedagógicos” organizados ao lado de uma
esteira por onde os alunos são levados, e não caminham por si mesmos e, em casa, TV e cama. (p. 81),

ao mesmo tempo, tendo a clareza de que


esta análise traz à tona um problema epistemológico, na medida em que as situações apresentadas nos
cartuns assumem uma perspectiva de generalização. A escola “representada” no cartum de Tonucci não
é uma escola italiana – nacionalidade de seu autor – tampouco uma escola brasileira ou francesa ou
chinesa; é simplesmente uma construção de um conceito genérico de escola, cujas situações podem ou
não ter pertinência em qualquer espaçotempo, através de um ato de linguagem que fala tanto de seu autor
quanto de seus leitores. Essa escola, portanto, não é uma escola real. E é exatamente aí que encontramos
um dilema epistemológico, pois partimos do pressuposto teórico de que a diversidade e a complexidade
são marcas evidentes das escolas reais. (ib.)

Isso evidencia que autor e leitores devem ter, minimamente, um conhecimento comum sobre aquilo que a
caricaturachargecartum expressa.Vou trazer como exemplo uma caricatura e uma fotografia do escritor Jorge Amado.

Quando se trata de uma caricatura de uma personagem, o conhecimento desta traz uma identificação mais
imediata dos traços caricaturais. Uma pessoa que, não conhecendo a personagem de nenhuma maneira, nem por fo-
tografia, terá maior dificuldade nessa identificação, embora possa até “imaginar” a personagem “real”. No entanto, no
caso das caricaturas de situações ou fatos, a identificação dos elementos caricaturais vai, normalmente, ser mais difícil
se o que está caricaturado não for do conhecimento de quem vêlê o desenho.

Nesta charge de J. Carlos [Lima,1963, p. 322], por exemplo, a compreensão da situação expressa não faz sentido se
o vedorleitor não tiver conhecimentos dos fatos que a geraram. Ao, no entanto, colocarmos o texto que Herman Lima
escreveu sobre ela, sua compreensão já fica mais possível: “A caricatura alude às agitações do estado do Rio de Janeiro,
57

com a eleição de Nilo Peçanha para o governo, derrotando Feliciano Sodré, que Pinheiro Machado fizera tudo para
salvar.” Com essa “explicação”, já fica mais fácil perceber os elementos caricaturais, como o Rio Nilo e o cenário,
mesmo a roupa usada por Nilo Peçanha, a metáfora de Moisés como referência a Feliciano Sodré, etc. Mesmo assim,
uma compreensão mais aprofundada da situação só se dá por um conhecimento mais aprofundado da situação política
retratada.

Ao comparar a figura de Tonucci “Os perigos do turno integral na escola” e a situação política trazida por J.
Carlos percebo algumas diferenças fundamentais quanto ao conhecimento que envolve as situações, embora essas dife-
renças estejam, quase sempre, muito misturadas. Enquanto, na segunda situação, um fato específico [eleição de Nilo Peça-
nha] e todas as “agitações” dela decorrentes são indispensáveis para que a caricatura faça sentido, na figura de Tonucci, os
conhecimentos envolvidos são conceituais [produção em série, automatização] e, portanto, de uma temporalidade diferente
da temporalidade factual. De outra forma, o uso de elementos simbólicos por J. Carlos tem sentido – caricatural – a
partir da analogia com o nome do eleito, trazendo o Rio Nilo a situação de não-salvamento a partir do conhecimento
de que Pinheiro Machado não conseguiu “salvar” Feliciano Sodré, etc. Portanto, são conhecimentos datados e decor-
rentes de uma factualidade cotidiana bem definida.

Já na charge do psicólogo e desenhista italiano, os conhecimentos envolvidos são sobre linha de montagem,
procedimentos escolares repetitivos e automatizados, que não se remetem diretamente a esta e àquela escola, mas a um
fazer escolar cotidiano que, recorrentemente, acontece em muitas escolas, talvez, até, na maioria delas, mas a factualida-
de é uma decorrência do conhecimento conceitual, sendo este, portanto, que nos possibilita atribuir sentido à situação
caricaturada. Ainda hoje, em diferentes espaços, essa concepção de educação pode estar presente em muitas escolas.To-
nucci, italiano, com uma passagem profissional pela Argentina,“retrata”, em 1974, uma tipologia de escola que, decorrente
de uma maneira de compreender a educação, esteve em muitos espaçostempos no Brasil e fora dele, ainda está presente em
muitos espaçostempos no Brasil e fora dele e, possivelmente, ainda fará parte de um futuro educacional no Brasil e fora dele.
Hoje, no Rio de Janeiro, não temos Nilos vencendo eleições de Felicianos bancados por Machados.

No entanto, mesmo na política, caricaturas com base em conhecimentos conceituais e bem pantemporalmente co-
tidianos também acontecem, como podemos ver nesse trabalho de Calixto Cordeiro (Museu, 1987, p. 39).
58

Adentrando a caricatura pela caricatura,

este artigo se pretende uma exposição em que as caricaturaschargescartuns trazendo situações escolares e educacio-
nais serão fixadas nas paredes de nossa visão por fios e ganchos feitos das letras das minhas reflexões. E preciso revelar
aos meus interlocutores vedoresleitores que, como ficou até já bem explícito quando argumentei sobre a necessidade do
texto trazido por Herman Lima para a nossa compreensão da charge de J. Carlos sobre a eleição no Rio de Janeiro em
1915, não acredito que uma imagem, mesmo valendo uma narrativa, não “vale mais do que mil palavras” no sentido de
se bastar. É compreensível, para mim, que há imagens tão evidentes que dispensam narrativas que lhes dê um sentido.
No entanto, tenho dito que
uma imagem vale uma imagem. Mil palavras valem mil palavras. O que me importa, tanto das imagens
quanto das palavras, são os significados possíveis de suas articulações nos discursos. (Sgarbi, 2008, p.
24).

Esse raciocínio se solidifica quando, tentando compreender as escolas e os processos escolares usando caricaturas-
chargescartuns, comparo duas imagens cuja atribuição de sentido pelos vedoresleitores se dá a partir de suas estruturas bem
diferentes na articulação imagem/texto. Melhor dizendo, penso que as pessoas todas atribuem significados às imagens
que veem, sejam elas fotografias ou imagens desenhadas sem qualquer texto. No entanto, da mesma forma como acon-
tecem com inúmeros textos [alguns estudiosos defendem que a plurissignificação acontece com todos], as imagens, enquanto uma
forma intencional de comunicação, inúmeras delas [não conheço teórico que defenda a totalidade delas] precisam do suporte
linguístico para efetivar, com relativa precisão, o que intentam comunicar.

A primeira das duas imagens a que me referi é esta tirinha de Quino (2003, p. 22), em que a ironia, o sentido
da comunicação do autor e o “roteiro” de compreensão do leitor estão no texto e não nas imagens. Se, por exercício,
tirarmos as falas das personagens, os desenhos não nos trazem maiores significados.

Poderíamos, na verdade, criar inúmeros diálogos com essas figuras e todos poderiam fazer sentido sem que a
imagem efetivamente interferisse significativamente.

Pensando, pois, nessa relação imagem texto, quando o foco é a caricaturachargecartum, é importante com-
preender que o texto que faz parte dos desenhos� [como os diálogos, por exemplo, ou a nomeação das estacas que prendem o cidadão
59

na charge do Calixto [duas páginas antes]] é diferente de outro que, fora da imagem, lhe vem elucidar o sentido. A invenção [no
da
�������������������������������������������������������������������������
imagem vem ao mesmo tempo que a invenção do texto, ou seja, o artista
sentido dado por Von Foerster, 1996, p. 65-66]
cria a situação que quer expressar e lhe dá forma pela articulação imagem texto.

A segunda imagem da comparação que anunciei é de Tonucci (1997, p. 18), propositalmente sem o ano/títu-
lo que estão presentes em todas as imagens deste livro do artista italiano para mostrar uma imagem que se basta, ou
seja, qualquer texto, ou mesmo título, não interferem de maneira fundamental para a compreensão do que está sendo
comunicado.

Algumas questões devem ser colocadas para que eu possa pensar nos sentidos possíveis para esta em outras tan-
tas imagens, que é o repertório cultural que cada um de nós tem em sua memória. De outra forma, os conhecimentos�
[imagéticos e de outras ordens] ���������������������������������������������������������������������������������������������
que temos nos possibilitam sentidos para esta imagem, desde a simples constatação descritiva
de um efeito anunciado pela ciência de que as mães fumantes fazem com que seus fetosfilhosfilhas fumem juntos a
sentidos de outras ordens� [moral, religiosa, de saúde, de crítica, etc.], ������������������
mas, em princípio� [considerando que a subjetividade pode atri-
buir sentidos bem divorciados dos elementos gráficos representados na imagem], relacionados
��������������������������������������������
ao que está expresso na imagem.

Adentrando a escola pela caricatura,

e tendo como ponto de partida que a lógica da grande maioria dos nossos processos educativos tem base na
oralidade e na escritura� [seja pela leitura, seja pela forma de demonstrar conhecimento], ������������������������������������������
constato que as escolas caricaturadas são
expressas, quase sempre, pelo textoimagem.

Contando com a sempre gostosa ajuda de Tonucci (ib., p. 83), podemos observar uma situação de “correção”
bastante comum em nossas escolas, em que o pensamento analógico do aluno é, muitas vezes, deixado de lado em
detrimento da norma a ser assimilada e tida como única forma possível. Se, ao mesmo tempo, temos como uma das
funções das escolas o ensino dos conhecimentos formais e, neles, as formas corretas de dizer, deveríamos ter� [e temos
em muitos casos] um
���������������������������������������������������������������
maior respeito pelo outro na forma de fazer a correção. Esta [digamos] inadequação da postura do
professor diante da “obrigação de corrigir” está expressa nos elementos imagéticos da charge, ressaltando tanto a “con-
tundência” com que o professor corrige quanto o efeito dessa “descoberta” pelo aluno.
60

Caricatura? Sim, com certeza. Ficção? Não, com a mesma certeza.

Neste quadro de Anker, datado de 1896, podemos ver um� [talvez] “�����������������������������������������������
retrato” de uma escola da época que, a não ser
pela indumentária dos personagens e pelos artefatos escolares, bem poderia ser uma “fotografia” de uma escola de nos-
sos dias. Chamo a atenção para a formatação da sala de aula, um esquadrinhamento visível, apesar de algumas quebras
nessa organização. Na tirinha de Quino (2003, p. 114� [essa tirinha, como as demais Mafaldas daqui por diante, foi tirada de uma
versão da internet, sendo o número da página relativa à versão citada]), a organização espacial simétrica, em forma de fila única, é
bem caricatural, assim como a postura comportada tanto dos alunos como da professora [Manolito foge à regra, mas é o que
dá sentido ao humor da situação (des)conhecimento]. ������������������������������������������������������������������������
Essas duas imagens, expostas para mostrar o formalismo espacial como as
escolas, quase sempre e na maioria dos espaçostempos, se organiza possibilitam, também, a reflexão sobre outro tipo de
formatação, que é a dos comportamentos acadêmicos, como nos mostra Watterson (2007, p. 31-32).

Nesta pequena narrativa desenhada, o artista norte-americano mostra uma situação escolar cotidiana bastante
comum e, eu diria, bastante verossímil. Além de colocar� [hoje caricaturalmente] a���������������������
questão do castigo� [palmadas na bunda], sati-
riza, de maneira muito humorada, a questão do curriculum vitae� [histórico escolar] e, ���������������������������������������
como, no nosso caso, esse currículo
tem um nome acadêmico bem expressivo, pois a referência à pós-graduação me remete ao currículo Lattes [rsrsrsrs].

A questão do poderautoridade também está presente nessa narrativa, pois o pânico das crianças pelo fato de terem
que “encarar” o diretor e todo o imaginário de perversidade que a figura da autoridade escolar tem para muitas pessoas
é ironizada na figura do “monstro” criado pelo Calvin. Aliás, a metáfora do monstro é recorrente no imaginário do
Calvin para representar situações escolares como esta da página 28 da obra de Watterson citada.

Da mesma forma que situ-ações cotidianas são caricaturadas, questões conceituais também podem ser vistas
como alvo dos artistas. Em especial, trago uma tirinha do Veríssimo (1997, p. 73) de que gosto muito e que uso sempre
que vou conversar sobre conhecimento.

Adentrando os currículos escolares pela caricatura

Alguns componentes escolares têm sido alvos constantes de alguns artistas das linguagens desenhadas e o psicó-
logo e desenhista italiano Francesco Tonucci (1997) tem-se destacado na caricaturização de cenas escolares com muita
61

potência. O seu personagem Frato “vivencia” um cotidiano escolar que traz, com muito humor, reflexões importantes
sobre os nossos processos de ensino.

Muitas das situações caricaturizadas por Tonucci trazem uma reflexão importante sobre como as escolas con-
cebem os currículos. Algumas dessas maneiras de compreender currículo têm, na reprodução sem criatividade, um
ponto metodológico a ser repensado.Vejamos uma dessas situações [p. 82].

Observe-se o contraste entre os balões de pensamento das crianças com as belas peças que fariam com a “or-
dem” de que todos façam um “lindo porta-canetas” para o papai. Essa é uma maneira de conceber currículo como
uma “norma unificadora”, ou seja, um sistema de limites que tem como função dar a todos os mesmos conhecimentos
e apenas eles, sem considerar as diferentes e diversificadas contribuições ao conhecimento que as criançasalunos trazem
de suas experiências de toda ordem.

A maestria de Tonucci se faz, também, por alguns detalhes gráficos que emprestam especial sentido aos seus de-
senhos.Veja-se, por exemplo, a diversidade expressa pelos balões individualizados e as fisionomias alegres das crianças em
contraste com um único balão para todas elas e suas carinhas entristecidas. Caricatura? Sim. Ficção? Certamente não.

Nesse seu livro Com olhos de criança, Tonucci traz algumas outras charges que têm como foco as questões cur-
ricular e metodológica, quer quando aborda a versão adulta para criança dos conhecimentos� [(1968) Onde ele nasce? p.
52], ��������������������������������������������������
ou quando traz o pretenso controle que os adultos� [pais, professores, em especial] �������������������������������������
têm sobre o que as crianças aprendem�
[(1969) ... ele nem pensa nisso... p. 60], �������������������������������������������������������������������������������
seja quando mostra o descompasso entre o que as crianças sabem e o que escolas� [pelos
currículos, principalmente] ��������������������������������
acham que elas têm que aprender� [(1977) Os trabalhos manuais, p. 85], ��������������������������������
ou, ainda, ao levantar questões
meto­dológicas� [(1974) A adição, p. 118].

Outro cartunista com quem tenho conversado é Ziraldo, através do seu Menino Maluquinho, que me apre-
sentou duas situações muito interessantes para pensar na pertinência dos conhecimentos que vêm determinados pelos
currículos escolares. Sou dos que pensam que conhecimento não ocupa espaço� [mas há quem diga exatamente o contrário,
tanto que, quando não usamos o que sabemos, esquecemos para dar lugar a coisas mais importantes], ��������������������������������
mas temos que convir que existe
uma postura um tanto acrítica sobre os conhecimentos que os currículos preveem. As duas narrativas abaixo me fazem
lembrar uma conversa que tive com o amigo Filé� [José Valter Pereira, amigo professor da UFRRJ] �����������������������������
quando lecionou a disciplina
62

Currículo na Faculdade de Educação da Uerj. No corredor, ele me pergunta:

– Afinal, Paulo, o que é currículo?

Respondi a ele meio que caricaturalmente:

– Um monte de respostas que damos aos alunos sem que eles façam quaisquer perguntas.

O Menino Maluquinho traz questionamentos aos currículos pré-fixados que, muitas vezes, estão desconectados
dos contextos sociais, trazendo para a cena discussões como a que faz Alves (2002, p. 23) de que
é necessário... buscar as tantas e diferentes histórias das tessituras das redes de conhecimentos, no que
se refere às ações pedagógicas e aos currículos, que desenvolvemos nas tantas escolas por que passamos.
Mais ainda: é assim que, embora vivendo experiências localizadas, todas as pessoas que estão algum
tempo do seu cotidiano na escola, buscando mudanças que levam em consideração as “forças locais,
trazem ao que está sendo tecido, em cada momento de cada escola, todas as experiências vividas nos
outros tantos contextos em que se fizeram e fazem redes de subjetividades.

Ao mesmo tempo, essas escolas são palcos de histórias que se encontram, cotidianamente, nas redes de conhe-
cimentos que as constituem. As infinitas tramas que tecem essas escolas são as histórias de todos que por elas passam.
Histórias que mostram, muitas vezes, as astúcias dos sujeitos que, em suas táticas de praticantes (Certeau, 1994), se
movimentam “dentro do campo de visão do inimigo... e no espaço por ele controlado” (p. 100). Assim (Watterson,
2007b, p. 28).

É numa conversa com Michel de Certeau (op. cit., p. 103) que encontro uma menção importante para a com-
preensão da caricatura como uma linguagem que, sendo metafórica em sua premissa comunicativa, tão bem traz a vida
cotidiana e os conhecimentos do senso comum que a fecunda:
Diversas referências teóricas permitirão caracterizar melhor as táticas ou a polemologia do “fraco”. É
o caso, em particular, das “figuras” e das “metáforas” analisadas pela retórica. Freud, aliás, já as tinha
individuado e utilizado em seus estudos sobre o chiste e sobre as formas assumidas, no campo de uma
ordem, pelos retornos do eliminado: economia e considerações verbais, duplos sentidos e contra-sensos,
deslocamentos e aliterações, empregos múltiplos do mesmo material etc.
63

Desenhando essas reflexões com Tonucci (1997, p. 123), temos uma situação em que a escola é representada
como um tempo a ser desconsiderado no fluxo das coisas que realmente são importantes serem feitas, um tempo de blá
blá blá que não interfere no desejo das ações que [no caso] um dos meninos pretende praticar� [ir ao cinema com João].

Um detalhe que caracteriza, nessa charge, o espaçotempo escolar é a ausência da boca do menino que, antes
de entrar na escola� [Hoje à noite irei...] ����������������������
e depois de sair dela� [... ao cinema com João], fala, dando a sensação de que, para as
criançasalunosalunas, a escola é o lugar da audição.

Interessante perceber��[estou-me restringindo a uma experiência muito brasileira, pra não dizer carioca] ������������������
que os muitos pro-
jetos de melhoria das condições materiais das escolas públicas, mais especificamente no que se refere à tecnologia edu-
cacional, dotam as escolas de televisão, tocadores de CD/DVD, ou seja, de aparelhos para leitura, mas não de câmeras
de vídeo, que seriam os instrumentos de escrita.

É importante que se diga que esse tratamento tem mudado, mais pelo esforço próprio dos sujeitos escolares e
menos pelos responsáveis públicos por essas ações junto às escolas, mas é cada vez maior o número de escolas que têm
incentivado o uso, pelos alunos, dos artefatos culturais de escrita, de expressão. No entanto essa é uma realidade mais
visível na rede privada.

Enquanto isso, os sujeitos escolares vão, taticamente, se movimentando no espaço do inimigo e denunciando
esse movimento: (Tonucci, 1997, p. 78).

Ou negociando (Watterson, 2007b, p. 130).

O trabalho do professor na (re)ação dos alunos: Mafalda e Frato conversam

Nesta imagem� [Adotei um livro], Tonucci (1997, p. 150) rompe com uma lógica escolar bem marcada que tem
no livro� [e, hoje, alguns outros artefatos mais tecnologizados] um
��������������������������������������������
eixo muito forte. Mas, por trás do livro� [didático e paradidático],
estão as professoras e os professores e seus trabalhos, suas crenças e conhecimentos� [milenares] �������������������������
do que é importante para
os alunos [para que eles tenham sucesso na vida], seus modos de fazer. Em se tratando de caricaturas de escolas, professoras
e professores são alvos dos artistas, principalmente para críticas às suas maneiras de praticar educação, crítica essa que,
normalmente, vem das (re)ações das alunas e dos alunos.
64

É importante ressaltar que a característica generalizante dos cartuns acaba por colocar todas e todos num mes-
mo saco, mas sabemos que não é assim, que as professoras e os professores são todas e todos diferentes e suas práticas
pedagógicas cotidianas seguem por caminhos nem sempre padronizados, por mais que as políticas de governo induzam
a práticas uniformizantes e modelares. As alunas e os alunos que (re)agem às ações das professoras e dos professores
também não podem ser generalizados, mas, sem dúvida� [para mim], ������ Frato� [personagem de Francesco Tonucci] ����������
e Mafalda� [perso-
nagem do Quino [Joaquín Lavado]] ���������������������������������������������������������������������������������������������
são duas sínteses de muitas alunas e muitos alunos que nos possibilitam viajar por universos
escolares dos mais variados e, ao mesmo tempo, reconhecíveis para cada um de nós. Como tenho repetido neste texto,
as situaçõesfatos podem ser caricaturas, mas, certamente, mesmo que inventados, não são ficção, pois, como nos ensina
Manoel de Barros (1997, p. 69), “Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.”

Vejamos, por exemplo, essa tirinha do Quino (2003, p. 123).

A resposta de Manolito “quebra” a lógica de um exercício de repetição bem recorrente nas escolas [pelo menos
em algumas que conheço e feitas por professores que também conheço], do tipo:
– Uma das coisas que as abelhas produzem é a CE...
– ... RA.
– As plantinhas verdes fazem a FOTOSSÍN...
– ...TESE.

– E por aí ...

– [...vai].

Na mesma linha de (re)ações desconcertantes, uma outra da página 220 que eu adoro.

Uma aula de língua pátria (Quino, 2007, p. 123)� [o original é em espanhol, e as tirinhas que estou usando são da edição
brasileira] mostra bem o sistema de repetição da escola argentina de então, “começando pela alfabetização: o método
usado era o silábico, totalmente alheio ao universo da criança e ao contexto em que ela vive, e faz-se o uso da car-
tilha...” (Gottlieb, 1966, p. 125).

Já Tonucci (1997, p. 143) caricaturiza usando a imagem do Frato sendo esquadrado como os “mapas” de corte
de bovinos� [observem, pelas expressões faciais, que tanto Frato quanto o boi não se sentem confortáveis nessa situação], em
����������
que os
65

pedaços são as várias datas comemorativas do calendário escolar, procedimento “curricular” de amplo uso em nossas
escolas até hoje, tornando-se, como o título da charge de Tonucci, um programa a ser seguido, não apenas no maternal�
[como refere o psicólogo italiano], sequer
������������������������������������������������������������������������������������������
apenas na educação infantil, mas que caracteriza, de uma forma geral, os processos
educativos de todo o ensino fundamental.

Algumas caricaturas marcam bem que


A forma de relacionamento entre professores e alunos é direta e imposta. Graficamente fica claro como é
essa relação direta, que implica na ausência de uma relação verdadeira e também de dinâmica de grupo.
O professor sempre aparece falando, despejando o conteúdo e não admitindo a manifestação do aluno
(Gottlieb, 1996, p. 131).

Parece que “zero em sinceridade” é uma recorrência nas relações entre professores e alunos, mas com a cons-
tatação de que o zero é dado ao aluno que, na grande maioria das vezes, sequer pode negociar essa sentença. Muitas
são as charges que ampliam a relação professor-aluno caricaturalmente, tanto em Quino como em Tonucci, e sempre
focando aspectos em que o professor traz a carga negativa dessa relação, até porque é ele quem “representa” o lado ins-
titucional do processo educacional. Na narrativa desenhada ao lado (Tonucci, 1997, p. 90), uma certa “truculência” da
professora ao se sentir atingida pela “sinceridade” do aluno. E, também com certa recorrência, esse tipo de situação em
que o professor se sente atingido, se converte em valores no sistema de avaliação, temática também bastante presente
nos desenhos desses dois artistas.

Os processos escolares, a partir da própria política de governo que os organiza, têm como base a meritocracia,
que instaura uma lógica de avaliação matematizada� [mesmo que os números venham disfarçados de letras ou até mesmo de nar-
rativas], �����������������������������������������������������������������������������������������������������������������
que reproduz a hierarquização que tanto caracteriza as relações sociais nas instituições escolares. Evito, neste
texto, intencionalmente, aprofundar a discussão sobre a avaliação da aprendizagem no que se refere, por exemplo, à
produção de exclusão� [e inclusão], às
����������������������������
relações de poder postas� [e as não postas, mas que existem aos montes], à�����������������
apreciação dos
instrumentos de avaliação mais usados, como provas e testes [mesmo que disfarçados de pesquisa e outros instrumentos menos
protocolares], e muitos outros procedimentossituações que envolvem as práticas avaliativas nessas tantas escolas por que
passamos e onde se dá parte significativa e importante da nossa formação. O que quero deixar mais evidente, neste
estudo com as caricaturas,
66

é que os processos de aprendizagens são múltiplos e não-controláveis, mesmo os institucionais, apesar da


ilusão de controle que se tem, o que, nas escolas de todos os níveis – hoje, aqui em nossas terras, até mesmo
em muitas escolas dos bem miudinhos –, é criada pelas práticas avaliativas e outros procedimentos que se
destinam a controlar condutas, como nos [desenha] Francesco Tonucci (1997, p.79), mostrando conflitos
entre dois espaçostempos de formação de extrema importância para a grande maioria das pessoas: a
família e a escola (Sgarbi, 2005, p. 33 do artigo 6).

Em que pesem as muitas contradições entre os currículos familiar e escolar, há de compreender que há mais
aproximações do que afastamentos. Até porque, por exemplo, na pré-escola� [vou focar essa faixa do processo educativo pela
intensidade com que acontece o que vou expor a seguir], a cada dia, mais as famílias “depositam” seus filhos nas instituições que,
cada vez mais, se ocupam, também, da educação que caberia à família dar, como, por exemplo, a própria questão dos
limites.

Um pouco dessa relação família-escola é vivida por Manolito (Quino, 2007, p. 156) e por Frato (Tonucci, 1997,
p. 154).

Fechando a exposição

que anunciei quando “adentrei a caricatura pela caricatura”, vou trazer três imagens dos personagens principais
dessa nossa aventura pelas narrativas desenhadas das escolas e seus sujeitos. E, como normalmente acontecem quando
vamos a exposições, vemos as imagens expostas e vamos embora com a cabeça povoada de pensamentos� [imagéticos e
de outras tantas naturezas possíveis para os pensamentos] sem
��������������������������������������������������������������������
que isso represente uma conclusão. Penso, mesmo, que exposições
podem ter esse sentido bem marcado de nos acompanhar para fora do espaçotempo possibilitando� [nos] pensar ������[mos] nas
����
coisas dos mundos que nos cercam e nos servem de habitat. Na ordem� [rsrsrs], �(Watterson, 2007, p. 79; Quino, 2007, p.
221; Tonucci, 1997, p. 129).
67

Algumas pessoas com quem conversei nesse escrito:


ALVES, Nilda (Org.). Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez, 2002. (Série Cultura, memória e currículo, v. 1).
BARROS, Manoel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
Ferreira, Aurélio Buarque H. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 4. ed. Curitiba: Positivo, 2009.
GOTTLIEB, Liana. Mafalda vai à escola: a comunicação dialógica de Buber e Moreno na Educação, nas tiras de QUINO. São Paulo: Iglu: Núcleo de
Comunicação e Educação: CCA/ECA-USP, 1996.
LIMA, Herman. A história da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, Rio de Janeiro. Calixto Cordeiro. Rio de Janeiro, 1987. (Catálogo de Exposição).
OLIVEIRA, Neide A.A.; ALMEIDA, Lara M.O. Gêneros jornalísticos opinativos de humor: caricaturas e charges. In: Janus, Lorena. Ano 3, n. 4, 2º
semestre de 2006.
QUINO. Toda Mafalda. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SGARBI, Paulo. Conhecimentos, linguagens, avaliações: o que dizem os cartuns. Rio de Janeiro, 1999. 121 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
SGARBI, Paulo. Avaliação pensadassentida a partir de uma epistemomagia do cotidiano. 2005. 381 f. Tese (Tese de Doutorado) – Faculdade de Educação,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
SGARBI, Paulo. Uma imagem vale mais do que mil palavras? In: A Página da Educação. Porto: Profedições, 2008. p. 24-25.
Tonucci, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
VERÍSSIMO, Luiz F. As cobras em: se Deus existe que eu seja atingido por um raio. Porto Alegre: L&PM, 1997.
VON FOERSTER, Heinz. Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In: SCHNITMAN, D. F. Novos paradigmas, cultura e subjetividade.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
WATTERSON, Bill. Calvin e Haroldo: e foi assim que tudo começou. São Paulo: Conrard, 2007.
WATTERSON, Bill. O mundo é mágico: as aventuras de Calvin & Haroldo. São Paulo: Conrard, 2007b.
68

PARTE II
(animação)
69

As imagens da escola e as redes de comunicações,


conhecimentos e sentidos
Conceição Soares

Com este texto, produzido a partir de imagens e narrativas capturadas/criadas por ocasião da elaboração de
minha tese de doutorado, busco discutir a comunicação praticada nos/com os cotidianos de uma escola pública de
ensino fundamental, acrescentando, contudo, um novo enfoque que procura dar conta do que eu não havia percebido
ou dado muita importância na época. A pesquisa foi realizada entre os anos de 2005 e 2008, na EMEF Álvaro de Castro
Mattos, localizada em Jardim da Penha, um dos bairros de classe média da cidade de Vitória, no Espírito Santo. A tese
foi defendida em 2008 e publicada em livro em 2009 (Soares, 2009).

A pesquisa, que inicialmente se propunha a analisar os ‘usos’ (Certeau, 1994) dos meios, tecnologias e lógicas de
comunicação nas práticas educativas, teve sua abrangência ampliada e o foco expandido à medida que eu mergulhava
no cotidiano da escola. Isso porque, pouco a pouco, e afinando o olhar, eu percebia que para além daqueles usos os
‘praticantes’ da escola produziam, em meio às práticas cotidianas, suas próprias redes comunicacionais. Assim, numa
combinatória de modos de comunicar, articulavam os novos meios e tecnologias, muitas vezes considerados estranhos Cartaz fabricado por alunos com
fotos recortadas de revistas. Na nova
e exteriores à escola, com recursos e artefatos agora considerados tradicionais, como cartazes, bilhetes, circulares, festas, composição as imagens produzem
outros discursos.
fofocas, placas comemorativas, uniformes, avisos e sinalizações, entre outras.

No contexto da pesquisa, os modos de comunicar, seus produtos e processos, são compreendidos como partes
1
A grafia feita desses termos, como
de outros que aparecerão neste
constituintes dos currículos vividos na escola e, dessa forma, dos conhecimentos e significações produzidos em meio texto, tem como objetivo pro-
às redes de saberesfazeres1 e relações engendradas dentrofora daquele espaçotempo educativo. blematizar, no contexto das
pesquisas nos/dos/com os coti-
dianos, os limites do modo di-
O que eu não havia percebido, ou dado muita importância naquela ocasião, embora houvesse discutido em um cotomizado de analisar os acon-
capítulo o assunto, é que minha narrativa/fabulação sobre a comunicação praticada na referida instituição de ensino foi tecimentos sociais, herdados da
modernidade.
70

potencializada, acima de tudo, pelas imagens produzidas na/da/com a escola, especialmente as fotografias. O que quero
dizer é que, embora eu tenha discutido em um capítulo específico o uso de imagens fotográficas na pesquisa, abor-
dando seu estatuto, seu regime de verdade, suas possibilidades de representação/apresentação, não havia percebido que,
durante todo o tempo, as fotografias da/na/com a escola foram os fios condutores do conhecimento que produzi e das
intervenções que fiz durante o período em que interagi com a comunidade de praticantes da Álvaro de Castro Mattos.

Esse outro olhar sobre meu próprio trabalho só emergiu recentemente, na contingência das novas leituras que
tenho feito e dos debates realizados com as equipes dos projetos de pesquisa que tenho participado no Laboratório
Educação e Imagem do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uerj. Em consequência dessa nova percepção,
o que pretendo destacar neste texto são os ‘usos’ das fotografias como potência para a produção de teoriaspráticas que
visem a compreensão e a invenção do vivido. Passo então a pensar e narrar, a partir de um aspecto que considero não
ter sido ainda devidamente contemplado, a itinerância de uma pesquisa que teve como principais aliadas a câmera
fotográfica e as imagens com ela produzidas.

Desde que entrei na escola Álvaro de Castro Mattos, ainda sem saber muito bem o que iria fazer, mas com a
máquina fotográfica na mão, a questão da imagem já estava colocada para professores, para alunos e para mim, como
pesquisadora. A primeira coisa que fiz foi tirar um monte de fotografias numa busca desesperada por algo interessante,
mas sem saber exatamente o que procurava. Apontava a máquina para todos os lados e disparava o obturador. Os alunos
me rodeavam e pediam para que eu fizesse fotos deles, faziam poses e me levavam aos lugares que eu deveria fotografar.
Produzi, num procedimento que se repetiu em quase todas as visitas, o que poderia ser chamado de um dossiê foto-
gráfico da comunicação na escola. Isso possibilitou que mais tarde, ao examinar as imagens que produzira, eu pudesse
observar a quantidade de cartazes, de origens e características diversas, mas povoados de desenhos e fotografias, que re-
cobriam as paredes das salas de aula, dos pátios e dos corredores. Foi então que, logo de cara, constatei a inquestionável
presença das imagens nos processos comunicacionais e nas práticas educativas.

As primeiras impressões, que no momento da elaboração da tese eu atribuí a uma observação atenta e cui-
dadosa, não foram na verdade resultado apenas do que eu tinha visto com meus próprios olhos, mas também do que
capturei, nem sempre intencionalmente, com a lente da câmera. Esse procedimento atravessou todo o meu trabalho
sem que eu tivesse me dado conta da sua dimensão.
71

Nesse novo recorte, mais importante do que definir o que é uma imagem e cair nas armadilhas da polissemia
da palavra, me interessa discutir como, de alguma forma, praticar imagens, e aqui me refiro especificamente a ver, fazer
e usar fotografias, constitui um modo, que na contemporaneidade torna-se cada vez mais frequente, de conceber, ex-
pressar, imaginar e, principalmente, produzir o vivido. Mas, em que condições isso se dá?

Para começar, no contexto do desenvolvimento, da intensificação e do barateamento dos meios e tecnologias


da comunicação e da informação, e da midiatização da sociedade. A ambiência comunicacional, instituída pelo acesso
aos aparelhos produtores e difusores de conteúdos, pelos regimes semióticos e pelas lógicas operacionais das mídias, já
faz parte de nossas vidas cotidianas. Vivemos em uma sociedade infotecnológica cercada por dispositivos de imagens
que, em dada medida, nos impelem a produzi-las e distribuí-las a todo instante. O hábito de fotografar não é novo, mas
a profusão das fotografias produzidas e distribuídas cotidianamente por não profissionais e a compulsão em fotografar
tudo e todo o tempo, talvez devam ser pensadas nessa contingência.

A fotografia, como define Flusser (2002), é uma imagem técnica produzida por um aparelho-operador cuja
principal característica é ter sido programado pelo fabricante para nos induzir a fotografar. Se considerarmos a câmera
fotográfica por esse prisma, o que lhe caracteriza é o estar programada. E, dessa maneira, as imagens que ela produz
estão previamente programadas por aqueles que fabricaram o aparelho. As fotografias seriam, então, realizações de al-
gumas das potencialidades inscritas no aparelho. O fotógrafo agiria em função da realização do universo fotográfico.
Seu interesse estaria mais voltado para esgotar as potencialidades do aparelho do que para o mundo lá fora.

De acordo com esse autor, podemos observar na prática de fazer imagens a desvalorização do objeto ou sujeito
fotografado (referente) e a valorização da informação que elas transmitem. Flusser propõe que a análise do gesto de
fotografar pode se constituir em um exercício para a análise da existência humana na sociedade pós-industrial, apare-
lhada, na qual tudo que é fotografável deve sê-lo.

Sontag (2004), considerando que a industrialização da tecnologia da câmera de fotografar instituiu uma “mentali-
dade que encara o mundo como uma coleção de fotos potenciais” (p. 17), analisa o ato de fotografar como um modo de
apropriação do mundo semelhante ao conhecimento e ao poder. Para ela,“fotografar é apropriar-se da coisa fotografada”
(p. 14). Dessa forma, a prática de fotografar é um rito social, uma proteção contra a ansiedade e um instrumento de poder.
As fotos, no entender da autora, dão às pessoas a posse imaginária de um espaço no qual elas se acham inseguras.
72

Segundo Martins (2008), a fotografia criou uma visualidade própria da sociedade industrial. Sem a imagem
– afirma – a cotidianidade seria impossível. “De certo modo, em boa parte, hoje, pensamos fotograficamente” (Martins,
2008, p. 43). Isso significa que, mesmo quando não temos uma câmera para registrar uma situação, o imaginário cria
uma imagem em nós e para nós.

Para além do barateamento dos aparelhos que produzem imagens, hoje em dia também ficou barato e fácil
fazer as imagens circularem.Vivemos em meio ao que Jenkins (2009) chama de cultura da convergência, conceito que
se relaciona não só ao desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, como aos usos de seus pro-
cessos e produtos pelos praticantes da cultura, os quais, a partir desses usos, tornam-se também produtores. De acordo
com Jenkins, convergência é a palavra que consegue definir as transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e
sociais que estamos experimentando. Nessa perspectiva, a convergência compreendida como a circulação de conteúdos
através de múltiplos dispositivos de mídia depende da participação ativa dos consumidores, não apenas como consu-
midores, mas, principalmente, como produtores e distribuidores de conteúdos.

No caso da produção de uma pesquisa, uma das coisas que as redes digitais possibilitam a quem tem um com-
putador conectado à internet é o uso de fotografias na fabricação de narrativas do vivido. E essa prática refere-se tanto
às imagens produzidas ou recolhidas em campo pelo perquisador como àquelas que estão disponíveis nas redes. Assim,
sem maiores dificuldades ou custos, torna-se possível o uso de imagens na produção do conhecimento e na atribuição
de sentidos à cotidianidade.

Pois bem, compreendidas algumas das��������������������������������������������������������������������������


contingências nas quais se coengendra a compulsão em registrar tudo, dar
visibilidade a tudo para contabilizar e produzir o presente, me interessa pensar nos usos que fazemos dessas fotos, no valor
que atribuímos a essas imagens, nas práticas de fotografar e ser fotografado e no que tudo isso produz como possibilidades
para o conhecimento e invenção da vida. Para discutir essas questões, trago a seguir alguns fragmentos da minha pesquisa,
agora com análises renovadas tendo em vista a fabricação do conhecimento a partir das imagens praticadas.

A imagem do muro da escola: o pontapé para a escritura da tese

Meados de 2007. Diante de mim apenas a tela branca do computador. Precisava iniciar a escritura de minha
tese de doutorado. Contudo, na minha cabeça só vinha uma imagem: a do muro da escola.
73

A foto do muro foi a primeira imagem que eu fiz, logo no dia em que comecei o trabalho em campo, para
registrar os grafites criados pelos alunos. Porém, essa imagem se impôs, escapou da minha intenção e me deslocou para
outros espaçotempos, estabelecendo uma conexão direta com outras imagens e com fragmentos de memórias de um
passado que eu supunha esquecido.Todas as vezes que me propunha pensar a educação era a imagem do muro que sur-
gia, pois, para mim, ela operava como o signo da construção de vários dispositivos de controle e de técnicas de dominação
e segregação, seja por confinamento, seja por subjetivação. A imagem do muro, no entanto, potencializou um pensamento Muro da EMEF Álvaro de Castro
Mattos.
que em seu desenvolvimento iria ultrapassá-la. Nesse caso, o valor da fotografia não era documental, mas relacionava-se
com sua potência para animar o imaginário, do qual ela própria era também fruto. Para Martins (2008, p. 28):
O que o fotógrafo registra em sua imagem não é só o que está ali presente no que fotografa, mas também,
e, sobretudo, as discrepâncias entre o que pensa ver e o que está lá, mas não é visível. A fotografia é
muito mais indício do irreal do que do real, muito mais o supostamente real recoberto e decodificado pelo
fantasioso, pelos produtos do autoengano necessário e próprio da reprodução das relações sociais e do seu
respectivo imaginário. A fotografia, no que supostamente revela e no seu caráter indicial, revela também
o ausente, dá-lhe visibilidade, propõe-se antes de tudo como realismo da incerteza.

Foi assim que, para sair do impasse em que me encontrava, iniciei um pensamento, simultâneo à escrita, toman-
do o muro e a sua imagem como uma intervenção nos espaçostempos cotidianos em que vivia, como um artefato que
tentava criar e comunicar uma fronteira entre territórios, físicos e simbólicos e, assim, instituir lugares com suas leis,
suas autoridades, suas rotinas, suas prescrições, seus limites, seus horários, seus calendários. Muito mais do que separar
lugares e mundos coexistentes, o muro os delimitava, dia após dia. Ao mesmo tempo em que produzia a disjunção, o
muro a comunicava.

Conforme Martins (2008), a composição fotográfica, como uma composição imaginária, é expressão e mo-
mento do ato de conhecer com recursos e horizontes próprios e peculiares. Para ele, a fotografia “não é apenas docu-
mento para ilustrar nem apenas dado para confirmar. Não é nem mesmo e tão-somente instrumento para pesquisar.
Ela é constitutiva da realidade contemporânea e, nesse sentido, é, de certo modo, objeto e também sujeito” (Martins,
2008, p. 23).

Talvez por isso, como objeto que é também sujeito, a imagem do muro produzia em mim um efeito avassalador.
Como explica Kossoy (2007), a fotografia, bem como outros tipos de imagens, institui um pensamento plástico, com
74

uma lógica que lhe é peculiar. As imagens, no meu entender, são produzidas e interpretadas em um diálogo com as
outras imagens. Assim, no contexto da cultura audiovisual em que estamos inevitavelmente imersos, a imagem-muro se
ressignificava e se fortalecia no encontro com outras imagens-pensamentos que associam muro e escola como lugar de
disciplinarização. Lembrava-me, especialmente, do filme The Wall, baseado no álbum do mesmo nome da banda Pink
Floyd, no qual uma das canções referia-se ao estudante como ‘mais um tijolo no muro’. As cenas do filme, rememora-
das por meio dos fotogramas escolhidos pelo estúdio e revelados como fotos estáticas para divulgação disponibilizadas
na internet, me impressionavam.

A imagem do muro, simultaneamente signo, sinal, marca e cicatriz, conduzia e reduzia meu pensamento sobre
a educação. Remetia-me à escola da minha infância, na qual me sentia presa e sufocada. A imagem do muro, assim
pensada e praticada, dificultava minha aproximação de outras escolas, impondo-se como uma fronteira que requeria
muita astúcia e esforço para ser atravessada.

Na impossibilidade de me desvencilhar daquela imagem e na busca desesperada para sair da imobilidade produ-
zida na minha relação com ela, acabei, como me convidou Certeau (1994), por inventar outro uso possível para aquela
aparição, tomando-a como o fio puxado que teima em desafiar um tecido supostamente consistente, a partir do qual
talvez fosse possível desfazer e refazer essa trama.

Recorri, então, à internet na captura de outras imagens de muros na esperança de que meu encontro com elas
pudesse potencializar outras significações. As diversas imagens-muro que encontrei me potencializaram na construção de
novos significados, ajudando-me a superar a imagem-signo de uma forma de perceber, contabilizar e comunicar o mundo
que opera separando-o em partes, às quais se pretende conhecer, conter, disciplinar e controlar. Desconstruir a imagem
do muro passou a ser desconstruir a fronteira entre a escola e a experiência da vida e entre o conhecimento científico e a
criação. Desconstruir o muro passou a ser desafiar minhas próprias barreiras em relação à escola e à escolarização.

Fiz da luta pela reinvenção da imagem-muro – que com Ginzburg (1989) percebi como um índice, uma pista
da separação por mim realizada entre vida e escola – o principal desafio da minha pesquisa-experiência-narrativa tecida
nos/com os cotidianos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Álvaro de Castro Mattos e com todos aqueles que
durante meu caminhar foram tornando-se meus intercessores. Entre esses intercessores estiveram presentes as muitas
imagens que, daí em diante, usei para potencializar minhas práticas e minhas fabulações.
75

As fotos nos/dos/com os cotidianos da escola e as fabulações dos currículos vividos

De acordo com Canclini (1987), toda fotografia carece de objetividade e pode ser analisada como um modo
de referir-se ao real. Para ele, apesar da ambiguidade que lhe é inerente, a imagem fotográfica pode cumprir um papel
cognoscitivo ao propor olhares não familiares sobre o mundo. Nesse sentido, conhecer significa “abrir o presente ao
pressentido” (Canclini, 1987, p. 16).

Olhares não familiares, para mim, são olhares de estrangeiros. Miradas daqueles que, por não pertencerem efeti-
vamente ao lugar, escapam ao condicionamento do olhar pelas normas e hábitos já estabelecidos e, assim, estranham o
que veem. Provavelmente, minha condição de estrangeira aos discursos pedagógicos tradicionais e às práticas pedagógi-
cas por eles legitimadas mediou a produção e a interpretação das minhas fotos dos/nos/com os cotidianos da escola. Ao
mesmo tempo, minha experiência como aluna que se sentia oprimida, como filha insubordinada, como professora que
se opunha às normas da faculdade, como mulher e como jornalista, entre tantas experiências e tantos agenciamentos
que nem sequer me dou conta, pode ter aprisionado o presente ao pressentido, ou melhor, ao sentido.

De qualquer forma, como afirma Sontag (2004, p. 33), a “sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer:
Aí está a superfície. Agora, imagine – ou, antes, sinta, intua, o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem esse
aspecto”. É nessa medida que o uso das fotografias nas pesquisas científicas pode potencializar a compreensão das prá-
ticas cotidianas que as animam e que elas animam.

Toda fotografia tem um extracampo, isso é, tudo aquilo que escapa ao enquadramento e à composição criados
pelo fotógrafo, mas faz parte do contexto da prática fotográfica. Do contexto das práticas fotográficas fazem parte,
entre outras coisas, as suas intenções e as condições de produção. As imagens fotográficas, em sua realidade material e
simbólica, podem revelar, ocultar e/ou extrapolar as intenções e as condições de produção.

Na minha pesquisa sobre a comunicação praticada na escola, as fotografias produzidas e interpretadas podem
ser pensadas em meio a um fora do campo de visão, que incluí, no contexto de produção, o agenciamento do olhar
pela proposta que vinha sendo delineada para a tese e pelas leituras que eu vinha realizando paralelamente ao trabalho
no campo.
76

A seguir, trago mais um fragmento do trabalho, no qual as fotos da escola podem ser consideradas tanto produ-
tos como produtoras de fabulações sobre as práticas educativas.

Para discutir os currículos praticados na escola Álvaro de Castro Mattos – em suas relações com os meios e as
lógicas da comunicação – recorri às leituras que vinha fazendo, às narrativas dos praticantes dos cotidianos da escola e
às fotos que produzi em espaçostempos diversos e dispersos da pesquisa. No momento da escritura da tese, contudo, foi
preciso fazer uma edição e colocar uma ordem no caos.

Assim, em determinado capítulo, no qual buscava dar conta da ambiência comunicacional na qual estava inserida
a escola, convoquei o conceito de cosmotecnologia formulado por Marc Augé (2004).Valendo-se de sua trajetória como
antropólogo, Augé cria o conceito de cosmotecnologia para definir uma condição contemporânea em que o ordenamen-
to e o sentido do mundo parecem ser produzidos na ambiência cotidiana das redes corporativas de comunicação.

Segundo Augé, a cosmotecnologia seria uma versão atual, mediada pelas mídias, da cosmologia que, por sua vez,
constitui o conjunto das representações do universo, do mundo e da sociedade construídos pelos membros de um gru-
po com o propósito de apontar a todos os pontos de referência para conhecer seus lugares, saber o que lhes é possível e
impossível, autorizado e interditado. Esses pontos de referência podem inscrever-se materialmente no espaço, gravar-se
em utensílios e instrumentos da vida cotidiana ou, eventualmente, na própria carne. Os mitos desenvolveriam as cos-
mologias e os ritos as aplicariam. As vidas humanas, em princípio, se ordenariam sobre o modelo assim definido.

Contudo, as fotos que fiz na escola me davam outros indícios. Elas sugeriam que, apesar de não midiatizados,
os modos de funcionamento das cosmologias, como os explicitados por Augé, continuavam vigorando e implicavam
também em relações comunicacionais imbricadas com relações de poder. As imagens produzidas para registrar me-
ramente a existência de recursos de comunicação na escola ultrapassaram a intenção que motivou a sua fabricação e
possibilitaram que eu discutisse os currículos vividos a partir da sinalização (placas, cartazes, etc.) que buscava organizar
os espaços arquitetônicos e sociais. Pude perceber que aquela sinalização e seus usos tinham a intenção de instituir e
comunicar os modos desejados de ocupação dos espaçostempos, bem como as formas de relações neles permitidas.

Em uma foto que tirei durante um evento em comemoração ao dia do estudante, a linha amarela da quadra
usada como fronteira entre o lugar da professora e o lugar a ser ocupado pelos alunos me chamou atenção e foi tomada
como um sinal das relações de poder/saber e da demarcação de territórios na escola.
77

Na mesma série de imagens feitas naquele dia, outras fotos remetem a aspectos do extracampo da imagem
anteriormente citada, ou seja, o que já estava lá, mas não foi focado na primeira composição. Essas outras fotos, feitas a
partir de diferentes ângulos, mostram alunos em outros espaços, ocupando a quadra de esportes a sua maneira, sem se
deixar aprisionar pela determinação em relação à ocupação do espaço.

Essas imagens, em seu conjunto, me levaram a fabular sobre a complexidade do cotidiano e sobre a heterogenei-
Professora e alunos organizados no
dade de modos possíveis de habitar e de produzir o lugar. Dessa nova compreensão sobre o ocorrido naquele dia, cons- pátio no dia da festa em comemoração
ao Dia do Estudante.
truída a partir da análise dos diversos ângulos de visão materializados e simbolizados nas fotos, participaram também os
professores. Se, logo após a realização do evento eles se queixaram da indisciplina dos alunos, em suas novas fabulações,
a partir das análises das fotos, consideraram que houve uma auto-organização, ao invés de uma desorganização.

Narrativas como “Eu fiquei até com vergonha. O coral, você, todo mundo vendo aquela desorganização toda!”
e “Pois é, não vale a pena organizar nada não. Parece até que eles queriam é que não tivesse nada programado, pra eles
ficarem aí soltos, pra brincar”, foram, depois da análise das imagens, acrescidas de outras, tais como “É, olha só, os maio-
res pra lá, os menores pra cá”, “meninos com meninos, meninas com meninas”,” tem também menino com menina,
A organização, vista por outro ângulo.
mas da mesma idade” e “ tem gente até fazendo o dever de casa!”

Em outras duas fotos, uma luz acidental me intrigou e tornou extraordinária a aparente banalidade das indi-
cações ‘feminino’ e ‘masculino’ na porta dos banheiros. Essas sinalizações, marcadas pela luz, distinguiram-se das outras
e, na minha interpretação, operaram como pistas das relações de gênero e das políticas do sexo praticadas e disputadas
na escola.

Tomadas como expressões das dimensões materiais dos currículos vividos, essas imagens impulsionaram, na
Banheiro feminino.
minha tese, o desenvolvimento de um pensamento sobre a produção de subjetividades e a conformação de identidades
em meio às redes de saberesfazeres e relações engendradas no cotidiano escolar. A discussão, que ultrapassou a investiga-
ção dos usos dos meios e tecnologias da comunicação, foi realizada também a partir de uma multiplicidade de pontos
de vistas indicados em outras fotos que retratavam modos de ocupação das quadras esportivas, projetos desenvolvidos
na escola e encenações apresentadas nas festas, além das conversações com alunos, professores e teóricos a respeito da
referida problemática. Banheiro masculino.
78

Para além do conhecimento dos contextos de produção e interpretação, uma imagem fotográfica, como pro-
duto material e simbólico, pode conter em si mesma alguma coisa que potencialize o deslocamento do pensamento e a
ultrapassagem da intenção de apresentar e representar a experiência vivida? Para Barthes (2006), a imagem fotográfica,
mesmo sendo dependente do real, pode conter sim alguma coisa que nos lance o desejo para além daquilo que dá a
Meninos jogando bola na quadra e
ver. Essa coisa, uma espécie de marca que impregna a imagem, como a linha amarela na quadra e a luz na porta dos meninas na arquibancada.
banheiros é o que ele chama de punctum.

O studium, o punctum e o corpo nas fotografias praticadas

“O que o meu corpo sabe da Fotografia?” Essa pergunta formulada por Barthes (2006, p. 17) no contexto
do seu interesse ontológico em definir o que é uma fotografia, levou-o a desenvolver um pensamento sobre as pos- A dona da bola.
sibilidades de interpretação e conhecimento geradas pela imagem técnica. Partiu então dos efeitos que as fotografias
provocavam no seu corpo, desde inércia e apatia até uma vibração diferente, diante da qual a palavra interesse não
seria suficiente para definir o que se passava com ele. “É antes uma agitação interior, uma festa, também um trabalho,
a pressão do indizível que quer ser dito” (Barthes, 2006, p. 27).

O que faz com que uma fotografia provoque um tilt em nosso corpo, o que faz com que ela nos aconteça, nos Meninos posam em frente ao painel
“Acorda Raimundo” criado no contexto
anime e nos leve a animá-la e outras não? Para Barthes é o punctum contido na imagem e que nos desloca para uma de uma discussão de gênero. Tensão.
aventura, ao contrário do studium, que produz apenas um afeto médio, uma espécie de investimento empolgado, mas
sem acuidade particular.

Conforme esse autor, é pelo studium que nos interessamos por algumas imagens que, graças ao investimento
nas nossas “consciências soberanas”, são recebidas como testemunhos ou como bons quadros históricos. Isso é possível
porque culturalmente nos identificamos com ou identificamos as figuras, as expressões, os gestos e os cenários. Meninas posam em frente ao mesmo
painel. À vontade.
Reconhecer o stadium é, fatalmente, descobrir as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-
las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discuti-las interiormente, pois a cultura (a que se liga ao stadium) é um
contrato feito entre os criadores e os consumidores. O stadium é uma espécie de educação (saber e delicadeza) que me
permite encontrar o Operador, viver os pontos de vista que criam e animam as suas práticas, mas, de certo modo, vivê-
los inversamente, segundo o meu querer de Spectador. (Barthes, 2006, p. 36)
79

Um outro elemento, no entanto, vem escandir o studium, ele salta da cena e transpassa nosso corpo como uma
flecha provocando uma ferida, uma picada. Esse ponto sensível que se destaca nas fotos é denominado por Barthes
como punctum. Essa marca, esse pequeno corte, é um acaso que apunhala.

O punctum é um pormenor que possui uma força de expansão que pode acrescentar qualquer coisa à fotografia.
Segundo Barthes, o pormenor que interessa não é intencional, ele encontra-se no campo da coisa fotografada como
um suplemento inevitável e gracioso.

Apresento, então, mais um fragmento da minha pesquisa, no qual um pormenor em uma foto realizada me
permitiu fabular sobre os usos dos meios de comunicação na escola.

