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INSTITUTO FEDERAL DO CEARÁ


Campus Fortaleza
Departamento de Artes
Curso de Licenciatura em Artes Visuais
Metodologia do Trabalho Científico - 40 horas aula-2015/1
Prof. Gilberto Andrade Machado
Aluna: Renata Andrade Frota
Matrícula: 20181014040320

QUATRO IMAGENS DO MERCADO SÃO SEBASTIÃO: DIÁLOGOS PARA O


MUNDO LÍQUIDO MODERNO

1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho foi desenvolvido para a disciplina de Metodologia do Trabalho
Científico e tem como objetivo realizar uma pesquisa em arte para abordar o conceito de
mundo líquido moderno, cunhado por Zygmunt Bauman, a partir de quatro imagens do
Mercado São Sebastião. Para tal, adotou-se uma metodologia qualitativa. Foram realizadas
visitas in loco, a elaboração de um diário de campo, registro e tratamento das imagens.
Somente a partir de então, pude realizar o diálogo das imagens com a ideia desenvolvida pelo
sociólogo polonês.

2. REFERENCIAL TEÓRICO
Conforme citei anteriormente, para realizar este ensaio me baseei em dois conceitos
principais: o de pesquisa em arte, articulado por Silvio Zamboni em Pesquisa em Arte: um
paralelo entre Arte e Ciência e o de mundo líquido moderno, trabalhado por Zygmunt
Bauman em 44 cartas ao mundo líquido moderno.
Partindo da definição trabalhada por Zamboni, na qual “(…) pesquisa em artes, por ser
uma atividade sistemática, requer um método, que todo método implica premeditação e toda
premeditação é atividade na qual participa fortemente o intelecto e o racional.” (2001, p. 95),
desenvolvo aqui uma pesquisa em artes. Neste trabalho não parto de uma especulação ou de
uma atividade de caráter unicamente intuitivo – ainda que tais perspectivas atravessem esse
estudo – mas adoto aqui um método, uma sistematização. Realizo uma pesquisa qualitativa,
que tem como objeto de estudo quatro imagens do Mercado São Sebastião e busca debater
sobre o seguinte problema: como estas imagens do dialogam com o conceito de “mundo
líquido moderno”.
A partir daí entro no segundo conceito que dá base a este ensaio. Em 44 cartas ao
mundo líquido moderno, Bauman se refere a mundo líquido enquanto um mundo onde nada
“conserva sua forma por muito tempo” (2011, pg. 5). Um mundo em que tudo está em
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constante e desenfreada mudança. O foco não se detém por tanto tempo em algo. Vive-se em
compasso acelerado, veloz. Não há tempo para andar. É preciso correr. E, para além de correr,
estar sempre à frente. Não há chance para o processo, a ordem é o progresso. Tudo precisa
estar pronto e acabado, acontecer para ontem. Além disso, é fundamental ser visto,
amplificado pelo megafone da internet. É um mundo onde tudo é possível com um clique,
mas onde nada supre a dor, cada vez mais profunda, de existir. Em suma, o sociólogo polonês
tece uma crítica ao sistema capitalista e ao alto preço que se paga pela sua manutenção.
Sendo assim, como dialogar o conceito de mundo líquido moderno a partir de quatro
imagens do Mercado São Sebastião? É possível? E mais: é possível falar de mundo moderno
líquido e tentar enxergar contrapontos a ele? Ver resistências à evanescência que o capitalismo
nos lança? Busco responder tais questionamentos a partir de um olhar do Mercado que fugisse
a óbvia paisagem de agitação. Persegui o silêncio e as ausências por toda a parte do lugar,
para tratar da relação do tempo, da solidão, solitude e durabilidade que Bauman tanto articula
em sua obra.

