You are on page 1of 217

____Análises de uma

Juventude Conectada:
Governança da Internet

YOUTH OBSERVATORY
GRUPO ESPECIAL DE INTERESSE DA INTERNET SOCIETY

EDIÇÃO EM PORTUGUÊS
NOVEMBRO 2017

PATROCÍNIO:

Guilherme Alves, Adela Goberna,


Sara Fratti ET AL. (Org.)
Análises de uma Juventude Conectada: Governança da Internet
Edição em Português
Novembro 2017

Esta obra está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-


CompartilhaIgual 4.0 Internacional.
Mais informações: creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt_BR

O conteúdo dos artigos apresentados neste livro é de inteira responsabilidade de seus respectivos
autores, que concordaram com o uso da licença Creative Commons.

Exemplar gratuito - Proibida a venda

Organizado por Youth Observatory


Grupo Especial de Interesse da Internet Society

CONTATO COMISSÃO EDITORIAL COMISSÃO DE AVALIAÇÃO


DE ARTIGOS
obdjuv.org Adela Goberna
odjuventud@gmail.com Carlos Guerrero Agustina Callegari
Élisson Diones Élisson Diones
Esteban Calisaya Esteban Calisaya
Guilherme Alves Estefanía Román
Luã Fergus Guilherme Alves
Sara Fratti Israel Rosas
Sarah Linke Juan Pablo González
Viviane Vinagre Kimberly Anastacio
Luã Fergus
Pollyanna Rigon
Sara Fratti
Sarah Linke
Thais Stein
Viviane Vinagre

TRADUÇÃO REVISÃO ARTE DE CAPA E


DIAGRAMAÇÃO
Gustavo Amaral Guilherme Alves
João Mino Luã Fergus Ana Seno
Leonardo Simões Charles L’Astorina

PATROCÍNIO:

Para baixar este livro em


formatos digitais (disponível
também em Espanhol e Inglês),
acesse <bit.ly/livro_youth_pt>
ou utilize o QR code
_AGRADECIMENTOS

À SaferNet Brasil e Internet Society, pelo patrocínio na edição


deste livro;

Às autores e aos autores, que acreditaram em nosso trabalho e


nos confiaram suas reflexões;

À Comissão de Avaliação, cujos integrantes voluntariamente nos


ajudaram na seleção dos artigos.

Comissão Editorial do Youth Observatory


Novembro de 2017
SUMÁRIO

7_ APRESENTAÇÃO

9_ PRÓLOGO

10_ PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET


11_ FEMINISMO DIGITAL: UMA PROPOSTA PARA UMA INTERNET INCLUSIVA
Angélica Contreras

21_ ENTREVISTA: COMO TRATAR VIOLÊNCIA DE GÊNERO ONLINE NA CHAVE DA


JUVENTUDE PERIFÉRICA BRASILEIRA?
Mariana Giorgetti Valente e Natália Neris

31_ ACESSO E DIVERSIDADE


32_ CONECTANDO O PRÓXIMO BILHÃO PARA QUEM?
Hudson Lupes Ribeiro de Souza

41_ DADOS ABERTOS E O PODER DOS CIDADÃOS QUE FISCALIZAM


Juliana de Freitas Gonçalves

48_ INCLUSÃO DIGITAL


49_ E-INCLUSÃO E BRECHA DIGITAL, VULNERABILIDADE E EXCLUSÃO SOCIAL: UM
CAMINHO PARA A REINTEGRAÇÃO SOCIAL DOS QUE TÊM OU TIVERAM UMA
EXPERIÊNCIA EM INSTITUIÇÕES PENITENCIÁRIAS?
Georgina A. Guercio

62_ POLÍTICAS PÚBLICAS TIC PARA A GERAÇÃO DE CAPACIDADES DIGITAIS EM JO-


VENS A PARTIR DA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Maureen Merchán De las Salas

73_ CIBERSEGURANÇA
74_ NUANCES DA PRIVACIDADE NA ERA DIGITAL
Arthur Emanuel Leal Abreu

81_ PESSOA ONLINE, PRIVACIDADE E PROTEÇÃO DE DADOS FRENTE AOS DIREITOS


HUMANOS DE QUARTA GERAÇÃO: UM DESAFIO PARA O SISTEMA NACIONAL DE
TRANSPARÊNCIA NO MÉXICO
Natalia Mendoza Servín
90_ DIREITOS DIGITAIS
91_ A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ NOS PROCESSOS DE REFORMA DO MARCO
REGULATÓRIO DAS TECNOLOGIAS INFOCOMUNICACIONAIS NA ARGENTINA
Julieta Colombo Gardey e Antonella Maia Perini

105_ A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NA ECONOMIA DIGITAL


Silvana Cristina Rivero

112_ UM DIREITO PARA A GOVERNANÇA DA INTERNET


Juan Daniel Macías Sierra

118_ CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET


119_ CROWDFUNDING DIGITAL COMO EXEMPLO PARA A CONSTRUÇÃO DE CAPITAL
SOCIAL E O CRESCIMENTO DAS COMUNIDADES
Claudia C. Arruñada Sala

131_ DIREITO À INFORMAÇÃO E DIREITOS DE AUTOR: PARADIGMAS NA ERA DIGITAL


Rafael Ríos Nuño e José Benjamín González Mauricio

141_ A PROPRIEDADE INTELECTUAL NA ECONOMIA DIGITAL


Silvana Cristina Rivero

150_ INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA


151_ POLÍTICAS DE INOVAÇÃO PARA APERFEIÇOAR O USO DA TECNOLOGIA POR
POPULAÇÕES IMIGRANTES
Martha Cisneros e Dámaris Contreras-Luzanilla

165_ RUMO AO ILUMINISMO DIGITAL: COMO CONSTRUIR PENSADORES CRÍTICOS NA


ERA DIGITAL?
Fernando A. Mora

178_ PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET


179_ COMO A “COLONIZAÇÃO DE MERCADO” DA INTERNET TRANSFORMOU CIDADÃOS
EM MEROS CONSUMIDORES? MARKETIZAÇÃO DO ESPAÇO ONLINE
Gloria J. Guerrero Martínez

189_ REDES DE POLARIZAÇÃO E ÓDIO: A TRANSFORMAÇÃO DA REDE COMO


PROPAGADORA DA CULTURA DE ÓDIO PELAS BOLHAS DE FILTRO
Leandro Racuia e Victor Andrês Veloso Cavadas

207_ DEFESA DA CONCORRÊNCIA E PLATAFORMAS ONLINE EM TEMPOS DE BIG DATA


Paloma Szerman
APRESENTAÇÃO

_O QUE AS JUVENTUDES LATINO-AMERICANAS TÊM A


CONTRIBUIR NA GOVERNANÇA DA INTERNET?

Essa tem sido uma provocação constante do Youth Observatory desde sua fundação, em
2015, durante o Fórum de Governança da Internet (IGF) de João Pessoa, Brasil. Surgimos com
jovens que, comprometidas e comprometido nos espaços políticos de governança nacionais,
regionais e globais, viram a necessidade de trabalhar em coletivo para pensar os impactos
da rede em suas realidades e propor soluções para os problemas ao seu redor.

Somos parte da geração que cresceu junto com expansão da rede e, como tantas outras
iniciativas jovens, queremos assumir a responsabilidade de construí-la ativamente. A
Governança da Internet foi a frente de atuação que escolhemos, e em nosso horizonte
está o uso dessa poderosa ferramenta no enfrentamento das desigualdades sociais —
especialmente na América Latina e Caribe, e ainda mais especificamente junto a outras
juventudes, muitas vezes impedidas de compartilhar das transformações positivas que a
rede vem possibilitando para nós.

De lá para cá, temos procurado mostrar que queremos mais do que voz — mesmo
que ser ouvido já seja uma importante vitória em espaços políticos muitas vezes pouco
inclusivos. Queremos aprender e nos empoderar juntos, tornando-nos “atores de nossa
própria realidade na construção da Governança da Internet”1.

Passo a passo, em múltiplas frentes, de forma coletiva e descentralizada — não surpresa,


características da própria Internet — temos nos inserido em diferentes iniciativas. Aceitos
como Grupo de Interesse Especial da Internet Society, vimos nossas possibilidades de diálogo
se expandirem para jovens de todo o mundo, um desafio ainda à nossa frente. Estivemos
presentes, com a ousadia típica das juventudes, em fóruns nacionais, regionais e também
no IGF global de Jalisco, México em 2016, levando propostas e críticas às discussões mais
atuais no setor. Também desde 2016, o Youth Observatory é organizador do YouthLACIGF,
primeiro espaço de diálogo e sinergia entre jovens latino-americanos sobre Governança da
Internet, realizado em San José, Costa Rica, e Cidade do Panamá, Panamá, como eventos
prévios à Reunião da América Latina e Caribe preparatória para o IGF, LACIGF. Além disso,
lideramos a Declaração das Jovens Mulheres Latino-Americanas2, documento que propõe
uma perspectiva feminista e jovem na construção da Governança da Internet.

E nosso desejo por mais ações de impacto, socialmente referenciadas, só cresce.

1 Para ler a declaração “Nós, a juventude da América Latina e Caribe”, documento que desenhou
os princípios da fundação do Youth Observatory, acesse <igf2015.br/pt-BR/declaration/> (disponível
em espanhol, português e inglês).

2 Para ler a declaração “Enabling access to empower young women and build a feminist Internet
Governance”, acesse <bit.ly/2ufKwz1> (disponível em inglês).
_PLURALIDADE

Até aqui, temos falando sempre em “juventudes”, no plural. Não foi uma escolha
ao acaso. Acreditamos que é impossível falar em juventudes — e em suas demandas,
opiniões e ações — no singular. Nós abraçamos a diversidade de nossas formações,
áreas de atuação, culturas e opiniões como algo que nos fortalece, e que certamente
fortalece também a Governança da Internet.

É neste sentido que este livro, resultado de um processo inédito e instigante para
nós, surge.

“Análises de uma juventude conectada” se propõe a reunir diferentes pensamentos


de jovens sobre temas de interesse da Governança da Internet. Em nossa chamada,
estivemos, de propósito, muito abertos quanto a formatos e abordagens, e fomos
surpreendidos positivamente de muitas formas: recebemos artigos científicos e de
opinião, entrevistas e ensaios, tratando sobre assuntos que dialogam entre si, com as
realidades de seus autores e autoras, e com a disruptividade que marca a evolução da
rede.

Nossa comissão de avaliação, formada por integrantes do Youth Observatory das


mais diversas áreas de atuação, finalizou seu trabalho com a seleção de 19 artigos, de 4
países diferentes (Argentina, Brasil, Colômbia e México), escritos em português, inglês
ou espanhol, por jovens entre 21 e 31 anos; dos 23 autores, 15 são mulheres.

Este livro busca capturar um pouco — num mar de muitos — do que tantos jovens na
América Latina e no Caribe têm produzido, pensando Internet e sociedade nas suas mais
diversas possibilidades. As discussões trazidas aqui mostram que esse fenômeno — a
expansão das Tecnologias da Informação e Comunicação no mundo — nos reservam
muitas perguntas, muitas inquietações, mas também muita sede de propor, conhecer e
arriscar novos caminhos.

Ainda há muito por fazer. Esperamos que esse livro seja o primeiro de tantos outros.

À leitora e ao leitor, desejamos uma boa jornada. E esperamos críticas e sugestões!

Por uma Internet plural, acessível, neutra, segura, inclusiva e de qualidade,

Youth Observatory
Novembro de 2017
PRÓLOGO

“Nem sempre podemos construir o futuro para nossa juventude,


mas podemos construir nossa juventude para o futuro”
Franklin D. Roosevelt

Este livro materializa o sonho de um grupo de jovens, de diferentes países – com


ênfase na América Latina – que integram o Observatório da Juventude, oficializado em
2016 como um dos desdobramentos do Programa Youth@IGF, lançado no ano anterior
pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e Internet Society, com apoio da Google,
Intel, Verizon e SaferNet Brasil.

Os artigos do livro revelam a potência das ideias, inquietações e dilemas de uma


juventude conectada diante de temas complexos e desafiadores, e nos apontam
caminhos possíveis para discuti-los e problematizá-los de forma mais inclusiva e
participativa.

O programa Youth, desde a sua fase piloto – lançada pela SaferNet Brasil, em 2013
– tem provado aos mais céticos que a juventude tem muito a dizer, quer participar dos
processos de Governança da Internet e ocupar espaços nos fóruns de formulação de
políticas e tomada de decisões.

Cabe-nos criar essas oportunidades e empoderá-los para que suas vozes sejam
ouvidas e consideradas. O caminho, evidentemente, não tem sido fácil, e continuará
exigindo de todos nós muita perseverança e determinação.

No teatro grego, cabe ao primeiro personagem a entrar em cena a exposição do


prólogo, que deve ser breve em sinal de homenagem às atrizes e atores principais da
peça, aos verdadeiros protagonistas!

Que se abram, então, as cortinas!

Um abraço fraterno e boa leitura!

Thiago Tavares
Presidente da Safernet Brasil
Conselheiro do CGI.br
Coordenador do Programa Youth no Brasil
PROBLEMAS
DE GÊNERO E
JUVENTUDE
NA INTERNET
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

FEMINISMO DIGITAL:
UMA PROPOSTA PARA
UMA INTERNET INCLUSIVA

ANGÉLICA CONTRERAS
Feminista e jornalista, atualmente estudante de Direito
contrerasangelica9@gmail.com
México

11
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

_TEMÁTICA

Problemas de gênero e juventude na Internet


Direitos digitais

_RESUMO

O Feminismo digital ou Feminismo 3,0, como uma proposta


para poder invadir, criar, construir e apropriar-nos dos nossos
direitos digitais a partir da Internet . A Internet é um espaço
machista onde se reproduzem as práticas de violência das
mulheres, os discursos de ódio e a perda de nossos direitos
digitais, pelo fato de sermos “mulheres”. Com base no
feminismo digital, propõe-se o empoderamento digital para
a criação e apropriação de espaços livres de violência onde as
mulheres possam se desenvolver.

Palavras chave: feminismo; gênero; mulheres.

12
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

Passadas três ondas de feminismo, hoje estamos


“PARA ELAS, AS frente a um movimento de outra plataforma. O
QUE CRIARAM E chamado Feminismo 3.0 ou Feminismo Digital é uma
proposta para poder irromper, apropriar e criar a partir
DESENVOLVERAM
de uma plataforma que vive e sente a desigualdade de
A INTERNET E AS
gênero.
TECNOLOGIAS DE
INFORMAÇÃO NO O feminismo digital tem suas virtudes, tais como
ANONIMATO E NO a construção de espaços onde as mulheres podem
RECONHECIMENTO criar pontos de encontro para o debate, movimentos
NULO DO SEU sociais que se geram na Internet e são levados para
TRABALHO POR o espaço público, o empoderamento e apropriação da
ferramenta e, claro, a sororidade.
UMA RAZÃO: SER
MULHER” Mas também há o outro lado da Internet, um que
A AUTORA nos lembra que ela continua sendo machista, e onde
habitá-la é um perigo para as mulheres.

A Internet é e deve ser feminista.

1_FEMINISMO DIGITAL

Quando eu mencionei nos fóruns da Internet que é necessário ter uma maior
participação das feministas nos espaços de discussão, surgiram na mente dos ouvintes
mulheres com cartazes, seios descobertos e a necessidade de gritar. O feminismo digital
é visto a partir da perspectiva que continua buscando ofuscar o movimento desde sua
origem.

O feminismo é um movimento social, econômico, político, cultural e de


desenvolvimento que busca a libertação das mulheres, o pleno exercício e respeito pelos
seus direitos. Essa libertação levou-nos a lutar pelos nossos direitos civis, políticos,
educativos, econômicos e agora sexuais, mas neste século onde as tecnologias da
informação explodem de uma forma escandalosa e impressionante, sendo atualizadas
e inovadas, o feminismo é uma opção para tomar espaços e formatá-los.

Elena Gascón-Vera (2015, tradução nossa) indica que o feminismo do século XXI “está
mudando para uma ideologia que inclui e aceita todo tipo de mulheres, apoia a inclusão
de identidades distintas e a valorização do corpo e da sexualidade femininas”. Com
a chegada da Internet agora torna-se mais fácil a propagação de imagens, discursos,
mensagens e feminismos. O que queremos dizer com isso é que, como indica a autora,
a Internet difunde essa construção diversa de “mulheres” de modo que não há apenas
uma mulher, mas várias mulheres, por isso difunde também os feminismos, ou seja, as
diferentes maneiras pelas quais o feminismo está sendo criado e pensado.

A Internet nos disse: “ei, não estão sozinhas”, estamos nos feminismos.

O movimento feminista nos ensinou a sair para a rua e nos reuniu em pontos de
encontro onde marchamos juntas. Buscamos quem tem a “letra bonita” para fazer os

13
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

cartazes e improvisamos comparsas com latas de lixo e instrumentos diversos que


encontramos em casa para armar as batucadas e acompanhar com música, palavras
de ordem e marchas. O Feminismo digital, porém, nos trouxe a interação, a conexão, e
nos cercou com outras expressões; o mais fácil é dizer que nos deu as ferramentas para
nos organizarmos à distância e nos reunirmos.

Existem outras autoras que consideram que essa nova onda do feminismo traz
também um movimento mais popular em que o comando é de baixo para cima, e
“sem dúvida abre uma nova onda do feminismo caracterizada por uma massividade
na participação, e uma maior visibilidade em grande escala [...] mas, além disso, uma
repercussão em escala global”.

2_MOVIMENTO DIGITAL

A Internet é um espaço público ou privado para as mulheres? Nós, mulheres,


vivemos sob uma constante busca por espaços para nos desenvolvermos, espaços
que nos permitam ser “mulheres” sem termos que enfrentar o assédio, a violência, o
machismo. Então, sob essa crença, buscamos o público, mas também o privado, para
nosso desenvolvimento e segurança.

O problema para essa pergunte sobre público e privado é que continuamos


acreditando que as mulheres devem “guardar suas opiniões” e isso se replica na Internet,
graças à qual somos testemunhas de massacres, crises e violências contra mulheres em
todo o mundo. Isso nos levou a nos organizarmos do público ao privado em anonimato.

Nos últimos anos temos testemunhado movimentos feministas que surgem, se


organizam e se disseminam nas redes sociais, mas que são produto do descontentamento
que é vivido no mundo offline. São movimentos como Meu Primeiro Assédio (Mi Primer
Acoso), Primavera Violeta, Nem Uma A Menos (Ni Una Menos), Marcha das Mulheres
(Women’s March), Negação Distribuída das Mulheres (Distributed Denial of Women),
Greve Internacional de Mulheres (Paro Internacional de Mujeres), entre outros.

Todos esses movimentos têm características em comum Surgem da inconformidade


de eventos ou incidentes que são registrados offline e que são divulgados pelos meios de
comunicação. A partir da indignação de coletivos ou de pessoas, nasce a organização
online, com um slogan geral, uso de redes sociais para divulgá-lo e uma hashtag. Meios
de comunicação na Internet se associam para divulgação do slogan, mulheres de vários
países juntam-se e surge uma logística de mobilização em dois segmentos, offline e online.

O primeiro – offline – leva as mulheres a espaços públicos para expressar um


descontentamento, exercer seu direito à liberdade de reunião e expressão, e o segundo –
online – junta mulheres que, por segurança, distância ou falta de acesso a esses espaços
físicos, não podem estar presentes, mas que por meio de uma hashtag podem aderir
à mobilização. A mobilização offline, no entanto, também serve como uma tradição
para as mobilizações das mulheres, como uma revolução e crítica – tomar espaços
masculinos, também como uma opção para as mulheres que não têm acesso à Internet
ou são analfabetas digitais e que se informam pelos meios tradicionais.

14
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

“Tece uma série de alianças insólitas com outros países,


realidades, latitudes e realiza uma ação sem precedentes”
Florencia Alcaraz,1

3. SORORIDADE DIGITAL

A feminista Marcela Lagarde e de los Ríos (2012) define sororidade como “o apoio
mútuo das mulheres para alcançar o poder de todas.”

A Internet oferece-nos uma ferramenta que nos permite estar juntas, ou seja, a
partir da Internet se difunde um valor primordial do feminismo: a sororidade, que
permite que nos identifiquemos e nos descubramos em nossas lutas.

Um exemplo é quando é feita uma crítica (linchamento midiático) a uma mulher


por fazer algo que “não deveria fazer por ser mulher”, e então surgem redes de apoio que
defendem sua ação.

Outra questão muito importante é o que nos identifica nos feminismos. Hoje em
dia, falar sobre o feminismo é falar sobre suas diferentes perspectivas e a Internet
permite a difusão desses movimentos e abordagens, o que nos permite aprender e
construir um feminismo digital plural que mantém a mesma bandeira com diferentes
enfoques: as mulheres.

4_CRIANDO A PARTIR DO FEMINISMO E DO


EMPODERAMENTO DIGITAL

Fomos ensinadas a ser usuárias passivas da Internet: ler, compartilhar e dar like,
mas não a criar por nossa conta. No México, estudo da Associação Mexicana da Internet
(2016) sobre os hábitos dos internautas diz que apenas 18% das e dos usuários da Internet
são criadores de conteúdo, acessam ou mantêm seus próprios espaços, como blog ou
outras plataformas. “As mulheres têm metade da probabilidade dos homens de se
expressarem na rede, e menos de um terço de probabilidade de usar a Internet para
procurar trabalho (de acordo com a idade e educação)” (Fundação World Wide Web, 2015,
tradução nossa).

A blogger mexicana Claudia Calvin (2012, tradução nossa) destaca:

[...] seu silêncio resulta — sem que elas mesmas saibam —


cúmplice de realidades sexistas ou que marginalizam e, na medida
em que elas gradualmente vão aparecendo e se expressado sua
voz... vão mudando o entorno. O silêncio nunca foi um parceiro
do empoderamento [...]

Assim, empoderar as mulheres lhes dá a oportunidade de confiar e acreditar em


sua voz (oral, escrita, gráfica) para que possam desenvolver propostas e projetos ou,
simplesmente, para serem elas mesmas nos espaços digitais.

1 Cf. Alcaraz (2017).

15
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

Antes de continuar, entendemos por empoderamento digital a capacidade das


mulheres de poder ter voz e participação nos espaços digitais.

O relatório da Fundação World Wide Web (2015, tradução nossa) sobre os Direitos
Digitais das mulheres, no tópico de desigualdade, apresentou os seguintes resultados:

• Internet como espaço para discutir questões importantes, e dizem que


a Internet tornou mais seguro para as mulheres expressarem suas
opiniões, mesmo que elas ainda não a estejam usando com este fim.

• A grande maioria das usuárias da Internet provenientes de áreas


urbanas pobres já aproveitam as plataformas digitais como um veículo
para reforçar os vínculos sociais dos quais muitas vezes depende sua
sobrevivência, o que sugere que o poder da rede para melhorar o capital
social devia ser um caminho eficaz para o empoderamento digital.

• A educação é uma grande facilitadora para o empoderamento digital


das mulheres.

• As brechas de gênero na forma como os homens e as mulheres


utilizam a Internet são significativas, mas não tão grandes quanto as
desigualdades de gênero no acesso à Internet.

A necessidade de incluir mais mulheres que participem na Internet existe também


em termos de criação. Sua participação ativa visibilizaria um dos problemas de falta
de conteúdo, não só em sua língua, mas também de conteúdo escrito por mulheres
para mulheres. Um exemplo disso são as Editatonas, reuniões em que se edita e cria
conteúdo para a Wikipédia escrito por mulheres sobre mulheres. Esse exercício ajuda a
eliminar os estereótipos de gênero na Internet, como falar sobre o número de filhos de
uma mulher ou de quem ela é esposa, e não de seus méritos profissionais.

Por que as Editatonas são necessárias? Porque nós, mulheres, somos esquecidas
e invisibilizadas. Bem diz um provérbio: “a história é escrita pelos vencedores”. Esses
vencedores são homens. 13% dos editores na Wikipédia são mulheres, e a porcentagem
de perfis sobre mulheres em inglês é de 17%: “o número escasso de editoras na Wikipédia,
pouco solicitadas por um mundo de tecnologia dominado pelos homens, promove a
desigualdade de gênero” (BBC Mundo, 2016, tradução nossa).

Patricia Horrillo conclui que os medos devem ser enfrentados: o da tecnologia,


causado pelo desconhecimento, e o da falta de legitimidade, que faz com que
acreditemos que, enquanto mulheres, não estamos legitimadas a contar histórias em
espaços digitais.

O feminismo, então, apresenta-se como uma opção para tomar espaços, embora
os espaços masculinos dificilmente, ou só depois de muitas lutas, incluem as
mulheres sem estereótipos. A criação de espaços próprios é também uma opção para o
empoderamento, como as redes comunitárias ou os servidores feministas autônomos.

16
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

É preciso que as políticas públicas dos governos encarem a formação e preparação


das mulheres como uma necessidade. Muitos governos dão acesso à Internet, mas onde
elas se conectam? Elas se conectam? O que fazem? É preciso apresentar a Internet como
uma ferramenta para potenciar sua voz, oportunidades e melhorar sua vida.

Nossa participação na criação da Internet fortalece-nos e temos de adentrar nos


espaços de poder. O feminismo procura a apropriação dos espaços públicos, por isso o
feminismo digital procura que estes espaços nos permitam, principalmente, um acesso
livre de violências.

5_A INTERNET É MACHISTA

Claro que é! Desde os corretamente chamados Clubes do Bolinha, a discriminação,


a violência, os machos-troll, os salários mais baixos, os poucos espaços em fóruns e
painéis. A Internet é um espaço para os homens que censura fotos que não cumprem
suas políticas, como seios das mulheres amamentando. Mas quantas feministas que
defendem os direitos das mulheres são “banidas” por conteúdo violento?

Relatório da Fundação World Wide Web Foundation (2015) salienta que sete em
cada dez jovens mulheres (18 e 24 anos de idade) que utilizam a Internet diariamente
sofreram abuso online e três em cada dez homens concordaram que a Internet deve ser
um espaço controlado pelo homem.

Espaços como o Fórum de Governança da Internet não excedem 40% de


participação feminina: 35% de participação em 2012; 37% em 2013; 35% em 2014; 38%
em 2015 e 39,6% em 2016.

“Empoderar as mulheres em espaços digitais não é uma tarefa


desempenhada isoladamente, é um conjunto de ações destinadas
a reduzir a lacuna de gênero presente na Internet como um espaço
público para o exercício de nossos direitos humanos”
A autora2

Como podemos pedir que a Internet seja feminista se as mulheres não estão
participando nos espaços? A perspectiva de gênero ainda é vista como um capricho para
incluir as mulheres apenas por incluí-las.

As mulheres não estamos seguras na Internet. Vemos como se replicam as violências


offline em espaços digitais, com assédio, ameaça, violência. E nossa presença continua
sendo um incômodo, estamos usando a Internet como um espaço público para fazer
ouvir nossa voz. A Internet replica as práticas machistas. Uma prática muito comum
é o trolling de mulheres que se expressam sobre um tema específico e são atacadas
em grupo: primeiro um ataca com um comentário e, posteriormente, os outros trolls
machistas repetem a mensagem de ódio. Além disso, são práticas comuns o recebimento
de imagens de homens ameaçando com armas, mensagens de assédio, o mal chamado
“pornô de vingança” e o repúdio social ao sexting.

2 Cf. Contreras (2017).

17
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

6_E AGORA?

O que estamos fazendo para erradicar essas violências? Associações e organizações


como Karisma, Colnodo, Sula BATSÚ, Mulheres Construindo (Mujeres Construyendo),
Dominemos as TIC (Dominemos las TICs) entre muitas outras, criam ferramentas, produtos
e cursos para treinar, preparar e empoderar as mulheres com relação às tecnologias de
informação: suas vantagens e oportunidades, mas também suas violências.

O feminismo digital é, portanto, um movimento

[...] para alcançar o acesso e apropriação das tecnologias de


informação para explorar as capacidades das mulheres, mas
também para que passem do conforto de usuárias passivas para
a criação de conteúdo, aplicações, opções e discursos de e para a
Internet [...] (Contreras, 2017a, tradução nossa)

O feminismo digital, portanto, é um espaço 3.0 de resistência.

Quais são os principais desafios do feminismo online?

6.1_SORORIDADE

“A sororidade no acesso à Internet e no uso de tecnologias de informação deve ser


definida como a irmandade entre as mulheres para o empoderamento e a apropriação
digital” (Contreras, 2017b, tradução nossa), ou seja, para criar ferramentas e práticas
não machistas na Internet, sendo algumas delas o não compartilhamento de violência,
o apoio em casos de violência e o compartilhamento de experiências.

6.2_CONSOLIDAR OS MOVIMENTOS DIGITAIS

O ano de 2016 foi de diversos movimentos digitais, mas é momento de fazermos um


trabalho em equipe e vermos o ativismo digital não só como um “clique”, mas também
como uma forma de incidir nos espaços físicos.

6.3_ALFABETIZAÇÃO DIGITAL

Quando falamos de acesso, devemos também ter em conta que há mulheres que
contam com a infraestrutura para o acesso, mas que desconhecem como fazê-lo e não
exploram esses recursos porque não sabem como. As políticas públicas de acesso devem
ser projetadas para dois grupos de pessoas: as que não têm o acesso-infraestrutura e as
que não têm o acesso-alfabetização.

6.4_OCUPAR ESPAÇOS EM FÓRUNS DE INTERNET

Trata-se de um convite para, a partir de nossos espaços, levarmos o tema das


mulheres às mesas de discussão, para que se proponha, debata e procure, em equipe,
formas de construir e consolidar boas práticas para o exercício dos direitos das mulheres
em espaços digitais.

18
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

Na Marcha das Mulheres (Women’s March), um cartaz dizia que “as mulheres
pertencem à resistência”, e na Internet encontramos um espaço para realizar esta
bandeira de resistência, “que nos pede para gritar e ser uma voz para exigir o respeito
pelos nossos direitos e é essa mesma voz que devemos levar à Internet, para exigir, mas
também para participar, e construir juntas” (Contreras, 2017a, tradução nossa).

Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS

Alcaraz, F. In De Titto, J. ¿Una nueva ola del feminismo? Recuperado de < https://notas.
org.ar/2017/02/22/nueva-ola-feminismo>

Associação Mexicana de Internet (Asociación Mexicana de Internet) (2016). Estudio


de hábitos de los usuarios de internet. Recuperado de <https://www.amipci.org.mx/
images/Estudio_Habitosdel_Usuario_2016.pdf>

BBC Mundo (2016). ¿Quiénes son nuestras mujeres olvidadas? ¡Únete a nuestro
“editatón” de Wikipedia y haz que sean recordadas! Recuperado de <http://www.bbc.
com/mundo/noticias-38236627>

Calvin, C. (2012) In Vinas, S. Mujeres construyendo: Empoderando a las mujeres un blog


a la vez. Recuperado de <https://es.globalvoices.org/2012/03/24/mujeres-construyendo-
empoderando-a-las-mujeres-un-blog-a-la-vez>

Contreras, A (2017a). Feminismo Digital: garantizar que nuestros derechos offline sean
respetados online. GenderIT. Recuperado de <http://www.genderit.org/es/feminist-
talk/feminismo-digital-garantizar-que-nuestros-derechos-offline-sean-respetados-
online>

Contreras, A. (2017b). Feminismos en tiempos digitales: dejando tras las prácticas


machistas. GenderIT. Recuperado de <http://www.genderit.org/es/feminist-talk/
columna-feminismo-en-tiempos-digitales-dejando-atr-s-pr-cticas-machistas>

Contreras, A. (2017c). ‘Hackeando’ internet por una más feminista. Federación


Iberoamericana de Asociaciones de Derecho e Informática. Recuperado de <http://fiadi.
org/hackeando-internet-por-una-mas-feminista>

De Titto, J. (2017) ¿Una nueva ola del feminismo? La Otra Voz Digital. Recuperado de
<http://www.laotravozdigital.com/una-nueva-ola-del-feminismo>

Fórum de Governança da Internet (2012). IGF 2012 Baku - Attendance Statistics.


Recuperado de <http://www.intgovforum.org/cms/2013-bali/attendance-statistics>

19
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ ANGÉLICA CONTRERAS

Fórum de Governança da Internet (2013). IGF 2013 Bali - Attendance Statistics.


Recuperado de <http://www.intgovforum.org/cms/2013-bali/attendance-statistics>

Fórum de Governança da Internet (2014). IGF 2014 Attendance Statistics. Recuperado de


<http://www.intgovforum.org/cms/igf-2014/attendance-statistics>

Fórum de Governança da Internet (2015). Attendance Statistics <http://www.


intgovforum.org/cms/2015-igf-joao-pessoa/igf-2015-attendance-statistics>

Fórum de Governança da Internet (2016). IGF 2016 Attendance & Programme Statistics.
Recuperado de <https://www.intgovforum.org/multilingual/content/igf-2016-
attendance-programme-statistics>

Fundação World Wide Web (World Wide Web Foundation) (2015). Nuevo informe:
Derechos digitales de las mujeres. Recuperado de <http://webfoundation.org/nuevo-
informe-derechos-digitales-de-las-mujeres>

G. de la Cueva, C. (2015). Feminismo 3.0, las iniciativas digitales que debes conocer.
Gonzoo. Recuperado de: <http://www.gonzoo.com/creadores/story/feminismo-3-0-las-
iniciativas-digitales-que-debes-conocer-3179>

Gascón-Vera, E. (2015). In Yanke, R. Feminismo 3.0, la nueva ola. El mundo. Recuperado


de <http://www.elmundo.es/espana/2015/03/08/54fb4b6be2704ec7518b4570.html>

Lagarde y de los Ríos, M. (2012). Pacto entre mujeres: Sororidad. In El feminismo en


mi vida. Hitos, claves y topías, p. 557-569. México: Instituto das Mulheres do Distrito
Federal. Recuperado de <http://www.asociacionag.org.ar/pdfaportes/25/09.pdf>

Mulheres em Rede (Mujeres en Red) (2008) ¿Qué es el feminismo? Recuperado de


<http://www.mujeresenred.net/spip.php?article1308>

ANGÉLICA CONTRERAS
Diretora de Relações Institucionais
do Youth Observatory e membro da
Internet Society - capítulo México, e da
Academia Multidisciplinar de Direito e
Tecnologias A. C. (AMDETIC). Escreve para
GenderIT, Mulheres Construindo (Mujeres
Construyendo), é blogueira e diretora da
revista digital feminista Quintaesencia.
Participou de diferentes projetos e
campanhas feministas e de fóruns de
Governança da Internet.