Com o objetivo de registrar a presença dos meios de comunicação na EMEF Álvaro de Castro Mattos, empre-
endi, na companhia de alguns alunos, um verdadeiro tour pelas suas dependências, disparando o obturador da minha
câmera na direção de todos os produtos e máquinas comunicacionais que via pela frente. Quando cheguei ao refeitório
encontrei uma televisão desligada, mas as crianças resolveram ligar o aparelho e encenar que estavam assistindo a um
programa de televisão. Quando ligaram o aparelho, a TV estava sintonizada no SBT. Então, eles mudaram de canal e
botaram na TV Globo para “sair bem na foto” (expressão muito usada para nos gabarmos quando “nos demos bem”,
quando fomos bem vistos, bem avaliados em alguma ocasião). Mesmo com, e apesar de, toda a encenação ali criada,
um dos meninos preferiu olhar para a câmera fotográfica a olhar para a televisão.

Eu não tinha prestado atenção nesse detalhe quando apertei o botão e disparei o obturador, mas ele saltou da
Alunos posam encenando que assistem
cena quando eu observei a foto. Este acaso, este pormenor, este punctum me lançou para além daquilo que se dava a TV no refeitório.
ver. Tratava-se de um desvio em relação ao que foi por eles previsto e/ou integração à lógica da visibilidade agenciada
pelas mídias? Provavelmente “tudo ao mesmo tempo agora”. Na cultura da visualidade não basta ver, é preciso ser visto.
Só quem é visto e é reconhecido existe. Já que é assim, o menino também queria sair bem na foto.

A questão suscitada pela análise da imagem do menino olhando para a câmera remete a outro aspecto da re-
lação entre corpo e fotografia. Trata-se do corpo do fotografado. Conforme Barthes, no momento em que as pessoas
se sentem olhadas pela lente da câmera fotográfica, tudo muda. Elas fazem poses, fabricam instantaneamente outros
corpos, metamorfoseiam-se antecipadamente em imagem. Assim, para ele, a fotografia cria o corpo do fotografado e
ao mesmo tempo mortifica-o a seu bel-prazer.
80

Martins (2008) acrescenta que, em várias circunstâncias, o fotografado é coadjuvante do ato fotográfico. Nesses
casos, a ficção subjetiva do fotografado interfere na composição e no dar-se a ver para a concretização da fotografia. As
pessoas são fotografadas representando-se na sociedade e representando-se para a sociedade, e a fotografia é parte da
encenação. O que a fotografia documenta, segundo esse autor, é a sociabilidade como dramaturgia.

O conceito devir-imagético, desenvolvido por Gonçalves e Head (2009) no contexto da análise dos usos de
Aluna faz pose para colega fotografar.
imagens na pesquisa antropológica, busca mostrar a possibilidade de emergência de personagens que se apresentam e
representam a partir de uma relação. Para os autores, as mídias fotográficas e o imaginário imagético que elas animam
fazem parte do corpo “etnográfico-ciborgue” que conecta a ciência ao mundo dos outros e às representações e apre-
sentações que estes outros fazem de seus mundos e dos nossos mundos.

As imagens, nessa perspectiva, são pensadas como formas de extensão de um suposto “eu” em direção a um
suposto “outro”, implicando a intersubjetividade, a multiplicidade, a performatividade e a encenação em meio as quais
nos constituímos. O que está em questão é a ampliação da capacidade imaginativa, o que, segundo Gonçalves e Head,
possibilita outros modos pelos quais os indivíduos imaginam sobre si e sobre o outro, redefinindo a idéia de represen-
tação (na perspectiva do realismo) e abrindo caminho para a fabulação e a ficção.

Os autores sugerem que a “função fabuladora” aposta na evocação de uma potente falsidade sobre si, em opo-
sição às verdades constituídas. O personagem criado não é real nem fictício, pois a autorrepresentação estaria aderida
a uma formulação do devir da personagem real quando ela se põe a ficcionar, contribuindo para a invenção de si e de
seu grupo.

Crônicas visuais da escola e as pesquisas em educação

Basta flanar pelos espaçostempos das escolas para observarmos uma enorme quantidade de cartazes e painéis
compostos por fotografias. Esses artefatos são fabricados tanto para mostrar ou realizar práticas educativas como para
construir a memória da escola. Na EMEF Álvaro de Castro Mattos a situação não era diferente.

Durante todo o tempo que frequentei a escola, vi e fotografei vários cartazes e painéis, confeccionados por Cartaz produzido por alunos no
formato “povo-fala” apresenta usos da
alunos e por professores, nos quais eram utilizadas fotos feitas por eles mesmos ou recortadas de revistas e jornais. matemática.
81

Alguns desses trabalhos foram produzidos por alunos como atividades das disciplinas, como o cartaz intitulado
“Cada Opinião”, criado a partir de um “dever de casa” proposto pela professora de matemática para discutir as apli-
cações dos conteúdos da matéria na vida cotidiana. Os alunos saíram às ruas, entrevistaram e fotografaram pessoas que
usam a matemática no seu dia a dia. O que me chamou atenção nesse artefato foi a formatação no estilo “povo-fala”
muito comum no jornalismo.

Outros painéis, produzidos por alunos como trabalhos de diversas disciplinas, utilizavam fotografias de jornais e
Cartaz produzido por professores com
revistas que, deslocadas dos contextos originais, produziam outras mensagens com as marcas dos praticantes da cultura, fotos de revistas convidando para
reunião do Conselho de Escola.
no caso, de uma cultura visual. Essa lógica operatória, muito comum na escola, pode ser observada também em cartazes
confeccionados por professores e pedagogos para divulgar eventos dos mais diversos tipos.

Conforme Certeau,
Produtores desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas selvas da racionalidade
funcionalista, os consumidores produzem uma coisa que se assemelha às “linhas de erre” de que fala
Deligny. Traçam “trajetórias indeterminadas”, aparentemente desprovidas de sentido por que não são
coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam. São frases imprevisíveis
num lugar ordenado pelas técnicas organizadoras de sistemas. Embora tenham como material os
vocabulários das línguas recebidas (o vocabulário da TV, o do jornal, o do supermercado ou das disposições
urbanísticas), embora fiquem enquadradas por sintaxes prescritas (modos temporais dos horários,
organizações paradigmáticas dos lugares, etc.), essas “trilhas” continuam heterogêneas aos sistemas onde
se infiltram e onde esboçam as astúcias de interesses e de desejos diferentes (1994, p. 97).

A maior parte dos painéis fabricados por professores foi criada para registrar atividades pedagógicas desenvol-
vidas pela escola ou para marcar datas importantes para a instituição e seus membros. Nesses casos, as imagens têm a
função de fixar na memória de todos, para salvaguardar do esquecimento, a história da EMEF Álvaro de Castro Mat-
tos. Um processo que implica em construção e afirmação de identidade, pertencimento e produção de sentido para o
cotidiano.
Painel fotográfico em homenagem ao
Entendo que as fotos produzidas na/pela escola funcionam como as fotografias dos álbuns de família. Segundo Dia do Professor.

Sontag, “por meio das fotos, cada família constrói uma crônica visual de si mesma – um conjunto portátil de imagens
que dá testemunho da sua coesão” (2004, p. 19).
82

Fotografar, como afirma a autora, é atribuir importância e, dessa forma, redimir o tosco e o banal. Para ela,
Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a
pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante
ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a
sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça – como uma antologia de imagens
(Sontag, 2004, p. 13).

Martins (2008) acrescenta que fotografamos apenas o que consideramos valer a pena, o que queremos que
fique. Por isso a fotografia não é memória, mas aponta para a memória e tece uma história por meio de revelações e
ocultações.
A fotografia, vista como conjunto narrativo de histórias, e não como mero fragmento imagético, se propõe
como memória dos dilaceramentos, das rupturas, dos abismos e distanciamentos, como recordação do
impossível, do que não ficou e não retornará. Memória das perdas. Memória desejada e indesejada.
Memória do que opõe a sociedade moderna à sociedade tradicional, memória do comunitário que não
dura, que não permanece. Memória de uma sociedade de perdas sociais contínuas e constitutivas, de uma
sociedade que precisa ser recriada todos os dias, de uma sociedade mais de estranhamentos do que de
afetos (Martins, 2008, p. 45).

As práticas de fotografar sugerem, assim, uma ampla necessidade de passado na vida cotidiana, ou seja, a ne-
cessidade de um modo de viver o presente recusando seu caráter passageiro. Segundo Martins, há uma dramaturgia
na vida social que torna a fotografia necessária. Ela tornou-se um fator de introdução de um tempo prospectivo em
vidas vividas em que a visibilidade da condição social se apoia não só na exacerbação do aparente, mas transforma-se
em meta de vida. É assim que, conforme esse autor, a fotografia entra nos processos interativos, dos quais ela é, simul-
taneamente, instrumento e indício.

Aplicada à pesquisa científica e às práticas educativas, a fotografia tem sido usada para testemunhar, ilustrar,
comprovar, rememorar, problematizar. Contudo, como adverte Kossoy (2007), o índice fotográfico é um indício, uma
pista, e deve ser tomado como um produto e um processo de criação/construção ambíguo por excelência.

As fotografias nas/das/com as escolas são, portanto, documentos ambíguos de cotidianos ambíguos, que con-
têm em si realidades e ficções, vivências e prospecções. Um documento que deve ser analisado como verossimilhança
83

e como ilusão e na unidade desses aspectos. Um documento, como afirma Martins (2008, p. 36), “da tensão entre
ocultação e revelação, tão característica da cotidianidade”. Enfim, como propõe Head (2009), a potência da fotografia
é ser mais fiel à vivacidade da vida do que à verdade do mundo.

Referências bibliográficas
AUGÉ, Marc. ¿Por qué vivimos? Por una antropología de los fins. Barcelona, Espanha: Gedisa, 2004.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 2007.
CANCLINI, Nestor Garcia. Fotografia e ideologia: seus pontos comuns. In: Feito na América Latina: II Colóquio Latino-Americano de Fotografia. Rio
de Janeiro: Funarte, 1987.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
FLUSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
GONÇALVES, Marco A.; HEAD, Scott. Confabulações da alteridade: imagens dos outros (e) de si mesmos. In. GONÇALVES, Marco Antonio;
HEAD, Scott (Org.). Devires imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.
HEAD, Scott. Olhares e feitiços em jogo: uma luta dançada entre imagem e texto. In. GONÇALVES, Marco Antonio; HEAD, Scott (Org.). Devires
imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007.
MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto, 2008.
SOARES, M. C. S. A comunicação praticada com o cotidiano da escola: currículos, conhecimentos e sentidos. Vitória, ES: Espaçolivros, 2009.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
84

Memórias de professoras sobre a televisão e o


vídeo: narrativas, imagens e sons
Maja Vargas

Nilda Alves

1
O uso deste termo no feminino
tem a ver com uma posição po-
lítico-acadêmica assumida há
De modo recorrente, ouvimos afirmativas de que as professoras1 não “gostam de tecnologia”, “não usam te- algum tempo que entende ser
importante admitir o majoritá-
levisão”, “não querem trabalhar com computador”... As pesquisas que desenvolvemos permitem, no entanto, mostrar rio contingente de mulheres que
aspectos que contrariam esses “ditos”, mostrando-os como preconceituosos e não abertos aos modos diferentes – ética existe nessa profissão. Isso tem,
a nosso ver, importância no
e esteticamente – como as chamadas “novas tecnologias” vêm sendo assumidas pelos “praticantes” (Certeau, 1994) modo como o campo se desen-
docentes e aos modos como esses fazem “uso” das mesmas. volve e precisa ser pesquisado.

Certeau (1994), indicando a necessidade de nos dedicarmos a compreender os modos de uso dos artefatos
culturais pelos usuários, diz que
diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se
uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica suas 2
O texto tem origem nas pesqui-
astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu sas “Memórias de professoras
sobre televisão: o cotidiano
murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos escolar e a televisão na repro-
próprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos. (p. 94) dução, transmissão e criação
de valores” e “O uso da tecno-
logia de imagens e de sons por
É nessa direção que, nos projetos2 que dão origem a esse texto, trabalhamos assumindo uma abordagem teóri- professoras de jovens e adultos
co-epistemológico-metodológica organizada em torno das seguintes ideias, noções e relações: tessitura de conhecimentos e a tessitura de conhecimentos
(valores) no cotidiano: a ética
e significações no cotidiano e valores; formação continuada de professoras e uso da tecnologia; autoria, memória e narrativa; imagem e a estética que nos fazem pro-
e som. fessoras”, desenvolvidas entre
2000 e 2005 (financiamento
CNPq e Uerj/Faperj).
85

Adotamos, assim, nessas pesquisas, um referencial epistemológico que permitisse captar as múltiplas redes de
conhecimentos e significações tecidas pelos praticantes dos cotidianos (Certeau, 1994) ao longo de suas vidas. Nessas re-
des, esses praticantes reproduzem, transmitem e criam múltiplos e complexos conhecimentos, neles incluídos os valores
(Houssaye, 1992), entendidos, por nós, como conhecimentos especiais que orientam as ações cotidianas. Nas pesquisas
desenvolvidas, esses praticantes são professoras que trabalham na educação básica onde desenvolvem o que é chamado
de currículos praticados (Oliveira, 2003).

Através de narrativas que nos fizeram sobre suas ações nas múltiplas redes em que atuam, mostrando, com fre-
quência, imagens e lembrando de sons, buscamos entender de que maneira essas praticantes tecem suas vivências coti-
dianas, em processos nos quais transformam e formam valores no contato permanente que mantêm com os múltiplos
artefatos culturais, trabalhando diversas tecnologias. Entendemos, nessas pesquisas, que os artefatos culturais são todos os pro-
dutos colocados à disposição pelo poder proprietário (Certeau, 1994), de ideologias a políticas, de produtos tecnológicos
elaborados a simples recursos materiais ordinários, e que são usados (Certeau, 1994) pelos praticantes em seus cotidianos.
Quanto às tecnologias, entendemos como Williams (1992) que
uma técnica é uma habilidade particular ou a aplicação de uma habilidade. Um invento técnico é, por
conseguinte, o desenvolvimento desta habilidade, ou o desenvolvimento ou invenção de um de seus
engenhos. Em contraste, uma tecnologia é, em primeiro lugar, o marco de conhecimentos necessários para
o desenvolvimento dessa habilidade e suas aplicações e, em segundo lugar, o marco de conhecimentos e
condições para a utilização e aplicação de práticas de uma série de engenhos (p. 184).
3
A escrita desses termos dessa ma-
neira visa mostrar a necessidade
Dessa maneira, no estudo dos processos que se dão, permanentemente, nos diversos espaçostempos3 das escolas, que temos sentido de superar as
entendemos estar contribuindo para contar uma outra história da escola, diferente da “oficial” ou, pelo menos, daquela heranças modernas, nos estudos
com os cotidianos.
que utiliza como fonte, unicamente, os documentos de origem oficial.

Assim, no trabalho desenvolvido, entendemos o praticante docente da escola como espectador comum na necessi-
dade que tem de articular a imagem com a narrativa (Manguel, 2001) na qual a memória de sons surge, também, necessa-
riamente. Esse trabalho de lembrança, nas pesquisas desenvolvidas, é feito através de processos (Von Foester, 1995) que
permitem o surgimento e respeitam a memória tecida por professoras sobre televisão e vídeo.

Assumimos, então, que para compreender os processos de tessitura de conhecimentos nos cotidianos das escolas
86

é preciso contá-los. Isso significa que entendemos ser necessário ouvir o que seus praticantes têm a dizer sobre as tantas
e tão diferentes histórias vividas nas artes de fazer dos processos pedagógicos diários. Nas narrativas ditas e ouvidas, a
praticante docente vive e conta tanto sobre esses processos, nos quais está/esteve envolvida, quanto sobre as ideias e os
valores que os formam e os sustentam, como incorporam, nas narrativas feitas, imagens e sons sobre os mesmos, dando
pistas valiosas sobre o que aconteceu/acontece em cotidianos das escolas em que trabalha e trabalhou. Podemos, com
isso, afirmar que uma imagem [um som] dá origem a uma história que, por sua vez, dá origem a uma imagem [lembra um som]
(Manguel, 1991).

Compreendemos ser, portanto, importante buscar entender as memórias de professoras sobre o meio televisão/
vídeo, em suas tecnologias de uso, incorporando não só as redes de significados de imagens e de sons que organizou
até um determinado momento de sua vida, mas ainda buscando com elas praticar as condições e possibilidades des-
ses artefatos culturais como necessidade para o surgimento, a acumulação e a análise de memórias dos/nos/com os
cotidianos da escola. Ou seja, entendemos ser possível o surgimento de narrativas sobre os cotidianos escolares, no
momento mesmo em que uma proposta de criação de um vídeo é feita a um grupo de professoras. Os vídeos criados
sobre narrativas feitas, tanto quanto o material acumulado no chamado making of do trabalho, permite a criação de um
corpus de igual possibilidade de análise, quanto ao que dizem/lembram durante todo o processo, como em relação às
opções que fazem na criação do vídeo.

Buscamos, assim, compreender os processos de reprodução, transformação e criação de valores (éticos e estéti-
cos) na própria ação de professoras em processos de formação, nos usos que fazem de artefatos tecnológicos contem-
porâneos com imagens e sons e como essas praticantes negociam mudanças em suas práticas curriculares cotidianas,
nesses processos.

Uso de artefatos tecnológicos contemporâneos, imagens e sons como elementos de


pesquisa

Já há muito tempo, diversos membros do Laboratório Educação e Imagem vêm usando imagens sobre diversos
suportes (desenhos/charges; quadros e esculturas; fotografias; imagens de propaganda; vídeos e filmes; bordados) nos
processos de busca de compreensão dos múltiplos espaçostempos educativos cotidianos. Nesses projetos, podemos identi-
87

ficar os diversos usos que vêm sendo feitos dessas imagens: 1) como recurso para organizar o pensamento ou estimular
a memória dos sujeitos de pesquisa; 2) como registro de situações de pesquisa; 3) como fonte de pesquisa; 4) como
4
Sousa Dias (1995), a respeito des-
modo de capacitação científica e tecnológica, em especial de bolsistas de iniciação científica e outros membros de sa ideia, diz que os personagens
pesquisas; 5) no desenvolvimento de modos e processos de superação dos processos tradicionais de ensino e pesquisa; conceituais (...) designam (...)
elementos íntimos da atividade
6) como “personagens conceituais” (Deleuze, 1991; Sousa Dias, 1995).4 Nesse sentido, de maneira diversificada, temos filosófica, condições dessa ati-
buscado entender que o seu uso em pesquisas tanto pode ser fonte de conhecimentos como metodologia de trabalho vidade, os “intercessores” do
pensador, as figuras ideais de
e, também, como algo sem o qual as pesquisas com os cotidianos não poderiam se desenvolver. intercessão sem as quais não há
pensamento, filosofia, criação
Entendemos, assim, que é preciso ter presente que, se as imagens têm um significado para quem as fez, podem de conceitos (p. 61-62), basean-
mostrar outras coisas para quem as vai ‘ver’, ao serem usadas nas múltiplas situações possíveis de uma pesquisa. Por do-se em estudo desenvolvido
sobre o pensamento de Deleuze
isso mesmo, Gombrich (in Samain, 1996) lembra que a significação de uma imagem permanece em grande parte tributária e Guattari (1991;1995) que afir-
da experiência e do saber que a pessoa que a contempla adquiriu anteriormente. Neste tocante, a imagem visual não é uma simples mam que os personagens con-
ceituais são os ‘heterônimos’ do
representação da ‘realidade’ e sim um sistema simbólico (p. 11). Assumimos, então que toda a análise que for feita estará, ne- filósofo, e o nome do filósofo, o
cessariamente, dentro das redes de significação das múltiplas experiências dos diferentes sujeitos envolvidos nas pesqui- simples pseudônimo dos seus
personagens (p. 62).
sas. Nessas, tem sido possível a acumulação de um acervo importante de imagens fixas ou em movimento, o que vem
permitindo a recuperação de memórias sobre os tantos espaçostempos das múltiplas redes educativas, quer sobre ‘usos’
de artefatos culturais, quer de ações variadas de ‘praticantes’ desses espaçostempos (docentes, discentes, pais, servidores
diversos, membros da comunidade local, etc.), quer de ‘acontecimentos’ (Foucault, 1971) que unem uns aos outros.

Dessa forma, entendemos que o envolvimento, nesses processos cotidianos, de seus praticantes, tanto em traje-
tórias pessoais como institucionais, e o conhecimento de suas criações cotidianas pelo uso de imagens e sons é, assim,
condição necessária ao desenvolvimento dessas pesquisas.

Por isso mesmo, entendemos o acesso à realização de imagens e o domínio de sons e de processos tecnológicos,
que envolvem a sua fabricação, como um direito dos ‘praticantes’ da escola e dos vários contextos educativos. Trabalha-
mos, assim, nos diversos grupos do Laboratório com experiências/artes de fazer fotografias, histórias em quadrinho,
vídeos, etc. Na análise de todo o material produzido é que vão surgindo os dados da pesquisa que não busca, nunca, a
generalização, mas sim compreender a diversidade de práticas e de valores, bem como os múltiplos aspectos culturais
de uso e criação desses ‘produtos’.
88

A participação nessas práticas tem sido compreendida como processo indispensável à formação de pesquisadores, 5
Os membros dos três grupos fize-
ram sua inscrição livremente, a
assim como de reconhecimento e articulação/mudança nas identidades dos praticantes. partir de informações que foram
dadas às escolas da rede muni-
A marca de autoria visível, nesses processos, tem permitido caminhos de análises diversificados, tanto como cipal do Rio de Janeiro pela Se-
uma acumulação significativa de novas possibilidades teórico-epistemológicas e teórico-metodológicas. cretaria Municipal de Educação,
por iniciativa da Coordenadoria
da EJA (Educação de Jovens e
Uma pequena descrição do trabalho desenvolvido e os vídeos criados Adultos).

Compreender as pesquisas realizadas pelo grupo exige a descrição do processo para obtenção do corpus sobre o
qual trabalhamos, bem como a apresentação de algumas conclusões que já são possíveis, inclusive imagética.

Desenvolvemos, durante certo período, uma série de encontros com três diferentes grupos de professores da
rede municipal do Rio de Janeiro, com a finalidade de criar três vídeos sobre uma temática escolhida por cada gru-
po e com o uso de modos de expressão variados. Em outras palavras, cada vídeo foi pensado e criado do argumento
ao roteiro, da filmagem de cenas com personagens previamente criados pelo grupo à decisão sobre os sons que o
Vídeo – Perfis
acompanham (vozes, músicas, etc.). Todo esse trabalho foi acompanhado, sempre: pela coordenadora da pesquisa; por
Cláudia Chagas, então mestranda do ProPed, como responsável pela organização geral dos aspectos materiais; por Val-
ter Filé, então doutorando do Programa, e Maja Vargas, então mestranda, exercendo orientação técnica; e por bolsistas
IC (CNPq e Uerj), no que se refere às filmagens e produção dos vídeos. Como se vê, além dos sessenta professores e
professoras que passaram pela experiência, os projetos exigiram uma equipe multidisciplinar.

A produção de cada vídeo se deu em ‘oficinas’ com quinze a dezoito encontros semanais, em acordo com o Vídeo – Cara e Coroa: a outra face do
grupo com o qual se trabalhava.5 Algumas condições materiais e de trabalho do pessoal envolvido precisam ser lem- professor

brados, pois têm, necessariamente, influência sobre o que é produzido. É preciso dizer que a proposta de trabalho foi
aceita com muito entusiasmo pelos grupos, mas as condições de vida e trabalho não permitiam a permanência de todos
até o fim: começávamos o grupo com vinte e cinco inscritos, mas terminávamos com vinte.

Vídeo – O curso e o (re)curso da


tecnologia: do usuário ao uso diário
89

À guisa de conclusão

Se os leitores viram os vídeos poderão entender que os três, criados por grupos diferentes, apresentam uma
certa sequência. Como o que tinha sido produzido pelo(s) grupo(s) anterior(es) era mostrado no primeiro encontro,
o segundo grupo, ao ver o que o primeiro tinha produzido – problemas que docentes enfrentam com elementos do
tráfico na escola –, decidiram que era preciso mostrar que a escola possuía alunos que criavam belezas e que eram res-
ponsáveis socialmente. Já o terceiro grupo, entendendo que os dois primeiros se preocuparam com os alunos, percebeu
que deveriam mostrar como os docentes tinham vida social variada e movimentada.

Os grupos eram sempre muito animados e, embora com uma frequência que variava a cada encontro, todos os
seus membros acompanharam muito bem os processos desenvolvidos em função, acreditamos nós, de encontros que man-
tinham em outros espaçostempos. Ou seja, esses processos de formação exigem, com certeza, uma aproximação de interesses
e práticas que permitem aos seus sujeitos se entenderem ‘com meias palavras’ e conviverem em múltiplos espaçostempos.

No entanto, como em todo grupo, a participação de alguns de seus membros foi particularmente notável, seja
pelo encaminhamento que davam às propostas produzidas pelo grupo, seja pela rapidez com que se colocavam a pro-
duzir o que era necessário, seja, ainda, pelas engenhosas saídas que encontravam. Em algumas tendências sociológicas,
esse é o papel do líder. Queremos entender, no entanto, que essa é a capacidade que um grupo tem de mobilizar ca-
racterísticas positivas específicas em cada um de seus membros.

Além disso, pelo que traziam em cada encontro, percebemos que tudo aquilo que era discutido, criado e pro-
duzido pelo grupo era, de modo rápido, levado pela maioria dos membros do grupo a outros espaçostempos cotidianos,
o que nos coloca frente ao questionamento de algo que, com frequência se diz de professoras e professores, tal como:
“não querem nada”; “não usam as tecnologias”; “não produzem nada juntos” – o entusiasmo demonstrado, para não se
dizer da frequência a esta atividade em seus momentos de descanso mostram aspectos muito diferentes desses.

Organizado desde o início com a SME/Rio de Janeiro, coordenadoria de EJA, o projeto pode se desenvolver
sem qualquer tipo de interferência ou exigência e, mesmo, antes pelo contrário: contamos com presença amiga de al-
guma pessoa do grupo central, sempre que necessário, bem como no momento festivo de encerramento de cada curso
quando fazíamos a entrega dos certificados e o vídeo produzido pelo grupo era apresentado.
90

A riqueza de narrativas sobre práticas sociais e práticas curriculares foi sempre muito grande e a disposição para
usarem imagens variadas estava sempre presente. Mais uma vez, a generosidade de professoras e professores em entre-
garem suas memórias nesses processos nos deixa devedores eternos e seus grandes admiradores. 6
Acontecimento – é preciso enten-
dê-lo não como uma decisão,
Os conhecimentos presentes nas discussões durante o processo, sobre artefatos tecnológicos – aparelhos, má- um tratado, um reinado ou uma
quinas, imagens e sons (além de muitos outros) –, bem como sobre as transformações e os modos de criação de valores batalha, mas como uma relação
de forças que se inverte, um po-
éticos e estéticos, estiveram sempre presentes nos grupos. Os acontecimentos, no sentido que lhe dá Foucault,6 presentes der confiscado, um vocabulário
nas narrativas feitas trabalhados, contribuíram bastante na produção teórica da noção de redes de conhecimentos e signifi- retomado e voltado contra seus
usuários, uma dominação que
cações, tal como o grupo de pesquisa vem trabalhando e desenvolvendo nos processos de pesquisa com os cotidianos. se debilita, se distende, se en-
venena a si mesma, e outra que
Referências bibliográficas entra, mascarada. As forças em
CERTEAU, Michel de (1994). A invenção do cotidiano – as artes de fazer. Petrópolis: Vozes.
jogo na história não obedecem
nem a um destino, nem a uma
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Ed. Minuit, 1991.
mecânica, mas efetivamente
___________. Mil platôs. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. vol. 1.
ao acaso da luta. Elas não se
Visión y conocimiento: disfunciones de segundo orden. In: SCHINITMAN, Dora F. Nuevos paradigmas, cultura y subjetividad.
FOESTER, Heinz von. ���������������������������������������������������� manifestam como as formas
Buenos Aires: Paidós, 1995. p. 91-113.
sucessivas de uma intenção pri-
FOUCAULT, Michel. L’Ordre du discours – leçon inaugurale au Collège de France prononcé. Paris: Gallimard, 19���
71. mordial; tão pouco assumem o
HOUSSAYE, Jean. Les valeurs à l’école – l’éducation aux temps da la sécularisation. Paris:
�����������������
PUF, 1992. aspecto de um resultado. Apa-
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. S. Paulo: Companhia das Letras, 2001. recem sempre no aleatório sin-
OLIVEIRA, Inês B. Currículos praticados. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003. gular do acontecimento (Fou-
SAMAIN, Etienne. Questões heurísticas em torno do uso das imagens nas ciências sociais. In: BARROS, Armando M. (Org.). Anais do Seminário cault, 1971, p. 145-172).
‘Pedagogia da imagem, imagem da Pedagogia’. Niterói, RJ: UFF/ Faculdade de Educação, 1996. p. 07-17.
SOUSA DIAS. Lógica do acontecimento. Porto: Afrontamento, 1995.
WILLIAMS, Raymond. História de la comunicación – del lenguaje a la escritura I e II. Barcelona: Bosch, 1992.
91

Fotografia, educação e tempo: cortar-ser cortado1


1
Deleuze (2004. p. 9).
por imagens

Alik Wunder

Intensidade tátil

Eu queria aprofundá-la (a fotografia) não como uma questão (um tema), mas como uma ferida: vejo,
sinto, portanto noto, olho e penso.
Barthes, 1984, p. 39

No encontro de nossos olhos, pele-retina com a pele-fotografia, pulsa um desejo de contato, uma intensidade tátil.
A fotografia se efetua em nós como um vínculo que “liga nosso olhar ao corpo da coisa fotografada” (Barthes, 1984, p.
121). Nesse desejo que se deita sobre nossos olhos,“a luz impalpável se faz meio carnal”, materializada em uma película
fina e sensível. Entre o fotografado e quem olha uma fotografia há uma força de continuidade e união: pele-retina-len-
te-película-papel-retina-pele. Como se o olhar pudesse tocar as coisas e os seres, como se a fotografia fosse a própria pele
desse momento olhado, que pode ser tocado novamente em outros tempos, por outros olhos. Por essa lógica de sensa-
ções, a fotografia pode ser pensada/sentida/usada como cicatriz, como emanação da luz dos corpos fotografados que se
faz rastro e presença (Samain, 1998, p. 109). E, inexoravelmente, a fotografia nos joga para um tempo sem a marca do
passado. Na sua potência fragmentária, uma abertura, um descolamento, a impossibilidade de recomposição dos peda-
ços num tecido contínuo do tempo e dos sentidos. Por essa outra intensidade tátil, as fotografias efetuam como feridas
abertas, como um vazar de líquidos sentidos. Além de serem peles feridas e marcadas por um olho que recorta e adensa
materialmente as luzes do visto, também efetuam como “lâminas que rasgam a pele do mundo” (Vilela, 2004, p. 651).
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Interessam-me as passagens entre o olhar fotografias e o pensar por elas, na intensidade do tocar e ser tocado, cor-
tar e ser cortado. Busco pensar a criação de sentidos por fotografias pelos acontecimentos de superfície (Deleuze, 2004), pela
latente tensão entre o adensamento-cicatriz e a abertura-ferida. Tensão que abre fissuras na malha silenciosa de sentidos
sobre o tempo do educar, adensado e expandido numa fotografia.

Estes pensamentos fizeram-se atravessados por imagens de escolas produzidas por educadores em cursos que
realizei entre 2003 e 2006, e que tinham como proposta final a produção de ensaios fotográficos. Não busquei, nesta
pesquisa, analisar tais ensaios, mas criar com eles um movimento de pensamento em que as imagens movimentassem
os conceitos, ao mesmo tempo em que os conceitos movimentassem as imagens. Neste movimento, além de palavras,
surgiram imagens: recorte e composições de fragmentos das fotografias produzidas pelos educadores. Parte deste outro
ensaio, que chamei de pensamentos por imagens − imagens por pensamentos é apresentada ao final do texto.

Pele-cicatriz

A força da fotografia como marca-cicatriz parece ser arrastada por outra, que pulsa de forma sutil e intensa em
nossa linguagem e pensamento: a força da visão como o sentido da experiência corpórea que julga poder tocar e cap-
tar a essência dos seres e das coisas. No texto “Janela da alma, espelho do mundo”, Marilena Chauí (1998) desenvolve
como, no pensamento ocidental, a visão foi se fazendo como sentido primordial para apreender e conhecer, e como
isso se expressa e se acentua em nossos dizeres mais corriqueiros e cotidianos. Ao falarmos sobre nossos pensamentos
em relação às coisas, não estranhamos palavras como: ponto de vista, perspectiva, sem sombra de dúvida, visões de mundo e
outras (1998,
������������������������������������������������������������������������������������������������������������
p. 31)�����������������������������������������������������������������������������������������������
. Expressões em que o ato de pensar se faz colado ao ato de olhar, de maneira tão adensada que
chega a naturalizar-se na linguagem: “Falamos porque cremos nas palavras e nelas cremos porque cremos em nossos
olhos: cremos que as coisas e os outros existem porque vemos e que os vemos porque existem” (Chauí, 1998, p. 32).
Nessa passagem entre olhar, pensar e expressar em linguagem criou-se uma noção de continuidade, como se olhar fosse
o sentido para melhor pensar e a expressão em palavras, uma fiel comunicação do pensamento. Intensificamos essa ló-
gica de continuidade pensamento-olhar pelo uso de instrumentos óticos de melhor ver, apreender e conhecer o mundo.
Criamos um olhar de muito perto, um olhar de longe, um olhar que tateia e que se aprofunda nos corpos dos seres
e das coisas sempre no desejo de “ver para frente e ver com profundidade” (p. 37). O olhar em nossa cultura, movido
pelo pensamento científico e pelo movimento artístico da renascença, fez-se na intenção de desvendar os segredos do
93

mundo e na crença de que “do lugar onde nos encontramos, tudo vemos e vemos completamente” (p. 37). Inventamos,
assim, uma visão em perspectiva que vê profundidades na superfície do visto, um ver em justaposição aos verbos captar,
apreender e conhecer, um desejo de tocar o impalpável.

No interior da força desse olhar em perspectiva, o advento da máquina fotográfica que, pelo direcionamento
ótico e pela fixação química das luzes emanadas das coisas e seres, parece reproduzir automaticamente suas aparências
(Machado, 1998, p. 9). A ênfase em uma visão regularizada, formalizada e disciplinada abriu caminho para o desenvol-
vimento da câmera fotográfica e possibilitou a criação de um objeto, a fotografia, que expressa e fortalece os anseios
de neutralidade e de verossimilhança. Em uma cultura guiada pela visão, a fixação dos raios luminosos na superfície
sensível efetua-se como possibilidade de nos unir diretamente, sem mediações, àquilo que esteve à frente da câmera.
A fotografia, além de partilhar os caminhos da ciência, também abriu outros para o trânsito de seus desejos de captar
e compreender, e instaurou-se a como documento, um “atestado de pré-existência da coisa fotografada” (Machado,
1998, p. 9) e “����������������������������
prova de caráter científico” (Serén, 2002, p. 25).

O primeiro cliente do aparelho de Daguerre (considerado o inventor da fotografia), logo após a sua apresenta-
ção na Academia das Ciências Francesa, foi a polícia de Paris (Serén, 2002, p. 25). As instituições policiais rapidamente
perceberam nesse objeto, a possibilidade de reterem as formas desses corpos em desvio que desejavam identificar. O
gesto de fotografar, nessa lógica, é uma maneira de retirar uma fatia, de fazer um corte histológico de um corpo, de uma
cultura, da natureza, da história e, desta forma, melhor descrevê-los, identificá-los e nomeá-los. A força de evidência da
fotografia teve e tem uma forte relação com o poder, com o desejo de apresentar os seres e as coisas sob um efeito de
realidade.

A câmera fotográfica também entrou em nossa cultura como forma de arquivamento de uma paisagem, am-
biental e cultural, em rápida transformação: “uma quantidade incalculável de formas de vida biológicas e sociais é
destruída em um curto espaço de tempo” (Sontag, 1984, p. 26). Criou-se um “mundo-imagem” como forma de
controle das feridas de um tempo, de cicatrizá-las na pele-papel e arquivá-las no lugar seguro do conhecimento. Um
conhecimento entendido como posse de um sentido material, como ambição de profundidades. Um olhar que age
sobre a imagem fotográfica no sentido de extrair dela uma pele do tempo e da verdade, de adentrar a essência carnal das
coisas e seres, pelo paradoxal método superficial da fotografia, num dessecamento impossível do que é apenas pele. E em
94

um mundo repleto de imagens por todos os lados, diferente daquele no qual surgiu a câmera, o efeito da emanação das
luzes de um tempo parece permanecer. Mesmo com as possibilidades de alteração das imagens digitais, percebe-se que
a força da fotografia como cicatriz mantém-se forte. Essa força que talvez não se faça “somente pela via cognitiva, que
possa ser comprovada pela técnica, mas também por uma via emotiva” (Serén, 2004, p. 20). Forças emotivas e cognitivas
que se expressam e se recriam nos nossos modos de relação com as fotografias, e que dão a pensar.

Na gestão das escolas públicas, as fotografias cotidianas muitas vezes são requeridas nos relatórios com o nome
de evidências. São tidas como objetos que comprovam fatos, arquivam vivências, talvez dentro da mesma lógica jurí-
dica do desejo de identificá-las, analisá-las e controlá-las. A fotografia entra como instrumento de um olhar que quer
aprisionar os sentidos na pele-papel-tela. Essa tensão evidencial das fotografias pulsou em diferentes encontros que tive
com educadores nos cursos que realizei a professores e gestores de redes públicas de ensino. Esses profissionais diziam,
no encontro com imagens escolares, por vezes do lugar de quem fiscaliza – num rápido olhar a uma fotografia de sala de
aula já identifico as práticas de uma professora − e em outras de quem é fiscalizado. Durante diferentes situações em que
olhávamos e conversávamos sobre as fotografias de escolas, a forte relação entre a evidência visual e o controle se fez
presente, movimentando pensamentos.

As experiências escolares já tão vigiadas por diferentes olhares − mídia, gestão, comunidade, pesquisadores
– ganham, no olhar neutro da câmera fotográfica, outra forma de fiscalização. A requisição destas chamadas fotografias-
evidências às escolas controla a experiência de quem educa não somente pela possibilidade de serem analisadas, mas,
principalmente, pela criação de uma necessidade compulsiva de fotografar o vivido com a finalidade de comprová-lo.
Nessas fotografias, corpos em silêncio querem ser aderidos a um corpo de conhecimento e verdade. A pulsão de recortar
e ferir a pele de um tempo e de se unir a ela pela fotografia mistura-se, nessas formas de relação com a linguagem foto-
gráfica, com o desejo de controle sobre os corpos materiais e o corpo imaterial dos sentidos. Por essa lógica, as imagens
se multiplicam como peles cicatrizadas de um tempo do educar, prolongando o desejo de domínio de algo que tende
sempre a escapar, na semelhança do animal caçado e empalhado, do inseto afixado, do corpo dissecado. Fotografias que
se fazem como instantes anestesiados, como duras cicatrizes, peles marcadas por um olhar-pensamento que fere.

E as fotografias como peles ganham sensibilidades múltiplas, além de superfícies marcadas; também são escorre-
gadias, deslizam pelos dedos da visão. Uma diretora de escola, em um dos cursos contou-me que se nega a produzir tais
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imagens inquisitivas. Criou uma caixa em sua escola, que contém uma porção de fotografias emblemáticas, não datadas.
Quando lhe intimam: foto de reunião com pais, foto de reunião pedagógica, a festa junina, o dia do meio ambiente! – oferece-lhes
as provas requeridas. Resistência muda de uma interessante caixa de evidências imaginárias...

Punctum: a ferida aberta por Barthes

A fotografia é subversiva não quando terroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é
pensativa.
Barthes, 1984, p. 62

Outra diretora de escola, durante um dos cursos sobre fotografia e educação realizados a educadoras da rede
pública, define seu tema de ensaio fotográfico: registrar a preparação das instalações físicas de sua escola para receber
portadores de necessidades físicas especiais. As rampas no lugar dos degraus, as barras de ferro colocadas nos banheiros,
as portas alargadas... Pequenas e necessárias adaptações do espaço, que estavam a fazer durante algum tempo nessa esco-
la e que, pelas imagens, poderiam ser lançadas à visibillidade. Um ensaio que partia de uma relação com as fotografias
como comprovações, como marcas cicatrizadas de concretas realizações. Sua intenção a leva a fotografar um espaço
comumente não escolhido para ser fixado em imagem. Banheiro: o lugar privado – privada – de um espaço público
– escola. Lugar da expressão violenta de outro alfabeto, das marcas sem limites, de feridas abertas para qualquer tentativa
de controle. Nas fotografias, as barras de ferro, seu foco principal, somem entre paredes riscadas, objetos danificados,
rasgos nas superfícies materiais e íntimas da escola. Entre a experiência de fotografar e o olhar lento sobre seu ensaio,
depara-se com o seu próprio assombro. A quem, afinal, a escola está incluindo? O que a assombra não é somente a coisa
fotografada, os danos, a cena aterrorizante, perturbadora, mas também seu próprio movimento com a fotografia, por esta
força subversiva e pensativa da imagem (Barthes, 1984, p. 62). Segue em frente, durante algumas semanas, por diferentes
espaços – reuniões com professores, coordenadores, alunos, nossos encontros – com um gesto bastante interessante, na
latência de um sentido indizível, simplesmente apresentando suas fotografias, sua pergunta sem resposta e seu silêncio.

Passagens que levam a pensar na potência da fotografia como um objeto que, mesmo produzido com a inten-
ção de reter e aprisionar sentidos, possui uma força outra, efetua em sua superficialidade, em seu silêncio, em dizeres
balbuciantes, em tênues expressões e deixa a abertura para sentidos não determinados. Há um efeito outro, inevitável:
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as luzes de uma fotografia também nos tocam, por vezes nos ferem de maneira inusitada. Por esta outra intensidade tátil,
é a pele-fotografia que marca a pele-retina, como um corte inesperado que efetua fora das rédeas de controle. Como se o
desejo não estivesse no fotógrafo, nem no observador: “como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela
dá a ver” (Barthes, 1984, p. 89).

É essa força contingente e incontrolável do pensamento por fotografias que movimenta os escritos de Roland
Barthes em A Câmara Clara. Nesse texto, resiste apaixonadamente a qualquer movimento de codificação, interpreta-
ção ou análise, com um corpo susceptível aos golpes imprevisíveis de algumas fotografias. Golpes que abrem feridas. A
escrita e os pensamentos de Barthes são movidos e transpassados nesse texto por uma latência, por uma fulguração, por
uma contingência, que ele chama de punctum: “o acaso que nela me punge (mas também me mortifica, me fere). Ele
parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar” (Barthes, 1984, p. 46-47). A fotografia lança – como um lance
de dados – flechas que furam a pele do visto.

“O que posso nomear não pode, na realidade, me ferir” (p. 80). O punctum seria o inominável, o “campo cego”
(p. 86), a “passagem de um vazio” (p. 77), uma “força de expansão” (p. 73), uma “mutação viva” (p. 77). Um movimento
de notar, olhar e pensar fotografias que se dá de forma latente, viva, mutante e expansiva. Sentidos que não se deixam
identificar, que não se fazem na relação de controle e retenção, mas justamente pelo escape, pelo que foge, extravasa,
pelo o que não se deixa nomear. Sentidos que não se deixam representar, provém de numa contínua tensão entre pa-
lavra e imagem.

Barthes escreve simplesmente das fotos que lhe interessam, emocionam e convidam à aventura. Não busca res-
ponder a perguntas, identificar intenções ou códigos, deixa-se afetar pelas forças subversivas das imagens como potência
de pensamento. As fotografias que lhe marcam são muitas vezes aquelas que, por um detalhe, por uma composição
– geralmente não causada pela intenção do fotógrafo. Um pensar que age e também padece, aberto ao que advém, à
a(d)ventura (p. 73). Nesse livro, desenvolve duas possibilidades de movimento de pensamento em relação às fotografias:
o punctum e o studium. Segundo ele, o studium faz-se nos moldes de um pensar “educado e polido” (p. 48), que quer “en-
contrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las”
(Barthes, 1984, p. 48). O studium como um olhar que busca controlar o fluxo líquido dos sentidos, o punctum como pura
vazão, ferida que punge. O movimento de, pela fotografia, encontrar as intenções do fotógrafo afirma a sua potência
97

comunicativa e representativa, como se ela contivesse marcas fixas e seguras de certas profundidades: das perspectivas
do fotógrafo, de suas intenções narrativas, de suas representações transformadas em imagens. Um pensamento ligado à
força da fotografia como pele-cicatriz, indiciadora de algo que está fora dela, em especial naquele que escolheu, focou,
recortou e compôs a cena. A fotografia como representação de um ponto de vista nos lança a um desejo de desvendar,
decifrar, investigar e examinar, para uma posterior fraternização, ou não, com a visão do fotógrafo. Nesse pensamento
studium, que tem como objetivo compreender o outro pela fotografia, o observador apalpa marcas na busca de indícios
de profundidades, mantendo-se em um lugar protegido. Barthes procurava um pensamento menos distanciado, levado
pelo prazer e pela emoção, vulnerável e disposto a ferir-se por uma latência que advém da imagem como flecha pon-
tiaguda. Ferida que possibilita um vazar incontrolável, sem direção, “hemorragia dos sentidos” (Garcia, 2007, p. 106).

Percebo ressonâncias entre esta maneira de compreender o pensamento com as formas de Deleuze dizer dos
acontecimentos, que “não procedem de uma boa natureza e de uma boa vontade, mas que provêm de uma violência
sofrida pelo pensamento” (Deleuze, 2004, p. 36). Diz de um querer o acontecimento no movimento de pensar, “aceitar
o ferimento” (p. 36) que chega e desestabiliza e “ser digno” (p. 36) do que irrompe. Entre as luzes da imagem e as
luzes dos nossos olhos, o advento de algo que nos afeta. Ser atravessado pela fotografia pelo “outro do pensamento,
por aquilo que força e obriga a prestar atenção” (Barcena;Vilela, 2006, p. 16). Pensar as fotografias não como objetos
a serem compreendidos ou interpretados, mas como superfícies que possibilitam um deslizar contínuo, sem a sede de
um lugar seguro e estável.Ter uma fotografia “como quem recebe uma canção” (Deleuze, 2004, p. 14) e se deixar tocar
por suas intensidades. Simplesmente disponibilizar-se a uma abertura para que as imagens ajam. Reiner Maria Rilke,
poeta tcheco, escreve sobre o pensar face ao estranho, ao maravilhoso e ao inexplicável que nos defronta. No movi-
mento de defensiva, de afastamento ao que irrompe “os sentidos com as quais poderíamos aferrar se atrofiam: como se
tirássemos a intensidade de um leito de um rio de possibilidades infinitas para ficarem num ermo lugar da praia, fora
dos acontecimentos” (Rilke, 1994, p. 66).

Nessa conexão entre o acontecimento de Deleuze e a latência do punctum de Barthes, um desejo de pensar a
criação de sentidos que se dá na passagem entre o olhar fotografias e um dizer atravessado por seus efeitos. Na busca
de uma poética e política para pensar as fotografias da escola não como cicatrizes de feridas anteriores ou interiores −
documentos que atestam fatos ou como objeto de análise de visibilidades −, mas como lâminas que abrem feridas, que
dão vazão a outros líquidos e possibilitam novas e infinitas dobras de sentidos. Um pensar que mude seus rumos pela
98

passagem inexorável da luz: uma forma, um brilho, um gesto que nos atinge. Uma aventura não programada de nossos
dizeres. O pó de giz na lousa, no chão, nas mãos, sombras e luzes singulares e cotidianas na concretude das paredes, o
intenso e fugaz encontro de olhos, o instante em que a tinta se adensa na superfície do papel e que se esvai na água,
um toque de corpos, a corda azul que se apaga e se adensa na superfície-papel.

Cortar-ser cortado por Deleuze

O acontecimento é infinitamente indizível, é sempre os dois ao mesmo tempo, eternamente o que


acaba de se passar e o que vai se passar, mas nunca o que se passa (cortar demasiado profundo mas
não o bastante). O ativo e o passivo: pois o acontecimento sendo impassível, troca-os tanto melhor
quanto não é nem um nem outro, mas seu resultado comum (cortar-ser cortado).
Deleuze, 2003, p. 9

Em Lógica do sentido, Gilles Deleuze escreve sobre e com uma linguagem de efeitos de superfície, não voltada a
causas profundas. Para ele, nos movimentos do pensamento “tudo que se passa, passa-se na linguagem e passa pela lingua-
gem” (Deleuze, 2003, p. 23). Desenha o acontecimento também pelo padecer e pelo corte: o que rasgou, feriu, partiu, mas
esse efeito de fissura, para ele, é um “cortar demasiado profundo, mas não o bastante” (p. 9), sempre insuficiente, sempre
na eminência. Esse quase se faz pela impossibilidade de um efeito do pensamento estabilizar-se na linguagem, por uma
potência indizível, que provém de uma disjunção temporal insolúvel: “o acontecimento é eternamente o que acaba de se
passar e o que vai se passar, mas nunca o que se passa” (p. 9). Uma maneira de pensar a linguagem pelo tempo aiônico:
Segundo Aion somente o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo. Em lugar de um presente
que absorve o passado e o futuro, um passado e um futuro que dividem a cada instante o presente, que
o subdividem ao infinito em passado e futuro, nos dois sentidos ao mesmo tempo (...). Um tempo que
se libera do conteúdo corporal, é este mundo, dos efeitos incorporais ou efeitos de superfície que torna
a linguagem possível (...). Enquanto Cronos era inseparável dos corpos que o preenchiam como causas
e matéria, Aion é povoado de efeitos que o habitam sem nunca preenchê-lo (...). Sempre já passado e
eternamente por vir (Deleuze, 2003, p. 169-170).

Para dizer desta potência de um presente inapropriável diferencia duas leituras de tempo nos movimentos do
pensamento. O Cronos, tempo corporal, atua no pensamento que se faz voltado a organizar e medir as causalidades. Nele
99

“só o presente existe no tempo”, o passado e futuro são dimensões relativas a ele (p. 167). Esse pensamento faz-se por
uma imagem vasta e profunda do presente, que lhe dá uma acomodação estável para buscar as origens e fazer a “me-
dida da ação dos corpos ou das causas” (p. 167). Nessa leitura de tempo, o pensamento se faz pelo “devir-louco das
profundidades” (p. 166), pelo corte profundo, que define e estabiliza a efetuação dos sentidos na linguagem num chamado
à compreensão e à interpretação.

O tempo do acontecimento, para Deleuze, é da ordem do Aion, “de um passado e um futuro que dividem a cada
instante o presente... sempre já passado e eternamente por vir” (p. 170). No tempo Aion, o presente é continuamente
cortado e dividido, não se faz de forma profunda na linguagem. O presente em Aion é um instante fugidio e o “acon-
tecimento é infinitamente indizível” (p. 9). No “cortar demasiado, mas não o bastante”, não se faz possível comunicar
o acontecimento pela linguagem, pois há algo nele que sempre escapa, num desvio inexorável, num acontecer contínuo.
“O Aion é povoado de efeitos que o habitam sem nunca preenchê-lo” (p. 170). Essa profundidade e esse preenchi-
mento sempre insuficiente são o que, para Deleuze, torna possível a linguagem, como nascimento, como novidade,
como devir-ilimitado. O sentido não se adensa de forma imutável em palavras, ao subir às superfícies da linguagem muda
de natureza, vira outra coisa e deixa uma latência, uma reserva pulsante. “Daí o sentido não pode ser dito existir, mas
somente insistir e subsistir” (p. 22).

No pensar sob o efeito do acontecimento não é possível dizer do que passou, a partir de um presente estável
assegurado por uma linguagem que mede e comunica as causas. O pensar pelo efeito do acontecimento dá-se num mo-
vimento de “insistência e subsistência” dos sentidos, por uma linguagem que instaura uma temporalidade não causal,
mas de puros efeitos. Essa impossibilidade de distinção entre causas e efeitos no pensamento convida a entrar nos fluxos
de efeitos da linguagem, efeitos sobre efeitos, no que Deleuze chama de resultado comum, um cortar-ser cortado contínuo.
Cabe, nesse verbo inventado, o cortar, o cortar-se e o ser cortado. Uma justaposição que não possibilita definir as linhas de
causalidade entre o sujeito e o objeto, o ativo e o passivo. A força está nesse comum indissolúvel. O presente instável de
Aion cria linhas de efetuação constantes. Entrar nesse movimento de efeitos é uma forma de lidar com o que advém
– com a contingência, com o acaso, o novo e o inesperado − não na ordem da compreensão (pensamento ativo) e
nem da resignação (pensamento passivo), mas de criação: “fazer do acaso objeto de afirmação e ramificação” (Deleuze,
2003, p. 63). Nesse jogo criativo entre o agir e o padecer no pensamento, uma impossível definição de limites. Nessa
afirmação e ramificação do acontecimento, a linguagem é “um deslizar sobre aquilo a que se remete sem jamais se deter,
100

é ela que fixa limites, mas também ultrapassa limite e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado” (Deleuze,
2003, p. 2).

O corte demasiado e insuficiente é da ordem do puro devir, diferente do devir das profundidades, pois se furta ao presen-
te, não designa identidades fixas, mas infinitas. O deslizar contínuo do presente é um deslizar sobre forças identitárias,
não limita a linguagem a “uma forma de consciência pessoal ou de uma identidade subjetiva, como um sujeito que se
manifesta, pontos de vistas subjetivos” (Deleuze, 2004, p. 102). Ao mesmo tempo em que não designa as perspectivas de
um sujeito, suas memórias, sua pessoalidade, também não é da “ordem das propriedades objetivas significadas” (p. 102).
Assim, da mesma forma o pensamento-acontecimento não define limites entre o que é ativo e passivo, causa e efeito,
também não se fixa como subjetivo ou objetivo. “No devir não se ultrapassam as oposições: nem privado, nem público,
nem coletivo, nem individual, mas tudo isso ao mesmo tempo” (p. 37). A linguagem acontecimento não é expressão da
experiência de certo olhar, mas é um dizer que se corta no próprio dizer, sem origem, sem resgate a um tempo original
e da identidade de um sujeito que se expressa, mas de um contínuo devir na linguagem.

Por Deleuze, um convite a colocar sob suspeita a autoridade pedagógica das imagens e seguir por um plano de
pensamento entre fotografia e devir (Amorim, 2007). Entre a fotografia, o que nela me efetua e o desejo de dizer desta
efetuação, há outro dizer, outra efetuação, que move a imagem e se move com ela em um fluxo que não se estabiliza.
É esta passagem impossível entre o olhar fotografias e o dizer em palavras que interessa e move, que liquefaz o desejo
de, pela superfície das imagens, adentrar profundidades pelo corte incisivo do sentido.