3. METODOLOGIA
Para a elaboração desta pesquisa foram realizadas três visitas ao Mercado São
Sebastião, bem como a execução de diários de campo, registro e tratamento das imagens.
As visitas foram realizadas nos dias 4, 23 e 30 de maio. A primeira visita aconteceu
pela manhã, por volta das 8horas e 30min de modo coletivo e direcionada pelo professor.
Neste contato inicial com o Mercado a turma ainda não sabia o objetivo da visita. Sendo
assim, a observação do espaço e das relações que o atravessam não estava direcionada a um
objeto de estudo. Fomos divididos em grupos (com cerca de seis pessoas), os quais deveriam
se limitar a visitação de um setor do Mercado. Eu fiquei com o grupo do segundo piso, Setor
A. De modo geral, me detive a dados quantitativos, entretanto, somente ao final desse
primeiro contato, quando me deparei com um telefone público, acredito que comecei a
enxergar. Detive-me nele por alguns instantes. Comecei a devagar sobre a relação do ser
humano com o tempo. Eu não fazia ideia, mas esse trabalho começou ali.
Ainda no primeiro dia de contato com o Mercado São Sebastião, a turma foi orientada
a realizar uma outra exploração do lugar. Desta vez, de modo livre, individual ou não. Visitei
todos os setores do Mercado, mas nenhum mexeu tanto com o meu olhar quanto o jardim. O
espaço, chamado “Jardim Beto & Lina”, embora escondido, nos fundos, no subsolo do
Mercado, salta. É um contraponto à balbúrdia que compõe a paisagem do equipamento. Ali, a
noção de tempo parece se dilatar. Na verdade, retifico-me. Ali, os ponteiros que graduam o
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tempo deixam de existir, e sua marcação se torna outra. Ao final da visita, quando fomos
informados do trabalho que faríamos eu já sabia que fotografaria o jardim.
Realizei a segunda visita por volta das 15h30. Neste dia já parti com uma ideia mais
clara do local de registro das imagens e como articulá-las com o conceito de Bauman e com as
questões que eu gostaria de levantar. O jardim e sua relação com o tempo eram o meu foco
principal. Esse dia me rendeu a primeira e a segunda imagem que apresento no capítulo
seguinte.
A última visita fui acompanhada por uma pessoa. Dessa vez, cheguei no Mercado às
13h30, já que ainda não tinha conferido o espaço nesse horário. O objetivo dessa vez era
registrar a imagem do telefone público do segundo andar do setor A. Foi uma surpresa não me
deparar com ele. Havia sido removido do local. Fotografei outro. A última foto, a qual
explanarei melhor adiante, foi um achado. Completamente acidental. Eu estava na loja de
artigos umbandistas quando visitei o box vizinho e me deparei com uma antiga cadeira de sol.
Ela era a resistência que eu queria retratar nas imagens.
Por fim, as imagens foram tratadas via instagram. Optei pelo uso do aplicativo, pois
ele retrata bem a ideia de instantaneidade que Bauman aborda em sua obra, de liquidez. Não
preciso ter profundo conhecimento em fotografia, muito menos em edição de imagens para
tratá-la no aplicativo. Tudo é simples, prático, rápido, bastam poucos toques.
3.2.1 HISTÓRICO DO MERCADO SÃO SEBASTIÃO
De acordo com o site Fortaleza em Fotos, o Mercado São Sebastião data do final da
década de 1930. Localizado na Praça Paula Pessoa, a princípio adveio de parte da estrutura
metálica do antigo Mercado de Ferro. No entanto, com o passar dos anos a estrutura tornou-se
pequena diante da demanda do comércio local. Sendo assim, a estrutura de ferro novamente
fora desmontada e enviada para onde hoje se conhece por Mercado da Aerolândia. Após o
desmonte, o Mercado São Sebastião foi reformado e entregue a população, nos moldes que se
conhece atualmente, em 1997, durante a gestão do Prefeito Juraci Magalhães.
Atualmente o espaço é administrado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, por meio
da\ Secretária Regional do Centro (Secefor), e comporta mais de 400 boxes, nos quais são
vendidos os mais variados produtos como: frutas, verduras, carnes, ervas, plásticos, roupas,
artigos umbandistas, entre outros.
Conforme explanei na metodologia, dentre os diversos setores que compõem o
Mercado, o meu olhar recaiu sobre o jardim, o telefone público e uma antiga cadeira de sol.
Sendo assim, na sequência apresento as quatro imagens, que foram realizadas nestes espaços.
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3.2 IMAGENS SELECIONADAS


3.2.1 PRIMEIRA IMAGEM

Essa imagem foi registrada no jardim, durante a segunda visita ao Mercado.