20
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

ENTREVISTA:
COMO TRATAR VIOLÊNCIA
DE GÊNERO ONLINE NA
CHAVE DA JUVENTUDE
PERIFÉRICA BRASILEIRA?

MARIANA GIORGETTI VALENTE


Diretora do InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tec-
nologia e Pesquisadora da área “Internet e Gênero, Raça e Outros
Marcadores Sociais”
mariana@internetlab.org.br
Brasil

NATÁLIA NERIS
Coordenadora da área “Internet e Gênero, Raça e Outros Marcadores
Sociais” no InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia
natalia.neris@internetlab.org.br
Brasil

21
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

_TEMÁTICA

Problemas de gênero e juventude na Internet

_RESUMO

Comum em contextos escolares por todo o Brasil, o fenômeno


“Top 10” foi amplamente noticiado em meados de 2015, quando
foram reportados suicídios e outros problemas enfrentados
por meninas em dois bairros periféricos em São Paulo: Grajaú
e Parelheiros. A prática consiste em vídeos com listas das
adolescentes supostamente “mais vadias” de uma escola ou
comunidade. Para entender melhor os aspectos do problema,
entrevistamos representantes dos projetos Coletivo Mulheres
na Luta (Grajaú) e Sementeiras de Direitos (Parelheiros), cujas
vozes oferecem aprofundada compreensão sobre apropriação de
Tecnologias da Informação por jovens brasileiros da periferia e
problemas de abordagem da mídia sobre esse tipo de violência.

Palavras-chave: pornografia de vingança; periferia; violência de


gênero; juventude

22
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

No fim de 2013, o suicídio de duas jovens brasileiras deu início a um intenso debate
na mídia sobre a disseminação não consentida de imagens íntimas. A prática não era
nova, mas com a Internet a velocidade da disseminação desses materiais dava a ela
contornos todos novos. Até por isso, ganhou nome – o revenge porn, ou pornografia de
vingança ou de revanche – e propostas de enfrentamento no Congresso Nacional.

Revenge Porn remete a casos em que, após o fim de um relacionamento, o ex-parceiro


divulga imagens por “inconformismo”. Além de o nome ser bastante inadequado – a
palavra vingança não pressuporia uma ação condenável prévia? E estamos mesmo
falando de pornografia? –, as nossas pesquisas dos últimos dois anos vêm indicando
que o fenômeno é bem mais multifacetado que aparenta ser, e que podem em última
instância ser relacionados a frustrações de expectativas por parte de homens em
relação ao comportamento de mulheres, e podem ter simplesmente a finalidade de
humilhação, independentemente de relação prévia. Sim, mulheres e meninas, porque
estamos tratando claramente de um problema que acomete a elas, seja na frequência
da prática, seja na gravidade das consequências1.

Nessa linha de apreender o problema pela sua complexidade, o “Top 10” é um exemplo
emblemático. A disseminada prática (embora pouco conhecida por adultos) consiste em
um “ranqueamento” de meninas, em geral entre 12 e 15 anos, por grupos de meninos
em uma escola ou comunidade, de acordo com sua suposta conduta sexual. São listas
conhecidas também como “das mais vadias”: em vídeos, são expostas imagens das
meninas com frases sobre seu comportamento, envolvendo ou não nudez, a depender,
especialmente, do contexto em que são disseminados. É que algumas plataformas,
como o YouTube e o Facebook, não mantêm no ar imagens de nudez.

Comum em contextos escolares diversos e por


todo o Brasil, o “Top 10” tornou-se conhecido fora
EM VÍDEOS, SÃO
dos espaços onde é praticado em maio de 2015,
EXPOSTAS IMAGENS
quando a mídia deu atenção a suicídios e outros
problemas enfrentados por meninas em dois
DAS MENINAS COM
bairros do extremo sul da cidade de São Paulo: FRASES SOBRE SEU
Grajaú e Parelheiros. Com a notoriedade que os COMPORTAMENTO,
casos ganharam, ativistas feministas atuantes ENVOLVENDO OU NÃO
nessas regiões conseguiram levar o debate à NUDEZ
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo,

1 Viemos dando atenção ao problema por meio de estudos empíricos no InternetLab desde
2015. Em 2016, publicamos o livro “O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao
revenge porn no Brasil”, em que estudamos a jurisprudência do Estado de São Paulo sobre o tema,
realizamos um estudo de caso sobre o Top 10, de que trataremos adiante, e analisamos também as
propostas legislativas e de política pública. Um dos dados que encontramos foi que, no Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, mais de 90% dos casos (são processos da vítima contra o agressor,
ou um provedor de aplicações) referiam-se à disseminação de imagens de meninas e mulheres.
Essa absoluta predominância é também facilmente perceptível por mera observação. O livro pode
ser baixado gratuitamente em <http://tinyurl.com/z9gpwhu>. Para uma reflexão específica e mais
enxuta sobre o tratamento dado pela Justiça aos casos envolvendo adolescentes, ver o artigo “Terra
Com Lei”, publicado por nós na Revista E-Sesc em junho 2016: <http://tinyurl.com/zft438a>.

23
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

onde foi realizada uma audiência pública,2 e pautaram-no nas próprias comunidades,
de eventos como um Grafitaço Feminista3 a rodas de conversa com adolescentes. Nessas
vozes, a denúncia sobre aspectos até então pouco abordados na esfera pública: o acesso
limitado de adolescentes a equipamentos públicos do sistema de Justiça, e a pouca
capacidade de controle sobre a narrativa de suas histórias de violência e violação.

No estudo de caso que realizamos sobre o “Top 10” em 2015, entrevistamos e


mantivemos contato com o Coletivo Mulheres na Luta, grupo feminista do bairro de
Grajaú, e o projeto Sementeiras de Direitos, da Biblioteca Comunitária Caminhos da
Leitura de Parelheiros, dois bairros periféricos da Zona Sul de São Paulo. A visão das
profissionais e ativistas veio guiando a nossa análise do problema,4 mas transborda-a
amplamente. Suas vozes são fontes para uma aprofundada compreensão sobre uso
e apropriação de Tecnologias da Informação e Comunicação por jovens brasileiros
da periferia, sobre a relação entre Internet, abuso e emancipação, e sobre o papel e
problemas de abordagem da mídia tradicional sobre esse tipo de violência.

Assim, já a partir de contatos e análises desenvolvidas ao longo tempo, propusemos


uma entrevista com representantes dos dois projetos, que lançam luz sobre questões
como a criminalização da juventude periférica, a relação distante entre as comunidades
em que estão inseridas com operadores do direito, o papel de iniciativas educativas
e um diagnóstico sobre a necessidade de interlocução entre os campos de gênero
e sexualidade (com uma visão para outros marcadores sociais) e o das políticas de
Internet. A publicação desta entrevista é mais um passo nessa aproximação.5

Pesquisadoras: Em 2015, a mídia começou a reportar casos de possíveis suicídios


envolvendo a prática de “Top 10”, nas escolas de São Paulo. A gente já sabe hoje que
a prática vinha acontecendo fazia um tempo, antes disso, e que as consequências
dramáticas na vida das afetadas também. O que vocês acham que fez com que a
mídia passasse a reportar esses casos de repente?

Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos: Acreditamos


que a mídia começou a reportar os casos do “Top 10” em resposta à pressão dos movimentos
sociais feministas que estão nos territórios onde ocorreram os casos. De forma espontânea,
o tema possivelmente não apareceria ou seria reportado exclusivamente a partir do
olhar machista e estereotipado, que culpabiliza as “meninas da periferia” pela suposta

2 Ver breve relato em “Onda de vídeos com conteúdo degradante contra adolescentes é discutida
na CDH”, <https://goo.gl/R5MfzC>

3 Ver detalhes sobre a ação no vídeo hospedado na página do Coletivo Mulheres da Luta, do
Grajaú, no Facebook: <https://goo.gl/liUcwK>

4 Além do livro “O Corpo é o Código”, recomendamos também a leitura do artigo “Not revenge,
not porn: analysing the exposureof teenage girls online in Brazil” (ver referências). Uma tradução
dele para o português encontra-se aqui: <http://tinyurl.com/z6k6esr>

5 Agradecemos também a colaboração da pesquisadora Juliana Pacetta Ruiz na montagem desta entrevista.

24
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

sexualidade exacerbada, por serem sem pudor ao deixarem-se fotografar em situações


íntimas... A notícia de exposição não é dada no mesmo tom utilizado quando a vítima
é uma atriz famosa. A pressão de coletivos feministas e das mídias alternativas levou o
tema à grande imprensa.

Coletivo Mulheres na Luta: A mídia hegemônica é oportunista, acreditamos que


no caso do “Top 10” não foi diferente. Quando os coletivos, organizações e militantes
da periferia do Extremo Sul de São Paulo começaram a discutir as mortes dessas
adolescentes, o que a prática do “Top 10” representava na periferia, e a propor ações
de grande visibilidade, foi que a grande mídia se interessou em falar sobre o assunto.
As mídias hegemônicas só começaram a noticiar o “Top 10” após essa movimentação
promovida por militantes e trabalhadoras(es) da periferia, que, além de saraus,
grafitaços e discussões, também impulsionaram a criação de uma CPI (Comissão
Parlamentar de Investigação). Durante esse período havia muita presença da grande
mídia, que em sua maioria reportava a pauta de modo nada cuidadoso, e que direta
e indiretamente incentivava o acesso a esses vídeos, divulgando imagens das vítimas
retirados dos vídeos de “Top 10” encontrados na Internet e apenas utilizando como modo
dificultador da identificação dessas meninas
uma tarja preta sob os olhos, que obviamente
não impedia que a identificação por parte de
vizinhos, colegas e conhecidos acontecesse. Essas ALGUNS E ALGUMAS
grandes mídias também chegaram a procurar JORNALISTAS, AO
os coletivos e as organizações que participavam
INVÉS DE COLOCAR
das discussões sobre o “Top 10” pedindo contato
O DEBATE DO “TOP
das adolescentes e famílias vítimas, sem se
10” RELACIONADO AO
preocupar com a revitimização dessas pessoas e
a exposição negativa que estas poderiam ter em
SEXISMO E O MACHISMO,
suas comunidades. Ao noticiarem os casos de PREFERIA TRATAR COMO
“Top 10”, essas mídias também abriam brechas SE FOSSE MAIS UMA
para a criminalização das(os) adolescentes que DAS TRAGÉDIAS DA
produziam os vídeos, desconsiderando o “Top 10” PERIFERIA
como um problema de uma estrutura patriarcal,
homofóbica, normatizante e que inclui a
responsabilidade do Estado para o fim dessa
prática, resumindo-o (“Top 10”) a um problema de criminalidade. Com exceção das
mídias periféricas e mais comprometidas com as pautas da população pobre, como o
coletivo de jornalismo Periferia em Movimento e TVT (TV dos Trabalhadores), nenhuma
das mídias esteve aberta ou manteve interesse em continuar discutindo a questão do
“Top 10” após essas ações de maior visibilidade, mesmo que tenhamos conhecimento
de que o “Top 10” continua acontecendo nas mesmas proporções e que venha ganhando
novas caras, formas de divulgação e vítimas. Não vimos nenhuma reportagem ou
matéria lançada pela grande mídia nos últimos meses, fato que reforça seu caráter
oportunista que só trata das pautas de interesse da periferia quando lhes convêm.

25
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

Pesquisadoras: Vocês nos contaram, em entrevista no passado, que a abordagem


dos e das jornalistas, quando vinham buscar a pauta, não era necessariamente a
mais respeitosa. Quais vocês acham que foram os impactos dessa midiatização para
o problema do “Top 10”? Houve lados positivos também?

Coletivo Mulheres na Luta: No Grajaú, os impactos foram mais negativos do


que positivos. Não podemos negar que a mídia deu visibilidade à questão e, de certa
forma, provocou a população para debates em espaços informais (ônibus, filas de
supermercado)... Também houve a criação de uma CPI sobre o “Top 10”, mas sinceramente
não sabemos muito bem como isso anda pois tivemos dificuldade em acompanhar de
perto. A mídia deu um certo foco para essa questão e fez com que adultos pensassem
“Isso existe?”. Negativamente podemos ver esse lado da criminalização da juventude
pobre, em sua maioria preta. Há um discurso punitivista em nossa sociedade e a mídia
fomentou isso com o “Top 10” também.

Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos: Geralmente


a grande mídia busca matérias que vendem. E, à época, alguns e algumas jornalistas,
ao invés de colocar o debate do “Top 10” relacionado ao sexismo e o machismo, preferia
tratar como se fosse mais uma das tragédias da periferia, quando é um fenômeno que
também estava acontecendo em escolas particulares. Porque o que está por trás é o
machismo, o sexismo, a misoginia, que são interclasses. O lado bom da mídia falar é que
atinge outros públicos, coloca a discussão, mostra que há um problema. Acreditamos
que quando a grande mídia traz esses tipos de reflexões ajuda a desconstruir o que está
naturalizado. As gestões das escolas, por exemplo, passaram a dar um pouco mais de
importância para o assunto, depois que foi abordado pela mídia.

Pesquisadoras: Parece-nos, também, que a mídia deu especial atenção, naquele


momento, aos casos que estavam acontecendo em Parelheiros e Grajaú, bairros da
periferia de São Paulo. Mas, por conta de outras matérias pontuais, ou de casos que
chegam até nós, sabemos bem que a disseminação não consentida de imagens íntimas
é um problema que atinge várias classes sociais, e inclusive outras faixas etárias,
para além da adolescência. Você acha que os casos no Grajaú e de Parelheiros, que
vocês acompanham, têm particularidades, por conta da faixa etária e da localidade?

Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos: Sim,


acreditamos que chamou atenção que em uma região periférica predominantemente
rural, como Parelheiros, o fenômeno “Top 10” estivesse acontecendo. A cidade de São
Paulo conhece muito pouco ainda sobre Parelheiros; alguns paulistanos acreditam que
mananciais e aldeia indígena resumem a região. Não resume. Dentre as especificidades
de Parelheiros, está o de não redução da gravidez na adolescência, colocando-as entre
os maiores índices da cidade. Em Parelheiros encontram-se, também, os mais baixos
índices de equipamentos públicos. Tudo isso, acreditamos, surpreendeu e chamou
atenção da mídia.

Coletivo Mulheres na Luta: Acreditamos que as particularidades nesse caso sejam


o fato de estarmos falando de adolescentes expondo adolescentes, e a responsabilização
desses(as) meninos(as) deve ser voltada para o campo da reflexão sobre esse ato, ou

26
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

seja, não somente no sentido de apontar “exposição na


Internet é crime”, mas de informar os impactos que essa
exposição da sexualidade das meninas gera na vida
O USO DAS
delas para sempre. Nosso coletivo acredita na reflexão TECNOLOGIAS
e transformação, e o sistema punitivo não fomenta COMO FERRAMENTA
reflexão, ele fomenta apenas o encarceramento da DE DENÚNCIA,
juventude negra. Também pensamos que, além de DE INFORMAÇÃO,
responsabilizar as pessoas que criam esses vídeos, FORMAÇÃO E
por meio de propostas socioeducativas com educação MOBILIZAÇÃO E
em sexualidade de verdade(!), é necessário pensar o NECESSÁRIO E
acolhimento das dores e angústias dessas meninas INEVITÁVEL
expostas. Esse assunto também se refere à saúde
mental.

Pesquisadoras: Uma questão que nos pareceu sempre muito importante foi que,
quando fizemos a nossa pesquisa, entrevistamos vários agentes do sistema de Justiça
que trabalhavam na periferia de São Paulo. Questionamos esses agentes, sempre,
sobre o problema da disseminação de imagens íntimas não consentidas em sua área
de atuação. Algumas vezes, e não foram tão poucas, recebemos uma resposta no
sentido de “isso não é um problema por aqui, porque os jovens por aqui não têm
celular/não têm Internet”, o que nos parecia revelar um grande desconhecimento
sobre a realidade do uso da tecnologia por jovens, inclusive nas periferias urbanas.
Como você responderia a uma afirmação como essa? E como você tem visto a
apropriação, pelos jovens com que você trabalha, das tecnologias digitais? Existe
alguma reflexão sendo construída em torno disso?

Coletivo Mulheres na Luta: Antes de responder a essa pergunta, nossas exclamações


foram “afffff”, “putz”... Pois é interessante perceber o quanto há uma alienação desses
agentes sobre a realidade com que eles trabalham. Nós temos celulares, nós acessamos
a Internet, nós estamos nesse contexto tecnológico também. Claro que passamos por
diversas dificuldades para acessar o “mundo virtual”, pois em algumas regiões o sinal
é ruim ou as empresas de Internet se recusam a instalá-la, mas as periferias têm
celular, têm Internet e produzem conhecimento nesses meios. Essa frase é carregada
de preconceito e uma visão caricata da periferia. Ficamos pensando “quem são esses
agentes?” e que “tipo de Justiça esse agente deve promover?”

Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos:


Acreditamos que os agentes de justiça entrevistados por vocês estão mal informados.
Apesar de ser uma região rural, distante cerca de 50 km do centro da cidade, e os
equipamentos públicos e culturais não chegarem... a tecnologia chegou. Os celulares
já chegaram há bom tempo, ocupado o espaço abandonado pelo Estado, de oferta de
serviço público de comunicação. Em nossa percepção, o uso das tecnologias como
ferramenta de denúncia, de informação, formação e mobilização e necessário e
inevitável. É óbvio que precisamos sempre refletir sobre os usos. Ou seja, a tecnologia
faz parte do nosso cotidiano, mas precisamos pensar em formas de utilizá-las para
ampliar o acesso a direitos e à cidadania. Na Biblioteca, temos refletido sobre como

27
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

essas ferramentas tecnológicas podem contribuir para promover reflexão e mudanças


em nossa comunidade. Refletimos sobre como a tecnologia pode proporcionar
aproximação ao invés de afastamento. Queremos usar as tecnologias e seus vários
recursos como meios para humanizar ao invés de desumanizar. Pensando no “Top 10”,
criamos uma metodologia para desconstrução de estereótipos na Internet: pegávamos
frases machistas e sexistas que circulavam nas redes sociais e nos reuníamos para
pensar respostas e para compartilhar na Internet. Criamos um grupo no WhatsApp para
discutir e compartilhar temas relacionados a direitos das mulheres, desconstrução do
machismo e do sexismo. Esse tem sido o nosso jeito de provocar a reflexão de que a
tecnologia, a Internet, as redes sociais podem ser nossas aliadas e não nossa inimiga ou
“arma” para destruir e humilhar os outros.

Pesquisadoras: Embora o tema do uso seguro da Internet por jovens venha


sendo abordado por especialistas no campo jurídico e tecnológico, questões de
gênero e sexualidade dos jovens ainda parecem surgir timidamente nesses debates.
Gostaríamos que nos contassem a experiência de atuação dos grupos de vocês,
tendo em vista o foco dão à educação sexual, e que comentassem de que modo essa
abordagem pode contribuir para políticas e ações de enfrentamento ao problema.

Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/Sementeiras de Direitos: As rodas de


conversa no grupo Sementeiras de Direitos têm sido um espaço de promoção de empatia
e de fortalecimento de mulheres. Ao conversamos, compartilharmos nossas dores,
nossas cicatrizes, nossos medos e, também, nossas conquistas, nossas estratégias,
percebemos que não estamos sozinhas. E que nenhuma de nós é tão fraca que não
possa apoiar uma outra para andar, deslocar-se, subir. Tem sido um rico espaço para
conhecer o direito das mulheres e construir caminhos
para ações coletivas e engajamento comunitário.
Nesse grupo há homens em vários momentos. ESTAMOS
Estamos convencidas e convencidos de que os CONVENCIDAS E
homens precisam estar envolvidos nesta historia.
CONVENCIDOS DE
Eles precisam aprender a não violar, não ameaçar.
QUE OS HOMENS
Neste ano (2017), começaremos rodas exclusivas
PRECISAM ESTAR
com homens, meninos, adolescentes e jovens. Neste
momento está acontecendo nova edição do “Top 10”.
ENVOLVIDOS NESTA
Tem até o “Top 15”, incluindo meninas grávidas, e às HISTORIA
vezes expostas vestidas, mas desqualificadas como
“vadias”, e desumanizadas publicamente nas redes
sociais. Teremos rodas de conversas também com educadores (as) e outros profissionais
que devem proteger e garantir os direitos das meninas e mulheres. Usamos a tecnologia,
mas um recurso do qual não abrimos mão é o livro; livros informativos, históricos e
literários estão sempre presentes em nossos encontros, para fortalecer nossas raízes e,
também, para impulsionar nossos voos.

Coletivo Mulheres na Luta: Temos pensado que nem esses especialistas abordam
a sexualidade e o gênero nem nós temos abordado o uso seguro da Internet. Talvez
por estarmos atuando diretamente na rua, e com dificuldade de sinal de Internet

28
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

móvel, ou priorizarmos o contato presencial, muitas vezes não aproximamos nossa


luta pela equidade de gênero das questões tecnológicas. Entre nós, discutimos que é
preciso aproximar as duas reflexões, que na verdade são uma discussão só: a liberdade
e segurança das meninas e mulheres, onde quer que estejam (real ou virtual).
Recentemente criamos um vídeo chamado “Eu já mandei nude”, e inclusive o texto que
segue esse vídeo foi elaborado por Natália Neris (uma das entrevistadoras). Estamos
engatinhando na descoberta desse mundo virtual e das discussões em torno dele, mas
sabemos da importância do respeito à privacidade e garantia de segurança nesse meio.

_REFERÊNCIAS

Valente, M. G., Neris, N., & Bulgarelli, L. (2015). Not revenge, not porn: analysing the
exposure of teenage girls online in Brazil. Global Information Society Watch: Sexual
rights and the Internet. p. 74-79. Recuperado de <http://tinyurl.com/jdzod7p>

Valente, M. G., Neris, N., Ruiz, J., & Bulgarelli, L. (2016). O Corpo é o Código: estratégias
jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil. São Paulo: InternetLab.
Recuperado de <http://tinyurl.com/z9gpwhu>

Valente, M.G., & Neris, N. (2016). Terra com Lei. Revista E-SESC, 241. Recuperado de
<https://goo.gl/CakhMK>

Jornal TVT (2015. Grajaú tem grafitaço feminista contra “Top 10” e machismo. Rede TVT.
Recuperado de <https://goo.gl/j7Bj0d>

Material produzido pelos coletivos

“Eu já mandei nude” pelo Coletivo Mulheres na Luta. Recuperado de <https://goo.gl/


kOvmuH>

“Nosso TOP 10 é feminista” pelo Coletivo Mulheres na Luta. Recuperado de <https://goo.


gl/kI64BE>

“Grafitaço Feminista” pelo Coletivo Mulheres na Luta. Recuperado de <https://goo.gl/


ubrk56>

“TOP 10 do Whatsapp – Grajaú vs Parelheiros – Campanha Abayomi Aba pela Juventude


Negra Viva”. Recuperado de <https://goo.gl/GB55P>f e <https://goo.gl/T7PE1P>

29
PROBLEMAS DE GÊNERO E JUVENTUDE NA INTERNET _ MARIANA GIORGETTI VALENTE + NATÁLIA NERIS

MARIANA GIORGETTI VALENTE


Graduada, Mestre e Doutoranda em Direito
pela Universidade de São Paulo (USP). Foi
pesquisadora visitante na UC Berkeley
e é pesquisadora do Núcleo de Direito e
Democracia do Cebrap (Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento).

NATÁLIA NERIS
Graduada em Gestão de Políticas Públicas
pela Universidade de São Paulo (USP),
Mestra em Direito pela Fundação Getúlio
Vargas (FGV). É pesquisadora do Núcleo de
Direito e Democracia do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento).

30
ACESSO E
DIVERSIDADE
ACESSO E DIVERSIDADE _ HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA

CONECTANDO O PRÓXIMO
BILHÃO PARA QUEM?

HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA


Graduando em Engenharia de Computação,
Universidade Federal do Espírito Santo
hlupes@gmail.com
Brasil

32
ACESSO E DIVERSIDADE _ HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA

_TEMÁTICA

Acesso e diversidade
Inclusão digital

_RESUMO

Este artigo dialoga sobre a importância da inclusão digital


que atue na democratização do entendimento crítico e
autônomo sobre a utilização das tecnologias de informação e
comunicação. Defende-se o software livre como ferramenta de
garantia da produção de conhecimento livre e compartilhável,
etapa essencial na efetivação das inclusões social e digital.
Reforça a responsabilidade dos governos, da iniciativa privada
e da sociedade civil na manutenção de uma governança da
Internet com espaços de discussão plurais e representativos,
que entendam e acolham as opiniões de jovens e que trabalhem
priorizando a inclusão digital na ampliação do acesso à
Internet.

Palavras-chave: inclusão digital; governança da Internet;


software livre

33
ACESSO E DIVERSIDADE _ HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA

A sociedade da informação1 é caracterizada pelas trabalhadoras que usam suas


habilidades na criação, geração e disseminação de novos conhecimentos. Essa sociedade
tecnológica, organizada socialmente na geração, no processamento e na transmissão da
informação, cria a cada dia novas fontes de produtividade demandadas pelo mercado
por exigência da globalização. Ela está pautada no desenvolvimento intelectual dos
indivíduos para realizar tarefas que agregam novos conhecimentos e capacidades que
contribuem para a inovação tecnológica, principal motor no desenvolvimento econômico
mundial (Alonso, Ferneda, & Santana, 2010). E é a partir das demandas dela ou do sistema
capitalista que organiza e define o conjunto dessas trabalhadoras, que surgem questões
como inclusão digital, liberdade de expressão, cibersegurança e privacidade.

1_INCLUIR PARA QUÊ?

A ideia de que indivíduos e nações que não utilizam eficazmente as Tecnologias de


Informação e Comunicação2 (TIC) serão “deixados para trás” avança como argumento
para justificar a necessidade de proporcionar meios de acesso como estratégia de
persuasão daqueles supostamente menos conscientes da centralidade da tecnologia.
Transformar desinteresse em participação e pessoas off-line em usuários das TIC é
obrigatório e não há opção de não querer participar (Cogo, Dutra-Brignol, & Fragoso,
2014). A Internet surge, portanto, como o principal instrumento para aumentar o poder
globalizado de conexão e já alcança mais de 3 bilhões de pessoas no mundo (Internet
Live Stats, 2017).

A preocupação dos países com a massificação da banda larga tem um forte viés
econômico. A infraestrutura é essencial para modernizar a economia, aumentar
a produtividade, especialmente das pequenas e médias empresas, garantir a
competitividade das economias no mundo globalizado, aumentar a qualificação de mão
de obra por meio do ensino a distância, ampliar a oferta de serviços públicos por meio
da Internet, sem aumento de custos (Dias, 2011).

O objetivo das iniciativas de inclusão digital tem sido, via de regra, “dar acesso à
rede” a grupos minoritários que, por conta própria, encontrariam enormes dificuldades
em adquirir e utilizar as TIC. O desejo dos grupos visados de serem incluídos e o seu
próprio entendimento sobre inclusão é um fato que tende a permanecer inquestionável.

1 A sociedade não é um elemento estático, muito pelo contrário, está em constante mutação e
como tal, a sociedade contemporânea está inserida num processo de mudança em que as novas
tecnologias são as principais responsáveis. Alguns autores identificam um novo paradigma de
sociedade que se baseia num bem precioso, a informação, atribuindo-lhe várias designações,
entre elas a Sociedade da Informação. Sociedade da Informação é um termo - também chamado
de Sociedade do Conhecimento ou Nova Economia - que surgiu no fim do Século XX (Sociedade da
informação, n.d.).

2 TIC é uma expressão que se refere ao papel da comunicação (seja por fios, cabos ou sem
fio) na moderna tecnologia da informação. Entende-se que TICs consistem em tecnologias de
informação, bem como quaisquer formas de transmissão de informações e correspondem a todas
as tecnologias que interferem e medeiam os processos informacionais e comunicativos dos seres
(Tecnologia da informação e comunicação, n.d.).

34
ACESSO E DIVERSIDADE _ HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA

Muitos setores estatais e da sociedade civil que


elaboram projetos e políticas de inclusão social e
digital costumam assumir como premissa o princípio
AO INVÉS DE UMA
de que todos os grupos desejariam “ser incluídos” e que EXPERIMENTAÇÃO
compartilhariam de um mesmo entendimento sobre o DE CURIOSIDADE,
que seria a “inclusão” (Cogo, Dutra-Brignol, & Fragoso, PESQUISA E
2014). PRODUÇÃO,
ESSES PROJETOS
Projetos de “inclusão digital”, como o Free Basics
TRANSFORMAM
do Facebook (com aspas para garantir a interpretação
A EXPERIÊNCIA
de ironia), delimitam o que pode ou não ser acessado
DAS INTERNAUTAS
pelo usuário com o pretexto do acesso gratuito. Ao
invés de uma experimentação de curiosidade, pesquisa
EM ALGO
e produção, esses projetos transformam a experiência CENTRALIZADO,
das internautas em algo centralizado, automatizado e AUTOMATIZADO E
dirigido. Ainda assim, mesmo sem dar a capacidade de DIRIGIDO
que a usuária defina o conteúdo do acesso, segundo o
Facebook: “[...] os sites estão disponíveis gratuitamente
sem cobranças de dados e incluem conteúdos como notícias, empregos, saúde, educação e
informações locais. Ao apresentar às pessoas os benefícios da Internet por meio desses sites,
esperamos incluir mais pessoas online e ajudar a melhorar suas vidas” (Internet.org, 2017).

A disponibilidade de banda larga e conexão wireless, telecentros e celulares não


é garantia de que o isolado terá voz, que o pobre ficará rico, que o marginalizado
participará e que o desprovido poderá ser produtivo. Acesso à tecnologia não promete
que os governos permitirão maiores Liberdades de Informação e Expressão ou que os
direitos de comunicação serão fortalecidos ou mesmo que os cidadãos participarão
quando tiverem a oportunidade (West, 2007).

Silveira (2008) ressalta que

[...] a emancipação digital avança em uma questão crucial, que diz


respeito ao risco de a inclusão digital acabar servindo apenas para
a ampliação do mercado consumidor dos produtos e serviços de
tecnologia. Isso pode acontecer quando a inclusão digital se limita
à alfabetização digital, ao ensino do uso mecânico dos programas
de computador e de acesso à Internet, a preparar o aluno única e
exclusivamente para saber digitar um texto e montar uma planilha
e, assim, conseguir realizar essas tarefas no mercado de trabalho.

35
ACESSO E DIVERSIDADE _ HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA

2_O QUE É INCLUSÃO DIGITAL?

Inclusão Digital significa hoje o acesso da


população ao mundo digital, equiparando as
potencialidades num mundo geográfico, social,
OS PROGRAMAS DE
etário e intelectual diversificado, numa tentativa de
INCLUSÃO DIGITAL
se garantir não apenas a capacitação/treinamento
HOJE EM TODO
do indivíduo ao uso de equipamento, mas estimular
MUNDO MOSTRAM o exercício dos direitos garantidos a cada cidadã
QUE AÇÕES DEVEM como educação, acesso à informação e participação
PRIORIZAR O nas atividades do núcleo social que esta se encontra,
ENVOLVIMENTO DA garantindo a construção de sua cidadania. A inclusão
COMUNIDADE de uma sociedade no mundo digital deve partir
da necessidade de se construir uma sociedade do
conhecimento e do acesso facilitado, crítico, livre e
democrático à informação. Os programas de inclusão
digital hoje em todo mundo mostram que ações devem priorizar o envolvimento
da comunidade, trabalhando numa linguagem acessível aos diversos segmentos,
atendendo as necessidades locais (Lemos, & Costa, 2007). Por isso, é vital que se reformule
os projetos e programas de inclusão digital e que esses concretizem o empoderamento, a
criticidade e a aprendizagem significativa3.

Para Warschauer (2002), o êxito na instauração de um projeto de inclusão digital


depende de que se combinem quatro fatores distintos:

1. Recursos Físicos: que envolvem acesso a computadores e conexões de


telecomunicações;

2. Recursos Digitais: se referem à material digital que está disponível on-line;

3. Recursos Humanos: gira em torno de questões como alfabetização e educação


(incluindo os tipos particulares de alfabetização necessários para o uso do
computador e a comunicação online);

4. Recursos Sociais: estruturas comunitárias, institucionais e sociais que dão


suporte para o acesso às TIC.

Incluir é ter capacidade de livre apropriação dos meios. Trata-se de criar condições
para o desenvolvimento de um pensamento crítico, autônomo e criativo em relação às
novas tecnologias de comunicação e informação (Lemos, & Costa, 2007).

3 Segundo Marco Antônio Moreira, “[...] a aprendizagem significativa é um processo por meio
do qual uma nova informação relaciona-se, de maneira substantiva (não-literal) e não-arbitrária,
a um aspecto relevante da estrutura de conhecimento do indivíduo”. Em outras palavras, os novos
conhecimentos que se adquirem relacionam-se com o conhecimento prévio que o aluno possui
(Moreira apud Aprendizagem significativa, n.d.).

36
ACESSO E DIVERSIDADE _ HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA

3_A IMPORTÂNCIA DO SOFTWARE LIVRE

O software tem o poder de condicionar completamente nossa comunicação. Seu


desenho, suas funções, operações, interfaces são definidos pelos programadores,
que o criaram e o mantêm atualizado. Esses códigos, em geral, são fechados e
incompreensíveis para aqueles que o utilizam. Trata-se de algo obscuro, sem nenhuma
transparência. O mercado principal de software se estruturou em torno de um modelo
de remuneração da propriedade que se dá pela negação de acesso ao conhecimento de
suas rotinas logicamente encadeadas (Silveira, 2014).