Estes pensamentos desfazem a dualidade entre a intenção e a contingência, entre um pensamento que fere a fo-
tografia com um desejo de tocar a pele de um tempo e dos sentidos, e o pensamento que se deixa ferir pelas fotografias,
entre um pensamento ativo e um pensamento “submetido à ordem do acidente” (Vilela, 2001, p. 235) em sua pura pas-
sividade. Convidam a um pensar sob o efeito de um resultado comum, cortar-ser-cortado, ao mesmo tempo, ativo e passivo,
singular e plural. Um pensamento que não se faz como resultado de uma filiação originária (Deleuze; Guatarri, 1995, p.
22) entre sujeito e objeto-imagem, mas por um fluxo não linear, por uma interferência mútua, um contágio (p. 22).
Todas estas coisas têm nomes próprios, mas o nome próprio não designa de modo algum uma pessoa ou
um sujeito. Designa um efeito, um ziguezague, alguma coisa que passa ou se passa entre dois como sob
uma diferença potencial (...). Dizemos o mesmo a propósito dos devires: não é um termo que devém a
outro, mas cada um encontra o outro, um único devir que não é comum aos dois, mas que está entre os
dois (Deleuze, 2004, p. 17).
101

Entre dois: isso foi e o devir

Ao pensar o acontecimento pelas fotografias de escolas na diferença potencial de Deleuze Barthes (Deleuze,
2004, p. 17) punge a possibilidade de uma expansão poética do inesperado, do efêmero, do ordinário, do singular...
Expandir e diminuir, dizer do ínfimo e do amplo. Em A Câmara Clara, Barthes escreve na busca do que chama de
“ciência impossível do ser único”, por pensamentos e sentimentos que partem de imagens escolhidas por um critério
pessoal – aquelas que o animam − que se expandem em uma escrita sobre fotografia, tempo, morte e vida. A poética
do texto de Barthes faz-se em devir, o conceito do punctum não se desenha de maneira linear e estável, mas acontece
de forma fulgurante, por relampejos e cintilações inesperadas. Na segunda parte do livro, Barthes discorre sobre uma
única foto: um retrato de sua mãe aos cinco anos de idade, que não é apresentada ao leitor. Por essa fotografia um
“outro punctum que não é mais de forma, mas de intensidade: o Tempo” (Barthes, 1984, p. 141). Esse Tempo, em letra
maiúscula, punge, em especial nessa fotografia pessoal, carregada por uma força emotiva. “Na foto alguma coisa pôs-se
diante de um orifício e aí permaneceu para sempre (está aí meu sentimento)” (p. 117). Para ele a força constativa não
incide sobre o objeto, mas sobre o tempo. Nas fotografias, o Isso foi é a sua verdade mais potente. A fotografia não
pode dizer o que ela não dá a ver, e o que ela pode nos dizer com força é: isso efetivamente foi (p. 149). No entanto, a
escrita de Barthes sobre a fotografia não se estabiliza como comunicação de suas memórias e emoções. O tempo é uma
intensidade instável. Seus dizeres por fotografias habitam um tempo liso e descoagulante, entre o singular e o plural, o
pessoal e o impessoal. Afirma que a máquina fotográfica é um relógio de ver e se rende ao que ela não dá a ver... O
tempo punge na superfície de uma fotografia juntamente com a impossibilidade de adentrar nas suas profundidades. “É
preciso, portanto, que eu me renda a essa lei: não posso aprofundar, penetrar na fotografia. Posso apenas varrê-la com
o olhar, como uma superfície imóvel” (p. 156). Barthes entra pela força do tempo, sem buscar uma verdade oculta −
anterior ou interior à imagem. A consciência amorosa e assustadora da pulsão tempo na fotografia cria o que chama de
“êxtase fotográfico: movimento revulsivo que inverte o curso da coisa” (p. 175). “Um tempo em variação, que não se
trata de uma anterioridade ou interioridade, mas de uma exterioridade pura” (Garcia, 2007, p. 109). Num tempo em
variação, revulsão e dobra, seus pensamentos não vão na direção das origens dos efeitos, mas entram por estas forças de
expansão, rendem-se aos seus efeitos de superfície. Um convite a um dizer que se faz na pulsão instável entre o passado
e a passagem, a entrar pela intensidade do Isso foi − a luz de que retorna na imagem − e simultaneamente pelo devir
ilimitado de sua passagem.
102

A força da evidência das fotografias fissurada insistentemente pelo pensamento/sentimento cria um dizer do
passado que também diz da passagem. Nessa mudança, a evidência ganha outra potência. A mesma força que possibilita
o desejo de captação, compreensão e controle dos sentidos, também efetua como expansão e criação, força de poesia.
“Assim é a poesia, exprimindo na linguagem todos os acontecimentos em um (...). A linguagem como sendo ela pró-
pria um acontecimento único” (Deleuze, 2003, p. 190). A força evidencial também faz da fotografia “uma infinita matéria
poética pela afirmação radical da sua materialidade finita” (Vilela, 2004, p. 647). Potência poética que afeta um dizer em
palavras fragmentadas em continuidade indefinida, sem lugar de origem ou chegada, em passagem, em devir.

Passagens, corte e justaposição

“Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre” (Barros,
2001, p. 12). Diz Manuel de Barros em seu ensaio fotográfico sobre o silêncio. “Queria transformar o vento. Dar ao
vento uma forma concreta e apta a foto. Eu precisava pelo menos enxergar uma parte física dele: uma costela, o olho”
(p. 27). Ao me perder por pensamentos e pelos ensaios fotográficos das educadoras, fragmentando e sendo fragmentada
por fotografias e palavras, enveredei-me pelo impulso de fotografar o imaterial: o tempo em passagem. Quis enxergar e
dar a ele uma forma concreta. Diferentes fragmentos levaram-me à força da passagem. Texturas, sombras, reflexos, sujeiras,
riscos, escritos, corrosões, cores, corpos, opacidades, brilhos em superfícies várias, concreto, papel, parede, folha, janela,
lousa, chão. Indícios poéticos de passagens nas superfícies da escola, adensados e expandidos na imagem. Se nas foto-
grafias pulsa um tempo pessoal, quis encontrar nelas o tempo impessoal. Dizer do tempo pelas fotografias, não somente
pelo que passou, mas pelo o que continuamente passa. No que paira na imagem encontrar a passagem. Do passado à
passagem, da passagem ao passado. Na assunção de que a fotografia tem o poder de levar-nos a tempos e espaços defi-
nidos, entrar por esta limitação e sair dela numa tensão insolúvel, criar fragmentos fora do tempo e do espaço.

Ferir a lâmina 10x15 cm que imita o passado, proporção que nos arremessa à janela do eis aqui o que aconte-
ceu. Fotografar fotografias, cortar e justapor, acentuar efeitos, efetuar sobre eles, ser efetuada, ferir as palavras. Cortar-ser
cortada pelas imagens, justapor e ser justaposta por elas, juntar disparidades, criar paridades outras. O corte e a justapo-
sição acentuam os efeitos de um tempo outro que se faz na superfície da fotografia. Tempos que subsistem nas formas,
luzes, sombras, cores, que agem por um contágio não diagnosticado. O corte como uma acentuação da potencialidade
da fotografia como fragmento superficial... Ir ao limite desta verdade, no desejo de conviver com a fratura, redescobrir a
103

força de iniciar no seio dos fragmentos, no meio do caminho, passagem sem ponto de partida ou chegada. Pela “beleza
dos fragmentos de tempos coagulados” (Vilela, 2004, p. 621) nas fotografias, ir simultaneamente do ordinário instante
ao tempo ilimitado.

Se a educação se faz no desejo de deixar marcas, de ensi(g)nar − e se a fotografia entra como potencializadora
deste seu desejo, que ela também possa expandi-lo (talvez subvertê-lo) na sua potência como um dizer em fulguração.
Montagem a partir de recorte das
Dentro da força-marca, a força-ferida que instaura um tempo em devir. Da cicatriz ao corte, do corte à cicatriz, do que se ade- fotografias de Silvana Lessio e de Anna
re e do que vaza. Fotografias como peles sobrepostas em repetidas recomposições, novas sensibilidades. Coisas e seres Paula Silva.

passam, passam-se, não se passam, marcam, marcam-se, não se marcam, abrem vazões, não abrem... Um movimento
contínuo entre o controle e o acaso, entre marcar (não marcar) e ser (não ser) atingido por inesperadas e inapreensíveis
aberturas. E se elas ensinam, talvez seja um pensar/dizer aberto ao imprevisível e incontrolável. Um ensi(g)nar que se
faz como rasgo na pele de um tempo controlado que quer emoldurar com imagens o que lhe escapa. Poética fissura,
abertura a outro tempo em constante variação com luzes e palavras.

Montagem a partir das fotografias de


Alessandra Venâncio, Janayna Pinheiro,
Márcia Toma.

Montagem a partir de fotografia de Sidnéia Santos. Montagem a partir de fotografias de Deise Fahl.

Montagem a partir da fotografia de


Adélia Fernanda Pereira Araújo.

Montagem a partir de recorte de fotografias de Gene Heber. Montagem a partir da fotografia de Lídice Ferreira, Márcia Toma.
104

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105

As imagens e a educação on-line:


convergências entre o cinema e os fóruns de
discussão no contexto de uma pesquisa-formação
multirreferencial
Edméa Santos

Introdução: sobre uma atividade de pesquisa e suas motivações teórico/metodológicas

Este texto faz o relato de uma atividade formativa que buscou fazer a convergência entre o uso do cinema em
situações de aprendizagem presenciais e a vivência em fóruns de discussões online no contexto da pesquisa-formação
“Docência na cibercultura: computadores móveis, laboratórios de informática e educação online”. Desde o ano de
2008 desenvolvemos junto aos professores-tutores do curso de Pedagogia a distância e os integrantes do GPDOC
(Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura) atividades formativas que procuram integrar contextos da universidade,
da escola básica e da docência on-line com experiências mediadas por mídias digitais em rede.

Para tal integração, fundamentamo-nos na epistemologia da multirreferencialidade (Ardoino) e na metodolo-


gia da pesquisa-formação (Nóvoa; Josso; Macedo) instituindo com os sujeitos da pesquisa dispositivos que procuram
romper com a ideia de “pesquisa aplicada” e centrada no pesquisador universitário. Dentre os diversos dispositivos
criados, destacamos para este trabalho o “cineclube” em convergência com o debate em fóruns de discussão online. O
conceito de dispositivo tratado aqui é inspirado em Ardoino, como “uma organização de meios materiais e/ou inte-
lectuais, fazendo parte de uma estratégia de conhecimento de um objeto” (Ardoino, 2003, p. 80).
106

Apontamos perspectivas interessantes na cibercultura para a educação e a formação do docente pesquisador,


por “perceber que o que faz a experiência formadora é uma aprendizagem que articula, saber-fazer e conhecimentos,
funcionalidade e significação, técnicas e valores num espaço-tempo que oferece a cada um a oportunidade de uma
presença para si e para a situação, por meio da mobilização de uma pluralidade de registros” (Josso, 2004, p. 39).

O objetivo de fazer a convergência das “narrativas cinematográficas” com os “fóruns de discussão online”
partiu inicialmente da necessidade de ampliar os repertórios culturais dos sujeitos envolvidos, articulando leituras mul-
tirreferenciais com experiências de formação continuada em ambientes virtuais de aprendizagem, lócus de trabalho e
de formação dos professores-tutores do curso de Pedagogia a distância da Uerj.

Sabemos que a construção dos saberes docentes é um movimento plural (Tardif, 2002). Não aprendemos
apenas na escola e na universidade. Esses espaços são responsáveis pela edificação dos saberes científicos e disciplinas,
saberes fundamentais para o exercício da docência. Entretanto, precisamos habitar e vivenciar outros espaços multirre-
ferenciais de aprendizagem. A epistemologia da multirreferencialidade parte do princípio de que os saberes precisam
ser articulados e vivenciados na pluralidade de suas construções e instituições.

O saber científico não é o centro do processo. É mais um importante saber. Este, na cena formativa, deve articu-
lar-se com os saberes dos cotidianos. Na grande maioria dos projetos de formação de professores temos a centralização
do saber científico em detrimento aos saberes construídos na cultura, na vida cotidiana das cidades, das mídias, das
artes, no exercício da docência.

Se partirmos do princípio que todos os sujeitos envolvidos no projeto de formação formam e se formam, não
podemos centralizar esse processo num único lócus. A articulação entre os espaços da universidade, da escola básica e de
outras dimensões da cidade com o ciberespaço é um dos grandes desafios do projeto. A seguir, destacaremos a compo-
sição metodológica da atividade no contexto da nossa pesquisa-formação.

Num primeiro momento, “O cineclube: o cinema como um dispositivo mutirreferencial”, abordamos o conceito e a
prática do cineclube, bem como resenhamos alguns filmes trabalhados por nós, articulando seus roteiros com temas
tratados pelo GPDOC no contexto mais amplo da pesquisa com os professores-tutores. Num segundo momento, “Os
fóruns de discussão online: narrativas em construção com e sobre as imagens do cinema”, abordamos o potencial comunicacional
107

dos fóruns de discussão online trazendo trechos de um debate tecido por nós sobre e com as imagens do cineclube,
relacionando-as com a prática pedagógica dos professores-tutores. Por fim, sem fechar a discussão, concluímos este
texto apontando limites, potencialidades e desdobramentos da atividade formativa por nós vivenciada.

O cineclube: o cinema com dispositivo mutirreferencial

O trabalho com narrativas cinematográficas partiu inicialmente do desejo de contribuir com o repertório
cultural dos sujeitos da pesquisa, entendendo que esta contribuição poderia se tornar mais um dispositivo da nossa
pesquisa-formação mutirreferencial. Em nossa prática pedagógica e de pesquisa no ensino superior, nos cursos de gra-
duação e pós-graduação em Pedagogia e Licenciaturas, constatamos que grande parte dos estudantes e profissionais
da educação “consomem” e se apropriam muito pouco dos bens culturais produzidos pela humanidade ao longo dos
tempos. Frequentar e fazer uso das artes em geral (plásticas, música, teatro, literatura, cinema) não é, muitas vezes, um
exercício realizado pelos estudantes que frequentam os cursos onde atuamos. Mesmo sendo a Uerj uma universidade
que integra vários equipamentos culturais em suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, verificamos que muitos
de nossos estudantes não costumam frequentar a “galeria de arte”, “os teatros”, “a concha acústica” e até mesmo as “bi-
bliotecas” da universidade. Nesse sentido, procuramos, através de nossa pesquisa-formação, articular os espaços formais
da universidade com os equipamentos culturais da cidade e as práticas sócio-culturais do ciberespaço. A opção pelo
cineclube como um dispositivo formativo e cultural se deu por reconhecermos o cinema e seus usos como possibili-
dades formativas multirreferenciais.

As narrativas cinematográficas articulam saberes e conhecimentos fundamentados nas ciências, nos saberes dos
cotidianos, na filosofia e nas artes de uma forma geral. Além de nos apresentar narrativas em estéticas variadas, estrutu-
radas em gêneros diversos (ficção, documentário, animação entre outras), articulam em seus produtos e processos três
linguagens fundamentais: as imagens, os sons e os textos. Apesar das imagens tomarem a cena no cinema, essas, muitas
vezes, são potencializadas pela convergência com os sons e os textos. Essa mixagem de linguagens potencializa nossa
leitura de mundo, permitindo-nos dialogar com outras leituras e histórias de leitura – nossas e dos outros – articulando-as,
com uma pluralidade de elementos éticos, estéticos e políticos. Essa pluralidade de sentidos e significados deve ser incor-
porada e cocriada nos contextos formativos como potencializadores de novas e outras redes educativas, redes essas que
fazem extrapolar as “amarras” dos programas curriculares instituídos ao longo de nossa itinerância escolar e universitária.
108

A criação do “cineclube”, num segundo momento, teve como principal objetivo verificar como o cinema
vem explorando ao longo do tempo a relação de aprendizagem entre seres humanos, suas linguagens e as tecnologias.

Sabemos que, a cada emergência e desenvolvimento de uma nova mídia ou tecnologia, novos perfis cognitivos
e processos culturais são instituídos nas e pelas sociedades. Santaella (2007) nos instigou a entender esses processos ao
longo da história da humanidade, para compreendermos melhor o diferencial entre o perfil dos leitores imersivos (con-
dicionados pelas tecnologias digitais em rede), os leitores contemplativos (condicionados pelos impressos) e os leitores
moventes (condicionados pelo mundo das imagens e dos audiovisuais massivos).

Em nossa pesquisa mais ampla nos interessa compreender tais diferenciais, até para trabalharmos com a integra-
ção das mídias, suas linguagens em redes sociotécnicas e práticas curriculares. A noção de rede nos é bastante cara por
compreendermos que não podemos forjar práticas curriculares desarticuladas e fechadas em discursos e entendimentos
únicos. Para nós, que formamos professores em contextos educacionais variados, é de fundamental importância fazer
a integração de mídias e de sujeitos com seus variados perfis sócio-cognitivos e político-culturais. A pluralidade e a
diversidade aqui não são problemas, são potências.

O que efetivamente chamamos de “cineclube” é um encontro presencial no laboratório de informática, onde


ministramos aulas e desenvolvemos nossas atividades no GPDOC. O espaço nem de longe simula uma experiência
semiótica vivenciada numa sala de cinema. As narrativas cinematográficas são expostas pelo suportes do aparelho de
DVD em conexão com um aparelho de TV de 29”. Não contamos com o conforto e nem com as tecnologias de uma
sala de cinema. Por outro lado, concordamos com Parente (2009) quando afirma que a experiência com o cinema não
se resume nem à sala de cinema, e muito menos à “forma cinema” dominante. Esclarece-nos Parente:
A própria “forma cinema” é uma idealização. Deve-se dizer que nem sempre há sala; que a sala nem
sempre é escura; que o projetor nem sempre está escondido; que o filme nem sempre se projeta (muitas
vezes, e cada vez mais, ele é transmitido por meio de imagens eletrônicas, seja na sala, seja em espaços
outros); e que nem sempre conta uma história (muitos filmes são atracionais, abstratos, experimentais
etc.). (...). Em outras palavras, o cinema sempre foi múltiplo, mas essa multiplicidade se encontra, por
assim dizer, encoberta e/ou recalcada por sua forma dominante (Parente, 2009, p. 25).

Nesse contexto, sentimos a vontade de trazer o cinema para nossa pesquisa-formação. Desejamos aprender e
vivenciar outras experiências formativas para além da leitura e discussão de textos impressos (científicos, jornalísticos,
109

artísticos ou produzidos nos e pelos cotidianos), o que já é um diferencial em relação a práticas formativas instrucio-
nistas e conteudistas forjadas pelo consumo solitário dos materiais didáticos.Vejamos a seguir um pequena resenha de
alguns filmes assistidos no ano 2009 e como a partir das e com as suas imagens discutimos temas e noções do nosso
objeto de estudo “Educação e Cibercultura ”.

“Nós que aqui estamos por vós esperamos” – Nesse filme, o autor Marcelo Masagão (1999) se inspira em uma
das máximas do cineasta Glauber Rocha “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” para criar o longa metragem que
conta uma história sobre o século XX a partir de recortes biográficos de personagens que viveram nesse século. A
narrativa não-linear tece uma trama que mostra os principais avanços tecnológicos e científicos e sua relação complexa
com os modos e os meios de produção capitalista, pelas práticas de governos ditatoriais, pelos movimentos sociais e
culturais no século XX.

O autor apresenta personagens legitimados pela “história oficial” e por praticantes valorizando suas autorias
e seus cotidianos, tecendo uma narrativa crítica e com formato de bricolagem. O filme permite que tencionemos a
complexa relação entre os seres humanos, seus projetos e suas relações de criação e usos de artefatos tecnológicos va-
riados. Além do seu conteúdo e roteiro, esse filme nos chamou atenção pelo seu processo de construção e produção.
O autor, em vez de usar uma “ideia na cabeça e uma câmara na mão”, utilizou “um computador na mesa, muitas imagens
digitalizadas e uma rede de ideias e linguagens”. Quase todas as imagens (95%) do filme foram capturadas de bancos de
dados digitalizados e de arquivos pessoais de diversas famílias e instituições que autorizaram o uso e edição das mesmas.
Assim, valorizamos em nosso debate a tese de que o computador é muito mais que uma ferramenta para transmitir e
difundir informações digitalizadas. O computador é uma máquina semântica que permite a autoria de sons, textos, ima-
gens, mixagem, multimídia, leituras e escrituras, narrativas, autorias. O filme é um exemplo disso. Precisamos nos inspirar
e desenvolver em nossas práticas educativas e de pesquisa “atos de currículos” que lancem mão do computador como
“instrumento cultural de aprendizagem” (Freitas, 2002).

“SIMulation ONE – SIMONE” – No filme, o autor narra a saga de “Viktor Taranky”, personagem protagonizado
pelo ator Al Pacino, com seu processo de produção de filmes construídos apenas com recursos digitalizados. Após um processo
de decadência artística e de desentendimentos com atores e equipe de produção da grande indústria cinematográfica,
a personagem criou uma atriz virtual (Simone) a partir de um banco de dados digitalizados, simulando talentos diver-
110

sos de grandes atrizes, produtores, figurinistas, maquiadores. Após receber de um fã – Harker – tal banco de dados, a
personagem, que é um cineasta, não só criou uma atriz e um filme como também criou um mundo de convergências
artificiais que polemizaram seu cotidiano de tal forma que não se sabia mais qual o limite entre a realidade e a ficção,
a atualidade e a virtualidade. Sua vida tornou-se um caos com complicações inclusive com a “justiça” de seu país. Re-
voltado com sua criação (Simone), que acabou tomando vida própria,Viktor Taranky resolveu cortar o mal pela raiz.
Apagou todos os dados de seu computador. Esse ato acabou complicando muito mais a sua vida pois, sem os mesmos,
não tinha como provar sua inocência. Foi sua filha, nativa digital, quem o salvou recuperando as informações digitali-
zadas e provando a inocência do seu pai.

O filme nos permitiu tencionar sobre as noções de virtual, atual, real (Levy), objetos de aprendizagem (Santos,
Alves), geração net (Dom Tapscot), nativos e imigrantes digitais (Baudrillard), leitor imersivo (Santaella) e cibercultura
(Levy, Lemos, Santaella), interatividade (Silva), redes e novas educações (Pretto). Essa narrativa fílmica nos permitiu
articular, integrar e problematizar noções fundamentais para nossos estudos sobre cibercultura, educação, docência e
tutoria on-line.

“Quanto vale ou é por quilo?” – o autor Sérgio Bianchi nos convida à crítica aos usos e abusos que algumas
organizações fazem das “minorias” e das tecnologias para explorarem o lucro. O autor desenha a narrativa alternando
imagens que simulam acontecimentos do período da escravidão no século XVIII com imagens da contemporaneidade
quando negros, pobres e favelados são escravizados pelas atuais relações de trabalho, agravadas com a omissão nas polí-
ticas públicas e por projetos corruptos que engordam as estatísticas governamentais e não alteram, de fato e de direito,
a mobilidade social e econômica das minorias.

O filme, apesar de centrar na discussão “dominantes versus dominados”, investe também em cenas que valori-
zam os praticantes e suas táticas na tensa disputa do cotidiano. Uma das partes que mais chamaram nossa atenção para
a discussão dos usos e abusos das tecnologias digitais na sociedade passa-se no contexto de uma ONG que leva para
comunidades do estado do Rio de Janeiro computadores defasados, sem conexão à rede internet e sem projeto social
de inclusão cibercultural. A narrativa denuncia ONGs (organizações não governamentais) oportunistas que, em várias
ocasiões, preenchem a ausência do Estado e tenciona como, muitas vezes, os computadores chegam às práticas sociais
apenas como um argumento de venda, modismo ou um meio para uma pseudo inclusão digital. Por inclusão digital
111

entendemos todos os processos que viabilizam não só o acesso às mídias digitais em rede, como também, e sobretudo,
os usos que os praticantes fazem destas para a potencialização de autorias e o exercício da cidadania na cibercutura e
na sociedade em rede (Castells, 1999).

“Mensagem para você” – Nesse filme, a diretora Nora Ephron constrói uma narrativa que ilustra como a in-
teração social mediada por computador pode ser intensa, afetiva e real. Protagonizam esse filme o ator Tom Hanks e a
atriz Meg Ryan. Ele é um grande empresário, magnata de uma grande rede de livrarias. Ela, a herdeira de uma livraria
familiar que abrigava por muitos anos espaços de formação de leitores infantis. Mundos e valores distintos entram em
jogo numa disputa por valores e um lugar no mercado. Nesse jogo, nos deparamos com cenas que nos provocam e
que nos levam ao debate questionando, por exemplo: “qual o sentido da leitura na sociedade de consumo?”, “como
projetos de vida podem sobreviver ao mercado selvagem?”, “como pessoas e projetos tão diferentes podem conviver
na cidade e no ciberespaço?”, “será possível vivenciar identidades plurais e diferentes na rede?”.

Com o avanço dos computadores (hardware e software) e da rede internet, temos nesse filme o contato com as
primeiras interfaces de comunicação em rede, os e-mails e suas caixas de mensagens. O filme, além de potencializar a
discussão sobre as relações sociais mediadas por computadores e pela internet, nos convida a analisar a evolução das
interfaces das próprias redes sociais na e da web 2.0 (Santos e Okada, Recuero).

“Entre os muros da escola” – Vencedor da Palma de Ouro em Cannes (2008) e indicado para melhor filme
estrangeiro em 2009, com 5 nomeações (melhor filme, realizador, argumento adaptado, som e montagem) o filme de
Laurent Cantet foi um dos mais comentados em nosso cineclube. Estudantes com culturas e atitudes plurais contribuem
para tornar a sala de aula uma arena onde a diferença é o principal instrumento do embate. O exercício da alteridade,
do aceitar e ser aceito, um dos principais argumentos da narrativa. François, o personagem-professor, também é pro-
tagonista no exercício da alteridade. Combina “boas intenções” em uma prática pedagógica que procura potencializar
a autoria e dar voz aos estudantes para se expressarem e mobilizarem competências linguísticas, ao mesmo tempo em
que centraliza na sua emissão quase todo o processo. Apesar de “bem intencionado” o professor não consegue fazer
interatividade, ou seja, cocriar com seus alunos sua aula e as autorias dos e com seus estudantes. A cena que mais nos
chamou atenção, e que foi foco dos nossos debates, se deu no laboratório de informática da escola.
112

Os fóruns de discussão: narrativas em construção com e sobre as imagens do cinema


em ambiente de aprendizagem

Um ambiente online de aprendizagem é um conjunto de interfaces digitais de conteúdos e de comunicação


que, juntamente com a expressão e autoria dos participantes que habitam tais interfaces, forma-se um híbrido entre
objetos técnicos e seres humanos em processo de construção do conhecimento e da aprendizagem. Cada vez que um
novo participante habita, com sua autoria criadora, uma das interfaces de um “ambiente virtual de aprendizagem”, o
mesmo se auto-organiza modificando não só o ambiente fisicamente como, também, em potência, a aprendizagem de
toda comunidade de aprendentes.

Além de acreditarmos que só aprendemos porque o “outro” colabora com sua provocação, sua inteligência, sua
experiência, sabemos que temos interfaces que garantirão a nossa comunicação com nossa fala livre e plural. É desse
lugar que conceituamos educação online.

Em síntese, a educação on-line é o conjunto de ações de ensino-aprendizagem ou atos de currículo mediados


por interfaces digitais que potencializam práticas comunicacionais interativas e hipertextuais. Cada vez mais sujeitos
e grupos-sujeito, empresas, organizações, enfim, espaços multirreferenciais de aprendizagem vêm lançando mão desse
conceito e promovendo a difusão cultural de suas ideias, potencializando a democratização da informação, da comuni-
cação e da aprendizagem entre indivíduos geograficamente dispersos, seja como elemento potencializador da educação
presencial e/ou da educação a distância.

Entre as diversas interfaces de um ambiente online destacamos a interface do fórum de discussão. Os fóruns de
discussão são interfaces de comunicação assíncrona, pois permitem o registro e a partilha das narrativas e sentidos entre os
sujeitos envolvidos. Mediar a partilha de sentidos, garantindo a participação individual e compartilhada dos discursos, é um
dos grandes desafios da prática da docência online. Só é possível construir coletivamente o conhecimento quando dispomos
da contribuição singular de cada participante. Assim, é preciso fazer emergir ambiências de comunicação e aprendizagem
onde cada pesquisador possa se sentir como membro do grupo, atuar como pesquisador-coletivo. Foi com esse intuito e
mobilizados por essas potencialidades que criamos o fórum de discussão “cineclube” na Plataforma de EAD do Consórcio
Cederj, consórcio este constituído por universidades públicas do estado do Rio de Janeiro�������������������������
(www.cederj.edu.gov.rj).
113

A escolha da Plataforma Cederj se deu por reconhecermos que os processos de formação continuada e de
pesquisa-formação devem primar pelo lócus onde atuam os professores praticantes. A plataforma de EAD do Cederj
é o espaço de trabalho dos professores-tutores do curso de Pedagogia a distância, sujeitos coletivos da nossa pesquisa.
Para cada filme visto e discutido presencialmente abrimos um tópico no fórum de discussão online. Nesse espaço,
continuamos ou inauguramos debates variados com e pelas imagens problematizando questões diversas. Em vez de
trazermos para este texto recortes variados de cada fórum de discussão optamos por apresentar apenas um trecho do
debate de um filme.

Nossa opção justifica-se pelo fato de apresentar aos leitores o desdobramento de uma discussão iniciada e
mediada por nós, revelando a multiplicidade de sentidos e significados desencadeados pela leitura de uma narrativa
cinematográfica. Não faremos análise de conteúdo e nem dos discursos dos fóruns. Interessa-nos neste texto, apre-
sentar o potencial de um debate online iniciado presencialmente nos encontros do cineclube. Para tal, optamos pelo
fórum de discussão do filme “Entre os muros da escola”. O que queremos é mostrar algumas narrativas construídas no
diálogo com e pelas imagens mediadas pela interface online “fórum de discussão”. As narrativas a seguir não passaram
por revisão linguística.Vejamos:

Coordenação do Curso de Pedagogia - UERJ


FÓRUM CINECLUB
Data: 19/04/2009 Hora: 23:27
Entre os muros da escola
Edméa Oliveira dos Santos
19/04/2009 Hora: 23:27
Autor: Edméa Santos

Olá pessoal!
O segundo filme do nosso cineclube foi “Entre os muros da escola”. No presencial tivemos um ótimo debate.
Vamos agora debater online.
Como a autoria dos alunos e a mediação do professor foram tratados? O que aprendemos com esta narrativa cinematográfica?
De que forma o filme mostrou a relação entre aprendizagem, linguagem, tecnologias, a relação professor/aluno? Que links po-
demos fazer com a docência online?
Espero todos e todas! []s
Méa
114

Assunto: Res:
Autor: Monica dos Santos de Queiroz
Data: 24/04/2009 Hora 18:40

Olá, pessoal. = )
Uma das coisas que chamou minha atenção no filme foi a questão dos velhos problemas sem-solução da escola. Os professores se
reuniam, conversavam sobre os problemas, davam algumas sugestões que, ao serem confrontadas com outras questões, eram logo
abandonadas. E na prática, o que mudava???
Essa situação parece familiar para algum de vocês?
Sobre as questões colocadas por Méa, o filme mostra a relação professor/aluno no paradigma da educação tradicional. O tempo
inteiro vemos o professor na frente da sala de aula e os alunos sentados em seus devidos lugares (professor na posição do EMIS-
SOR - alunos nas posições dos RECEPTORES).
Embora o professor de Francês, François, mostre um certo interesse pela autoria dos seus alunos (na redação de seus autorretratos)
ele ainda parece distante.
A única cena, que a meu ver, mostrou alunos e professores como iguais, foi a do jogo de futebol, fora da sala de aula...
Bjs,
Mônica.

Assunto: Res:
Autor: Mônica Resino Teixeira
Data: 25/04/2009 Hora 01:56

Olá pessoal!
É Mônica Queiroz, vi muita cena nesse filme familiar ao meu cotidiano escolar... O filme é espetacular, em nenhum momento o
autor se preocupou em mostrar aquele professor que vai entender os problemas de todos e mudar aquela realidade, não! Ele mos-
trou foi a realidade! Com relação aos alunos, percebi que a maioria, talvez pelas dificuldades geradas pelas diversidades culturais, só
conquistavam o seu espaço naquele grupo pelas provocações que faziam ao professor e uns aos outros. Tinham uma auto-estima
muito baixa, não acreditavam no potencial que possuíam. Essa realidade só foi modificada quando cada um começou a escrever
seu auto-retrato, mostrar as suas qualidades, o seu valor. O ponto culminante desse momento se dá quando eles vão para ao labo-
ratório de Informática e registram, através das tecnologias digitais, o seu auto-retrato. Nesse ambiente todos estão interessados, o
professor consegue mediar a produção dos alunos e um começa a ver o colega de classe com outro olhar, parece que enxergou as
diferenças, que existem culturas diferentes. E nós, na docência online que interagimos com alunos de lugares tão distintos?
Bjs, Mônica Resino.
115

Assunto: Res:
Autor: Adriana do Carmo Corrêa Fontes
Data: 07/05/2009 Hora 18:54

Olá Mônica!
De fato o filme aborda uma questão bastante comum à nossa realidade, que, às vezes, é mais estarrecedora. Somos professores,
lidamos com alunos multiculturais, tais como a sala de aula retratada no filme. Os alunos se chocavam por conflitos sociais, cul-
turais, políticos e regionais, sem contar os relacionados às facções criminosas e nem assim o professor refletiu com o grupo sobre
a questão das diferenças, das identidades e dos supostos padrões de normalidade impostos simbólica e opressoramente para os
grupos não dominantes. Foi justamente este fato que me chamou a atenção e forçou uma reflexão: qual é o lugar da diversidade
na sala de aula? As diferenças são problematizadas? Os alunos se formam e não aprendem a respeitar uns aos outros. Que tipo
de cidadãos estamos formando? Talvez a intenção do filme não tenha sido discutir questões raciais, culturais, regionais, mas suas
cenas provocam estes questionamentos, na medida que tratam dos imigrantes, da língua materna da mãe de um aluno, das brigas
por times de futebol...
Considerando os avanços do filme, assinalo a não problematização das diferenças, utilizadas por Hitler para perseguir os povos
diferentes da raça ariana, dada sua suposta inferioridade. Refletindo, questionei qual é a mensagem do filme, já que seu sentido é
plural, nossa experiência acadêmica e pessoal é que dá significado para ele, mas insisto no seu propósito, relata toda pluralidade da
sala de aula, termina com a “integração” através do esporte e não discute o multiculturalismo, não em sua tendência folclórica que
apenas celebra em momentos oportunos as diferenças, mas do crítico que avança no reconhecimento e valorização da diferença,
na medida que briga por espaço para as vozes por tanto tempo silenciadas e escondidas, já que estas não conseguem visibilidade,
tal como ocorreu no filme.

Assunto: Res: o professor François somos nós!


Autor: Ana Regina Borges Vilares
Data: 28/04/2009 Hora 11:12

Entre os Muros da Escola usa a classe de uma escola de subúrbio de Paris para discorrer sobre os problemas político-culturais. Um
território onde o professor François representa o poder e a disciplina que quer impor a centralização sobre uma única bandeira,
a francesa. Cada aluno que ganha voz na sala, descendente de um país diferente que foi colônia da França ou ainda é território
do país, disputa um cabo de guerra entre identidade individual e coletiva.
Mas esse texto político está nas entrelinhas. Os tópicos são sutis e entram por meio de outros registros. Por exemplo: futebol. Uma
pequena discussão entre quatro alunos em torno das seleções que não se classificaram para a Copa da África mostra um reflexo
da presença maciça de africanos e árabes na França, olhada com receio pelo presidente Nicolas Sarkozy. Quando Thierry Henry
116

entra em campo pela seleção, o garoto deve torcer para a França, país no qual ele nasceu, ou para as Pequenas Antilhas, nação de
seus pais? E Zidane, filho de argelinos? E Thuram, nascido em Guadalupe, território francês no Caribe?
Mas o filme não usa apenas o futebol para chegar à política. Ele se aproveita de sutilezas da língua e expressões preconceituosas.
Até mesmo a escolha do professor por nomes anglo-europeus ao explicar conjugação verbal na lousa é questionada por uma
aluna, Khoumba. Por que você sempre usa Bill ou esses nomes aí? Isso reflete um olhar que ignora qualquer nome que denote
ascendência africana.
O professor François surge como o personagem mais complexo do filme: bom professor e um educador dedicado, ele nem sem-
pre consegue manter o controle sobre sua turma, permitindo que os alunos desviem as discussões e mesmo que o desrespeitem
ocasionalmente. No entanto, isto não o impede de exibir uma forte preocupação em relação aos jovens, buscando encontrar
maneiras diferentes de estimulá-los a partir de suas preferências pessoais (como, por exemplo, ao usar o gosto de Souleyman pela
fotografia) e, portanto, chega a ser surpreendente quando François finalmente perde a paciência, em determinado instante, e diz
certas coisas que claramente ultrapassam o limite do aceitável numa relação entre professor e alunos, comprometendo meses de
trabalho em função de uma explosão momentânea, o que pode perfeitamente acontecer com todos nós. Porém, o que realmente
importa é que, falhando ou tendo sucesso, ele compreende que um bom professor é, antes de tudo, um educador, alguém que se
preocupa em preparar seus alunos também para a vida.
Vale dizer, aliás, que os professores retratados ao longo do filme são, em sua maioria, profissionais responsáveis e interessados, sur-
gindo, assim como os alunos, como figuras complexas e, conseqüentemente, passíveis de contradições. Mal remunerados (chegam
a reclamar, durante uma reunião, do reajuste no preço do café) e constantemente pressionados pelas atitudes desafiadoras dos
estudantes, eles discordam com relação à melhor maneira de se manter o controle sobre os alunos, mas mesmo aqueles que de-
fendem um maior rigor e punições severas são retratados não como indivíduos vingativos ou cruéis, mas como pessoas razoáveis
que defendem seus argumentos com clareza e serenidade.
Qual o papel do educador na sociedade? Como trabalhar e conviver com o diferente? Como combater a exclusão e o xenofobis-
mo? Em que resulta o convívio forçado entre culturas distintas? Como agir de forma ética na profissão? Como lidar com jogos
de poder e conflito? Qual o limite da liberdade? A escola consegue cumprir seu papel social? Perguntas que exigem reflexão...
O professor apenas como detentor do conhecimento parece não se encaixar mais nos modelos escolares atuais. O papel de edu-
cador, estendendo a função do docente de transmissor do saber científico para alguém que ensinará valores, é a tônica do sistema
pedagógico do novo século. François é um professor humano, que sabe exercer o papel de educador, buscando uma aproximação
com seus alunos que não para nos livros escolares. Mas, quando confrontado, talvez imbuído de uma aura de superioridade típica
das elites intelectual e financeira, expõe a sua visão ao mesmo tempo solidária e cercada de preconceitos da qual não consegue se
livrar. Não somos nós ali retratados?
117

Assunto: Res:
Autor: Adriana do Carmo Corrêa Fontes
Data: 07/05/2009 Hora 19:17

Olá, Ana Regina. Como vai? Seus comentários oferecem subsídios para iniciarmos uma pequena conversa. Que tal? O filme tem
seus méritos e, um deles é mostrar que o professor é um sujeito comum, passível de erros e não um redentor. Outro diz respeito a
pluralidade retratada, muitas sãos as questões políticas, culturais e regionais assinaladas, porém pouco problematizadas. Como você
colocou, enquanto professores formamos para vida e, deste modo, como formar alunos/cidadãos sem refletir acerca das diferenças
e dos conflitos que surgem em nossa sala de aula. Será que é suficiente, dizer apenas que não somos iguais? Os exemplos poucos
significativos utilizados pelo professor afetou uma aluna, que expressou a falta de sensibilidade do mestre para sua sala de aula,
decerto, às vezes, recorreremos a nomes que fazem parte do nosso universo cultural e não dos educandos, mas sempre?
Como estes já tão excluídos em seus guetos vão compreender que não estão entre os muros da escola, mas que juntos com pro-
fessores, diretores e outros formam a instituição escolar? Eles fazem a escola, que existe para contribuir para formação de seus
alunos. A conteudista acho que damos conta, na medida em que os conflitos plurais, políticos, regionais, raciais e culturais não
dificultem nosso trabalho e a formação para cidadania? Como o filme auxilia para revermos nossa prática?

Assunto: Res:
Autor: Monica dos Santos de Queiroz
Data: 08/05/2009 Hora 19:27

Olá, meninas.
Pensando nessa questão que Mônica Resino e Adriana colocaram, das diversidades étnicas e culturais, temos que lembrar do
seguinte: historicamente, a escolarização tenta homogeneizar os sujeitos, o modo como devem se comportar, sua forma de
aprender...
Seguindo este paradigma é claro que as diferenças serão ignoradas, não é mesmo?
Isso pode ser causa de grandes conflitos e fracassos acadêmicos.
Como educadores temos que ficar bem antenados nessa questão.
Bjs,
Mônica Queiroz.
118

Assunto: Res:
Autor: Monica dos Santos de Queiroz
Data: 08/05/2009 Hora 19:43

Olá, Mônica.
O bacana é que o laboratório de informática foi um meio para realizar uma atividade, e não o fim. Assim, devemos pensar o uso
do computador em nossas práticas: um fator motivador da aprendizagem, potencializador de autorias, que permite a convergência
de linguagens e muito mais.
No filme, um dos alunos escreve seu autorretrato a partir de suas fotos. Achei muito bom o incentivo que o professor deu ao alu-
no, permitindo que usasse a criatividade na sua produção, a partir do suporte das tecnologias digitais. O resultado foi significativo
para o aluno e atendeu perfeitamente proposta à do professor.
Bjs,
Mônica Queiroz.

Assunto: Res:
Autor: Adriana do Carmo Corrêa Fontes
Data: 08/05/2009 Hora 21:39

Olá, Mônica
Boa noite. Acho que você foi muito feliz no seu comentário. O filme traz todas estas questões, mas não se posiciona, ou melhor,
aparentemente coloca a escola a partir da universalização e homogeneização, sem problematizar estas tensões culturais e sociais
que se confrontam entre os muros da escola. Assim, continuo pensando como ficam estas tensões na docência online, se é que elas
tenham lugar, penso em pesquisar sobre este assunto, até porque nossos alunos frequentam a rede. Há algum tempo percebi que
no second life, dificilmente se encontra avatar gordo, negro ou deficiente. Estes diferentes existem, mas não são bem representados,
nem por suas identidades. Eu
conheço uma gorda que tem uma avatar magro e diz que se sente muito bem, pelo menos ali na vida virtual/real ela é bem aceita
pelo grupo e chamada de gostosa.
119

Assunto:Vamos ao debate?
Autor: Edméa Oliveira dos Santos
Data: 10/06/2009 Hora 13:16

Olá pessoal!
A mensagem é sempre escrita pelo receptor. Quando este é interativo então temos tantas possibilidades de leitura...
Como o debate ficou rico por aqui. Pode ficar ainda melhor quando novos colegas entrarem nas discussões. Vamos nessa
pessoal?
Adriana e Ana, suas questões sobre a diversidade/diferença são ótimas, pertinentes e necessárias. Nós que somos e educamos com
e na diferença não podemos fugir desse debate no Brasil. Infelizmente o Currículo Oficial sempre foi “branco, macho e cristão”.
Ainda bem que no Currículo Ação podemos fazer diferente na diferença. A discussão legal só teve inicio com os Parâmetros Cur-
rículares. Mesmo assim, a diferença é para ser tolerada e não incluída no currículo. Diferença é para ser conteúdo de currículo.
No caso da narrativa “Entre os Muros da Escola” a diferença estava lá. O professor até fez emergir a diferença com a atividade do
auto-retrato. Pena que ele não explorou muito como conteúdo. Contudo, a diferença estava lá. A cena onde o menino mostra sua
família em fotos revelou o quanto os demais alunos pararam para prestar atenção nas fotos. Ninguém criticou ou desrespeitou
o colega naquele momento. O professor explorou bem a linguagem escolhida pelo aluno (imagem). Contudo, em sala de aula
teve dificuldades na mediação dos conflitos que sempre surgiam e eram inevitáveis. Como fazer isto online? Será que no online
estamos abertos aos conflitos? Como vocês percebem esta questão?
[]s
Méa
120

Assunto: Res:
Autor: Lydia Passos Bispo Wanderley
Data: 18/05/2009 Hora 19:46

Olá!!
Sabem, assisti o filme no cinema da UFF. É um cinema para a comunidade. Na segunda-feira o preço é R$ 2. Por que estou
passando essa informação? Porque é para a comunidade, para que a comunidade esteja ali. Faço aqui meu link: formamos para a
comunidade. Nos comunicamos com a comunidade, ou não. Podemos trabalhar na sala de aula, mas não precisamos estar entre os
muros. Na comunidade online, nós estamos além dos muros, e devemos reconhecer esse espaço.
Na sala de aula que vemos no filme vemos nossa ruptura de comunicação. Será que estou errada? Há troca de palavras, há con-
versa... mas não diálogo.
Mas o que me intriga é que não vejo falta de empenho no professor. Vejo falta de esperança. Será que ali eu tb não viveria os
mesmos problemas? Não teria a mesma deficiência? Será que na plataforma não vivo entre os muros do fórum?
Gente, na plataforma nós podemos estar criando aquele ambiente desinteressante tb... Como vamos quebrar isso?
Vamos dialogar, vamos perceber o que nossos alunos falam no fórum.Vamos trazer novas propostas.
(rs) Acho que me empolguei. beijos!

Assunto: Res:
Autor: Monica dos Santos de Queiroz
Data: 14/05/2009 Hora 17:23

Olá, Adriana. É verdade!!! Pesquisar essa questão é uma excelente ideia!


Bjs,
Mônica Queiroz.
121

Assunto: Falta de esperança! Questão de empenho? Formação?


Autor: Edméa Oliveira dos Santos
Data: 10/06/2009 Hora 13:23

Olá pessoal!
Lydia, que falta de esperança é esta?
Como vocês veem esta questão na tutoria de vocês?
Lydia você diz que não viu falta de empenho do professor. Concordo com você. O professor é muito empenhado. O problema
é o paradigma educacional que ele adotava. Mônica(s), Adriana, Ana, falaram um pouco sobre este paradigma. Como seria a
virada?
No caso da tutoria online teríamos falta de empenho ou problemas de paradigma? Vamos tocar nesta questão com tudo?
Temos falta de esperança? Esperança em que? Em quem? Em nós? No CEDEREJ? Na UERJ? Vamos tencionar esta questão para
formar e nos formar?
Vamos turbinar o nosso debate pessoal?
Todos e todas estão convidados!
[]s Méa

Assunto: Res:
Autor: Adriana do Carmo Corrêa Fontes
Data: 14/05/2009 Hora 17:44

Talvez possamos começar de alguma maneira. Decerto nossos achados serão inusitados e totalmente novos. O que acha?

Conforme vimos no desdobramento do debate (parte dele) construído num fórum de discussão online, emis-
são e recepção se imbricam e se confundem permitindo que a mensagem circulada seja comentada por todos os su-
jeitos do processo de comunicação. Aqui, temos uma nova dimensão para as noções de “presença” e “distância”. Estar
geograficamente disperso não significa estar a distância se temos medição e comunicação em rede digital.

Os fóruns de discussão online são, praticamente, as mais utilizadas interfaces na educação online. A maioria das
“plataformas” ou “ambientes virtuais de aprendizagem” disponibiliza a interface fórum, com o objetivo de mediar a
122

comunicação assíncrona entre os sujeitos da comunicação. Por possibilitar diálogos online entre sujeitos geografica-
mente dispersos e favorecer a criação coletiva do conhecimento podemos dizer que os fóruns de discussão configuram,
na maioria dos casos, a sala de aula online. Cada sujeito, na sua singularidade e diferença, pode expressar e produzir
saberes, desenvolver suas competências comunicativas, contribuindo e construindo a comunicação e o conhecimento
coletivamente.

Algumas considerações: final como obra aberta

Após apresentarmos os objetivos da atividade “cineclube”, algumas resenhas dos filmes, algumas narrativas
construídas no fórum de discussão online, concluímos este texto com depoimentos dos sujeitos que tiveram oportuni-
dade de participar dessa experiência de convergência de mídias e de espaços multirreferenciais de aprendizagem.
“Participar do cineclube foi uma das mais importantes atividades de formação que já participei. Claro
que sou suspeita para falar, pois foi ali que descobri minha paixão. Paixão essa que me levaria a alguns
questionamentos a que me tem levado meu objeto de pesquisa. O cineclube é especial, porque nele
trabalhamos os sentimentos... quando assistimos um filme somos de alguma maneira alcançados. Nosso
afetivo está ‘acionado’. E, no momento que lemos os textos... quando podemos relacionar um quadro
teórico com aqueles sentimentos vemos o valor que temos. O que quero dizer com isso? Nós vemos que
nosso cotidiano tem espaço de formação. Que nossa experiência tem relevância. Podemos construir muito.
Nós assistimos, sentimos, refletimos e construímos. E essa construção é dialogada. No fórum vemos o
que cada um tem a dizer sobre aquele momento. Descobrimos diferentes perspectivas. Concordamos e
discordamos. O diálogo é ‘travado’. E ali vemos nossas ideias ganharem novas formas. E algumas delas
se tornam conceitos. E esses conceitos são estudados. Afirmo que o cineclube é um espaço de formação.
Tem contribuído muito para meu amadurecimento e crescimento” (Lydia, professora-tutora em membro
do GPDOC).

“Cineclube é uma estratégia fantástica para o processo de ensino-aprendizagem. Com os filmes, podemos
evidenciar o conhecimento adquirido de forma sistemática. A sétima arte ilustra o cotidiano, as teorias,
o conhecimento em linhas gerais e específicas.
Participar do cineclube foi importante para reter e apropriar-se do aprendizado de forma espontânea e
divertida” (Raquel, pesquisadora voluntária e membro do GPDOC).
123

A partir desses depoimentos e da nossa experiência pessoal na criação e mediação da atividade formativa presencial (ci-
neclube) e on-line (fórum de discussão), reconhecemos seu valor e sua importância e, ao mesmo tempo, reconhecemos seus limi-
tes. Em relação ao cineclube (atividade presencial) reconhecemos o limite das tecnologias utilizadas (TV analógica, sem recursos
de som e imagens digitais) e o desconforto da sala de aula convencional. Em relação ao fórum de discussão on-line da Plataforma
Cederj só os professores-tutores tiveram acesso à interface por conta das limitações de acesso a outros interlocutores.

Em 2010 queremos aperfeiçoar a atividade como um todo incluindo novas dinâmicas participativas. Para esse
ano usaremos a interface blog fazendo convergências com o Youtube (www.youtube.com). Como pretendemos cada
vez mais articular pessoas de e em redes educativas diferenciadas optamos por outras interfaces que permitam a qual-
quer internauta, sujeito conectado à rede internet, participar das discussões online. Assim como os fóruns de discussão,
as interfaces blog e Youtube são assíncronas e permitem convergência de mídias. Podemos compor mensagens articu-
lando textos, sons e imagens (dinâmicas e estáticas) juntamente com os comentários dos participantes.

Nesse sentido, todos os sujeitos envolvidos na pesquisa-formação mais ampla (estudantes de graduação e pós-
graduação, professores-tutores, bolsistas e voluntários) poderão cocriar em rede. A vantagem de termos utilizado em
2009 o fórum de discussão da Plataforma Cederj se deu, conforme já justificamos neste texto, pelo fato do mesmo ser
o principal lócus de atuação profissional dos professores-tutores, principais sujeitos da pesquisa em questão. Por outro
lado, sentimos a necessidade de instituir espaços de comunicação online mais à moda das redes sociais da internet.
Inclusive, é uma nova tendência da educação online: articular ambientes online e plataforma de EAD com softwares
de redes sociais. Gostaria de participar? Então acesse: http://formacaocineclub.wordpress.com. Nos encontramos no
blog! Até breve!

*Agradeço a tod@s os membros do GPDOC por cocriarem comigo nossas atividades formativas. Agradeço em especial aos professos-tu-
tores da Uerj que participam ativamente da nossa pesquisa.

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125

‘Divulgar para melhor compreender’


– o caso do jornal eletrônico Educação & Imagem
Alessandra da Costa Barbosa Nunes Caldas

Rosângela Lannes Couto Cordeiro

Pretendemos com este texto trazer um breve histórico do Jornal Eletrônico Educação & Imagem (http://www.
lab-eduimagem.pro.br/JORNAL/), além de discutir a importância da divulgação científica pela internet, especial-
mente aquela voltada para as pesquisas em educação.

Partindo da compreensão de que a criação de conhecimentos se dá em trocas sociais múltiplas, ou seja, através
de redes de conhecimentos e significados, os integrantes dos diversos grupos de pesquisa que participam do Laboratório
de Pesquisa Educação e Imagem, coordenado pela professora Nilda Alves e vinculado ao Programa de Pós-graduação
em Educação da Uerj (ProPEd), criaram, em 2006, o jornal eletrônico Educação & Imagem. O objetivo é colocar à
1
No grupo de pesquisa que esta-
mos envolvidas, o uso desses
disposição de professores e outros leitores, por meio de narrativas e imagens, os resultados de pesquisas, experiências termos, como de outros, nessa
pedagógicas e outras reflexões, em um chamamento à parceria, no desejo de pensarfazer1 junto. escrita aglutinada, têm o senti-
do de mostrar os limites que o
modo dicotomizado da ciência
Dialogando com os estudos do cotidiano de Certeau (1992; 1994; 1997) e Lefebvre (1983; 1992), um grupo moderna coloca às definições
de professores de várias linhas de pesquisa do ProPEd/Uerj, interessados nos usos de imagens e de narrativas nas pes- desenvolvidas.
quisas em educação, criou, em 2001, o Laboratório Educação e Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br). Desde então,
inúmeras publicações conjuntas têm permitido fazer conhecer a um público maior o que os pesquisadores vêm de-
senvolvendo teórico-epistemologicamente e teórico-­metodologicamente quanto à necessidade e às possibilidades dos
usos de imagens e de narrativas em pesquisas sociais.

O jornal eletrônico Educação & Imagem se insere no contexto dessas publicações conjuntas. Sua criação foi de-
cidida após um debate entre os grupos que participam do laboratório, apontando para a necessidade de um periódico
126

que permitisse a divulgação, para professores de todos os graus de ensino, do que vinha sendo produzido.

Cada edição do jornal eletrônico Educação & Imagem é organizada por um grupo de pesquisa. Cada grupo tem
sua própria identidade, mas todos eles fazem usos de imagens em suas pesquisas, compreendem que os cotidianos são
espaçotempos de invenção permanente e defendem que os professores, nas escolas em que atuam, são criadores de co-
nhecimento e, dessa forma, têm muito a dizer.

Os grupos vinculados ao Laboratório Educação e Imagem que, até o presente momento, já organizaram edi-
ções do jornal eletrônico são os seguintes: Currículos, Redes Educativas e Imagens, coordenado por Nilda Guimarães
Alves; Infância Mídia e Educação – GPIME, coordenado por Rita Ribes; Infância, Juventude e Indústria Cultural
(IJIC), coordenado por Maria Luiza Oswald: Redes de Conhecimentos e Práticas Emancipatórias no Cotidiano Es-
colar, coordenado por Inês Barbosa de Oliveira; Educação e Comunicação, coordenado por Raquel Goulart Barreto;
Narrativas, Memórias e Atualização Identitária em Contextos Educativos, coordenado por Mailsa Carla Pinto Passos;
Linguagens Desenhadas e Educação, coordenado por Paulo Sérgio Sgarbi; e Instituições, Práticas Educativas e História,
coordenado por Ana Chrystina Venancio Mignot.

O periódico apresenta as seguintes seções: Uma imagem, Pensando com imagens, Imagens no exterior, Imagem
no Brasil, Arte & Imagem,Voz do Docente,Voz do leitor, Dicas e Links.

