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a poupar dos proprietários agrícolas. de terras.

Marcos Albuquerque e Robert Nícol vão Por tudo isto e pela clara qualidade
buscar, a partir do segundo capítulo, enten- didática do livro, podemos concluir que se
der o papel dos grandes ciclos agrícolas, ten- trata de uma interessante contribuição para
do como pano de fundo a própria história compreender o desenvolvimento nacional
econômica brasileira, fazendo uma interes- e de urna importante obra de economia
sante abordagem às primeiras décadas de co- agrícola que trará novas luzes aos interessa-
lonização portuguesa e interpretando o pa- dos pela área. :::1
pel do açúcar e o caráter de enclave da eco-
nomia do século XVII. Examinam, também,
o ciclo da mineração e o Tratato de Me- GUILHERME MARECHAL OU
thuen, mostrando de que modo contri- O MELHOR CAVALEIRO DO MUNDO
buíram para a formação de uma nação com (Tradução de Renato Janine Ribeiro)
potencial econômico suficiente para atrair o
interesse dos parceiros de Portugal, bem GEORGES DUBY, Rio de Janeiro, Edições do
como o ciclo do café, que representou um Graal. 1988, 212 págs.
passo importante na busca da modernização
e do crescimento econônúco do país. Os au-
tores não deixam escapar algo fundamental Por Afrânio Mendes catani
para compreender a dinánúca da industria- Professor da Faculdade de Educação da
lização brasileira, que é o papel do Estado e Universidade de Si'lo Paulo (USP).
sua associação com a agricultura. Ocupam-se
de quase um século de agricultura (1850-
1930), destacando a ausência de uma revo- Inglaterra, 14 de maio de 1219, por volta
lução agrícola no Brasil e fazendo um corte de meio-dia: um cavaleiro de 73 anos, cerca-
analítico por produto, onde notamos o pa- do de seus familiares, criados, religiosos e
pel crucial do café na geração de mercado ainda bem lúcido dá suas últimas ordens,
para produtos manufaturados, na vinda dos despede-se daqueles que mais ama e põe fim
imigrantes, na compra de equipamentos e a uma agonia que durou cerca de três meses.
no processo de acumulação, elementos esses Nessa época, em que "o costume sustenta a
que seriam decisivos na gênese da indus- ordem no mundo", as belas mortes se cons-
trialização recente do país. tituem em verdadeiras festas. O ritual da
No quinto e último capítulo, os autores morte à maneira antiga não era uma partida
tratam especificamente dos vinte últimos furtiva, esquiva, e sim uma chegada lenta,
anos que precederam a década de 1980 e, regrada, governada ~ "um prelúdio, passa-
para isso, utilizam uma profusão de dados gem solene de uma condição para outra, su-
bem trabalhados que ajudam a ressaltar a perior, mudança de estado tão pública quan-
importância da agricultura no Brasil e per- to as bodas, tão majestosa quanto a entrada
mitem discutir com bom embasamento dos reis em suas leais cidades" (p. 10).
questões como produtividade, posse da ter- O acompanhamento do ritual da morte
ra, deficiências de infra-estrutura e o proces- de um célebre cavaleiro medieval, ocupan-
so de urbanização. Analisam o papel es- do todo um capítulo, dá início ao excelente
pecífico da agricultura como liberador de livro de Georges Duby, Guilhenne Marechal
mão-de-obra para a indústria, como fornece- ou o Melhor Cavaleiro do Mundo, traduzi-
dor de matérias-primas e alimentos e no do de maneira impecável pelo Professor Re-
aporte de capitais, ressaltando também o seu nato Janine Ribeiro. Professor do College de
desempenho no modelo de substituição de France (Paris), Duby é na atualidade um his-
importações e no.contexto do modelo expor- toriador reconhecido internacionalmente
tador, além do papel de gerador de demanda pela sua capacidade de aliar sua extraor-
por bens industriais. dinária erudição à virtude de tomar o
Abordam, ainda, a expansão das frontei- período ,medieval acessível ao grande
ras agrícolas, o favorecimento dos preços in· público. E autor, entre tantas outras obras,
ternacionais e a abundância de crédito como de Tempo das Catedrais, As Três Ordens ou
razões do sucesso do setor e entram na po- o Imaginário do Feudalismo, O Ano Mil, Le
lêmica da reforma agrária, recomendando Chevalier, la Femme et le Prêtre.
que se pratiquem políticas complementares Duby segue o percurso de Guilherme
de emprego e de incentivo à produção · Marechal através de um manuscrito em
agrícola nos latifúndios, como alternativa perganúnho, verdadeira canção de gesta en-
ao simples incentivo à aglomeração de ter- comendada pelos herdeiros de Guilherme.
ras nos grupos de pequenas propriedades, e O objetivo: tornar o Marechal presente,
às propostas convencionais de redistribuição vivo, uma vez que a dinastia que levava seu