Nessa perspectiva, como poderia então se tornar incluído um indivíduo que aprende a
utilizar softwares mas que não pode saber como realmente estes funcionam? Além disso,
como podem projetos de inclusão proporem o contato de indivíduos “marginalizados”
com softwares proprietários caros o bastante para impossibilitar sua utilização?

Apesar de negligenciado pelos governos e algumas vezes ignorado pelas empresas,


a alternativa para uma inclusão consciente e colaborativa é a utilização de Software
Livre (SL). Segundo Teixeira (2010), assumir a filosofia do software livre é “[...] aceitar o
desafio de ser autor, reconhecendo-se como um nó de uma rede colaborativa que, por
meio de experiências reflexivas de autorias e coautorias, se refina e se aperfeiçoa numa
dinâmica de autonomia provisória”.

O SL se caracteriza pela oferta de quatro liberdades básicas: (0) a liberdade de usar o


programa, para qualquer propósito; (1) a liberdade de estudar como o programa trabalha,
podendo adaptá-lo às necessidades próprias, acesso ao código-fonte é precondição para
tanto; (2) a liberdade de redistribuir cópias, para que você possa ajudar ao seu próximo;
(3) a liberdade de melhorar o programa e lançar suas melhorias para o público em geral,
para que assim toda a comunidade se beneficie, acesso ao código-fonte é precondição
para isto (Open Suse, 2017).

O movimento do software livre é um conceito


de coletividade onde se busca a garantia de
que o produto dos esforços coletivos não será
O MOVIMENTO DO
apropriado por alguém; será, sim, de domínio não
SOFTWARE LIVRE
só da própria coletividade que o produziu, mas de
domínio público (Almeida, & Riccio, 2011). Além
É UM CONCEITO
da forma cooperativa de trabalho, trata-se de DE COLETIVIDADE
buscar, adicionar, modificar o que foi dito, escrito, ONDE SE BUSCA
gravado, sem a lógica proprietária, sem a dinâmica A GARANTIA DE
de acumulação e do segredo (Lemos, 2004). QUE O PRODUTO
DOS ESFORÇOS
O acesso completo ao código-fonte, uma
COLETIVOS NÃO SERÁ
das liberdades explícitas do SL, implica abrir
APROPRIADO POR
mão do “poder” da propriedade em nome do
ALGUÉM
coletivo (Almeida, & Riccio, 2011). É a partir desse
desprendimento que surgem as possibilidades
de produção e construção livres de conteúdo, do

37
ACESSO E DIVERSIDADE _ HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA

conhecimento e de programas, o que deve ser feito a partir de iniciativas que apresentem
as oportunidades e possibilidades de democratização dispostas através da utilização e
desenvolvimento do software livre. Portanto, somente programas de inclusão digital que
efetivam seu processo de aprendizagem baseando-se em ferramentas livres, gratuitas e
abertas incentivam a produção de conhecimento acessível e compartilhável.

4_DA INCLUSÃO PARA A GOVERNANÇA

Sem dúvidas, a Internet desempenha papel importante no desenvolvimento e na


emancipação das relações sociais. Além disso, atua como um agente de transmissão
de conteúdo, informação e tecnologia que a cada dia se expande. Ao se tratar de uma
rede tão grande e abrangente, vê-se necessária a participação de indivíduos e coletivos
na constituição de uma ferramenta socialmente útil e propositiva. A partir disso, a
Governança da Internet4 (GI) desempenha um papel fundamental: unir iniciativa
privada, governos, academia e sociedade civil para pensar e efetivar ações que definam
a evolução de uma Internet livre, descentralizada e acessível.

Os espaços de debate sobre GI são os primeiros que devem ser inclusivos. Afinal, de
que adianta debater sobre governança e inclusão de “outros” sendo que antes mesmo
do debate estes já foram excluídos? Com isso, inicia-se ali mesmo nos espaços onde
se almeja a horizontalização do debate sobre a Internet, o processo de exclusão das
realidades sobre as quais se definem políticas. Políticas desconhecidas para pessoas
rejeitadas. É necessário que os espaços de debate sobre GI se tornem mais plurais,
democráticos e representativos!

Segundo a Declaração “Programa Youth@IGF 2015”, assinada por jovens de toda a


América Latina e Caribe (ALC) durante o Fórum de Governança da Internet (FGI) em
2015 no Brasil, o acesso às TICs deve-se efetivar “[...] garantindo, principalmente, a
inclusão de todas e todos os jovens vulneráveis através de acesso irrestrito, acessível
e de qualidade com a finalidade de que eles se tornem uma ferramenta eficaz para o
desenvolvimento social e humano da região” (Youth Observatory, 2015). Nesse contexto,
é essencial reafirmar a importância do protagonismo jovem latino-americano na
elaboração das políticas públicas, tanto nos espaços legislativos dos governos quanto
nos fóruns e congressos, e na efetivação dos projetos de inclusão digital. Deve-se
fortalecer a visão de que as jovens não são o futuro da governança, mas, sim, o presente,
e que a partir das percepções de jovens de toda a ALC poderemos criar uma Internet mais
democrática e acessível.

Cabe então à Governança e a todas suas atrizes o imenso e árduo dever de exigir
e executar políticas para benefício dos desenvolvimentos locais e pela garantia do
direito à inclusão digital. E que esse direito se realize respeitando as divergências e
especificidades culturais regionais, ao passo que fomente a liberdade de expressão, a

4 Governança da Internet é o desenvolvimento e a execução pelos governos, sociedade civil


e iniciativa privada, em seus respectivos papéis, de princípios, normas, regras, procedimentos
decisórios e programas compartilhados que delineiam a evolução e o uso da Internet (Governança
da Internet, n.d.).

38
ACESSO E DIVERSIDADE _ HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA

publicização de dados públicos, a transparência dos governos, a democratização da


informação e a alfabetização.

Se a GI não parte do pressuposto de que seus processos devem ser acessíveis e de que
para isso precisa se reformular já, então nem mesmo os direitos das bilhões de pessoas
já conectadas serão ampliados. Para conectar mais quaisquer outras dezenas que sejam,
é indispensável pensar a Governança da Internet a partir da Inclusão Digital.

_REFERÊNCIAS

Almeida, D., & Riccio, N. C. R. (2011). Autonomia, Liberdade e Software Livre: algumas
reflexões. In Bonilla, M. H. S., & Pretto, N. D. L. (Orgs.) Inclusão digital: polêmica
contemporânea. Salvador: EDUFBA. p. 127-144

Alonso, L. B. N., Ferneda, E., & Santana, G. P. (2010). Inclusão digital e inclusão social:
contribuições teóricas e metodológicas. Barbaroi, (32). p. 154-177. Recuperado de <http://
pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-65782010000100010>

Cogo, D., Dutra-Brignol, L., & Fragoso, S. (2014). Práticas cotidianas de acesso às
TIC: outro modo de compreender a inclusão digital. Palabra Clave, 18(1), p. 156-183.
Recuperado de <https://dx.doi.org/10.5294/pacla.2015.18.1.7>

Dias, L. R. (2011). Inclusão digital como fator de inclusão social. In Bonilla, M. H. S., & Pretto,
N. D. L. (Orgs.) Inclusão digital: polêmica contemporânea. Salvador: EDUFBA. pp. 61-90

Governança da Internet (n.d.). In Wikipedia. Recuperado em julho 13, 2017, de: <https://
pt.wikipedia.org/wiki/Governan%C3%A7a_da_Internet>

Internet Live Stats (2017). Internet Users. Recuperado de <http://www.internetlivestats.


com/internet-users>

Internet.org (2017). Free Basics By Facebook. Recuperado de <https://info.internet.org/


pt/story/free-basics-from-internet-org/>

Lemos, A. (2004). Cibercultura, cultura e identidade: em direção a uma “Cultura


Copyleft”? Contemporânea: Revista de Comunicação e Cultura, 2(2).

Lemos, A., & Costa, L. (2007). Um modelo de inclusão digital. O caso da cidade de
Salvador. In Lemos, A. (Org.). Cidade Digital: portais, inclusão e redes no Brasil.
Salvador: EDUFBA. pp. 35-48.

Moreira, M. A. apud Aprendizagem significativa (n.d.). In Wikipedia. Recuperado em


julho 13, 2017, de: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Aprendizagem_significativa>

Open Suse. Software Livre e de Código Aberto. Recuperado de <https://pt.opensuse.org/


Software_Livre_e_de_C%C3%B3digo_Aberto>

39
ACESSO E DIVERSIDADE _ HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA

Silveira, S. A. (2008). A noção de exclusão digital diante das exigências de uma


cibercidadania. In Hetkowski, T. M. (Org.). Políticas públicas & inclusão digital.
Salvador: EDUFBA.

Silveira, S. A. (2014). Para Analisar o Poder Tecnológico Como Poder Político. In Silveira,
S. A., Braga, S., & Penteado, C. (Orgs.) Cultura, política e ativismo nas redes digitais. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.

Sociedade da informação (n.d.). In Wikipedia. Recuperado em julho 13, 2017, de:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade_da_informa%C3%A7%C3%A3o>

Tecnologia da informação e comunicação (n.d.). In Wikipedia. Recuperado em julho 13,


2017, de: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Tecnologias_da_informa%C3%A7%C3%A3o_e_
comunica%C3%A7%C3%A3o>

Teixeira, A. C. (2010). Inclusão digital: novas perspectivas para a informática educativa.


Ijuí: Editora Unijuí.

Warschauer, M. (2002). Reconceptualizing the Digital Divide. First Monday, 7(7).


Recuperado de <http://journals.uic.edu/ojs/index.php/fm/article/view/967/888>

West, A. R. (2007). Technology Related Dangers: The Issue of Development and Security
for Marginalized Groups in South Africa. The Journal of Community Informatics, 2(3).
Recuperado de <http://ci-journal.net/index.php/ciej/article/view/272>

Youth Observatory (2015). Declaração Youth@IGF 2015. Recuperado de <http://igf2015.br/


pt-BR/declaration/>

HUDSON LUPES RIBEIRO DE SOUZA


Cicloativista, blogueiro, extensionista,
militante e estudante de Engenharia de
Computação na Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes). Nascido em Guarapari
– ES, participou do Núcleo de Cidadania
Digital (NCD - Ufes), onde teve o primeiro
contato com a pesquisa sobre inclusão
digital e onde também conheceu, através
de uma amiga do NCD, a Governança
da Internet e o programa Youth@IGF,
participando então, em 2016, da fundação
do SIG Observatório da Juventude (Youth
Observatory).

40
ACESSO E DIVERSIDADE _ JULIANA DE FREITAS GONÇALVES

DADOS ABERTOS E O
PODER DOS CIDADÃOS
QUE FISCALIZAM

JULIANA DE FREITAS GONÇALVES


Acadêmica de Comunicação Digital na Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (UNISINOS)
julianadfg@gmail.com
Brasil

41
ACESSO E DIVERSIDADE _ JULIANA DE FREITAS GONÇALVES

_TEMÁTICA

Acesso e diversidade
Cooperação de múltiplas partes interessadas

_RESUMO

A Lei de Acesso à Informação, que está em vigor no Brasil


desde 2012, permite que qualquer pessoa, física ou jurídica,
tenha acesso aos dados públicos. Com o aporte da lei, o avanço
tecnológico e as manifestações e protestos que ocorreram
no País a partir de 2013, o número de iniciativas sem fins
lucrativos que reúnem voluntários interessados em participar
mais ativamente do Poder Público tem aumentado. Embora
esse processo dê maior poder ao cidadão, ele ainda apresenta
diversas falhas e é insuficiente na busca por uma cidadania
mais qualificada e participativa.

Palavras-chave: dados abertos; cidadania; Poder Público

42
ACESSO E DIVERSIDADE _ JULIANA DE FREITAS GONÇALVES

Com o objetivo de tornar a administração pública mais transparente e eficiente,


aumentar a participação e o controle social e diminuir a corrupção, foi criada no Brasil
a Lei de Acesso à Informação, ou Lei no 12.527 (2011), que está em vigor desde maio de
2012 e permite que qualquer pessoa, física ou jurídica, tenha acesso a dados públicos.
A lei engloba os três poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo) no âmbito municipal,
estadual e federal, Tribunais de Conta, Ministério Público e entidades privadas sem fins
lucrativos. Ela também garante ao cidadão o acesso às informações de forma gratuita
e sem necessidade de motivos explícitos, ou seja, não é preciso explicar a razão de os
dados estarem sendo requeridos.

O conceito de dados públicos abertos baseia-se em uma definição da Organização


das Nações Unidas (ONU) que coloca o acesso à informação como um direito humano
fundamental, uma ideia defendida internacionalmente já na Declaração dos Direitos
Humanos. A informação é ponto-chave para o desenvolvimento da cidadania,
possibilitando cidadãos engajados politicamente, além de ser um requisito básico na
legitimação de governos democráticos. Além disso, o avanço tecnológico é um dos
grandes responsáveis pelo aumento na adoção de dados abertos através de portais de
transparência, seja pelas novas possibilidades de armazenamento e organização, seja
pelas novas formas de relacionamento entre cidadão e Estado, criadas por meios que
possibilitam a comunicação entre as duas partes de forma bem mais rápida e dinâmica
– principalmente quando pensamos nas redes sociais. O ecossistema da Internet por si
só já promove ambientes mais abertos ao debate e motiva cidadãos mais participativos,
dispostos a dialogar sobre diversos assuntos, uma vez
que uma procura rápida em qualquer buscador leva
ao usuário qualquer tipo de informação. Essas novas
possibilidades técnicas, aliadas com os recentes casos O CONCEITO DE
alarmantes de corrupção no Brasil – que colocaram DADOS PÚBLICOS
o país em 79 lugar no ranking de percepção da
o ABERTOS BASEIA-SE
corrupção no mundo em 2016, uma piora de três EM UMA DEFINIÇÃO
posições em relação a 2015 (Salomão, 2017) – ajudam DA ORGANIZAÇÃO
a aumentar a consciência cidadã da população que DAS NAÇÕES
percebe a importância e a força de seu papel como UNIDAS (ONU) QUE
agente fiscalizador dos acontecimentos públicos. A Lei COLOCA O ACESSO
de Acesso à Informação é mais um passo em direção à
À INFORMAÇÃO
motivação social.
COMO UM
Com todos esses recursos disponíveis e associado DIREITO HUMANO
aos “[...] movimentos populares desencadeados [no FUNDAMENTAL
Brasil] a partir de 2013 [que] trouxeram para o cenário
político um ‘empoderamento’ de entidades que até
então eram restritas ao público com formação mais qualificada” (Meirelles, 2017),
espera-se que o número de cidadãos engajados na fiscalização dos poderes públicos
aumente permanentemente, assim como as iniciativas sem fins lucrativos que reúnem
interessados em participar mais ativamente no controle de gastos. No Brasil, algumas
dessas iniciativas são:

43
ACESSO E DIVERSIDADE _ JULIANA DE FREITAS GONÇALVES

1. Observatório Social do Brasil (OSB)1: uma rede de cerca de 3 mil voluntários


existente em 19 Estados brasileiros que recebem capacitação e apoio técnico
para supervisionar o uso do dinheiro público em âmbito municipal. O foco da
organização é o controle fiscal de compras, contratações e outros gastos na
gestão pública e, segundo dados do próprio observatório, são mais de R$300
milhões poupados por ano;

2. Operação Política Supervisionada2: uma ONG com mais de 4 mil voluntários


no País e no exterior que fiscaliza gastos principalmente da Cota para Exercício
da Atividade Parlamentar – uma verba indenizatória de deputados e senadores
disponível para os políticos em atividade ligada ao exercício do mandato, como
despesas com alimentação e hospedagem, que é liberada após a comprovação
dos gastos. Segundo o site da organização, mais de R$5,5 milhões de dinheiro
público já foram poupados;

3. Operação Serenata de Amor3: também focada em controlar os gastos com a


Cota para Exercício da Atividade Parlamentar, a organização utiliza inteligência
artificial em um robô chamado Rosie, programado em Python, que identifica
reembolsos suspeitos para que sejam mais tarde auditados por trabalho
humano. Em números, até meados de fevereiro de 2016 mais de 500 denúncias
já haviam sido feitas e mais de R$3 mil já haviam sido devolvidos para os cofres
públicos;

4. Associação Contas Abertas4: uma associação que monitora os gastos da União


englobando os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Também oferece
assessoria e capacitação para que a sociedade em geral possa se especializar no
controle orçamentário público.

Todas essas iniciativas utilizam a Lei de Acesso à


Informação para contestar gastos, melhorar a gestão e
frear práticas incorretas. A própria existência da lei já
serve como uma dificuldade para políticos que desejam NÃO É APENAS O
praticar atos ilícitos, uma vez que todos os dados estarão ACESSO AOS DADOS
disponíveis ao público. Porém, só isso ainda não é QUE IMPORTA, MAS
suficiente e ideal para dar conta de tudo. Com tantos SIM O ACESSO
dados disponíveis é necessário que a capacidade de
QUALIFICADO
análise também aumente. Não só mais iniciativas sendo
criadas, o que parece já ser uma tendência positiva, mas
também recursos e infraestrutura compatíveis com
a demanda cada vez maior de dados para serem averiguados. É fundamental que se
mantenha o aumento no interesse dos cidadãos, que segue crescente impulsionado pela

1 Site do Observatório disponível no link <http://osbrasil.org.br/>

2 Site da Operação disponível no link <https://luciobig.com.br/>

3 Site da Operação disponível no link <https://serenatadeamor.org/>

4 Site da Associação disponível no link <http://www.contasabertas.com.br/>

44
ACESSO E DIVERSIDADE _ JULIANA DE FREITAS GONÇALVES

indignação com acontecimentos recentes – como a Operação Lava Jato5 – mas para isso
algumas mudanças ainda devem ocorrer. Não é apenas o acesso aos dados que importa,
mas sim o acesso qualificado. É necessário um certo nível de profissionalização para
que o cidadão tenha conhecimento sobre como chegar até as informações e fazer uso
adequado delas. Esse movimento também inclui linguagem mais acessível e interfaces
mais amigáveis e com usabilidade otimizada nos portais de transparência. Dados
que não podem ser encontrados ou trabalhados perdem a sua utilidade e prejudicam
o objetivo inicial de transparência – que só existe quando os cidadãos realmente
conseguem utilizar o que têm em mãos.

Em reportagem da Gazeta do Povo de fevereiro de 2017 (Brembatti, & Marchiori, 2017)


é demonstrada a importância do aperfeiçoamento dos cidadãos para analisar os dados
públicos. Débora Sögur Hous, uma estudante da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
utilizou o Portal de Transparência do Governo Federal6 para acompanhar os pagamentos
da União à universidade. Ela estranhou algumas informações, mas foi preciso
conhecimento mais aprofundado sobre o assunto para que as suspeitas pudessem ser
estruturadas. Débora fez dois cursos da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo
(Abraji), dois da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e mais uma oficina com um
coletivo de jornalistas chamado Livre.jor7. Segundo a reportagem, foi só então que a
estudante conseguiu sistematizar toda uma rede de pagamentos suspeitos que acabou
sendo comprovada depois em uma operação da Polícia Federal, chamada Operação
Research, e que acabou com a prisão de 29 pessoas.

Outro conhecimento que se torna cada vez mais necessário, sendo já considerado
como a nova forma de alfabetização em um mundo conectado, é a programação.
Iniciativas como a Serenata de Amor mostram como um algoritmo pode ser útil e
eficiente para lidar com a quantidade gigantesca de dados disponíveis de uma maneira
que apenas o trabalho manual não conseguiria executar. Além disso, outras formas de
transparência que devem ser cobradas dos governos requerem conhecimentos técnicos
para, por exemplo, auditar algoritmos usados em sorteios ou em outras decisões
oficiais. O cidadão precisa reconhecer e se apoderar do seu direito de saber e isso requer
também a cobrança de iniciativas públicas que tornem esses conhecimentos acessíveis
a todos de forma igualitária, sem discriminação econômica, racial ou de gênero. Mais
uma urgência na luta pela redução da desigualdade e por uma educação de qualidade.

Além disso, mesmo com todo o progresso já obtido no que diz respeito aos dados
abertos, estamos longe de um estágio satisfatório. Segundo relatório do Ministério da
Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União (2016), entre 2012 e 2015, a
Lei de Acesso à Informação foi utilizada para 334.463 pedidos de acesso, dos quais 333.854
foram respondidos – uma eficiência de 99,8%, incluindo pedidos atendidos, negados e

5 Conjunto de investigações da Polícia Federal do Brasil, em curso desde 2014, com objetivo
de identificar casos de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo políticos e empresas, como
construtoras e a Petrobras.

6 Portal disponível no link <http://portaldatransparencia.gov.br/>

7 Site do coletivo disponível no link <http://livre.jor.br/>

45
ACESSO E DIVERSIDADE _ JULIANA DE FREITAS GONÇALVES

não atendidos. Porém mesmo com a lei, muitos dados ainda são incorretos, faltantes
ou difíceis de serem compreendidos. Além da dificuldade de acesso à Internet em
muitas localidades do Brasil, nem todos os dados estão disponíveis no mesmo lugar,
mesmo com a existência de um site oficial do próprio governo para esta finalidade,
o que dificulta a utilização dos dados e aumenta o tempo necessário para achar as
informações desejadas.

Outro relatório, da Web Foundation em parceria com o Transparency International,


publicado em 2017, conclui que as políticas de dados abertos no Brasil ainda não estão
satisfatoriamente alinhadas aos esforços contra a corrupção no País, uma vez que os
dados disponíveis não foram completamente explorados nem mesmo pelos próprios
funcionários do governo e ainda são vistos apenas como uma prestação de contas e não
como uma importante arma na luta contra a corrupção (Transparency International, 2017).

Faz-se necessário, por fim, o aumento da conscientização e engajamento do cidadão


em questões políticas, que vá além de eleger candidatos de quatro em quatro anos.
A busca por uma cidadania mais qualificada passa, atualmente, pela discussão de
questões diretamente ligadas à Governança da Internet que têm alcançado apenas um
pequeno público, insuficiente para um País que se diz democrático.

_REFERÊNCIAS

Brembatti, K, & Marchiori, R. (2017). Estudante detectou sozinha desvio milionário de


bolsas que a UFPR não viu. Gazeta do Povo. Vida e Cidadania. Recuperado de: <http://
www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/estudante-detectou-sozinha-desvio-
milionario-de-bolsas-que-a-ufpr-nao-viu-52c7c52x896li4rb2qkrjeona>

Lei nº 12.527, (2011, 18 de novembro). Regula o acesso a informações previsto no inciso


XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição
Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5
de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras
providências. Recuperado de: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/
lei/l12527.htm>

Meirelles, G. (2017). Engajamento de cidadãos e entidades tem efeito positivo na


cobrança por eficiência no poder público. Fecomercio. Economia. Recuperado de:
<http://www.fecomercio.com.br/noticia/engajamento-de-cidadaos-e-entidades-tem-
efeito-positivo-na-cobranca-por-eficiencia-no-poder-publico>

Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União (2016).


Relatório sobre a implementação da Lei nº 12.527: Lei de Acesso à Informação.
Recuperado de: <http://www.acessoainformacao.gov.br/central-de-conteudo/
publicacoes/relatorio_4anos_web.pdf>

46
ACESSO E DIVERSIDADE _ JULIANA DE FREITAS GONÇALVES

Salomão, L. (2017). Brasil está em 79º lugar entre 176 países, aponta ranking da
corrupção de 2016. G1. Mundo. Recuperado de: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/
brasil-esta-em-79-lugar-entre-176-paises-aponta-ranking-da-corrupcao-de-2016.
ghtml>

Transparency International (2017). Open data and the fight against corruption in Brazil:
report. Recuperado de: <https://www.transparency.org/whatwedo/publication/open_
data_and_the_fight_against_corruption_in_brazil>

JULIANA DE FREITAS GONÇALVES


22 anos, estudante de bacharelado em
Comunicação Social com habilitação em
Comunicação Digital pela Unisinos/RS.
Iniciou seus estudos em Governança da
Internet em 2015 e seus principais tópicos
de interesse são privacidade, cultura digital,
gênero, diversidade e inteligência de dados.

47
INCLUSÃO
DIGITAL
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

E-INCLUSÃO E BRECHA DIGITAL,


VULNERABILIDADE E EXCLUSÃO
SOCIAL: UM CAMINHO PARA A
REINTEGRAÇÃO SOCIAL DOS
QUE TÊM OU TIVERAM UMA
EXPERIÊNCIA EM INSTITUIÇÕES
PENITENCIÁRIAS?

GEORGINA A. GUERCIO
Advogada, graduada pela Faculdade de Direito da Universidade
Nacional de Cuyo, Mendoza, Argentina.
georgina.g.33@gmail.com
Argentina

49
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

_TEMÁTICA

Inclusão digital
Direitos digitais

_RESUMO

O objetivo deste artigo é tornar visíveis os preconceitos a partir


dos quais habitualmente trata-se a exclusão digital, bem como
a incidência desta na exclusão social. Analisam-se fatores
considerados importantes para conhecer, entender e aplicar
soluções eficazes para o problema atual da brecha digital,
colocando o foco de atenção já não sobre o mero acesso às
tecnologias, mas em sua apropriação através da educação.
Especificamente a observação desta dinâmica e as propostas
que surgem giram em torno da população penitenciária e suas
perspectivas futuras de reintegração social.

Palavras chave: brecha digital; privação da liberdade; exclusão

50
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

1_A BRECHA DIGITAL E O NOVO PARADIGMA DA


TECNOLOGIA

A sociedade da informação e a sua linguagem inovadora, com o seu progresso


inevitável e avassalador, tem impactado fortemente no paradigma a partir do qual os
problemas sociais são abordados, tanto em sua identificação como no desenvolvimento
de possíveis soluções. As TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) e
especificamente seu acesso, conhecimento e melhor aproveitamento, começaram a
cimentar diferenças profundas nas oportunidades de desenvolvimento e crescimento,
tanto na projeção individual quanto na social, ao mesmo tempo que geraram um novo
grupo de excluídos: aqueles que não acessam e/ou dominam a tecnologia e caem na
chamada “brecha digital”.

A Organização das Nações Unidas (ONU) já referia em sua Cúpula Mundial sobre
a Sociedade da Informação de 20031 que o que chamamos de “brecha digital” pode ser
sintetizado na divisão entre aqueles que podem efetivamente usar as novas ferramentas
da informação e comunicação, tais como a Internet, e aqueles que não podem. Tendo
em conta esta conceitualização, e sem perder de vista reformulações posteriores sobre
essas diretrizes e nuances, a sociedade, de modo geral, de acordo com Buchmueller et al.
(2011), seria atomizada em dois grandes grupos: os
chamados onliners e os “none-liners”. A complexidade
e a riqueza da análise que levanta esta distinção não
para aqui, pois existem múltiplas arestas que devem A QUESTÃO EM
ser vistas se entendermos que não se trata apenas TORNO DA BRECHA
de um problema quantitativo, restrito ao acesso DIGITAL ESTÁ
às tecnologias da informação e à infraestrutura
EFETIVAMENTE
para isso, mas que o fenômeno se desenrola em
CIRCUNSCRITA A
um contexto de desigualdades econômicas, sociais,
DUAS DIMENSÕES
culturais e políticas prevalecentes nas sociedades,
das quais a brecha digital participa.
GERAIS: A
INFRAESTRUTURA
Contrariamente a esta visão reducionista, a (CONECTIVIDADE) E
partir da qual geralmente é encarado o estudo de O MERO ACESSO E
manifestações sociais e tecnológicas cada vez mais DESENVOLVIMENTO
complexas, é possível redimensionar a questão em DE COMPETÊNCIAS
causa e adicionar outras variantes como a cultura
TÉCNICAS PARA A
empresarial para orientar a ação econômica para a
UTILIZAÇÃO DAS
rede, a capacidade e eficiência para o gerenciamento
TIC (FORMAÇÃO
e manutenção de recursos em rede, a cooperação,
o investimento de capital — para a criação, gestão
TÉCNICA)
e manutenção da rede — acompanhado de um
quadro legal e planejamento adequado, treinamento

1 A Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) foi uma cúpula organizada pelas
Nações Unidas em duas fases: uma teve lugar em Genebra (2003) e outra na Tunísia (2005). Um dos
seus principais objetivos foi o tratamento da brecha digital global, que separa países ricos de países
pobres, através da difusão do acesso à Internet no mundo em desenvolvimento.

51
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

profissional, conteúdo de qualidade e no próprio idioma. Por último, mas não menos
importante, usuários com habilidades e competências que lhes permitam o uso eficiente
da rede. Estas notas esboçadas, e sem a intenção de serem excludentes e limitativas,
mostram inegavelmente que estamos enfrentando um fenômeno multidimensional
em que, embora seja válido vincular diretamente a brecha digital com o acesso às TIC
(infraestrutura, acessibilidade e usabilidade para vincular-se à rede de redes), sua base
responde a processos sociais que requerem interpretações renovadas, dependendo da
incidência e da capacidade de transformação da tecnologia.

A busca de uma abordagem integral exige, portanto, não somente a contemplação


do componente tecnológico, mas também do resultado sinérgico e recíproco da
economia, da política e da cultura, a que é adicionada a necessária consideração de
fatores como a geografia, idade, sexo, idioma, educação, empregabilidade e integridade
física. Apesar de tudo isso, se examinarmos nossas realidades, não é por acaso que nos
deparamos com o fato de que a questão em torno da brecha digital está efetivamente
circunscrita a duas dimensões gerais: a infraestrutura (conectividade) e o mero acesso e
desenvolvimento de competências técnicas para a utilização das TIC (formação técnica).
Em plano secundário fica a compreensão e o exame qualitativo sobre o uso e a orientação
que os usuários imprimem aos recursos fornecidos. De fato, essas preocupações são
invisíveis nas mesas de debates em que se discutem a articulação das políticas que
possam garantir respostas eficazes e omnicompreensivas ao problema. Logicamente,
disso resulta uma etérea, mas vigente, naturalização de uma espécie de “inclusão
acrítica”, em que não se pergunta “para quê” promover o acesso às TIC. As interpelações
sobre essas questões e a assimilação da sua necessidade e importância permitem, entre
outras coisas, descobrir e ressignificar a estreita relação entre o conhecimento e a
utilização das TIC, evolução que conduz à inclusão da dimensão cognitiva na concepção
e estudo da noção de brecha digital – dimensão a que, por sinal, também deveria somar-
se um posicionamento ético.

A falta de acesso às TIC, sem dúvida, constitui mais uma causa condicionante da
verdadeira igualdade de oportunidades, uma vez que marginalizar hoje os setores
sociais menos favorecidos dos benefícios da Internet implica fechar-lhe a porta de
entrada para o mundo da Informação e do conhecimento. Falamos então, não só
de uma brecha digital com todas as suas implicações, mas também de uma brecha
cognitivo. Esta última está à mercê dos vertiginosos avanços técnicos e corre o risco de
se aprofundar, tornando mais grave a desintegração social que agora acrescenta outra
forma de exclusão: a exclusão social digital.

Esses parágrafos visam a despojar o leitor da ideia de que o mero fato de dar a
uma pessoa os meios para se estar na rede provoca, por osmose, um processo de
autossuperação pessoal imediato que elimina as desigualdades que estão na base da
brecha digital. Vamos, portanto, tentar ponderar o papel da educação como um processo
construído a partir da participação e do envolvimento de todos os atores da sociedade,
cujo objetivo não é apenas alfabetizar no informacional, mas também alcançar uma
massa crítica de cidadãos que possam transformar-se e transformar a sociedade.

A educação é um ponto no qual a brecha digital e a brecha cognitiva convergem, e

52
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

que permite abordar, com maior solvência e perspetivas de sucesso, as necessidades e


demandas daqueles que esperam fazer parte da mudança. Estas projeções, no entanto,
não estão privadas de algumas dicotomias. Por um lado, face a uma tecnologia que
avança a passos gigantescos, a educação evolui lentamente e através de respostas
residuais ou, no pior caso, com um impacto quase nulo. Enquanto que, por outro lado,
como muito bem expresso por Rafael Capurro (2010), caminhamos em direção ao
horizonte de uma ontologia digital, o que nos leva a viver um projeto existencial cujas
consequências sociais são difíceis de se prever.

2_EXCLUSÃO SOCIAL, EXCLUSÃO DIGITAL

Os estudos destinados a analisar em que medida as novas tecnologias podem


contribuir para a inclusão dos grupos mais desfavorecidos da sociedade são
frequentemente baseados em uma abordagem de exclusão social, a partir das TIC, que
está exclusivamente relacionada com o risco de queda ou aprofundamento da brecha
digital. Essa perspectiva tendenciosa esquece-se de aprofundar a relevância e o impacto
positivo que as TIC têm quando acompanhadas de uma formação adequada que permita,
às pessoas excluídas, encontrar nelas a oportunidade para gerar e/ou fortalecer os
espaços de inclusão individual que certamente terão influência no contexto coletivo.
Estas abordagens são complementares e têm como eixo a concepção da tecnologia
como um instrumento que permite contornar obstáculos e que abre uma gama de
possibilidades ilimitadas, forjando alternativas de transformação para uma sociedade
mais digna e coesa. A partir dessa premissa, é útil fazer primeiro uma aproximação ao
conceito de exclusão social.

A noção de exclusão social surge em meados da década de 1970 como uma tentativa
de superar o conceito de pobreza, e de acordo com Sen (2000), é entendida em conexão
com a desigualdade e limitações no acesso a certos bens ou serviços contidos, em sua
interpretação, com considerações puramente econômicas. Esta formulação reflete-se
igualmente nos termos utilizados para definir a exclusão digital nos seus primórdios, e
apesar das críticas e subsequentes contribuições que foram feitas a esta conceitualização,
as representações que a definição transpõe para o tratamento da exclusão digital
parecem prevalecer. Portanto, para superar essa análise superficial torna-se essencial
considerar outros fatores, porque pode mesmo acontecer que os grupos que são excluídos
digitalmente estejam conformados por pessoas que não pertençam necessariamente a
grupos tradicionalmente excluídos, em uma concepção social e econômica da exclusão,
embora seja verdade que o vazio tecnológico coexiste e aumenta os efeitos da exclusão
social compreendida a partir de um modelo tradicional.