Uma das maneiras que encontramos para compreender o que esses grupos vêm divulgando sobre as suas pes-
quisas no jornal eletrônico foi ler os editoriais de suas edições. Assim, analisamos os editoriais da primeira à oitava
edição e da 15ª edição. Além dos editoriais, também selecionamos alguns artigos para observar como têm sido feitos os
usos de imagens em consonância com os estudos que esses grupos desenvolvem.

Os grupos de pesquisa e os usos que fazem do jornal Educação & Imagem

Os editoriais do jornal eletrônico Educação & Imagem nos permitem ver, através de seus conteúdos, como cada grupo
tem desenvolvido as suas pesquisas e caracterizado suas opiniões. Geralmente, esses editoriais são escritos pelos coordenadores
do grupo e nesse espaçotempo podemos observar o delineamento dos assuntos que serão abordados pela edição do jornal, além
de críticas, sugestões, opiniões, indagações e apresentações dos estudos de determinado grupo de pesquisa.
127

Uma característica singular observada em todas as páginas do jornal, não apenas em seus editoriais, é a preocu-
pação de deixar bem explícito que o uso dos conteúdos e das imagens é livre.

Na primeira edição, sob a responsabilidade do Grupo de Pesquisa Redes Educativas e Imagens – coordenado
por Nilda Alves –, o editorial, ao apresentar o jornal, expressa o desejo dos organizadores em fazer uma publicação
diferente, marcada pela pluralidade de pontos de vista, pela multiplicidade de fontes e pela disposição para o diálogo.
Estamos no ar. Mas também estamos na terra, na água, no fogo... nos espaçostempos escondidos, nos
bem à mostra; nos momentos de tensão e desânimo, nos de leveza e animação; nas atitudes curiosas,
nas de sabedoria, nas arrogantes, nas humildes. Estaremos onde estiver cada pessoa que, querendo
conversar sobre educação, escola, imagem, cotidiano ou outro assunto qualquer, nos presenteie com sua
participação.

E peço, mais uma vez, ajuda a Drummond para fechar esse primeiro editorial que, antes de qualquer outra
intenção que devam ter os editoriais, pretende ser um convite à participação das pessoas nessa interminável
conversa sobre as coisas da educação e da escola e outras mais (ano I, n. 1 – mai.-jun. 2007).

Na seção Uma imagem, dessa primeira edição, o artigo A canção da foto é um exemplo da postura anunciada no
editorial. Nele, a autora Stela Guedes Caputo desenvolve uma ‘conversa’ sobre educação, a partir de uma foto que foi
publicada na primeira página do jornal O Globo (23/03/2007) e que mostra, nas palavras da autora, “um jovem en-
frentando um policial armado”.

Segundo Caputo: essa foto de Gabriel de Paiva não me deixou, por isso a escolhi para essa seção de nosso jor-
nal; porque andando pelas ruas, deparamo-nos com os jornais pendurados nas bancas e olhamos as imagens estendidas
como roupas num varal. Apressamos o passo e logo outras tantas imagens tomam o lugar das que deixamos no jornal
que largamos.

Inquieta com as legendas que acompanham a foto no jornal diário carioca, bem como o contexto em que apa-
recem, ela decidiu entrevistar o autor da foto. Ao conversar sobre o ato de fotografar e o processo de edição do jornal,
a autora do artigo desenvolve uma discussão sobre a relação entre o fotógrafo, a foto que tirou, a edição do jornal em
que trabalha, o uso das legendas no jornal e a interação do leitor com a notícia estampada.
Para o fotógrafo Gabriel de Paiva, fotografar é “tentar fazer com que o leitor sinta o que eu senti na hora do
fato jornalístico”. Assim, a ilusão especular (Machado, 1984) que faz com que a fotografia possa ser vista
128

como “espelho do real” vai além daquilo que se pretender “revelar” e alcança o que se deve “sentir”. Para
que o sentido único não escape as legendas ajudam, já que, para o fotógrafo, “as legendas impedem que o
leitor tenha interpretação errada do acontecimento”. Paiva concordou com a edição que o jornal fizera de
suas imagens e que tudo tinha sido mesmo uma “baderna” (ano I, n. 1 – Mai.-jun. 2007).

No final do artigo, Caputo propõe aos leitores que retornem à imagem para que
talvez a escutem como eu que ouço o grito do jovem ao PM: “Atira!”. Paiva não confirma ter ouvido
o que o rapaz dizia, mas é isso que escuto. Talvez vocês ouçam outra coisa. Discuti essa imagem com
meus alunos na disciplina de Tecnologias Educacionais (alguns moram nessa comunidade que, segundo
o jornal, não é a primeira vez que abala a rotina da cidade). Um deles disse que a foto lembra a música
de “O Rappa”, e cantou a parte recordada: “A minha alma tá armada e apontada para a cara do sossego
– pois paz sem voz não é paz é medo”. Títulos, legendas, textos, cortes, fios, ausências. Os jornais tentam
conter nos retângulos fotográficos um sentido homogêneo e, no entanto, a foto grita e canta (ano I, n. 1
– mai.-jun. 2007).

Com esse artigo, destacamos a questão da polissemia da imagem que se manifesta no processo de interpretação.
A preocupação do fotógrafo Gabriel Paiva com as legendas das fotos nos traz um questionamento bem interessante. Por
que ele se preocupa com o sentido único dessas fotos? Para que o leitor sinta o que o fotógrafo sentiu na hora de tirar
as fotografias. No contexto do jornalismo verdade, podemos entender essa preocupação do profissional, já que, segundo
Paiva, para que o leitor não tenha uma interpretação errada do acontecimento, é necessário fazer o uso das legendas.

Assim, podemos inferir que há uma tentativa de direcionamento da interpretação do leitor. Mas, apesar desse
tipo de preocupação, o profissional percebeu que, no próprio contexto da produção do jornal, sempre ocorrem “pro-
blemas”. No caso dessa matéria de O Globo, por exemplo, as fotos passaram por uma edição que fez o uso delas de
um modo diferente do que foi proposto pelo profissional que as tirou e que considerou esse ato como uma “baderna”
no jornal. Segundo contou o fotógrafo à autora do artigo, as fotos tiveram o seu sentido mudado e colocado em outro
contexto, ou seja, prevaleceu a perspectiva que o jornal quis apresentar.

Sobre a polissemia das imagens, Tânia Müller considera a fotografia como


uma linguagem, uma forma de expressão, que não pode ser vista ou ouvida como se tivesse um sentido
único, uma verdade exposta. Cada imagem registra um assunto singular, num particular instante do
129

tempo e este se dá unicamente em função de um desejo, uma intenção ou necessidade do fotógrafo. Ele
vê e narra aquilo que acha que viu ou quis ver. Esse entendimento situa a fotografia na posição de objeto
polissêmico, com os mais diversos objetivos, sujeita a diferentes usos (2006, p. 26).

Caputo, em seu artigo, afirma ainda que por mais que os jornais tentem conter nos retângulos fotográficos um senti-
do homogêneo... a foto grita e canta. Dessa forma, podemos entender também que, por mais que o fotógrafo tente dar um
sentido unívoco à imagem, tentando incorporar uma legenda para esse fim, o ato de publicar uma fotografia querendo
que essa imagem e/ou sua descrição ou explicação imponham um determinado sentido, resulta em um trabalho difícil,
quiçá impossível, para esse profissional, devido à polissemia que a fotografia apresenta.

Na segunda edição do jornal, sob a responsabilidade do grupo Infância, Mídia e Educação – coordenado por
Rita Ribes –, encontramos um editorial bem convidativo a pensar. O que temos a dizer sobre as imagens que vemos? O
que essas imagens propõem ao nosso olhar? O questionamento foi feito na perspectiva que
Crianças e jovens contemporâneos, nascidos sob o signo da profusão das imagens técnicas, muito do
que sabem sobre o mundo e sobre si mesmas, aprenderam com as imagens, com os audiovisuais, com
a escrita eletrônica, sobretudo, as veiculadas nos espaços das mídias. Compreender suas culturas e sua
singularidade implica, necessariamente, uma abertura a dialogar com os sentidos que as mídias adquirem
na sua vida cotidiana (ano 1, n. 2, jun. 2007).

O referido grupo de pesquisa se propõe, em seus estudos, a compreender a relação que as crianças mantêm com
as diversas mídias, fazendo usos das mídias que têm ao seu dispor. Os integrantes do grupo consideram a escola como
um espaço de socialização privilegiado, no qual as crianças, com seus pares, constroem inúmeras mediações e sentidos
para aquilo que veem, leem, assistem. Assim, ao analisarmos a imagem e o texto do artigo Imagem e desenho: pesquisa com
crianças na educação infantil, publicado na seção Fazendo Escola com Imagens, podemos observar a reflexão sobre o lugar
que a televisão ocupa na vida das crianças de cinco e seis anos. Principalmente ao que se refere ao uso da imagem em
forma de desenhos.

A discussão dos autores Josemir Almeida Barros e Maria Esperança de Paula, no artigo Imagem e desenho: pes-
quisa com crianças na educação infantil, parte de um diálogo realizado com crianças da Escola Padre Eustáquio, localizada
em Belo Horizonte. A partir de uma pergunta – Qual a parte da sua casa de que mais gostam? – eles desenvolveram um
130

estudo sobre o contexto extraescolar da vida das crianças. Nesse estudo, os desenhos dos alunos foram usados como
instrumentos de pesquisa, com o objetivo de conhecer as relações que eles estabelecem entre imagens e oralidade. Os
autores explicaram que
utilizar os desenhos como instrumento de pesquisa com crianças da educação infantil torna-se uma rica
possibilidade de compreender a relação entre imagem e oralidade, sendo estas formas privilegiadas de
expressões e sentimentos infantis.

Segundo Gobbi (2002) os desenhos infantis podem ser considerados como documentos caracterizados como
objetos interlocutores que vão permitir uma construção de diálogos com as crianças, contribuindo como fontes de
informações a serem investigadas, interpretadas, analisadas e comparadas. As crianças, ao registrarem os desenhos no
papel, tendem a contar as visões do seu mundo. Portanto, tais documentos são entendidos como obras humanas que
registram, ainda que de modo fragmentado, pequenas parcelas das complexas relações, tanto individuais quanto coleti-
vas das crianças (ano 1, n. 2, jun. 2007).

A terceira edição do jornal eletrônico Educação & Imagem, que ficou sob a responsabilidade do grupo Infância,
Juventude e Indústria Cultural – coordenado por Maria Luiza Oswald –, foi organizada a partir do que foi discutido
em um evento acadêmico intitulado IV Seminário Internacional As redes de Conhecimentos e a Tecnologia: Práticas
Educativas, Cotidiano e Cultura. Na interação com outras vozes de outras realidades, os integrantes do grupo puderam
compartilhar suas incertezas e somar suas experiências em relação ao complexo objeto de suas investigações, que é a
relação de crianças e jovens com a imagem técnica.

Sobre essa problemática, Santos e Okada (2003, p. 288), ao falarem sobre imagens e currículos, nos trazem
Santaella e Nöth (1999, p. 157-186), os quais apontam três paradigmas que marcam o processo evolutivo da produção
de imagens: o paradigma pré-fotográfico, representado pelas imagens elaboradas artesanalmente, como a pintura; o
paradigma fotográfico, que é a captação de elementos do mundo visível; e o paradigma pós-fotográfico, caracterizado
por imagens sintéticas ou infográficas.

Desdobrando a conceituação apresentada por esses autores, Santos e Okada afirmam que
As imagens produzidas manualmente, pré-fotográficas, exigiam dos seus criadores habilidades artesanais
para “reproduzir” o real e o imaginário de forma bidimensional ou tridimensional. Com o advento das
máquinas sensórias, o mundo sofre uma invasão de signos produzidos por imagens pós-fotográficas e
131

eletrônicas expressadas pela fotografia, pelo cinema, pela tv, o vídeo e atualmente pelo digital. O registro
mecânico altera a natureza da representação. A relação entre técnica e arte influencia a subjetividade
do produtor e do receptor. O olho do artista e sua subjetividade se completam com as possibilidades
técnicas promovidas pelas máquinas como, por exemplo, os recursos e possibilidades combinatórias de
luz, enquadramentos, efeitos, montagem, recortes; enfim, as máquinas não só registram, mas criam
realidades (2003, p. 288).

Observamos, no editorial jornal eletrônico de número três, a preocupação do grupo Infância, Juventude e
Indústria Cultural em compreender, dentro de um novo paradigma que modifica as relações com o conhecimento, as
experiências que crianças e jovens têm realizado a partir dos usos que fazem de imagens.
(...) crianças e jovens estão, de fato, vivendo sob um novo paradigma que modifica suas relações com o
conhecimento e com a cultura, nada mais importante do que nos harmonizarmos com eles, enfrentando
o desafio de compreender mentes que “pensam em audiovisual”. Se assumir esse desafio não é tão simples
assim, ousá-lo poderia ser uma abertura ao campo do possível. É o que nós, do grupo de pesquisa, vimos
procurando fazer, ao nos aproximarmos da relação intensa de crianças e jovens ao mundo das imagens.
Mundo que para fazer sentido tem que ser co-habitado, compartilhado (ano 1, n. 3, ago.-set. 2007).

Na mesma edição, o artigo “Novos modos de ser jovem: imagem, contemporaneidade e educação”, escrito
por Ana Carolina Pereira da Silva e Rosa Helenice Mirabelli Cassino Ferreira e publicado na seção Pensando com a 2
A prática do cosplayer é inspira-
da nessa brincadeira/encenação,
Imagem, nos apresenta uma discussão voltada para uma prática dos jovens que constitui um dos modos pelos quais eles
na qual os jovens procuram
tornam habitáveis os espaçostempos contemporâneos. As autoras usam a imagem de uma jovem cosplay2 para desenvol- reproduzir, segundo critérios
próprios de representatividade,
ver sua discussão, indicando que, ao buscar uma imagem que as ajudasse a pensar questões da educação, não as levasse
personagens desses produtos da
a garimpar o baú de suas reminiscências, mas as remetessem à imagem de um tempo presente que nos bateu à porta indústria cultural japonesa.
através de nossas investigações acadêmicas e que nos deixou, por alguns instantes, cheias de incertezas.

As autoras apontam que, na contemporaneidade, a imagem adquire relevância na relação dos sujeitos com o
mundo, logo, há que se considerar as práticas desses jovens que mesclam o real, a fantasia e o virtual interagindo com
as histórias e os personagens, numa brincadeira. O prazer de brincar com a própria imagem, que já é realidade nos am-
bientes virtuais, aparece também na prática dos cosplayers, o que os possibilita criar sentidos a partir de suas experimen-
tações. Sendo assim, surge uma configuração, segundo as autoras, de novas formas de sociabilidade, em que o processo de
subjetivação desses sujeitos, marcado por inúmeras mediações, os permite através do cosplay, novos modos de ser jovem.
132

Dessa forma, Ana Carolina Pereira da Silva e Rosa Helenice Mirabelli Cassino Ferreira propõem que devemos
exigir dos espaços educacionais novos olhares às expressões juvenis, considerando-as como práticas culturais de pro-
duções de sentidos. Porque
sempre estivemos acostumadas a pensar em “fantasias” como algo infantil ou carnavalesco, porém ali, ao
nos depararmos com jovens em um contexto tão específico, precisamos buscar outras referências e formas
de olhar para esse outro que não cabia nos modelos instituídos. Nesse movimento de desconstrução/
reconstrução de olhares, recorremos a Martín-Barbero que nos fala do jovem que se constitui em novas
configurações espaço-temporais como aquele que “se expressa em idiomas não verbais, baseados em
sua sensibilidade e em sua corporeidade, e habita os mundos dos códigos tribais, das quadrilhas e das
seitas, a partir de onde se manifesta sua rejeição à sociedade”. Ele nos alerta para a existência de um novo
sujeito da educação com novas práticas e demandas, exigindo dos espaços educacionais novos olhares e a
construção de um paradigma que considere as expressões juvenis como práticas culturais de produções de
sentidos. Assim, caberia à prática educativa intencional problematizar o consumo cultural e transformá-lo
em palco de reflexão e criatividade diante dos sentidos originais produzidos pelos jovens em um processo
de exercício da cidadania (ano 1, n. 3, ago.-set. 2007).

O quarto editorial analisado, do grupo Redes de Conhecimentos e Práticas Emancipatórias no Cotidiano Es-
colar – coordenado por Inês Barbosa Oliveira –, é dedicado ao cotidiano, seus estudos, seus modos de ser abordado, sentido,
tratado e pensado e, por que não, visto, nas imagens que o integram. Tendo como epígrafe uma frase de Boaventura de Souza
Santos – O reencantamento do mundo pressupõe a inserção criativa da novidade utópica naquilo que nos é mais próximo – o texto
do editorial nos diz que é necessário
buscarmos reencantar o mundo à nossa volta e que o façamos a partir da nossa vida cotidiana, dos
momentos nos quais, como ensina José Machado Pais “aparentemente nada se passa” (2003). Nessa
tentativa, nós do Laboratório de Educação & Imagem e muitos outros vimos trabalhando em busca de
novas formas de “narrar a vida”, buscando “literaturizar” a ciência” (Alves, 2001), bem como vivê-la,
de modo cooperativo e em busca de torná-la cada vez mais bonita (Victorio Filho, 2005). Esse jornal
vem sendo uma expressão disso, trazendo nas suas várias seções, diálogos diferenciados com diferentes
aspectos da questão educativa., sempre incorporando as imagens como uma linguagem complementar e
necessária pelo que suscita de possibilidades para além do que pode o texto escrito (ano 1, n. 4, out.-nov.
2007).
133

 O artigo dessa edição que escolhemos para analisar foi “A potência política da palavra-imagem Rocinha”,
escrito por Rodrigo Torquato da Silva para a seção Uma imagem. Nesse texto, o autor apresenta múltiplas apropriações
da palavra Rocinha e chama atenção para os muitos usos políticos dessa palavra – potência. O professor faz um relato de
sua prática e diz o motivo que o levou a escrever sobre esse assunto:
O motivo que me levou a essa reflexão foi um fato que ocorreu no Pré-Vestibular Comunitário da Rocinha
(um movimento social de educação popular, no qual realizei minha pesquisa de mestrado, composto por
voluntários, onde atuei como coordenador pedagógico, usarei a sigla: PVCR, para me referir a ele). Um
professor voluntário, certa vez, me procurou e disse que estava sofrendo pressões da família, em função
de como a Rocinha estava sendo representada na mídia, àquela época. Dizia-me que não entendia e nem
conseguia explicar para sua família a experiência que vivia: as imagens mostradas na televisão e nos
jornais anunciavam uma guerra na Rocinha e isso distorcia a realidade das práticas cotidianas que ele
estava vivendo. Mesmo depois de muita conversa, o poder da representação midiática foi maior do que
o poder de resistência, oriundo da observação do real. O professor não pode vir mais dar aulas no PVCR
(sob a alegação de motivos pessoais) e a turma ficou sem professor (ano 1, n. 4, out.-nov. 2007).

No referido artigo, o autor explica que seu intuito é compreender melhor o enredamento dessa temática com a
questão social da favela. Diz em quais caminhos teórico-metodológicos tem se apoiado para fazer a sua pesquisa: a An-
tropologia Urbana, os estudos nos/dos/com os cotidianos e as pesquisas sobre usos de imagens e a observação “livre”,
porém não descompromissada com a rigorosidade política que o tema implica. Para isso, Rodrigo Torquato da Silva fez
caminhadas pelas ruas, becos e vielas da favela da comunidade, capturando as cenas em que aparecem a palavra-imagem
Rocinha. Ele visitou também uma exposição de imagens, sobre a mesma favela, que foi promovida pela prefeitura do
Rio de Janeiro. Uma foto lhe chamou a atenção.Trata-se da imagem de uma faixa chamando para o show de um artista
local, sobre a qual o autor teceu o seguinte comentário:
A imagem (...) mostra como a adjetivação proporciona um bônus para o indivíduo. Esse artista (Charlys
da Rocinha) foi anunciado, durante uma semana, na maior emissora de televisão brasileira, como o
cantor que estava vendendo mais disco do que Roberto Carlos, na Rocinha (ano 1, n. 4, out.-nov. 2007).

A seguir, Silva contrapõe essa imagem citada a uma outra publicada em um jornal que conseguiu com uma
leitora assídua da comunidade. Naquele jornal, uma fotografia mostrava um corpo sendo carregado por policiais, e assim
produzia a inscrição do medo como um elemento fundamental na trama do espetáculo.
134

A partir dessa segunda imagem, o docente se põe a pensar sobre a ausência da mídia em relação às práticas
daqueles que subvertem as ordens tirânicas impostas tanto pelos traficantes, quanto pelo Estado que se
faz fascista aos mais pobres da cidade, isto não foi suficiente para aniquilar as ações como a experiência
educativa dos pré-vestibulares populares nas favelas e periferias (entre os quais, destaco o Pré-Vestibular
Comunitário da Rocinha – PVCR, com 12 anos de experiência em educação popular naquela que é
considerada a maior favela da América Latina) como uma ação afirmativa que está, fundamentalmente,
tecendo novas redes sociais (Mitchel, 1969). Redes essas, que contribuem não só para formação de
professores, mas, principalmente, para a formação humana (ano 1, n. 4, out.-nov. 2007).

Continuando nosso trabalho no sentido de destacar o que os grupos têm divulgado no jornal eletrônico através
de imagens e palavras, analisamos o editorial da edição n. 5, organizada pelo grupo Educação e Comunicação – coor-
denado por Raquel Goulart Barreto –, no qual a coordenadora enfatiza que
o grupo de pesquisa “Educação e Comunicação” nasceu e vive de pensar a leitura como “substantivo
plural”, em pelo menos dois sentidos: o de que o suposto sentido (mais) correto existe na exata medida da
sua inscrição no discurso autoritário; e o de que a leitura ainda tende a ser pensada a partir dos parâmetros
da linguagem verbal escrita, embora as tecnologias permitam que os textos produzidos não se restrinjam
mais às palavras (ano 1, n. 5, Nov.-dez. 2007).

Os integrantes do grupo se dedicaram a enfocar nessa edição o mundo da ilustração, polemizando a dança feita
por palavras, imagens e sons. Palavras, imagens e sons nem sempre dançam para a convergência, reforçando umas às outras. Abrem
diferentes possibilidades de leitura, remetendo a sentidos diversos: pra lá e pra cá. E para reafirmar essa tese indagam: quem nunca
passou pela experiência de estar apenas ouvindo a TV e, ao olhar para ela, se deparou com imagens diferentes das que palavras e
sons haviam sugerido?

Com esse propósito, o grupo convidou aos leitores a passearem nesse mundo lúdico, imaginário e também
polêmico da ilustração, lembrando, com Orlandi (1998, p.12), que: “ler (...) é saber que o sentido pode ser outro”.

Lendo o editorial do Educação & Imagem número seis, organizado pelo grupo Memórias, Narrativas e Processos
de Atualização Identitária em Contextos Narrativos – coordenado por Mailsa Carla Pinto Passos –, pudemos observar
como esse grupo se vê divulgando o que pensa, o que sente e o que trabalha em suas áreas de atuação. No texto, o
grupo afirma que considera esse número do Jornal Eletrônico como um ‘conselho virtual de naparamas’, se aproprian-
135

do do termo trazido na epígrafe3 para dizer que os que colaboraram com a edição são “guerreiros” e “guerreiras” que
3
Naparamas -(...) Eram guerreiros
fazem parte de um conselho que luta pela educação, pela cultura e pela arte e, assim, são também formadores de outros
tradicionais, abençoados pelos
tantos naparamas. feiticeiros, que lutavam contra
Como a nossa pesquisa nesse momento tem como foco as memórias, narrativas e práticas da diáspora os fazedores da guerra. Mia
Couto, in Terra Sonâmbula.
africana no Brasil e as redes educativas que se estabelecem a partir delas, trouxemos um pouco do que
temos discutido: os processos educativos, os de atualização identitária e os processos de negociação
cultural nos quais esses sujeitos estão envolvidos.

Cremos que falar de práticas culturais afro-brasileiras e de sujeitos afrodescendentes é não só falar de
mudanças na forma de olhar para o “outro”, mas para nós mesmos. É falar de cultura popular, de acesso
à universidade, de religião e de corporeidade: tudo o que está contemplado aqui nesse número de um
ou outro modo, e tudo que tem a ver com as redes educativas nas quais estamos inseridos em nossos
cotidianos (ano 1, n. 6, dez.-jan. 2007/2008).

Um agradecimento feito nesse editorial aos professores que colaboraram com textos e imagens, nos dá pistas
de que o processo de elaboração do Jornal Eletrônico tem sido tecido por todos aqueles que, mesmo atuando em es-
paçostempos diferentes, possuem uma preocupação em comum: a temática educação e imagem.
Estamos imensamente gratos a todas e a todos – educadoras e educadores – que trouxeram as imagens
e os textos para compor este número do Jornal Eletrônico. A elas e a eles nossa gratidão e uma
pontinha momentânea da chamada “inveja boa”. Que belos textos, que imagens preciosas, que gente
interessante!

Estiveram nas escolas e nos circos, nas missas e nos terreiros, nas galerias de arte e nas rodas de jongo; e
trazem as narrativas e as imagens desses cotidianos nos fazendo sentir parte deles (ano 1, n. 6, dez.-jan.
2007/2008).

O sétimo editorial que analisamos teve como responsável o grupo de pesquisa Linguagens Desenhadas e Edu-
cação – coordenado por Paulo Sérgio Sgarbi. Em seu texto pudemos observar a que se têm dedicado os estudos dos
integrantes do grupo e as temáticas por eles abordadas nesse número:
O grupo de pesquisa Linguagens desenhadas e educação, que tem a responsabilidade de inventar
esse número do jornal, tem procurado refletir sobre essas múltiplas linguagens e as possibilidades de
articulação para compreender a comunicação humana e, mais do que isso, compreender o processo
aprendizagensinoaprendizagem a partir desse viés da comunicação.
136

A partir desse entendimento, perceber como as linguagens desenhadas assumem papel importante na
aprendizagem das ciências nas escolas é uma das conversas que propomos. Ainda pensando na forte
presença da comunicação em nossos ambientes escolares, trazemos também uma conversa sobre como as
imagens de pessoas públicas podem impregnar de maneiras de ser os comportamentos dos que ensinam e, por
conseguinte, dos que aprendem (ano 1, n. 7, mai;-jun. 2008).

Em meio a essa perspectiva do grupo, que busca compreender o processo aprendizagensinoaprendizagem por
meio das linguagens desenhadas, um dos artigos dessa edição despertou um interesse especial: Quadrinhos e ensino de
história, culturas e religiões afro-brasileiras na escola, de André Brown, escrito para seção Pensando com a imagem.

Nesse artigo, destacamos os relatos dos usos que o autor – cartunista, pesquisador e professor de uma turma de
formação de professores – fez das histórias em quadrinhos em suas práticas docentes, no contexto da alteração na legis-
lação visando à obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de ensino
público. Brown, que tomou a revista em quadrinhos Zumbi – a saga de Palmares, criada pelos artistas Krisnas & Allan
Alex –, como potência para provocar debates sobre a temática, destacou, a partir de narrativas das suas alunas, que ainda
existe muita resistência ao ensino de questões relativas à cultura afro-brasileira.
Tenho utilizado a revista em sala de aula com minhas turmas do curso de formação de professores, nas
disciplinas de Estrutura e Funcionamento do Ensino e História da Educação. Além do impacto causado
pelos quadrinhos, soube, durante o debate com as alunas que estão estagiando no ensino fundamental, da
resistência de alguns pais de seus alunos pelo ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, principalmente
quando o assunto da aula é a religiosidade. Em um dos casos narrados, a mãe de um estudante teria
entregado um caderno para a professora afirmando que ele estaria com o demônio em suas páginas,
pois mostrava textos e desenhos sobre os orixás, iniciando um embate com a escola. Seguindo esse
pensamento, a maior parte dos gibis e livros que conheço para tratar do assunto estariam endemoniados,
pois mostram a religiosidade como um elemento importante das culturas afro-brasileiras e na identidade
dos afrodescendentes.

O fato narrado pela minha aluna revela a intolerância entre fiéis de algumas religiões contra as religiões
afro-brasileiras, causando dificuldade também para os professores que, muitas vezes, para evitar
conflitos, optam por excluir a temática religiosidade de suas aulas, o que certamente limita e empobrece
o ensinoaprendizado das culturas afrodescendentes na escola (ano 1, n. 7, maio-jun. 2008).
137

A partir do fato narrado, o professor/pesquisador se questiona e nos incita a refletir:


Minhas experiências como aluno de ensino religioso me mostraram que, quando o professor era pastor,
a disciplina tratava das religiões evangélicas, quando era padre, só deveria ser ensinada a religião católica
(...).

Afinal, quando iremos realmente aprender a respeitar, conviver com as diferenças e conseguir ensinar a
História e Cultura Afro-Brasileira na escola, amplamente, sem ter que aceitar a hipocrisia de fazer cortes
nesses conhecimentos? (ano 1, n. 7, maio-jun. 2008).

O uso das imagens dos quadrinhos que esse professor traz nos possibilita pensar até que ponto nossas redes de co-
nhecimentos e significações permitem trabalhar e melhor compreender a cultura afro-brasileira contada de uma forma di-
ferente do que nos foi ensinada em livros de história, considerados, na maioria das vezes, como documentos oficiais.

O oitavo e penúltimo editorial analisado tem como título Outros tempos, outras práticas pedagógicas, e foi orga-
nizado pelo grupo Instituições, Práticas Educativas e História – coordenado por Ana Chrystina Venancio Mignot. De
acordo com o texto, o grupo se dedica
aos estudos das relações entre escola, memória e cultura escrita, que privilegia cartas, autobiografias,
diários, diários de classe, cadernos escolares, boletins e cadernetas escolares, entre tantos outros
documentos produzidos na escola ou sobre a escola e que trazem as marcas da escolarização na vida de
cada um e de todos.

Monografias, dissertações e teses, concluídas e em andamento, têm procurado contribuir para a preservação
da memória da educação brasileira; proporcionar a reflexão sobre as práticas de escrita cotidiana; socializar
as pesquisas sobre práticas de escrita no cotidiano escolar; aprofundar as discussões sobre as práticas de
memória docente construídas na escola e que, por sua vez, também a constroem; e analisar intenções
educativas, práticas pedagógicas, usos do tempo e a cultura escolar na escrita de alunos (ano 1, n. 8, set.-
out. 2008).

Os autores dos artigos que compõem esse número do jornal direcionaram seus trabalhos à abordagem de de-
senhos, ilustrações e fotografias presentes em cadernos escolares, em livros produzidos por normalistas e em jornais
escolares. A discussão sobre esse material, segundo o editorial, permitiu pensar em outros tempos e em outras práticas sociais
e pedagógicas, convidando o leitor a remexer baús de memórias em busca dos sentidos pessoais e coletivos da docência, de ontem
e de hoje.
138

O último editorial por nós analisado foi publicado na edição n. 15 do jornal que, sob a responsabilidade do gru-
po Currículos, Redes Educativas e Imagens, foi organizada por Aristóteles Berino, recém-integrado ao grupo à época
da produção do jornal, que dedicou a edição de n. 15 ao cinema e suas diferentes abordagens. Berino abre o editorial
fazendo uma aproximação entre nós (leitores e escritores desse jornal) e os cineastas: O que nos aproxima dos cineastas é
que todos nós pensamos através das imagens.

Quem nunca falou em uma situação de perigo iminente ou quando finalmente encontrou e conseguiu estar
com o grande amor de sua vida a seguinte a frase: Passou um filme na minha cabeça? A afirmação que destacamos no
editorial e esse exemplo que acabamos de comentar nos instiga a pensar em como o cinema está presente em nossos
cotidianos e como ele nos permite relacionar e criar conhecimentos. Ainda no editorial, há a afirmação de que as ima-
gens fazem parte de nós mesmos e fazem parte do nosso corpo, assim, quando elas aparecem, não apenas as olhamos,
nós olhamos com elas.

A proposta dessa edição foi definida no editorial da seguinte forma:


Nos textos reunidos neste número do Jornal Educação & Imagem, visitando diferentes abordagens e
interesses, imagens e palavras são encontradas para enredar os nossos caminhos de educadores com o que
está sendo percorrido pelo próprio leitor. Depois de vistos, tal como ocorre no cinema, pertencerão menos
ao “diretor” para ser uma parte de muitos outros. As imagens se espalham e se perdem da miragem
original. Com o que foi dito com elas, novas significações aparecem. E não poderão, assim, ser mesmo
revistas, senão como imagens modificadas (ano 2, n. 15, ago.-set. 2009).

Algumas considerações sobre o jornal Educação & Imagem e a circulação de ideias


científicas na internet

Lendo e analisando editoriais e alguns artigos do jornal eletrônico Educação & Imagem constatamos que, para
esse veículo abordar questões que relacionam educação e imagem, exige uma compreensão das práticas educativas para
além do contexto de sala de aula. Em seu conjunto, os grupos que produziram as várias edições analisadas assumem
que o conhecimento é tecido em redes a partir de nossas práticas em vários contextos cotidianos.

A análise de trabalhos de autores variados, que criam conhecimentos e articulam valores durante os usos que
fazem das técnicas criando tecnologias, nos possibilitou observar que, com suas práticas e pesquisas, eles apontam para
139

a necessidade de, nos estudos em educação e comunicação, deslocar o foco dos contextos de produção para concentrá-
lo nos processos de recepção e nas operações de usuários. Com suas imagens e narrativas, esses professores/pesquisadores têm
demonstrado que, para além da ênfase na reprodução e transmissão, os conhecimentos são tecidos em meio às relações
que estabelecemos com produtos de vários tipos: programas de televisão, fotografias, sites da internet, livros, revistas de
histórias em quadrinhos, matérias de jornais e propostas curriculares, entre tantos outros.

O intuito do jornal eletrônico Educação & Imagem é romper a barreira simbólica que estabelece uma hierarquia
de conhecimentos desde a produção intelectual da escola fundamental até a universidade. Usando a internet, o jornal
aposta na possibilidade de alargar o modelo de comunicabilidade entre a academia e a educação básica, desenvolvendo
uma prática dialógica, recriando a proximidade e acompanhando as práticas curriculares nos espaçostempos envolvidos.

A despeito de tantas estratégias de segregação e de massificação empreendidas pelos meios de comunicação do


século XXI, a internet, ao permitir, mais livremente, a emissão de conteúdos por parte de todos aqueles que a ela têm
acesso e que assim desejarem, apresenta-se como uma alternativa para a criação, partilha e divulgação de conhecimen-
tos, potencializando a transformação de discursos unilaterais em hipertextos.

Nesse sentido, consideramos que o jornal eletrônico Educação & Imagem, valendo-se da internet, tem posto em
circulação o que vai sendo tecido em ciência no campo da educação, gerando contatos ágeis entre a universidade e
aqueles que se encontram nas diversas redes cotidianas e, em especial, os praticantes docentes das múltiplas redes edu-
cativas existentes (Alves, 2007).

Encerramos este texto com a ideia que inspirou o seu título e que, em nosso entender, traduz, de alguma
maneira, a atitude daqueles que divulgaram/divulgam os resultados de suas pesquisas por meio do jornal eletrônico
Educação & Imagem.
“Divulgo para melhor compreender o que faço”. Foi com essas palavras que Michel Crozon, físico do
campo das altas energias, respondeu à pergunta que lhe foi feita em uma conferência sobre o tema “Por
que divulgar?”, realizada em Paris, em 2001 (Vogt, 2006, p. 43).
140

Referências bibliográficas
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LEFEBVRE, Henri. Lógica formal − lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
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MÜLLER, Tânia.M. P. A fotografia como instrumento e objeto de pesquisa: imagens da imprensa e do Estado do cotidiano de crianças e adolescentes do
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www.lab­eduimagem.pro.br/jornal.
141

Imagens de mulheres negras em ‘álbuns coletivos’


Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas

A proposta de escrever sobre a participação de mulheres negras na produção do social a partir de imagens
publicadas em ‘álbuns coletivos’ está vinculada à ideia de que essas mulheres são agentes históricos e possuem uma his-
toricidade relativa às ações cotidianas. Fazer essa pesquisa significa, para mim, a possibilidade de colocar em discussão
o que é apresentado como universal, não apenas problematizando os vazios e as ausências na historiografia e na mídia
hegemônicas, mas, principalmente, apontando para os múltiplos pontos de vista que as constituem e, assim, para outras
leituras/escrituras possíveis.

O que estou chamando de “álbuns coletivos”, tendo como referência os álbuns de família – que através de uma
série de fotografias tecem histórias singulares – são livros impressos em série, organizados a partir dos mais variados
interesses e colocados no mercado editorial, mas que se caracterizam, sobretudo, por reunir uma grande quantidade de
imagens, a partir das quais contam, a sua maneira, histórias coletivas.���������������������������������������������������
Assim, o termo coletivo, na minha abordagem, não
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se refere à autoria, como nas exposições de obras de artes que reúnem vários artistas ou em alguns álbuns de fotografias,
especialmente na internet, que contam com a participação de vários fotógrafos para mostrar diversos ângulos ou situa-
ções sobre um tema proposto. Independente do número e da intenção dos autores e da diversidade de temas abordados,
coletivo é o manancial de propostas de identificação que oferecem. Esses álbuns apresentam inúmeras facetas da vida
cotidiana, possibilitando “usos” singulares – por filiação, tradução, combinação ou recusa – de complexos e paradoxais
signos identitários que as imagens oferecem para a tessitura de memórias, histórias e processos de subjetivação comuns
e, ao mesmo tempo, múltiplos.

Acredito, como Maluf (1995, p. 83), “que na memória individual estão inscritas as marcas da existência coletiva,
cada indivíduo imprime na reconstituição dos eventos de tempos pretéritos um significado a partir de seus enquadra-
mentos sociais”. Dessa forma, considero que a análise de representações de mulheres negras em ‘álbuns coletivos’ pode
142

contribuir para a compreensão de alguns dos modos pelos quais se tecem suas diversas histórias, se criam diferentes
significados para suas performances e se constituem seus múltiplos processos identitários.

Tomo as imagens contidas nesses ‘álbuns coletivos’ como “imagens de nós mesmos”, frase utilizada por Silva
(1998) como subtítulo no seu livro sobre álbum de família, no qual ele diz usá-la para “enfatizar que as fotografias de
nós mesmos são imagens que nos pertencem”. Sobre o uso que fez dos álbuns de família na pesquisa que desenvolveu
para compreender como são tecidas histórias a partir de fotografias e outros objetos, esse autor explica que
buscou reconstruir a narrativa coletiva do álbum com base em diferentes pontos de vista familiares: as
regiões culturais, as classes sociais, a “sexualização” da imagem, as gerações representadas, os períodos
históricos e os territórios afetivos. Ou seja, o álbum é contado de acordo com a comunidade cultural (...).
Gostaria de compreender este estudo, antes de mais nada, como contribuição conceitual e metodológica
na maneira de abordar o álbum de família de qualquer comunidade internacional em que ele seja fato
significativo em sua vida social, mas também sobre como as novas tecnologias afetam a vida familiar
e seu modo de ser representada, o que excede qualquer âmbito local de um estudo como este (1998, p.
18-19).

Trazendo essa contribuição conceitual e metodológica para a análise dos ‘álbuns coletivos’ que estou realizando,
tornou-se necessário, para mim, tomá-los também como “narrativas coletivas”. Acredito que os autores, independente
de suas intenções, têm como coautores, no processo de produção de seus livros, não apenas aqueles que produziram
textos, fotografias e outros tipos de imagens usadas/editadas, mas também aqueles que “pousaram” ou que protagoni-
zaram as cenas, tornando-se, nessas circunstâncias, coautores das imagens apresentadas. Como sugere Martins (2008),
essas pessoas se deixam ser apanhadas representando-se na e para a sociedade.

Voltando a Silva (1998) e ao seu trabalho, que tomo como referência na tessitura do meu caminho teórico-me-
todológico, trago para o contexto do estudo de ‘álbuns coletivos’ três considerações que ele fez a partir de sua pesquisa
com álbuns de família em algumas cidades da Colômbia e dos Estados Unidos. Primeiro, ele chama atenção para a
importância do papel da mulher na construção dos álbuns e nos cuidados de guardar e organizar as fotos. Considero
essa observação importante, pois, muitas vezes, esse material organizado e conservado por elas – que só guardam o que
julgam ser importante guardar – será publicado em ‘álbuns coletivos’. O segundo destaque ela dá aos outros objetos
que, para além das fotografias, são guardados nesses álbuns de família. Isso me desloca até a importância dos objetos,
143

no caso da minha pesquisa, que aparecem nas imagens dos ‘álbuns coletivos’, uma vez que esses artefatos nos dão pistas
dos espaçostempos vividos pelos autores/atores dessas imagens. Uma terceira consideração do autor, relevante para mi-
nha análise, é que os álbuns não só mostram ritos sociais, como casamentos e batizados, mas também os produz a sua
maneira.

Trago Silva mais uma vez para ajudar explicar porque resolvi trabalhar os álbuns como meu material empírico.
Ele diz em seu livro que
Essa vocação narrativa nos leva a encarar esse tesouro visual também como fato literário, pois há diferença
entre guardar e classificar fotos para reconhecer alguém quanto a um traço distintivo e fazê-lo para destacar
esse alguém como membro de um grupo, juntando as imagens para recriá-las aos olhos, com um relato
caprichoso, que se atualiza com o passar dos anos (1998, p. 23).

Os ‘álbuns coletivos’ e as histórias que eles querem contar

Nas minhas redes de conhecimentos e relações encontrei alguns livros, aos quais conferi a condição de ‘álbuns
coletivos’, e assim uso como material empírico.

O primeiro deles, “Mulheres Negras do Brasil” (Schumaher; Vital Brazil, 2007), é, segundo seus autores, um
mosaico incompleto que busca recontar a história das mulheres negras no Brasil, superando a invisibilidade forjada nos
silêncios da historiografia brasileira, na qual eles constataram a ausência de registros sobre a participação das afrodes- 1
A ideia de identidades é a mesma
cendentes na formação e no desenvolvimento do país. Os autores buscam demonstrar, com imagens e outras narrati- de Hall (1997, p. 27): Nossas
identidades são, em resumo,
vas, a força das mulheres negras, que durante certo período foram exploradas à exaustão, o que roubou delas parte da
formadas culturalmente (...).
liberdade e muitas vidas, mas não a memória e os traços das identidades.1 Essas mulheres lutaram, resistiram, semearam “Elas são o resultado de um
processo de identificação que
valores que floresceram e deram frutos, criando saberes e sabores e passando seus conhecimentos de geração em gera-
permite que nos posicionemos
ção. Segundo Schumaher e Vital Brazil (2007, p. 15), diferentes estudos relatam que, entre meados do século XVI e a no interior das definições que
os discursos culturais (exterio-
década de 1850, foram traficadas para o Brasil em torno de quatro milhões de pessoas escravizadas, entre elas congos,
res) fornecem ou que nos subje-
angolas, benguelas, caçanjes e outros. Elas vinham de diferentes lugares da África formando um grande caldeirão cul- tivemos (dentro deles)”.
tural. Schumaher e Vital Brazil dizem que
ao chegarem como cativas ao Brasil, as africanas recebiam nomes cristãos e, da noite para o dia, deveriam
virar Marias, Evas e, ironicamente, Felicidades. Os escravocratas e clérigos envolvidos no tráfico
144

provavelmente supunham que seria possível acontecer uma repentina metamorfose com o batismo, uma
espécie de passagem imediata da condição de mulheres africanas para a de escravizadas por vontade divina.
No entanto, a grande maioria de africanas resistiu e preservou seu nome de origem, assim expressando,
entre os seus, uma parte muito significativa de sua identidade étnica ou religiosa (2007, p. 22).

Os autores contam que diante da impossibilidade dessas mulheres formarem suas famílias consanguíneas, eles Uma criada. Cartão-postal. Fotografia
iam se agrupando a partir das origens étnicas e linguísticas, procurando seus semelhantes, formando o que os eles cha- de Rodolpho Lindemann, Bahia, c.
1890. Coleção particular de monsenhor
maram de uma grande família simbólica, criando um elo de solidariedade e reorganização em terras brasileiras. Jamil Nassif Abib.

No segundo álbum – “Mulheres e Movimentos” (Bonan; Ferreira, 2004) – as autoras articulam visões sobre os
movimentos femininos dos últimos tempos (1989 – 2002). No livro, a socióloga Cláudia Bonan comenta as fotografias,
ao todo 260, todas em preto e branco, feitas pela jornalista e fotógrafa Cláudia Ferreira que, desde 1989, capturou com
suas lentes diversas facetas cotidianas, oficiais ou não, da militância feminina através de suas múltiplas manifestações,
como encontros, seminários, protestos ou festas. Ferreira, na apresentação do livro, lança a pergunta: “quem são essas Caixinheiras. Cartão-postal. Fotografia
de Rodolpho Lindemann, Bahia, c.
mulheres que com seus rostos, sorrisos e utopias inspiraram este livro?” E responde: “Algumas eu conheço de vista, 1890. Coleção particular de monsenhor
Jamil Nassif Abib.
outras de nome; algumas nunca vi e outras encontro de vez em quando”.

Conforme os relatos, nos movimentos sociais aconteceram dois momentos marcantes. Num primeiro momen-
to surge um movimento das mulheres na sua totalidade, reivindicando direitos, espaços e igualdade de tratamento. Em
outro momento, surgem os movimentos negros, mas as mulheres negras não viam nesses dois movimentos a proble-
mática da ‘mulher negra’ ser discutida em sua especificidade.
Vendedora de frutas. Cartão-postal.
Fotografia de Rodolpho Lindemann,
Um terceiro álbum – “Século XX: a mulher conquista o Brasil” (Kaz, 2006) – conta a história de mulheres bra-
Bahia, 1890. Coleção particular de
sileiras no século XX, quer as anônimas, que de uma maneira discreta ajudaram a tecer e bordar os jeitos de ser e fazer monsenhor Jamil Nassif Abib.

do país, quer as visíveis, aquelas que se tornaram presença marcante, vencendo a opressão familiar e social. Nesse álbum,
a presença da mulher negra é muito discreta e recebe destaque em funções ditas de menor importância na sociedade.

O quarto álbum – “Da senzala à capela” (Tomaz, 2000) – aborda uma manifestação característica da cultura
afro-brasileira, a congada, que encontrou no sincretismo religioso um meio de resistir ao domínio e à imposição etno- Conferência Nacional contra o Racismo
e a Intolerância realizada no Rio de
cêntrica dos valores culturais e religiosos do homem branco. Nele, o autor faz um breve relato sobre o que é a congada, Janeiro, em julho de 2001. Foto de
Claudia Bonan.
145

apresentando fotografias dessa manifestação. Nelas, vislumbramos algumas mulheres negras que, entre uma maioria de
homens, se reconhecem, talvez, como praticantes com conhecimento de causa. A música e a dança brasileiras tiveram
grande contribuição dos tambores vindos da África. O samba, que domina nosso universo musical atualmente, abriu
espaço e mercado de trabalho para mulheres negras, que em sua maioria viviam e vivem em comunidades carentes, nos
quais surgiram as rodas de samba e excelentes sambistas. Mas, para além do samba, ritmo mais característico da região
sudeste do país, nas regiões norte e nordeste encontramos a congada, a roda de crioula, o jongo entre outros. Dança da Trança de Fitas. O bailado
sincronizado dos dançadores, que ocorre
Estudar a história das mulheres negras é também estudar sua religiosidade que se relaciona com as culturas em algumas cidades, faz com que o
mastro central fique coberto com as fitas
africanas trazidas ao Brasil pelos escravos. Observando o quinto álbum – “Orixás, deuses iorubás na África e no Novo coloridas e depois, a dança segue para o
lado contrário para desfazer a trança.
Mundo” (Verger, 2002) – vemos como seu autor, ao pesquisar a diáspora dos iorubás, ressalta a força arrebatadora dos
santos negros na cultura do povo baiano. Com esse álbum, pretendo analisar a liderança da mulher, mãe-de-santo,
nos cotidianos das pessoas que participam das comunidades dentro e fora dos seus terreiros. A religião propiciou às
mulheres um modelo de organização social, quando elas se juntam para formar as irmandades – associações religiosas
que primavam pela sua autonomia – demonstrando o poder político associativo dos negros que para cá vieram. Nelas
também é forte a presença da mulher negra no comando (Schumaher e Vital Brazil, 2007;Verger, 2008; Joaquim, 2001).
Ainda hoje, algumas irmandades permanecem como algumas das maiores formas expressivas de resistência, sendo que
uma delas é formada apenas por mulheres negras, conhecida por Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte, em Ca-
choeira, no estado da Bahia. Existe relato de outras irmandades, mas pelo que pude constatar na minha pesquisa, essa
é a que melhor representa esse modelo de organização. O surgimento dessa irmandade é explicado por Verger (2002,
Cerimônia no Brasil para Xangô, na
p. 28) da seguinte maneira Bahia. Foto de Pierre Verger.
A instituição de confrarias religiosas, sob a égide da Igreja Católica, separava as etnias africanas (...). Os
nagôs, cuja maioria pertencia à nação Kêto, formavam duas irmandades: uma de mulheres, a de Nossa de
Boa Morte; outra reservada aos homens, a de Nosso Senhor dos Martírios.

O autor define as mulheres da irmandade como energéticas e voluntariosas, originárias de Kêto, antigas escra-
vas libertas que se encontravam na igreja da Barroquinha e que teriam tomado a iniciativa de criar um dos primeiros
terreiros de candomblé. Esse tipo de organização, assim como os quilombos, é um modelo de organização social cos- Irmandade da igreja da Irmandade
da Boa Morte, Cachoeira, BA, 2002.
turado pelas mulheres. Fotografia de Julio Acevedo. Coleção
particular de Júlio Acevedo.
146

O sexto álbum encontrado – “A cor da escola – imagens da Primeira República” (Müller, 2008) – resulta de
um estudo de fotos do final do século XVIII e todo o século XIX, procurando demonstrar o esforço dos africanos e
seus descendentes no sentido de uma melhor formação de sua prole. Nele encontramos fotografias de várias turmas
com crianças negras, salientando a preocupação da comunidade negra com o desenvolvimento cultural de seus filhos.

Em relação ao acesso à educação por parte das crianças negras, que precisam transpor os obstáculos do precon-
ceito, acho importante destacar, com ajuda de Almeida, que para as meninas esse acesso era ainda mais difícil
Portanto, apesar de conceder-se às mulheres algumas parcelas do saber, tanto este como o poder não se
distribuíram equitativamente, nem sequer significaram a liberação das mulheres. Apenas a sociedade
humanizou-se ao consentir na sua instrução, embora atendendo aos interesses do segmento masculino.
(...) Logicamente, isso estava restrito às mulheres das classes privilegiadas. Para as mulheres do povo, a
ausência de instrução e o trabalho pela sobrevivência sempre foram uma dura realidade. O mesmo pode
ser dito a respeito da raça e, para as mulheres negras, o estigma da escravidão perdurou por muito tempo,
só lhes restando os trabalhos de nível inferior e a total ausência de instrução (1998, p. 26-39).

Logo, a mulher negra, estigmatizada pela escravidão, ficou fora do processo educacional. Sua inserção na escola
Professora da Escola José Pedro Varela,
ocorre tardiamente, mas a garra e a determinação dessas mulheres têm subvertido essa ordem. Romper com essa bar- (RJ), em sala de aula. Foto de Augusto
Malta. Reprodução Jaime Acioli.
reira foi um processo de muita luta e resistência, já que muitas esbarravam com essa lógica dentro da própria família Acervo Museu da Imagem e do Som do
que acredita não ser para elas aquele espaço, o escolar. Mas, o que antes era chamado de branqueamento das escolas está Rio de Janeiro (8/10/1923).

mudando graças aos movimentos organizados por essas mulheres negras e suas conquistas no espaço político.

Por último, e por enquanto, tenho um sétimo álbum – “Escravos Brasileiros do século XIX na fotografia de
Chistiano Jr.” (Azevedo; Lissovsky, 1988) – no qual encontro fotografias de escravos no século XIX, bem como autores
dedicados a estudar a questão dos negros no Brasil. A diferença desse álbum para os outros, em que pesam os espaçostem-
pos diferentes em que foram produzidos, é que os negros retratados não estão em seus contextos cotidianos habituais,
mas em um estúdio fotográfico. O autor das fotografias, como era costume naqueles tempos, se preocupou em montar
em estúdio a atmosfera desses cotidianos, mas em um cenário montado. O álbum em questão, além das fotos, traz qua- Foto produzida por Christiano Jr,
vendida como cartão-postal, reproduzida
tro textos de pessoas que fizeram uma leitura desse arquivo imagético. do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional.
Com o propósito de analisar as imagens publicadas nos ‘álbuns coletivos’, venho tecendo questões teórico-me-
todológicas e também epistemológicas referentes ao uso de imagens nas pesquisas sociais.
147

“Usos” de imagens em pesquisas

Para ressaltar a importância do trabalho a ser feito, peço licença a Ciavatta para fazer de suas palavras as minhas,
quando ela explica porque trabalhar com imagens em pesquisa social. Ela diz
primeiro, que muitos caminhos da produção do conhecimento ainda estão sendo feitos e não têm uma
resposta única, simples. Segundo, há insuficiência de pesquisa sobre o uso do instrumento, o desafio
inquietante da imagem que, como fonte de conhecimento, não se revela senão por um détour, apenas
indo além do visual, do aparente, e adentrando no que está oculto na sua produção.

Terceiro, seu uso intenso na cultura de nosso tempo, sua diversidade de usos e de técnicas, apresenta-se
como um painel onde temas e formas se multiplicam, criando novas formas de expressão na arte, na
ciência, no cotidiano – a era da reprodutibilidade técnica, da massificação do acesso, da reversão dos
conceitos tradicionais de criatividade e genialidade (2004, p. 9-10).

Diversidade essa que me permite pesquisar sobre a representação/apresentação das mulheres negras, pois, du-
rante algum tempo, nada ou quase nada era publicado para contar suas histórias, tudo ficava por conta da oralidade que
durante muitos anos não tinha a credibilidade do documento impresso. Com o surgimento desses ‘álbuns coletivos’ e a
disposição de criar outras possibilidades de diálogo para uma melhor leitura e compreensão dos fatos, busco, com essa
pesquisa com imagens, compreender algumas das múltiplas relações que impulsionam a fabricação de seus processos
identitários. Ciavatta nos diz que a fotografia é um
testemunho visual das aparências, como informação e como fonte de recordação e emoção, a imagem
fotográfica associa-se à memória e introduz uma nova dimensão no conhecimento histórico, tradicionalmente
obtido por meio da linguagem oral e, principalmente, da linguagem escrita (2004, p. 41).

Como posso pensar em contar um pouco da história das mulheres negras a partir de um álbum coletivo?
Muitas dessas mulheres nunca se viram ou viveu em uma mesma época. Mas as vejo como uma família, não qual-
quer família, mas aquela formada em uma rede social complexa, constituída por limites e deslocamentos geográficos,
cruzamentos de mares, trocas culturais, ‘clareamento’ ou ‘escurecimento’ de peles, mas formando famílias, ou melhor,
formando as famílias brasileiras, nas quais a riqueza reside na diversidade. As experiências culturais dessas mulheres,
vindas de diferentes regiões do continente africano, ajudam a formar uma ‘colcha de retalhos’ de signos de identidade,
formas de subjetividade e características físicas. Acredito que a partir desses tipos de álbum é possível tecer memórias
148

familiares de grupos sociais, por meio das múltiplas representações das práticas vividas em determinados contextos, para
além da visão dos autores das fotografias.