Faz um tempo já vinha pensando como temos a aprender com os gatos, essas criaturas que
habitam o nosso mundo há mais de nove mil anos. Ao vê-lo no espaço em que eu já tinha
como objetivo trazer nesse trabalho, fui quase que imediatamente impelida a fazer essa
fotografia. Aqui, reflito sobre quanto o gato representa aquilo que nesse dito mundo líquido,
em sua lógica capitalista, se quer abolir. A relação dessa espécie com o tempo, a solidão e a
solitude é, por vezes, incompreensível para a sociedade na qual estamos inseridos. Após ler
Bauman, principalmente a carta número 2, “Sozinhos no meio da multidão”, esse meu olhar
sobre os pequenos felinos se acentuou. Nesse trecho da obra, o autor fala da incapacidade de
nos defrontarmos conosco, com nossos próprios buracos, vazios, e, consequentemente da
nossa dificuldade em lidar com o outro. Temos traçado uma fuga contraditória, da solidão e
do contato. Ingenuamente acreditamos escapar do vazio que nos toma, por meio da
companhia dos – ou proporcionada pelos – aparelhos eletrônicos. No entanto, fugimos das
consequências de nos relacionarmos com o outro, nos contactando excessiva e
superficialmente no meio virtual.
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O gato vive em um outro tempo. No seu próprio tempo. No seu próprio ritmo. Se
relaciona consigo. Preza a sua solidão. Mas, quando lhe convém, quando lhe apetece, procura
o outro. Procura o contato. Relaciona-se e torna para si. Por aí, gatos levam fama de falsos, de
ariscos, pouco afetuosos. Esse discurso me parece falar muito mais da nossa incapacidade de
nos relacionarmos conosco e, consequentemente, com o outro. O gato é um furo nessa forma
de se relacionar. Esse animal sabe ser só, vivenciar a solitude, se deleitar com o tempo, com o
ócio e relacionar-se com o outro sem mergulhar numa dependência desse outro.
Para além do gato, essa imagem grita mais dois tempos, completamente díspares. O
tempo das plantas, o silêncio delas, e de seu processo, gradual. As caixas espalhadas no chão
vociferam a falta do tempo. Elas praticamente engolem os outros elementos que compõem a
imagem. Engolem tal qual a sociedade do consumo nos engole. Engole o nosso tempo, a
nossa singularidade, as nossas relações e não nos dão espaço para o processo. Queremos tudo
pronto e acabado. Encaixotados, disponíveis a um clique.
Isso será o paraíso na Terra? Nosso sonho enfim realizado? Será esta a solução
definitiva para a pungente ambivalência da interação humana, a um só tempo
confortadora e estimulante, mas incômoda e cheia de ciladas? As opiniões se
dividem a esse respeito. O que parece estar fora de dúvida é que pagamos um preço
por tudo isso – um preço que pode se revelar alto demais.
(Bauman, 2011, pg. 11)

3.2.2 SEGUNDA IMAGEM


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A segunda imagem também foi feita na visita do dia 23. A princípio, ela não faria parte
das selecionadas. Todavia, ao rever os registros que realizei ao longo das visitas, ela me
pareceu falar muito mais do que eu supunha. Ela mostra um pouco da localização do jardim
Beto & Lina. No subsolo do Mercado. Submerso. No fundo. Quase enterrado. Um jardim,
onde a lógica do tempo me parece outra. Uma lógica de tempo da ordem do processo. E não
do progresso. Cada planta com seu tempo de maturação. Um tempo dilatado, um tempo livre.
Livre de ponteiros. Cada vez mais esse outro tempo, o tempo dos processos, o tempo da
singularidade, some. Gradativamente tem sido deixado de lado. Recalcado, esquecido,
lançado para um canto escondido. No subsolo da nossa sociedade. O que salta é o tempo
amarrado, o tempo escasso, o tempo faltoso, prestes a findar-se. E precisa-se correr, cada vez
mais depressa, pois é preciso se ter tudo, viver tudo. Tudo num espaço mínimo de tempo.

O pé do Tempo agora berra na telinha da tevê e nos fones de ouvido, em cada página
das revistas de amenidades – e nas conversas de seus militantes, voluntários ou
involuntários, não pagos (e ironicamente pagantes!), mas bravos, assim como de
seus agentes não pagos, embora dedicados e zelosos. A despeito de Shakespeare, o
“pé do Tempo” não deve mais ser inaudível. Os sons emitidos por sua labuta ou
prosápia são sinais de alarme: jamais esqueçam que o tempo tem pés ágeis, vivos e
velozes, e (como Lewis Carroll nos advertiu profeticamente) é preciso correr o mais
rápido possível para permanecer onde se está.
(Bauman, 2011, pg. 57)