A exclusão social é um problema muito mais complexo e que engloba a exclusão


digital, que, segundo Frederick (1993), cria novos modelos de desigualdade e formas
de divisão, na medida em que distancia cada vez mais aqueles que podem participar
democrática e efetivamente nas dinâmicas sociais, daqueles que nem sequer têm um
lugar nelas ou o fazem parcialmente. Por isso, a discussão sobre a exclusão social
remete-nos para um processo em constante mudança no qual se interligam e se
implicam uma dimensão econômica, social e vital. É em relação a elas que vemos, por

53
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

exemplo, a falência ou a erosão de duas categorias nas quais assenta uma das chaves
para a inclusão social: o âmbito vincular ou relacional e o ambiente econômico laboral.
Aqui, ganha importância o papel que as TIC desempenham, já que sua apropriação e
suas potencialidades permitem recuperar os espaços perdidos dentro da vida social.
No entanto, não deve ser deduzido, sem qualquer outra consideração, que a inclusão
digital implicitamente implica a dimensão da
inclusão social, mas sim um grande avanço sobre
ela. A Internet, especialmente, é apresentada como
A EXCLUSÃO um fator de mobilidade social, e como instrumento
SOCIAL É UM demonstrou sua penetração e enorme capacidade
PROBLEMA MUITO de mudar o ambiente de trabalho; daí sua
MAIS COMPLEXO incidência na estruturação e no aprofundamento
E QUE ENGLOBA A das desigualdades. Esta é uma das razões pelas
EXCLUSÃO DIGITAL, quais se deve insistir em ponderar seu valor de
QUE, SEGUNDO uso em oposição ao valor de troca ou comércio que
representa ou pode representar.
FREDERICK (1993),
CRIA NOVOS O binômio inclusão/exclusão pode ser reduzido,
MODELOS DE embora não de forma autossuficiente, através
DESIGUALDADE de uma séria reformulação da educação formal e
informal. Com isso em mente, um dos primeiros
passos a se dar para que a chamada brecha digital
comece a diminuir é superar o preconceito de que, sobre as TIC e sua contribuição, os
atores que as têm em suas mãos mantêm a possibilidade de agir e decidir. É essencial
perceber que a impossibilidade de interagir com as novas tecnologias alimenta a
exclusão digital e que, por sua vez, esta aumenta a exclusão social.

3_INTERNET E PRIVAÇÃO DA LIBERDADE: SÃO


COMPATÍVEIS?

Identificar grupos ou subgrupos de pessoas particularmente afetadas pelo processo


de exclusão acima mencionado, como se fará em seguida, não pretende evitar a natureza
estrutural e multifatorial da exclusão. Simplesmente busca-se circunscrever e situar a
visão sobre um coletivo muitas vezes ignorado, mas muito presente e ligado ao discurso
político sempre atual sobre a insegurança, a justiça e a inclusão. E hoje, mais do que
nunca, está em voga em uma Argentina que discute diariamente suas regras penais e
a eficácia das medidas repressivas. Inevitavelmente, o debate merece outras reflexões,
que devem também acompanhar a controvérsia, como a avaliação autocrítica da figura
das instituições de encarceramento em face do fracasso na prevenção e perante a
deficiente ou nula inclusão social.

Se empreendermos uma busca que nos leve a compreender estas conclusões


desencorajadoras, vamos encontrar, talvez, mais perguntas do que respostas. Nessas
pessoas, cuja vulnerabilidade social os liga constantemente ao crime, ou naquelas
já sujeitas a processos criminais ou cumprindo uma condenação, onde começa e
termina o fator pessoal? E o fator social? A complexa inter-relação que ocorre entre as

54
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

circunstâncias pessoais, sociais, culturais, históricas e institucionais, em geral, torna


difícil falar de recortes estritamente pessoais que tendem a um estado de exclusão
e, consequentemente, delinquência. Sob esta perspectiva, e sem aspirar a esgotar a
questão, uma das muitas propostas viáveis para abordar o assunto, tanto de sua causa
como de suas consequências, é a avaliação das barreiras educacionais. Essas adquirem
novas conotações ao ligarem-se com uma tecnologia que exige uma vasta gama de
conhecimentos, habilidades e uma atitude vital em que os usuários não podem, nem
devem, deter-se perante as mudanças como meros consumidores, mas como sujeitos
ativos.

Para contextualizar e esclarecer se diante dessas barreiras a alfabetização digital


opera no contexto de privação da liberdade e, dessa forma, como ela funciona ou como
poderia fazê-lo, em primeiro lugar, temos de compreender que, quando falamos de
reinserção e inclusão social, o ponto de partida é a ponderação do passado, presente e
futuro das trajetórias de vida dos reclusos. No entanto, embora durante sua permanência
na prisão o indivíduo tenha o direito de receber instrução que o valorize e lhe permita
reintegrar-se futuramente na sociedade como um membro ativo, o contexto em que
habita não o favorece para isso. Prevalece uma lógica penitenciária marcada, entre
outras coisas, pelas interações baseadas na hierarquia e no poder, com uma função clara
de correção que, muitas vezes, se torna arbitrária, com perda progressiva da autonomia,
homogeneização e dependência institucional quanto à disponibilidade do tempo e da
mobilidade física. Esses fatores, apenas delineados, são claramente prejudiciais para
o cumprimento de qualquer finalidade colocada e colabora com o descrédito do valor
intrínseco da educação, acentuando sua concepção apenas como um meio para obter
benefícios na execução da pena. A esses obstáculos, e aos que compartilham com outros
grupos, também se acrescenta uma peculiaridade: a necessidade de conciliar a educação
e o trabalho com a garantia de segurança.

Na verdade, a população prisional é híbrida no que se refere à bagagem cultural;


dentro desta mistura há uma grande maioria que possui uma formação irregular, que
não tem qualificação profissional e cujas habilidades sociais foram deterioradas pelo
efeito que a vida de encerramento tem em seus padrões de conduta, enquanto uma
porcentagem não menor é analfabeta funcional. Este cenário, a princípio, compromete,
e na maioria dos casos impossibilita, as chances de que, no futuro, aqueles que estão
privados da liberdade ou sujeitos a várias medidas judiciais possam voltar para a vida
social e obter um emprego. Tal cenário é agravado pela falta de objetividade da maioria
da sociedade na apreensão deste coletivo. Considerando que os potenciais e os atuais
detentos são objeto de vários tipos de exclusão, aqui o principal será pensar na exclusão
que é gerada após a obtenção da liberdade, não só pela estigmatização social, mas como
consequência de uma formação inadequada ou inexistente que dificulta a referida
reintegração social e laboral.

Agora, para percorrer os ambicionados caminhos da alfabetização informacional


digital, compreendida como um conjunto de competências que levam a um uso
adequado, reflexivo, crítico e responsável da informação e da mídia, idealmente
complementadas com o conhecimento técnico para o controle e criação de linguagens

55
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

de programação, pode começar-se por discutir o desenvolvimento fundamental de três


aspectos: o acesso à tecnologia, competências e atitudes, que incidem claramente no
agravamento ou redução da exclusão social e digital que implica estar na prisão.

Ao discutir o possível acesso à tecnologia, e especialmente a Internet nestas áreas,


a heterogeneidade das dificuldades em termos de acesso aberto à Internet é o primeiro
problema que surge. A população prisional deve estar incomunicável com o exterior,
salvo pelas vias oficiais, uma exigência que discorda claramente com as pretensões
perseguidas. Este distanciamento tecnológico, comportado por uma permanência na
prisão, implica também uma dificuldade acrescida para os internos e ex-internos, que
complica ainda mais a integração social, a reabilitação e a inserção laboral, essa última
diretamente relacionada com a vontade de desistir do crime, embora renunciar ao
crime não implique necessariamente um processo de inclusão social. Dessa forma, é
evidente a importância de superar o conflito exposto e reforçar, por outro lado, o influxo
da aquisição de ferramentas necessárias para alcançar uma melhor qualidade de vida,
com as TIC como uma das possíveis respostas.

Em sentido genérico, e quando se trata do manejo de ferramentas informáticas e/ou


de programação, uma boa linha de ação sobre elas deve não ser padronizar nem limitar
o tempo, algo que parece não ter apoio na prisão se considerarmos os impedimentos
tratados anteriormente. Apesar disso, surgem algumas propostas com perspectivas
de efetivação e que são compatíveis, por um lado, com a necessidade de segurança e
isolamento que a pena de privação da liberdade implica e, por outro, com a luta contra
a exclusão digital. São elas:

- Formação informática básica: ensino dos aspectos mais elementares na utilização


de um computador pessoal. Essa é uma medida inicial que pode ser amplamente
difundida, já que não há necessidade de comunicação com o exterior, tem baixos custos,
e também tem o objetivo de atualização do conhecimento prévio que cada detento traz,
mas que a passagem do tempo entre os muros torna desatualizado.

- Navegação simulada ou o acesso restrito à Internet: tendo em conta os custos,


respeitando as restrições do complexo penitenciário em questão, mas sem contornar o
horizonte que é a busca da inclusão digital.

- Uso de ferramentas específicas, programação e cursos de treinamento focados


em possíveis demandas profissionais: embora ambicioso como sugestão, poderia
ser uma resposta válida não só para as demandas do mercado, mas também para os
propósitos de uma vida renovada. A este respeito, uma questão a ponderar, e que não é
menos importante, é que apenas existe software adaptado às necessidades e perfis desta
população em particular, a penetração do software livre é muito pequena, bem como o
grau de conhecimento sobre ele.

A viabilidade e o sucesso destas propostas está subordinada, pelo menos, a três


questões. Primeiro, a solidez orçamental, que permita e garanta o crescimento que se
pretende. Segundo, o reconhecimento de que a expansão generalizada da linguagem
digital torna necessário ensinar competências que transcendem o conhecimento

56
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

técnico e instrumental em que a maioria dos esforços atuais neste campo estão
focados; uma verdadeira alfabetização digital não deve apenas consistir em ensinar
como usar o computador e algumas aplicações, mas deve fornecer os elementos básicos
para o desenvolvimento de capacidades que permitam revalorizar e questionar os usos
atribuídos às ferramentas, além de permitir a compreensão e talvez o domínio das
linguagens de codificação. Terceiro, a atitude com que as TIC são enfrentadas, sem
perder de vista a complexidade de cada realidade individual e o componente de vontade:
essa deve ter como objetivo construir espaços de liberdade e crítica vital sem se esquecer
de contribuir, do lugar que ocupa, para o tecido de redes de cooperação.

No entanto, e infelizmente, hoje prevalece a precariedade, a falta de financiamento


e de preparação dos educadores, e a ausência de projetos que encarem seriamente a
privação de liberdade e o seu efeito direto na brecha social e digital, e que compreendam
o caráter fundamental da tecnologia para nossa vida diária, bem como o seu potencial
para regenerar as relações e o equilíbrio social.

Na Argentina, apesar de por mais de uma década a Educ.ar2 ter promovido e


impulsionado uma transformação nos processos de ensino e aprendizado, tentando,
por um lado, transcender os usos puramente instrumentais e, por outro, determinar
que tipo de competências era necessário gerenciar para não ser um analfabeto digital,
suas intenções foram parcialmente concretizadas. Ao mesmo tempo, o atual governo
argentino apresentou, formalmente, sua intenção de avançar ainda mais neste terreno,
anunciando programas que visam a inserção laboral, como o “111 mil programadores”3.

Essas tentativas, embora meritórias, não satisfazem as necessidades reais e


profundas da sociedade e mostram que há muito para ser considerado, lugares para
penetrar (por exemplo, as iniciativas acima referidas não conseguiram permear as
paredes das prisões), e mais a ser feito. Há mesmo quem ponha em dúvida se a brecha
digital é uma área de intervenção política, ou não, e, se for, quais são as medidas
apropriadas a tomar. Diante disso, se reafirma que o acesso às tecnologias é assumido,
como diz Foster (2000), como “um direito civil capital”, e, portanto, não há dúvida de
que a sociedade e os políticos devem se esforçar para ampliá-lo. O essencial da questão
é o bom equilíbrio e a sensatez, não só do setor privado, mas também do público (já
que no sucesso de sua política reside, em parte, a solução do problema, mas também
seu agravamento), ao qual deve ser acrescentado o treinamento dos profissionais em
termos de conteúdos teóricos relacionados com as TIC, que contemplem metodologias e
estratégias de intervenção para uma verdadeira e-inclusão.

4_REFLEXÕES FINAIS

A brecha digital é alimentada e fundida com as lacunas profundas que resultam do


progresso desigual e insere-se em um contexto que não mostra muita preocupação com
a redistribuição social. No entanto, o promissor horizonte da sociedade da informação

2 Ver em <https://www.educ.ar/>

3 Ver em <https://www.argentina.gob.ar/111mil>

57
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

levanta um certo otimismo ancorado nas potencialidades do intercâmbio equilibrado e


razoável da informação, mas sobretudo do conhecimento, e na ideia de que a tecnologia
é um propulsor do desenvolvimento.

Nas palavras de Tejo Delarbre (2001), a famosa sociedade da informação é, portanto,


realidade e possibilidade. Essa última entendida aqui como possibilidade de identificar e
defender o conhecimento como um bem social indispensável, bem como a possibilidade
de promover boas práticas que brotem do seio de uma cidadania ativa e comprometida
para se transmutar em políticas públicas positivas e de longo alcance, que encarem a
brecha de uma forma abrangente, considerando especialmente o papel da alfabetização
digital bem compreendida. Naturalmente, tudo isso será viável se assimilarmos
que a transformação, que implica a diminuição das distâncias da brecha, demanda
proporcionalmente uma concepção das relações baseadas na cooperação, no respeito
e na equidade; retroalimentação que irradia efeitos benéficos e invade o núcleo das
disparidades sociais.

Da sua transversalidade, as TIC, para além dos perfis da população excluída (e apesar
das críticas que são concebidas e da consequente apreensão que geram), contribuem e
contribuirão com soluções válidas e vantajosas. Precisamente sobre o assunto que este
texto abrange, pode-se ver como as TIC poderiam contribuir claramente para a inclusão
dos grupos mais desfavorecidos, operando a partir do relacional e do laboral, tornando-
se um meio para alcançar certos objetivos adaptativos, educativos e ressocializantes.
Igualmente é adicionado o conceito de alfabetização digital, que é revolucionário na
medida em que aponta para um treinamento que
supera as meras competências instrumentais; no
caso específico do coletivo que sofre ou tem sofrido
O PROMISSOR
uma pena privativa da liberdade, procura promover a
HORIZONTE DA
aquisição de habilidades que estejam ligadas à busca
SOCIEDADE DA da autonomia, da autocrítica e da conscientização
INFORMAÇÃO de responsabilidade social individual.
LEVANTA UM
CERTO OTIMISMO Apenas com uma apropriação adequada das TIC
ANCORADO NAS é que isso será viável, objetivo que será alcançado
se existirem recursos humanos e materiais sólidos
POTENCIALIDADES
combinados com um direcionamento correto do
DO INTERCÂMBIO
conhecimento e das formas que se empreguem em
EQUILIBRADO E
sua utilização. Embora as peculiaridades do contexto
RAZOÁVEL DA de reclusão estejam necessariamente presentes,
INFORMAÇÃO, MAS para se alcançar os objetivos propostos deve-se
SOBRETUDO DO tentar penetrar no espaço de trabalho, abordar os
CONHECIMENTO, E assuntos e, tanto quanto possível, as adversidades.
NA IDEIA DE QUE A Revela-se a insuficiência dos perfis puramente
TECNOLOGIA É UM técnicos para esta tarefa, sendo aconselhável dar um
PROPULSOR DO passo em direção a um perfil de alfabetizador digital
DESENVOLVIMENTO social, que assuma este desafio também a partir de
uma dimensão ética, pedagógica e reconhecendo

58
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

suas implicações políticas.

Este desafio exige o aprofundamento da concepção e avaliação das metodologias


aplicadas, em uma perspectiva que acolha o poder transformador destas iniciativas. Por
um lado, elas abrem as portas que conduzem à realidade de uma vida livre e integrada,
o que é credível se pensarmos sobre os benefícios da utilização, geração e transmissão
crítica da informação compartilhada através das TIC. Por outro lado, também fecham
as portas que levam à reincidência.

Atualmente, se considerarmos o quadro geral, do qual fazem parte os problemas de


exclusão do referido grupo, a alternativa está entre formar uma sociedade de usuários
da tecnologia ou uma sociedade que incorpore uma nova forma de conceber, criar e usar
esse conhecimento; que se concentre na colaboração e nos processos participativos, na
qual, entre outras coisas, se anteponha, ao falar sobre acessibilidade, a sustentabilidade,
o uso significativo, a apropriação social, o empoderamento e a inovação social. Propor,
sem mais nada, o acesso às TIC, ignorando as necessárias conversações interdisciplinares
sobre a finalidade de suas utilizações, dificilmente leva à solução da brecha digital que
retroalimenta as lacunas sociais. Daí o fracasso e a ineficácia de muitas das iniciativas
estatais, incluindo as relacionadas com a questão penal, que mostram que a lacuna
social, como condicionante da brecha digital e vice-versa, responde a um modelo social
e político cheio de decisões tomadas a partir de uma abordagem errônea e desprovido
de uma participação multissetorial real e plural.

Apenas democratizando o conhecimento poderemos enfrentar esta situação,


permitindo-nos, assim, promover um desenvolvimento sustentável em educação,
integração, igualdade de oportunidades, segurança e justiça.

Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS

Agúndez Soriano, M. A. (2016). Alfabetización informacional para la inclusión social de


las mujeres reclusas de la Comunidad de Madrid: un estudio de caso. Tese de doutorado,
Universidade Complutense de Madrid. Recuperado de: <http://bit.ly/2pED7Tw>

Alabarce-Morales, B. (2016). La evolución de las prisiones en España y la reinserción


social de los/as internos/as. Desde una perspectiva de género. Recuperado de: <http://
bit.ly/2prdKt8>

Andrés Laso, A. (2016). Sistema penitenciario y nuevas tecnologías: recensión.


Recuperado de <http://bit.ly/2pEbTwu >

Bel, C. (2002). Exclusión social: origen y características. Formación específica en


Compensación Educativa e Intercultural para Agentes Educativos. Recuperado de:
<http://bit.ly/2pr4MfC>

59
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

Camacho, K. (2005). La brecha digital. Palabras en juego: enfoques multiculturales


sobre las sociedades de la información, 61-71. Recuperado de: <http://bit.ly/2pEqIzc>

Capurro, R. (2010). Epistemología y ciencia de la información. Acimed, 21(2), 248-265.


Recuperado de: <http://bit.ly/2rf7a6t>

De Michele, D. M. (2012). Políticas educativas de alfabetización e inclusión digital en la


Argentina: la experiencia de” educ. ar” sociedad del estado 2000-2010. Recuperado de:
<http://bit.ly/2prepL9>

Delarbre, R. T. (2001). Vivir en la Sociedad de la Información Orden global y


dimensiones locales en el universo digital. Revista Panamericana deficiencia,
tecnología e innovación, 1-2. Recuperado de <http://bit.ly/2qfzbfs>

Díaz, F. J., Banchoff Tzancoff, C. M., Harari, I., & Harari, V. (2008). Reduciendo la
brecha digital en sectores de bajos recursos. XIV Congreso Argentino de Ciencias de la
Computación. Recuperado de <http://bit.ly/2qb79QX>

Diez, E. R. (2007). Exclusión social: Indicadores para su estudio y aplicación para el


trabajo social. Revista del ministerio de trabajo y asuntos sociales, 7, 155. Recuperado de
<http://bit.ly/2q9ck5w>

Fres, N. F., & Serra, M. G. La inserción laboral de los y las expresos. Una mirada desde la
complejidad. Recuperado de <http://bit.ly/2q82oJR>

Harasim, L. (1993). Global networks: computers and international communication.


Londres: MIT Press.

Hernández, J. A. G. (2007). Alfabetización informacional: cuestiones básicas. Anuario


ThinkEPI, (1), 43-50. Recuperado de <http://bit.ly/2r6GB2k>

Larghi, S. B. (2008). Un piquete a la brecha digital. La apropiación de Internet por parte


de las organizaciones de trabajadores desocupados. Argumentos. Revista de crítica
social, (9), 1-33. Recuperado de <http://bit.ly/2q9dfmu>

Levis, D. (2005). Alfabetización digital: entre proyecto educativo y estrategia político-


comercial. El caso argentino. En Ponencia presentada en VII Congreso REDCOM
Argentina. Universidade Nacional de Rosario. Recuperado de <http://bit.ly/2qyUPwW>

Novo-Corti, I., & Barreiro-Gen, M. (2014). Barreras físicas y barreras virtuales: delito
y pena en la era digital. Nuevas políticas públicas para la reinserción. Revista de
Investigación del Departamento de Humanidades y Ciencias Sociales, 2(5), 85-104.
Recuperado de <http://bit.ly/2qbjWCQ>

Novo-Corti, I., Barreiro-Gen, M., & Varela-Candamio, L. (2012). Las TIC como
instrumento de inclusión social a través de la formación académica y profesional en
los centros penitenciarios: análisis de las percepciones de la población reclusa en la
región de Galicia, España. Inclusão Social, 5(1). Recuperado de <http://bit.ly/2qzfLUr>

60
INCLUSÃO DIGITAL _ GEORGINA A. GUERCIO

Prado, M., Salinas, J., & Pérez, A. (2005). Inclusión Social Digital. Una aproximación a su
clasificación. Recuperado de <http://bit.ly/2r0nmv9>

Raad, A. M. (2006). Exclusión digital: nuevas caras de viejos malestares. Revista Mad,


(14), 40-46. Recuperado de <http://bit.ly/2pKiKFB>

Sánchez Galvis, M. (2010). Implicaciones de Género en la Sociedad de la Información:


Un Análisis desde los Determinantes de Uso de Internet en Chile y México. Journal
of technology management & innovation, 5(1), 108-126. Recuperado de <http://bit.
ly/2qhT3gJ>

Sánchez, M. R. F., Berrocoso, J. V., & Domínguez, F. I. R. (2012). Una revisión sobre la
perspectiva social del e-learning: TIC, inclusión digital y cambio social. RedEs, (1), 48-
63. Recuperado de <http://bit.ly/2r0EPTX>

Travieso, J. L., & Ribera, J. P. (2008). La alfabetización digital como factor de inclusión
social: una mirada crítica. UOC Papers: revista sobre la sociedad del conocimiento, (6),
7. Recuperado de <http://bit.ly/2q9pUpy>

Vega-Almeida, R. L. (2008). Brecha digital: un problema multidimensional de la


sociedad emergente. Inclusao Social, 2(2). Recuperado de <http://bit.ly/2prf0wv>

GEORGINA A. GUERCIO
Bolsista de pesquisa e professora
universitária adjunta. Colaboradora no
Programa de Educação Universitária
em Contexto de Encarceramento da
Universidade Nacional de Cuyo.

61
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

POLÍTICAS PÚBLICAS TIC PARA


A GERAÇÃO DE CAPACIDADES
DIGITAIS EM JOVENS A
PARTIR DA PERSPECTIVA DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO

MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS


Engenheira de Telecomunicações, especialista em Direito de
Telecomunicações e candidata a Mestrado em Desenvolvimento
Humano, Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais
maureenmerchan@gmail.com
Colômbia

62
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

_TEMÁTICA

Inclusão digital

_RESUMO

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o papel


que as políticas públicas TIC têm promovendo a inclusão e a
apropriação digital para melhorar a vida dos jovens. Toma
como ponto de referência para a análise alguns conceitos
sobre políticas públicas e o foco no desenvolvimento
humano proposto pelo Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD). A partir disso, evidencia o
desenvolvimento de capacidades digitais para os jovens que
interagem diariamente com as Tecnologias da Informação e
Comunicação (TIC), até convertê-los em agentes de mudança
em suas comunidades.

Palavras chave: inclusão e apropriação digital; capacidades


digitais; políticas públicas

63
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

1_DEFINIÇÕES

1.1_POLÍTICAS PÚBLICAS

Definir as políticas públicas não é uma tarefa simples, variando de acordo com
o momento histórico, foco e propósitos. No entanto, é importante mencionar alguns
autores com objetivo de entender como as decisões governamentais impactam na vida
dos cidadãos, sendo essas um “curso de atividade ou
inatividade governamental em resposta a problemas
públicos” (Kraft, & Furlong, 2007, tradução nossa), a
partir das quais podem se resolver problemas sociais, O PARADIGMA DO
econômicos, participativos, políticos etc. Planificada e DESENVOLVIMENTO
implementada pelas instituições que fazem parte do HUMANO FOCADO
Estado, “a política pública se apresenta sob a forma NOS JOVENS
de um programa de ação, próprio de uma ou várias ESBOÇA A
autoridades públicas ou governamentais” (Thoenig, NECESSIDADE
1999, tradução nossa). DE GARANTIR
Seguindo essa ideia – e para a análise abordada
OPORTUNIDADES DE
neste artigo –, as políticas públicas são o roteiro que DESENVOLVIMENTO
as entidades do Estado desenvolvem, planificam, PARA A GERAÇÃO E
implementam e gerenciam para resolver problemas FORTALECIMENTO
de interesse público dos cidadãos, sendo um “processo DE SUAS
integrador de decisões, atividades, inatividades CAPACIDADES
acordos e instrumentos” (Gavilanes, 2009, tradução
nossa).

1.2_DESENVOLVIMENTO HUMANO

O Desenvolvimento Humano é um paradigma do desenvolvimento no qual as


pessoas têm a possibilidade de desenvolver seu máximo potencial e ter a vida que
desejam. A definição do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [PNUD]
(1990, tradução nossa) menciona que é

um processo no qual se ampliam as oportunidades do ser humano


[…] os três mais essenciais são desfrutar de uma vida longa e
saudável, adquirir conhecimentos, e ter acesso aos recursos
necessários para conseguir um nível de vida decente.

Contudo, o Desenvolvimento Humano expõe que existem outras oportunidades às


quais devemos dar acesso a todas as pessoas – e, em nosso caso, aos jovens. Essas
oportunidades são “a liberdade política, econômica e social […] ser criativo e produtivo”
(ibid., tradução nossa).

O objetivo de garantir que todos tenhamos as mesmas oportunidades é desenvolver


capacidades. Para o PNUD, o desenvolvimento das capacidades é “um processo
mediante o qual as pessoas, organizações e sociedades obtêm, fortalecem e mantêm

64
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

as competências necessárias para estabelecer e alcançar seus próprios objetivos de


desenvolvimento a longo prazo” (PNUD, 2008, tradução nossa). Para os jovens, portanto,
o desenvolvimento de capacidades é um processo determinante para a tomada de
decisões, por exemplo, em relação à vida que desejam levar, a participação e organização
democrática, o melhoramento de suas condições de vida, a geração de emprego, entre
outras questões.

Em resumo, o paradigma do desenvolvimento humano focado nos jovens esboça


a necessidade de garantir oportunidades de desenvolvimento para a geração e
fortalecimento de suas capacidades, com o objetivo de permitir que levem a vida que
desejam, tomando como ponto de referência o ser humano e não a expansão da riqueza
e os lucros.

1.3_BRECHA DIGITAL

A brecha digital terá diferentes definições de acordo com o espaço ou foco. Para
começar, devemos mencionar que ela é a diferença de acesso às TIC existente entre
pessoas, países, homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, existindo como
consequência da desigualdade socioeconômica e dos problemas de distribuição de renda,
investimento em infraestrutura e nível educacional da região (Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe [CEPAL], 2002)

A definição da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE)


corresponde à

divisão entre indivíduos, lugares, áreas econômicas e geográficas


com diferentes níveis socioeconômicos com relação tanto às
suas oportunidades de acesso às tecnologias da informação
e comunicação quanto ao uso da Internet para uma ampla
variedade de atividades. (OCDE, 2001:5, tradução nossa).

Ainda que este não seja o único foco que nos interessa incorporar à análise, é
importante citar outros conceitos relacionados com a sociedade da informação quando
nos referimos à “brecha que existe entre indivíduos e sociedades que têm os recursos
para participar na era da informação” (Chen, & Wellman, 2003, tradução nossa).

1.4_INCLUSÃO DIGITAL

Como dito anteriormente, a brecha digital é a diferença de acesso às Tecnologias


da Informação e Comunicação (TIC) existente entre as pessoas. Quando elas têm acesso
às TIC, iniciam um processo de inclusão digital, que é como “um conjunto de políticas
públicas relacionadas com a construção, administração, expansão, oferecimento de
conteúdos e desenvolvimento de capacidades locais nas redes digitais” (Robinson, 2005,
tradução nossa). Essa inclusão está relacionada com o crescimento pessoal quando
oferece às pessoas uma perspectiva mais crítica e empreendedora para o próprio
desenvolvimento e das comunidades nas quais habitam (Duarte, & Pires, 2011).

65
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

2_OS JOVENS E AS TIC, SITUAÇÃO ATUAL

2.1_A BRECHA DIGITAL EM NÚMEROS

Segundo a mais recente medição do desenvolvimento das TIC da União Internacional


das Telecomunicações (UIT, 2016), no mundo há 3 bilhões e 200 milhões de pessoas (43% da
população) conectadas à Internet, o que significa que mais da metade da população ainda
não tem acesso à rede. Tal situação varia de acordo com o país ou a região geográfica,
observando-se que a disparidade entre países ricos e pobres se reflete no crescimento de
suas infraestruturas tecnológicas – por conseguinte, a Coreia do Sul é o país com maior
número de conexões, enquanto que a República de Chade (na África central) é o país com
menor desenvolvimento tecnológico, ocupando a posição número 167.

A respeito das diferenças de acesso à Internet entre os países ricos e pobres, expõe-
se que o preço dos serviços de telecomunicações tem papel fundamental para reduzir a
brecha digital. Mesmo que os preços dos serviços de banda larga móveis tenham caído
entre 20 e 30% durante 2015, as economias em desenvolvimento apresentam problemas
dado que seus serviços móveis representam mais de 20% do Produto Nacional Bruto
(PNB) per capita. Na América a brecha digital apresenta-se em suas diferentes
economias, sendo EUA e Canadá os países com maior Índice de Desenvolvimento das
Telecomunicações (IDT) e Nicarágua e Cuba os dois últimos, respectivamente.

O preço que as pessoas devem pagar para ter acesso aos serviços de telecomunicações
é um fator determinante para reduzir a brecha digital. Segundo o ranking do IDT da
União Internacional de Telecomunicações, a Colômbia ocupa o posto 75 a nível mundial
e 14 na regional, melhorando sua posição em relação à classificação de 2010, mas sem
superar países como o Uruguai, que está na posição número 4.

Ao comparar a porcentagem de renda mensal requerido pelos serviços TIC na


Colômbia e Uruguai se confirma que, com preços menores, há menor a brecha digital.
Na Colômbia, por exemplo, para que se tenha acesso a serviços TIC fixo e móvel1 em
um domicílio deve-se investir 34,50% dos ganhos mensais, comparado com 24,85% no
Uruguai (Katz, 2015). Adicionalmente, os serviços móveis se encarecem por causa dos
impostos, afetando o acesso aos serviços TIC móveis para pessoas que se encontram na
base da pirâmide, incluindo os jovens. Segundo Katz (2015, tradução nossa), isso “serve
para ressaltar a importância que poderia ter para a universalização da banda larga a
eliminação de encargos fiscais”

Considerando, ainda, as cifras do “Mercado de Trabalho da Juventude” do Departamento


Nacional de Estatística da Colômbia (DANE, 2016)2, que afirma que durante 2016 a taxa de
desemprego dos jovens no país foi de 15,3%, pode-se inferir que os preços altos e a carga
fiscal dos planos de Internet móvel e fixa são fortes barreiras de acesso dos jovens às TIC.

1 Inclui: dois smartphones com plano de dados e voz mais econômico, TV paga e conexão banda
larga fixa.

2 O relatório traz informações com os indicadores e o comportamento do mercado de trabalho


dos jovens colombianos de 14 a 28 anos.

66
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

2.2_ACESSO DOS JOVENS À INTERNET

Dando continuidade aos dados expostos no parágrafo anterior, tomo como exemplo
os resultados da pesquisa “Latinobarómetro 2013”, da CEPAL (2013), que mostra que 34,6%
dos jovens da região acessam a Internet todos os dias, enquanto que 26,3% o fazem
ocasionalmente. Ou seja, aproximadamente 60% dos jovens entre 16 e 29 anos tinham
acesso à tecnologia, superando em alguma medida a brecha digital. Porém, a distribuição
de acesso às TIC dos jovens varia de acordo com a sua condição socioeconômica: “a
metade dos jovens de classe alta (48%) da região usa Internet todos os dias e 28% o fazem
de forma ocasional […], pouco mais de um quarto dos jovens de classe média (27%)
usa Internet todos os dias e 28% ocasionalmente” (Sunkel, 2015, tradução nossa). Os
números são altos em comparação com o acesso à Internet dos jovens dos setores mais
pobres, dado que só “13% usam Internet todos os dias e 18% o fazem ocasionalmente”
(ibid.).

3_POLÍTICAS PÚBLICAS TIC E JUVENTUDE

Cabe recordar que, a partir da década de noventa, com a aparição e posterior


massificação da Internet, os governos desenvolveram políticas públicas e programas
que permitiram reduzir a brecha digital. Isso porque a brecha e a exclusão digital são
heranças da desigualdade socioeconômica, da disparidade na distribuição de renda e
do baixo nível educacional que têm marcado a região latino-americana (CEPAL, 2002).
Por este motivo, não é de estranhar que tais situações afetem os jovens e limitem suas
possibilidades de desenvolvimento e incorporação na sociedade da informação.