O que busco perceber quando olho as imagens? A principio as vejo como imagens de mulheres negras, mas com
um olhar cuidadoso é possível identificar sinais que as diferenciam, tais como: a maneira de vestir, o tipo do penteado, os
artefatos usados, dando pistas de sua condição social e religiosa.
O retrato da colcha de identidades e
Penso também que esses ‘álbuns coletivos’ possibilitam as mulheres negras que não puderam durante sua vida subjetividades.

fotografar suas histórias, e/ou que não dispõem de fotos de suas próprias famílias, possam colecionar e guardar imagens
que personificam ou ressignificam lembranças adormecidas, situações imaginadas ou até mesmo por elas suscitadas.

Assumo que a partir de uma fotografia podemos fazer uma infinidade de ‘leituras’. Contudo, acredito que, para
além das experiências de vida dos usuários/leitores, é também a ambiguidade no contexto da produção da representa-
ção que faz com que jamais seja possível uma leitura única, mesmo que seja essa a intenção do autor. Um exemplo disso
é a multiplicidade de elementos que podem ser percebidos/intuídos nos espaçostemposdas das imagens. Leite fala que
o espaço fotográfico e geográfico capaz de nos revelar comportamentos, representações e ideologias pode
ser visto através das características da imagem: tamanho, formato, suporte, enquadramento, nitidez,
planos, horizontalidade e verticalidade, assim como são explícitos e diretamente acessíveis dados como
indumentária, objetos, desenvolvimento urbano, expressões de tecnologia. É possível extrair daí uma
hierarquia das figuras e atributos (1993, p. 19).
2
A partir desse ponto do texto trago
o termo retrato para dar conta
Fazer, olhar e usar imagens para representar ou apresentar pessoas e situações é uma prática antiga. Bamonte da diferença de uma imagem re-
(2008, p. 286-288) conta, a partir da perspectiva da História da Arte, que o retrato2 na antiguidade era utilizado para produzida sem o uso da máqui-
na que surge na segunda metade
estabelecer o vínculo do poder político com o divino e que, a partir da Idade Média, era usado como um suporte do século XIX.
da proliferação da imagem religiosa. A autora segue dizendo que, nos períodos subsequentes, o retrato serviu como
objeto de projeção social e propagação da imagem. Surgem os artistas com seus ateliês, homens brancos e europeus
relacionados às classes mais favorecidas na produção dos retratos, mas, ao mesmo tempo. acontecem as descobertas das
novas terras e o Velho Mundo, acostumado a delinear a cultura representada por ele, curva-se às diferenças encontradas
nesses ‘Novos Mundos’ por eles colonizados. Ela continua dizendo que somente no século XVII, sob a influência da
Reforma, começam a surgir os retratos de mulheres pois, até então, só homens brancos e de alguma influência eram
149

retratados. Surgem então retratos de nobres esposas de aristocratas, personalidades santificadas ou divindades pagãs, mas
sempre mulheres brancas. Bamonte acrescenta que
3
Eugène Delacroix, pintor francês,
no século XIX, o Realismo e o Romantismo passam a explorar o tom sublime e o documentário das
nasceu em Charenton-Saint-
minorias. Assim, os temas exóticos de povos distantes, como nas obras de Delacroix,3 tomam lugar nas Maurice, em 26 de abril de
pinturas, bem como os trabalhadores e pessoas comuns, como se pode evidenciar na obra de Millet.4 (...) 1798, e faleceu em Paris, no dia
Com o advento da fotografia como linguagem artística acentua-se o reconhecimento de ‘novos mundos’ 13 de agosto de 1863. Deixou
claro seu gosto pelo exótico e
e o interesse pelas minorias enquanto “seres exóticos”. Negros, índios e mulheres são retratados como
povos distantes, ele pintava os
objetos da curiosidade europeia, dos observadores atentos e ávidos pelas riquezas e excentricidades cotidianos das guerras e con-
presentes em terras distantes (2008, p. 288). quistas pelos franceses de regi-
ões africanas. http://educacao.
uol.com.br/biografias/Eugene-
A escolha da pesquisa com imagens inscreve-se também na convicção de que as respostas para algumas questões Delacroix.jhtm.
precisam ir além do documento escrito. Segundo Borges (2005, p. 76-77), os pesquisadores devem buscar diálogos em
diferentes redes de conhecimentos. Essa autora afirma que o documento histórico não é mais concebido como um
dado puro e não sujeito a diferentes tipos de análise. Ainda segundo Borges, as pesquisas sociais não devem basear-se
4
Jean-François Millet (4 de
Outubro, 1814 – 20 de Janeiro,
apenas na investigação das práticas de seres humanos inseridos nos grupos do poder civil, religioso e militar. A pesquisa 1875), pintor romântico
que realizo, inserida na tendência que vem sendo conhecida como pesquisas nos/dos/com os cotidianos, incorpora e e um dos fundadores da
Escola de Barbizon na
valoriza testemunhos anônimos, por meio de fontes escritas, orais e visuais. Com Leite (1993, p. 18) partilho a compre- França rural. É conhecido
ensão de que “a memória da imagem não só difere da memória da palavra como chega, em alguns casos, a substituir a como precursor do realismo
pelas suas representações de
própria memória”. Nas fotografias encontro o não dito em outros documentos. trabalhadores rurais. Foi um
dos principais representantes
Para Kossoy, a fotografia constitui um tipo de documento singular e complexo, uma vez que “uma única do realismo europeu surgido
em meados do século XIX.
imagem contém em si um inventário de informações acerca de um determinado momento passado; ela sintetiza no Sua obra foi uma resposta à
documento um fragmento do real visível, destacando-o do contínuo da vida” (2001, p. 02). estética romântica, de gostos
um tanto orientais e exóticos,
Mesmo quando falamos de uma fotografia produzida, na qual o fotógrafo busca através de cenários e usos de arte- e deu forma à realidade
circundante, sobretudo a das
fatos, ‘enfeitar a cena’ e dar à fotografia um caráter ‘real’, ela nos indica as situações vividas naquele tempo, nos permitindo classes trabalhadoras (in: http://
interpretações, pois é preciso lembrar que as imagens não dizem tudo. Sei que as pesquisas precisam ir mais longe. Admito, pt.wikipedia.org/wiki/Jean-
Fran%C3%A7ois_Millet).
pois, como Kossoy que
as imagens fotográficas, entretanto, não esgotam em si mesmas, pelo contrário, elas são apenas o ponto
de partida, a pista para tentarmos desvendar o passado. Elas nos mostram um fragmento selecionado da
aparência das coisas, das pessoas, dos fatos, tal como foram (estética/ ideologicamente) congelados num
150

dado momento de sua existência/ocorrência (2002, p. 21).

Por ser a fotografia uma linguagem, uma forma de expressão, não pode ser vista ou lida como se tivesse um sen-
tido único, uma ‘verdade’ exposta. Cada imagem registra um assunto singular, um particular instante do tempo, e este
se dá unicamente em função de um desejo, uma intenção ou uma necessidade do fotógrafo. Ele vê e narra o que viu
ou quis ver e pensa no seu potencial comercial Esse entendimento situa a fotografia na posição de objeto polissêmico,
sujeito, portanto, a diferentes usos.

As análises que pretendo fazer das fotografias e outras imagens publicadas em ‘álbuns coletivos’ buscam com-
preender como essas tantas questões sobre gênero, raça e crença se encontram apresentadas/representadas neles, possi-
bilitando, através de táticas e usos, articulados a outras redes, a tessitura de conhecimentos e significações. Como pesqui-
sadora nos/dos/com os cotidianos, compartilho com Alves que
admitir que os fatos a serem analisados e as questões a serem respondidas são complexos, neste mundo
simples que é o cotidiano, vai colocar a necessidade de inverter todo o processo aprendido: ao invés de
dividir, para analisar, será preciso multiplicar – as teorias, os conceitos, os fatos, as fontes, os métodos,
etc. Mais que isso, será necessário entre eles estabelecer redes de múltiplas e também complexas relações
(2001, p. 25).

Essas redes múltiplas de conhecimentos vão me permitindo pesquisar o ainda não dito nos livros oficiais e
utilizar caminhos e métodos pouco utilizados.

Permito-me não encerrar este texto com minhas palavras. Faço-o, então, com as palavras de Sueli Carneiro,
cofundadora do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, impressas na apresentação do primeiro álbum que adquiri
e que tentam expressar o sentimento de mulheres negras ao depararem-se com as imagens nele publicadas
em sendo mulher negra, percorrer as páginas deste livro é ter a alma devastada e dilacerada pela dor,
pela memória de infindáveis humilhações, suplícios e punições por carregar simultaneamente uma cor
de pele e um sexo considerados a marca do pecado original, raiz de todos os males e dores dos homens.
Somos testemunhas, sobreviventes dessa história em que uma raça e um sexo condenados compõem
uma unidade que aprisiona o corpo feminino negro deslocando-o para o domínio do não-ser. Antítese do
ser hegemônico, os homens brancos; antítese do ideal feminino, as mulheres brancas (Shumaher; Vital
Brazil, 2007, p. 7).
151

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VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás deuses iorubás na África e no Novo Mundo. 6. ed. Salvador, 2002.

Índice de imagens
Imagem 1. CONDURU, Roberto. Arte Afro-Brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007, p.50
Imagem 2. SCHUMAHER, Scuma; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007, p. 77
Imagem 3. SCHUMAHER, Scuma; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007, p. 77
Imagem 4. SCHUMAHER, Scuma; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007, p. 77
Imagem 5. BONAN, Claudia; FERREIRA, Claudia. Mulheres e movimentos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004, p.163.
Imagem 6. TOMAZ, Laycer. Da Senzala à Capela. Brasília: Editora da UnB, 2000, 82.
Imagem 7. VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás deuses iorubas na África e no Novo Mundo. 6. ed. Salvador, 2002, 75.
Imagem 8. SCHUMAHER, Scuma; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007, p. 164
Imagem 9. MÜLLER, Maria Lucia Rodrigues. A cor da escola: imagens da Primeira República. Cuiabá/MT: Entrelinhas/EdUFMT, 2008, p. 46.
Imagem 10. AZEVEDO, Paulo Cesar; LISSOVSKY, Maurício (Orgs.). Escravos Brasileiros – do século XIX na fotografia de Chistiano Jr. São Paulo: Ex
Libris, 1988, p. 9.
152

Caricaturas e quadrinhos de Angelo Agostini:


imagens de afro-brasileiros no século XIX
André Brown

São vários os lugares sintomáticos da discriminação, em geral disfarçados, mas às vezes bastante
explícitos.
Sodré, 1999, p. 234

1
Uso esse modo de escrever, como
explica Alves (2006), unindo e
Parte da memória brasileira do final do século XIX foi registrada de forma singular por meio das histórias em invertendo termos que estamos
acostumados por nossa for-
quadrinhos de Angelo Agostini. Às paisagens, desenhadas por Agostini, somam-se narrativas textovisuais1 que permitem mação a vermos separados ou
aprender sobre o cotidiano, hábitos, costumes, políticas, culturas e ideologias que circulavam no Brasil oitocentista, unidos com conjunções (e/ou)
e sempre escritos na mesma
como escreveu Lima (1963) ordem, busca indicar os limites
(...) o lápis de Agostini começava também a fixar o caráter pitoresco da vida brasileira, com especialidade da forma moderna de pensar a
os tipos das ruas do Rio, numa sequência que seria bem digna dos nossos visitantes do começo do século criação do conhecimento para
passado,2 um Debret ou Rugendas, não a tivesse interrompido o predomínio da charge política (p. 784). os usos dos tantos cotidianos
vividos (p. 26).

Angelo Agostini, artista italiano que seria naturalizado brasileiro somente após a abolição da escravidão, em 1888, 2
Lima (1963) refere-se ao início do
nasceu em Vercelli, no Piemonte, em 1843. Chegou ao Brasil em 1859 após ter passado a infância e a adolescência em século XIX.
Paris, onde estudou artes plásticas. Em São Paulo, começou a publicar profissionalmente seus desenhos na revista Diabo
Coxo, em 1864. Em 1866, colaborou com a revista O Cabrião. Segundo Moya (1986)
em 1867 fez suas primeiras histórias ilustradas, como As Cobranças. No mesmo ano de 1867 mudou
para o Rio de Janeiro, então capital do Império. No ano seguinte, começou a ilustrar as revistas locais
Vida Fluminense e O Mosquito. No dia 1 de janeiro de 1876 fundou sua Revista Illustrada, que dirigiu
até 1888 (p. 20).
153

Durante a organização do acervo de revistas em quadrinhos da Gibiteca Armando Sgarbi, que está sendo estru-
3
O acervo da Gibiteca Armando
turada na Faculdade de Educação da Uerj,3 encontrei dois volumes encadernados da Revista Illustrada que me permi-
Sgarbi está sendo organizado
tem conhecer melhor parte da obra de Agostini, que é considerado por alguns autores como o pioneiro mundial das pelo grupo de pesquisa Lingua-
gens Desenhadas e Educação
histórias em quadrinhos. Na Revista Illustrada, o artista usou a linguagem dos quadrinhos, como também a charge e
(ProPEd/Uerj) com financia-
a caricatura, para divulgar suas ideias abolicionistas de forma contundente contra os escravistas. O desenhista faleceu mento da Faperj.
em 1910. Exatamente um século depois da morte de Angelo Agostini, este trabalho aponta para algumas imagens e tex-
tos dos quadrinhos construídos pelo autor, como possíveis leituras que trazem um pouco da memória da população
afro-brasileira.

Considerando que as histórias em quadrinhos são compostas por imagens e textos em sequência, tenho busca-
do compreender as relações discursivas no entrelaçamento das linguagens desenhadas e escritas, como quando Sgarbi
(2007) diz que uma imagem vale uma imagem. Mil palavras valem mil palavras. O que me importa, tanto das imagens quanto das
palavras, são os significados possíveis de suas articulações no discurso (p. 1).

Dessa maneira, autores que trabalham com imagens disponibilizam conhecimentos importantes em suas obras,
úteis para o embasamento teórico da pesquisa na qual estou trabalhando História em quadrinhos e educação: preservação de 4
Pesquisa coordenada pelo prof. Dr.
uma memória, memória de uma preservação.4 Outro autor da pesquisa que me ajuda a pensar os usos de imagens é Manguel Paulo Sgarbi (ProPEd/Uerj).

(2001) que entende as imagens suscitando narrativas quando diz que uma imagem dá origem a uma história, que, por sua
vez, dá origem a uma imagem (p. 24).

Para caminhar com a pesquisa, trabalho com o aporte teórico do paradigma indiciário (Ginzburg, 1989) para
realizar a investigação de ideologias expressas em quadrinhos e caricaturas que pudessem trazer pistas sobre as possibi-
lidades de usos dessas linguagens, como tecnologias educacionais voltadas para a difusão das culturas afrodescendentes,
dentro e fora de salas de aula. Encontrei indícios de preconceito contra afrodescendentes em algumas histórias em
quadrinhos e sinais de poucas criações em quadrinhos favoráveis ou sobre as culturas afro-brasileiras. As imagens de
Agostini são raros registros do cotidiano dos afro-brasileiros no século XIX.

Com o Império pressionado pela questão da abolição e o enfraquecimento da monarquia a partir da lei do ven-
tre livre, em 1871, que desagradara os senhores rurais, o aparente desinteresse de D. Pedro II pelos negócios do Estado,
expressando certo descuido com sua imagem pública, configurou-se o terreno fértil para os caricaturistas na imprensa
154

da época, entre os quais se destacava Angelo Agostini e sua popular Revista Illustrada, como diz Shwarcz (1998)
Contam-se mais de vinte revistas do gênero, sendo a mais famosa a Revista Illustrada de propriedade
de Ângelo Agostini e fundada em 1876. No final do Império essa revista era tão popular que vivia
exclusivamente de assinaturas, ao mesmo tempo que se convertia em leitura obrigatória, ao menos nos
círculos letrados da corte carioca (p. 416).

Considerando um fragmento de crônica de Joaquim Nabuco, abolicionista contemporâneo de Agostini, a leitura


da Revista Illustrada parece não ter sido restrita aos círculos letrados citados por Shwarcz (1998); segundo Nabuco, a revista
circulava de forma mais ampla no Rio de Janeiro, atraindo, inclusive, a atenção de populares supostamente analfabetos,
provavelmente pelos usos realizados por Agostini da arte sequencial (Eisner, 1989), permitindo o entendimento das narra-
tivas através das imagens. Balaban (2009) traz, em sua obra, parte da crônica escrita por Joaquim Nabuco homenageando
Angelo Agostini após as festividades do dia 13 de maio de 1888, na ocasião da abolição da escravatura, revelando a pista
(Ginzburg, 1989) para entender a circulação da Revista Illustrada no Rio de Janeiro do final de século XIX
Quem durante vinte anos como ele, deu ao país toda a sua dedicação, pertence-lhe de fato. O que se dá
nos prende ainda mais do que o que se recebe. O seu lápis teve durante vinte anos a indefectível coragem
de dizer a verdade aos inimigos do progresso nacional em linguagem que todos entendiam. A sua Revista
foi a Bíblia abolicionista do povo, o qual não sabe ler (p. 86).

Mesmo tendo feito de sua arte quadrinizada um instrumento de luta na campanha abolicionista, indícios (Gin-
zburg, 1989) da ideologia racista estão presentes na obra em questão, talvez pretendendo o artista fazer uma ironia
a respeito das possíveis intenções do movimento abolicionista. Numa sequência de imagens de Agostini (1884), que
AGOSTINI, Angelo. Revista Ilustrada.
mostra um grupo de afro-brasileiros, as legendas dizem anno 9, nº 377. Rio de Janeiro, 1884
As igrejas foram muito concorridas. A maioria dos devotos trazia luto desde os pés até as pontas do (p.5).
cabellos. Era o luto levado à altura de um cumulo.

As ruas estavam negras desses religiosos sombrios e luctuosos grupos. Perecia estar-se em plena zululandia
(p. 5).

Não sahimos à rua, tanta escuridão assustava-nos. Somos muito abolicionistas, mas não nos extasiamos
diante as bellesas da raça africana, cuja plástica deixa muito a desejar. Vê-se cada venta!... Não podemos
ver, sem calafrios, o angélico rosto de uma loura donzella ao lado do de uma mucama beiçuda e de ventas AGOSTINI, Angelo. Revista Ilustrada.
anno 9, nº 377. Rio de Janeiro, 1884
achatadas. Não! A nossa vontade é logo dizer: saia dahí para fora! E... e offerecer os nossos serviços... (p. 4). (p.4).
155

Outras hipóteses podem ser formuladas a partir das pistas (Ginzburg, 1989) existentes nas histórias em quadri-
nhos criadas por Agostini: talvez o artista acreditasse em alguma inferioridade estética da fenotipia negra em relação a
cânones europeus, desenhando estereótipos racistas. Seja qual for a resposta para essa questão, se o artista era precon-
ceituoso ou apenas não via que não via o racismo como em uma disfunção de segunda ordem5 (Foerster, 1996), sua obra 5
Disfunção de segunda ordem é
explicada por Foerster (1996),
demonstra o racismo corrente no Rio de Janeiro do final do século XIX, mesmo entre os abolicionistas, constituindo baseando-se na obra de Bateson
importante registro histórico. Os quadrinhos de Agostini ajudam a entender que o movimento abolicionista não es- (1972), como não ver que não
vemos, fazendo analogia com o
tava interessado na abolição da escravatura apenas por questões humanitárias, mas também por pretender importar o fenômeno fisiológico conhecido
modelo capitalista industrial no qual a força de trabalho seria gerada por operários assalariados, formando uma nova como ponto cego, que ocorre
quando em determinado ângu-
sociedade de consumo. lo, torna-se impossível enxergar
imagens em uma parte do cam-
Quanto à estética da caricatura, ela não é sempre usada por Agostini nos desenhos de afro-brasileiros, mas so- po visual.
mente quando pretende dar comicidade a alguma narrativa, lançando mão do exagero dos traços fenotípicos ou da
desproporção do tamanho aumentado das cabeças em relação aos corpos dos caricaturados. Em algumas imagens o
desenho é bastante próximo de cânones clássicos, respeitando a anatomia sem distorcer qualquer parte do corpo de-
senhado. Parece muito importante pesquisar os usos dos quadrinhos, caricaturas e de suas ideologias, objetivando tam-
bém a criação de personagens que tratem das culturas afrodescendentes, respeitando suas características e tradições, para
que os leitores tenham o conhecimento dessas culturas de outras formas diferentes de algumas narrativas impregnadas
de preconceitos. A mídia influencia diretamente nesta visão distorcida a respeito dos afrodescendentes e suas culturas,
como diz Sodré (1999)
A mídia funciona no nível macro como um gênero discursivo capaz de catalisar expressões políticas e
institucionais sobre as relações inter-raciais, em geral estruturadas por uma tradição intelectual elitista
que, de uma maneira ou de outra, legitima a desigualdade racial pela cor da pele. A palavra “elitista” não
é aqui casual. Sabe-se efetivamente que da influência interativa entre elites de diferentes ordens – grupos
de alta renda, ministérios, organizações de trabalho, intelectuais e meios de comunicação de massa –
resultam os padrões cognitivos e políticos que orientam os componentes da ação social e do julgamento
ético presentes no comportamento racista (p. 243).

Aproximadamente no mesmo período, a imprensa norte-americana difundiu, através de fotos e caricaturas, os


minstrels e o estereótipo Jim Crow, que representavam os afrodescendentes como pessoas inferiores mentalmente, alie-
156

nadas, somente interessadas em música e dança. O nome Jim Crow foi empregado para designar as leis segregacionistas
norte-americanas, como explica Shuker (1987):
Essas restrições legais aos direitos dos negros eram conhecidas como leis Jim Crow. Jim Crow, um
6
Processo de impressão no qual a
personagem fictício, era uma criação de comediantes sulistas que cantavam e dançavam com a cara pintada
imagem é executada com um
de preto e com um exagerado sotaque do Sul. Na época que essa leis foram aprovadas, no final do século lápis ou tinta gordurosa sobre
XIX, um dos divertimentos preferidos no país era o espetáculo de variedades. Conjuntos ambulantes de uma pedra calcária (pedra lito-
cantores e dançarinos com banjos e tamborins, conhecidos como minstrels, se apresentavam pintados gráfica perfeitamente desengor-
durada, uma solução ácida fixa
de preto e caracterizavam os negros como pessoas desajeitadas, simplórias e imbecis, inferiores aos
a gordura à pedra). Atualmente
brancos. A música, embora geralmente composta por negros, era executada por brancos que usavam se usa também, como matrizes,
rolhas queimadas para pintar o rosto de preto. E quando havia negros no conjunto, estes também tinham chapas de metal, embora a lito-
que escurecer o rosto pelo mesmo processo (p. 15-16). grafia artística clássica seja toda
ela sobre pedra. O principio da
repulsão entre a gordura à tinta,
Nas gravuras de Angelo Agostini, mesmo ocorrendo a caricatura, não identifico seus personagens como estereó- e vice-versa, é que garante a im-
tipos semelhantes ao Jim Crow, um personagem criado especificamente para humilhar os afrodescendentes. Além disso, pressão. A impressão é feita em
prensa litográfica molhando-se
o desenhista lançou mão da caricatura principalmente para criticar e ridicularizar o imperador D. Pedro II, políticos do a pedra a ser entintada. A parte
Império e os barões do café, quando estes são protagonistas de suas narrativas desenhadas. sem gordura absorve a água, fi-
cando úmida, a engordurada re-
pele-a. Ao se passar à tinta, onde
Agostini usou desenhos mais realistas, retratos muito bem executados sob a técnica litográfica,6 para criar alguma há desenho, a pedra se mantém
dramaticidade ou construir imagens heroicizadas, homenageando algumas figuras históricas. O retrato do abolicionista engordurada e a tinta é reti-
da. Na parte sem desenho, que
José Ferreira de Menezes, advogado, jornalista, dono do jornal Gazeta da Tarde, é um registro imagético que é resultado está úmida, a tinta é recusada.
dessa prática artística. (Disponível em: <http://www.
gravuragaleria.com.br/gravura.
A produção de retratos desenhados foi o trabalho que sustentou Angelo Agostini por alguns anos. Segundo Ba- html> acesso em 29/04/2010).

laban (2009)
a carreira profissional iniciou-se na capital da província de São Paulo, na época ainda um lugar modesto,
com cerca de 20 mil almas, importante por abrigar a Escola de Direito do Largo de São Francisco. Após
alguns anos trabalhando como pintor retratista em oficinas fotográficas – fazia retratos a óleo e retocava
fotografias – iniciou em 1864 a trajetória na imprensa ilustrada (p. 28).

Sendo, portanto, profundo conhecedor da técnica do retrato, não somente desenhados, mas também a partir de AGOSTINI, Angelo. Revista Ilustrada.
anno 6, nº 251. Rio de Janeiro, 1881
fotografias, Agostini soube usar essas linguagens com objetivos políticos e ideológicos na Revista Illustrada. O retrato de (p.8).
157

José Ferreira de Menezes demonstra grande sensibilidade e perícia na sua execução, principalmente por ser resultado de
uma litografia, complexa técnica de gravura em pedra.

Outras gravuras criadas por Agostini mostram, com ironia, as práticas dos escravistas para burlarem a lei dos
sexagenários que determinava a libertação dos raríssimos escravos que conseguiam completar a idade de sessenta
anos, após toda a vida de trabalhos forçados e maus tratos. Era comum o escravo morrer muito antes disso. Durante a
montagem da exposição Fazendas do Café da Província Fluminense, que ocorreu em 27 de setembro de 1995 no Museu
do Ingá, em Niterói, pude ler diários e livros de contabilidade de fazendas de café do estado do Rio de Janeiro. A ex-
posição foi organizada pelo professor de história Euclides Pereira Duque, na ocasião, também diretor do museu. Fiquei
atento às anotações dos fazendeiros contabilizando a perda de escravos ainda jovens, alguns com dezoito anos de idade.
Morriam prematuramente principalmente aqueles escravos que lidavam com o trabalho mais pesado e insalubre da
fazenda, ou em consequência de castigos.

A história em quadrinhos de Agostini que aborda a lei dos sexagenários denuncia, com a sua sequência de ima-
gens e textos, a falta de preparo da sociedade para lidar com as libertações de escravos idosos que não teriam para onde
ir, continuando excluídos, sem trabalho remunerado e sem nenhum amparo por parte dos fazendeiros ou do Estado:
Já os velhos escravos podem morrer livres! Mas é livre de tratamentos e no meio da estrada. Todo escravo
maior de 60 annos será livre, disse o actual governo. É algo tanto deshumano, mas sempre é um passo a
favor da abolição.

É possível também que o governo mande construir grandes asylos para os pretos velhos de 4 ou 5 léguas
quadradas. Quem sabe se os engenheiros não estarão já fazendo as plantas?

Porém muito confiamos na philantropia dos lavradores que com certeza, não enxotarão os velhos pretos
apesar de livres. Há sempre serviços para elles.

A nova lei também se presta a ser illudida.

– Uê! Meu sinhô! É é!

– Deixe rapaz; estou-te fazendo mais moço. Quantos brancos não quereriam que lhe fizessem o mesmo
AGOSTINI, Angelo. Revista Ilustrada.
(Agostini, Revista Illustrada. anno 9, n. 383. Rio de Janeiro, 1884. p. 8). anno 9, nº 383. Rio de Janeiro, 1884
(p.8).
158

Hoje, estou atento aos usos dados por consumidores/praticantes (Certeau, 1994) para as imagens e textos dos quadri-
nhos, caricaturas e charges. A fabricação (ib.) das imagens dos quadrinhos, sobre as culturas afrodescendentes, realizada em ofi-
cinas, faz parte da investigação que fiz, tentando perceber até que ponto essa produção pode ser transformadora da extrema
situação de desigualdade social e exclusão, ocasionada também pelo racismo no Brasil, pois, segundo Santos (1999)
no caso do racismo, o princípio de exclusão assentada na hierarquia das raças e a integração desigual
ocorre, primeiro, através da exploração colonial, e depois através da imigração. (...)

As práticas sociais, as ideologias e as atitudes combinam a desigualdade e a exclusão, a pertença


subordinada e a rejeição e o interdito. Um sistema de desigualdade pode estar no limite, acoplado a um
sistema de exclusão (p. 3-4).

Provavelmente, a leitura de revistas em quadrinhos, dentro ou fora da escola, seria um caminho para os estu-
dantes conhecerem muito das culturas afrodescendentes. Porém, devido à pouca difusão desses quadrinhos pela mídia
e distribuição insuficiente, esse material gráfico raramente chega às mãos dos estudantes. Uma alternativa que propo-
nho é a produção de histórias em quadrinhos, por alunos de oficinas, em escolas. Acredito que essas oficinas possam
despertar o interesse dos alunos para as culturas afrodescendentes quando as histórias a serem produzidas tenham como
proposta temática assuntos relacionados a essas culturas.

Essa questão é abordada por Oliveira (2001) quando indica que


aprendemos na vida cotidiana, através de mecanismos que não sabemos descrever ou explicar, mas que
formam o que sabemos e o que pensamos sobre os mais diversos temas, contribuindo, portanto, para as
nossas ações e sobre as relações com o mundo a nossa volta. Inúmeros são os exemplos de situações que
evidenciam a presença desses tipos de aprendizagem em nossas vidas e da indissociabilidade entre os
saberes tecidos na vida cotidiana – através dessas aprendizagens do que não nos é explicitamente ensinado
– e os chamados saberes formais, ensinados nas escolas (p. 33).

Esse trabalho em escolas pode, em algum momento, contribuir para um processo de mudanças, gerando tanto
o desenvolvimento de artistas iniciantes quanto o aprimoramento das técnicas artísticas e, ainda, contribuindo na for-
mação de seu pensamento crítico sobre questões relativas à desigualdade social.

Percebo que nem todos os professores compartilham desse interesse pela leitura e criação dos quadrinhos, con-
siderando-os subliteratura. Ainda existe um forte preconceito contra essa forma de expressão. Mesmo assim, embasado
159

na minha própria experiência como realizador de oficinas de quadrinhos para crianças, jovens e adultos em escolas e
centros culturais, ininterruptamente, desde 1993 até os dias atuais, e considerando relatos de outros artistas ou profes-
7
Narrativa gráfica – Uma descri-
sores que usam as narrativas gráficas7 (Eisner, 2005) em suas aulas, suponho que os quadrinhos, as caricaturas e charges ção genérica de qualquer nar-
possam ser linguagens úteis para vários fins pedagógicos como o ensino das culturas afrodescendentes na escola. ração que usa imagens para
transmitir ideias. Os filmes e as
As imagens, histórias em quadrinhos, caricaturas e charges me ajudam bastante em sala de aula, mas tenho histórias se encaixam na cate-
goria das narrativas gráficas
consciência de que os usos dessas linguagens são apenas recursos, entre outros tantos, e não representam, para mim, uma (Eisner, 2005, p. 10).
fórmula milagrosa para aprenderensinar. Na área de educação, por mais que tenhamos algum conhecimento ou intuição
que nos faça acreditar que um recurso seja ideal para determinado fim, as incertezas, muitas vezes, são as motivadoras
da escolha de um caminho, fazendo-nos andar alertas, rumo ao desconhecido, descobrindo novas possibilidades peda-
gógicas, superando os próprios preconceitos.

As minhas leituras dos quadrinhos de Agostini, por exemplo, me fazem questionar sobre como foi aprendidaen-
sinada a abolição da escravatura em muitas escolas, onde
o Louvor à Princessa Isabel e seu augusto esposo o Conde D’Eu realçava a magnanimidade, o senso de justiça,
a bondade que estes teriam em relação àquela parcela mais humilde de seus súditos, os negros escravos.
As figuras de alguns abolicionistas não eram festejadas no que estas representavam posicionamentos
políticos de confronto e ruptura, mas, ao contrário, eram valorizadas nas suas dimensões de grandeza
enquanto heróis da pátria, comprometidos desde sempre com o civismo. Em suma, comemorar a abolição
foi, por muito tempo, louvar o espírito heróico e cívico dos abolicionistas e da família imperial (Birman,
1989, p. 192).

A abordagem da questão da abolição da escravatura não deveria mais reproduzir o discurso conservador no
qual os abolicionistas foram heróis e a princesa Isabel a redentora que assina a Lei Áurea por pura benevolência, sem
enfatizar a luta dos afro-brasileiros e a resistência nos quilombos. Como aponta Barros (1989)
a constatação de que o tipo de abolição obtida não integrou o negro a nossa sociedade, de forma alguma,
serve como indicador de que o abolicionismo foi um movimento que serviu à classe dominante (p. 262).

A imagem de capa da Revista Illustrada n. 258 mostra em destaque as caricaturas representando os africanos e
asiáticos sob um fazendeiro branco, que parece estar montado nos dois no meio de um de cafezal. Angelo Agostini, para
fazer a sua crítica aos fazendeiros, acrescenta à imagem uma legenda que deixa passar o preconceito racial:
160

Preto e Amarello. É possível que haja quem entenda que a nossa lavoura só póde ser sustentada por essas 8
Brasil, Ministério da Educação
duas raças tão feias! Máu gosto! (Agostini, Angelo. Revista Ilustrada. anno 6, n. 258, Rio de Janeiro, e Cultura. Lei 10.639 de 9 de
janeiro de 2003. Altera a Lei
1881. p. 1).
9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as dire-
trizes e bases da educação na-
cional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obri-
AGOSTINI, Angelo. Revista gatoriedade da temática “Histó-
Ilustrada. anno 6, nº 258. Rio ria e Cultura Afro-Brasileira”, e
de Janeiro, 1881 (p.1). dá outras providências.

As histórias em quadrinhos de Agostini ajudam a entender como foi propagada a ideologia racista no Brasil e o
quanto é importante o ensino de história e cultura afro-brasileira na escola, como determina a Lei 10.639 de 9 de janeiro 9
Francisco Paulo Hespanha Ca-
de 2003,8 combatendo o racismo, relacionando a atual desigualdade social sofrida pela população afrodescendente tam- ruso (São Paulo, SP, 1949).
Caricaturista, ilustrador, char-
bém como consequência da abolição da escravatura, realizada sem a infraestrutura mínima para promover a inclusão gista. Chico Caruso, graduado
social das famílias de ex-escravos. em arquitetura pela Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo
Ainda que a Revista Illustrada tenha sido um veículo que serviu como instrumento de luta na campanha abo- da Universidade de São Paulo
– FAU/USP (1976) começou
licionista, esse não era o único tema da publicação. Outros aspectos do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro eram a publicar charges em 1968 no
motivos para a crítica social de Angelo Agostini em quadrinhos. As dificuldades políticas, sociais e estruturais da cidade jornal Folha da Tarde. Publicou
na revista Balão, nos jornais
eram denunciadas em textos e imagens humoradas. A constante falta de água, o desabamento de velhos cortiços, os pro- Opinião, Movimento e Gazeta
blemas de saúde pública, as manifestações populares, o declínio do império, críticas ao clero eram assuntos recorrentes Mercantil. Em 1976, recebeu o
prêmio no Salão de Humor de
nas edições da Revista Illustrada. Piracicaba, foi convidado a fa-
zer charges para a revista Isto É.
Para entender as histórias em quadrinhos e charges da Revista Illustrada, é indispensável estudar o contexto po- Em 1977 publicou no Jornal do
Brasil, a convite do cartunista
lítico e social da época, pois essas narrativas gráficas (Eisner, 2005) que eram feitas por Angelo Agostini pareciam levar em Lan (1925). É chargista do jor-
conta o conhecimento prévio do leitor sobre os fatos quadrinizados. Essa é uma característica da charge política, que, nal O Globo desde 1984.
por não ser investigativa, funciona, na maioria das vezes, com assuntos amplamente divulgados pela imprensa, fazendo
críticas e comentários humorados de notícias já conhecidas pelo público. 10
Uma palestra na qual Chico Ca-
ruso falou de seus processos de
Suponho que os processos de criação de alguns chargistas da atualidade sejam semelhantes aos de Agostini. Chico criação aconteceu na II Semana
Caruso,9 por exemplo, costuma dizer, em suas palestras,10 que trabalha com a informação a partir de leituras matinais de Quadrinhos da UFRJ, no dia
19 de junho de 2007.
161

de jornais diários, sublinhando as notícias mais importantes do dia, deixando a caneta pensar, para depois construir as
imagens e os textos das charges. Suas fontes de pesquisa, portanto, são as matérias já publicadas.
11
Repetibilidade é o termo empre-
A criação gráfica de caricaturas e personagens de quadrinhos começa em esboços e, depois, quando o desenho gado por criadores de histórias
em quadrinhos e desenho ani-
está bem definido, são desenvolvidos os movimentos corporais e faciais. Durante a criação das narrativas gráficas, o mado para a capacidade de de-
desenhista vai adaptando o seu traço aos personagens e descobrindo novos movimentos possíveis, encontrando a sim- senhar personagens, em cenas
e movimentos diferentes, sem
plificação necessária para garantir uma boa repetibilidade,11 nas diversas imagens sequenciais que serão desenhadas. perder as características formais
básicas de cada um deles.
Segundo o cartunista norte-americano Eisner (1989)
a compreensão de uma imagem requer uma comunidade de experiência. Portanto, para que sua mensagem
seja compreendida, o artista sequencial deverá ter uma compreensão da experiência de vida do leitor.
É preciso que se desenvolva uma interação, porque o artista está evocando imagens armazenadas nas
mentes de ambas as partes (p. 13).

O autor fala da importância de o artista conhecer o imaginário do público leitor para o qual se está produ-
zindo a história em quadrinhos com a finalidade de se realizar a comunicação, como entendo que fazia Agostini. Isso
me leva a fazer a associação com a prática de Paulo Freire, de somente iniciar a alfabetização após saber as palavras
mais importantes e usadas pelos alunos, trabalhando com palavras geradoras, dentro do universo desses alunos e seu
contexto social. Daí, o artista não deveria perder o contato direto com as pessoas, isolando-se para produzir suas obras.
Conhecendo bem seu público, seus anseios e desejos, ele tem mais elementos para desenvolver sua arte. Eisner (1989)
aponta para essa questão quando diz que
o sucesso ou o fracasso desse método de comunicação depende da facilidade com que o leitor reconhece o
significado e o impacto emocional da imagem. Portanto, a competência da representação e a universalidade
da forma escolhida são cruciais. O estilo e a adequação da técnica são acessórios da imagem e do que ela
está tentando dizer. (p. 14).

A Revista Illustrada é um rico material para práticas pedagógicas. Revisitar a obra quadrinizada de Angelo Agostini
possibilita refletir sobre a escravatura, o movimento abolicionista e o racismo que ainda persiste na sociedade brasileira.

Percebendo a importância histórica da obra quadrinizada de Angelo Agostini em sua Revista Illustrada, acredito
ser relevante concluir a organização do acervo da Gibiteca Armando Sgarbi com o trabalho que vem sendo realizado
162

pelo grupo de pesquisa Linguagens desenhadas e educação, que visa apoiar os diferentes usos (Certeau, 1994) das histórias
em quadrinhos como fonte de pesquisa em educação e a preservação de alguns preciosos traços de Angelo Agostini e
outros autores de obras textovisuais.

Os mecanismos de controle, na estrutura social, estudados por Foucault (1987), somam-se, atualmente, ao con-
trole na mídia, para impedir ou restringir a expressão de narrativas sobre as culturas afrodescendentes pelos meios de
comunicação. Foucault (1989) afirma que as mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais
iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se exerce sobre eles (p. 78), falando da
luta travada por alguns grupos sociais em um processo revolucionário que acredito ser, também, um dos caminhos
encontrados pelos afrodescendentes. Somente agora, tardiamente, alcançam a visibilidade na sociedade, com muita luta,
ao longo dos anos. Talvez seja esse um dos motivos que as histórias em quadrinhos abolicionistas de Angelo Agostini,
realizadas ainda no século XIX, tenham-me causado grande impacto, por perceber que, mesmo nos dias atuais, não
temos uma grande produção de quadrinhos que trate de assuntos relacionados aos afro-brasileiros e sua história. Agos-
tini corajosamente cria e publica essas narrativas gráficas (Eisner, 2005) com meios próprios, combatendo duramente a
poderosa sociedade escravista de sua época.
12
Diretrizes Curriculares Nacio-
Considero como uma conquista dessa luta a promulgação da lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003, já citada nais para a Educação das Re-
lações Étnicos-raciais e para
neste texto, que prevê a inclusão da obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da o Ensino de História e Cultu-
rede de ensino, já possuindo suas Diretrizes Curriculares Nacionais12 definidas. ra Afro-Brasileira e Africana.
23001.00215/2002-96 CNE/CP
3/2004, aprovado em 10/03/04
Imagino que os quadrinhos e charges sobre afrodescendentes, criados por artistas, professores/professoras e es- Proc. 23001000215/2002-96.
tudantes, continuarão a ser um valioso instrumento contra o racismo e, também, na implementação de atividades para
o ensino das culturas afrodescendentes, dentro e fora da escola.
163

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PARTE III
(animação)
165

Educação ambiental: um prólogo e três episódios


de (re)existência
Ana Godoy

Leandro Belinaso Guimarães

Marcos Reigota

Aqui estamos.Três colegas que se encontraram em situações de busca, enredados mais uma vez. Nosso primeiro
encontro, em trio, se deu numa fria tarde no café da Casa das Rosas na Avenida Paulista. Ali discutimos o minicurso
que daríamos no GT de educação ambiental da Anped, intitulado “Meio Ambiente, Cultura e Educação”, em outubro
de 2009. Dois dos episódios aqui apresentados, o de Ana Godoy e o de Leandro Belinaso Guimarães são originados
desse minicurso. O terceiro episódio, de autoria de Marcos Reigota, é uma versão ampliada de conferência dada no
México num seminário sobre os trinta e um anos da Carta de Tbilisi. O mesmo texto foi também apresentado na con-
ferência de abertura das comemorações dos 10 anos do Curso de Especialização em Educação Ambiental da USP, em
São Carlos. O que os três episódios têm em comum e o que têm de específicos? Podemos sugerir algumas respostas,
mas convidamos nossos leitores e leitoras a que façam o exercício. No entanto, adiantamos que os três episódios estão
envolvidos com o olhar que lançamos ao mundo e como que esse olhar caracteriza nossas intervenções cotidianas,
assim como a nossa produção teórica e/ou imagética. Eles convidam e estimulam ações de ver/olhar/observar como
uma condição do ser/estar no mundo. Como se olha, fotografa, imagina e se narra a vida cotidiana contemporânea
é um processo pedagógico e, portanto, político dos questionamentos que (nos) fazemos. Nossos episódios mesclam
possibilidades, imagens, raios e trovões na tentativa de desconstrução de lugares comuns e de clichês apaziguadores e
reconfortantes. São episódios que refletem nossa resistência à “vida besta”, marcada pelo mais do mesmo, por um febril
e alucinado produtivismo, por uma alegria falsa e pelo predomínio dos chavões, que como cantava Itamar Assump-
166

ção, “abrem porta grande”. São textostentativas e convites à produção de sentidos, de ampliação de brechas e criação
de linhas de fuga. Como fotografamos (virtualmente, subjetivamente ou concretamente) o mundo, ou o que fazemos
dessas mesmas “fotografias” é suporte fugidio de nossa reflexão e não são utilizadas como ilustração do que pensamos
ou queremos dizer. São complementos de nossa reflexão sobre o estar no mundo. Portanto, essas imagens podem ser
aquelas “fotografadas concretamente”, com as quais comunicamos e dialogamos e apresentamos nos dois episódios ini-
ciais, mas são também aquelas que não se materializam, mas que povoam nosso imaginário, como no terceiro episódio.
A elas se acrescentam as imagens que nos trazem os jornais, as músicas, os poetas e aquelas que construímos a partir
desses elementos. Trata-se, portanto, das imagens que construímos e poderíamos construir como narrativas de nossa
existência e de nossa resistência e que, desobedientes, não se concretizam, não são palpáveis ou visíveis a olho nu. Essas
imagens imaginadas se evaporam e ressurgem em outros momentos, fugazes e provocadoras, silenciosas ou ruidosas.
Nossos textos e imagens são episódios de resistência, tendo a educação ambiental como linha condutora. São tentativas
de resistência e de produção de sentidos. São episódios de reexistência, pois não nos interessa apenas resistir à vida besta,
mas principalmente existir e sobreviver longe dela. Emprestamos o termo e a ideia (re)existir de José Celso Martinez
Corrêa, que a apresentou numa mesa–redonda em que participou na sede do jornal O Estado de São Paulo, na qual se
discutia a obra de Euclides da Cunha. Na ocasião, ele dizia que ao transpor para o teatro a obra “Os Sertões”, o grupo
do Teatro Oficina percebeu que a luta de resistência é antes de tudo uma luta pela (re)existência.

Que possam assim ser lidos e imaginados os episódios que seguem.

Primeiro episódio

Uma vida potente


Ana Godoy

Como pensar a relação educação-meio ambiente como sublevação ética, estética e política em que se afirma a
singularidade dos mundos que nos habitam e que habitamos?

Começo com um pequeno grupo de imagens....


167

.... e deixo que sejam preenchidas rapidamente: uma favela, um bairro miserável, falta de condições de moradia,
políticas de habitação, trabalho mal remunerado, representantes de uma população tradicional, falta de qualidade de
vida, poluição dos rios, degradação ambiental, grandiosidade da natureza, beleza natural, trabalho braçal, campo florido
a mercê da industrialização e outras tantas combinações que elas possibilitam. À medida que as preenchemos vamos
estabilizando-as, tornando-as familiares. Damos a elas e a nós um rosto que coincide com uma imagem que as precede.
É possível acrescentar sempre algo mais até que nada mais percebamos, preenchidas que estão de nós mesmos, confun-
didos que estão a percepção e o percebido. A imagem fotográfica, com seu ar de autenticidade e inocência, ancora e
suporta facilmente todos os clichês do pensamento e da percepção...

Deixemos, então, essas imagens nos acompanharem pelas próximas páginas imantadas pela questão colocada
inicialmente.

A imagem do pensamento e o clichê

Quando nos valemos dos conceitos de Deleuze e Guattari não é para repetir o que disseram, mas para po-
dermos dizer outra coisa de outro modo. Não devemos, no entanto, entender que se trata de dizer qualquer coisa ou
mesmo de usar os conceitos sem rigor, ao contrário. Dizer outra coisa, pensar, sentir e perceber de outro modo implica
necessariamente combater uma imagem do pensamento que pressupõe que já nos demos tudo, que tudo já está dado e
se reduz ao dado enquanto possível. O real, assim reduzido e rebatido sobre o possível, resta como objeto de recogni-
ção: aquilo que se percebe, sente e pensa coincide com aquilo que se é, e o futuro é tão somente a forma do já presente
(Zourabichvili, 2000). Assim, somos invadidos pelos clichês, transitamos por eles erigindo a imagem de um mundo
preexistente naquela de um mundo futuro que não ultrapassa os limites dos clichês que ela carrega. Aquilo que somos
e aquilo que, todavia, devemos ser já está dado na imagem que baliza o julgamento das ações e intenções segundo um
mundo preexistente que se dá, de uma vez só, como conjunto de regras morais, de valores transcendentes inseparáveis
do imobilismo que o clichê confere à imagem. O clichê não se introduz, ele já está lá e é contra ele que é preciso lutar
cotidianamente para que possamos começar a pensar, sentir e perceber de outro modo...
168

A imagem do pensamento coincide com a imagem do mundo

Se pensar, para Deleuze, diz respeito a um ato de criação é porque o valor do conceito está naquilo que ele é
capaz de criar: modos existência, possibilidades de vida potentes para afrontar e resistir ao intolerável de uma época.
Não se trata, portanto, de reter uma regra das soluções, à qual só é necessária a criatividade, mas de pôr em funciona-
mento uma arte da problematização, de reivindicar o direito a formular os próprios problemas sobre esse horizonte.
Não importa com tal ou qual conceito de Deleuze e Guattari se trabalhe, fazendo-o, necessariamente, somos lançados
sobre esse horizonte, e se não o somos, os conceitos não servirão para nada, já que para dizer o já dito, já pensado, já
percebido e sentido basta-nos a opinião e seus clichês, basta-nos o modelo da recognição, basta-nos a figura de um
sujeito estável, ponto fixo no universo, para quem as coisas no mundo se voltam seguindo-o por onde ele vai para
significar suas intenções (Lapoujade, 2009).

Nesse sentido, ao nos valermos da filosofia – tal qual Deleuze e Guattari a concebem – para estabelecermos
uma vizinhança com a educação ambiental ou qualquer outro campo de saber, não será para legitimar ou justificar ou
mesmo elucidar, mas para nos perguntarmos quais são os procedimentos de criação de que ela se vale para enfrentar
os clichês que perfazem o mundo da opinião, da informação e da comunicação, cujo esquema imagético aprisiona a
percepção ao dado, ao socialmente partilhado, isto é, aprisiona-a àquilo que jamais ultrapassa os limites que o clichê
impõe à imagem.

A opinião, a informação e a comunicação ao organizarem a percepção fazem valer o reino dos estereótipos, o
lugar comum do sentido e do visível, o clichê. Há, portanto, um esquema perceptivo posto em jogo cotidianamente nas
relações. Não importa qual tema seja colocado ou qual o conjunto de conceitos ou referências bibliográficas utilizadas,
a força do clichê é justamente fazer com que qualquer coisa funcione segundo um esquema normativo, condicionando
a apreensão, tanto na dimensão visual, quanto na dimensão tátil, sonora, etc., servindo para prevenir qualquer alteração
ao recobrir a estranheza sob o familiar. Profusão de clichês que mantém o pensamento refém do senso comum, sus-
tentáculo da opinião desarmando, desse modo, a sensibilidade.

Retomemos então aquelas quatro imagens iniciais. Poderíamos agora chamá-las de imagens-clichê, visto fun-
cionarem em redundância com uma imagem de pensamento que outra coisa não é que o Estado em nós. Poderíamos
169

ainda dizer que, dentre as imagens escolhidas, algumas mais do que outras já estão tão preenchidas que mal consegui-
mos nos movimentar nelas. A única coisa que suscitam é um conjunto de reações e as reações nada criam, pois servem
antes para garantir que nada aconteça ao pensamento, à sensibilidade e à percepção. Que nada nos aconteça.

Aprisionados na imagem somos prisioneiros de um esquema perceptivo, mas também da moldura cultural que
ele efetua na relação com um regime imagético. Operando nessa clausura, a educação ambiental é tão somente uma
função formalizada com relação aos dispositivos escolar e comunicacional segundo as determinações de um regime
pedagógico. Cabe a ela produzir concretamente sobre os corpos as marcas das ideações curriculares que são por sua
vez inseparáveis de uma política de subjetivação que implica não em produzir corpos dóceis, mas modulações subje-
tivas que respondam às tecnologias de controle. Cabe a ela, então, agir sobre as disposições, privilegiar tendências de
maneira a incitar determinada maneira de habitar, de deslocar-se, de ter um gênero; a exercer a escolha entre possíveis
já determinados pelos especialistas, a praticar a opinião constituindo nos corpos modulações subjetivas em redundância
com as axiomáticas do capitalismo.

Aprisionados pelo conjunto das probabilidades figurativas, passamos de uma imagem a outra sem que nada nos
aconteça, amparados que estamos por uma imagem do pensamento. Ambas não cessam de ser reenviadas ao clichê, e
se nada fazem é porque são o já feito e por isso mesmo só se ocupam do que é...

Ato de criação

É preciso fugir.Todavia, à imagem do pensamento e ao pensamento sobre a imagem é improvável que algo fuja.
A pergunta agora é: como fazer a imagem, o pensamento fugir e com eles a educação ambiental? Se a fuga não está
dada é porque ela remete ao impossível, ao improvável; ela precisa ser criada. É nesse movimento em que se cria uma
linha de fuga, isto é, em que se abre espaço para que algo passe, que a educação se torna filosófica, se torna artística, se
torna científica. Não porque ela repita os conceitos da filosofia ou tome os agregados sensíveis da arte como ilustração
ou ainda reproduza as funções científicas, mas porque no movimento da criação ela se encontra com a arte, a filosofia
e a ciência. Nesse movimento ela se torna uma experimentação, abrindo mão de vínculos formais com padrões ou
meios estabelecidos de relação individual ou coletiva. Assim, ao afirmar seu caráter experimental, criador, o que ela
faz é problematizar a própria moldura na qual ela ganha existência como função formalizada. É nessa passagem que,
170

ao invés de legitimar campos de saber ou justificar o que faz em nome daquilo que “se julga que somos capazes, que
podemos e que temos a obrigação de crer” (Deleuze, 1999, p. 11), ela trava alianças potentes em proveito daquilo que
para cada um faz problema e que exprime a singularidade dos mundos que nos habitam e que habitamos.

A fuga como ato de criação não diz respeito a ignorar o dado, mas a atentar para aquilo que nele não está dado.
Não se trata de uma fuga irrealista que ignora as crises que os processos implicados nos modos de produção material
aceleram e acentuam, mas tomar a crise como ocasião de invenção, de afirmação, de liberação da vida onde quer que
ela esteja aprisionada como tão belamente pontua Deleuze (1993). Não diz respeito a ignorar o clichê, mas a impedir
que ele preencha tudo, determinando o que há para ser pensado, dito, sentido, pois, o fazendo, reduzimos o sensível
aos esquemas perceptivos que o clichê determina. Não se trata, pois, de evitá-los ou destruí-los, mas de tomá-los como
material. Trata-se de “raspá-los”, de inventar os procedimentos que tornem possível atravessá-los de maneira a que não
se consiga mais fazer, dizer e sentir o que habitualmente se faz, diz e sente, pois a pregnância dos clichês reside em,
ao soldar as sensações e o pensamento, dar-lhes a forma de uma consciência totalizante inseparável dos dispositivos
de poder. Assim, na medida em que os clichês se colam à discursividade ambiental, entram em redundância com esse
funcionamento disseminando as imagens-clichê de um único mundo possível que nos caberia a todos bem-habitar.

Uma vida silenciosa

Voltemos uma última vez ao conjunto de imagens – que chamaremos agora de imagens habituais – para nos
perguntarmos: como esvaziá-las dos clichês? Como, enfim, fazer passar alguma coisa por elas? Deixemos então que as
imagens nos olhem. Há como que uma instabilidade nas imagens, algo que as trabalha, algo que escapa ao plano do
visível, mas que insiste nele como uma nuvem de agitações. Talvez nessa ou naquela imagem a força de enrijecimento
do clichê seja tamanha que mal possamos sentir a instabilidade. Nada na imagem vibra no corpo. Nada faz problema.

Talvez seja preciso deslocá-las e, quem sabe, nesse movimento, deslocar a percepção...
171

Produz-se um pequeno desvio ao dar relevância e densidade à instabilidade que atravessa a imagem e que
experimentamos como uma igualmente pequena, mas insinuante e persistente vibração. Desprovidas de uma ima-
gem preexistente que lhes conforme, as imagens se tornam um imenso canteiro de obras que a sensação movimenta
ao reencontrar as forças que ela põe em jogo, fazendo com que a agitação na imagem ressoe no corpo. Há algo que
as trabalha e a nós, uma vida silenciosa, uma potência vital que diz respeito à qualidade única dos mundos que nos
habitam e que habitamos. Mundos com os quais não cessamos de nos inventar. Mundos aquém e além da produção
demente de palavras-imagens clichê com que se pretende cimentá-los. A essa educação ambiental interessa as alianças
fortes, aqueles que se aventuram “em perspectivas teóricas e metodológicas radicais” (Reigota, 2004) cuja potência se
equipara àquela da vida: desviar, insurgir, diferenciar, criar.