3.2.3 TERCEIRA IMAGEM


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Foi me deparando com o telefone público que eu comecei a olhar o Mercado, sem ainda fazer
ideia que construiria uma articulação com o conceito de modernidade líquida. Ver o telefone
público me remeteu à minha infância que, embora muito recente, parece uma outra era. No
tempo da minha infância não existia celular, ainda enviei telegrama. As informações não
chegavam tão depressa quando agora. Encontrar um orelhão na rua, em muitas ocasiões, era
providencial, a solução de muitos problemas. Atualmente, quem sequer dá conta da existência
desse resto de passado pelas ruas? Não há mais sentido em um telefone público em meio ao
um mundo de celulares. O contato está na palma da mão, 24 horas. Basta um toque. Tão
simples!
O telefone público dessa foto não foi o que vi no dia da primeira visita ao Mercado. O
primeiro que vi foi desinstalado dias depois que estive no local. Soube no dia em que tirei
essa foto, na minha última visita ao Mercado. O telefone fora descartado e seu descarte me fez
pensar na relação que mantemos com o nosso passado, com a nossa memória. Deparo-me
aqui com uma questão que Bauman vai pontuar repetidamente em sua obra: a durabilidade.
Na sociedade de consumo, tudo tem um tempo cada vez mais curto para expirar. Como falar
de memória quando tudo parece evanescente? Quando impera o instantâneo e o por vir?
Memória me parece perder a sua razão de ser. O esquecimento é imperativo. Precisa-se
descartar, esquecer, apagar, pois se precisa de espaço para as possibilidades do por vir.

Falar sobre a capacidade de durar por muito tempo não é mais um elogio aos objetos
nem aos vínculos humanos. Presume-se que uns e outros sejam úteis apenas por um
tempo fixo e depois se desintegrem, sejam rasgados ou jogados fora quando
ultrapassam seu tempo de validade – o que ocorrerá mais cedo ou mais tarde. Assim,
devemos evitar a posse de bens de longa duração, sobretudo aqueles que nos custam
mais descartar. O consumismo de hoje não visa ao acúmulo de coisas, mas à sua
fruição instantânea e imediata.
(Bauman, 2011, pgs 73 - 74)

Não tenho dúvidas, em um retorno ao Mercado São Sebastião, não verei mais esse telefone da
foto.
3.2.4 QUARTA IMAGEM
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Eu encontrei a última imagem quando não estava procurando-a. Ela foi um tropeço. Um
derrapar. Mas um derrapar que me levou a uma das imagens que mais me afetou. Bem como o
telefone público, me deparar com essa cadeira me lançou novamente às memórias da minha
infância. Em frente a casa onde eu morava na época, havia uma mercearia. O dono do
estabelecimento tinha uma cadeira como essa. Ele passava horas sentado nessa cadeira,
confortável com o tempo. Amigo dele. Tão diferente de mim, filha desse tempo, que não
suporta o ócio, pois acredita que não fazer algo é perder tempo. Essa foto foi a que mais me
afetou, pois ela reforça a resistência que busquei farejar nesse trabalho, a resistência à liquidez
de nossos tempos. Essa cadeira, o local onde ela se encontra, de um silêncio, de uma solidão
que temos uma dificuldade absurda de suportar. A loja onde ela se encontra traz diversos
artigos de um tempo em que o tempo não era inimigo. Em que estávamos presentes, off-lines.
A existência dessa cadeira me remete a insistência da permanência. E insistir numa
permanência, na demora, na presença, me parece uma forma de resistência ao sistema no qual
somos impostos a seguir.

4. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
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Considero que o presente trabalho segue o que Zamboni coloca como Pesquisa em
Arte, uma vez que aqui adoto uma sistemática. Sigo um método, levanto hipóteses, apresento
um objeto de estudo, um problema, enfim, não desenvolvo apenas uma atividade intuitiva ou
especulativa – ainda que a especulação e a intuição atravessem a elaboração deste trabalho,
afinal, aqui trabalho com o olhar de artista-pesquisadora.
Seguindo esse formato, concluo que foi possível dialogar o conceito de mundo líquido
moderno a partir de quatro imagens do Mercado São Sebastião. Em cada fotografia busquei
trabalhar algumas ideias lançadas pelo sociólogo como a solidão, a solitude, o modo como se
lida com a memória e o descarte do passado. Acredito também ter alcançado o intuito de
abordar, em cada imagem, a relação da sociedade moderna líquida com o tempo. E,
principalmente, a partir da quarta fotografia, creio ter conseguido ensaiar um princípio de
debate sobre a possibilidade de fissura, de resistência a imposição da velocidade, da liquidez
dessa sociedade em que estamos inseridas e inseridos.

5. REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2011. Disponível em:
<https://labmus.emac.ufg.br/up/988/o/BAUMAN__Zygmunt._44_cartas_do_mundo_l
%C3%ADquido_moderno.pdf> Acesso em: 1 de junho de 2018

FORTALEZA EM FOTOS. Mercado São Sebastião. Disponível em:


<http://www.fortalezaemfotos.com.br/2011/03/mercado-sao-sebastiao_28.html> Acesso: 24
de maio de 2018

ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. 2. ed. São Paulo:
Autores Associados, 2001.

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