As políticas públicas têm sido importantes esforços com objetivo de melhorar as


taxas de acesso das pessoas à Internet, supondo que, ao alcançar o acesso universal,
será possível melhorar os índices de crescimento econômico de seus respectivos países.
Tal ideia se sustenta no comportamento que tiveram as economias dos países que se
esforçaram em diminuir a brecha digital. Sobre isso, o Banco Mundial destaca que, em
2009, a multinacional Google gerou 19.000 empregos nos 20 países onde o principal
buscador da Internet está presente, assim como o buscador mais visitado na China
(Baidu.com) criou 6.000 empregos (Banco Mundial, 2010).

Por sua vez, na América Latina,


a redução da brecha digital apoiou
A RESPEITO DAS DIFERENÇAS a modernização de processos
DE ACESSO À INTERNET produtivos, industriais e comerciais:
ENTRE OS PAÍSES RICOS E a geração de um emprego no setor
POBRES, EXPÕE-SE QUE O TIC apoia a criação de 2,4 empregos
em outras atividades econômicas. O
PREÇO DOS SERVIÇOS DE
Chile demonstrou que a redução de
TELECOMUNICAÇÕES TEM
10 pontos na brecha digital ajudou a
PAPEL FUNDAMENTAL PARA
diminuir em 2% a taxa de desemprego
REDUZIR A BRECHA DIGITAL. (Katz, 2009).

67
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

É inegável que as TIC mudaram a maneira com que nos relacionamos, e seu uso
reflete “as iniquidades e injustiças das sociedades nas quais se encontram inseridas”.
Deve-se reconhecer que as TIC não são negativas ou positivas para a sociedade, mas
sim “tomam a forma e direção da sociedade na qual são introduzidas”, dando forma às
relações sociais (Gómez apud Kuttan, & Peters, 2003).

A oportunidade que os jovens têm para acessar a Internet não depende apenas da
desigualdade social, pobreza e nível educativo. O meio pelo qual eles iniciam o uso
das TIC impactará a forma como se apropriam da tecnologia e desenvolverão com ela
capacidades de participar da sociedade da informação. Por exemplo, a Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) afirma que “as
desigualdades, a estigmatização e as discriminações” são produtos das desigualdades
de gênero, etnia, idioma, deficiência e lugar de residência. Elas afetam os processos
de desenvolvimento e devem ser trabalhadas com cuidado nos entornos virtuais para
“não contribuir para acentuar as brechas, pelo contrário, devem apoiar sua eliminação”
(UNESCO, 2010, tradução nossa).

Em suma, a redução da (primeira) brecha digital nos jovens segue sendo uma tarefa
que exige esforços de muitos setores e agentes da sociedade. Começa pelos governos e as
políticas públicas que estes desenham para garantir o acesso universal às TICs, assim
como os operadores de telecomunicações (públicos e privados), empresários, escolas,
universidades e os próprios jovens. Também é necessário desenvolver políticas públicas
para a inclusão digital ou redução da segunda brecha, “que diz respeito às diferenças
existentes entre grupos segundo suas capacidades ou habilidades para utilizar as
tecnologias de forma eficaz […] onde se joga a possibilidade de que a juventude aproveite
as oportunidades que as novas tecnologias oferecem” (Sunkel, 2015, tradução nossa).

Incorporando à nossa análise a perspectiva do desenvolvimento humano – que dá


às pessoas (e, em nosso caso, aos jovens) a possibilidade de levar a vida que desejam,
com o fortalecimento de capacidades como “processo através do qual as pessoas,
organizações e sociedades obtêm, fortalecem e mantêm as competências necessárias
para estabelecer e alcançar seus próprios objetivos de desenvolvimento ao longo do
tempo” (PNUD, 2008, p. 4, tradução nossa) – cabe revisar como as políticas públicas TIC
realmente fortalecem as capacidades digitais dos jovens ou reduzem a segunda brecha
digital, não só adquirindo habilidades técnicas e operativas, mas também habilidades
informáticas que lhes ajudem a participar ativamente na construção de seu projeto
de vida. Nas políticas públicas, a inclusão digital deveria ser encarada com o foco da
Associação para o Progresso das Comunicações (APC) que, em sua carta sobre Direitos na
Internet, sustenta que a Internet

[...] pode ajudar a gerar sociedades mais igualitárias. Pode servir


para fortalecer os serviços de educação e saúde, o desenvolvimento
econômico local, a participação pública, o acesso à informação, a
boa governança e a erradicação da pobreza. [...] As organizações
da sociedade civil (OSC), os governos e os entes reguladores
deveriam ser conscientes do potencial da internet para reforçar
as desigualdades existentes. (APC, 2006).

68
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

As políticas sobre inclusão digital deveriam gerar capacidades nos jovens para
lhes ajudar a superar situações de vulnerabilidade, exclusão, pobreza, bullying etc.,
além de construir o caminho para que eles entrem na sociedade da informação e
conhecimento. Em consonância a isso, a UNESCO, em seu relatório “Rumo às Sociedades
do Conhecimento” (Towards Knowledge Societies), menciona que a redução da brecha
digital não será suficiente para diminuir as brechas do conhecimento, sendo um
assunto mais complexo que o desenvolvimento
da infraestrutura tecnológica (UNESCO, 2005)3.
Como mecanismo para facilitar a redução da
AS POLÍTICAS SOBRE
pobreza, o ingresso na sociedade da informação
INCLUSÃO DIGITAL
e, sobretudo, a mobilidade socioeconômica
daqueles que aprendem a fazer um uso crítico
DEVERIAM GERAR
das TICs, as discussões sobre a redução da CAPACIDADES NOS
brecha digital devem ser mais profundas JOVENS PARA LHES
a respeito “dos usos e seus impactos, […] AJUDAR A SUPERAR
contar com a alfabetização digital básica para SITUAÇÕES DE
conseguir melhores processos de aprendizagem, VULNERABILIDADE,
[…] ter mais ferramentas no âmbito do trabalho EXCLUSÃO, POBREZA,
e também exercer nossa cidadania” (UNESCO, BULLYING ETC.
2013, tradução nossa).

4_CONCLUSÕES

A brecha, inclusão e apropriação digital são etapas consecutivas e diferenciadas do


processo que busca introduzir as pessoas na sociedade da informação. Esses processos
são aplicados na sociedade através das políticas públicas, como forma de resolver
problemas como a exclusão, neste caso digital.

Os jovens, como cidadãos, devem desfrutar do direito de entrar na sociedade da


informação e conhecimento, e as políticas públicas devem garantir o acesso daqueles
em condições de vulnerabilidade e pobreza com relação às TIC, reduzindo os preços
dos serviços de Internet e os dispositivos de navegação, reduzindo os impostos
progressivamente de maneira geral ou setorizada.

Posteriormente, as políticas TIC devem garantir a geração de capacidades por meio


da alfabetização digital. Para que os jovens superem os problemas sociais de suas
comunidades, não é suficiente entregar dispositivos móveis com conexão à Internet;
isso por si só não resolverá os problemas de desigualdade, exclusão, analfabetismo,
desemprego, participação política, entre outros, que os jovens enfrentam diariamente.
Só a geração de capacidades digitais na etapa da inclusão digital poderia transformar os
dispositivos em ferramentas para começar a mudar as situações mencionadas.

3 O texto original encontra-se em inglês “Closing the digital divide will not suffice to close
the knowledge divide, for access to useful, relevant knowledge is more than simply a matter of
infrastructure – it depends on training, cognitive skills and regulatory frameworks geared towards
access to contents”.

69
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

A apropriação digital será a etapa em que os jovens deverão fazer o uso crítico
das TIC, desenvolvendo capacidades reflexivas sobre seu entorno, as necessidades
sociais de suas comunidades, seu papel na democracia participativa, a organização
e classificação da informação para a geração de conhecimento, convertendo-se em
agentes de mudança. O principal objetivo das políticas TIC para os jovens é proporcionar
a formação de agentes de mudança.

Finalmente, em cada uma das etapas mencionadas e para a formulação e


desenvolvimento das políticas públicas para a TIC para os jovens, é imprescindível a
participação ativa deles. Seria contraditório formular uma política focada na juventude
sem conhecer em primeira mão suas necessidades, problemas e perspectivas a respeito
do uso da tecnologia. Para isso é urgente um diagnóstico sobre as políticas públicas
TIC existentes, quais problemáticas juvenis atendem, que instituições do Estado estão
encarregadas delas, os avanços alcançados, a participação civil em seu desenvolvimento
e implementação etc. Da mesma maneira, não deixa de ser importante e necessário que
os jovens comecem a organizar-se civilmente para participar ativamente nos processos
democráticos, com perspectivas que respeitem a diversidade cultural, social, econômica,
política, de gênero, por idades e níveis educacionais.

Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS

Associação para o Progresso das Comunicações (Asociación para el Progreso de las


Comunicaciones) (2006). Carta de APC sobre Derechos en Internet. Recuperado de
<http://bit.ly/28S2Cbu>

Banco Mundial (2010). Building Broadband: Strategies and Policies for the Developing
World. Washington D.C. Recuperado de <http://bit.ly/1wQP3lx>

Chen, W., & Wellman, B. (2003). Charting and bridging digital divides: comparing
socio-economic, gender, life stage, and rural-urban Internet access and use in eight
countries. Toronto: Universidade de Toronto. Recuperado de <http://bit.ly/2qhls7T>

Comissão Econômica para a América e o Caribe (2002). Los Caminos Hacia una Sociedad
de la Información en América Latina y el Caribe. Libros de la CEPAL, 72. Punta Cana.
Recuperado de <http://bit.ly/2rfBUnL>

Comissão Econômica para a América e o Caribe (2005). Oportunidades digitales,


equidad y pobreza en América Latina: ¿Qué podemos aprender de la evidencia
empírica? Estudios Estadísticos y Prospectivos. Santiago de Chile. Recuperado de
<http://bit.ly/2r6zZVv>

70
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

Comissão Econômica para a América e o Caribe (2013). Latinobarómetro Informe 2013.


Santiago de Chile. Recuperado de <http://bit.ly/1bxZdfc>

Departamento Administrativo Nacional de Estatística (Departamento Administrativo


Nacional de Estadística) (2016). Mercado Laboral de la Juventude. Governo da Colômbia.
Recuperado de <http://dane.gov.co/index.php/estadisticas-por-tema/178-english/
sociales/cultura/2922-mercado-laboral-de-la-juventud>

Duarte, F., & Pires, H. F. (2011). Inclusión Digital, Tres Conceptos Clave: Conectividad,
Accesibilidad, Comunicabilidad. Revista Electrónica de Recursos de Internet Sobre
Geografía y Ciencias Sociales. Universidade de Barcelona. Recuperado de <http://bit.
ly/1uubNXh>

Gavilanes, R. V. (2009). Hacia una nueva definición política del concepto de “política
pública”. Revista Desafíos. Bogotá: Universidade do Rosario. Recuperado de <http://bit.
ly/2pzrGSb>

Gómez, R. apud Kuttan, A., & Peters, L. (2003). From digital divide to digital opportunity.
Lanham, Maryland: Scarecrow Press.

Gómez, R., & Martínez, J. (2001). Internet... ¿Para qué? In Martínez, J. Internet en
América Central: Análisis de entornos nacionales. San José: IDRC. Recuperado de
<http://bit.ly/2pMBcwa>

Katz, R. (2009). El Papel de las TIC en el Desarrollo. Propuesta de América Latina a los
Retos Económicos para la Fundación Telefónica. Madrid: Editorial Ariel. Recuperado de
<http://bit.ly/2rfQOun>

Katz, R. (2015). Iniciativas Para el Cierre de la Brecha Digital en América Latina. Telecom
Advisory Services LLC para ASIET. Recuperado de <http://bit.ly/2qGrMay>

Kraft, M. E., & Furlong, S. R. (2007). Public Policy: Politics, analysis, and alternatives.
2nd edition. Washington D.C.: CQ Press. p. 5.

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (2013). Building
Inclusive Knowledge Societies. A review of UNESCO’s action in implementing the WSIS
outcomes. Paris. Recuperado de <http://bit.ly/2qhw1YK>

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (2005). Towards
Knowledge Societies. Paris. Recuperado de <http://bit.ly/1qKCpCs>

Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (2001). Understanding


the Digital Divide. Paris: OECD Publications. Recuperado de <http://bit.ly/2qGJAT9>

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (2008). Desarrollo de


Capacidades, nota de práctica. Nueva York. Recuperado de <http://bit.ly/1PV36S3>

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (1990). Desarrollo Humano


Informe. Bogotá: Tercer Mundo Editores. Recuperado de <http://bit.ly/1GfuSU0>

71
INCLUSÃO DIGITAL _ MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS

Robinson, S. S. (2005). Reflexiones sobre la Inclusión Digital. Revista Nueva Sociedad,


195. Buenos Aires: Fundación Foro Nueva Sociedad. Recuperado de <http://bit.
ly/2rffu57>

Sunkel, G. (2015). El acceso de los jóvenes a la cultura en la era digital en América


Latina. In Trucco, D.; & Ullmann, H. (eds.) Juventud: realidades y retos para un
desarrollo con igualdad (pp. 171-206). Livros da CEPAL, 137. Santiago de Chile: Comissão
Econômica para a América e o Caribe. Recuperado de <http://bit.ly/1LNfdZA>

Thoenig, J. C. (1999). El análisis de las Políticas Públicas. Revista Universitas, 93. p. 75.
Recuperado de <http://bit.ly/2rfYpci>

União Internacional de Telecomunicações (2016). Medición del Desarrollo de las TIC:


Nuevas tendencias, nuevos desafíos. Actualidades de la UIT, 1. Hiroshima. Recuperado
de <http://bit.ly/2rg94Us>

MAUREEN MERCHÁN DE LAS SALAS


Engenheira de Telecomunicações,
especialista em Direito de Telecomunicações
e candidata a Mestrado em Desenvolvimento
Humano, Faculdade Latino-americana de
Ciências Sociais

72
CIBER-
SEGURANÇA
CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

NUANCES DA PRIVACIDADE NA
ERA DIGITAL

ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU


Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV)
arthurlealabreu@hotmail.com
Brasil

74
CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

_TEMÁTICA

Cibersegurança
Direitos Digitais
Problemas Emergentes da Internet

_RESUMO

Na atual era digital, é necessária uma releitura dos direitos


fundamentais, contextualizando-os no ambiente virtual.
Neste artigo, analisa-se o direito à privacidade, previsto na
Constituição Federal brasileira, e que revela outras nuances
no ambiente digital. Apesar da previsão do Código Civil que
impede limitações voluntárias aos direitos da personalidade,
demonstra-se uma forma possível de se exercer o direito à
privacidade, por meio do compartilhamento de aspectos da
vida privada em redes sociais. O estudo dedica-se, ainda, às
particularidades das pessoas célebres, que podem usar as
redes sociais para retomar o controle sobre a narrativa de sua
própria história.

Palavras-chave: Internet; privacidade; redes sociais

75
CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

Atualmente, vive-se em uma era digital, calcada na Internet, que instrumentaliza


a conexão instantânea entre pessoas e dados, estejam eles fisicamente próximos
ou distantes. Com a Internet, verifica-se a intensificação do fluxo de informações,
permanentemente, o que redefiniu a forma como a sociedade se comunica, seja em
seus núcleos mais restritos, seja com o público mais amplo possível.

Por consequência, a revolução provocada pela Internet acaba por tocar em direitos
fundamentais dos seres humanos, como a honra, a imagem e, especialmente, a
privacidade. Afinal, como afirma Stefano Rodotà (2013, p. 11), “[...] hoje, o simples
fato de ‘estar em sociedade’ não pode mais ser separado de um ininterrupto fluxo de
informações que da pessoa se difundem em uma multiplicidade de direções”, o que
permite aos receptores das informações construírem suas “verdades” acerca do objeto
emissor de dados.

Diante disso, é preciso repensar os direitos fundamentais, contextualizados à era


digital, a qual alterou sensivelmente as relações sociais, que passaram a contar com o
elemento Internet, com consequências nos ambientes físico e virtual.

Em nosso ordenamento jurídico, a Constituição Federal da República do Brasil (1988)


contém, em seu rol de direitos fundamentais, a seguinte previsão, no artigo 5o, inciso X: “[...]
são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Apesar de não haver menção expressa à palavra “privacidade”, o texto garantiu


proteção constitucional à intimidade e à vida privada das pessoas. Segundo Marcel
Leonardi (2012, p. 83), essa opção legislativa:

[...] tem como finalidade impedir que divisões conceituais


formuladas pela doutrina pudessem fazer escapar do âmbito
da proteção constitucional “fração ou terreno demarcado da
vida das pessoas”, possibilitando assim a mais ampla tutela,
independentemente da distinção entre os conceitos de intimidade
e vida privada.

Com isso, reafirma-se a proteção constitucional de todos os aspectos da privacidade


do ser humano, tanto no tocante àquilo que traz de mais íntimo em si quanto naquilo
que mantém em sua vida privada, compartilhando com seus diversos núcleos sociais,
dos mais restritos aos mais amplos. Diante disso, seguindo na esteira do pensamento de
José Afonso da Silva (2005, p. 206), “[...] preferimos usar a expressão direito à privacidade,
num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera
íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou”.

Além da Constituição Federal, o legislador ordinário também se dedicou à proteção


da privacidade, consagrando-a como direito da personalidade, no Código Civil. Se o
artigo 21 reafirma a inviolabilidade da vida privada, como assegurado pela Constituição,
o artigo 11 prevê que, “[...] com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da
personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer
limitação voluntária” (Lei no 10.406, 2002).

76
CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

A intenção da norma é proteger o próprio titular do direito, impedindo-o de renunciar


a esses direitos fundamentais, aceitar restrições inadmissíveis ou de, voluntariamente,
limitar seus direitos de personalidade. Para Schreiber (2013, p. 27):

Exagera, contudo, o art. 11 quando veda toda e qualquer “limitação


voluntária” ao exercício dos direitos da personalidade. A vedação
lançaria na ilicitude não só os reality shows, mas também atos
bem mais prosaicos como [...] expor informações pessoais em
redes sociais, como o Twitter e o Orkut.

Em uma tentativa de esclarecer a norma em comento, o Enunciado no 4 da I


Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal (2002), dispõe que “[...] o
exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não
seja permanente nem geral”. Sob essa perspectiva, o próprio titular pode restringir o
exercício de seu direito da personalidade, de forma delimitada e não permanente, em
seu próprio interesse. Assim, seria aceitável limitar sua privacidade, por exemplo, no
uso de redes sociais.

De fato, a exposição em redes sociais, como


o Facebook e o Instagram, mais populares
atualmente, pode parecer, à primeira vista,
o oposto do que se visa proteger por meio
É PRECISO REPENSAR
da garantia constitucional assegurada à
privacidade. Todavia, devemos compreender
OS DIREITOS
que uma das nuances do direito à privacidade FUNDAMENTAIS,
na era digital é permitir que a pessoa tenha CONTEXTUALIZADOS
o controle sobre a porção de sua vida privada À ERA DIGITAL, A
que compartilha na Internet. QUAL ALTEROU
SENSIVELMENTE AS
Por um lado, é preciso reconhecer uma
RELAÇÕES SOCIAIS
tendência, retratada nas seguintes palavras
do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2011,
p. 41), falecido em 2017:

Nos nossos dias, não é tanto a possibilidade de traição ou violação


da privacidade que nos assusta, mas seu oposto: fechar todas as
saídas do mundo privado, fazer dele uma prisão [...]. “Ser uma
celebridade” (quer dizer, estar constantemente exposto aos olhos
do público, sem ter necessidade nem direito ao sigilo privado) é
hoje o modelo de sucesso mais difundido e mais popular.

Ocorre que, mesmo diante da exposição nas redes virtuais, não se pode cogitar
uma renúncia geral da privacidade. É preciso ter sempre em mente que se trata de
uma disposição voluntária do indivíduo, que escolhe aspectos da sua vida particular
para compartilhar – em pequena escala, com seus amigos mais próximos, ou em larga
escala, com um público irrestrito. Contudo, a pessoa deve ter o controle sobre o que
compartilha e com quem compartilha.

77
CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

Na sociedade atual, com ferramentas como o Instagram, qualquer pessoa pode ser alçada
à condição de “celebridade”, no sentido já mencionado por Bauman. Todavia, ressalva-se
que todas as pessoas, até as celebridades – erroneamente denominadas “pessoas públicas”,
como salienta Anderson Schreiber (2013, p. 44) –, têm direito à privacidade:

Se a profissão ou o sucesso de uma pessoa a expõe ao interesse do


público, o direito não deve reduzir, mas assegurar, com redobrada
atenção, a tutela da sua privacidade. [...] o fato de certa pessoa ser
célebre – equivocadamente chamada de “pessoa pública” – não
pode servir de argumento a legitimar invasões à sua privacidade,
aí abrangidos não apenas o espaço doméstico de desenvolvimento
da sua intimidade, mas também os mais variados aspectos do seu
cotidiano e de sua vida privada.

No caso das pessoas célebres, as redes sociais tornaram-se um instrumento de


comunicação direto com seu público – aqueles que acompanham sua trajetória. Com
isso, revela-se a possibilidade de as celebridades retomarem o controle sobre a narrativa
de sua história. Afinal, não se pode negar:

[...] a crescente voracidade de fotógrafos e cinegrafistas –


reflexo, obviamente, da ânsia do próprio público – por imagens
que exponham a intimidade de pessoas célebres [...] Em todo o
mundo, revistas especializadas revelam bem mais que as “caras”
de pessoas famosas, alimentando o progressivo interesse de
leitores pelo cotidiano das celebridades. (Schereiber, 2013, p. 130).

Diante do receio de invasões à sua privacidade, nada mais justo que a própria pessoa
célebre tomar a iniciativa de compartilhar, nas redes sociais ligadas à Internet, os
aspectos de sua vida privada que selecionar. Desse modo, assegura-se, pelo menos, o
prévio controle acerca do conteúdo que será publicado, assim como da forma pela qual
será recepcionado pelo público.

Um exemplo notório e recente foi o anúncio feito pela cantora norte-americana


Beyoncé Knowles acerca de sua segunda gravidez, de gêmeos. A artista optou por
revelar a gestação, com exclusividade, por meio de sua conta no Instagram. A imagem1,
publicada em 1o de fevereiro de 2017, tornou-se a foto com mais curtidas em toda a
história da plataforma, ultrapassando a marca de 10,9 milhões de likes (curtidas).

Essas estatísticas corroboram a lição de Anderson Schreiber acerca do interesse do


público pela vida privada de celebridades, como cantores, atores, políticos, atletas e
outras posições de destaque. Nos últimos anos, várias dessas pessoas famosas optaram
por abrir mão de parcela de sua privacidade e divulgar fatores de suas vidas privadas,
a fim de evitar perseguições por agentes da imprensa, obstinados em extrair tais
informações. Já que sua vida privada será levada aos olhos do público, que seja, pelo
menos, moldada pelo titular do direito.

1 Disponível em: <https://www.instagram.com/p/BP-rXUGBPJa/?taken-by=beyonce>. Acesso em:


1o maio 2017.

78
CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

Conclui-se, portanto, que a utilização das redes


sociais, com a exposição de diversos aspectos da
UMA DAS NUANCES vida privada de um indivíduo, não representa uma
DO DIREITO À renúncia ao seu direito à privacidade. Pelo contrário,
PRIVACIDADE NA devemos compreender tais condutas como o efetivo
exercício do direito, garantindo a privacidade
ERA DIGITAL É
da pessoa, que passa a controlar sua narrativa,
PERMITIR QUE A
compartilhando determinados ângulos de sua vida
PESSOA TENHA O
que desejar e, em contrapartida, preservando dos
CONTROLE SOBRE olhos do público outros aspectos de sua intimidade.
A PORÇÃO DE SUA
VIDA PRIVADA QUE Como afirma Marcel Leonardi (2012, p. 29), “[...]
COMPARTILHA NA estamos vivendo um momento de transição. A quase
INTERNET totalidade dos operadores do Direito ainda não
está suficientemente familiarizada com a Internet
[...]”. Assim, ainda há muito que se avançar na
compreensão dos direitos fundamentais clássicos,
quando insertos no ambiente virtual.

Aliada à perspectiva jurídica, é necessária uma abordagem sociocultural, de modo


que as pessoas compreendam que “[...] quem possui direitos deve também possuir
deveres. Tal ideia se baseia na reciprocidade, como é o caso do indivíduo que tem a
sua intimidade preservada, nas redes sociais, mas igualmente respeita a intimidade
de outrem no mesmo universo virtual” (Duque, Pedra, 2013, p. 68). Dessa maneira, o
ambiente virtual poderá se tornar mais civilizado e a Internet será um recurso ainda
mais benéfico, possibilitando o compartilhamento e o acesso a informações de forma
mais salutar.

_REFERÊNCIAS

Bauman, Z. (2011). 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar.

Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Diário Oficial da República


Federativa do Brasil, Brasília, DF. Recuperado de <https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>

Conselho da Justiça Federal (2002). Enunciados aprovados na I Jornada de Direito Civil.


Recuperado de <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>

Duque, B. L., & Pedra, A. S. (2013). A harmonização entre os deveres fundamentais de


solidariedade e o espaço da liberdade dos particulares no exercício da autonomia
privada. In: Duque, B. L. et al. (Orgs.) (2013). Constituição de 1988: 25 anos de valores e
transições. Vitória: Cognorama.

79
CIBERSEGURANÇA _ ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU

Lei no 10.406 (2002, 10 de janeiro). Institui o Código Civil. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília, DF. Recuperado de <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/L10406.htm>

Leonardi, M. (2012). Tutela e privacidade na Internet. São Paulo: Saraiva.

Rodota, S. (2013). O direito à verdade. Civilistica.com, 3. Recuperado de <http://


civilistica.com/o-direito-a-verdade>

Schreiber, A. (2013). Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas.

Silva, J. A. da. (2005). Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo:
Malheiros.

ARTHUR EMANUEL LEAL ABREU


Pós-graduando em Linguagem, Tecnologia
e Ensino, pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), e em Compliance,
Lei Anticorrupção e Controle da
Administração Pública pela Faculdade
de Direito de Vitória (FDV). Bacharel em
Direito pela FDV. Membro do Laboratório
de Ensino e Aprendizagem da FDV (LEAD-
FDV). Tem interesse em Direito Civil,
privacidade e Internet. Foi monitor das
disciplinas “Direito das Sucessões” (2015),
“Constitucionalização do Direito de
Família” (2016) e “Direito Ambiental” (2017)
na FDV. Membro da equipe representante
do Brasil no National Geographic World
Championship, realizado na Cidade do
México, México, em 2009.

80
CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

PESSOA ONLINE, PRIVACIDADE


E PROTEÇÃO DE DADOS FRENTE
AOS DIREITOS HUMANOS DE
QUARTA GERAÇÃO: UM DESAFIO
PARA O SISTEMA NACIONAL DE
TRANSPARÊNCIA NO MÉXICO

NATALIA MENDOZA SERVÍN


Assessora jurídica em matéria de proteção de dados pessoais na
“Coordenação de Transparência e Arquivo Geral” e colaboradora da
associação civil Artigo 12.
natmese@gmail.com
México

81
CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

_TEMÁTICA

Cibersegurança
Direitos digitais
Problemas emergentes da internet

_RESUMO

O Sistema Nacional de Transparência no México é responsável


por promover, entre outras, políticas sobre o direito à privacidade
e proteção de dados pessoais no país. No entanto, faz falta
que essas mesmas políticas contemplem os desafios que as
tecnologias da informação colocam na mesa a respeito da
ameaça que podem representar para as informações pessoais.

Palavras chave: proteção de dados pessoais; privacidade;


tecnologias da informação

82
CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

“A liberdade se refere basicamente a decisões privadas que não afetam


a ninguém... Por esse motivo, vemos no âmbito privado o espaço mais
característico da liberdade. Definir uma atividade ou uma decisão como
uma questão privada significa dizer que é livre no sentido moderno da
palavra: não relacionado a qualquer tipo de controle público”
Fernando Escalante Gonzalbo (tradução nossa)

1_A REFORMA CONSTITUCIONAL E O SISTEMA NACIONAL


DE TRANSPARÊNCIA

Em 7 de fevereiro de 2014, foi publicado no Diário Oficial da Federação1 reforma


constitucional em matéria de transparência, idealizada como resposta à grave
problemática da corrupção no país. Rompeu-se, então, com a política abrupta do
passado, que estava muito distante dos mais altos padrões de transparência conhecidos
a nível global e que trouxe consigo a falta de credibilidade da cidadania para o Estado.

Com a reforma, muitos benefícios chegaram ao Estado mexicano. Podemos


mencionar alguns exemplos, como a total autonomia dada ao Instituto Nacional de
Transparência, Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais (INAI), que também
está facultado de mover ações de inconstitucionalidade perante a Suprema Corte de
Justiça da Nação, entre outras novas atribuições. Também foram criadas novas leis
sobre transparência e proteção de dados (Romero, 2014).

Essa e outras ações constituem o Sistema Nacional de Transparência Mexicana.


Embora isso implique um desafio abismal e extremamente complexo para as autoridades
do Estado, também é correto que seu projeto e implementação não representa
desvantagens nem objeções. Pelo contrário, foi complementado e perfeitamente
amalgamado com outros projetos nacionais, como o “México Conectado” (Secretaria de
Comunicações e Transportes, 2017) e principalmente o “Dados Abertos” (Dados Abertos do
Governo da República, 2017), que constitui o primeiro passo para um governo aberto e de
transparência proativa e participativa.

Não obstante, é importante indicar que um dos possíveis inconvenientes, ou


melhor, um dos maiores desafios do Sistema Nacional de Transparência, é garantir a
privacidade e proteção de dados pessoais diante da grande ameaça que poderiam chegar
a representar as TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) na matéria.

Mas por que se fala de privacidade e proteção de dados pessoais se o sistema é


sobre transparência? Acontece que o Sistema Nacional de Transparência também deve
ser entendido como Sistema Nacional de Transparência, Acesso à Informação Pública e
Proteção de Dados Pessoais2.

1 Decreto pelo qual se reformam e adicionam diversas disposições da Constituição Política dos
Estados Unidos Mexicanos em matéria de transparência (2014).

2 Além disso, seria necessário adicionar o assunto dos arquivos públicos, uma vez que o
bom funcionamento desses permite tornar a transparência e o direito de acesso à informação
uma realidade. Não obstante, o Estado mexicano possui um Sistema Nacional de Arquivos,
supervisionado pelo Arquivo Geral da Nação, que se vincula a todo momento com o INAI.

83
CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

É verdade que a reforma constitucional em questão deu particular ênfase à


transparência e ao direito de acesso à informação. No entanto, o Sistema Nacional de
Transparência também inclui todas as questões relacionadas a esses pontos, incluindo
a privacidade e proteção de dados pessoais,3 razão pela qual este texto aborda os desafios
que o projeto terá sobre privacidade frente às TIC.

2_DIREITO À PRIVACIDADE, À PROTEÇÃO DE DADOS


PESSOAIS E AS TIC

Uma vez que este artigo pretende identificar os desafios que existem entre o direito
à privacidade e a proteção dos dados frente às TIC, não entraremos em detalhes na
discussão entre a ponderação deste último ponto e o direito à informação. Entretanto,
é importante reconhecer que as TIC constituem fatos de substancial alcance em
muitas áreas da vida humana, incluindo aqueles relacionados ao direito de acesso
à informação, prestação de contas e transparência, de tal forma que esses têm sido
considerados direitos humanos de quarta geração (García Mexía, 2014). Contudo, seu uso
arbitrário e a regulação normativa inadequada também implicam uma série de efeitos
sérios sobre outros direitos que são objeto desta análise.

O chamado big data4, a computação em nuvem5, a Internet das Coisas6, os dados


abertos7 e as redes sociais8, entre outros, devem ser minuciosamente regulados pelas
autoridades mexicanas para que seu uso não viole a privacidade da pessoa online em
relação à sua abertura, especialmente porque o comércio de dados pessoais atualmente

3 Para mais informações, consulte: <http://www.snt.org.mx/>

4 De acordo com o Mckinsey Global Institute (2011 apud Joyanes, 2013), o big data é o conjunto de
dados cujo tamanho está além das capacidades das ferramentas típicas de software de banco de
dados para capturar, armazenar, gerenciar e analisar.

5 De acordo com o artigo 3º, seção VI, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em Posse de
Sujeitos Obrigados (2017), a computação em nuvem é o modelo de prestação externa de serviços
de computação sob demanda, que envolve a provisão de infraestrutura, plataforma ou programa
informático, distribuídos de forma flexível, através de procedimentos virtuais, em recursos
compartilhados de forma dinâmica.

6 Cuauhtémoc Vélez Martínez (2015), do Instituto de Engenharia da Universidade Nacional


Autônoma do México, considera que a Internet das Coisas é aquela que pretende que todos os
artefatos, através do uso de sensores e rede de dados, possam se conectar, a qualquer momento,
com outro dispositivo ou pessoa, tudo para manter um monitoramento e controle total dos
processos que cada um desses artefatos executa.

7 De acordo com o artigo 3º, seção VI, do Decreto pelo qual se expede a Lei Geral sobre
Transparência e Acesso à Informação Pública (2015), os dados abertos são dados digitais de
caráter público que são acessíveis online e que podem ser usados, reutilizados e redistribuídos por
qualquer interessado.

8 Santamaría González (2008) ressalta que uma rede social é uma estrutura social formada por
nós – geralmente indivíduos ou organizações – ligados por um ou mais tipos de interdependência,
como valores, pontos de vista, ideias, troca financeira, amizade, parentesco, conflito, comércio,
entre outros.