O leitor poderia perguntar pela imagem das lavadeiras. Diria, então, que a potência que se agita nessas duas
últimas imagens reside nos traços expressivos que elas souberam extrair daquela para tornar sensível “a brisa de uma 1
Maria José das Águas em corpoci-
manhã que corre como nem água fresca”,1 pois se há a vida que a ecologia produz, há sempre as ecologias que a vida, dade.blogspot.com
em seu movimento, inventa. A menor das ecologias (Godoy, 2008).

Segundo episódio

Como não deixar escapar a vida que nos beija?


Leandro Belinaso Guimarães

Como estamos convivendo em nossas cidades? Como pintamos o mundo com nossas presenças? Que ambien-
tes desejamos? Que cidades buscamos construir com nossos modos de vida? Que cheiros, cores e sons queremos sentir,
ver e ouvir nos mundos em que vivemos? Como configuramos um lugar e como esse mesmo lugar nos atravessa e
nos subjetiva?

Em trabalhos de educação ambiental, o ato de caminhar, de fazer uma trilha, tem sido alçado como sendo de
grande importância. Em alguns artigos podemos ler uma reflexão sobre esse modo comum de praticar educação am-
biental (Guimarães, 2005; Sampaio e Guimarães, 2009). Uma das questões que podemos levantar seria: como andamos
pelos caminhos cotidianos trilhados no tecido urbano em que vivemos?
172

Caminhar a partir de uma prática de educação ambiental é quase como transitar por uma autoestrada. Esses
espaços transitórios que percorremos (dificilmente fazemos uma trilha interpretativa em educação ambiental pelo pró-
prio bairro que habitamos), tal como uma rodovia, estão repletos de sinais – textualidades escritas e imagéticas – que
nos transmitem as regras do lugar e, talvez por isso mesmo, nos apaziguam, nos confortam, já que vão se configurando
como repletos de códigos familiares.

Percorrer uma autoestrada (e, quiçá, fazer uma trilha em educação ambiental) – tal como o arquiteto Gilles
Delalex (2008) que viajou por estradas europeias produzindo imagens de seus sinais, postos, pessoas – é vivenciar um
processo de estandardização que resulta em um efeito de reconhecimento e de controle. Como nos diz Delalex: “na
superfície da autoestrada, setas substituem a topografia física para indicar o número limitado de escolhas – direita, es-
querda, em frente. Os limites da segurança são, assim, claramente indicados por meio de textos e padrões (Delalex, 2008,
p. 110). Quais os limites seguros, sutilmente controlados e estandardizados, que imputamos às trilhas que percorremos
através da educação ambiental?

Por entre as várias movimentações cotidianas que fazemos pelo tecido urbano e pelos fluxos virtuais da rede,
nos deparamos com a leitura de uma pintura, uma fotografia, uma escultura, uma paisagem, uma cena urbana e ficamos
olhando, quase como que contemplando aquilo que vemos. Esse estar parado em frente de um cenário enquadrado que
se fixa aos nossos olhos é uma forma recorrente de vermos o mundo – como uma colagem de diferentes representações
construtoras daquilo que chamamos realidade. Mas que efeitos há sobre nós mesmos tais cenários que nos imiscuímos
produzindo sentidos com nossas leituras? Como nossos olhares são capturados? Como nos constituímos sujeitos nesse
mundo que nos chega, nos toma, que nos conforta? Como sair desse estado contemplativo, estandardizado, seguro, contro-
lado e confortável das representações que nos ensinam como ver (ou deixar de ver) um lugar, uma trilha, uma autoestrada
para, agora, criarmos ambientes, ativarmos outros olhares, dispormos para nós mesmos outros mundos improváveis?

Essas são perguntas que nos parecem interessantes à educação ambiental que acreditamos. Nela estaria em jogo
uma dimensão política importante: a promoção de uma reflexão, de uma atenção, de questionamentos sobre os modos
como estamos vivendo a nossa vida cotidiana, como nos lembra Marcos Reigota (2008). Enfim, sempre estamos a
perguntar: que relações socioambientais estamos construindo?
173

Desejamos pensar uma educação ambiental que pudesse ultrapassar o acento na representação de meio am-
biente e de natureza, que tanto já consumiu nossos trabalhos. Muito já perguntamos sobre como a natureza ou o
ambiente está representado, seja em um desenho de criança, seja em uma imagem fotográfica, um filme cinematográ-
fico, um livro didático, uma história literária. Porém, o mundo também pode ser visto como passível de invenção, de
tessitura de outros encontros (e não apenas desencontros) entre seres humanos e não-humanos, de criação imaginativa,
de sensações que nos permitiriam outros acentos, outras atenções para com os mundos que uma educação ambiental
seria capaz de ativar.

Praticar educação ambiental não deixa de ser contar algumas histórias sobre o mundo. Contudo, não deixa de
ser, também, criar mundos, disparar a imaginação de realidades outras, se deixarem adentrar as inventividades tecidas a
partir do nosso trabalho educativo. Como experienciar a vida como potência de criação de vários modos de viver que
possibilitariam irmos ao encontro de um outro que sempre nos escapará em sua alteridade? Hoje nos fechamos tanto
em nós mesmos, nos nossos condomínios, nas nossas televisões, nas nossas presumidas identidades, nas representações
que nos chegam do mundo, nas nossas trilhas individualizadas e interiores de vida. Como disse Hélio Oiticica (2009),
o trabalho criador tem um lado marginal (está na margem) nunca condicionado ao que já existe. Uma educação am-
biental alocada nas margens, entre visões, imaginações, realidades, mundos, deixaria escapar a vida que nos beija?

contar uma história de amor


por fim pelo meio
um começo que não veio
nenhuma rima em or

cantar como quem resiste


resistir como quem deseja
meu versejar seja
o riso que te visite
a brisa que te festeja
174

não
tristeza não
essa é quando
a alma veste luto
e já não luta

peleja sim
coração
em busca de beleza

corre anda rasteja


só não deixa fugir
a vida que te beija

Alice Ruiz, 2008, p.38

Terceiro episódio

Normatividade, singularidade e política


Marcos Reigota

Falo assim sem tristeza


Falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos
Que nós iremos crescer
Outros outubros virão
Outras manhãs plenas de sol e de luz.

Milton Nascimento/Fernando Brant


175

Uma matéria do jornal O Estado de São Paulo de 16 de agosto de 2008, assinada por Lourival Sant’Anna,
enviado especial a Tbilisi, traz como titulo ‘Refugiados lotam escolas de Tbilisi”, ilustrada com uma foto feita pelo
jornalista de uma menina de nove anos que diz: “Os russos bombardearam minha casa”.

Creio que para nós, educadores e educadoras ambientais, o que se passa hoje no Cáucaso nos toca particular-
mente, já que Tbilisi está impregnada no nosso cotidiano e discurso.

Da mesma forma, Belgrado está presente no nosso imaginário comum. Com a recente prisão de Karadizc
pelos crimes cometidos contra a humanidade, a capital da Sérvia e sua relação com a educação ambiental voltou com
intensidade nas nossas conversas, práticas sociais e pedagógicas cotidianas.

Retornar nosso discurso e pensamento a Belgrado e a Tbilisi, nesse momento histórico, não pode se limitar aos
documentos fundantes da educação ambiental elaborados nessas cidades em 1974 e 1977. Para além desses documen-
tos, o que se passa atualmente nessas cidades diz respeito à continuidade (ou falência) de uma educação ambiental que
nos seus primórdios “pensava o mundo” e pretendia agir sobre ele.

Nos anos 1970, estávamos impregnados de ideias pacifistas, libertárias, internacionalistas e contrárias a todo tipo
de totalitarismo. Queríamos tudo o que as revoltas juvenis de 1968 nos trouxeram como possibilidade.

Na América Latina, muitos de nós sofremos na pele as consequências das ditaduras militares, que nos intimida-
vam, nos ameaçavam, puniam e matavam.

Mas, não era porque os cães raivosos podiam nos ferir e eliminar a qualquer momento, que deixamos de reivin-
dicar liberdade de expressão e de participação cidadã. Uma canção daqueles tempos voltou a ser entoada recentemente.
“O que foi feito, amigo, de tudo o que a gente sonhou?” cantava Milton Nascimento, em interpretação contundente,
numa de suas músicas em parceria com Fernando Brant.

Milton Nascimento deu voz às perguntas que (nos) fazíamos quando vivíamos sob a ditadura militar e que
voltamos a fazer agora em que já estamos distantes dela.

As ditaduras militares latino-americanas, com seus caudilhos e generais e apoiadores entre os civis, intelectuais
e religiosos, não menos sanguinários e grotescos, eram visíveis em lugares públicos e frequentavam os círculos restritos
176

do poder. Estavam diariamente na televisão, como que para nos lembrar quem mandava no país e quem controlava, ou
fazia de tudo para isso, corações e mentes desobedientes.

Eles não eram apenas personagens de ficção de alguns dos principais textos literários do continente. Eram bem
reais e cruéis. Com nomes e endereços. Mas aquelas tenebrosas ditaduras latino-americanas se foram, assim como as
ditaduras “proletárias” da Europa do Leste.

Os regimes políticos “democráticos” que vieram depois delas não deixaram de lado a arrogância do poder po-
lítico, econômico e militar, apesar desse poder ter sido conquistado por eleições.

Os novos regimes políticos nos encontraram mais velhos e, entre os que sobreviveram, encontraram também
alguns desobedientes que se recusam a compactuar com os novos mandatários, eleitos democraticamente, é verdade,
mas não menos caricatos, autoritários e prepotentes que os ditadores precedentes. Esse passado totalitário, que muitos
querem esquecer e que afirmam estar superado, volta e meia reaparece, como fantasma, ou como uma história que não
foi devidamente esclarecida, apesar dos esforços de historiadores, escritores, artistas, educadores (ambientais) e sobrevi-
ventes dos anos de chumbo. O que nos leva a indagar: Quais são as relações e compromissos da educação ambiental em
superar, questionar e desconstruir todas e quaisquer tentativas de impor uma ordem (pedagógica, ecológica e política)
que seja conivente com um ou mais grupos no poder? Em outras palavras:

Quais são as relações da educação ambiental com esses novos regimes populistas, belicosos, apoiados numa ri-
queza advinda da exploração do petróleo, da exploração extensiva da terra (agricultura para exportação) e dos recursos
naturais?

Como se posiciona a educação ambiental frente o consumo desenfreado da elite econômica (cujo enriqueci-
mento fraudulento é bastante duvidoso e as relações com os novos mandatários são de conhecimento público) e da
nova classe média fascinada pela possibilidade de comprar qualquer coisa que esteja à sua frente?

Como a educação ambiental reage frente à sedução imobilizadora que os aparelhos ideológicos do Estado
produzem e difundem com tanta competência, onde não faltam discursos nacionalistas e belicosos, assim como a oni-
presença dos e nos meios de comunicação de massa?
177

Como a educação ambiental enfrenta a corrupção descarada e a lavagem de dinheiro; as políticas sociais pater-
nalistas e a aquisição de arsenal militar de última geração?

A educação ambiental que se quer política e participativa está confrontada com essas questões, cujas eventuais
respostas definirão a sua continuidade e pertinência e, principalmente, a sua sobrevivência.

Estou convencido de que são questões globais, contemporâneas e desafiadoras que se colocam quando preten-
demos levar a educação ambiental para além dela mesma, ou para além das tentativas normatizadoras e de controle.

As respostas a essas questões só se tornarão possíveis se houver um investimento pessoal e coletivo, principal-
mente por parte daqueles e daquelas que prezam pela sua independência e liberdade. Podemos iniciar a tentativa de
buscar algumas pistas de respostas optando pela alternativa de ampliar o argumento da pertinência política da educação
ambiental.

Dessa forma, é incontornável iniciarmos o percurso pela análise do papel das Nações Unidas e a sua impotência
de intervenção em guerras e conflitos cada vez mais sanguinários e, por extensão, o papel da Unesco e sua função de
ampliar, pela educação e cultura, o entendimento, o conhecimento e a convivência entre os povos.

Para muitos, todo o sistema das Nações Unidas está falido e não serve mais do que de cabide de empregos para
diplomatas e funcionários bem pagos que viajam pelo mundo (se) repetindo e falando aquilo que, eles imaginam, o
público quer ouvir.

Para outros, as Nações Unidas e, por extensão, a Unesco, já preencheram seus objetivos e desafios iniciais e
constituem um sistema que precisa ser reformado completamente para atender os desafios do século XXI.

Esse segundo discurso encontra adeptos em vários países e é entre eles que vamos encontrar os condescenden-
tes com a tentativa de normatizar a educação ambiental com a denominação de “educação para o desenvolvimento
sustentável”.

Essa denominação necessita ser analisada juntamente com as tentativas de sobrevivência da Unesco quando, vi-
sando seus próprios objetivos, lança campanhas de grande apelo midiático, mas distantes do histórico dos movimentos
culturais e educacionais internacionais surgidos a partir dela e dissidentes de sua burocratização.
178

É no contexto político internacional dos anos que precederam o final da Guerra Fria e é do Japão que veio a
ideia de educação para o desenvolvimento sustentável, que foi acatada, apoiada e difundida por ONGs, universidades e
agências de fomentos e financiamentos de projetos e pesquisas e por instituições ligadas aos governos nacionais.

Essa tentativa normatizadora precede uma outra que foi bastante difundida na América Latina e teve a Espanha
como principal mentora através da difusão de sua reforma educativa, que incluía o meio ambiente como tema trans-
versal no currículo escolar.

Esse projeto, que no Brasil ficou conhecido como PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), precisa ser con-
textualizado na política exterior espanhola dos anos 1990, aliada ao apogeu da implementação do projeto político e
econômico neoliberal na América Latina. A Espanha procurou reafirmar a sua influência e, para isso, era necessário
adentrar no sistema educacional da América Latina.

Nesse projeto político, econômico, cultural e pedagógico foi muito curioso observar a avassaladora presença de
pedagogos espanhóis nas editoras, revistas especializadas e de divulgação para professores, e em destacados e constantes
congressos e simpósios educacionais realizados no Brasil.

Em várias situações observamos que essas novas referências pedagógicas vindas da Espanha repetiam algumas
das mais conhecidas ideias de Paulo Freire, sem citá-lo, e, quando o faziam, parecia que só conheciam o livro “Peda-
gogia do Oprimido”. Também falavam e escreviam sobre “transversalidade”, mas não faziam referências e citações à
noção precursora elaborada por Félix Guattari.

As universidades brasileiras tiveram importante papel na crítica a essa proposta política e pedagógica vinda da
Espanha, mas também, e principalmente, na sua adesão. Não foram poucos os educadores e educadoras ambientais que
receberam os PCN de forma positiva.

Todavia, estudos e pesquisas posteriores mostraram que os PCN foram recebidos como mais um “pacote vindo
de Brasília que atendia a interesses externos”. Em outras palavras, não foram poucas as pesquisas e textos que mostraram
que os PCN eram mais um dispositivo normatizador.
179

Observo que uma das dificuldades de entendermos e desconstruirmos esses contextos internacionais, e seus
impactos e conexões nacionais, está pautada no pouco espaço que o pensamento crítico e independente encontra para
apresentar seus argumentos. Mas seria um equívoco localizarmos os processos normatizadores como vindos obrigato-
riamente do exterior.

No primeiro governo Lula, tivemos o desenvolvimento de uma Política Nacional de Educação Ambiental ori-
ginada num amplo movimento dos educadores e educadoras ambientais no país, iniciada nos anos 1980 e consolidada
nos últimos anos da década de 1990, e de uma certa forma, em oposição às propostas vindas da Espanha.

Meu argumento é que a Política Nacional de Educação Ambiental, principalmente no primeiro governo Lula,
se tornou alinhada aos interesses ideológicos e partidários dos grupos no poder e procurou normatizar a educação
ambiental com os “educadores críticos e emancipatórios”, que críticas não faziam ao governo.

Nesse dispositivo normatizador foram cooptadas grandes parcelas do movimento histórico da educação am-
biental brasileira, que camuflou a devastadora política ambiental em vigor no país. Nele, não faltaram a presença de
renomados/as educadores/as ambientais, movimentos sociais, ONGs e universidades públicas que, com acesso às ver-
bas ministeriais, não só se calaram diante do que possivelmente em anos anteriores seriam contrários, como ampliaram
os discursos favoráveis ao governo federal e amorteceram e desqualificaram, publicamente, as críticas ao modelo de
desenvolvimento e de política ambiental adotados pelo governo, feitas por aqueles que se atreveram.

Como aprendemos com a história, todo processo normatizador apresenta resistências e brechas e na educação
ambiental isso não poderia ser diferente. Nesse caso, são as práticas sociais e pedagógicas cotidianas singulares que me-
recem atenção e apontam para a possibilidade de serem analisadas, numa ideia emprestada e influenciada por Michel
Foucault (1987), como dispositivos antinormativos.

Nelas cabem as educações ambientais (Barchi, 2009) com diferentes princípios, elaborados nos e pelos grupos
sociais que as praticam, influenciadas ou não pelas informações e representações que circulam no espaço público, mas
não alinhadas, subvencionadas ou estimuladas pelo poder público, governos, ONGs e agências de financiamento na-
cionais e internacionais.
180

São singulares por apresentarem intensa movimentação associativa em torno de temas específicos e pontuais,
que acontecem nas comunidades e nas escolas. São praticadas por pequenos grupos, marcados pela diversidade ideo-
lógica, religiosa, cultural e social dos seus membros, ou por professores que, sozinhos ou com alguns colegas, realizam
práticas pedagógicas com suas características próprias, seus desafios imediatos e identificados com os problemas da vida
cotidiana das pessoas com as quais convivem.

As práticas pedagógicas singulares que reivindicam a denominação de educação ambiental, para alguns educa-
dores ligados aos processos normatizadores, não modificam a realidade. No entanto, as educações ambientais singulares,
assim como as normatizadoras, encontram-se diante do mesmo desafio, ou seja, o de apresentarem dados e argumentos
concretos e convincentes de que conseguem “mudar a realidade”.

O nosso desafio comum é mostrar onde e como a educação ambiental conseguiu reverter a exploração capi-
talista dos meios de produção; o consumo de recursos naturais; ampliar a distribuição equitativa das riquezas e bens
coletivos e a participação efetiva, livre e independente da população nas decisões sobre a política ambiental e seus
impactos na vida cotidiana.

Relatos e estudos têm mostrado como as educações ambientais singulares interferem, influenciam e modificam,
mesmo que por dimensões temporais limitadas, a vida cotidiana. Elas modificam as relações sociais e afetivas e também
as relações com o que as pessoas consideram meio ambiente. Ampliam os laços e redes de solidariedade; de subjetivi-
dades; de compreensão do mundo e de participação cidadã e ampliam o pensamento crítico.

Um dos limites das educações ambientais singulares, reconhecido por seus adeptos e praticantes, é o de não
terem alcance para enfrentar os desafios constantes da vida cotidiana “glocal” (Reigota, 2002).

Para evitar esses limites e ampliar suas possibilidades de intervenção cidadã de forma autônoma, independente
e associativa, o processo das educações ambientais singulares necessita ser analisado, problematizado e, se possível, am-
pliado nas suas bases pedagógicas e políticas.

Nesse sentido, o papel das universidades e de grupos de estudos e pesquisas é fundamental, assim como as redes
de solidariedade e de subjetividade explicitadas por Félix Guattari em “As três ecologias”.
181

Questionamo-nos: como as educações ambientais singulares podem fazer frente aos cada vez mais complexos
problemas ambientais contemporâneos que envolvem potências bélicas, conglomerados econômicos transnacionais,
hábitos insustentáveis de consumo dos recursos naturais, acúmulo das riquezas e bens coletivos em mãos de pequena
parcela da população? Como elas podem ampliar as possibilidades de intervenção cidadã em sociedades que ainda
não se desfizeram da herança totalitária deixada pelas ditaduras das últimas décadas do século XX, sem se tornarem
ingênuas, inócuas e inofensivas?

Diante da dimensão ecológica planetária e da dificuldade de se obter respostas de como intervir, de forma rápi-
da e eficiente, a educação ambiental se confronta com as suas pretensões, limites e (im)possibilidades. Ela desce do seu
pedestal enfeitado por dogmas políticos e religiosos e atos e tentativas heroicas de “salvar o planeta”. Ela se vê, assim,
nas palavras de Rodrigo Barchi, apoiadas em Silvio Gallo, como uma “educação menor” (Barchi, 2009; Gallo, 2003).

Com essa perspectiva, a educação ambiental tem como pressupostos políticos ser uma possibilidade de provocar
os poderes constituídos de certezas e dogmas, apoiados em poderes econômicos, políticos e midiáticos, e de apontar
que a necessidade de mudança no “modelo exploratório de desenvolvimento capitalista” não é apenas um discurso.
Trata-se de uma necessidade de sobrevivência coletiva em médio prazo e urgente, do momento presente, de se ampliar
e rever as possibilidades de convivência entre e com os diferentes, e com os elementos vitais que garantem a continui-
dade das diversas formas de vida.

Ela (re)afirma que (sobre)viver não é apenas uma necessidade biológica ou uma essência metafísica, mas é, antes
de tudo, um ato político.Viver com dignidade, longe da vida besta, é um direito. Direitos se conquistam nos embates e
lutas cotidianas. Se a educação ambiental se ativer a esses (poucos?) princípios, provavelmente poderá ter ainda alguma
coisa a dizer ao mundo. Se não, creio que morrerá heroica e balzaquiana.

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Uma vida potente


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182

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LAPOUJADE, David. Simpatia e conhecimento. Palestra proferida no Instituto Tomie Othake. São Paulo, 18/09/2009.
REIGOTA, Marcos. A Educação Ambiental frente aos desafios contemporâneos. II Congresso Mundial de Educação Ambiental, Rio de Janeiro, 2004.
Disponível em: http://www.ldes.unige.ch/bioEd/2004/pdf/ambiental.pdf
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(Coord. da tradução Ana Lúcia de Oliveira). São Paulo: Editora 34, 2000.

Crédito das imagens


Lourival Cuquinha. Série Varal, 2008. Disponível em: corpocidade.blogspot.com
Fabio Zanin. Lavadeiras Praia do Forte, 2009. Disponível em: fabiozanin.wordpress.com
Campo Florido. Imagem de circulação livre na internet. Disponível em: http://myanimal-home.xanga.com
Valéria Mendonça. Fotografia do espetáculo de dança Primeiro era depois. Pequena Companhia de Dança, 2009.

Como não deixar escapar a vida que nos beija?


DELALEX, Gilles. Do fluxo ao lugar. Nada. Lisboa, n. 11, maio, 2008.
GUIMARÃES, Leandro Belinaso. É possível um território familiar estar ao mesmo tempo estrangeiro? In: SKLIAR, Carlos (Org.). Derrida & Educação.
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OITICICA, Hélio. Entrevista para o Pasquim (com Capinam). In: OITICICA FILHO Cesar; VIEIRA, Ingrid (Orgs.). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco
do Azougue, 2009.

Crédito das imagens


As imagens feitas, especial e gentilmente para esse texto, pela bióloga e educadora ambiental Franciele Favero (franbio@gmail.com).

Normatividade, singularidade e política


BARCHI, Rodrigo. Contribuições inversas, perversas e menores às educações ambientais. Interacções, n. 11, p. 74- 92, 2009.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 32ª edição. Petrópolis: Vozes, 1989.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 48ª reimpressão. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
GALLO, Silvio. Deleuze e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. (Tradução: Maria C. F. Bittencourt). 10ª edição. Campinas: Papirus, 2000.
REIGOTA, Marcos. A floresta e a escola: por uma educação ambiental pós-moderna. 3ª edição. São Paulo: Cortez, 2002.
183

Cotidianos das escolas e fotografias de atividades Estamos nos referindo à pesqui-


1

sa “Currículos realizados nos


cotidianos de escolas públicas

escolares: pistas dos currículos tecidos nas redes das séries iniciais do ensino
fundamental: sobre narrativas
e imagens produzidas com os

de saberes, fazeres e poderes usos, traduções e negociações


como potência para a ampliação
das redes de conhecimentos dos
sujeitos praticantes”, realizada
em escolas municipais públi-
Carlos Eduardo Ferraço cas do estado do Espírito Santo.
Cumpre observar que, a partir
das demandas das instituições
de ensino que participam da
pesquisa, ampliamos nossas
discussões, incluindo algumas
Sobre a nossa proposta de pesquisa com os cotidianos1 e a importância das fotografias turmas de educação infantil e de
das atividades escolares2 como movimentos de tessituras dos currículos 5ª à 8ª série.

A noção de currículo com a qual trabalhamos envolve os diferentes usos que são feitos pelos educadores e pelos
2
As fotografias trazidas no decor-
rer do texto foram cedidas pelos
alunos, sujeitos praticantes3 dos cotidianos escolares (Certeau, 1994), das propostas curriculares oficiais, bem como dos educadores das escolas partici-
demais artefatos culturais escolares4 que, por ventura, existam nas escolas. Assim sendo, não partilhamos da ideia de que pantes da pesquisa.

existe uma dicotomia entre currículo prescrito e currículo vivido, isto é, entre intenção e ação, ou entre política e prática. 3
No decorrer do texto usaremos,
Pelo contrário, entendemos como sendo currículo, ou currículos, os muitos processos que se efetivam nas múltiplas re- como fez Michel de Certeau,
des de saberes, fazeres e poderes (Alves, 2001), tecidas nos diferentes espaçostempos5 vividos por esses sujeitos praticantes, diferentes expressões tais como
praticantes, produtores, poetas,
incluindo, além dos textos escritos das propostas, outros tantos fios que se enredam nessas redes. inventores, consumidores, ato-
res, autores, caçadores, narrado-
res, usuários, etc., para falar de
todos aqueles que, com suas as-
túcias e artimanhas, nos ajudam
a entender o cotidiano como
permanente invenção.

4
Estamos considerando como ar-
Desenhos de alunos do Jardim I sobre o figurino do Congo.
tefatos culturais escolares uma
multiplicidade de atividades, ►
184

Nesse sentido, dentre os inúmeros e diferentes artefatos culturais escolares que são produzidos pelos atores dos ► imagens, narrativas, práti-
cas, materiais, jogos e recursos
cotidianos das escolas, encontramos as fotografias das atividades que são realizadas pelos educadores e alunos, as quais, usados e/ou produzidos pelos
certo modo, além de registrarem fragmentos de diferentes movimentos e momentos das práticas pedagógicas, também sujeitos praticantes dos cotidia-
nos escolares.
ampliam, a nosso ver, as redes de fazeres, saberes e poderes desses inventores à medida que potencializam outros modos
de tecerem os currículos, outras possibilidades de experimentação-problematização de suas redes de conhecimentos. 5
Estética da escrita que aprende-
mos com Nilda Alves (2002),
José de Souza Martins (2008, p. 33), ao analisar as relações de ocultação e revelação entre a fotografia e a vida na tentativa de, ao unirmos de-
cotidiana, observa que terminadas palavras, ampliar
seus significados, inventando
Das formas de expressão visual da realidade social, a fotografia é aquela que ainda procura o seu lugar na outros tantos, buscando romper
sociabilidade contemporânea. Talvez porque tenha sido por muito tempo a mais popular de todas, ao alcance com as marcas que carregamos
de um leque amplo de usuários e instrumentalizada por uma variedade significativa de imaginários. A que da ciência moderna, sobretudo
se deve agregar, em consequência, a diversidade de suas funções: das puramente técnicas às puramente a maneira dicotomizada de ana-
lisar a realidade.
artísticas, passando pelas relativas ao lazer e à memória do homem comum.

De fato, as fotografias que são tiradas nas/das escolas expressam diferentes usos e/ou sentidos dos processos
vividos nas redes cotidianas que, como afirma Martins (2008), “tecem uma história”, para além da ideia de que haveria
um congelamento e/ou uma tentativa de representação do real. Para o autor (2008, p. 36)
A fotografia nutre a sua interpretação por sua contínua remessa ao real, que não se deixa congelar, que não
interrompe o seu fluxo e que, por sua vez, agrega e redefine significações ao que só aparentemente é um
Festa junina realizada com as turmas de
‘congelamento’ de imagem e, nesse sentido, um ‘retrato’ da sociedade em certo momento. (...) A fotografia 1ª à 4ª série.
tece uma história. Revela-se o oposto do ‘congelamento’, entrosa-se dinamicamente nas necessidades do
processo social. É documento da cambiante suposição das personagens. (...) A fotografia se propõe aí como
documento da incerteza e não da certeza.

As operações de uso das fotografias pelos usuários das escolas em meio às tessituras dos currículos, bem como os
modos de marcar, social e politicamente, os desvios nesses usos, constituem, parafraseando Michel de Certeau (1994),
redes de antidisciplinas, expressando diferentes teoriaspráticas que, ao mesmo tempo, criam, fabricam, reproduzem, nego-
ciam, enfim, tecem conhecimentos.

Problematizar, então, em nossas pesquisas, os currículos que são tecidos com as fotografias das atividades esco- Oficina de máscaras realizada com
professoras de 1ª à 4ª série.
lares implica, como propõe Guimarães (2006), buscar caminhos que possibilitem compreender a existência cotidiana
185

sem exigir nossa renúncia diante do que ela nos oferece mas, ao contrário, reconsiderar a necessidade de um retorno
à existência e à linguagem de todo o dia, buscando reavivar o contato com aquilo que, na vida comum, irrigado pelo
fluxo de imagens e narrativas, passa despercebido de tão evidente, ou então só se deixa ver na remissão incessante de
uma imagem à outra, de um texto ao outro, de uma narrativa à outra. Como fala Martins (2008, p. 40), “no detalhe
completamente secundário e quase invisível, a fotografia revela uma rede de relações sociais com sentido”.

Os usos de fotografias e das narrativas em nossas pesquisas com os cotidianos

Nosso mergulho com todos os sentidos6 nos cotidianos das escolas vai, então, em busca da potência dos usos das fo-
tografias associadas às narrativas, produzidas pelos educadores e alunos, considerando que elas estão impregnadas por
Projeto de Educação Ambiental com
marcas culturais, sociais, políticas e econômicas que não são fixas nem definitivas, mas que nos ajudam a entender o turmas de Educação Infantil.
que Certeau (1996) chama de “cultura ordinária”
A cultura ordinária oculta uma diversidade fundamental de situações, interesses e contextos, sob a
repetição aparente dos objetos de que se serve. (...) A cultura ordinária é antes de tudo uma ‘ciência prática 6
Estamos nos referindo a um dos
do singular’. (...) À sua maneira humilde e obstinada, a cultura ordinária elabora então o processo do nosso movimentos propostos por Alves
arsenal de procedimentos científicos e de nossas categorias epistêmicas, pois não cessa de rearticular saber para as pesquisas nos/dos/com
os cotidianos escolares. Nesse
a singular, de remeter um e outro a uma situação concreta particularizante e de selecionar seus próprios sentido, a autora defende: “são
instrumentos de pensamento e suas técnicas de uso em função desses critérios (Certeau, 1996, p. 341). quatro os aspectos que julgo ne-
cessário discutir para começar a
compreender essa complexidade
Nesse sentido, Certeau (1996) nos alerta sobre as limitações a serem enfrentadas nas análises dessa cultura or- (...). A trajetória de um trabalho
dinária. Como observa o autor (1996, p. 341-342) no cotidiano precisa ir além do
Conhecemos mal os tipos de operações em jogo nas práticas ordinárias, seus registros e suas combinações que foi aprendido com as virtu-
alidades da modernidade (...) É
porque nossos instrumentos de análise (...) foram constituídos para outros objetos e com outros objetivos. preciso executar um mergulho
(...) Nossas categorias de saber ainda são muito rústicas e nossos modelos de análise por demais elaborados com todos os sentidos no que de-
para permitir-nos imaginar a incrível abundância inventiva das práticas cotidianas. sejo estudar (...) tenho chamado
esse movimento de o sentimen-
to do mundo (...). Compreender
que o conjunto de teorias (...)
que herdamos [da] modernidade
(...) não é só apoio e orientador da
rota a ser trilhada, mas, também e
cada vez mais, limite ao quepre-
Oficina de bonecos e fantoches com professoras de 1ª à 4ª série. cisa ser tecido. Para nomear ►
186

► esse processo estou usando


Aqui estão registrados os acontecimentos mais importantes da escola. Nós temos o costume de fotografar sempre, já faz parte da a idéia de virar de ponta cabeça
(...). O terceiro deles, incorpo-
rotina. Os álbuns ficam na sala da direção. Nós temos uma verba para pagar a revelação em papel. A máquina foi comprada com
rando a noção de complexidade,
dinheiro de festa. Quando a gente olha essas fotos, como essas aqui, é que a gente se dá conta do tanto de trabalho interessante vai exigir a ampliação do que é
que a gente faz. Eu acho que deveríamos registrar muito mais, porque depois, quando olha, você... às vezes, sente uma emoção entendido como fonte e a dis-
muito grande que não dá para explicar. É muita história junta. Muitos alunos que já saíram da 8ª série, muitas professoras que já cussão sobre os modos de lidar
estão em outras escolas... E até lembranças de colegas que morreram, mas que deixaram seu trabalho registrado para sempre. Eu com a diversidade (...). Creio
acho que isso também faz parte da vida, do trabalho do professor . poder chamar a esse movimen-
to de beber em todas as fontes.
Por fim, (...) assumir que para
(Júlia, professora de 4ª série) comunicar novas preocupações
(...) é indispensável uma nova
maneira de escrever (...). A esse
movimento talvez se pudesse
A narrativa da professora nos remete, mais uma vez, às análises de Martins (2008), especialmente quando o autor chamar de narrar a vida e litera-
turizar a ciência”. (Alves, 2001,
pontua que, diferentemente da fragmentação que se coloca em relação à fotografia tomada de forma isolada, quando p.14-16).
elas são juntadas e, portanto, narram ou sugerem uma história, é inevitável a emoção diante da imagem
Cada um, na vida cotidiana, está exposto à necessidade social de contínua reformulação de suas
referências em relação até mesmo ao conhecido e ao íntimo. O quanto há de estranhamento social nessa
cotidianidade, o quanto não conhecemos até mesmo a quem mais conhecemos. De certa maneira, em
cada despertar temos a demanda sempre renovada de redescobrir as referências sociais, reinventá-las.
O que perdura (...) é a durabilidade da incerteza e a da certeza a respeito das referências sociais, uma
busca sem fim. (...) Nas fotografias, as pessoas fazem supor. Ao mesmo tempo, a fotografia se propõe
como apontamento da memória, e não como memória, como lembrete do que se perdeu no cotidiano, na
banalização, na secundarização de certos acontecidos, e não se quis perder. (...) A fotografia, vista como
conjunto narrativo de histórias, e não como mero fragmento imagético, se propõe como memória dos
dilaceramentos, das rupturas, dos abismos e distanciamentos, como recordação do impossível, do que não
ficou e não retornará. Memória das perdas. Memória desejada e indesejada (Martins, 2008, p. 42-44). Comemoração do Dia da Páscoa com alunos da Educação Infantil.

Nossos mergulhos com todos os sentidos nos cotidianos das escolas (Alves, 2001), isto é, nossas tentativas de
7
À medida que ampliamos nossas
leituras sobre fotografia, ima-
seguir os fluxos (Briggs e Peat, 2000) buscando vivenciar experiências (Larrosa, 2004), nos possibilitaram compreender gem e narrativa e, ainda, à me-
diferentes possibilidades de usos das fotografias associadas às narrativas ou, de modo mais amplo, diferentes relações dida que fomos nos envolvendo
em discussões e vivências nos
estabelecidas pelos narradores entre narrativas e imagens,7 oportunizando-nos perceber não apenas que imagem e narrativa cotidianos das escolas pesquisa-
remetem uma à outra, incessantemente e em processos permanentes (Alves, 2005), mas que esses processos incessantes e per- das, fomos nos dando conta ►
187

manentes se mostram como possibilidade menos estruturada e formal de entendimento dos currículos tecidos nos da possibilidade de, em alguns
momentos, trabalharmos com
cotidianos escolares e, por efeito, como alternativa fértil de invenção na complexidade vivida nas redes tecidas pelos as ideias de narrativas e ima-
autores dos currículos. Em Manguel (2001, p. 27), ampliamos essa ideia gens como sendo ideias mais
amplas que, de certo modo, in-
Quando lemos imagens (...) atribuímos a elas o caráter temporal da narrativa. Ampliamos o que é limitado
cluiriam, em alguns aspectos, as
por uma moldura para um antes e um depois e, por meio da arte de narrar histórias (sejam de amor ou de nossas discussões sobre os usos
ódio), conferimos à imagem imutável uma vida infinita e inesgotável. das fotografias como possibili-
dades de ampliação dos currí-
culos tecidos nos cotidianos das
Guimarães (1977), ao responder a pergunta “O que é uma imagem em literatura?”, também nos ajuda na defesa escolas.
da potência da articulação entre imagem e narrativa na produção e partilha de outras formas de existência no cotidiano. Para
Guimarães (1997, p. 63)
O conjunto de enunciados que formam uma imagem é, antes de tudo, um bloco de sensações, perceptos,
afectos, paisagens e rostos, visões e devires. No trabalho da arte ou da literatura (...) o que se conserva não
é o material – seja o signo linguístico, a pedra ou a cor – o que se conserva em si é o percepto ou o afecto.

Em outro texto, Guimarães (2006) defende que, ao tomarmos as narrativas cotidianas associadas às imagens Oficina de fantasias com professoras de
5ª à 8ª série.
como objeto de estudo, faz-se necessário buscar entendê-las como intervenções que cristalizam pontos de coesão,
mas também como possibilidade de rupturas promotoras de um duplo movimento – de distinção e de constituição de eixos
alternativos de adesão. Ou seja, a despeito de todos os poderes que nos dias de hoje conformam a vida cotidiana, faz-se
necessário investigar a multiplicidade de mundos que nela coexistem, necessitando, para isso, de outra atitude de pesquisa.8 8
Guimarães (2006, p. 11) entende
que “(...) a partir de Certeau,
Para o autor (2006, p. 9) o cotidiano pode tornar-se um
Sem negligenciar a força das estruturas e a presença do poder, mas também sem desconhecer o poder criador ponto de vista ou um lar ao
dos homens e da força instauradora das narrativas e das imagens que elas inventam e experimentam, qual as palavras da vida comum
buscamos outra lógica para conhecer a natureza complexa da vida social – não a da determinação, mas a retornam, vindas do exílio a
que estavam condenadas, seja
da mobilidade.
porque maltratadas corriquei-
ramente, seja porque são desa-
Assim, como propõe Guimarães (2006), lançamo-nos à investigação desse universo de pequenas falas, de imagens, propriadas pelos discursos do
filósofo ou do perito. Assumir
de ruídos que nos dizem do movimento de uma sociedade que, ao falar, se constitui e se reinventa cotidianamente a experiência da vida ordinária
As narrativas constituem o eixo do nosso olhar conhecedor. (...) Com efeito, desde há muito, a vida ordinária, como um ponto de vista implica
comum a todos os homens, tem sofrido menosprezo daqueles estudiosos que nela enxergaram apenas o assumir outra postura quanto ao
conhecimento”.
predomínio da opinião (doxa), guiados por um modelo de conhecimento que exige a ascese e a ascensão do
mundo enganoso das aparências sensíveis rumo ao universo imutável das ideias ou à abstração altaneira
188

dos conceitos (...). A essa perspectiva objetivista opõem-se as sociologias fenomenológicas que ‘pretendem
descortinar, na própria multiplicidade das experiências singulares dos atores e dos agentes, figuras recorrentes
que regulem o sentido das ações e dos discursos da experiência cotidiana (Guimarães, 2006, p. 8-9).

As narrativasimagens nas pesquisas com os cotidianos

Alves (2005) considera necessário discutir algumas críticas feitas ao uso de narrativas e imagens em trabalhos
de pesquisadores preocupados com o cotidiano. Uma dessas críticas refere-se à multiplicidade de sentidos que essas
situações evocam
Nessas pesquisas, ouvir uma narrativa ou olhar uma imagem (como escutar um som) traz, a cada um que
ouve, dentro das redes de conhecimentos e significados a que pertence, a possibilidade de ‘ver’, ‘sentir’,
‘entender’, e ‘ouvir’ coisas muito diferentes. A questão é saber se isso significa, apenas, as dificuldades
de uso desses recursos ou indica a ampliação de possibilidades na análise de uma dada situação, exigindo
que incorporemos, necessariamente, a complexidade e potencialidade que cada acontecimento traz em
si. Os que trabalham com as pesquisas nos/dos/com os cotidianos tendem a adotar essa segunda posição
(Alves, 2005, p. 8).

Assumindo a potência das narrativasimagens como processos intrinsecamente envolvidos na invenção dos currí-
culos, para as pesquisas com os cotidianos escolares, recordamos Benjamin (1987) ao falar a favor da potência que a narra-
tiva contempla de intercambiar experiências. Para o autor (1987, p. 198), “(...) a experiência que passa de pessoa a pessoa é a
fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem
das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”.

Essa oficina de máscaras foi muito interessante não só pelas máscaras que foram feitas, mas pela situação do professor fazer a más-
cara no outro. Quem estava deitado tinha que confiar no outro porque o rosto era tapado com gesso e os buracos no nariz tinham
que ficar abertos. Teve professora que até cochilou. Foi um momento de relaxamento do stress. Quem dera se a gente na escola
tivesse mais momentos como esse, de tranquilidade, de calma e de confiança um no outro. Você perguntou sobre o currículo.
Eu acho que essa oficina de máscaras, por exemplo, também pode ajudar no currículo.Você não diz que currículo é tudo o que
acontece na escola? Então, nesse “tudo” tem coisa que ajuda e coisa que não ajuda. E, pra mim, essa oficina ajudou, e muito.
Oficina de máscaras.
(Ana, professora de 3ª série)
189

Ao tecer considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, Benjamin (1987) nos dá pistas acerca de algumas pe-
9
Walter Benjamin (1987, p. 221)
culiaridades das narrativas e dos narradores. Ao tomar as narrativas como algo que se tece no discurso vivo e que, em seu
afirma: “Na verdadeira narração,
aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz,9 Benjamin (1987, p. 205) destaca as dimensões a mão intervém decisivamente,
com seus gestos, aprendidos
do dom de ouvir e das comunidades dos ouvintes, alertando-nos para a potência da escuta sensível e atenciosa em relação aos
na experiência do trabalho, que
narradores do cotidiano escolar sustentam de cem maneiras o
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo. (...) Quanto mais o ouvinte se esquece de si fluxo do que é dito”.
mesmo, mais profundamente se agrava nele o que é ouvido. (...) Assim, se teceu a rede em que está
guardado o dom narrativo. (...) A narrativa (...) é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal
de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.
Assim, se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.

Também para Azevedo (2003), as narrativas parecem ser a maneira mais adequada de apreensão do cotidiano.
Para ela, narrar o cotidiano escolar significa deixar emergirem as múltiplas redes que o tecem, essas situações em que
a unicidade e o caráter insubstituível dos dados são, aos olhos das pessoas envolvidas, decisivos.
O relato é a língua das operações, abre um teatro de legitimidade para ações efetivas e permite seguir as
etapas da operatividade. (...) De que outra forma se pode captar os saberes tecidos nesse espaço, que (...)
fundam-se sobre sutilezas certamente não-formalizáveis? (Azevedo, 2003, p. 128).

É preciso considerar, ainda, que as narrativasimagens tecem, ao mesmo tempo, diferentes lugares praticados pelos
narradores e diferentes relações de fazeres, saberes e poderes desses narradorespraticantes
É preciso, pois, que incorporemos a ideia que, ao dizer uma história, somos narradores praticantes Alunos recebendo brinquedos doados
na festa do Dia da Criança.
traçando/trançando as redes dos múltiplos relatos que chegaram/chegam até nós, neles inserindo, sempre,
o fio do nosso modo próprio de contar. (...) Narrar histórias é, pois, uma forte experiência humana (Alves
e Garcia, 2002, p.274).

As pesquisas realizadas com os cotidianos, ao tomarem as narrativas associadas às imagens como expressões das
redes tecidas nas escolas, acabam envolvendo os próprios pesquisadores nessas redes. Como fala Alves (2005, p. 8), “(...)
o pesquisador também não tem condição de fugir dessas redes, pois está nelas mergulhado, interpretando o que lê, com
tudo o que tem de encarnado, em si, teorias e conceitos, podendo deixar de ver algo que outro pesquisador veria.”
190

Assim, as narrativas dos atores das escolas pesquisadas a que temos tido acesso têm se revelado muito mais como po-
tencialidades de expressões das relações, dos fluxos, das redes estabelecidas com a nossa presença do que como identificação
e/ou descrição de um fato acontecido tal e qual ocorreu, independente de nós.

Isso significa dizer que, de alguma maneira, nós, na condição de pesquisadores com os cotidianos, estamos en-
volvidos na criação/tessitura das redes de narrativasimagens daqueles momentos, não sendo possível negar que também somos
responsáveis pelos conhecimentos que estamos produzindo sobre as escolas com as nossas pesquisas, o que nos leva
a assumir, com Certeau (1994), a nossa condição de pesquisador praticante, à medida que nos propomos a realizar uma
pesquisa narrando histórias tecidas por outras tantas histórias.

No entanto, mesmo com todo empenho de pesquisadores que se aventuram em decifrar o pergaminho das escolas
com nossas pesquisas, ainda somos nós, alguns poucos, que decidimos que imagens, lembranças, narrativas, sons e silêncios
se tornarão visíveis aos olhos dos nossos leitores. Somos alguns poucos que, ao ousar invadir os cotidianos das escolas,
acabaremos por decidir quais serão as narrativasimagens dos cotidianos escolares a serem impressas nos textos que resul-
tarão de nossas pesquisas. Isso nos leva a ficar sempre atentos aos limites e possibilidades da pesquisa nos/dos/com os
cotidianos.
Pintura no refeitório da escola.

Essa foto é da pintura do refeitório. Nós tivemos a participação de professores, voluntários e amigos. Foi um mutirão. Tivemos
ajuda pra tudo. Comprar tinta, pincéis, fazer os moldes vazados com chapas de Raio X. Como aqui ninguém é artista (risos), a
gente sempre tem que dar um jeito. No final, acaba dando tudo certo. Quem vê depois de pronto não sabe como foi difícil fazer.
Tem que ter alguém pra tomar a iniciativa. Depois de pronto, aproveitamos a pintura nova do refeitório e fizemos uma mostra de
artes. Chamamos a comunidade para inaugurar o refeitório novo e divulgar nosso trabalho.
Recepção dos visitantes da Mostra de
Artes no refeitório da escola.
(Rita, professora do Jardim II)

Sobre a potência das fotografiasimagensnarrativas na pesquisa em currículo

Na realização de nossas pesquisas sobre currículos nos cotidianos das escolas, temos encontrado diferentes si-
Visitação da Mostra de Artes no
tuações que atestam a potência dos usos das fotografias pelos educadores e alunos, como possibilidades de ampliação refeitório da escola.
de suas redes de poderes, saberes e fazeres. De um modo geral, não há um planejamento sistemático que pudesse dizer
191

quando, onde, por que e quem será fotografado. Como defende Martins (2008), “a fotografia não documenta o coti-
diano, ela faz parte do imaginário e cumpre funções de revelação e de ocultação da vida cotidiana.”

Em oposição à ideia de fotografia como ‘congelamento’ de um momento do processo social, a fotografia se


revela aí, justamente, um fator de introdução de um tempo prospectivo das vidas vividas como se estivessem aquém
desse além fragmentariamente real e episódico do vivido, o excepcional, domingueiro e anticotidiano contraponto do
solene e rebuscado. A fotografia, na cotidianidade, é uma das mediações materiais e simbólicas do vivido.

Essa dimensão da fotografia como mediação material e simbólica do vivido vai, aleatoriamente, tecendo redes
invisíveis entre momentos desencontrados, entre sujeitos praticantes dos currículos nas escolas e, nessas tessituras vai
criando fios de vínculos entre imagens e narrativas. As fotografias, ao serem narradas, ganham vida, descolam-se do
cotidiano e vagam em cenários múltiplos, inventados pelos sujeitos. Para captar a especificidade da imagem fotográfica
deve-se abandonar a ideia de que existiria ‘uma’ imagem ‘em si’ (Scheffer, 1996, p. 13. In: Martins, 2008, p.36).
O usuário não profissional da máquina fotográfica, o homem comum, fotografa na intenção de desbanalizar
o banal. A câmera popular se inscreve no cotidiano, usada, porém, para negar esse mesmo cotidiano. (...)
A fotografia evidencia que a concepção de que o cotidiano é simplesmente o repetitivo e o reprodutivo
constitui uma concepção pobre do que ele é (Martins, 2008, p. 48-50).

Nessas tentativas de desbanalização do banal, tendo como referência, mais uma vez, nossas pesquisas nas escolas,
temos encontrado fotos a partir das quais educadores e alunos evidenciam narrativasimagens com indícios que fortale-
cem relações de afeto, solidariedade, consideração, companheirismo, poesia...

Assim, ao retomarmos algumas dessas fotografias, vamos produzindo pistas que atestam que as redes de pode-
resfazeressaberes tecidas nas escolas, para muito além das análises que destacam, nessas redes, práticas de exclusão e de
submissão, potencializam inúmeros movimentos que produzem relações de trocas e que, de certo modo, ampliam as
possibilidades de vida desses praticantes.
192

Eu vejo escola como um lugar de formação de valores de amizade, de coleguismo, de trocas. Se você não puder contar com os Atividades realizadas em processos de
formação continuada.
colegas, a coisa fica difícil porque todo mundo tem alguma dúvida. Até os mais experientes estão perdidos, sem saber o que fazer.
Então, se você não juntar forças, não unir pra tentar resolver as situações, se cada um fica tentando resolver sozinho, não há cres-
cimento, nem dos professores nem dos alunos. Nós temos casos de alunos assistidos pela justiça, alunos que já cometeram crimes
e que ameaçam os professores. Se você não se junta com os colegas, não partilha sua dor, sua angústia, não consegue sobreviver.

(Penha, professora de Geografia)

Nessa escola o clima de trabalho é solidário. Mesmo com toda a pressão da sociedade hoje, tentando desqualificar a escola, a gente
aqui se une e consegue resistir, um dando força pro outro. Dividimos experiências, tristezas e alegrias. Um traz sugestão de ativi-
dades para o colega que precisa, dá conselhos de como agir com aquele aluno que usa drogas e vem pra sala fazer bagunça, coisas
que se você não dividir, você desiste ou adoece. E não adianta esperar do sistema porque nem eles sabem o que fazer.

(Marta, professora de Português)

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PAIS, José Machado; CARVALHO, Clara; GUSMÃO, Neusa Mendes de. (Org.). O visual e o cotidiano. Lisboa: ICS, 2008.
193

Apontamentos sobre fotografias na pesquisa em


terreiros de candomblé

Stela Guedes Caputo

Acendemos paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre chuva, entre o voo da
nuvem e a prisão do charco. Afinal, somos caçadores que a si mesmo se azagaiam. No arremesso
certeiro vai sempre um pouco de quem dispara.
Mia Couto

Toda festa de Xangô é a mesma coisa. Eu me movo entre as pessoas no barracão do Ilê Omo Oya Legi,1 que é
grande, mas em dia de festa, de tão cheio fica pequeno. Procuro o melhor lugar, decido pela lente, encaixo, enquadro, 1
Terreiro de Palmira de Ian-
foco, calculo a luz e disparo. Difícil fotografar o vento incendiado. A foto tenta vir, escapar das engrenagens e revelar sã, em Mesquita, na Baixada
Fluminense.
o que pode. Limites. Traz artefatos vermelhos, uma coroa dourada, o machado do rei, mas o rei não está ali. Reduzo a
velocidade, o rei dança, quase me desafia, imagino arrogante, como se em algum momento, para existir, o rei precisasse
ser imagem. Não precisa. Naquele momento, para os candomblecistas, ele existe independente do meu aparato tecno-
lógico. Reduzo a velocidade, quem sabe aumentando o tempo de exposição, o movimento se inscreva mais lentamente
no filme quase extinto da minha analógica ou no vazio incorpóreo da minha digital.Talvez deixe ali vestígios da dança
do rei. Seu pé se desmancha no ar, evapora, desaparece. Xangô escapa mais uma vez.

Pesquiso crianças em terreiros de candomblé, na Baixada Fluminense, há quase vinte anos. Desde o início, olhei
com e pela máquina fotográfica, um olho novo para surpreender meu olho acostumado. Com esse olho novo tento,
entre outras coisas, “capturar” Xangô numa caixinha escura. O trabalho que ando fazendo tem duas escritas. Uma delas
194

é mesmo como se conhece o ato de escrever. No meu caso, selecionando elementos dos cadernos de campo, libertando
falas de entrevistas aprisionadas no gravador e pensando tudo junto com o referencial teórico escolhido. A outra escrita
é feita com luz, já que, como explica Barthes (1984), em latim “fotografia” se diria: “imago lucis opera expressa”; ou
seja: imagem revelada, tirada, espremida por ação da luz. Do imenso material sempre crescente em anotações, gravações
e fotografias, seleciono partes menores. Reflexões parciais e temporárias como essa.

Sou eu quem faço a maioria das fotos. Mas há também outras que outros fotógrafos fizeram e algumas que
foram cedidas pelas famílias das crianças dos terreiros. Todas autorizadas pelos responsáveis e pelas crianças. Preciso
dizer também que minha intenção ao utilizar as fotografias de crianças de terreiros de maneira alguma passa pela ideia
de promover um espetáculo. Uso as fotos porque meu texto sem elas seria mais solitário. Além disso, por mais que
me esforce em escrever, há situações que só a fotografia consegue provocar (quando a faço, quando a estudo, quando
a exponho, quando a discuto). Concordo com o fotógrafo Arthur Omar (1997) para quem “Há coisas que só podem ser
vistas e produzidas em situação de ato fotográfico, ou seja, através da existência da câmera.” Meu olho acostumado, despido e
sozinho não daria conta de partilhar o que vi, vejo e interpreto ao longo desses anos. Foi com a máquina e através das
fotos que, espero, tenha trazido eticamente, algo do processo como eu o percebi e continuo percebendo. Como outros
e outras perceberam e me apontaram.

A fotografia, portanto, foi e continua sendo fundamental nesta pesquisa. Através dela lancei várias vezes uma
espécie de rede luminosa aos mares e aos rios abertos pelo candomblé. Como pescadora fotográfica, trouxe rostos de
crianças, adolescentes e adultos ampliados, com seus gestos, risos, olhares, roupas e artefatos religiosos. Lancei minha
rede iluminada na vã esperança de fixar o que tentava pescar. Não fixei, não se deixaram fixar. Todos ainda se movi-
mentam na tensão do espaço fotográfico com sua ilusão estática.

É que não sei fazer diferente. De tanto escrever fotografando e fotografar escrevendo, ao longo dessa pesquisa,
já não se separam em mim o olhar de fotógrafa e de pesquisadora. Um está impregnado do outro e seguem tecendo
uma narrativa única, corpo inseparável, misto complexo de letras e luz.