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nome pouco perdurou após sua morte. O (ela era a segunda herdeira mais rica da In-
pergaminho tem 127 folhas com duas colu- glaterra). O Marechal tinha mais de 50 anos
nas de 38 linhas cada, perfazendo 19.914 ver- e a donzela apenas 17, tendo ela gerado 5 ho-
sos. O autor do texto - que consumiu sete mens e 5 mulheres. Uma glória derradeira
anos de trabalho foi um trovador que assi- ainda esperaria pelo Marechal: em outubro
nou apenas como João (acredita Duby que de 1216, pouco antes de morrer, João sem
tenha sido João de Early, amigo íntimo do Terra o designou regente do futuro rei da
Marechal). Sendo trovador, João não se in- Inglaterra, Ricardo III, então com 12 anos.
formou em bibliotecas eruditas, fazendo um Georges Duby produziu um quase ro-
trabalho independente e original, bebendo mance, pois Guilherme Marechal se dis-
em outras fontes que sem ele ficariam ina- tingue dos trabalhos acadêmicos tradicio-
cessíveis nos dias de hoje, pois pertencem à nais. Escrito num estilo leve, despido de in-
v~rtente profana da cultura do século xm. troduções teóricas e notas de rodapé, o livro
Assim, o manuscrito explorado pelo histo- é para ser devorado num fôlego só. A partir
riador vem a ser "a memória da cavalaria do estudo do professor francês, torna-se
em estado quase puro" (p. 48). Duby se vale possível chamar a atenção para algumas
ainda de duas obras eruditas, a saber, a constatações sobre a época. De início, obser-
edição da História (3 volumes), organizada va-se que a maior parte das propriedades e
por Paul Meyer e publicada pela Sociedade dos bens das farru1ias nobres eram herdadas
Histórica Francesa (de 1891 a 1901) e, tam- pelos primogênitos, cabendo aos demais fi-
bém, o livro do medievalista americano lhos homens pequenas migalhas. A socie-
Sidney Painter, William Marshall, Knight- dade era eminentemente masculina, e
errant, Baron and Regent of England quando se pronunciava a palavra amor,
(Baltimore, 1933). queria-se referir "ao ápice da amizade varo-
A partir dessas fontes, Duby pretende es- nil". As crianças praticamente não tinham
clarecer aquilo que ainda se conhece pouco, existência, sendo a infância um mero "lugar
isto é, a cultura dos cavaleiros: "quero ape- de passagem" para a vida adulta. As mu-
nas tentar ver o mundo como esses homens lheres eram, com freqüência, dadas em casa-
o viam" (p. 55). Seguindo a trajetória de mento (acompanhadas do respectivo dote)
Guilherme Marechal (1145 (?)- 1219) ele re- aos filhos dos senhores amigos, bem como
constrói o quotidiano das sociedades !n- de ex-inimigos. Neste último caso, com a fi-
glesas e francesas nos séculos XII e XIII. E o nalidade de se manter a paz numa determi-
mundo dos cavaleiros, dos torneios, das nada região, onde mais de um senhor pre-
guerras constantes, da vida e da morte da dominava. Além disso, os reis podiam dis-
nobreza na Idade Média. Praticamente rele- por das viúvas para entregá-las, com a fina-
gado pela historiografia oficial, Guilherme lidade de contrair novas núpcias, a cavalei-
foi provavelmente o último e o maior dos ros que haviam prestado serviços relevantes
cavaleiros andantes. Quarto filho de família à coroa. Apesar de a sociedade ser eminente-
não inteiramente nobre, onde apenas o pri- mente masculina, ressalta o Professor do
mogênito era o herdeiro legítimo, ele foi o- College de France que nessa época o único
brigado a participar de inúmeros torneios e poder autêntico é o dos homens casados. "O
batalhas para sobreviver, principalmente os homem vale mil vezes mais do que a mu-
que se realizavam no norte da França, ga- lher, mas não vale quase nada se não pos-
nhando um pouco de dinheiro, fama de suir ele próprio uma mulher, legítima, na
bom combatente e honras por sua lealdade a sua cama, no centro de sua casa." (p. 181.)
algumas casas reais. Lendo Guilherme Marechal ou o Melhor
Em 1170, Henrique li o designou "para Cavaleiro do Mundo nos empolgamos com
guardar e instruir o rei moço da Inglaterra", a narrativa de Duby, e devemos dar graças
que tinha apenas 15 anos. Depois de alguns aos céus que o cavaleiro andante encontrou
anos o Marechal voltou aos torneios para na pessoa de um anônimo trovador um
ganhar o seu sustento. Retomou à corte de biógrafo à altura. Sua pena permitiu que
Henrique li com quase 50 anos e o defendeu todo um período histórico fosse resgatado,
até a morte dos ataques de seu filho Ricardo possibilitando que fenômenos quase mile-
Coração de Leão, que estava aliado aos cava- nares hoje nos influenciem nos mínimos
leiros de França. Em combate, Guilherme gestos. Aliás, não é por outra razão que Er-
derrubou Ricardo de seu cavalo, mas pou- win Panofsky nos lembra que, quando al-
pou-lhe a vida. Com a morte de Henrique 11 guém tira seu chapéu para cumprimentar,
e a ascensão ao trono de Ricardo, mesmo a está reproduzindo, sem o saber, o gesto dos
contragosto o novo monarca lhe concedeu cavaleiros da Idade Média, que tiravam seus
como mulher a "donzela de Sttiguil", capacetes para manifestar suas intenções
riquíssima herdeira com mais de 65 feudos pacíficas. O

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