84
CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

constitui um importante elemento de mercado para


os setores dedicados a vários ramos de negociação,
RESOLUÇÃO inclusive para as próprias autoridades do Estado9.
DE CASOS
Como ponto de partida para o Sistema Nacional
DERIVADOS DAS
de Transparência no assunto, a Lei Federal de
TIC, É POSSÍVEL
Proteção de Dados Pessoais em Posse de Particulares
QUE AS LEIS NÃO
(2010), a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em
CONTENHAM Posse de Sujeitos Obrigados10 (2017), e as leis estaduais
RESPOSTAS não fornecem mecanismos claros de proteção da
CONCRETAS privacidade e dados pessoais. Em muitas situações,
parece que essas leis vem sendo ultrapassadas pelas
TIC. Inclusive o único instrumento dessa natureza
que foi expressamente contemplado na norma é a computação na nuvem11, deixando
no limbo as ferramentas que as TIC oferecem e que podem ser altamente prejudiciais
para a privacidade das pessoas já que não existe uma regulamentação legal adequada.

No momento, a legislação mexicana sobre proteção de dados pessoais oferece o


necessário para que alguém possa se defender contra intromissões à sua privacidade
derivadas de ações offline e até mesmo algumas online. Porém, para a resolução de
casos derivados das TIC, é possível que as leis não contenham respostas concretas e,
portanto, sejam fundamentais as argumentações e interpretações dos titulares de
órgãos garantidores a respeito das leis de proteção de dados. Estas deverão dar norte
aos problemas que as TIC acarretam, desde que não introduzam figuras jurídicas que
estejam à altura dos avanços tecnológicos e ao impacto que causam à privacidade.

3_CONCLUSÕES E PROPOSTAS PARA A PROTEÇÃO DE


DADOS E PRIVACIDADE NO SISTEMA NACIONAL DE
TRANSPARÊNCIA

Como pôde ser visto, as TIC constituem um pilar fundamental para se alcançar
um estado ótimo de transparência, prestação de contas, acesso à informação
e desenvolvimento integral dos indivíduos. Ou seja, beneficiam e fortalecem
significativamente o Sistema Nacional de Transparência nos assuntos anteriormente
mencionados. Não obstante, o desafio da proteção da privacidade e dos dados pessoais
no México ainda tem questões pendentes sobre as TIC, uma vez que os ordenamentos
mais altos nessa matéria apenas contemplam mecanismos jurídicos que permitem
uma verdadeira proteção do direito à privacidade e proteção de dados online.

9 O exemplo mais conhecido é o caso de Edward Snowden, que acusou os Estados Unidos de
violarem a privacidade e as liberdades da população mundial na Internet. No entanto, isso não
deve ser um pretexto para o bloqueio das TIC, como no caso da Stop Online Piracy Act (Lei de
Combate à Pirataria Online ou S.O.P.A, na sigla em inglês).

10 Nota do revisor: De acordo com o art. 1º da lei, “sujeitos obrigados” são “no âmbito federal,
estadual e municipal, qualquer autoridade, entidade, órgão ou organismos dos Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, órgãos autônomos, partidos políticos, de fidúcia e fundos públicos”.

11 Art. 64 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em Posse de Sujeitos Obrigados (2017).

85
CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

Portanto, considera-se que a resposta à classe de problemas que poderiam vir a se


apresentar, ou mesmo que já existem, pode ser em grande medida uma boa engenharia
normativa, uma boa qualidade argumentativa e de interpretação por parte dos juízes
mexicanos, assim como um sistema eficaz de sanções.

Neste contexto, propõe-se que o Sistema Nacional de Transparência, na sua


modalidade de proteção de privacidade e dados pessoais, contemple em sua agenda
normativa os seguintes assuntos:

3.1_IDENTIDADE DIGITAL

A identidade é definida pela Real Academia Espanhola como o conjunto de traços


próprios de um indivíduo ou de uma coletividade que os caracterize frente aos demais.

Toda pessoa tem direito a uma identidade, que pode ser composta de nome,
sobrenome ou nacionalidade, entre outros dados. Todos essas informações são únicas
do indivíduo, tornando-o credor de certos tipos de direitos e obrigações.

Na vida offline, a todo momento devemos provar nossa identidade em situações


cotidianas, como ao entrar nas instalações de trabalho, ao cobrar cheques ou mesmo ao
fazer queixas que afetem a pessoa diretamente.

Nesse mesmo sentido, em uma época em que é quase impossível que os seres
humanos não interajam com as TIC é fundamental delimitar a identidade digital. Isso
significa determinar que informações tornam um indivíduo único quando online, com
fins de garantir-lhe direitos e também obrigações frente ao restante dos usuários.

A proposta é que o legislador mexicano defina a identidade digital, estabelecendo


características e elementos sujeitos à proteção que permitem perfilar o que deve ser
resguardado de uma pessoa por fazer parte de sua esfera pessoal.

3.2_DIREITO AO ESQUECIMENTO

Assim como na Europa, o México apenas começa a analisar esse tipo de questão,
que é a possibilidade de as pessoas poderem eliminar da Internet informação que
afete seu livre desenvolvimento.

O legislador mexicano deve avaliar se é necessário implementar o direito ao


esquecimento como uma figura autônoma, ou se o direito ao cancelamento de dados
pessoais é um meio de defesa suficiente e adequado em tais situações.

3.3_ESPECIALIZAÇÃO DOS TITULARES DE ÓRGÃOS


JUDICIAIS E ÓRGÃOS GARANTIDORES

Os juízes em matéria de privacidade e proteção de dados pessoais devem conhecer e


entender o funcionamento das TIC, de modo que seus argumentos e interpretações das leis
sejam adequados, pertinentes e garantam os direitos dos titulares em todos os momentos.

86
CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

3.4_SEGURANÇA DAS REDES

As autoridades de proteção de dados pessoais do país, em suas respectivas áreas


de competência, deverão promover políticas e medidas que garantam a segurança dos
dados pessoais que são tratados por sujeitos obrigados12 em suas bases de dados ou, se
for o caso, tratados por particulares.

É verdade que as leis sobre proteção de dados pessoais do México preveem medidas
de segurança para proteger informações pessoais. No entanto, é importante a promoção
e estudo dessas medidas em relação às necessidades colocadas pelas TIC.

3.5_PRIVACIDADE “BY DESIGN”

Incorporar a privacidade nos sistemas de FUNDAMENTAL


informação (García Mexía, 2014). A então Comissionaria DELIMITAR A
da Informação e Privacidade de Ontario, Canadá, IDENTIDADE DIGITAL
Ann Cavoukia, vê (tradução nossa) a privacidade “by
design” como

[…] a implementação da privacidade a partir de três áreas de


aplicação: sistemas de tecnologia da informação; práticas de
negócio responsáveis e design físico e infra-estrutura de rede,
partindo dos efeitos sempre crescentes e sistemáticos das
tecnologias da informação e comunicação, e dos sistemas de
dados em rede em grande escala.

Nesse sentido, as autoridades devem promover a ideia de que tudo o que se deseja
implementar dentro das instituições que detêm posse sobre dados pessoais deve
cumprir com as leis de proteção de dados, acrescentando que proteger a privacidade é
um bom investimento para eles também13. Isso significa que tanto o titular dos dados
quanto a instituição ganham protegendo a privacidade.

3.6_FORTALECER A CULTURA DA PROTEÇÃO DE DADOS

As leis de proteção de dados no México delegam aos órgãos garantidores a faculdade de


capacitar instituições e pessoas sobre o assunto. Entretanto, é necessário enfatizar como
as TIC podem afetar a privacidade das pessoas, bem como enfatizar as soluções e meios
de defesa que podem ser exercidos em caso de sofrerem algum percalço a este respeito.

Nas palavras do Dr. Villarino Marzo, devemos conseguir que, em um ambiente de


Internet total como padrão, a privacidade também seja oferecida por padrão. Esse é o
nosso grande desafio.

Artigo originalmente escrito em espanhol

12 Ver nota de rodapé nº 10.

13 Além de evitarem sanções legais, é importante apontar que titulares manifestam cada vez
mais interesse por serviços que protegem sua privacidade.

87
CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

_REFERÊNCIAS

Araujo Carranza, E. (2009). El derecho a la información y la protección de datos


personales en México. México: Porrúa.

Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos (Constitución Política de los Estados
Unidos Mexicanos) (1917, 5 de fevereiro). Cámara de Diputados del H. Congreso de la
Unión. Última reforma publicada em 24 de fevereiro de 2017. Retirado de: <http://www.
diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1_240217.pdf>

Dados Abertos do Governo da República (Datos Abiertos del Gobierno de la República)


(2017). Datos. Retirado de: <http://www.datos.gob.mx>

Decreto pelo qual se expede a Lei Geral de Transparência e Acesso à Informação Pública
(Decreto por el que se expide la Ley General de Transparencia y Acceso a la Información
Pública) (2015, 4 de maio). Diario Oficial de la Federación. Retirado de: <http://www.
diputados.gob.mx/LeyesBiblio/ref/lgtaip/LGTAIP_orig_04may15.pdf>

Decreto pelo qual se reformam e adicionam diversas disposições da Constituição


Política dos Estados Unidos Mexicanos em matéria de transparência (Decreto por el
que se reforman y adicionan diversas disposiciones de la Constitución Política de
los Estados Unidos Mexicanos, en materia de transparencia) (2014, 7 de fevereiro).
Diario Oficial de la Federación. Retirado de: <http://www.dof.gob.mx/nota_detalle.
php?codigo=5332003&fecha=07/02/2014>

García Mexía, P. (2014). Derechos y libertades, internet y tics. Espanha: Tirant lo Blanch.

Joyanes, L. (2013). Big data. Análisis de grandes volúmenes de datos en organizaciones.


México: Alfaomega.

Lei Federal de Proteção de Dados Pessoais em Posse de Particulares (Ley Federal de


Protección de Datos Personales en Posesión de los Particulares) (2010, 5 de julho).
Cámara de Diputados del H. Congreso de la Unión. Retirado de: <http://www.diputados.
gob.mx/LeyesBiblio/pdf/LFPDPPP.pdf>

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em Posse de Sujeitos Obrigados (Ley General de
Protección de Datos Personales en Posesión de Sujetos Obligados) (2017, 26 de janeiro).
Cámara de Diputados del H. Congreso de la Unión. Retirado de: <http://www.diputados.
gob.mx/LeyesBiblio/pdf/LGPDPPSO.pdf>

Muñozcano Eternod, A. (2010). El derecho a la intimidad frente al derecho a la


información. México: Porrúa.

Novoa Monreal, E. (1989). Derecho a la vida privada y libertad de información – Un


conflicto de derechos. México: Siglo XXI.

Pérez Luño, A. (2014). Nuevas Tecnologías y derechos humanos – El tiempo de los


derechos 4. México: Tirant lo Blanch.

88
CIBERSEGURANÇA _ NATALIA MENDOZA SERVÍN

Romero, C. M. (2014). Implicaciones de la reforma constitucional en transparencia. Red


por la Rendición de Cuentas (RCC). Retirado de: < http://rendiciondecuentas.org.mx/
implicaciones-de-la-reforma-constitucional-en-transparencia/>

Santamaría González, F. (2008). Posibilidades pedagógicas. Redes sociales y


comunidades educativas. TELOS – Cuadernos de comunicación e innovación. Número
76. Retirado de <https://telos.fundaciontelefonica.com/telos/cuaderno.asp@rev=76.
htm>

Secretaria de Comunicações e Transportes (Secretaría de Comunicaciones y


Transportes) (2017). México Conectado. Recuperado de: <www.mexicoconectado.gob.
mx>

Téllez Valdés, J. (2009). Derecho informático. México: Mc Graw Hill.

Vélez Martínez, C. (2015, maio). Internet de las cosas. Gazeta eletrônica. Instituto de
Engenharia da Universidade Nacional Autônoma do México. Retirado de <http://
www.iingen.unam.mx/es-mx/Publicaciones/GacetaElectronica/Mayo2015/Paginas/
Internetdelascosas.aspx>

NATALIA MENDOZA SERVÍN


Graduada de Mestrado em Transparência e
Proteção de Dados Pessoais pela Universidade
de Guadalajara e licenciada em Direito pela
mesma universidade.

89
DIREITOS
DIGITAIS
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ NOS


PROCESSOS DE REFORMA
DO MARCO REGULATÓRIO
DAS TECNOLOGIAS
INFOCOMUNICACIONAIS NA
ARGENTINA

JULIETA COLOMBO GARDEY


Licenciada em Ciências Políticas e Relações Internacionais,
Universidade de San Andrés
julicolombo@gmail.com
Argentina

ANTONELLA MAIA PERINI


Mestre em Relações Internacionais Europa-América Latina, Universida-
de de Bolonha
antomperini@gmail.com
Argentina

91
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

_TEMÁTICA

Direitos digitais
Acesso e diversidade
Cooperação de múltiplas partes interessadas

_RESUMO

O artigo analisa as iniciativas de reforma regulatória para as


tecnologias infocomunicacionais argentinas, apresentadas em
2016, em função de sua capacidade de garantir a participação
cidadã, limitar a concentração do mercado, garantir a
independência política e/ou econômica do ente regulador dos
meios de comunicação e garantir o pleno gozo do direito à
livre expressão e informação. Concluímos que a reorientação
das políticas públicas, em particular o apelo à participação em
processos de consulta e debate, é insuficiente para garantir a
incorporação das demandas cidadãs, e que esses mecanismos
contribuem para o aumento da incerteza jurídica e da
concentração do mercado.

Palavras chave: tecnologias infocomunicacionais;


regulamentação; participação dos cidadãos

92
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

1_ANTECEDENTES

Há alguns anos, tanto em âmbito regional como internacional, vários órgãos de


Direitos Humanos (incluindo a Organização dos Estados Americanos, as Nações Unidas
e suas respectivas relatorias) enfatizaram a importância do direito de livre expressão
e informação como um direito humano, individual e coletivo, cuja defesa constitui
um dos pilares essenciais para a construção de democracias mais sólidas e inclusivas.
Consequentemente, numerosos países, ecoando esses postulados, adaptaram suas
normas aos padrões internacionais em termos de liberdade de expressão.

No entanto, na Argentina, os princípios subjacentes a tais aspirações democráticas


têm ainda de se materializar, enquanto continua o processo de definição da normativa
que regulará os meios de comunicação e as tecnologias da informação; normativa que,
por sua vez, vai funcionar como apoio material desse direito humano fundamental
(Loreti, 2014).

O caso argentino é um expoente claro de como certos aspectos históricos dos


sistemas políticos podem condicionar significativamente, e a longo prazo, a forma e
os padrões de funcionamento de um sistema de mídia. Desde o final do século 19 e
início do século 20, com o surgimento das primeiras formas de comunicação (imprensa
escrita e radiofonia), as decisões políticas relativas à regulação dos meios têm sido
caracterizadas pela sua constante volatilidade em função de interesses particulares,
seu afastamento dos princípios democráticos e seu caráter não inclusivo das demandas
cidadãs. Esses elementos acabariam por definir a forma a ser adotada pelo sistema
de mídia, permitindo, por ação ou omissão, consolidar um modelo de sistema de
comunicação altamente comercial, hiperconcentrado e pouco participativo. A adoção
precoce de um modelo comercial contribuiria para que o processo de tomada de decisão
fosse reduzido às preferências dos grupos de interesse privado — que tinham poder
econômico, de posse de empresas de mídia — e as do poder público — atores políticos
com a capacidade de determinar as “regras de jogo” do espaço de midiático (Mastrini,
2009; Colombo Gardy, 2016).

Essas condições, ao longo do tempo, anularam quase por completo e sistematicamente


as possibilidades da cidadania de expressar seus interesses no momento de definir as
regras que regulam o processo de produção e troca de informações, excluindo, dessa
maneira, quem se supõe que é o titular do direito de comunicar.

O estado paradoxal de marginalidade do cidadão atenta contra o que, seguindo


Robert Dahl (1989), é um dos elementos fundamentais da democracia: a igualdade de
oportunidades dos indivíduos para decidir e agir com liberdade, de acordo com o acesso
e compreensão da informação que lhes permita configurar suas preferências.

Esta situação aprofundou-se com o tempo na Argentina, a partir das concessões


contínuas que os diferentes governos fizeram às empresas que, hoje em dia, se constituem
como “megameios” e que dominam amplamente o mercado infocomunicacional.

O equilíbrio entre os interesses econômicos e políticos foi alterado na Argentina

93
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

em 2009, quando a conjuntura política viu enfrentados o Grupo Clarín e o governo de


Cristina Fernández de Kirchner, dando origem à sanção da LSCA (Lei de Serviços de
Comunicação Audiovisual).

2_LEI DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL,


PONTO DE INFLEXÃO?

O significado dessa norma assume uma dimensão enorme se considerarmos que


foi, depois de numerosos projetos de reforma, decretos-lei e decretos de necessidade e
urgência, a segunda lei sancionada em conformidade com os procedimentos legislativos
após um processo de debate parlamentar1. Também foi a única que gerou debates no
espaço público e a primeira a aspirar a regulamentação da mídia a fim de defender um
direito humano.

Mas o mais notável da LSCA – que substituiria, depois de 29 anos, o antigo decreto-
lei instituído em 1980 pela ditadura militar liderada por Jorge Rafael Videla – é que ela
surge em condições realmente excepcionais. Em 2009 produz-se a confluência de vários
fatores, entre os quais podemos destacar brevemente o surgimento de um conflito entre
os setores agroexportadores e o governo kirchnerista pela determinação desse último de
aumentar os impostos oscilantes às exportações, causando a ruptura das relações — até
o momento amigáveis — entre o governo e o Grupo Clarín.

Essas circunstâncias abririam uma janela de oportunidade única para o ressurgimento


das demandas para a “democratização das comunicações”, protagonizadas por grupos
da sociedade civil que, a partir do retorno à democracia, exigiam a necessidade de
reformar o decreto-lei imposto durante o último governo de facto. As exigências seriam
oportunamente retomadas pelo oficialismo, a fim de promover uma nova regulação dos
meios capaz de reduzir a influência que Clarín – alinhado com os interesses do campo
– exercia sobre a opinião pública (Colombo Gardy, 2016).

A lei é finalmente aprovada em 10 de outubro de 2009, com a composição do Congresso


favorável ao oficialismo e em simultaneidade com as crescentes reivindicações
regionais na América Latina sobre a democratização dos sistemas de mídia.

Anos mais tarde, em dezembro de 2014, é aprovada a lei nº 27.078, conhecida como
“Argentina Digital”, que substituiu a Lei Nacional de Telecomunicações, nº 19.798, que
desde 1972 regulava este setor. Essa primeira tentativa de adaptação às tecnologias
convergentes apresentava nuances diversas. Por um lado, estabelecia a necessidade de
regulamentação e abertura do mercado das telecomunicações, bem como a inclusão do
conceito de neutralidade da rede. Por outro lado, o texto abundava em indefinições e
imprecisões, resultando insuficiente para a proteção da privacidade e dos dados pessoais,
dando poder excessivo à autoridade de aplicação2 e validando um regime de repartição

1 O único antecedente semelhante é a Lei n º 14.241, de Regulação dos Serviços de Radiodifusão,


sancionada em 1953 por Juan D. Perón.

2 Essa lei dá à autoridade de aplicação – e através dessa, ao governo – um elevado poder


discricionário em matérias tais como a definição do que compreende por atores empresariais “com

94
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

vinculado à discricionariedade do Poder Executivo. Permitia, simultaneamente,


um aumento da concentração, ao mesmo tempo que autorizava as empresas de
telecomunicações, bem como os operadores de meios audiovisuais e digitais, a adquirir
propriedade dentro de outros setores do mercado infocomunicacional, com condições
pouco exigentes.

No final do mandato de Cristina Fernández, havia passado seis anos de uma aplicação
deficiente da LSCA que, entre outras coisas, se deveu às ações judiciais interpostas, à
fraca vontade política de perseguir os fins democráticos a partir da implementação da
lei e a sanção de uma norma posterior (“Argentina Digital”) que contrariava os objetivos
definidos por aquela.

Diante da necessidade urgente de se adaptar aos processos de convergência


tecnológica e a tendência crescente de concentração do mercado infocomunicacional, a
chegada de Mauricio Macri como presidente em 10 de dezembro de 2015 colocou novos
desafios que motivaram a tomada de duas decisões substanciais. Em apenas 19 dias
depois de assumir funções, a primeira foi a publicação do Decreto de Necessidade e
Urgência (DNU) nº 267. Em seguida foi criada a Comissão para a Elaboração do Projeto
de Lei de Reforma, Atualização e Unificação das Leis nº 26.522 e nº 27.078 (a partir de
agora a Comissão), como estabelece o art. 28 do DNU mencionado. Embora o Decreto
estabeleça igualmente a apresentação de um anteprojeto no prazo de 180 dias a contar
da constituição da Comissão, essa solicitou a prorrogação do prazo, mas, até a data,
ainda não apresentou qualquer anteprojeto de lei.

Um ano após a criação da Comissão, Mauricio Macri assinou o Decreto de


Necessidade e Urgência nº 1340/16, cujo objetivo era reformar as leis nº 26.522 e nº 27.078.
O governo afirmou que essas emendas procuravam superar questões como distorções na
concorrência, altos custos e danos para os usuários, a fim de criar um contexto regulatório
em sintonia com o desenvolvimento da indústria de mídia e telecomunicações.

O atual processo de reforma regulatória reafirma as aspirações democráticas da


normativa internacional a que a Argentina aderiu e demonstra também a vontade de
suprir a necessidade de uma regulamentação adequada à convergência tecnológica,
corrigindo as inconsistências e áreas de sobreposição das leis precedentes (LSCA e
Argentina Digital). Os princípios orientadores dessa reforma, que guiarão a definição do
anteprojeto de lei, estão contemplados na Resolução 9/2016.

Em seguida, tomaremos três aspectos que, na nossa opinião, desempenham um


papel fundamental na responsabilidade do Estado de assegurar o pleno usufruto do
direito humano à liberdade de expressão e ao acesso à informação, para analisar até
que ponto as iniciativas de reforma regulamentar do governo durante 2016 foram
adequadas aos princípios da regulamentação internacional que a Argentina subscreve.

uma posição significativa do mercado” (expressão ambígua) a partir da qual pode tomar medidas
como a regulação dos preços de mercado, solicitar desinvestimentos etc. Esse tipo de redação,
que permite a discricionariedade do Estado ou dos organismos de aplicação dos regulamentos em
matéria de comunicação, afasta-se das aspirações de democratização e de transparência da LSCA.

95
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

3. ASPECTOS FUNDAMENTAIS PARA GARANTIR O PLENO


GOZO DO DIREITO À LIVRE EXPRESSÃO E ACESSO À
INFORMAÇÃO

3.1_A PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS NOS MEIOS


DE COMUNICAÇÃO, INCLUINDO OS PROCESSOS DE
DEFINIÇÃO DO MARCO REGULATÓRIO DAS TECNOLOGIAS
DA INFORMAÇÃO E DA COMUNICAÇÃO, PROIBIDA
QUALQUER TIPO DE DISCRIMINAÇÃO.

A participação cidadã é um fator chave para o fortalecimento dos sistemas


democráticos nos quais a liberdade de expressão é garantida. Permite não apenas
enriquecer os processos do conhecimento, das ideias e das experiências dos cidadãos,
mas também de promover o seu protagonismo nos assuntos públicos. Por conseguinte,
não é possível pensar na elaboração de uma lei de liberdade de expressão sem criar as
condições necessárias para um espaço de debate público que incorpore verdadeiramente
todos os setores.

Os princípios orientadores da Comissão que se aproximam deste objetivo referem-se


ao controle público e ao monitoramento social do novo marco regulatório, bem como
das garantias para a participação dos cidadãos e o respeito pelo princípio do federalismo.
Esta Comissão propôs abrir o processo de reformulação do marco regulatório para as
partes interessadas, contemplando uma instância de participação direta dos cidadãos.

A Comissão organizou uma reunião com o relator especial para a Liberdade de


Expressão da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos); realizou 20
reuniões participativas, coletando as contribuições de 76 organizações; 2 seminários
internacionais com 16 peritos nacionais e internacionais reunidos em 5 painéis de
debate; 5 debates acadêmicos na cidade de Buenos Aires, Cuyo, Córdoba, Jujuy e Rosario,
onde 26 especialistas participaram em 8 painéis de debate; recebeu 3 contribuições
adicionais; e, por último, fez uma consulta digital (#SumáTuAporte, “adicione sua
contribuição”) de 22 de setembro até 15 de dezembro de 2016, a partir da qual receberam
700 opiniões, de até 300 caracteres cada um, de cidadãos registrados.

Tal como afirma Bello Arellano, da Associação Interamericana de Empresas de


Telecomunicações (Asiet), deve ser tomada em consideração a formulação de um quadro
normativo que garanta a proteção dos consumidores, desde a qualidade dos serviços à
proteção de seus dados pessoais (Entidade Nacional de Comunicações, Enacom3). É por
isso – embora não exclusivamente para este fim – que a voz dos cidadãos, não só como

3 Nota do revisor: em seu site, a Enacom se descreve como uma “entidade autárquica e
descentralizada que funciona no âmbito o Ministério de Modernização da Nação. Seu objetivo
é conduzir o processo de convergência tecnológica e criar condições estáveis de mercado para
garantir o acesso de todos os argentinos aos serviços de Internet, telefonia fixa e móvel, radio,
correios e televisão. A Enacom foi criada em dezembro de 2015 através do Decreto 267, no qual se
estabelece seu papel como regulador das comunicações com fim de assegurar que todos os usuários
do país contem com serviços de qualidade”. Ver: <https://www.enacom.gob.ar/institucionales_p33>

96
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

portadores de direitos civis, mas também como usuários finais, é essencial no processo
de regulação normativa. É insuficiente, portanto, criar um espaço digital de consulta
limitado em caracteres, bem como as intervenções delimitadas, carecendo de consultas
complementares em espaços físicos e públicos.

No entanto, se levarmos em consideração os atores convocados para fazer


parte das reuniões participativas, observamos que aqueles que estavam envolvidos
neles eram, principalmente, câmaras comerciais (18), associações empresariais,
comerciais ou cooperativas (15) e organizações sem fins lucrativos (16). Em menor
medida, participaram as entidades de classe e sindicatos (8), as entidades públicas
(8) e as federações e confederações (5). Entre esses atores, as áreas ou indústrias
mais representadas foram as das telecomunicações e a Internet (14), transmissão de
TV (9) e de radiodifusão (8). Isso não é surpreendente, na medida em que é o núcleo
dinâmico com maiores externalidades positivas (Becerra, 2017). Contudo, é de salientar
que os atores focados em temáticas relacionadas com a proteção dos direitos civis e o
fortalecimento democrático representaram 11,8% dos atores participantes. No que diz
respeito a esses últimos, as organizações que representam os interesses da igualdade de
gênero colocaram especial ênfase na necessidade de
incluir no marco regulatório, e de forma transversal,
os setores “com menor possibilidade de participação
e representação nos meios de comunicação”, bem O ESTADO DEVE
como a incorporação de uma linguagem não sexista TER UM PAPEL
na redação da nova lei (Enacom). ATIVO PARA QUE A
ADMINISTRAÇÃO
Por outro lado, se analisarmos as escassas DOS SERVIÇOS DE
76 organizações que participam nas reuniões
COMUNICAÇÃO
quinzenais, podemos observar que 3 delas têm um
NÃO GERE
alcance global, 5 um alcance regional, 62 um alcance
SITUAÇÕES DE
nacional e apenas 6 um alcance subnacional. Além
disso, entre as últimas, 5 representam os interesses
ABUSO DE POSIÇÃO
dos atores da cidade de Buenos Aires e/ou da província DOMINANTE
de Buenos Aires. Sendo assim, é possível detectar
a sub-representação das províncias nas reuniões
participativas. Um aspecto não menos importante, considerando que o federalismo foi
tomado como um dos princípios orientadores da Comissão. O grau de representatividade
provincial foi notável apenas durante os debates acadêmicos, nos quais participaram as
universidades e cátedras de Jujuy, Córdoba e Santa Fe, entre outros.

Por último, tendo em conta a série de reuniões mencionadas acima e considerando


a publicação do Decreto 1340/16, que parece ignorar o passo deliberativo necessário no
fortalecimento de um marco regulatório sobre os meios de comunicação, podemos
interrogar-nos até que ponto a participação dos cidadãos no processo de elaboração
do anteprojeto de lei não se reflete apenas no plano discursivo, em contradição com a
prática. Tal como defende Santiago Cantón, ex-relator de Liberdade de Expressão e ex-
secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a participação
dos cidadãos e de outros atores interessadas deve fornecer uma troca de ideias, sem a

97
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

qual uma lei de liberdade de expressão estaria cumprindo com as formalidades, mas no
fundo estaria procurando “evitar uma participação real” (Enacom).

3.2_A REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO


AUDIOVISUAL A PARTIR DE UM PAPEL ATIVO DO ESTADO,
QUE GARANTA O GOZO DO DIREITO À LIBERDADE DE
EXPRESSÃO E, DE FORMA TRANSPARENTE, GARANTA
A PLURALIDADE (NÚMERO DE VOZES) E O PLURALISMO
(DIVERSIDADE DE VOZES), LIMITANDO A CONCENTRAÇÃO.

O papel do Estado como garantidor de direitos pressupõe que este deve regular,
monitorar e agir perante eventuais violações da liberdade de expressão. Na medida em
que se refere a serviços essenciais para o cidadão, o Estado deve ter um papel ativo
para que a administração dos serviços de comunicação não gere situações de abuso de
posição dominante enquanto promove o acesso universal a esses serviços.

Por outro lado, os princípios orientadores da Comissão estabelecem que é necessária


a definição de critérios de licenciamento democráticos; a neutralidade, a abertura e a
competitividade das redes; a pluralidade e a diversidade do conteúdo audiovisual; e
as garantias de pluralismo político, religioso, social, cultural, linguístico e étnico nos
meios de comunicação.

No entanto, o Decreto 1340/16 apresenta uma série de medidas preocupantes, uma


vez que favorecem a concentração do mercado, um fato que atua em detrimento da
pluralidade e do pluralismo dentro do sistema de meios infocomunicacionais.

Em primeiro lugar, o artigo 3º estabelece a proteção durante 15 anos para a última


milha4. Isso é definido pela legislação europeia, por exemplo, como uma causa de
concorrência desleal, uma vez que favorece o protecionismo de certos atores durante
um longo período de tempo.

Por outro lado, as indústrias dominantes são favorecidas por atribuições mais
permissivas de acesso e exploração do espectro de radiofrequências. De fato, adia as
obrigações das empresas que contraíram licenças de espectro para 4G há três anos,
o que constitui um passe livre para o acesso de grandes empresas de mídia. Além
disso, permite que as companhias telefônicas operem licenças de televisão por cabo e,
inversamente, as operadoras de cabo operem licenças de telefone celular.

Tudo isso possibilita a convergência dos mercados concentrados, onde os players


que historicamente dominaram sua indústria podem acessar, com uma transferência
marginal de seu mercado dominante no meio, um novo mercado com atores igualmente
concentrados.

4 Nota do revisor: “última milha” (last mile) refere-se à infraestrutura de redes que permite a
ligação entre infraestrutura intermediária, chamada de backhaul, e os consumidores finais de
serviços de telecomunicações.

98
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

Essas regulações não só afetam as regras de entrada para os atores menores, mas
também afetam a pluralidade e o pluralismo, ignorando princípios internacionais de
proteção da liberdade de expressão.5 Nesse sentido, durante as reuniões participativas
foram levantadas várias posições que refletiram a necessidade de abrir o mercado
e desenvolver um marco regulatório que permitisse isso, bem como garantir a
manutenção e o acesso de vários atores ao mercado infocomunicacional e a geração de
conteúdos com diversidade linguística, étnica e geográfica, entre outros.

Cabe destacar que um grande número de atores convidados para as reuniões


participativas suscitou preocupações relacionadas com a atual concentração do
mercado e com as tensões existentes para garantir o pluralismo. As posições abrangeram
ideias que vão desde a proteção dos meios de comunicação de baixa potência — que
atualmente representam 70% das comunicações do país — e as pequenas empresas de
radiodifusão em localidades com pouco acesso à Internet, até a proteção de conteúdos
nas diferentes mídias.

Precisamente no que diz respeito à regulação de conteúdos, é alarmante a ausência de


reuniões para o tratamento do que a LSCA, no seu art. 77, denomina como “conteúdos de
interesse relevante”. Essa situação merece duas observações. A primeira está relacionada
com a incerteza jurídica que gera a incerteza sobre a validade desse artigo da LSCA que,
em teoria, continua fazendo parte da legislação dos meios de comunicação mas que, na
prática, requer a realização de reuniões – que não estão acontecendo – por meio das quais
o Estado deve cumprir seu papel como garantidor do acesso universal a esses conteúdos.
Ou seja, nessas reuniões é que o Estado deveria determinar que conteúdos de interesse
relevante seriam transmitidos pela TV aberta por serem de interesse público nacional,
como o futebol, por exemplo. Considerar este aspecto é altamente relevante uma vez que,
se esse artigo não for tratado de acordo com o que a lei estipula, poderia cair em desuso
ou ser eliminado no momento da elaboração de nova normativa.

3.3_A EXISTÊNCIA DE UMA ENTIDADE REGULADORA COM


INDEPENDÊNCIA POLÍTICA, ECONÔMICA OU DE QUALQUER
OUTRA NATUREZA CAPAZ DE VICIAR SUA AÇÃO.

O DNU 267/15 estabeleceu a criação da Enacom (Entidade Nacional de Comunicações)


em substituição da AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual)
e da AFTIC (Autoridade Federal de Tecnologias da Informação e Comunicação). Ou seja,
estabeleceu um único órgão regulador para os serviços de comunicação audiovisual e
tecnologias da informação e comunicação.

No que diz respeito à sua composição, quatro dos sete membros do diretório da

5 Princípio 12 da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão: “Os monopólios


ou oligopólios de propriedade e controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis
antimonopólio, dado que conspiram contra a democracia, restringindo a pluralidade e diversidade
que assegura o pleno exercício do direito à informação dos cidadãos. Em nenhum caso essas leis
devem ser exclusivas para os meios de comunicação. As atribuições de rádio e televisão devem
considerar critérios democráticos que garantam uma igualdade de oportunidades para todos os
indivíduos no acesso a eles”.