Nos limites desse pequeno capítulo, pretendo o simples: trazer algumas experiências fotográficas na pesquisa
em terreiros. E, se vamos falar de fotografias no candomblé, é preciso levar em consideração como praticantes do can-
domblé olham para a fotografia. Também esse olhar é complexo, principalmente se não esquecermos que essa religião
195

é cercada de awo (segredos). A situação ficou ainda mais complicada depois que o fotógrafo José Medeiros e o repórter
Arlindo Silva publicaram, em setembro de 1951, a longa reportagem intitulada “As noivas dos Deuses sanguinários”,
2
A revista O Cruzeiro foi uma pu-
na revista O Cruzeiro.2 Ali, foram publicadas trinta e oito fotos em preto e branco do ritual de iniciação de três fi- blicação dos Diários Associa-
lhas-de-santo do terreiro de Mãe Riso da Plataforma, em Salvador. A repercussão das fotos foi devastadora no meio dos, empresa de Assis Chateu-
briand, fundada em 1928.
religioso justamente porque a maioria dos adeptos, principalmente naquela época, considerava a fotografia dos rituais
uma profanação ao sagrado e um risco para os segredos do culto.

De lá para cá muita coisa mudou, mas o posicionamento em relação à fotografia por parte das lideranças do
candomblé não é unânime nos dias atuais. Muitas continuam entendendo a fotografia como um elemento de invasão
e destruição. Outros e outras, como uma aliada na luta contra a discriminação de cultos afrodescendentes.

O que posso dizer é que me sinto privilegiada desde o dia em que fiz o primeiro “clic” em um terreiro. Na
pesquisa, aprendo cotidianamente sobre o próprio e imenso tema, sobre imagens, sobre ética, sobre metodologia. A
fotografia ensina sempre e de múltiplas formas. Aprendemos, inclusive, quando erramos e quando achamos que os
outros erram. É sobre quase todas essas questões que seguiremos conversando.

Sobre autorizações e ética

Como a pesquisa que desenvolvo é sobre crianças e adolescentes em candomblé, evidente está que faço e ex-
ponho muitas fotos de crianças e jovens. Tenho sido questionada a esse respeito por vários professores e pesquisadores.
Entre elas, destaco que talvez a primeira tenha sido a professora Sônia Kramer. Preocupada há muito em suas pesquisas
com a exposição tanto de nomes verdadeiros como de imagens de crianças, Kramer (2002) discute o problema em
“Autoria e Autorização: questões éticas na pesquisa com crianças”. Em seu texto, a autora se pergunta, por exemplo,
se os nomes verdadeiros das crianças observadas e entrevistadas devem ou não ser explicitados na apresentação da
pesquisa. No caso de fotografias e vídeos, Kramer indaga se a autorização dada pelos adultos, em geral, seus pais, seria
suficiente
Aparentemente, parecia simples responder a cada uma das indagações. No entanto, aspectos polêmicos
emergem. Quando trabalhamos com um referencial teórico que concebe a infância como categoria
social e entende as crianças como cidadãos, sujeitos da história, pessoas que produzem cultura, a ideia
central é a de que as crianças são autoras, mas sabemos que precisam de cuidado e atenção. Elas gostam
196

de aparecer, de ser reconhecidas, mas é correto expô-las? Queremos que a pesquisa dê retorno para a
intervenção, porém isso pode ter consequências e colocar as crianças em risco. Outras vezes, elas já estão
em risco e não denunciar as instituições ou os profissionais pelo sofrimento imposto às crianças nos
torna cúmplices!Nesse sentido, as respostas ou decisões do pesquisador podem não ser tão fáceis como
pareceria à primeira vista (Kramer, 2002, p.42).

Mais que discutir a forma como as crianças serão expostas nas pesquisas, Kramer discute o modo como o
pesquisador lida com a criança observada e entrevistada. Para a autora, a pesquisa fornece estratégias e procedimentos
metodológicos, influenciando estudos do cotidiano escolar, da prática pedagógica e das interações entre crianças e
adultos. De acordo com Kramer, a infância é hoje um campo temático de natureza interdisciplinar (sociologia, história,
antropologia) e essa visão se difunde cada vez mais entre aqueles que pensam a criança, atuam com ela, desenvolvem
pesquisa e implementam políticas públicas.

Acompanhando várias dissertações de mestrado, teses de doutorado, além de monografias que apresentavam
pesquisas com crianças numa abordagem qualitativa, obviamente na narrativa surge a necessidade de que os sujeitos
apareçam nomeados. De imediato, diz Kramer, alternativas como usar números, mencionar as crianças pelas iniciais
foram rejeitadas, já que essa via negava sua condição de sujeitos, desconsiderava sua identidade e simplesmente apagava
quem eram e as relegava a um anonimato incoerente com o referencial teórico que orientava a pesquisa.

Por outro lado, como identificar as crianças que estudavam na única escola da região se os seus depoimentos
traziam muitas críticas à escola, às professoras, às famílias? A avaliação da autora é que, nesse caso, as crianças passariam
a correr riscos. Kramer cita a solução encontrada por alguns pesquisadores. Algebaile (1995) decidiu omitir o nome
da escola e tratar as crianças pelo primeiro nome apenas. Em outros contextos, o caminho utilizado foi pedir para que
as crianças escolhessem nomes com que queriam aparecer na versão oficial do trabalho. No trabalho de Leite (1995),
as crianças escolhem heróis ou ídolos (Bruce Lee,Van Damme, Daniela Mercury). Já na pesquisa de Sá Earp (1996) as
crianças optaram por nomes de jogadores de futebol famosos na época (Sávio, Romário, Túlio, Ronaldinho). No caso
das fotografias de crianças, a pesquisadora interroga
Quem autoriza a participação, o nome, a gravação? Quem autoriza a utilização de fotografias? Sabemos
que é o adulto, e concordamos que é necessário que assim seja mais uma vez para proteger as crianças,
para evitar que suas imagens sejam exploradas, mal-usadas. Mas se a autorização quem dá é o adulto, e
197

não a criança, cabe indagar mais uma vez: ela é sujeito da pesquisa? Autoria se relaciona à autorização,
à autoridade e à autonomia. Pergunto: como proteger e ao mesmo tempo garantir autorização? Como
resolver esse impasse? (no mesmo livro citado, p. 53).

Não há uma resposta absoluta no texto de Kramer. Ele mesmo não se propõe a isso. Há preocupações muito
importantes e fundamentais da autora com o uso abusivo, indiscriminado e generalizado de imagens de crianças. Isso
diz respeito a todos nós que utilizamos fotografia em pesquisa. “Estaremos agindo como se a pesquisa tivesse um patamar
mais elevado que o cotidiano e não devesse haver regulamentação dessa questão?” pergunta Kramer, que também sugere: “Para
além da dicotomia entre a dimensão jurídica e a censura às imagens contraposta à exposição das crianças e jovens em função da
pesquisa, talvez seja preciso definir princípios éticos que ajudem a enfrentar o uso indevido e leviano da imagem em práticas que por
vezes parecem movidas pela ideia de que o show deve continuar.” (�no mesmo livro citado, p.54).

As preocupações de Kramer estarão em quase todas as situações que discutiremos aqui, mas peço especial aten-
ção ao caso que narrarei agora.

O crime do Bispo Macedo e do jornal O Dia


3
Ogan é um cargo muito impor-
tante nos terreiros. Entre outras
O primeiro contato que tive com o tema que mais tarde se tornaria minha pesquisa foi na noite de 13 de funções, ele toca para que os
outubro de 1992. Eu era repórter do jornal O Dia e tinha como pauta mapear os terreiros da Baixada Fluminense. Orixás venham ao terreiro.

Interessava ao editor saber quantos terreiros existiam na região e o que faziam. Ao chegar ao terreiro de Mãe Palmira,
vi um menino no fundo do barracão. Era Ricardo Nery, de 4 anos, ogan3 do terreiro que eu visitava.

Publicamos a reportagem de página inteira respeitando todos os acordos firmados para a veiculação das ima-
gens. A matéria agradou a toda comunidade do terreiro e teve repercussão extremamente positiva entre os praticantes
de candomblé.

Ocorre que jornalistas e fotógrafos, assim como todo trabalhador no capitalismo, dispõe apenas de sua força
de trabalho e não tem controle de seu produto final. Quando fazem suas reportagens em uma empresa jornalística,
texto e fotos pertencem aos proprietários do jornal. No caso do jornal “O Dia”, pertencem aos donos do jornal e são
negociadas pela “Agência O Dia”. Não importa ao dono do jornal que o jornalista e o fotógrafo tenham sido extre-
198

mamente éticos para conseguir a confiança de suas fontes. Qualquer pessoa pode comprar essas fotos e usá-las para
qualquer fim. Foi o que aconteceu em 1993 quando a editora Gráfica Universal, do Grupo Universal do Reino de
Deus, comprou as fotos da matéria que fiz para “O Dia” e publicou no jornal Folha Universal matéria com o título
“Filhos do Demônio”.

Milhares de jornais com as fotos de Ricardo Nery, Paula dos Santos e Tauana dos Santos foram espalhados pela
Baixada Fluminense e outras regiões do estado do Rio de Janeiro. Três anos depois, a mesma editora lança a 13ª edição
(1996) do livro “Orixás, Caboclos e Guias – Deuses ou Demônios?”, escrito pelo Bispo Edir Macedo. Na tiragem de cin-
quenta mil exemplares, outra vez a reprodução das fotos da reportagem que fiz: Paula e Ricardo aparecem agora sob a
seguinte legenda: “Essas crianças, por terem sido envolvidas com os Orixás, certamente não terão boas notas na escola e serão filhos
problemas na adolescência.” (Macedo, 1996, p. 50). A capa dessa edição ainda comemora 2 milhões de exemplares vendidos.

Durante as entrevistas realizadas em 1996, Paula afirmou que se sentiu bastante discriminada com a publicação
tanto do jornal como do livro. Ricardo também contou que se sentiu discriminado, principalmente depois da publi-
cação do livro. “Depois do livro parece que todo mundo que me via sentia raiva por causa da minha religião.”

Esse episódio revela que as preocupações apontadas por Kramer, e sobre as quais discutimos ainda há pouco,
não passam, nem de longe, pelas cabeças de empresas jornalísticas. As fotos e entrevistas em uma reportagem fazem
parte de toda uma relação de confiança conquistada e estabelecida pelo jornalista e pelo fotógrafo. Nesse caso especifi-
camente, tanto a Yalorixá (a Mãe de Santo) Palmira Ferreira Navarro, avó de Ricardo, como as outras mães de meninos
e meninas que entrevistei confiaram em mim porque expliquei exatamente as intenções de meu trabalho e cumpri
todos os acordos firmados.

As entrevistas são instrumentos fundamentais para jornalistas e pesquisadores. Deixar os objetivos e circunstân-
cias de seu trabalho absolutamente claros para os entrevistados é obrigação ética de ambos. É por isso que, para mim,
deveria se configurar como crime, o fato de uma agência de notícias vender as mesmas fotos para fins tão diferentes
daqueles em que as imagens foram geradas. Na ocasião, tanto eu como o fotógrafo, nos colocamos à disposição das
famílias dos terreiros para as medidas jurídicas necessárias. Não houve, em função desse lamentável ocorrido, nenhum
constrangimento à minha presença no campo, justamente pela relação de confiança e transparência estabelecida du-
rante todo esse tempo.
199

O campo e suas leis

Até o dia 12 de dezembro de 2004, os cultos que eu fotografava eram apenas de Orixá, esses que a gente co-
nhece mais: Iansã, Oxum, Xangô, considerados energias que “baixam” em um praticante do candomblé. A relação
construída com Mãe Palmira ao longo desses anos cresceu em afeto e também em confiança. Aos poucos, os espaços de
sua casa foram sendo abertos para mim e para minha velha Canon AE-1. O processo passou a acontecer mais ou menos
assim: fotografo qualquer ritual, das festas em terreiros aos rituais de oferendas, mas só publico o que é autorizado por
ela. Obedeço sem discutir a qualquer determinação sua sobre isso e agradeço.

Em relação às crianças, minha prática tem sido pedir autorização dos pais ou responsável e da própria criança
ou adolescente. Nenhum problema até a manhã do dia 31 de julho de 2005, justamente a manhã que encerrava a pri-
meira festa de egun que eu presenciara. Os eguns são diferentes dos Orixás. São os mortos importantes para a família
que voltam para dançar no terreiro sob uma roupa sagrada (opá) e especialmente adornada. Se os cultos de Orixás são
cercados por segredos, os cultos de eguns são praticamente impenetráveis.

Nessa madrugada, encontrei Laelson dos Santos, o chefe do único terreiro de egun observado em minha pes-
quisa, localizado em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Ele é avô de Felipe, um importante sacerdote do culto
desde os cinco anos, um menino que já fotografei e entrevistei diversas vezes para a pesquisa. Quando fui apresentada
a esse chefe do terreiro, na frente de todos, ele disse que não gostara nada das fotos que publiquei na tese. Eu expliquei
que elas haviam sido feitas com autorização dos pais e da própria criança. Daí veio a lição:“O responsável espiritual de Felipe
não é o pai dele, não é a mãe dele, não é ele. O responsável espiritual de Felipe sou eu e você não falou comigo.” Os pais de Felipe me
defenderam, mas a lição já estava dada. Nesse caso específico, julguei suficientes para autorizações de fotografias de crian-
ças, regras de fora do culto. O culto e suas regras, no entanto, são muito mais complexos, sobretudo, o culto aos eguns.

Além disso, eu mesma deixei de levar em conta que o posicionamento em relação à fotografia por parte das
lideranças do candomblé não é unânime. Como disse anteriormente, muitos entendem a fotografia como um elemen-
to de invasão, destruição e profanação do sagrado. É assim que o líder deste terreiro pensa. Já a Mãe de Santo Palmira
de Iansã, que citei anteriormente, respeita os segredos do culto, mas vê a fotografia como uma aliada na luta contra a
discriminação dos cultos.
200

No ano seguinte, já conversando com esse grande sacerdote, ele me revelaria que também não tinha gostado
de não estar nas fotos com o neto querido (na época das fotos que causaram a polêmica ele estava na Bahia). A partir
dessa experiência, concluí que um pesquisador precisa estar atento a muitas coisas quando trabalha com imagens. Nós
não levamos nossas próprias regras ao campo, elas são feitas em conjunto com ele, respeitando as especificidades dele.
Há coisas que são sagradas para o campo e é com elas que precisamos saber lidar. A outra coisa é que o campo da pes-
quisa é atravessado por subjetividades infinitas: ciúmes, invejas, rancores, amores, enfim, toda sorte de sentimentos que
tecem os seres humanos.

Oxum de óculos?

A melhor parte de fotografar terreiros é, certamente, discuti-las com os sujeitos da pesquisa. Pouco antes da
defesa da tese, levei a última versão, já impressa, com as fotos e legendas. Era uma gostosa tarde na Baixada Fluminense,
fazia um sol especial e estávamos no pátio do terreiro de Mãe Palmira. Em roda, eu e mais umas dez pessoas do culto,
olhávamos, comentávamos e ríamos das fotos. Foi quando Jucemar, um muito querido filho de santo daquela casa,
me perguntou espantado: “Stela, você já viu Oxum de óculos?” e eu disse: “Como assim?” A explicação é a seguinte:
Jucemar estava olhando a foto de Leuziane, uma filha de Oxum. Na legenda, eu havia escrito: “Oxum, em Leuziane.”
Mas a filha de santo estava de óculos, portanto, já que Orixás não usam óculos, ainda era Leuziane de Oxum, mas não
Oxum em Leuziane. Rimos muito e está claro que o valor dessa experiência vai além da mudança que tive de fazer
na legenda dessa foto.

Mudanças no campo da pesquisa

Nos terreiros, as crianças e adolescentes sentem orgulho de sua fé, são tratadas com respeito, recebem cargos
como os adultos na hierarquia do culto e aprendem, entre outras coisas, um vocabulário imenso em yorubá. Já na es-
cola eles escondem a fé e inventam formas de invizibilização para não serem discriminadas. No início da pesquisa, as
irmãs Tauana e Tainara inventaram nomes fictícios para serem identificadas na tese. Já nas fotos, optaram por não serem
fotografadas “a caráter”, ou seja, com as roupas do culto. Porém, ao receberem a tese para que tomassem conhecimento
do conjunto da pesquisa e do espaço onde foram inseridas, se depararam com inúmeras outras crianças e adolescentes
fotografadas “a caráter”.
201

Houve então uma mudança no comportamento das meninas que, de alguma forma, se sentiram excluídas do
grupo a que pertenciam. Elas me ligaram e pediram que eu as fotografasse de novo e, dessa vez, não tiveram vergonha
de usar suas roupas e colares de santo, marcas de suas identidades. Também participaram da defesa da tese vestidas “a
caráter”, mas só mudaram de roupa já na PUC.

As mudanças não pararam por aí. No dia 21 de setembro de 2008, durante a passeata pela liberdade religiosa,
encontrei as irmãs Tauana e Tainara felizes, cantando músicas de terreiro, panfletando e defendendo, ao lado de milhares
de pessoas, o direito e o orgulho de serem filhas do candomblé. Na passeata de 2009 nos encontramos mais uma vez.

Novas tecnologias, novas reações nos terreiros do Rio e Maranhão

No terreiro de Mãe Palmira, a máquina fotográfica, como artefato tecnológico, nunca havia causado grandes
reações, a não ser em Beatriz e Lucas. Quando os conheci, eles eram crianças e logo se colocaram no papel de assistentes
de fotografia e, digamos, de direção de arte. Gostavam de carregar a câmera, de ajudar a trocar os filmes, mas também
de dizer o melhor lugar para ficar ou o Orixá que, na avaliação deles, era o mais importante para ser fotografado.

Em recente visita a esse terreiro, notei algumas mudanças no olhar das crianças para a máquina fotográfica. A
primeira me foi revelada por Beatriz que, hoje já adolescente, me disse: “Essa máquina que você tem agora é bem me-
lhor que a outra. A gente não precisa mais sair correndo atrás de filme porque o seu acabou e nem você precisa mais
economizar filme nem pilhas. Nesse cartão de memória cabem muitas fotos”, avaliou.

Beatriz se referia às diversas vezes em que me viu desesperada porque o filme da máquina analógica acabava e
saíamos juntos pelo bairro, eu, ela e Lucas, atrás de filmes ou pilhas novas. Se era madrugada, não podíamos fazer nada a
não ser lamentar. Isso fez com que, em festas posteriores, o próprio Lucas passasse a me orientar mais especificamente:
“Não fotografe esse Orixá, guarde o filme porque o mais bonito vai chegar mais tarde e se você não tiver filme não
vai fazer a foto.” Eu nunca me arrependi de seguir as orientações de meus diretores de arte e fotografia.

No mesmo dia em que Beatriz fez sua avaliação sobre a nova máquina no terreiro, notei outra mudança. Luana
Navarro, nove anos, neta da Mãe de Santo, me pediu para sair fotografando. Depois de colocar a máquina em seu pescoço
e de algumas poucas orientações, a menina saiu fazendo suas imagens. Foi a primeira vez que uma criança no terreiro
202

me pediu para fazer as fotos. Não pensei muito no assunto até chegar, no dia 22 de novembro de 2009, no terreiro de pai
Euclides, no Cruzeiro do Anil, em São Luiz do Maranhão.

Eram seis crianças: Ayrton, cinco anos;Williame, nove;Yan, sete; Ana Luiza, sete;Washington, onze e Wellington
dez anos. Todas, eufóricas, disputavam a chance de fotografar o terreiro. Queriam saber em detalhes porque as lentes
precisavam ser trocadas e se maravilhavam quando viam a explicação na prática. “Meu olho estica, eu vejo tudo com
essa, como é… grande angular?” – surpreendia-se Yan. “Como é que o mesmo botão que dispara a foto dispara o flash
ao mesmo tempo?” – queria saber Wellington. O tumulto era grande, ninguém esperava pacientemente a sua vez e
brigavam. Eram seis crianças e apenas uma máquina, mas todos fotografaram bastante e de tudo: artefatos religiosos,
parentes e amigos que circulavam no quintal, as pinturas com símbolos religiosos nas paredes, as plantas, árvores e céu.
Mas, sem dúvida, o mais fotografado era o chefe do terreiro: pai Euclides, ou vô Euclides, para algumas. “Somos os pa-
parazzi do vô Euclides”, disse Ana Luiza. E claro, o chefe do terreiro fugia, causando imensa alegria a quem conseguia
“capturá-lo na imagem”, quando ele se distraía e não percebia a chegada do ousado(a) fotógrafo(a).

Seguimos assim durante todo o dia e parte da noite. Eu falava sobre coisas de fotografia, as crianças falavam
coisas do terreiro. Ao final da experiência fotográfica, perguntei às crianças do que elas mais gostaram. Williame disse
que foi da troca de lentes. “Foi a primeira vez que peguei em uma máquina. A gente fica com o olho diferente, tipo
um olho de fotografia mesmo”, contou. “Eu gostei da latinha de lixo”, disse Ana Luiza, referindo-se ao fato de poder
“jogar fora” de imediato, as fotos que, na sua avaliação, não ficaram boas.

Todos esses depoimentos foram desenhando em mim a chave para poder entender as mudanças da relação das
crianças com a máquina fotográfica que começara a notar na última visita ao terreiro de Mãe Palmira. O depoimento
de Ayrton, de cinco anos, completou o desenho da chave: “Eu gostei porque a máquina que tem lá em casa é uma
máquina velha. As pessoas e tudo ficam presas lá dentro e nessa nova que você trouxe tudo que ficou preso olha dessa
janelinha”, revelou.

Ele se referia ao visor da digital. A minha velha e analógica Canon, com filmes, deixava as pessoas e “tudo
aprisionado”. O artefato tecnológico despertava o interesse de poucas crianças na pesquisa. Diferente era o dia em que
eu voltava ao terreiro com as imagens reveladas, aí sim, uma roda se formava e todos se reuniam para discutir o que
apenas eu fotografava.
203

Minha câmera nova é uma digital, Canon 40D, com um bom visor. Nele podemos ver imediatamente o que
fizemos. O fato de poder ver na hora a imagem fotográfica e o resultado da troca de lentes, do uso do flash, do ângulo
escolhido e de poder jogar tudo fora se não gostarmos e gravar o que escolhemos, modificou completamente o com-
portamento das crianças fotografadas, pelo menos no campo da pesquisa que faço. Antes, o interesse era apenas pela
imagem trazida ao terreiro. Parece que agora o interesse pela própria câmera aumentou muito. Mais que orientar o
que devo fotografar, as crianças, apropriando-se desse artefato, querem, elas mesmas, fotografar.

Julguei interessante outro detalhe quando pensei relacionalmente sobre as crianças dos terreiros em que pes-
quiso, na Baixada Fluminense, e essas que conheci no terreiro do Maranhão. Na baixada, as crianças sempre me dizem
“gostar de brincar de macumba”. A brincadeira é um pouco reprimida pelos adultos seja porque, em certos casos,
pode ser considerada uma ofensa ao culto, seja porque onera o orçamento das famílias, já que os baldes da casa viram
atabaques e, frequentemente, terminam destruídos na transgressão. No Maranhão, assim que cheguei, depois de entre-
vistar o chefe do terreiro, perguntei pelas crianças da casa e ouvi que elas estavam “lá atrás”. Esse espaço é um imenso
terreno atrás da construção do terreiro propriamente dito. Quando cheguei ao local, lá estavam elas “brincando de
macumba”.

Documentos, movimentos, passagens, presentes, poesia

Tenho pensado as fotografias no tecido da minha pesquisa e só aqui posso pensá-las. O que elas significam nesse
espaço? Como vão compondo esta narrativa, talvez representem documentos, mas não documentos fixos e definitivos.
As vejo mais como documentos móveis, de passagens. Na verdade, essas imagens são movimentos. Com elas vejo as
crianças crescendo nos processos de suas próprias vidas. As imagens também registram as mudanças de opinião das
próprias crianças. Às vezes querem ser fotografadas com as roupas do culto, às vezes não. Revelam tensões. Serão usadas
para defender seu direito à própria cultura e, numa utilização criminosa, utilizadas para discriminar. De toda forma,
proporcionando discussões necessárias ao jornalismo e à pesquisa.

Falando em movimentos, gostaria de mencionar mais um. Em 1993, quando cheguei ao terreiro de Palmira de
Iansã, não cheguei sozinha. Éramos uma equipe formada da jornalista (no caso, eu mesma), do motorista e do fotógrafo,
cujo nome manterei em sigilo. Como disse, fizemos a reportagem sobre as crianças de candomblé e publicamos suas
204

imagens, respeitando os acordos formalizados com elas mesmas e suas famílias. Lembro também que, na minha opinião,
de forma criminosa, o jornal O Dia vendeu as mesmas imagens ao Bispo Edir Macedo que as publicou no seu jornal
“Folha Universal” e, posteriormente, em um livro. Nas duas publicações as crianças foram discriminadas.Também disse
que, tanto eu como o fotógrafo nos colocamos ao lado das famílias, inclusive, nos disponibilizando para testemunhar
contra Macedo e contra o jornal.

Recentemente, em função da possibilidade de minha tese de doutorado ser publicada, entrei em contato com o
fotógrafo, meu ex-companheiro de trabalho, para que ele autorizasse a publicação. Qual não foi minha surpresa quando
ele não só se recusou a assinar a liberação das fotos como, por ter se convertido ao protestantismo, disse também que
o Bispo Macedo estava certo naquela época e nós, errados.

Fui obrigada a eu mesma cair em contradição e explico: acho absurdo que as fotos pertençam ao jornal, mas
pertencem. Do ponto de vista jurídico, para que eu possa publicá-las, é da agência “O Dia” que devo comprá-las, como
comprei. Na minha opinião, as fotos foram feitas em uma determinada circunstância e é com as crianças fotografadas e
com essas circunstâncias que temos o compromisso que ainda hoje vigora, quase vinte anos depois. Mudou a religião
do fotógrafo e não a religião das crianças. As imagens, para mim, não são do fotógrafo, tampouco da agência de qual-
quer jornal. As imagens, nesse caso, são dos fotografados e só eles e elas devem autorizar sua publicação.

Disse que as fotos têm sido para mim documentos móveis, passagens e movimentos. Mas elas são muito mais.
São presentes da relação fotográfica que recebo quando deveria apenas fotografar. Quero deixar aqui três desses pre-
sentes antes de terminar. No Maranhão, logo depois de fazer as fotos das crianças “brincando de macumba”, pedi para
fazer uma foto do grupo, em frente a um bambuzal. A primeira foto foi essa:

Sei lá porque, ao serem colocadas em grupo para uma pose fotográfica, três delas levaram a mão ao peito, como
se estivessem perfiladas para cantar o hino nacional. Explicaram: “na escola a gente só faz foto no feriado do dia da
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pátria”, disse Willame, e todos concordaram. Quando eu ri e disse que não era necessário, a foto seguinte foi essa:

Antes de me despedir desse terreiro, Ana Luiza pediu para me fotografar e escolheu o lugar: em frente a Irôko,
uma árvore sagrada, um Orixá. Quando me mostrou o resultado, vi que ela havia cortado metade do meu corpo e
repreendi: “você enquadrou errado Ana Luiza, as pessoas não podem sair cortadas na foto”. E a menina respondeu:
“Não errei não! Eu quis fazer assim, metade você, metade Irôko.”

Não há como não concordar com Tassinari (2008), para quem “Nada é tão parecido com o mundo e nada é
também tão assemelhado a uma poesia do mundo, insuspeita, súbita e que só o clique do fotógrafo é dado captar”.
Presentes…

Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1985.
KRAMER, Sônia. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cadernos de Pesquisa, n.116, julho, 2002.
MAMMI, Lorenzo e SCHWARCZ, Lilia M. (ORG). Fotografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.
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Imagens da juventude no corpo da escola e da


cidade juvenil
Aldo Victorio Filho

“a cidade produz um sentido, uma significação nomeada e apropriada por cada sujeito a partir de
um conjunto de imagens que ele acumula: um repertório de signos urbanos.

Não se faz isso sem o corpo, não se faz isso sem movimento, sem experimentação. São os jovens que
aparecem, mais do que outro personagem urbano, perceber o caráter imagético da existência da cidade
e do corpo...”
Diógenes (2003, p. 134 )

Apresentação

Refletir sobre as relações e acontecimentos juvenis é tão urgente quanto desafiador. Urgente, pois cabe enten-
der minimamente esses meninos e meninas aos quais mais que legamos, partilhamos o mundo, na medida em que o
que desejamos deste depende do que fazemos daqueles. Desafiador, porquanto a juventude e seus sujeitos se reinventam
numa dinâmica inesperada e pouco compreensível por meio das indolentes perspectivas habituais. Os investimentos
conceituais a respeito da juventude, jovens, juvenilidade e afins já atingiram um número notável de obras sem concluir
uma categorização de utilidade universal ou absoluta. Entretanto, tudo que tem sido escrito sobre os jovens, suas ações
e produções alerta, de alguma forma, para o drama de um mundo parametrizado pelas perspectivas adultocêntricas,
contudo, inegavelmente envolvido e movimentado por energias culturais juvenis. Convém, portanto, buscar elucidar
minimamente tais energias, seus fluxos e decorrências na atualidade global para melhor compreender as possibilidades
de melhorar a vida o mais amplamente possível.
207

A intenção deste texto é, a partir da discussão da relação imagem, juventudes e escola, via as imagens de jovens
estudantes de uma escola pública, elucidar algumas de suas conexões e assim oferecer uma contribuição ao alargamen-
to da percepção dos jovens no mundo contemporâneo.

Comumente, quando as imagens dos espaços escolares são observadas, a atenção se volta para o campo concreto
do visível no qual se destaca a alvenaria da própria escola como suporte de suas imagens. O olhar maquinal volta-se
objetivamente para as paredes, fachadas, murais, trabalhos escolares expostos, etc. e nesses percursos desdenha as ima-
gens muitas vezes mais eloquentes: os estudantes. Suportes vivos de uma obra em permanente elaboração, seus corpos e
falas são imagens expressivas da vida juvenil da cidade e nesta, da escola. Embora móveis, transitórios e transitantes, esses
corpos em movimento oferecem farta torrente de indícios sobre suas vidas, sobre a educação e a realização da cidade.

O cotidiano dos estudantes, fulgurado em suas presenças e encontros, é sempre recheado por surpreendentes
criações poéticas, entendendo a poética como criação primordialmente estética. Assim, os jovens fazem e expõem por
meio de seus corpos os modos de ser e estar no mundo. Evidenciam nos gestos, adornos e vocabulário a riqueza das
redes simbólicas por meio das quais inscrevem, descrevem e fazem vibrar as suas vidas. Redes imagéticas em cujos mo-
vimentos é possível captar suas criações, reproduções, irrealizações, fabulações e evocações, na permanente produção
de seus acontecimentos, na produção de seus sentimentos de existir. Conforme explica Todorov (1996 p. 98)
O que é universal e constitutivo na humanidade é que entramos, a partir de nosso nascimento, numa rede
de relações inter-humanas, portanto, num mundo social; o que é universal é que todos aspiramos a um
sentimento de nossa existência. Os caminhos que nos possibilitam aí chegar, em compensação, variam
segundo as culturas, os grupos e os indivíduos. Assim como a capacidade de falar é universal e constitutiva
da humanidade enquanto as línguas são diversas, a sociedade é universal, mas não as suas formas. O
sentimento de existir pode ser o efeito do que chama de realização, de contato não mediatizado com o
universo, como a coexistência com os outros; esta pode tomar a forma de reconhecimento ou cooperação,
de luta ou comunhão (...)

No espaço específico da escola, de cuja investigação resultou o presente texto, o contingente estudante tem em
comum, em sua maior parte, o pertencimento à mesma faixa etária e, todos, a mesma posição em relação à hierarquia
institucional, ou seja, a mesma condição de aluno, a territorialidade da suposta passividade. Para além da superficiali-
dade dessa imagem, uma vasta diversidade irredutível a qualquer etiquetação generalista desafia a elucidação de suas
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coexistências e de suas diversas formulações. Antes de nos voltarmos sobre algumas das imagens que o heterogêneo
corpo discente produz e faz circular, convém relembrar certas condições do espaço escolar, cenário no qual os meninos
e meninas são destacados. A característica mais flagrante daquele espaço ainda é a da precariedade. Não necessariamente
de recursos materiais, mas, sobretudo de recursos logísticos e pedagógicos que liguem de forma mais intensa aquela
escola aos fluxos de interesse e práticas de seus alunos e alinhem as ações curriculares aparentemente entorpecidas às
convocações do mundo. Carência, portanto, de ações que façam da vida na escola também o fortalecimento necessário
ao enfrentamento do que é antagônico aos jovens.

A indisfarçável dianteira que o universo juvenil atinge na sua projeção na contemporaneidade evidencia a
distância que sob muitos aspectos se mantém a instituição escolar. Tal distância é um dos argumentos mais fortes da
reiterada denúncia da crise da educação. Entretanto, a notícia dessa crise emerge das mesmas bases que obsoletizam
a democracia e corroboram com predação mercantilista do desejo. Operações de guerra que triunfam via o uso e o
abuso das imagens e a anulação do outro, a refutação radical do que altera o já sabido. As condições que enfrentam as
juventudes e seus desdobramentos que exigem a experimentação e a ousadia da aventura.

Contudo, a educação formal parece ineficaz na contribuição de elementos que favoreçam a autonomia, via a
coletivização do seu abrigo, para a qual depende a aceitação da diferença e a assunção não agressiva do estranhamento.
Observando a escola na intestinidade de seu cotidiano, ainda decepciona a carência de engajamento do seu contingen-
te docente com ações que escapem das rotinas tradicionais em busca de alguma produção favorável a efetivas garantias
se não de um futuro, ao menos de um presente mais feliz para os seus alunos e alunas. Essa situação, comum à rede de
ensino público, evidencia o enfraquecimento da imagem da escolarização como percurso indispensável às conquistas
na cidade. Se o discurso adulto ainda se encontra fortemente contaminado pela fabulação de furo feliz associado à
escolaridade disciplinada, para os universos juvenis o mundo é outra coisa, sem nunca ter passado, para muitos, pelas
fabulações que as outras gerações se apoiaram.

As práticas educacionais geralmente são pouco afetadas pelas produções espontâneas dos jovens, e quando o
são, ou são de forma superficial ou protocolar. Ou seja, na medida em que a blindagem das normas o permite. Assim,
as práticas escolares dificilmente convencem os meninos de hoje que a educação teria uma finalidade interessante. Pois,
na observação desarmada dos jovens, é possível ouvir entendimentos que colidem com os sentidos sacralizados da boa
209

educação. Da falta de sentido da vida à crença de que o objetivo da vida consiste na posse das benesses prometidas pelo
universo do consumo. A afetação pelos sentidos e formulações dos jovens é a afetação pelo mundo. Ao rejeitar, pela in-
diferença ou desprezo, as imagens e a imaginação dos jovens como insumos úteis à sua própria poiesis, a educação não
se dá conta de como as imagens juvenis criadas coletivamente são sequestradas pelas mídias e campanhas publicitárias
para, a partir de sua pasteurização, serem utilizadas em detrimento dos próprios jovens.

O alheamento em relação às linguagens, imagens e visualidades dos jovens, bem como a sua rejeição as suas
legitimidades como criações que aportam o devir da cidade, marcam não só os currículos escolares como atinge gra-
vemente as formações docentes.

A imagem tradicional da escolarização como passaporte para um futuro redentor é diluída pela contradição
com o mundo cada vez mais encapado pelas imagens mercadológicas de hedonismo vertiginoso. Assim, a escola
contemporânea enfrenta o esvaziamento dos sentidos que tradicionalmente a escoram; entretanto, tal perda revela a
latência da convocação da atualidade, a demanda por desdobramentos que, se não a atualizam, apontam a vitalidade da
possibilidade de uma nova e necessária atuação. A interrogação dos sentidos da escola gritada pelos corpos e estéticas,
ainda muito negadas, de seus alunos e alunas contém a iminência de uma performance em consonância com os tempos
de então.

A epifania da educação contemporânea provocada pelas produções estéticas juvenis implica pensar as reduções
que as funções precípuas da escolarização sofreram em decorrência da facilitação dos fluxos comunicacionais da cidade.

A face da escola como reafirmação das sequelas de nossa sociedade escravagista e falocrata vem perdendo ex-
pressão para as realizações desautorizadas, mas pregnantes, que os jovens fazem acontecer em seus domínios. De tal
maneira que a apartação social que sempre marcou a sociedade brasileira e produziu situações extremamente com-
plexas que a educação, na sua sintonia tradicional, pouco pode neutralizar ou abordar, embora não superadas, vem
sendo habilmente contornadas em prol da emergência de formas mais felizes de vida coletiva. Inusitadas culturas com
formas e visualidades diferentes foram geradas nos limbos das periferizações.Vindos das periferias da cidade, nem sem-
pre geográficas, mas sempre simbólicas, os meninos e meninas que ocupam as escolas públicas da cidade têm nas suas
imagens individuais e coletivas a atualidade da cidade e, portanto, subsídios necessários à educação compatível com
esse espaçotempo.
210

Observadas suas imagens, é possível compreender como tem se tornado cada vez mais inevitável perceber o
crescente descompasso entre as imagens que transitam pela escola e a imagem que a tradição institucional insiste em
manter. A colisão entre essas imagens também permite perceber a relevância das ações dos jovens na apropriação dos
espaços desocupados pela ação institucional, ou seja, a ocupação dos lugares abandonados pelos inicialmente desfa-
vorecidos por esse abandono, como acontece nos terrenos baldios, nas fábricas abandonadas ou nas paredes vazias da
cidade, que são cobertas pelas marcas das juventudes nômades, assinaturas, retratos são o acontecimento estético de
outra ordem que remetem à epifania aludida. Os grafites, as pichações, a reverberação do funk pelos ares e edifícios da
cidade demandam deslocamentos conceituais, revisão de definições e normas que regulam o conhecimento, as artes e
a própria cidade.

Na dinâmica da cidade, os espaços abandonados insinuam novos usos e logo se transformam em oferta à criação,
ou seja, às mais variadas formas de aproveitamento. As instituições, quando têm seus sentidos arrefecidos, como acontece
com as escolas, também viram um campo de possibilidades para outros usos. Os jovens alunos e alunas, nas suas práticas
cotidianas, vivem a contingência de criar os usos daquele espaçotempo. A despeito de suas criações e intervenções se darem
ainda, quase sempre, à esquerda da oficialidade.

Entendemos, como face dessa situação, os jovens se virem ilhados no imediatismo das realizações e fruições
dos seus territórios particulares, embora territórios inventados na oportunidade fugaz da caça, espécies de ecossistemas
paralelos à ordenação da cidade/escola legitimada nos quais o mundo pragmático e o imaginário não são apreensíveis
separadamente. Fazer, praticar, poetizar e imaginar como um só acontecimento da tessitura complexa das redes cul-
turais juvenis. Tais acontecimentos, longe de se tornarem lugares próprios na acepção de Certeau (1995), vão sendo
produzidos distanciados da codificação que legitima parte da sociedade e das suas eleições culturais como modelar.
E, nesse processo, as culturas juvenis sempre desfavorecidas, aqui não há como contornar essa etiquetação, por mais
simplificadora que pareça, vão se mostrando, cada vez mais, associadas às margens da cidade para justificar as limitações
sensíveis da cultura culta que ainda predomina paradigmaticamente nas escolas e na cidade.

Um afastamento a todo o momento reconhecível na perplexidade dos professores diante do aparente desin-
teresse dos estudantes. Nas acusações de indiferença aos valores do bem, à apatia injustificada, à irresponsabilidade e
outros comportamentos nefastos à boa produção e conduta escolar, segundo os regimes de fé dos professores.
211

A produção do imaginário que viabiliza, às vezes em movimentos fugazes, o cotidiano dos jovens estudantes e
dão textura às suas diferenças, toma potencialidade considerável e animadoramente observável nas imagens que criam
e vivenciam. Imagens que a todo o momento sugerem que o que vale a pena ser feito, e de uma forma ou de outra
acaba por ser prioritário, são as experiências possíveis no âmbito das relações de amizade, coleguismo e companheiris-
mo, muitas vezes temperadas pelos seus avessos. Tudo em movimentos que ocorrem em constante fluxo de interação,
de difícil captação pela prontidão não afetada.

Numa outra esfera espaçotemporal, múltiplas e contrastantes criações identitárias se atravessam, ora flagrantemen-
te estampadas, ora fugazmente refletidas, nos corpos individuais e nos corpos coletivos. Criações que, na proporção que
resplandecem a visualidade dos jovens, amolecem a consistência da identidade. Entretanto, convém sublinhar que o
trânsito das formas de ser e estar no universo juvenil das escolas implica na impossibilidade de uma ação hermenêutica
de realização plena, ou qualquer leitura adulta que fatalmente incorrerá em reduções reguladoras. Essa noção permite
compreender como a dinâmica das criações imagéticas dos jovens desbota o sentido de permanência da categorização
identitária, da leitura definitiva. A polifonia e fugacidade de suas imagens abortam a tentação de lhes sistematizar em
um desenho qualquer de localizações e características de identificação e tradução permanente.

Tomando esse necessário cuidado, é possível aceitar o que esse universo oferece em seu dinamismo de produ-
ções de linguagens e saberes, de criação de formas e canais de comunicação pessoal e grupal, nos quais os jogos das
imagens são uma das forças centrais de propulsão da vida, para além do que a balconização da cidade faz das imagens.
Agir em sintonia com esses mundos, a favor desses sujeitos, pressupõe a experiência da imobilidade, da colonização do
corpo adulto pela efervescência juvenil.

Com os jovens

Durante o período de interação com a escola investigada, que surge nesse texto oscilando entre a sua singu-
laridade e a sua igualdade a todas as escolas da cidade, tivemos a oportunidade de participar de vários debates com os
seus estudantes. Um desses debates, de especial significação, tinha como tema a ‘imagem’. Registro desses momentos
um fato para mim especialmente significativo. Em uma aula, indagando sobre os sentidos da arte, fomos surpreendidos
pela afirmação de que arte seria a mesma coisa que imagem. Embora seja comum a associação entre imagem e as artes
212

visuais, a compreensão de que a arte tinha relações diretas com o mundo imagético, surpreendeu pela segurança com
que foi defendida e pela oportunidade investigativa que oferecia. A conversa enveredou para a discussão do que viria a
ser, então, a imagem. Um outro aluno, não menos surpreendente, afirmou que imagem era ele próprio. A partir dessa
instigante afirmação propusemos que dissessem que imagens pensavam representar para os outros, ou melhor, como
imaginavam ser vistos e percebidos.

Alguns jovens apresentaram argumentos bastante próximos ao que, supomos, pensavam que esperávamos ouvir.
Ou seja, argumentos que descreviam personagens idealizados e harmonizados com a escola fabulosa. Imagem ainda
potente e circulante de um sujeito modelo constituído de qualidades universalmente aceitas. Declaravam pensar serem
vistos como rapazes e moças honestos, sinceros e com aspiração a uma formação que os capacitassem para uma vida de
sucesso. Tudo que é contradito por muitas outras imagens da escola.

Outros alunos e alunas, distanciando-se das imagens fracamente estereotipadas, discorreram sobre a multipli-
cidade e transitoriedade dos seus gostos e da consequente diversidade de características que constituíam aquilo que se
sentiam ser. Um deles, a título de exemplo, falou das músicas que gostava e dos momentos em que fazia sentido ouvi-
las, determinado tipo de rock quando praticava skate, outro quando namorava, outro quando estava com os amigos, da
mesma forma que variavam suas roupas e acessórios. Uma diversidade de afinidades que se movimentam conforme o
fluxo das interações desse jovem com seus mundos na cidade.

Essa interação sugere um estilhaçamento que, longe de fragmentar sua imagem, dava consistência e relevo à sin-
gularidade do jovem. Um exemplo de aderência de camadas identitárias que, sem eclipsar umas às outras, constituíam,
nessa amálgama, sua rede subjetiva.

Fruto da imaginação criadora, Gabriel nos descrevia um especial e complexo mosaico que, sem poder ser con-
siderado melhor ou pior do que as demais composições imagéticas de seus colegas, segundo o que explicava e demons-
trava, lhe assegurava a participação de sua autoria na sua própria criação e o protegia, quando necessário, no abrigo das
afinidades coletivas, conforme o espaço em que se encontrasse e as necessidades que enfrentasse.

Esse relato nos parece significativo na elucidação do contraste entre as imagens produzidas pelos alunos e alu-
nas e as imagens fabulosas de uma escola que, a despeito da multiplicidade de elementos que a compõe, pretenderia
213

se explicar, se isso fosse possível, sob o escudo discursivo e imagético de uma máquina de funcionamento linearmente
consequente. Máquina, de fato, que, entre outras funções, parece sempre priorizar a sua própria permanência. Fabula-
ção que se defende mecanicamente de qualquer suspeição sobre os agenciamentos que a institui, que lhe fabulam uma
origem ao mesmo tempo em que a produzem no estado em se encontra.

A multiplicidade imagética encontrada no cotidiano escolar, que é sobretudo o cotidiano juvenil, é a que olha-
mos e a que nos olha, estilhaçando qualquer organização prévia do nosso olhar. Trata-se de uma rede imagética que
evidencia a escola como módulo significativo da cidade. Também caleidoscópica tem nas facetas imagens da irreali-
zação, aqui entendida como operação de apagamento de um contexto adverso. Imagens irrealizadoras que se deixam
perceber no constante clima lúdico que envolve os aproveitamentos dos espaços e tempos de encontro que a escola
é palco privilegiado. A escola irrealizada pelos estudantes fulgura nos momentos e lugares nos quais acontecem as si-
tuações prazerosas de brincadeiras, de conversas e de encontros. Momentos nos quais essas práticas são o que, de fato, 1
“O orgiasmo como fator de socia-
têm importância e sentido para os seus praticantes. Canais discretos e fugazes de reverbeação de certo orgiasmo1 vital lidade” Cf. Maffesoli (2005).
para suportar as imposições disciplinares que imperam na oficialidade de seus lugares. Não acuso, convém sublinhar, a
existência de um explícito sistema rigoroso de disciplina e organização quando menciono as imposições disciplinares,
aponto apenas a organização oficial da escola como força de oposição aos desejos frequentemente manifestados de
ampliação dos momentos de brincadeira e conversas, ou seja, maior espaço para o que representa a maior necessidade
e satisfação para a maioria dos jovens, segundo suas próprias declarações, confirmadas pelo empenho que dedicam no
logro às normas disciplinares.

As imagens oriundas do imaginário reprodutor mostram sua força na formulação dos cenários da escola e evi-
denciam, a seu modo, peculiaridades da amálgama das redes subjetivas nas tramas coletivas. Cada aluno e aluna lançam
mão de suas experiências particulares, seus afetos e desafetos, suas escolhas e tantos outros canais da sua subjetividade no
jogo das relações coletivas. Cada performance individual é, portanto, uma face da ação coletiva. A balbúrdia dos corre-
dores, as conversas e risadas nos banheiros, o encontro nas escadas e nos cantos do pátio, bem como os comportamentos
nas aulas, expõem a intensidade da potência sensual do universo desprezado das imagens dos corpos, a um só tempo
módulo e conjunto. Potência que apontamos como fonte farta de novos sentidos do desafiador cotidiano das escolas
ao mesmo tempo em que reconhecemos seu aspecto singular que, mais do que informa sobre o mundo dos jovens na
escola, escancara a impossibilidade de devassa antropológica, intelectual, semiótica ou policial da vida que esses sempre
214

belos personagens constroem na fuga do tempo, na fuga da colonização codificante de nossos saberes sedimentados, na
fuga à nossa, muitas vezes, insidiosa e inútil intromissão.

Os momentos de pura entrega às brincadeiras, que me parecem ser formas do perpétuo jogo do existir, reme-
tem ao que Maffesoli aponta como divino social quando o mundo fica entregue a si mesmo e vale por si mesmo, cresce o que me
liga ao outro, aquilo que se pode chamar de religação (2005, p.13).

Esses momentos, que não ocorrem necessariamente em tempos diferentes dos outros acontecimentos e roti-
2
Refiro-me às línguas criadas e uti-
lizadas pelos jovens, sistemas
nas da escola, evidenciam sintonias2 que parecem inexpugnáveis pela compreensão adulto-referenciada, ou seja, pela simbólicos tão particulares que
linguagem dos professores e professoras, diretores e inspetores. Linguagem que é produzida, marcada pela intenção de se mostram impermeáveis a
qualquer tradução que não lhe
traduzir, explicar e colonizar o que é visto, o que deve, na sua perspectiva, ser corrigido, avaliado e encaminhado, con- ampute sentidos centrais.
forme as ações que movimentam a escola fabulada pelas instâncias que oficialmente controlam e conduzem a escola.

Tentar registrar uma descrição fidedigna dos jovens é, antes de tudo, acreditar na capacidade do registro e ter
fé na captação fiel de algo que é permanentemente mutante. Essa não é a intenção deste texto, pois não pretendemos
buscar um outro para aprisionar numa definição localizadora e neutralizadora, como a velha etnografia (Pais, 2004, p.
9) farejava o exótico para o colonizar. Pois o outro, os jovens que convivemos e com os quais buscamos construir uma
relação alternativa à dominação das lógicas e visões que nos formaram, correriam os riscos de reduzirem-se ao exótico,
ex-óptico, porque caem fora da ótica da normalidade dos entendimentos que nos eram familiares e, por uma forma ou
por outra, escaparem dos regimes de identificação dominantes no próprio universo escolar fabulado.

Os jovens, alerta Pais (ibidem, p. 11) são o que são, mas também são (sem que o sejam) o que deles se pensa, os mitos
que sobre eles se criam. Foi preciso, portanto, estarmos atentos à atuação permanente da imaginação instituidora e iden-
tificadora e de seus frutos, na medida em que os mitos não refletem a realidade, embora a ajudem a criar. O sentimento que
deu norte ao estranhamento, que muitas vezes tensionou nossos encontros, foi de que certas conceituações, qualquer
uma equivocada, poderiam nos levar a confundir a realidade com as representações que dela brotavam.
215

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VANNUCHI, Paulo e NOVAES, Regina. Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2005.
216

Educação, tecnologia e crítica da cultura


Roberta Lobo

A educação, teoria e práxis social, no contexto atual de conformismo e de aceitação passível do colapso da
sociedade das mercadorias, está implicada na potencialidade contestadora do mundo, como crítica da cultura. Deixan-
do para trás as crenças iluministas, cristãs e de cunho nacional-desenvolvimentista, a educação na contemporaneidade
depara-se com o desafio cada vez mais emergencial de apropriar-se do mundo real, da agonia social, das catástrofes
ambientais, da violência econômica, cultural e psíquica que se instauram como modo de sociabilidade reinante. Seja na
dimensão de formação humana, seja na dimensão pragmática da escolarização e difusão da cultura, a educação necessita
apropriar-se da terceira revolução técnico-científica, iniciada nas décadas finais do século XX, como fenômeno histó-
rico-social que atinge todas as esferas da vida humana, alterando laços de sociabilidade para a permanência do mesmo,
a incessante lógica do valor, da forma-mercadoria como imperativo da vida social. No entanto, tal fenômeno também
abre um campo de possibilidades no que diz respeito à vinculação existente entre processos educativos e processos de
1
Este artigo é resultado do Proje-
produção com base nas novas tecnologias (blogs, vídeos, rádioweb, sites, etc.), em especial com as chamadas tecnologias to de Pesquisa Tecnologia e
livres. O adentrar-se na complexidade dos movimentos da contradição desse fenômeno garante ao menos um andar Educação: Desafios da Práxis
Docente (2008-2010), fruto do
ressabiado frente às maravilhas da tecnologia abstraídas das relações sociais concretas postas no mundo.1 convênio estabelecido entre a
UFRRJ e a Escola Politécnica
A partir do conceito de racionalidade tecnológica de Herbert Marcuse, buscaremos apontar questões da edu- em Saúde Joaquim Venâncio/
cação como crítica da cultura, descortinando o fetiche da tecnologia com base na apresentação das relações sociais Fiocruz, com apoio da Faperj.

concretas, incluindo aspectos da ‘nova ordem mundial’, do mundo do trabalho e da produção em larga escala do lixo
tecnológico.

A racionalidade tecnológica como o ocaso da individualidade burguesa

Em 1941, Marcuse escreve Algumas implicações sociais da tecnologia moderna (1999), iniciando uma reflexão que
une formação/declínio da individualidade burguesa, do totalitarismo e da racionalidade tecnológica.
217

Marcuse descreve a função histórica da racionalidade crítica fomentada pelas revoluções burguesas, bem como
suas metamorfoses na sociedade da racionalidade tecnológica. Desse modo, realiza uma dialética entre racionalidade
crítica e racionalidade tecnológica, herdando questões da autonomia de Kant e da heteronomia do senhor e do escra-
vo de Hegel, diferenciando-se numa outra síntese marcada pelas contradições do fascismo e do stalinismo. A crença
na individualidade livre e a crítica da individualidade submissa que atravessam esses fenômenos históricos permitem
Marcuse ressaltar potencialidades da tecnologia como elemento de criação e de liberdade, não sendo, portanto, tão
somente o processo social, as invenções humanas e os instrumentos que organiza, numa totalidade opressora, o sistema
de dominação do capital.

Marcuse, formado pela cultura filosófica alemã, mantém vivo o desafio de dar significado à razão humana.
Também nos anos de 1940, Horkheimer e Adorno estão enfrentando os dilemas de uma dialética do esclarecimento,
traçando os domínios de uma racionalidade instrumental que alia ciência e técnica com a função de subjugar a natu-
reza e os homens à lógica da produção de mercadorias.

A racionalidade crítica, oriunda da sociedade burguesa liberal, funda-se na autonomia, na liberdade de pen-
samento, na dinâmica do indivíduo de superar as ideias e valores impostos pela sociedade, afirmando seu interesse,
rejeitando tudo que não fosse justificado e elaborado pela atividade racional. Desse modo, no seio da sociedade liberal
e de sua esfera da livre concorrência, a crítica era o instrumento principal no processo de constituição da racionalidade
individualista, também marcada pela conduta social do trabalho: “Os feitos tangíveis do indivíduo que transformava
seus produtos e ações em parte das necessidades da sociedade eram as marcas de sua individualidade” (Marcuse, 1999,
p.76).

A superação da sociedade burguesa liberal se estabelece na virada do século XIX para o século XX, com a
dinâmica de uma sociedade de massas e de um capitalismo monopolista, onde a separação sujeito e objeto se conso-
lida no domínio da técnica sobre a natureza e sobre os instintos humanos. Esse tema será aprofundado na Dialética do
Esclarecimento de Horkheimer e Adorno, escrita entre os anos de 1945 e 1947.

Para Marcuse, o capitalismo monopolista elimina o sujeito econômico livre com a instauração de um alto nível
de mecanização e padronização do processo de produção de mercadorias. Sendo assim, o processo de produção de
mercadorias que possibilitou historicamente o surgimento da racionalidade crítica do indivíduo burguês, ao atingir
218

uma certa maturidade e alcançar poder tecnológico, concentra cada vez mais poder econômico (extração de matérias-
primas, equipamentos, processos de circulação e de distribuição dos produtos), impondo novos padrões de individuali-
dade e racionalidade. Se antes o papel do indivíduo era questionar tudo que não fosse elaborado por sua atividade livre
racional, colocando-se, quando necessário, contra a sociedade, agora o papel do indivíduo é submeter-se à dinâmica
criada pelo aparato técnico-industrial (mecanismos, dispositivos, organizações econômicas, instituições sociais e políti-
cas) do capitalismo monopolista (Marcuse, 1999).