99
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

Enacom são nomeados pelo Poder Executivo Nacional, enquanto os três restantes são
designados pela Comissão Bicameral de Promoção e Seguimento da Comunicação
Audiovisual, das Tecnologias de Telecomunicações e da Digitalização do Congresso
Nacional da Nação Argentina. A Comissão os designa sob proposta dos blocos
parlamentares, correspondendo um à maioria ou primeira minoria, outro à segunda
minoria e outro à terceira minoria parlamentar (o que dá ao partido do governo uma
quinta possibilidade de nomeação).

Os diretores têm um mandato de quatro anos e podem ser retirados pelo Poder
Executivo Nacional diretamente e sem expressão de causa. Atualmente, o diretório da
Enacom é formado por maioria oficialista: Miguel de Godoy (PRO), Heber Martínez (PRO),
Silvana Giudici (PRO) e Alejandro Pereyra (PRO), Miguel Ángel Giubergia (UCR), Claudio
Ambrosini (Frente Renovador) e Guillermo Raúl Jenefes (FpV). Da mesma forma, a
Enacom é monitorada pela Sindicatura Geral da Nação e pela Auditoria Geral da Nação.

Este panorama indica três aspectos irregulares sobre o processo de nomeação, a


composição e as atribuições da entidade reguladora nacional como elementos que
podem condicionar sua independência. Em primeiro lugar, o procedimento pelo qual se
estabeleceu sua criação e a consequente fusão dos organismos de controle preexistentes,
isto é, a AFSCA e a AFTIC, por meio de um decreto de necessidade e urgência que
ignorou as instâncias democráticas e deliberativas de tratamento legislativo. Por
outro lado, o Poder Executivo Nacional não só teve ampla ingerência sobre a criação
e regulação da entidade, mas a natureza da designação do diretório viola as garantias
de independência política, porque ele é formado principalmente pelo partido do Poder
Executivo. Finalmente, é esse mesmo Poder que pode revogar o mandato de todos os
diretores sem ter que especificar as causas, gerando um desequilíbrio claro de poder.

As preocupações relativas à violação das normas internacionais, entre elas, no que


se refere a autonomia, independência e pluralidade, motivaram várias organizações
da sociedade civil a apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos. Edison Lanza, Relator Especial para a Liberdade de Expressão, afirmou
que “sua composição e atribuições prima facie, como está atualmente concebida, não
cumpriria estes padrões [de liberdade de expressão], porque deve estar protegido de
qualquer ingerência política ou econômica” (Becerra, 2016, tradução nossa). Santiago
Cantón, ex-relator de Liberdade de Expressão e ex-secretário Executivo da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, advertiu em uma das reuniões participativas
realizadas antes da assinatura do Decreto 1340/16 que “fazer com que o controle da
liberdade de expressão dependa do Poder Executivo é um erro”, porque esse poder não
pode controlar o órgão responsável de supervisioná-lo (Enacom). Na mesma linha, e
fazendo uso do mesmo espaço, Francisco Godinez Galay, da Rede Nacional de Meios
Alternativos (RNMA), argumentou que não deve ser aprovada “nenhuma legislação
que dê ao Poder Executivo maioria automática e poder de decisão arbitrário sobre
sua conformação” (Enacom). Entre os perigos que isso pressupõe para a liberdade de
expressão, indicam-se a falta de legitimidade do órgão regulador e a falta de controle
sobre os poderes da Comissão, aspectos que poderiam levar à tomada de decisões que
favoreçam a atribuição de licenças dos meios de comunicação nos quais o diretório
participa ou a meios que estiveram relacionados com o governo.

100
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

O novo decreto 1340/16, além disso, atribui poderes maiores à Enacom. Embora o
pacote de serviço “quadplay” (serviço de telefonia fixa, móvel, TV a cabo e serviço de
Internet) esteja em vigor para Rosario, Cidade de Córdoba, Capital Federal e Grande
Buenos Aires, a Enacom é que poderá ativá-lo no resto do país (art. 5). Da mesma
forma, o decreto não só atribui ao órgão regulador a capacidade de ditar as regras de
administração, gestão e controle do espectro de radiofrequências, mas também lhe
dá o poder de atribuir e administrar frequências do espectro e autoriza-o à fixação de
compensações, obrigações de implantação e cobertura (art. 4).

4_CONCLUSÕES

A oscilação do marco regulatório infocomunicacional, caracterizado pela


sobreposição de normas, suas constantes alterações e a prevalência de ambiguidades,
imprecisões e incoerências entre seus princípios orientadores e as práticas de governo,
não fez nada além de gerar maior incerteza jurídica nesta área. A legislação anterior foi
desmantelada ao mesmo tempo que um mecanismo para a elaboração de uma nova lei
foi incentivado, prometendo assegurar a inclusão das partes interessadas. No entanto,
mesmo sem a conclusão do processo ou a apresentação do anteprojeto de lei, o decreto
que delimita seus resultados já foi assinado.

Como mencionamos, as reuniões participativas, os intercâmbios acadêmicos e as


reuniões internacionais, entre outros mecanismos, deram à Comissão insumos valiosos
e representativos dos interesses dos atores envolvidos no mercado das telecomunicações
e meios de comunicação. Além disso, as consultas digitais incorporaram as demandas
de 700 usuários finais.

No entanto, não é apenas necessário aumentar os níveis de participação dos


cidadãos como usuários, mas também é necessário garantir que as demandas
apresentadas nas reuniões informativas serão realmente incorporadas no anteprojeto
da nova lei, especialmente em um contexto no qual o Decreto 1340/16 estabelece normas
contrárias a algumas das propostas durante as reuniões mencionadas. Além disso,
como afirmado por Becerra e Mastrini (2017), o núcleo de players pequenos, médios
e cooperativos das indústrias de telecomunicações, Internet e audiovisuais têm uma
grande representatividade regional no país e geram externalidades positivas, tanto
econômicas como sociais. Apesar disso, segundo especialistas, ao contrário dos gigantes
das telecomunicações e da indústria audiovisual, “este setor não incidiu no novo decreto
e sua atenção é negligenciada pelas políticas estatais”.

Mesmo que exista um discurso repleto de referências à convergência, à concorrência


e à consequente procura de aproximação e inclusão de várias vozes no processo
participativo para gerar um marco regulatório de acordo com um mercado plural, a
tendência real parece potenciar a concentração de acordo com os acordos altamente
benéficos para os megameios que já possuem uma posição dominante no mercado. O
governo “ignora diretamente o problema da concentração excessiva de propriedade dos
recursos de comunicação (alguns deles públicos)”, e é esse núcleo dinâmico que é mais
afetado pelas novas normas (Becerra, & Mastrini, 2017, tradução nossa).

101
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

Precisamos compreender que as medidas tomadas até agora, em vez de incentivar


a concorrência ou atrair os investimentos dos novos atores, favorecem a expansão das
duas ou três empresas dominantes em cada setor (telefonia fixa, telefonia móvel, banda
larga e televisão paga), aumentando o poder dos conglomerados e, assim, contribuindo
para a acentuação da concentração.

Em face do exposto, cabe assinalar a existência de uma notória mudança discursiva


ao nível governamental em torno dos objetivos da política de comunicação. Embora
ambos os governos, de Cristina Fernández e de Mauricio Macri, tenham proclamado
critérios de participação democrática como eixos de suas políticas, o primeiro destacava
— pelo menos no plano discursivo — a necessidade de ampliar o número de vozes
no espaço público a partir do desinvestimento por parte das empresas dominantes do
mercado, enquanto o atual governo diz estar orientado para o reforço das condições de
concorrência econômica e para a adaptação adequada aos processos convergentes.

A experiência nos mostrou como a vontade política do governo kirchnerista foi


insuficiente para a cristalização de uma democracia comunicacional, enquanto suas
ações tenderam a implementar um sistema de recompensas e punições a partir do qual
favoreceram os aliados políticos — proprietários de empresas de mídia —, e tentaram
silenciar vozes opositoras.

Nestas circunstâncias, enfrentamos um novo problema perante o qual devemos,


como cidadãos, agir oportunamente. Devemos identificar precocemente os indícios
das medidas tendentes à concentração que reduzam a pluralidade e o pluralismo e
monitorar as ações do governo para exigir um maior grau de segurança jurídica em
todas as fases da elaboração da nova regulamentação, em relação aos princípios que
conformam os padrões internacionais na matéria.

Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS

Becerra, M. (2016). Audiencia en la CIDH sobre los DNUs de Macri. Recuperado de


<https://martinbecerra.wordpress.com/2016/04/08/audiencia-en-la-cidh-sobre-los-
dnus-de-macri/>

Becerra, M. (2017). A falta de inversiones, lluvia de decretos. Recuperado de <https://


martinbecerra.wordpress.com/2017/01/02/a-falta-de-inversiones-lluvia-de-decretos>

Becerra, M., & Mastrini, G. (2017). Inseguridad jurídica en comunicaciones.


Recuperado de <http://www.letrap.com.ar/nota/2017-2-10-inseguridad-juridica-en-
comunicaciones>

102
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

Colombo Gardey, J. (2016). Camino a la democratización comunicacional o al perpetuo


cambio normativo? (Tese de licenciatura sem publicação). Universidade de San Andrés,
Buenos Aires.

Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2000). Declaración de Principios sobre


Libertad de Expresión. Recuperado de <https://www.cidh.oas.org/basicos/basicos13.
htm>

Dahl, R. A. (1989). Democracy and its Critics. 6th ed. New Haven: Yale University Press.

Decreto nº 1340/16 (2016, 18 de janeiro). Normas básicas. Implementación sobre


comunicaciones convergentes. Recuperado de <http://servicios.infoleg.gob.ar/
infolegInternet/anexos/270000-274999/270115/norma.htm>

Decreto nº 267/16 (2016, 4 de janeiro). Creación del Ente Nacional de Comunicaciones


(ENACOM). Recuperado de <http://www.saij.gob.ar/creacion-ente-nacional-
comunicaciones-enacom-creacion-ente-nacional-comunicaciones-enacom-nv13584-
2015-12-29/123456789-0abc-485-31ti-lpssedadevon>

Decreto nº 9/16 (2016, 1 de março). Resolución para la creación de la Comisión para la


elaboración del proyecto de ley de reforma, actualización y unificación de las Leyes Nro
26.522 y Nro 27.078. Recuperado de <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/
anexos/260000-264999/260465/norma.htm>

Entidade Nacional de Comunicações (Ente Nacional de Comunicaciones) (2016).


Comisión Redactora para la Nueva Ley de Comunicaciones. Recuperado de <https://
www.enacom.gob.ar/leydecomunicaciones>

Lei Argentina Digital (Ley Argentina Digital) (2014, 19 de dezembro). Ley No. 27.078.
Desarrollo de las Tecnologías de la Información y las Comunicaciones. Recuperado de
<http://www.saij.gob.ar/desarrollo-tecnologias-informacion-comunicaciones-ley-
argentina-digital-desarrollo-tecnologias-informacion-comunicaciones-ley-argentina-
digital-nv9937-2014-12-16/123456789-0abc-d73-99ti-lpssedadevon>

Lei Nacional de Telecomunicações (Ley Nacional de Telecomunicaciones) (1972, 22 de


agosto). Ley No. 19.798. Recuperado de <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/
anexos/30000-34999/31922/texact.htm>

Lei sobre Serviços de Comunicação Audiovisual (Ley sobre Servicios de Comunicación


Audiovisual) (2009, 10 de outubro). Ley No. 26.522. Recuperado de <http://servicios.
infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/155000-159999/158649/norma.htm>

Loreti, D., & Lozano, L. (2014). El derecho a comunicar. Los conflictos en torno a la
libertad de expresión en las sociedades contemporáneas. 1ª ed., Buenos Aires: Siglo
Veintiuno Editores.

Mastrini, G. (Ed.) (2009). Mucho ruido, pocas leyes. Economía y políticas de


comunicación en la Argentina (1920-2007). 1ª ed., Buenos Aires: La Crujía.

103
DIREITOS DIGITAIS _ JULIETA COLOMBO GARDEY + ANTONELLA MAIA PERINI

JULIETA COLOMBO GARDEY


Julieta Colombo Gardey é graduada em
Ciências Políticas e Relações Internacionais
pela Universidade de San Andrés, Argentina.
Diplomada em Defesa internacional dos
Direitos Humanos pela Universidade Henry
Dunant, Suíça. Atualmente trabalha na
Auditoria Geral da Nação, o órgão técnico
máximo para o controle externo do setor
público nacional argentino. É membro do
Youth Observatory.

ANTONELLA MAIA PERINI


Antonella Maia Perini é graduada em
Relações Internacionais pela Universidade
de San Andrés, Argentina, e mestre em
Relações Internacionais Europa-América
Latina pela Universidade de Bolonha,
Itália. É especialista em inovação política,
governo aberto e governança da Internet.
Trabalha como coordenadora do projeto
#InnovaPolíticaLatam em Assuntos del Sur.
É membro do Youth Observatory, membro
do Grupo Constituinte de Usuários Não-
Comerciais (NCUC) da ICANN e fellow da
ICANN.

104
DIREITOS DIGITAIS _ SILVANA CRISTINA RIVERO

A PROTEÇÃO DO
CONSUMIDOR NA
ECONOMIA DIGITAL

SILVANA CRISTINA RIVERO


Advogada na Universidade de Buenos Aires, mestrado em Direito
Empresarial pela Universidade de San Andrés
silvanacrivero@gmail.com
Argentina

105
DIREITOS DIGITAIS _ SILVANA CRISTINA RIVERO

_TEMÁTICA

Direitos digitais
Problemas emergentes da internet

_RESUMO

As tecnologias da informação e da comunicação se incorporam


a uma mudança estrutural existente a nível econômico. Este
novo ambiente levanta o desafio de adaptar a proteção do
consumidor em uma economia digital que está em ascensão. A
formulação de leis, políticas e práticas uniformes que tendem
a proteger eficazmente os usuários é indispensável na busca do
fortalecimento da segurança e da confiança dos consumidores
online e, desse modo, no desenvolvimento e no avanço da
economia digital.

Palavras chave: proteção do consumidor; defesa do


consumidor; economia digital

106
DIREITOS DIGITAIS _ SILVANA CRISTINA RIVERO

1_INTRODUÇÃO

A incorporação das Tecnologias de Informação e Comunicação (daqui pra frente,


as TIC) está relacionada às estruturas produtivas e pautas de comércio exterior que
são mais intensivos em bens produzidos com tecnologias, ou seja, com uma mudança
estrutural no nível econômico.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) considera que a


economia digital é parte de uma nova visão de desenvolvimento que pode atuar como
catalisador de mudanças estruturais, incentivando investimentos de longo prazo,
diversificação da estrutura produtiva e maior convergência nos níveis de produtividade
na economia como um todo (CEPAL, 2013).

Este novo ambiente digital exige a adaptação da proteção do consumidor exercida


até agora, além de incorporar as questões que são características de uma economia
digital que está em ascensão. É por isso que deve existir formulação de normas, políticas
e práticas uniformes que procurem efetivamente proteger os consumidores e fornecer
orientações sobre as atividades comerciais justas (CEPAL, 2016), para fortalecer a
segurança e a confiança dos consumidores online e, portanto, o desenvolvimento e o
avanço da economia digital.

Neste sentido, as recomendações da Organização para a Cooperação e


Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2016) sobre proteção ao consumidor no comércio
eletrônico procura garantir que os países modernizem suas leis de proteção ao
consumidor para enfrentarem os novos riscos presentes no comércio online, incluindo
aplicações e transações entre consumidores (peer-to-peer).

Neste contexto, propõe-se a necessidade de que


as pessoas que compram pela Internet tenham
proteção semelhante, em termos de transparência e PROPÕE-SE A
eficácia, às praticadas em transações tradicionais. As NECESSIDADE DE
diretrizes, nas novas recomendações publicadas pela
QUE AS PESSOAS
OCDE, cobrem questões de comércio eletrônico em um
QUE COMPRAM
esquema de Business to Consumer (B2C), bem como
PELA INTERNET
entre consumidores.
TENHAM PROTEÇÃO
Ao mesmo tempo, neste panorama atravessado SEMELHANTE,
pelas TIC, deve-se considerar a discriminação existente EM TERMOS DE
entre os consumidores, devido, por exemplo, à sua TRANSPARÊNCIA
localização geográfica, através das práticas que vão E EFICÁCIA, ÀS
do bloqueio geográfico até a ofertas discriminatórias PRATICADAS EM
em todos os setores de compras e pagamentos online.
TRANSAÇÕES
Esse último também é um problema a ser abordado ao
TRADICIONAIS
se estabelecer as políticas e leis que devem prevalecer
nesse ambiente.

107
DIREITOS DIGITAIS _ SILVANA CRISTINA RIVERO

2_PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR E OS DESAFIOS NA ECONOMIA DIGITAL

O princípio da neutralidade tecnológica deve ser protegido ante um ambiente


caracterizado pelo uso das TIC. Implica em exigir a interoperabilidade entre
os diferentes produtos e/ou serviços oferecidos, o que é relevante ante a não
interoperabilidade deliberada dos sistemas por parte dos fornecedores, limitando a
escolha dos consumidores.

Também se identifica a necessidade de garantir a neutralidade da rede que resulta


uma medida importante para garantir que os consumidores tenham acesso aberto à
Internet e que os mesmos tipos de tráfego sejam tratados por igual. Uma das formas
comuns de definir o termo é a não discriminação, por provedores de acesso à Internet,
de conteúdo, aplicações e serviços. De acordo com essa regra, ao navegar em um site ou
outro o usuário não pode notar diferenças.

Outra questão importante é procurar reduzir os obstáculos para o desenvolvimento


do comércio eletrônico transfronteiriço no que diz respeito às normas para a regulação
de envio de parcelas transfronteiriças e dos impostos aplicáveis sobre a venda de bens
e serviços. Devido à sua fragmentação e falta de transparência, esses fatores tornam
difícil o comércio eletrônico caracterizado por atravessar fronteiras (Grupo do Partido
Popular Europeu, 2017).

Os consumidores devem ter acesso a mecanismos de fácil utilização para resolver


conflitos decorrentes de contratações nacionais e/ou transfronteiriças no comércio
eletrônico. A este respeito, os mecanismos alternativos de resolução de disputas
online (conhecida por suas siglas em inglês como ODR, o que significa Online Dispute
Resolution), surgem como uma opção viável para resolver disputas decorrentes do
comércio eletrônico. ODRs são processos que incorporam o uso da Internet ou qualquer
outro tipo de TIC, para a resolução de disputas. Exemplos em países da região são:
Concilianet1 no México e Sernac2 no Chile. A nível regional se encontra o Programa
Regional de Resolução Eletrônica de Disputas para a Economia Digital da ILCE na
América Latina3, enquanto na Europa existe a ECC-Net4. Este tipo de mecanismo
pode melhorar o acesso a soluções no ambiente digital, aumentando a velocidade
e a eficiência desses procedimentos e reduzindo os custos (Organização Mundial da
Propriedade Intelectual, 2000).

Entre os objetivos perseguidos por essas alternativas está o vinculado com a proteção
de consumidores prejudicados por empresas online, particularmente quando os danos
são de pouco valor econômico e a disputa é de natureza transnacional. Assim mesmo,

1 Para maior informação: <http://concilianet.profeco.gob.mx/Concilianet/comoconciliar.jsp>

2 Para maior informação: <http://www.sernac.cl/>

3 Para maior informação: <http://www.einstituto.org/nuestras-iniciativas/programa-regional-


redodr>

4 Para maior informação: <http://ec.europa.eu/consumers/solving_consumer_disputes/non-


judicial_redress/ecc-net/index_en.htm>

108
DIREITOS DIGITAIS _ SILVANA CRISTINA RIVERO

também procura-se impulsionar a expansão do comércio eletrônico, especialmente em


relação às pequenas e médias empresas, fornecendo mecanismos mais simples para
resolver disputas (González, 2012).

Outro aspecto que deve ser considerado ao tentar proteger os direitos dos
consumidores online é a portabilidade da vida digital das pessoas, o que implica a
possibilidade de exigir a entrega e/ou transferência de tudo que é de propriedade
do consumidor – o que varia, indo desde o número de telefone celular até os dados
fornecidos para uma plataforma em particular. Esse aspecto existe para que o
consumidor não esteja vinculado aos serviços de um único fornecedor, podendo sempre
ter a liberdade de escolher entre os diferentes produtos e/ou serviços online oferecidos
por vários fornecedores.

É necessário exigir práticas comerciais justas no novo ambiente digital. Entre


as mencionáveis de acordo com as recomendações da OCDE estão a não distorção ou
ocultação dos termos e condições contratuais que podem afetam a decisão de compra,
além da tentativa de ocultar identidade ou localização. Também não devem ser
realizadas práticas enganosas relacionadas à coleta ou uso de dados pessoais, como
não explicitar que o serviço prestado em troca dessa contraprestação foge da tradicional
compensação monetária.

Deve-se ter especial cuidado nas ações de marketing destinadas a crianças ou a


outros consumidores vulneráveis, como os idosos. Outro exemplo está ligado a zelar
por produtos seguros na rede, já que um grande número de países contam online com
aqueles que foram declarados inseguros no mercado offline. Assim, aqueles que atuam
no mercado digital devem cooperar junto aos governos para impedir que essas práticas
se propaguem (OECD, 2016, pp. 10-12).

Novos produtos e/ou serviços acessíveis ao usuário, entre os quais pode-se mencionar
os dispositivos IoT (do inglês Internet of Things5), exigem o cumprimento rigoroso
do dever de informação por parte do provedor, prestando atenção à necessidade de
os consumidores entenderem melhor as funcionalidades e limitações desses novos
produtos. A este respeito, o Conselho de Economia da Informação do Reino Unido
(United Kingdom Information Economy Council) desenvolveu um marco voluntário de
recomendações orientado para o consumidor, destinado a responder às expectativas
dos usuários e a fornecer informações adequadas sobre seus direitos e obrigações no
ecossistema IoT (BT, 2014) (OCDE, 2015)

Outro exemplo do dever de informar neste cenário é o fornecimento de informações


claras sobre as condições relacionadas à aquisição e uso de conteúdos digitais, como
música e filmes online, que são frequentemente vendidos com limitações de uso legais
ou técnicas (Koopman, Mitchell e Thierer, 2015).

5 Internet das coisas, IdC, Internet of Things ou IoT por suas abreviaturas em inglês: compreende
em coisas cotidianas que se conectam à Internet. Desta forma, os objetos podem ser previamente
conectados por circuito fechado, como comunicadores, câmeras, sensores, entre outros,
permitindo que se comuniquem de forma global através do uso da Internet.

109
DIREITOS DIGITAIS _ SILVANA CRISTINA RIVERO

Finalmente, deve-se mencionar um modelo que capacitou o consumidor no campo


do comércio eletrônico, os mecanismos de feedback reputacional (reputational
feedback mechanisms), que dão ao usuário o poder de opinião. Tal é a importância
desta ferramenta que muitas das empresas que atuam no ecossistema digital dependem
disso para estabelecer confiança entre fornecedores e consumidores.

3_CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo atual que tem sido desenvolvido, vinculado ao fornecimento de respostas


independentes à evolução das novas tecnologias, implica o risco de perder a coerência
regulatória, o que pode levar a um aumento nos custos e ineficiência na conformidade
regulamentar para os atores do setor. Para os consumidores, a maior complexidade e
fragmentação da regulamentação pode dificultar sua atuação na economia digital.

Um marco regulador com um enfoque conjunto, para abordar as leis e/ou


mecanismos para proteger o consumidor e, assim, garantir a segurança e confiança
do consumidor no novo esquema digital, ofereceria um ambiente mais adequado tanto
para empresas quanto para os consumidores.

Neste caso, é essencial o papel das agências de defesa do consumidor, que devem
velar pelo usuário em sua atuação online e, ao mesmo tempo, alcançar a cooperação
com agências de outros países para o intercâmbio de informações e a solução de
controvérsias em operações transfronteiriças.

O ecossistema fornecido através do modelo multistakeholder, preponderante nos


espaços de governança da Internet, é essencial para obter consenso e cooperação entre
todos os atores envolvidos na comunidade digital.

A atuação dos consumidores acompanha essa ação e crescimento das empresas,


tendo que alcançar seus recíprocos direitos e obrigações para um equilíbrio justo para
ambos. Isso se deve ao fato de que a economia digital beneficia tanto os usuários como
os fornecedores, de modo que seu desenvolvimento e sucesso dependem da conquista de
um mercado digital cuja segurança e confiança entre os atores gere maiores vantagens
para a Sociedade da Informação.

Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS

Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (2013). La Economía digital para
el cambio estructural y la igualdad. p. 99. Recuperado de <http://www.cepal.org/ilpes/
noticias/paginas/3/54303/Economia_digital_para_cambio.pdf>

Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (2016). La nueva revolución


digital: De la Internet del consumo a la Internet de la producción. eLAC 2018 La

110
DIREITOS DIGITAIS _ SILVANA CRISTINA RIVERO

revolución digital. Santiago. p. 95. Recuperado de <http://repositorio.cepal.org/


bitstream/handle/11362/38604/4/S1600780_es.pdf>

González, W. N. (2012). Mecanismos alternativos de resolución de controversias en


línea: hacia un sistema mundial. Heurística Jurídica. p. 106 e 107. Recuperado de
<http://erevistas.uacj.mx/ojs/index.php/heuristica/article/view/1241/1071>

Grupo do Partido Popular Europeu (2017). Los consumidores en la economía digital.


Recuperado de <http://www.eppgroup.eu/es/our-priority/Los-consumidores-en-la-
econom%C3%ADa-digital>

Koopman, C., Mitchell, M., & Thierer, A. (2015). The Sharing Economy and Consumer
Protection Regulation: The Case for Policy Change. 8 J. Bus. Entrepreneurship & L. 529.
p. 541. Recuperado de <http://digitalcommons.pepperdine.edu/jbel/vol8/iss2/4>

Organização Mundial da Propriedade Intelectual (2000). Estudio sobre Comercio


electrónico y Propiedad Intelectual. Ginebra. p. 31. Recuperado de <https://goo.gl/16b12u>

Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2015). Perspectivas de la


OCDE sobre la economía digital 2015. Paris. p. 311. Recuperado de <http://www.oecd.org/
sti/ieconomy/DigitalEconomyOutlook2015_SP_WEB.pdf>

Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2016). Consumer Protection


in E-commerce: OECD Recommendation. OECD Publishing, Paris. Recuperado de
<https://www.oecd.org/sti/consumer/ECommerce-Recommendation-2016.pdf>

SILVANA CRISTINA RIVERO


Assessora legal e de políticas públicas
no Departamento de Política Nacional e
Desenvolvimento da Internet do Ministério
de Modernização da Nação (Argentina),
é sócia na firma Maryva, especializada
em direito e tecnologia. Trabalhou para
Carranza Torres & Asociados, empresa
especializada em propriedade intelectual;
como parte dos serviços prestados, atuou
no MercadoLibre S.R.L. como advogada in
house. Atualmente é docente no curso de
Negócios Tecnológicos da Faculdade de
Direito e Ciências Sociais.

111
DIREITOS DIGITAIS _ JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA

UM DIREITO PARA A
GOVERNANÇA DA INTERNET

JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA


Licenciado em Direito pela Universidade de Guadalajara, México
juanmacias.sierra@gmail.com
México

112
DIREITOS DIGITAIS _ JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA

_TEMÁTICA

Direitos digitais

_RESUMO

Este artigo analisa brevemente a relevância de ter um


órgão jurídico dedicado ao estudo de questões relacionadas
à governança da Internet. Por um lado, é questionada a
abordagem de tais tópicos do ponto de vista do Direito
de Informática e, por outro lado, compromete-se com o
fortalecimento de um ramo legal em construção e mais
adequado para a governança da Internet: Direito da Internet.

Palavras chave: governança da Internet; direito da informática;


direito da Internet

113
DIREITOS DIGITAIS _ JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA

1_INTRODUÇÃO

Como um jovem advogado, decidi me envolver com o Direito Informático quase


no meio da minha carreira universitária. Os artigos que escrevi e as ideias que tive
surgiram da perspectiva desse ramo jurídico. As questões relacionadas à Internet não
foram uma exceção, já que o Direito Informático sempre pareceu atender às necessidades
metodológicas da minha análise.

Em termos acadêmicos, eu sou um fiel defensor de questionar tudo, mesmo que


seja algo que eu muito concorde. Eu faço isso com a intenção de fortalecer o que já foi
feito e, se necessário, melhorá-lo. Além disso, tento tornar meu pensamento cada vez
mais crítico, a fim de contribuir nas discussões que ocorrem no campo do direito e
das novas tecnologias.

Desta vez, compartilho uma reflexão que vem de uma questão recente: que direito é
necessário para a governança da internet?

2_O DIREITO DA INTERNET COMO RESPOSTA

A nota de desafio que a Internet traz com ela não deve ser ignorada ou minimizada
pela ciência do Direito. O Direito Informático não ignora esses desafios, mas os
minimiza, colocando-os em uma cesta onde eles coexistem com todos os tipos de
questões relacionadas à tecnologia da informação e à tecnologia em geral

Como primeira ideia, eu diria que as questões pertencentes à Internet e à sua


governança devem ser abordadas a partir do ponto de vista de um ramo do direito
exclusivo para ela. Isso não deve ser tomado como um exagero, devido à ampla gama
de desafios decorrentes da expansão e crescimento da Internet, e sua relevância como
principal motor de inovação e desenvolvimento hoje.

Além disso, deve notar-se que a realidade


social decorrente da socialização da Internet é
complexa. A partir de um enfoque de direito, O DIREITO INFORMÁTICO
seu estudo não é preenchido por meio de NÃO IGNORA OS
nenhum dos ramos do direito existentes, DESAFIOS QUE A
porque nenhum deles pode satisfazer o grau de
INTERNET TRAZ,
especialização exigido pelas questões relativas à
MAS OS MINIMIZA,
governança da Internet.
COLOCANDO-OS EM
O Direito Informático não possui o grau CONJUNTO COM TODOS
de especialização referido. Em primeiro OS TIPOS DE QUESTÕES
lugar, é um ramo das ciências jurídicas que RELACIONADAS À
contempla a informática, e não a Internet, TECNOLOGIA DA
como instrumento e como objeto de estudo INFORMAÇÃO E À
(Téllez Valdés, 2009, p. 19). Embora seja verdade
TECNOLOGIA EM GERAL.
que a informática tenha uma estreita relação
com a Internet, também é verdade que a última

114
DIREITOS DIGITAIS _ JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA

tecnologia dá origem a problemas específicos que não devem ser analisados a partir da
perspectiva fornecida pela informática.

O termo Direito Informático, por si só, evoca a informática, e essa, por sua vez,
ao tratamento automático da informação. Diz respeito ao desenvolvimento e evolução
da Internet não apenas a ação de um computador, mas também as decisões tomadas
pelas pessoas. Neste contexto, o termo Direito Informático é impreciso, porque se refere
apenas à informação processada pelos computadores, mas não ao acúmulo de ações
humanas que dão forma ao desenvolvimento da Internet como a principal ferramenta
tecnológica desta era.

O Direito Informático, de fato, é um ramo jurídico muito geral para o estudo


de assuntos relacionados à governança da Internet. Lembremos que o Direito
Informático nasceu para dar uma resposta, do ponto de vista jurídico, a uma
realidade social construída pela erupção de computadores. Por que não pensar que,
com a erupção da Internet, é exigido um novo direito que dê respostas à realidade
social acumulada até agora?

Recentemente, tive a oportunidade de ler um bom artigo do Dr. Pablo García Mexía,
intitulado “Direito da Internet” (“Derecho de Internet”, no original em espanhol). Nesse
artigo, o Direito da Internet é chamado de muito novo, global, fotonizado, altamente
especializado, expansivo, e a opção que a ciência jurídica oferece para resolver os
problemas mais urgentes relacionados à Internet (García Mexía, 2016).

O autor também alude a uma razão muito interessante pela qual vale a pena adotar
o Direito da Internet: aqueles que a praticam devem ser altamente familiarizados, em
uma perspectiva multidisciplinar, com o mundo digital, de modo que

[…] a regra que propõem, a defesa ou a sentença que emitem, pode


chegar a ter um mínimo sentido tecnológico: em uma palavra,
pode simplesmente “funcionar” (como na engenharia se exige
da máquina) quando aplicada a uma realidade tecnológica de
referência (um buscador, um link, um algoritmo, etc.) (García
Mexía, 2016, p. 28, tradução nossa).

Pensar nos desafios que a Internet traz consigo em um ponto de vista amplo, como
pode ser o Direito da Internet, poderia resultar em decisões com pouco ou nenhum
“mínimo sentido tecnológico”, o que poderia prejudicar o desenvolvimento e a evolução
da Internet ou, na sua falta, ser inoperantes devido à própria natureza da rede. Deste
modo, vale a pena pensar em um direito de internet especializado.

Embora seja verdade que o artigo do Dr. Pablo García não se refira ao valor da Direito
da Internet para a governança da Internet, a verdade é que ele existe, uma vez que
seu grau de especialização obriga aqueles que o exercem a conhecer as características
técnicas da Internet e os aspectos do desenvolvimento social, econômico e político que
a Internet mantém. De fato, as análises realizadas por advogados especializados em
Direito da Internet deveriam guardar uma relação estreita com a ampla abordagem da
governança da Internet.

115
DIREITOS DIGITAIS _ JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA

Em suma, a governança da Internet exige um direito especializado que forneça


um marco metodológico para o estudo que, desde a ciência jurídica, se faz da Internet.
O Direito da Internet, recentemente adotado e ainda em construção, poderia ser esse
ponto de partida para contribuir para o desenvolvimento e a evolução da Internet
acompanhando as decisões tomadas no campo jurídico.