O declínio da racionalidade crítica marca o surgimento de um indivíduo determinado por padrões de julga-
mento e de comportamento externos, sem vestígios de um desenvolvimento individual autônomo. A produção em
larga escala, possível com o avanço das técnicas de produção, exige um desempenho padronizado que é alimentado
através de treinamentos e de formas de coordenação dentro do aparato, de modo a garantir a eficiência competitiva e a
submissão total do indivíduo. A racionalidade tecnológica, portanto, é a sujeição do indivíduo às necessidades do apara-
to técnico-industrial. O fundamento da vida social como realidade posta está na manutenção e reprodução do sistema
de produção de mercadorias: do comezinho do cotidiano à resignação, a subjetividade humana vai se abstraindo de si,
de todo conteúdo humano, automatizando-se como resposta direta às exigências de identidade abstrata imposta pelo
capital. Marcuse define como nova factualidade a materialidade de uma sociedade que se reproduz no seu cotidiano e
nas grandes questões através de uma racionalidade que determina uma nova objetivação social, combinando, inclusive,
indústria, comércio e lazer. “É um aparato racional, combinando a máxima eficiência com a máxima conveniência,
economizando tempo e energia, eliminando o desperdício, adaptando todos os meios a um fim, antecipando as con-
sequências, sustentando a calculabilidade e a segurança” (Marcuse, 1999, p. 80).

Se tudo é tão conveniente e conivente, para que a liberdade de escolha? Aqui reside um dos princípios da
derrota da revolução social. O mundo torna-se um aparato ultraeficiente para a reprodução do sujeito automático do
capital, transformando os instintos, as ações e os pensamentos humanos. Determinado por essa nova factualidade, a
racionalidade crítica se suicida, mantendo-se sob uma consciência inconsciente de adoração do aparato. O indivíduo se
comporta com tamanha racionalidade e devoção frente ao seu trabalho e ao seu cotidiano, que passa a garantir o funda-
mento da racionalidade tecnológica: a submissão, a eficácia do lucro, a racionalização da padronização e a concentração
monopolista, abrindo mão de recompor tanto o conteúdo de sua autonomia em suas potencialidades, quanto à dimen-
são histórica desse processo de racionalização. Tal processo não se restringiu ao mundo das fábricas, dos laboratórios
219

e das lojas, pelo contrário, expandiu-se intensivamente pelo mundo das escolas, das universidades, dos escritórios, dos
poderes legislativos e do lazer. “A razão encontrou o seu túmulo no sistema de controle, produção e consumo padro-
nizados. Ali ela reina através das leis e mecanismos da racionalidade tecnológica, que asseguram a eficiência, a eficácia
e coerência do sistema” (Marcuse, 1999, p. 84).

Mesmo apresentando como derrota a forma como foi materializada os princípios da racionalidade crítica,
Marcuse trata de apresentar uma dialética entre o conjunto de valores que sustentam a racionalidade crítica e o con-
junto de valores que sustentam a racionalidade tecnológica, mostrando como eles se movem contraditoriamente e
complementarmente, como também produzem metamorfoses diante de determinados contextos históricos, quando o
conjunto de valores críticos se tornam valores tecnológicos e/ou vice-versa. A racionalização da padronização arranca
os valores críticos de seu contexto de origem, absorvendo-os para seu contexto publicitário, de valorização do capital,
sendo pautados seja pelo mundo público/estatal ou privado (Marcuse, 1999).

A domesticação dos valores críticos em função da racionalização da padronização promoveu a impotência


social do pensamento crítico numa sociedade mergulhada na submissão e na assimilação competitiva. Marcuse aponta
duas condições sociais que fortaleceram a impotência do pensamento crítico: o ajuste massivo dos comportamentos
individuais através de métodos de autocontrole e autodisciplina, de modo a internalizar a coerção e a autoridade do
aparato. “Homens, seguindo sua própria razão, seguem aqueles que fazem uso lucrativo da razão” (Marcuse, 1999, p.
86).

A segunda condição da impotência do pensamento crítico foi a incorporação da oposição ao aparato, sem
perder o título de oposição. Segundo Marcuse, ocorre uma mudança de função do conjunto de valores críticos promo-
vidos pelo trabalho a partir da realidade concreta de incorporação do movimento operário ao aparato. O movimento
operário nega a necessidade da racionalidade crítica para a manutenção de seu vigor social e político e as “ideias como
liberdade, indústria produtiva, economia planejada, satisfações de necessidades veem-se fundidas com os interesses de
controle e competição” (Marcuse, 1999, p. 87-88).

A oposição consentida, a sedução para a entrada no reino do consumo ou a permissão mesmo que subordinada
às esferas de poder e de prestígio abrem caminho para os pactos sociais entre capital e trabalho, fazendo surgir no cená-
rio político uma esquerda reprodutora da racionalidade tecnológica. Uma recordação da realidade histórica vivida nos
220

anos de 1990 pelos países do leste europeu e pelos países da América Latina que, sob uma democracia flácida, instauram
a cartilha do neoliberalismo: ajustes, eficiência, flexibilidade.

Com a consolidação da racionalidade tecnológica, ou seja, de uma individualidade submissa ao aparato técnico-
industrial-burocrático, a autonomia do indivíduo torna-se assunto privado, o indivíduo se retira, cai no isolamento e na
concepção de que deve resolver sozinho o seu problema, ou seja, em última instância, o problema e sua resolução são
individuais. O isolamento aparece como realização de uma liberdade que jamais irá interpelar criticamente o conjunto
das relações sociais nas quais o indivíduo está inserido, negando assim sua capacidade de revoltar-se. O indivíduo se
mantém alheio gozando ou não de uma independência privada.

O estudo crítico da tecnologia no século XXI pode ajudar a potencializar a dimensão cognitiva da tecnologia,
bem como a crítica da sociedade do trabalho, retomando releituras de Marx que ressaltam a relação entre automação
progressiva e tempo livre como condição para a realização da liberdade humana.2 Marcuse aponta para uma dialética
entre técnica e tecnologia, abrindo caminho para demarcar as potencialidades das técnicas de produção, bem como
para ampliar o conceito de tecnologia.
[tecnologia] como modo de produção, como totalidade dos instrumentos, dos dispositivos e invenções que
caracterizam a era da máquina, é ao mesmo tempo uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar)
as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um
instrumento de controle e de dominação (Marcuse, 1999, p. 73).
2
Faz-se necessário aprofundar o
Sendo processo social, a tecnologia está fora do homem? Ou, onde está o homem no aparato técnico da in- tema da automação e do tempo
livre que aparece nos Grundris-
dústria, dos transportes e da comunicação? “Os indivíduos são parte integral e fator da tecnologia, pois inventam e se de Marx, bem como retomar
mantêm a maquinaria, bem como fazem parte de grupos sociais que dirigem a aplicação e utilização da tecnologia” o conceito de General Intellect.
Cf. Rosdolsky (2001).
(Marcuse, 1999, p. 74).

Se, para Marcuse, a tecnologia fundamenta e sustenta o aparato de produção e de controle social das sociedades
do capitalismo monopolista, as técnicas de produção encerram em si outras possibilidades, visto que podem “promover
tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do
trabalho árduo” (Marcuse, 1999, p. 74). O avanço das técnicas de produção e dos usos dos instrumentos podem liberar
forças no processo social e nos indivíduos tornando-os capazes de aniquilar a forma histórica particular em que a téc-
221

nica é utilizada, como um aparato que perpetua a escassez, a competição e a submissão dos indivíduos. Um outro ele-
mento apontado por Marcuse, no que diz respeito às potencialidades das técnicas de produção, está na possibilidade da
democratização das funções em todos os ramos do trabalho e da administração, tornando tanto a mecanização, quanto
a padronização condição para a livre realização humana, não sendo apenas condição de satisfação das necessidades de
produção e expansão do valor de troca. Na dialética apresentada por Marcuse, o progresso tecnológico, apesar de ter
reduzido as ricas qualidades humanas através de uma estúpida abstração do seu conteúdo particular convertida em nova
factualidade, pode sim apontar para novas formas de desenvolvimento humano
O progresso tecnológico possibilitaria diminuir o tempo e a energia gastos na produção das necessidades
da vida, além de redução gradual da escassez. Abolição dos objetivos competitivos poderia permitir que
o eu se desenvolvesse a partir de suas raízes naturais. Quanto menos tempo e energia o homem precisar
gastar para manter a sua vida e a da sociedade, maior a possibilidade de ele poder “individualizar” a esfera
de sua realização humana. Para além do reino das necessidades, as diferenças essenciais entre os homens
poderiam se expandir (...) sem estar preso à eficiência competitiva, o eu poderia crescer no reino da
satisfação. O homem poderia encontrar consigo mesmo em suas paixões. Os objetos de seu desejo seriam
tanto menos permutáveis quanto mais fossem moldados por seu livre eu (Marcuse, 1999, p.103).

O ser humano livre, agindo para além do reino da necessidade! Essa utopia tem como base relações humanas
não coisificadas, ou seja, livre das determinações da lógica de produção de mercadorias, como a servidão voluntária do
trabalho alienado, a ameaça da pobreza, do isolamento social e da política do extermínio. Sem negar a existência do
conflito, do transitório e do contingente, os homens partiriam para produções qualitativamente novas sem determina-
ções externas ou imposições da ordem do necessário, engendrando assim novas subjetividades conscientes de seu estar
no mundo, liberadas pela atividade criadora, pela arte e pelo amor.

Marcuse acredita que, mesmo sob o domínio da racionalidade tecnológica, o declínio da racionalidade crítica e
o fracasso da racionalidade coletiva ainda há possibilidades de novos processos de individualização com a utilização do
progresso das técnicas de produção, ainda que tais processos sejam inerentemente transitórios e conflituosos.
222

A ‘nova ordem mundial’ e a tecnociência

Marcuse pressentiu, porém não viu, o sem limites da racionalidade tecnológica no contexto histórico do final
do século XX e início do século XXI, um contexto cada vez mais conservador e avassalador no que tange à velocidade
dos processos de produção tecnológicos e suas determinações sobre a vida dos indivíduos, povos e ex-nações.

A ‘nova ordem mundial’ instaura um processo de mudança de paradigmas na esfera da economia e da políti-
ca, processo esse que atinge não apenas as macroestruturas, mas também as microestruturas, ou seja, alterações que se
realizam tanto no campo do Estado, do mercado, como também no íntimo dos sujeitos sociais. O marco da flexibili-
dade atinge não apenas o mundo do mercado de trabalho e, sim, as estruturas psíquicas do sujeitos, implicando numa
flexibilidade inclusive do caráter. Assim como o marco do risco, que atinge um raio que vai das operações nas bolsas
de valores às consequências funestas dos processos de desestruturação da vida social e do meio ambiente. Flexibilidade
e risco vão nortear as ações dessa ‘nova ordem mundial’, incluindo suas ações de promoção da paz mundial, cada vez
mais garantidas pelo direito à guerra, ou seja, pela implementação de uma estado de sítio mundial, que garante por sua
vez a segurança da reprodução do capital na sua dialética atual de valorização-destruição (Arantes, 2007). Capitalismo
e guerra não se colocam como novidade histórica, tampouco sua relação com a tecnologia, hoje transvestida de tec-
nociência com as “novas armas high-tech e a retórica de ofuscamento cristalizada em clichês como ‘ciberguerra’, ‘armas
inteligentes’, ‘guerra segura’, etc.” (Arantes, 2007, p. 49).

Hoje, o arsenal tecnológico disponível é o argumento para impor um raciocínio estratégico de destruição que
escolhe cirurgicamente o que vai ser destruído e em que momento, mantendo, portanto, condições posteriores de
exploração de determinado território ou ex-nação (Guerra do Golfo, Kosovo, Iraque, Afeganistão, Palestina). Assim, o
modelo de contaminação viral e de irradiação atômica ou cibernética, de pane das infraestruturas e de inviabilidade de
reprodução social das populações locais. “(...) Com a facilidade seletiva propiciada pelo bombardeio dito inteligente, a
nova maneira de conduzir a guerra poderá dar-se ao luxo de parecer tanto mais civilizada quanto mais os danos cau-
sados se restringirem só à infraestrutura (...)” (Arantes, 2007, p. 55).

O armamento high-tech glorificado midiaticamente não está dissociado da cultura de consumo de massa. Pro-
duzir e consumir armamentos de ponta faz parte da dinâmica da flexibilidade e do risco, da garantia de uma paz arma-
223

da e do confinamento de alguns territórios ou populações civis. E, para tal, existe todo um contexto de mercado de
trabalho capaz de absorver com naturalidade ‘trabalhadores temporários’ dispostos a manusear armas de destruição de
última geração e formar “tropas especiais flexíveis e de ação mundial” quebrando o paradigma anterior de “exército
de massa baseado na infantaria e veículos blindados” (Kurz apud Arantes, 2007, p. 58). O importante aqui é salientar
que a tecnologia não se separa das estratégias de violência econômica e extraeconômica; alia-se tanto às disputas por
petróleo e ao domínio das fontes de energia, quanto ao processo de contenção da imigração e das populações civis, fa-
zendo parte de um “consórcio de grandes potências policiando permanentemente o resto do mundo” (Anderson apud
Arantes, 2007, p. 67). No final das contas, os armamentos high-tech e todas as suas maravilhas cirúrgicas e altamente
seguras quanto à meta da destruição estão postos para “assegurar o suprimento, a preços baixos, de energia fóssil para as
economias centrais, quer dizer, para assegurar a matriz energética da riqueza de algumas nações, é preciso desmantelar
as estruturas sociais produtivas das fontes supridoras” (Altvater apud Arantes, 2007, p. 68), bem como para assegurar a
eficácia de todas as limpezas sociais e étnicas necessárias para o não impedimento da expansão da lógica do valor em
sua incessante valorização destrutiva.

A tecnologia high-tech e o arcaismo do trabalho

Não é de se espantar que um caldo de contradições transborda nesse mundo de ‘magias’ tecnológicas. A econo-
mia de alta tecnologia é parâmetro de sucesso, acúmulo de capital, de pertencimento e integração nessa sociedade que
não esconde mais a sua lógica do descartável, do vulnerável e do vivido sem garantias. O mundo do trabalho informal
engoliu o lugar ao sol do trabalho regular que se almejava como parâmetro de dignidade humana. Apenas um ‘trocado’
diário para sobreviver basta como horizonte da maioria da população segregada social, cultural e economicamente. E,
nessa condição, ironicamente, “todos ganham”: das grandes coorporações multinacionais às fabriquetas de fundo de
quintal próprias das periferias urbanas. Dos camelôs vendendo mercadorias da Gillete e da Nestlé nas ruas do centro
do Rio de Janeiro aos africanos vendendo souvernir nas ruas de Paris, ambos com um olho nas mercadorias e outro na
polícia, que os rondam com a ameaça dos cassetetes e da apreensão.

Para ilustrar o disparate das condições atuais de trabalho no mundo da racionalidade tecnológica, citaremos
uma experiência concreta do antigo coração industrial de Los Angeles – o Southeast
São 16h30. Dois trabalhadores estão de pé atrás de uma enorme mesa de metal, parcialmente abrigados
224

por uma velha barraca de praia. Um rádio portátil toca rock em espanhol a pleno volume, direto da
Cidade do México. Cada homem está armado com uma chave de fenda Phillips, um alicate e um martelo
com cabeça de bola. Eduardo, o mais alto, é de Guanajuato, no centro-norte do México, e está usando
o boné de beisebol verde-camuflado da “Patrulha de Fronteira”, preferido por tantos imigrantes ilegais
de Los Angeles. Miguel, ligeiramente mais magro e pensativo, é de Honduras. Estão inconscientemente
sincopando o ritmo enquanto se alternam entre martelar, arrancar e desparafusar.

Erguendo-se diante deles há uma pilha de tecnologia de informática morta e descartada, com seis metros
de altura: processadores de texto obsoletos, impressoras danificadas, micros infestados por vírus – a
tecnologia de ponta da década passada. A tarefa de Sísifo realizada por Eduardo e Miguel é despedaçar tudo
para conseguir alguns componentes que serão mandados à Inglaterra para a recuperação do conteúdo de
ouro. Ser um quebrador de computadores é um monótono trabalho de 5,25 dólares por hora na economia
informal. Não há benefícios nem impostos, apenas dinheiro num envelope simples a cada sexta-feira.
Miguel está para dar um golpe violento no monitor de um Macintosh quando lhe pergunto por que veio a
Los Angeles. Seu martelo hesita um segundo, então ele sorri e responde:

– Porque queria trabalhar na economia de alta tecnologia.

Encolho-me quando o martelo baixa. O Macintosh implode (Davis, 2007, p.225-226). Autor: Chris Jordan
Circuit Boards, New Orleans, 2005
O buraco negro do lixo tecnológico

O impacto gerado pela terceira revolução técnico-científica nos coloca diante de novos e diversos riscos, so-
bretudo em relação aos equipamentos eletroeletrônicos. O avanço da produção tecnológica, do acesso à informação
e da possibilidade de cada um produzir a sua informação através de um vídeo, uma música, um texto, etc., é inegável,
inclusive como característica da sociedade contemporânea, não há como recuar.

Com a produção – cada vez maior – de componentes eletrônicos a preços mais acessíveis cresce o aumento da
velocidade da troca desses equipamentos. Esse circuito de produção-consumo tem como base a intensificação da taxa
de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias, o que alimenta o processo de valorização do capital através
da redução do tempo útil dos produtos (Meszáros, 2002). Como vimos acima, a indústria de computadores é exemplar
nessa lógica de reprodução ampliada de capital, que implica a redução do tempo entre produção e consumo, pautado
pela lógica concorrencial existente entre as empresas, além da já citada tendência destrutiva do valor de uso das mer-
225

cadorias. A cada três anos um chip (processador) dobra de capacidade e a versão anterior cai em desuso. Aliado a isso,
segue a tendência geral de forte consumismo, fenômeno que atravessa todos os segmentos sociais, que estimula a ideia
frenética de adquirir equipamento “mais potente e mais sofisticado” que o anterior, principalmente computadores e
celulares.

Um dos fatores que ajuda a explicar essa onda consumista em torno dos computadores e seus periféricos é a
necessidade de equipamentos capazes de rodar softwares cada vez mais “pesados”, com maior capacidade de armazena-
mento e demais tarefas que os modelos anteriores não permitiam. Outro fator é a busca de informações em tempo real, Autor: Chris Jordan
dado o imenso dinamismo em que o mundo globalizado de hoje está envolvido. Portanto, a capacidade de conectar-se Cell phones, Atlanta, 2005
e de “navegar” na internet (inclusive “baixando” arquivos cada vez maiores) é atributo primordial nessa apropriação
subjetiva da necessidade de produzir e consumir computadores num tempo cada vez mais curto. Empresas, órgãos dos
governos, pessoas comuns buscam a cada dia equipamentos de última geração para se manterem competitivas e atraen-
tes aos mais diversos tipos de clientes, solucionando os seus problemas e realizando os mais variados serviços.

Como vimos, o ciclo de vida dos eletroeletrônicos é, em geral, curto. A média mundial é que a cada dois anos
um microcomputador é substituído por outro, já para os celulares a taxa de renovação é ainda mais curta. Junto a esse
curto prazo da vida útil e a alta taxa de renovação, devemos acrescentar o alto custo para o desmantelamento e trata-
mento adequado dos elementos químicos encontrados nos eletroeletrônicos. As consequências ambientais desse au-
mento constante na produção de eletroeletrônicos são muito graves e traz um grande risco à humanidade. Importante
destacar que os riscos à saúde humana e ao meio ambiente não ficam restritos aos países que produzem em massa esses
equipamentos, visto que também atingem o mercado consumidor.

A primeira grande consequência ambiental gerada pela terceira revolução tecnocientífica é o alto consumo de
recursos naturais que a indústria de informática necessita para a produção dos eletroeletrônicos. Segundo os pesqui-
sadores Ruediger Kuehr e Eric Williams, para a fabricação de um computador de mesa e seu monitor são necessários
240 quilos de combustível, 22 quilos de produtos químicos e 1,5 tonelada de água. Impressionantemente, cada etapa
da produção de um circuito integrado, da pastilha de silício até o microprocessador propriamente dito, exige lavagens
seguidas em água extremamente pura, que ao final do processo sai assim completamente contaminada. Suas pesquisas
apontam a necessidade de os europeus realizarem a reciclagem de 60% dos pequenos aparelhos eletroeletrônicos (MP3,
226

secadores de cabelo, etc.) e de 75% dos aparelhos eletrônicos de maior dimensão (freezers, geladeiras e máquinas de
lavar, computadores, etc.) (Kuehr; Williams, 2003).

Além do desperdício e do seu grande potencial poluidor e até mesmo tóxico, o chamado e-lixo, ou lixo eletrônico,
está fazendo um estrago nas cotações dos metais utilizados na fabricação de componentes e circuitos eletrônicos. O sim-
ples descarte dos equipamentos eletrônicos tecnicamente obsoletos representa um desperdício enorme de recursos. “Há
mais do que ouro nessas montanhas de sucata de alta tecnologia” (Kuehr;Williams, 2003, p. 17). O ouro está presente nos
contatos dos microprocessadores, das memórias e da maioria dos circuitos integrados, daí a função social dos trabalhadores
latinos na zona industrial decadente de Los Angeles, como vimos anteriormente. Além do ouro, da prata e do paládio, os
computadores contêm cobre, estanho, gálio, índio e mais um família inteira de metais únicos e indispensáveis de altíssimo
valor. O índio, um subproduto da mineração do zinco, por exemplo, é essencial na fabricação dos monitores de tela pla-
na, ou LCD, e de telefones celulares. Ele está presente em mais de um bilhão de equipamentos fabricados todos os anos.
Nos últimos cinco anos, o preço do índio aumentou seis vezes, tornando-o hoje mais caro do que a prata. E como sua
produção depende da mineração do zinco, não é possível simplesmente produzir mais, porque não há produção suficiente
de zinco. O preço de mercado de outros metais necessários à indústria eletrônica, mesmo que em pequenas quantidades,
também disparou. Embora o preço do bismuto, utilizado em soldas sem chumbo, tenha apenas dobrado nos últimos dois
anos, o preço do rutênio, utilizado em resistores e em discos rígidos, foi multiplicado por sete (Rosa, 2007).

Entende-se, portanto, os esforços de reciclagem das grandes corporações multinacionais e países produtores
de tecnologia de ponta. A reciclagem faz parte do circuito produção-consumo pautado na mesma lógica descrita an-
teriormente de decréscimo da vida útil dos produtos da indústria da informática, não está em jogo a reflexão sobre o Autor: Chris Jordan
colapso desse modo de produção da riqueza social. Países como Bélgica, Japão e Estados Unidos trilham os caminhos Circuit boards, Atlanta, 2004

da reciclagem, com ótimos resultados para a refuncionalidade do sistema de produção de mercadorias. A própria ONU
lançou o programa StEP (Solving the E-Waste Problem) – resolvendo o problema do e-lixo (lixo eletrônico) a fim de
organizar esforços mundiais no sentido de se viabilizar a reciclagem de produtos eletrônicos em larga escala e em nível
mundial (Rosa, 2007).

Vale a pena citar ainda outras saídas encontradas pelas empresas oriundas de países produtores de alta tecnologia:
a doação de computadores para os países pobres como forma de descartar a problemática do lixo eletrônico e da obso-
227

lescência técnica, externalizando os altos custos desse modelo para a periferia, visto que a reciclagem de tais produtos
ainda é técnica e economicamente pouco interessante, exigindo a produção de alta tecnologia.

No campo prático, cotidiano da vida social, o que fazer com os produtos eletroeletrônicos que são descartados
diariamente? As pilhas, baterias, chips de memórias, mouses, impressoras apresentam em suas composições metais pesa-
dos, como mercúrio, chumbo, zinco, cobre, platina, manganês, níquel, lítio e cádmio que, com o tempo, causam danos
à saúde e ao meio ambiente, como já salientamos acima. Sem o devido cuidado, a maior parte desse lixo tecnológico
(que é altamente tóxico) é jogada em terrenos baldios e queimada a céu aberto. Segundo pesquisa do Greenpeace
(2007), estima-se que sejam produzidas de vinte a cinquenta milhões de toneladas ao ano de sucata eletrônica no Brasil,
cerca de quatro mil toneladas por hora. No Brasil, as vendas de computadores aumentaram cerca de 37% comparando
os anos de 2005 e 2006, sendo em 2006 vendidos 7,5 milhões de PCs, os quais, em três anos, se juntarão ao lixo tec-
nológico existente.

Nesse sentido, é urgente a implementação de atividades educativas com intencionalidades de fortalecer uma
consciência socioambiental na sociedade brasileira contemporânea, em especial nas escolas de ensino fundamental e
médio. Tais atividades podem se realizar no interior dos conteúdos das disciplinas tradicionais, bem como através de
oficinas, de atividades culturais, de momentos recreativos, etc. No imediato, a educação ambiental juntamente com a
legislação ambiental pode promover atividades práticas e reflexivas sobre a organização da cadeia produtiva mundial e
o próprio destino dos eletroeletrônicos, evitando o despejo desses equipamentos em áreas como rios, terrenos baldios
ou mesmo em aterros sanitários (sem os cuidados necessários). Portanto, a educação ambiental apresenta-se como um
importante instrumento capaz de gerir adequadamente os resíduos da sociedade da racionalidade tecnológica e, aliada
a outras práxis educativas, pode construir novas referências de formas societais para além da sociedade do capital, mos-
trando que esse modelo de produção e de desenvolvimento tecnológico esgarça a relação homem e natureza, e como
finalidade posta não há mais nada no horizonte além das catástrofes sociais e ambientais. 3
Os conceitos de automação pro-
gressiva e tolerância repressiva
Para concluir e retornar ao ponto de partida... são desenvolvidos por Marcuse
nas suas obras Ideologia da So-
ciedade Industrial de 1964, O
O século XXI materializa a sociedade tecnológica, com sua automação progressiva e sua tolerância repressiva,3
fim da Utopia de 1969 e Contra-
concentração de poder político e econômico, política de extermínio e reverência à indústria bélica, apologia da poten- revolução e revolta de 1972.
228

cialidade tecnológica das forças de destruição. O voltar-se para a dinamite que encurtou o futuro e negou a liberdade
deve ser o ponto de partida para a reflexão teórica e prática da educação.

Vale a pena considerarmos a dialética da liberdade e da agressão na sociedade tecnológica, visto que atravessa
toda a sociedade. Para Marcuse, as novas necessidades e satisfações, as novas liberdades oferecidas pela sociedade tecno-
lógica operam contra a autêntica liberdade do homem, jogando as faculdades físicas e mentais, as energias instintivas do
homem contra ele próprio, resultando numa profunda frustração e numa ativação da agressividade. Ainda que a energia
agressiva tenha sido necessária para o progresso da civilização, Marcuse aponta para uma situação onde a ativação da
energia agressiva torna-se mortalmente destrutiva. A sociedade tecnológica alia agressão instintiva e agressão política:
“(...) a relação entre as tendências expansionistas da sociedade opulenta, neocolonialismo, neoimperialismo, por um
lado, e a agressão normal, por outro. A sociedade opulenta deve ativar e mobilizar a agressividade numa escala ainda
maior” (Marcuse, 1968, p. 3).

A educação, como teoria crítica da sociedade, não pode se furtar dessas questões se pretende de fato tornar
o futuro grávido de projetos de emancipação. É a partir da negatividade que nos aproximamos do real. Encarar essa
dialética regressiva da sociedade contemporânea é mantermos vivas e pulsantes as promessas não realizadas do passado,
abrindo um horizonte de possibilidades capaz de enfrentar a decadência da história e da racionalidade tecnológica,
superando, como já apontava Marx, esse longo tempo de pré-história.
229

Referências bibliográficas
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230

Antonioni e Platão: entre blow up e o diálogo da 1


Uma versão preliminar deste tra-
balho foi apresentada como

caverna – imagens1 comunicação no evento I Se-


minário de Filosofia Antiga, na
Universidade do Estado do Rio
de Janeiro – Uerj, em 2007.
Aristóteles Berino

Entre as maneiras de se combater o nada, uma das melhores é tirar fotografias.


Cortázar (1994: 62)

Escrever com luz

A história da fotografia começa com uma ilusão. Ainda que George Eastman, criador da Kodak nº 1, tivesse
encontrado na fotografia “a mais perfeita identidade de aspecto com a coisa representada”, não foi assim que tudo
começou. A primeira fotografia, feita em 1827 pelo francês Joseph-Nicéphore Niepce, foi produzida de sua janela e
consistia em uma cena tomada do quintal de sua casa. A ilusão produzida é a aparência de uma simultânea irradiação
da luz, à direita e à esquerda da foto, como se existissem dois sóis. É o seu próprio autor que explica o efeito não pre-
meditado. É que o material, sensível à luz, exigia uma longa exposição, e foi preciso oito horas de sol, entre a manhã e
a tarde, para a realização da fotografia. Por isso, o efeito não calculado, mas enganoso da imagem.

Ao nascer, a fotografia traz consigo um recorrente dilema a respeito da produção do conhecimento. Com uma
foto em mãos, em relação à “coisa retratada”, é possível acreditar na percepção que proporciona nossos sentidos, no
conhecimento que nos dá a experiência? Dessa vez, com um material novo para a questão. A impressão fotográfica,
que pretende duplicar o real, guardando a memória de um acontecimento (o daguerreótipo foi chamado também de
espelho com memória), do instantâneo de uma vista ou da identidade de personagem, é um testemunho verídico, um
retrato fidedigno daquilo que se pretendia copiar? Na história da fotografia, original ambição da cópia, prematura-
mente declarada em um folheto, escrito por outro de seus inventores, o inglês Henry Fox Talbot, Notas sobre a Arte do
Desenho Fotogênico, ou Processo pelo qual os Objetos Naturais podem-se Delinear a si mesmo sem ajuda do Lápis do Artista.
231

A pretensão do automatismo no engenho fotográfico, liberto da subjetividade do artista, proporcionou, na ver-


dade, uma inusitada aventura entre a vontade de bem capturar uma imagem – ser fiel à coisa retratada – e o abandono
da pretensa naturalidade do olhar.Ver é um ardil. Entre a multidão de linhas, volumes, cores e afinidades que uma cena
qualquer poderá nos proporcionar, e sua aderência em um papel fotográfico, será um olhar-maquínico a fonte de toda
encenação (montagem e representação). Henry Peach Robinson, fotógrafo que viveu no século XIX, defendia a foto-
montagem e sua argumentação é didática para essa consideração sobre a arquitetura fílmica do olhar. Para Robinson, a
melhor maneira de ser fiel à natureza é combinar diferentes negativos, feitos materiais autônomos. Aproveitando-se da
parte mais perfeita de cada um, igualaria a perfeição da natureza. Com a ressalva: “o fotógrafo não deve permitir que
sua criatividade o leve a representar, por nenhum tipo de truque, qualquer cena que não exista na natureza.”

Roteiro

A tentativa de fuga da ilusão e a tentação do olhar oblíquo parecem entrelaçar nossa interpretação do mundo.
Tendo isso em mente, este artigo é um apontamento que procurar aproximar algumas questões referidas à dissimula-
ção das imagens (os escapes, as traições, as ciladas, etc.) que percorrem o filme Blow Up, História de um Fotógrafo (1966),
de Michelangelo Antonioni, e a alegoria da caverna, de Platão. Uma análise que me ocorreu através de uma associação
provocada pela evidente trama comum às duas obras. No diálogo de Sócrates, tanto quanto na história vivida pelo fo-
tógrafo Thomas no filme, há um enredo que é a discussão a respeito da possibilidade do conhecimento, precisamente
uma problematização sobre a possível identidade entre o que existe e o que é visto, entre aquilo que ocorre e o que
narramos através da experiência vivida. De outro modo, a questão do conhecimento vista como uma dúvida inicial:
o que existe? A realidade é o que vemos ou há alguma outra coisa, geralmente difícil de ser enxergada, mas verdadeira
diante das aparências? Imaginada associação entre Antonioni e Platão cuja pertinência pode ser observada através da
homologia que se dá entre os comentários seguintes. Para José Américo Motta Pessanha (1998, p. 47), “o objetivo da
dialogação conduzida por Sócrates é inicialmente despertar no interlocutor a consciência de que ele não sabe o que
pensava saber. Uma vez liberto dessa ilusão...” Sobre Blow Up, apontou Seymour Chatman (Calil, p. 57), “muitos espec-
tadores poderão vê-lo como um filme noir, mas ele claramente faz a pergunta: ‘Qual é a natureza da realidade visual?’.”

A alegoria da caverna é apresentada no Livro VII da obra A República, texto que, ao lado de Fédon, Banquete e
Fedro, figura entre os chamados “grandes diálogos” de Platão. É assim localizado porque pertence a um conjunto de
232

escritos mais sistemáticos, diante da perspectiva proposta, com as marcantes abordagens do dualismo ontológico – o
mundo sensível e o inteligível – e dos temas disjuntivos, entre eles: a reminiscência, a fuga do mundo, o fazer saber e a
metempsicose. O interlocutor principal do diálogo é o personagem – ela também uma imagem – de Sócrates. O hábito
de percorrer as ruas de Atenas, procurando definições para uma vida bela e justa (“o que é a virtude?”), preocupado
que estava com a distração que provocavam os discursos, quando as palavras empregadas em nada correspondiam ao
ser das coisas, teve uma inóspita consequência para o filósofo. Julgado e condenado por seus concidadãos, a morte de
Sócrates deixará uma indelével marca entre seus discípulos. Um deles, Platão, iniciará uma obra de recuperação das
questões mais candentes do mestre, embora também, oportunamente, de separação em relação ao seu pensamento.
Para Christophe Rogue (2002, p. 7), “Platão soube, melhor que qualquer outro de sua época, colocar o problema que
a morte de Sócrates representava.” De modo que até hoje, na história do mundo ocidental, a morte de Sócrates é um
acontecimento comovente – emblematicamente filmado por Roberto Rosselini, em Sócrates (1971). E sobre a leitura
dos diálogos, sua perenidade foi assim afirmada por Alexandre Koyré (1984, p. 9): “Os seus textos admiráveis, em que a
perfeição única da forma se alia a uma profundidade única do pensamento, resistiram à usura do tempo.”

Blow Up foi o filme mais bem sucedido do cineasta, recebendo a Palma de Ouro, em Cannes. O roteiro é adap-
tado de um conto de Júlio Cortázar, “As babas do diabo”, publicado originalmente na Argentina, em 1959. Esse título
é uma expressão idiomática que pode ser traduzida como “por um triz”. O protagonista é um tradutor e fotógrafo
amador franco-chileno, Roberto Michel, que mora em Paris. Uma cena fotografada encontra-se no centro do episódio
do conto. Penetrando secretamente no encontro, em uma pequena praça, entre uma jovem mulher e um adolescente
– casualmente observados, mas logo objeto de atenção e imaginação – Michel decide registrar o que vê. Sua iniciativa
não termina bem. A mulher protesta e pede o rolo do filme. Um homem, que estava em um carro estacionado próximo
aparece e intervém também, reclamado a posse do filme, que não é entregue. Em casa, Michel faz uma ampliação – blow
up – e pendura a foto na parede, distraindo-se do trabalho de tradução de um livro, enquanto olha para a imagem. O
“enigma do conto”, diz Eric Nepomuceno (1994, p. 163) no posfácio da edição brasileira do livro de Cortázar, “só
pode ser resolvido pelo leitor.” Antonioni extrai da ação do personagem, que utiliza a ampliação para sondar um mis-
tério, o motivo para o seu filme (Chatman; Duncan, 2004, p. 100). Nele, estará presente também a mesma dificuldade
para compreender o desenlace da história que existe no conto. Chatman (p. 103) acredita que “muitos dos que viram o
filme não se aperceberam de que ele estava a marcar uma posição filosófica bastante obscura”. Penetrante discussão da
233

película que não escapou da atenção de José de Souza Martins, como observou no seu escrito Sociologia da fotografia e da
imagem (2008, p. 38): “No filme de Antonioni, a sociedade se mostra etérea, completamente dependente das mediações,
uma sociedade em que os objetos têm vida própria, o que faz dos homens objeto das coisas.”

Thomas

Nos diálogos do filme não ficamos sabendo o nome do personagem principal. Ele aparece apenas na exibição
do cast. Thomas, interpretado por David Hemmings, é um fotógrafo de sucesso na excitante Londres dos anos 60. Ao
lado do seu trabalho com moda, dedica-se à produção de livro de fotografias sobre a cidade. Na primeira cena em
que aparece, Thomas havia deixado um abrigo para sem-tetos. Está disfarçado entre eles, desarrumado e com uma
aparência desregrada para se caracterizar. Estivera ali para realizar fotos para o seu álbum. São fotos que mostram os
frequentadores do abrigo e deixam ver, através da oportunidade do convívio, alguma intimidade desses indivíduos,
mas, sobretudo, expõem uma face marginal da cidade: pessoas sem destaque. Rostos, corpos e aspectos que compõem a
integridade da vida urbana, mas menos vistas – ou desprezadas – na sua imagética. As fotografias aparecem aqui como
uma escritura complementar, restituidora da verdade, quando o nosso conhecimento do mundo representa uma estam-
pa apenas parcial das coisas. Ao encontrar-se com o amigo e colaborador Ron, enquanto percorre um álbum com os
retratos já selecionados e mostra a revelação do material obtido no abrigo, propõe como última imagem para terminar
o livro, uma foto que chama de mais “pacífica”, diante da toda violência já presente na edição planejada. “Fica mais
verdadeiro”, complementa o amigo. Essa última foto prenderá toda a atenção de Thomas, nem tanto pelo valor estético
esperado, mas por um acontecimento insuspeito, não visto quando dirigiu sua máquina a uma determinada cena, sem
desconfiar do emaranhado de acontecimentos que cercava aquele momento.

Enquanto atravessa um parque da cidade, casualmente Thomas avista um casal de namorados e inicia uma se-
quência de fotografias. Parece atraído pelo jogo amoroso que conduz a um beijo – no Brasil o filme ganhará o título
“Depois daquele beijo”. Então, a jovem mulher, interpretada por Vanessa Redgrave, percebe a presença afastada do
fotógrafo e, demonstrando uma incisiva contrariedade (e preocupação), caminha até ele e cobra a entrega do filme.
Argumenta que não poderia tirar fotos das pessoas assim. Thomas recusa o pedido e afirma com naturalidade seu ato:
“Eu sou fotógrafo”. Mesmo assim, promete enviar posteriormente o filme, depois de revelar outras fotos ali contidas.
A jovem retorna ao local onde se encontrava antes com o senhor mais velho que namorava, mas ele já não está mais
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ali. Thomas parte também, sem se livrar da abordagem iniciada pela mulher para apossar-se do filme. Mais tarde, ao
chegar a casa, Thomas é novamente interpelado e deseja saber dela porque quer tanto o filme. Ela insinua que as fo-
tos poderiam comprometê-la. Novo jogo de sedução se inicia, dessa vez disputando a virtual revelação que guardam
os negativos. Thomas oferece whisky, pergunta se ela já trabalhou como modelo de moda, elogiando sua elegância
e procurando sua simpatia. Ouvem música e a audição parece distrair os sentidos, desligando e proporcionando um
momento de desprendimento. A oferta de maconha também orienta a experiência de uma evasão do presente. A mu-
lher parece readquirir o controle sobre suas sensações e procura, por sua vez, envolver Thomas. Tenta apanhar o filme
e fugir com ele. Não consegue. Experimenta, de outro modo, provocá-lo sexualmente. Ele recusa e simula entregar o
filme, quando, na verdade, troca por outro. Nessa dança, entre a procura do que se quer alcançar e aquilo que é obtido,
os dois vacilam sobre o propósito de cada ação, demonstrando um alheamento recorrente. Quando já está de posse do
filme, que acredita ser o verdadeiro, a mulher é afetada pelo encanto de Thomas – agora interessado por ela – e joga
o filme sobre a camisa, que já havia tirado. Por outro lado, a contingência da vida cotidiana age também para desviar
a atenção. É o telefone que toca ou a campainha na porta para a entrega de um objeto comprado. Mais uma vez apa-
rentando despertar, a mulher parte satisfeita com o filme – falso. Diante do pedido, entrega para ele um número de
telefone – também falso.

Agora, sozinho, Thomas inicia o trabalho de revelação das fotografias e pesquisa nas imagens, já suspeitas em
relação ao que poderá de fato ser encontrado.Thomas faz cópias próximas do tamanho pôster das fotos, colocadas lado
a lado, e amplia os detalhes, procurando descobrir o que elas, afinal, continham de verdade: um saber imperceptível,
improvável de ser conseguido enquanto olhava através do visor ótico da máquina, enquadrando a imagem escolhi-
da. As reproduções não aparentam, em cada retrato – realizando uma exaustiva pesquisa – dizer mais do que parece
evidente mostrar. Mas o esquadrinhamento de cada detalhe e a observação minuciosa permitirá que um vulto e uma
arma sejam distinguidos no meio da vegetação do parque. Sem conseguir, contudo, perceber um corpo caído também
entre a vegetação, Thomas acredita, em um primeiro momento, que sua aproximação da cena, na hora que tirava suas
fotos, impediu que um crime tivesse ocorrido. Insistindo no recorte e dilatação das imagens, chega a uma suspeição
a respeito do que existe no lugar onde efetivamente se encontra o corpo. Conhecimento que não pode mais ser re-
almente alcançado através da fotografia, porque o processo de ampliação esgota-se com a perda do próprio desenho:
já não é mais possível reconhecer objeto algum no segmento estendido de pontos e cores que compõem a imagem
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fílmica. Thomas retorna, então, ao parque, dessa vez à noite, para ver se encontra o que não consegue enxergar mais
na fotografia. Lá está, no correspondente ponto onde a imagem é incerta, o corpo do amante, diante dos seus olhos.
Volta para casa e verifica que as fotos não estão mais lá e, finalmente, os negativos foram tirados dele. Apenas uma foto
foi salva, guardada entre dois móveis. Exatamente a foto ampliada que faz suspeitar de algo no meio da vegetação, mas
sem conseguir reproduzir o que é. Thomas não poderá provar a existência do crime, já que não pode, com a fotografia
disponível, revelar a existência de um corpo abatido por um tiro. A imagem comprometedora do atentado é apenas a
sombra de um acontecimento, sem a oportunidade de ser provado – quando Thomas encontra o corpo, havia deixado
sua câmera em casa e não pôde fazer a fotografia derradeira.

Sócrates

“Tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados” (Platão, 2000, p. 226), concluirá
Sócrates depois de ter apresentado a alegoria da caverna, espaço cênico onde as imagens projetadas são vistas como rea-
lidade que não são. O interlocutor de Sócrates é Glauco. Na conversa, o protagonista da trama dialógica montada por
Platão está convencido (e quer convencer) que o estado comum da nossa apropriação da vida é a ignorância – por isso
o prisioneiro no fundo da caverna “assemelha-se a nós” (p. 225). O que acreditamos existir são simulações a respeito
da Ideia, mas não a própria coisa. Manipulações ensaiadas e preparadas para nos confundir, nos fazem crédulos de ar-
timanhas e falsificações: “apresentadores de títeres... exibem as suas maravilhas.” Assim, submetidos desde a infância, e
acostumados à projeção de imagens que conduzem a uma interpretação errônea acerca da nossa própria posição na
vida, Sócrates apresentará a dialética como um caminho seguro, íntegro para um conhecimento reto e perfeito. Com
ela, o homem conhecerá o bem. Condição necessária à realização da magistratura como governante. A República, em
primeiro lugar, é um tratado político. Uma utopia para o governo da cidade. As pessoas não estão em condições de
servir ao Estado, até que se preparem, beneficiados pela compleição e educação, e atinjam um conhecimento raro,
incorruptível e íntegro. Pensar o homem e a política exige o saber primeiro de distinguir o que são as coisas, entre a
aparência que têm e a essência que são.

A elaboração da questão do conhecimento para Platão passa pela admissão de que há uma dupla realidade a ser
considerada. No final do Livro VI, Sócrates pede para Glauco imaginar dois gêneros separados por uma linha: de um
lado o gênero visível e do outro o gênero cognoscível. Pede ainda que outras duas linhas sejam imaginadas, separando
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e classificando em cada gênero as realidades conhecidas. O trabalho do conhecimento é uma trajetória que se percor-
re ultrapassando cada uma dessas linhas até alcançar um conhecimento único – distinto de qualquer outra forma de
apurar o mundo e terminal, porque completo quando encontra as essências, inconfundíveis diante de cada aparência
sugerida pelos objetos sensíveis. No processo da dialética, a aquisição do princípio universal tem o seu ponto mais afas-
tado na admiração das imagens (sombras, reflexos e outras representações semelhantes). Em direção ao conhecimento,
do outro lado da linha existem propriamente os objetos – os originais – que se projetam através das imagens conhe-
cidas. Ultrapassando mais uma linha, agora cruzando o gênero visível e penetrando no gênero cognoscível, temos uma
primeira forma de análise feita de hipóteses. São objetos matemáticos. Aqui, os resultados obtidos são representações
conclusivas das proposições feitas. Mas são ainda decalques do mundo sensível: “eles (aqueles que se dedicam a essas ci-
ências) utilizam figuras visíveis e raciocinam sobre elas pensando não nessas mesmas figuras, mas nos originais que elas
reproduzem” (p. 223). Então, outra linha precisa ser vencida. Agora é possível alcançar princípios – o conhecimento afi-
nal do que é cada coisa, precedente a qualquer aspecto, representação ou reprodução percebidos no mundo – mediante
uma analítica desprovida de imagens e produzida apenas com ideias, inteligência que se opõe à opinião prevalecente na
maior parte das vezes, entre os homens. Nesse termo, o que conquista a alma é a contemplação, regozijo de ascensão à
verdade. É a saída da confusão que reina entre as formas imperfeitas de conhecimento.

No grafismo de linhas em que divide a realidade entre os gêneros sensível e cognoscível, Platão propõe um
paralelo entre o sol e a ideia do bem para explicar a objetividade do que é inteligível – a fonte e não o que resulta do
que é discernível e atraente para uma vida bela. No diálogo com Adimanto, Sócrates dirá que “é o Sol que eu chamo
de filho do bem, que o bem engendrou a sua própria semelhança” (p. 220). Diferente das demais faculdades do ser, a
visão não tem autonomia para realizar sua propriedade. Para o sentido da audição precisa haver apenas a emissão de
um som e a própria audição desperta. O mesmo acontece com a voz. Precisa haver a ação da voz e a sua interpretação,
mais nada. Mas para que a visão se concretize, além dos olhos e daquilo que precisa estar presente nos objetos para que
sejam enxergados, existe a necessidade da luz. Sem a permanência da luz, as duas outras condições não são suficientes
para o olho fixar seu objeto. Não existiria o olhar sem o atrativo da luz. Um paralelo com a atividade do pensamento
é lembrado. Sem a ideia do bem, não existiria a iluminação da inteligência: “o que derrama a luz da verdade sobre os
objetos do conhecimento e proporciona ao indivíduo o poder de conhecer é a ideia do bem”, diz Sócrates (ibidem).
É essa objetividade que permite a ascendência das ideias sobre qualquer representação, sua imutabilidade e preserva-
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ção. Separada do gênero sensível e preservada de qualquer identidade com o que pode ser apreendido, seja através da
exposição, da impressão ou da cópia, a ideia demarca a especificidade do que é próprio do conhecimento, repelindo
o eventual descaminho que conduz ao que é transitório e está sujeito à transformação. Quando Sócrates afirma que
“existem dois reis, reinando um sobre o campo do cognoscível e o outro, do visível”, Platão associa à realidade imanen-
te do sol a gravidade reinante das essências, ao mesmo tempo em que separa a propriedade da luz entre as diferenças
que são a iluminação física e a iluminação da inteligência.

O que você viu?

Entre a história vivida pelo fotógrafo Thomas e a apresentação da alegoria da caverna de Platão há uma seme-
lhança que nos permite um duplo movimento analítico. Por um lado, pensar o que nos traz Blow Up como obra crítica
da cultura, ou seja, indagativa e investigativa do seu tempo, discutida também através de Platão. Em outras palavras, fazer
com que a atualidade de Platão figure também como ponto de apoio na interpretação da obra de Antonioni. De outro
lado, levar Blow Up até Platão e discutir com o personagem de Thomas o que pensava o filósofo, através de Sócrates, a
respeito da realidade da existência: o que é merecido ser vivido? O que é viver belamente? Há um olhar, presente nos
dois autores, desconfiado dos valores e das encenações das respectivas épocas em que viveram – distantes no tempo,
mas próximas na decepção causada pela própria contemporaneidade. Sócrates e Thomas reclamaram que viviam em
épocas confusas. “Todos esses doutores mercenários, que o povo denomina sofistas e considera seus rivais, não ensinam
ideias distintas daquelas que o próprio povo professa nas suas assembleias, e é a isto que chamam de sabedoria”, criti-
cava Sócrates na conversa com Adimanto (p. 202). Observando o estado da vida cívica exibida com a condenação de
Sócrates, escreveu Chistophe Rogue (2002, p. 10),“a Atenas Clássica, que se distraía com discursos, abandonou o sonho
de um logos onde falar seria sempre, com certeza, dizer o ser.” Na cena em que Thomas conversa com Ron a respeito
das fotografias e a composição de seu livro, depois de um comentário do amigo referindo-se às fotos realistas do álbum
(“já bolei algumas legendas”), cruza a mesa onde os dois estão sentados uma mulher com gestos afetados e exagerados
que chama a atenção para a sua imagem. Thomas, com rancor, dispara: “estou com saco cheio dessas vacas. Queria ter
montes de dinheiro. Aí eu seria livre.” O amigo, então, pergunta: “livre pra fazer o quê?” Aponta ainda a foto de um
indigente feita por Thomas e emenda: “livre como ele?” Thomas, enfadado com o vazio que parecia representar seu
trabalho como fotógrafo de moda, espera que o livro conquiste uma aspiração superior para a sua vida. Ron provoca:
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Thomas poderia viver feliz em outro gênero de mundo? O que nos reserva o caminho que conduz a reconhecer, não
mais as ilusões – as falsas imagens projetadas no fundo da caverna –, mas a experiência manifesta da verdade?

A narrativa fílmica de Blow Up, de forma recorrente, sugere um dualismo vivido por seus personagens. Parece
não existir uma integridade entre as diferentes situações que representam. Há sempre um corte que marca a passagem
de uma propriedade para outra, entre as ações realizadas. Na citada conversa entre Thomas e Ron, seu amigo aparece
como alguém razoável, a ponto de perguntar para Thomas o que é a realidade. Quer saber de Thomas se existiria outra
realidade, a não ser aquela que separa a própria fotografia – uma imagética fixada – das prováveis contradições da vida
real. Depois que Thomas verifica que não tem mais o negativo do filme e as fotos ampliadas, corre para a casa de Ron
para contar o que viu no parque à noite. Ao chegar à casa do amigo, encontra uma festa. Atravessa um primeiro ambien-
te, onde as pessoas conversam e vivem a efemeridade do encontro, sem alterações visíveis no comportamento. Depois,
entra em outro ambiente da casa, onde as coisas já não são mais as mesmas. Todos ali estão entregues a experiências de
transgressão e alucinação. Cachimbo, maconha e tudo mais. Thomas toca no amigo de costas e pede sua atenção. Ron
vira e fuma dois cigarros. Tenta contar sobre o corpo do homem que encontrou. O amigo divaga e pergunta: “o que
você viu naquele parque?” Thomas, então, diz: “nada”. Acompanha Ron até outro quarto e lá adormece. Mesmo antes
da sua chegada na casa, Thomas viveu outra situação de dispersão a respeito do que pretendia fazer. Enquanto cruza a
cidade de carro, acredita ter visto a mulher do parque. Desce do carro e procura por ela. Na busca, termina entrando em
um local onde acontece um show de rock com a banda The Yardbirds e lá se vê participando de um quadro de orgiasmo,
que tem início quando um instrumentista quebra sua guitarra. Sai do clube correndo e guardando o braço da guitarra.
Já na rua, joga fora o pedaço do instrumento e segue seu caminho. Esse tema da passagem de um gênero mais ligado
a uma entrega dos sentidos e abandono dos limites, para outro, mais centrado na experiência racional, frontalmente
diferentes no investimento que particulariza cada uma dessas formas de apreensão da realidade, vai ser caracterizado no
filme como um despertar. O personagem acorda da situação de alheamento em relação a um objetivo anteriormente
construído e muda a feição do seu rosto, mirando o que havia abandonado.

Não há nada no parque, nada que Thomas pudesse dizer e provar a sua existência – o corpo havia sumido. E
mesmo o corpo, observa com pertinência Bernardo Carvalho ao resenhar o filme, parecia mais um boneco (Farias,
2003, p. 80). Portanto, nem a certeza de que antes havia mesmo o corpo de um morto é definitiva. A última cena do
filme também acontece no parque. Um grupo de estudantes, caracterizados para uma semana de angariação de fundos,
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com os rostos pintados e simulando intensa alegria, entra na quadra de tênis e inicia uma partida imaginária. Todos
estão compenetrados no andamento do jogo. Thomas acompanha. Um lance defendido com mais força faz com que
a bolinha, irreal, caia fora da quadra. A moça que joga a partida pede para Thomas lançar a bola para a quadra. Ele
precisa decidir. Acredita na realidade ou aceita o jogo das representações? A realidade parece difícil também de separar
da imitação. Para o expectador do filme, todos os movimentos da bolinha na raquete chegam com a audição de uma
partida “verdadeira”, ainda que o som percebido pareça um espectro do que efetivamente deveria ser. Thomas pega
a bola e devolve. Seus olhos movem-se acompanhando a troca de bola entre os jogadores. A audição da partida fica
mais nítida. Mas Thomas parece não seguir mais o jogo. Seus olhos não estão mais na partida. A câmera filma Thomas
de um plano superior, que agora aparece sozinho, diluído no enquadramento. Apanha a sua máquina, que estava no
chão, e logo sua própria figura desaparece. O que se vê é apenas a grama e mais nada. Thomas parece ter desaparecido
junto com as ampliações e o negativo perdido. Mas também com a foto que não fez, quando encontrou o cadáver.
Para Thomas, suas fotos traziam a recorrente ambiguidade presente na história da fotografia. As fotografias de moda,
ou mesmo aquelas mais “realistas”, o que dizem sobre a realidade? Fazem parte da mesma escritura imagética com
que as coisas são fabuladas, sem revelar o que são derradeiramente. E mesmo o olhar oblíquo que nos leva a uma fuga
das ilusões pode ser provocado pelo impensado existente em uma fotografia. Foi uma foto – uma imagem – que levou
Thomas até o corpo descoberto (supostamente descoberto?). Ainda assim uma foto estará sempre incompleta. Tirar
fotos é combater o nada, mas é uma supressão curiosamente sem remate. Para Platão, a dialética nos faz chegar a um
ponto sem representações da realidade: a própria verdade. E a verdade é despretensiosa de uma cópia. Orgulhosa iden-
tidade sem lugar para a ociosa oportunidade de tirar fotografias e perseguir a sedutora imagem de um beijo. Beijo sem
interrupção... Tantas vezes copiado.
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Referências bibliográficas
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ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Petrópolis: Vozes, 2002.

Todas as imagens aqui reproduzidas são fotogramas do filme Blow Up, História de um fotógrafo, extraídas do livro
de Seymour Chatman e Paulo Duncan, Michelangelo Antonioni: a filmografia completa, respectivamente, das páginas 101,
112, 113 e 117.

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