Entre os tópicos abrangidos pelo Direito da Internet, de forma enunciativa mas


não limitativa, estão: neutralidade da rede, comércio eletrônico, proteção de dados
pessoais online, cibersegurança, responsabilidade de intermediários, liberdade de
expressão online, etc. Em outras palavras, eu diria que tudo o que acontece na Internet
e que tem a ver com seu desenvolvimento e evolução deve ser visto do ponto de vista
do Direito da Internet.

3_CONCLUSÃO

O Direito da Internet é visto como a resposta que melhor se ajusta às necessidades da


governança da Internet. Outros ramos jurídicos, como no caso do Direito Informático, são
imprecisos e deixam de lado a especialização exigida no estudo de tópicos relacionados
à Internet.

Vale a pena repensar a interseção do Direito com a Internet, e estar ciente de que
o ponto de encontro deles é complexo e continuará a crescer em complexidade, já que
a Internet continua a ser o principal pilar da inovação e do desenvolvimento. Além
disso, os desafios decorrentes da realidade social construída pela Internet tornam clara
a necessidade de um direito especializado para cuidar deles.

A governança da Internet dificilmente será sustentada se aqueles que estão


comprometidos com ela não tiverem essa especialização que a Internet demanda.
Isso aplica-se àqueles que, como jovens e advogados, procuram contribuir para o
desenvolvimento da Internet como meio de promover a inovação tecnológica e fortalecer
os direitos humanos, a democracia e o estado de direito.

Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS

García Mexía, P. (2016). El Derecho de Internet. In Bes, F. P. Derecho de Internet.


Barcelona: Atelier. p. 17-37.

Téllez Valdés, J. (2009). Derecho Informático. México: McGraw Hill.

116
DIREITOS DIGITAIS _ JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA

JUAN DANIEL MACÍAS SIERRA


Analista de Informação na Presidência
da República do México e Secretário Geral
da Academia Multidisciplinar de Direito
e Tecnologias A.C. Membro da Internet
Society México, membro do Observatório
da Juventude (Youth Observatory) e da
Federação Ibero-Americana de Associações
de Direito e Informação.

117
CONTEÚDOS
E BENS
CULTURAIS
NA INTERNET
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

CROWDFUNDING DIGITAL
COMO EXEMPLO PARA A
CONSTRUÇÃO DE CAPITAL
SOCIAL E O CRESCIMENTO
DAS COMUNIDADES

CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA


Acadêmica no Departamento de Comunicação da Ibero
claudia.arrunada@gmail.com
México

119
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

_TEMÁTICA

Conteúdos e bens culturais na Internet

_RESUMO

Para a construção e consolidação das sociedades, é necessário


a coesão e a participação das pessoas na construção do
tecido social. A coesão social manifesta-se na participação
de organizações ou redes sociais, nas normas de confiança
interpessoal e na reciprocidade. Quando essas condições se
reúnem, a ação coletiva é simplificada, o mesmo que a resolução
comum de problemas na comunidade. Neste artigo, discute-se
o impacto da Internet na construção do capital social através
do aproveitamento de uma nova forma de contribuição, o
crowdfunding, popularizado pelas plataformas digitais.

Palavras chave: crowdfunding digital; capital social; bens


culturais; Internet

120
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

1_INTRODUÇÃO

Os países precisam de pessoas que se envolvam para crescer; as próprias pessoas


devem compreender que nem toda a responsabilidade de uma nação recai sobre o
governo e menos ainda se o governo não for auditado pela própria sociedade. Embora
inicialmente, quando a ideia de governo e democracia nascem na Grécia, a massa
fosse considerada como um elemento que pouco ou nada devia ser levado em conta,
dada sua inexperiência de tomar decisões de governo e de mandato (RABOTNIKOF, 2011),
hoje é necessária a sua voz e ação para fazer as coisas funcionarem, para que a ação
seja provocada. E é nestes tempos que a responsabilidade governo-sociedade torna-se
evidente: um depende do outro para o desenvolvimento mútuo.

A participação para o crescimento das nações está na colaboração mútua que as


pessoas fazem entre si (Fukuyama, 1996); você não pode demandar algo que não conhece
ou não viveu. Não por acaso, a democracia é “o poder do povo”, e o povo é necessário
para provocar a eficiência dos governos. Assim, “o que faz a democracia funcionar é
precisamente a vida comunitária” (Instituto Nacional Eleitoral [INE], 2014, p. 84), e isso
só é conseguido através da união das pessoas.

O fenômeno sociológico que reúne as pessoas através da colaboração é identificado


como “capital social”. Detalhadamente, “capital social” significa a variável que mede a
colaboração entre indivíduos e grupos de um coletivo formado por pessoas e a derivação
ou geração de oportunidades a partir dessa colaboração (Diaz, 2015). É através da
interação, fundada em relações de confiança e respeito entre as pessoas, que se tecem
redes sociais para a construção do capital social. “Atividades como a participação em
clubes e coros promovem a eficácia das instituições democráticas” (Putnam apud INE,
2014, p. 84, tradução nossa). Agente é o cidadão que participa. Se o cidadão não é um
agente, ou seja, não se aplica, não toma partido, não coloca em ação o que sabe para o
benefício da comunidade, não constrói cidadania nem capital social.

Dada a conexão intrínseca em rede que é feita a partir de computadores que estão
ligados uns aos outros como nós, uma das formas mais lógicas que este trabalho
considera para vincular as pessoas à comunidade no processo de provocar uma ação é
através da Internet.

2_O CROWDFUNDING E A CIBERCONFIANÇA

Há um problema na confiança que a sociedade tem nas instituições do poder.


Não é algo novo ou difícil de ser percepcionado, pois a todo o momento os meios de
comunicação encarregam-se de transmitir informações que as desacreditam:

[...] uma maioria dos cidadãos do mundo não confia em seus


governos ou seus parlamentos, e um grupo ainda maior de cidadãos
despreza políticos e partidos e acredita que seu governo não
representa a vontade popular (Castells, 2009, p. 376, tradução nossa).

O voto de confiança do povo dado a uma figura de poder governamental parece


extinguir-se, causando impotência e frustração que resultam na busca de outras

121
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

formas de apoio comunitário ou de procura de uma situação de vida melhor. Em um


mundo com muitas necessidades e onde a maioria das pessoas vive escondida atrás de
uma tela, este trabalho propõe que seja justo aí que o sentido de comunidade renasça.
Lipovetsky e Serroy dizem (2009, p. 269, tradução nossa): “o indivíduo atual e de amanhã,
permanentemente ligado por celular e laptop, com o conjunto das telas, está no centro
de um tecido reticulado cuja amplitude determina os atos de sua vida diária”. Será que
a tela que cativa os olhares pode servir como intermediária para que as comunidades
voltem a constituir-se?

Um exemplo disso está na rede de sustentabilidade econômica conhecida como


crowdfunding1, hoje em dia em alta. No crowdfunding, pessoas ou grupos apresentam
um projeto à comunidade em busca de fundos; trata-se de qualquer coisa que implique
o apoio financeiro de uma multidão para um propósito específico. No mundo digital, a
arrecadação maciça foi adotada pela população através da Internet. Agora, um ou muitos
proprietários de um projeto ou de uma ideia (que pode ser artística, empresarial, alguma
necessidade de saúde pessoal, uma patente ou um desejo que procura ser cumprido)
podem manifestá-los em uma plataforma para solicitar um montante monetário
específico (o qual chamam de “meta”) com argumentos para tentar convencer o público
global a participar, doando alguns dos números sugeridos e recebendo em troca, na
maioria das vezes, uma recompensa conforme o donativo e a mera satisfação de ter
feito parte de algo.

Como tudo acontece através da Internet, a operação funciona a um custo muito


baixo; as plataformas que difundem o projeto só cobram uma porcentagem da “meta”
monetária obtida ao fim. Se o projeto não atingir a arrecadação total do objetivo
econômico, nem o beneficiário nem a plataforma recebem o dinheiro e os rendimentos
são devolvidos aos doadores. Nos últimos dias, algumas delas cobram uma porcentagem
mais elevada (9% vs 5% de outras) para dar ao beneficiário o dinheiro coletado, mesmo
que não seja a quantidade que a meta estabelecia. A transação é segura e o interessado
tem muitas chances de receber a quantidade que precisa (Steinberg, 2012).

Através do crowdfunding digital é socializada uma necessidade que a comunidade


na Internet decide se deve ou não ser atendida. Com isso, estabelecemos que é possível
construir comunidade online porque, segundo Lipovetsky,

a rede das telas transformou nossa maneira de viver, nossa


relação com a informação, com o espaço-tempo, com as viagens
e o consumidor: tornou-se um instrumento de comunicação e de
informação, em um intermediário quase inevitável em nossas
relações com o mundo e com os outros. Viver é, de uma forma
crescente, estar colado à tela e conectado à rede (Lipovetsky, &
Serroy, 2009, p. 271, tradução nossa).

1 Crowdfunding pode ser traduzido como “micromecenato”, “financiamento” das massas,


“financiamento massivo”, “financiamento coletivo”. O conteúdo da Internet, sendo suscetível a
anglicismos, usa o termo original em inglês quase todo o tempo.

122
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

O crowdfunding tornou-se popular com as bandas de rock da cena independente


britânica e americana que tinham seguidores mas não eram comerciais o suficiente para
uma gravadora apostar nelas. Em 1997, o grupo britânico de rock neo-progressivo Marillion2
foi o pioneiro nessa iniciativa: quando eles se viram em uma situação econômica difícil,
enviaram um e-mail ao banco de dados de fãs, perguntando se eles concordariam em
pagar antecipadamente por uma cópia do seu novo álbum. A resposta foi inesperada e
positiva: eles receberam 12.000 encomendas de um disco que estava apenas começando a
ser planejado. Como foi pago pelas pessoas, a banda não teve que se submeter à pressão
criativa de uma gravadora, nem tiveram que ceder direitos de autor ou perder pontos de
utilidade pagando a um terceiro para a promoção e distribuição do material.

Ao contrário do crowdfunding de Marillion, a forma como essa prática atualmente


funciona, em um formato digital, é mais sofisticado e não depende necessariamente
da posse de um banco de dados, mas sim de uma boa estratégia de promoção. As
plataformas de financiamento digital não são mais do que páginas da web bem
suportadas por grandes servidores que permitem hospedagem de informações e
atuam como intermediários em uma transação econômica fechada através de serviços
de pagamento online, como Paypal, e pagamentos digitais com cartão de crédito. A
plataforma mais famosa é a Kickstarter.

Embora a rápida e constante evolução da Internet nos faça acreditar que a rede de
redes sempre existiu e evoluiu tão lentamente como os outros meios de comunicação,
não é assim e a Kickstarter comprova isso. A ideia nasceu em 2002 na cabeça de Perry
Chen, que estava procurando a maneira de levar shows inovadores para as cidades
que não eram muito populares (e que, obviamente, não estão incluídas nas agendas
dos shows), procurando que os próprios fãs pagassem com antecedência para trazer
os artistas. Uma tentativa para levar um dueto de jazz famoso a Nova Orleans não
funcionou. Mas o fracasso deixou uma pergunta fixa em sua cabeça: “O que aconteceria
se houvesse um espaço para colocar propostas em busca de pessoas para apoiá-las?”
Chen procurou Yancey Strickler (programador) e Charles Adler (Designer), e os três
deram vida, em 2009, à primeira plataforma online de crowdfunding: a Kickstarter3,
pela qual passaram todos os tipos de projetos, com vários delas alcançando suas metas
e alguns coletando até um milhão de dólares.

Um caso muito conhecido de coleta bem-sucedida na Kickstarter é o de Amanda


Palmer, artista plástica, performer, compositora, roqueira, ativista e agora também
escritora. A história de Amanda Palmer é peculiar, porque mistura a ideia de apoio
econômico com a formação de uma comunidade próxima com pessoas de todo o
mundo, graças à Internet (Palmer, 2014). Palmer, como muitos, começou como uma
artista de rua, em seguida passou a fazer shows em tempo parcial em um bar e depois
excursionou em torno de cidades diferentes no norte dos Estados Unidos (partindo de

2 A gravadora Virgin dedica um artigo em sua revista sobre isso; ele pode ser consultado em:
“How Marillion pioneered crowdfunding in music”<https: www.virgin.com/music/how-marillion-
pioneered-crowdfunding-in-music=””></https:>

3 A história é contada por Strickler no quinto aniversário da Kickstarter, aqui:<https://youtu.be/


qcR_UHV0tKE>

123
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

sua cidade natal, Boston). Em cada parada e em cada concerto, ela coletava os dados dos
assistentes para se “conectar” com eles através de duas formas: por e-mail e pelo seu
blog, que na primeira década do novo milênio eram os meios de comunicação digital
mais comuns – ler as histórias diárias de estranhos em diferentes países fortalecia
laços e criava comunidades.

A Internet não é para se descobrir coisas novas, simplesmente as amplia e massifica.


A popularidade de Amanda Palmer e sua banda, Dresden Dolls, cresceu analógica e
digitalmente, a ponto de ser “descoberta” por uma gravadora que se ofereceu para gravar
e distribuir seu primeiro material comercial. O sonho terminou quase tão cedo como
começou: seu contrato foi rescindido porque o material não vendeu o que era esperado,
embora, segundo a banda, ganharam mais do que eles poderiam ter esperado alguma
vez na vida (Palmer, 2014). Em um momento de fraqueza emocional e necessidade de
empatia, ela postou a situação em seu blog e assim as redes que a seguiam souberam
do problema; o apoio passou de moral a microeconômico e os fãs enviavam cheques ou
davam-lhe envelopes com alguns dólares no final dos shows sem pressão ou retribuição
alguma.

A partir disso, Palmer decidiu pedir ajuda formalmente através de um projeto no


Kickstarter, com objetivo de juntar o dinheiro necessário para um disco; ela acabou
recebendo dez vezes mais do que pedia4. O que foi que motivou que um grupo emocionado
de fãs doasse mais de um milhão de dólares? A relação entre as pessoas. A própria
Amanda Palmer escreve: “a fama não compra confiança; apenas a conexão com o outro
constrói essa confiança” (Palmer, 2014, p. 236, tradução nossa). Em termos práticos, a
Internet funciona como o maior intermediário que conecta indivíduos em uma grande
fonte multi-nodal5; mas, finalmente, são eles que decidem se envolvem-se com uma
causa ou não. “Crowdfunding não é caridade,
como alguns querem pensar. Meus ‘partidários’,
finalmente, estavam comprando um produto”
EMBORA BEM- (Palmer, 2014, p. 237, tradução nossa). No caso
SUCEDIDO, O PROJETO de Amanda Palmer, os resultados monetários
DE AMANDA PALMER coincidiam com o número de seguidores em
sua base de dados e redes sociais; foram eles
NÃO ESTEVE ISENTO
que contribuíram com o dinheiro porque havia
DE DESCONFIANÇA
uma relação direta com o projeto: o interesse em
PÚBLICA E MILHARES
apoiar o novo material da artista. Finalmente,
DE TROLLS não é a rede ou a plataforma que gera confiança,
QUESTIONARAM mas as pessoas.
SOBRE A UTILIZAÇÃO
DO DINHEIRO. Embora bem-sucedido, o projeto de Amanda
Palmer não esteve isento de desconfiança pública
e milhares de trolls questionaram sobre a

4 A história completa é narrada por Amanda Palmer em uma das Ted Talks com maior número
de acessos: <https://youtu.be/xMj_P_6H69g>

5 Uso o termo “nó” como Castells designou, para nomear as pessoas que se relacionam na
Internet.

124
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

utilização do dinheiro. Suas redes sociais e blog foram inundados com queixas e insultos,
questionando sobre sua forma de gerenciar o projeto, especulações sobre seu estilo de
vida e outros temas. Os críticos realmente não entendiam que o dinheiro arrecadado teria
pouca utilidade (econômica) para a artista: seria tudo gasto nas recompensas oferecidas
e no desenvolvimento do produto que já estava pré-pago. Perante as críticas, Palmer
argumenta: “O crowdfunding eficaz não se trata de confiar na bondade de estranhos,
trata-se de confiar na bondade de SUA gente” (Palmer, 2014 p. 244, tradução nossa).

3_O CASO DO CROWDFUNDING MEXICANO

O México se perceba, em primeira instância, como um país generoso. E sim, somos


generosos, quando dar implica fazê-lo apenas uma vez e por causas muito específicas
e efêmeras: catástrofes naturais, eventuais problemas econômicos de alguém próximo,
coisas momentâneas com as quais se pode cooperar sem manter um compromisso.
Quando ajudar envolve organização ou participação constante para alcançar um objetivo,
a situação muda. Michael Layton e Alejandro Moreno (2010) dizem que os mexicanos vivem
em um paradoxo de “dar”, porque são capazes de organizar várias coletas para resolver
um problema, mas também de enviar e-mails exigindo um “não” ao arredondamento,
classificando-o como fraude, em uma completa ambiguidade filantrópica.

No México, é uma realidade que “a solidariedade e o espírito de ajuda são geralmente


manifestados de forma não articulada e com um impacto limitado” (Layton, & Moreno,
2010, p. 14, tradução nossa).  Não é coincidência que isso seja assim. Desde a época
da conquista até nossos dias, temos vivido com a ideia de que quem deve cuidar dos
menos favorecidos são os «outros”, principalmente o governo ou a igreja. Além disso,
a corrupção e a impunidade minam a confiança. Culturalmente nós confundimos
“filantropia”, entendendo-a como “o amor que é demonstrado construtivamente pela
raça humana na ajuda altruísta a quem precisa mais, sem esperar algo em troca”
(Layton, & Moreno, 2010, p. 15, tradução nossa), com caridade, que de acordo com uma
visão religiosa é a ajuda obrigatória oferecida aos órfãos, viúvas e doentes, em sua
qualidade de “desamparados”, ou com assistencialismo, que é o socorro temporário
para solucionar uma necessidade. A filantropia concentra-se em “propor e desenvolver
atos que melhorem a qualidade de vida de uma pessoa ou grupo e promover obras de
benefício para a comunidade, mais do que em ajudar indivíduos isolados” (Zúñiga, 2005,
p. 7, nossa tradução). O mexicano não tem o hábito de ajudar a longo prazo; parece
que a contribuição deve ser apenas ocasional e com um impacto muito óbvio, para
que não diminua a sua confiança (Layton, & Moreno, 2010). No contexto de um país
profundamente machucado pela corrupção, que não tem um senso cultural de doação
e que não sabe a diferença entre um projeto recorrente de empoderamento social e
dar uma esmola ocasional para uma pessoa, nasce em 2011 a Fondeadora, primeira
plataforma digital mexicana de crowdfunding (Ramsey, 2013).

A Fondeadora foi estruturada como seus semelhantes mundiais: é um espaço digital


que permite que uma pessoa interessada carregue seu projeto para que as pessoas
possam ver e decidir apoiá-lo ou não economicamente. A troca de dinheiro é feita através
da Fondeadora, que cobra uma porcentagem pela exposição no portal, difusão entre

125
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

suas bases de dados e operação geral. Ao contrário dos exemplos internacionais que
permitem até mesmo que casais sem recursos carreguem uma iniciativa de angariação
de fundos que lhes permita organizar o casamento de seus sonhos, a Fondeadora
nasceu para apoiar principalmente projetos artísticos, de empoderamento social e
iniciativas de cidadania (visando sobretudo a ecologia). Para apoiar projetos pessoais do
tipo filantrópico (como problemas de saúde, apoio à educação de um estudante etc.), a
Fondeadora criou uma subseção, “Fondeadora Gente”, que derivou a “Donadora”.

A plataforma foi bem recebida, apesar de no México apenas 57.4% da população ter
acesso a uma conexão à Internet (Excelsior, 2016) e haver clara resistência dos mexicanos
para pagar online. Por essa razão, eles implementaram os pagamentos na loja de
conveniência Oxxo, para que os interessados pudessem contribuir sem necessidade de
ter um cartão de crédito ou de enfrentar o medo de registrá-lo na Internet (Ramsey,
2013). Até hoje, a Fondeadora entregou mais de 5 milhões de pesos mexicanos para
aqueles que atingiram suas metas6.

Mas, tal como o caso de Amanda Palmer já apresentado, alcançar o objetivo não
é algo fortuito e, ao contrário do que se pensa, a difusão nem sempre ajuda a saúde
social do projeto. Fazer parte da rede na convergência da comunidade com as novas
tecnologias gera exposição, mas também deixa o projeto vulnerável. No entanto, como
já dissemos, o funcionamento das redes digitais para a busca de fundos para projetos
sociais pode resultar em ações que beneficiem a construção do tecido social, que
incentivem a participação dos cidadãos e fortaleçam as sociedades através do chamado
“capital social”. Nas palavras de Robert Putnam:

A vida associativa é uma das características do capital social,


não apenas porque através das organizações e associações são
estabelecidos vínculos e redes sociais, ou se trabalha de acordo
com objetivos ou interesses comuns, mas também porque, através
delas, se desenvolvem normas de reciprocidade e confiança, bem
como padrões de comportamento cooperativo (Putnam apud
Layton, & Moreno, 2010, p. 113, tradução nossa).

A desconfiança e falta de participação no México são fenômenos que devem ser


analisados de perto para serem superados e não interferirem na construção do
capital social, pois ambos se complementam, evitando as mudanças destinadas ao
fortalecimento do tecido social. Em outras palavras, combater os vícios sociais dos
mexicanos que, nas palavras de Paz y Ramos, “são seres sociais desconfiados, pouco
organizados e imersos em sua própria solidão” (Paz y Ramos apud Layton, & Moreno,
2010. p. 95, tradução nossa). Sobre isso, Craig e Cornielius, mencionados no Relatório da
Qualidade da Cidadania do Instituto Nacional Eleitoral [INE], sublinharam a importância
das atitudes não políticas, como a confiança e a participação social, para a fundação de
um sistema político democrático. Ao analisar o caso mexicano, encontraram pontos
semelhantes aos que Layton e Moreno, e Paz y Ramos já tinham estabelecido. Eles
indicam que “há pouca democracia no México porque há pouca participação dos cidadãos,

6 No final de 2016, a Kickstarter comprou a Fondeadora.

126
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

uma vida comunitária fraca e cidadãos com pouca capacidade de se organizarem fora
dos canais corporativistas” (INE, 2014, p. 84, tradução nossa).

Neste sentido, valeria a pena salientar que, embora a falta de participação e


desconfiança do mexicano seja comprovada e evidente, também deve ser considerar-
se que isso pode ser alterado, pois existem elementos que o demonstram, como o fato
de que existem mais de 50.000 Organizações da Sociedade Civil mexicanas que estão
contribuindo para a reconstrução do tecido social no país a partir de suas diferentes
atividades altruístas. Layton e Moreno demonstram que a terra não é árida, uma vez
que o capital social continua a operar nos setores rurais do país, restando apenas
permeá-lo:

[…] o sentido de comunidade está amplamente mais desenvolvido


nas áreas rurais do nosso país. Uma possível explicação para
esse fenômeno é talvez a extensa rede social que algumas
comunidades têm como resultado dos valores tradicionais que
as acompanham, como a mordomia, fortes redes comunais,
forte sentido de solidariedade e as relações de troca através dos
chamados ‘compadres’ (Layton, & Moreno, 2010. p. 140, tradução
nossa).

Assim, é claro que, embora a situação mexicana seja complicada, não é um terreno
árido que não possa ser resgatado através de trabalho colaborativo e financiamento
massivo como o crowdfunding propõe.

A chave está em assimilar que a sociedade integrada que evolui é construída a partir
dos cidadãos. Ou seja, já falámos sobre a participação como eixo fundamental para que
as democracias se estabeleçam, fortaleçam e cresçam; a instituição governamental é
consolidada a partir da sociedade. Nesse sentido, o que deve ser trabalhado é o impulso
a ser dado para os cidadãos do México entenderem que o governo não é tudo, não é o
solucionador eterno de problemas, nem deve suportar toda a responsabilidade de uma
nação (é importante enfatizar que isso não o exime de sua responsabilidade e trabalhos
na liderança de uma nação). O ponto é: para que se sustente, um país depende do
trabalho conjunto entre o seu povo e suas instituições, da participação das pessoas que
colaboram PARA as pessoas e do fortalecimento
das redes de tecido social.

Nas mudanças geracionais e na força da NAS MUDANÇAS


geração millennial temos a oportunidade de o GERACIONAIS E NA
capital social ser consolidado através do digital.
FORÇA DA GERAÇÃO
De acordo com a Teoria Geracional de Strauss-
MILLENNIAL TEMOS A
Howe (1997), os chamados millennials (Geração
OPORTUNIDADE DE O
Y), indivíduos nascidos entre 1982 e 2004, são
a primeira geração de pessoas instruídas,
CAPITAL SOCIAL SER
diligentes, conscientes dos avanços e fracassos CONSOLIDADO ATRAVÉS
históricos com base no conhecimento do DO DIGITAL
que viveram seus pais e avós, tornando-os

127
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

mais sensíveis e apegados a uma cultura de crescimento comunitário e sustentável.


O arquétipo com o qual eles são descritos é heroico. No entanto, serem indivíduos que
estão preocupados e envolvidos também os torna meticulosos e exigentes; o imediatismo
digital com o qual eles cresceram também os torna pessoas com pouca paciência e
muito reivindicadores. Colocando-os na esfera do crowdfunding, isso faz com que eles
apoiem uma causa se a acharem valorosa, exigindo sempre contas e feedback sobre o
que é feito com os fundos.

4_CONCLUSÕES

“A forma como pensamos e sentimos determina a forma como


agimos. E as mudanças no comportamento individual e na ação
coletiva certamente influenciam e modificam gradualmente as
normas e instituições que estruturam as práticas sociais”
(Castells, 2009, p. 393, tradução nossa)

Ao longo deste trabalho, explicou-se a importância do capital social como um


ingrediente fundamental para a construção e consolidação para o crescimento das
sociedades. O capital social é desenvolvido a partir da participação das pessoas dentro e
para suas comunidades, na busca de benefícios para todos. A ação social da comunidade
faz ativar o interesse e o conhecimento dos problemas locais, a procura de um trabalho
conjunto ou a exigência às instituições governamentais para resolvê-los.

Castells aponta, em seu livro “Comunicação e Poder” (“Comunicación y Poder”), que


para uma população assumir uma causa é preciso vivê-la. Da mesma forma, indicou-
se a análise que vários autores fazem sobre a desconfiança inerente do mexicano,
dada principalmente pela corrupção que prevalece no país há vários anos, a incerteza
provocada por um sistema de governo partidário, mutável e que cuida de seus próprios
interesses, e o próprio vício cultural que se tem em relação ao outro, já que no México as
pessoas não se consideram confiáveis.

Quais seriam as soluções para esses problemas? Tomando como exemplo o


crowdfunding digital, identificamos que a participação da sociedade em benefício
de uma causa funciona e tem a capacidade de permanecer. Isso nos leva a concluir
que uma boa maneira de provocar a participação é através de atividades em que se
estabeleça a ajuda mútua. Compreendendo as necessidades, é possível solucioná-las
e provocar ações que permitam erradicá-las, ou então exigir efetivamente ao governo
para que sejam atendidas. Também identificamos que a transparência será um fator
muito importante para que a relação de confiança cresça e permaneça.

Há muito para se trabalhar. Com base na ideia de que o caminho para a construção
do capital social está nas comunidades, essas têm de assumir a responsabilidade pela
construção da confiança social através de suas atividades e recursos que, seguindo a
lógica já analisada neste trabalho, mais cedo ou mais tarde levará à busca da sociedade
por mecanismos de transparência em todos os setores.

Artigo originalmente escrito em espanhol

128
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

_REFERÊNCIAS

Arenal, C. (1861). La beneficencia, la filantropía y la caridad. 2 de noviembre de 2015.


Imprenta del Colegio de Sordo-Mudos y Ciegos. pp. 5-6. Recuperado de <http://www.
filosofia.org/aut/001/1861are.htm>

Butcher, J., & Serna, M. G. (2006). El Tercer Sector en México: Perspectivas de


Investigación. México Distrito Federal: Instituto Mora-CEMEFI.

Carlos, M., & Rodríguez, A. (2010). De la Estructura de Oportunidades Políticas a la


Identidad Colectiva. Apuntes sobre el poder y los movimientos sociales. Espacios
Públicos, Vol. 13, Núm. 27, 2010, pp. 187-215

Castells, M. (2009). Comunicación y Poder. Madrid, España: Alianza Editorial.

Centro Mexicano para a Filantropia (Centro Mexicano para la Filantropía) (2016).


Compendio Estadístico del Sector No Lucrativo 2015. Ciudad de México: CEMEFI.

Díaz, M. (2015). ¿Qué tan influyente eres? El capital social en la era de Internet.
Hipertextual. Recuperado de <https://hipertextual.com/2015/09/capital-social-internet>

Excelsior (2016). ¿Sabes cuántos mexicanos son usuarios de Internet? Excelsior.


Recuperado de <http://www.excelsior.com.mx/hacker/2016/03/14/1080806>

Howe, N., & Strauss, W. (1997). The Fourth Turning: What the Cycles of History Tell Us
About America’s Next Rendezvous with Destiny. New York: Broadway Books.

Howe, N., & Strauss, W. (2000). Millennials Rising: The Next Great Generation. Knopf
Doubleday Publishing Group.

Instituto Nacional Eleitoral, & Colégio do México (Instituto Nacional Electoral, &
Colegio de México) (2014). Informe País sobre la Calidad de la Ciudadanía en México.
Ciudad de México: INE.

Layton, M., & Moreno, A. (2010). Filantropía y Sociedad Civil en México. México Distrito
Federal: ITAM.

Martínez, D. (2014). El porqué de las dudas con el Teletón. Sin Embargo. Recuperado de
<http://www.sinembargo.mx/08-12-2014/1186509>

Olvera, A. J. (2011). Sociedad Civil, Gobernabilidad Democrática, Espacios Públicos y


Democratización: los contornos de un proyecto. Cuadernos de la Sociedad Civil, 1, 11-72.

Palmer, A. (2014). The Art of Asking. New York, United States of America: Hachette Book
Group.

Putnam, R. (2000). Bowling Alone: America’s Declining Social Capital (Jugando boliche
solo: el declive del capital social en América). Saddleback.edu. Recuperado de <http://
www.saddleback.edu/faculty/agordon/documents/Bowling_Alone.pdf>

129
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA

Rabotnikof, N. (2011). Los sentidos de lo público. In En busca de un lugar común. El


espacio público en la teoría política contemporánea. México Distrito Federal: UNAM.
pp. 27-47.

Ramsey, E. K. G. (2013). Fondeadora, una forma de costear proyectos imposibles. Animal


Político. Recuperado de <http://www.animalpolitico.com/2013/02/fondeadora-una-
forma-de-costear-proyectos-imposibles/>

Steinberg, S. (2012). The Crowdfunding Bible: how to raise money for any startup, video
game or Project. United States. Overload Entertainment, LLC. Read.Me

Zúñiga, V. (2005). La filantropía en los Estados Unidos. El modelo filantrópico


estadounidense como una alternativa para crear una cultura altruista en México.
Universidade das Américas, Puebla. Recuperado de <http://catarina.udlap.mx/u_dl_a/
tales/documentos/lri/zuniga_p_v/portada.html>

CLAUDIA C. ARRUÑADA SALA


Claudia C. Arruñada Sala é comunicóloga
pela Universidade Iberoamericana, com mais
de dez anos de experiência em promoção,
gestão e desenvolvimento institucional,
trabalhando principalmente para o governo
federal mexicano em temas educativos e de
segurança nacional. Atualmente colabora
com diferentes projetos de análise de mídias,
vinculação e filantropia.

130
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

DIREITO À INFORMAÇÃO E
DIREITOS DE AUTOR:
PARADIGMAS NA ERA DIGITAL

RAFAEL RÍOS NUÑO


Assessor jurídico na Coordenação de Transparência e Arquivo
Geral da Universidade de Guadalajara
lic.rafaelrn@hotmail.com
México

JOSÉ BENJAMÍN GONZÁLEZ MAURICIO


Assessor jurídico adjunto na Comissão Executiva Estatal de Aten-
ção a Vítimas de Jalisco na área de Direitos Humanos
lic.benjamin.gm@gmail.com
México

131
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

_TEMÁTICA

Conteúdos e bens culturais na Internet


Problemas emergentes da Internet

_RESUMO

Na atualidade, nos encontramos em um mundo moderno


e globalizado. A era das Tecnologias da Informação e a
Comunicação, assim como a informação que circula livremente
pela web, facilitaram a aprendizagem ágil e interativa nas
instituições de ensino e também favoreceram aos habitantes
dos estados democráticos a tomada de decisões. Contudo,
alguns desses conteúdos encontram-se protegidos por direitos
de autor. A controvérsia posta à disposição do leitor não é nova.
Entretanto, o artigo aborda temas que buscam dar uma solução
ao problema.

Palavras chave: direito à informação; direitos de autor; TIC

132
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

1_INTRODUÇÃO

“Uma sociedade que não está bem informada não é uma sociedade
verdadeiramente livre”.
Corte Interamericana de Direitos Humanos1

Ackerman e Sandoval (2015) evidenciam que o direito à informação evoluiu por


extensão do direito de liberdade de opinião e de expressão, reconhecidos no artigo 19 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no artigo 19 do Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos e no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos. Do mesmo modo, Cendejas (2007, tradução nossa) afirma que

[…] é a liberdade de expressão que amplia seu âmbito para


aperfeiçoar-se, para definir competências que realmente a façam
efetiva e para incorporar a evolução científica e cultural de nossos
dias e que são indispensáveis ter em conta; assim como para
garantir à sociedade informação verdadeira e oportuna como
elemento indispensável no Estado democrático e plural […]

Nesse sentido, a Suprema Corte dos Estados Unidos, em seu trabalho mais recente
de interpretar a primeira emenda, instaura que a liberdade de expressão acarreta a
liberdade de escutar e a proibição do Estado de limitar a informação à qual podem
recorrer o público (Ackerman, & Sandoval, 2015, p.14).

É importante destacar que um país pioneiro é, sem sombra de dúvidas, a África


do Sul, que marcou em sua Constituição, na seção 32, que “Todos têm direito de ter
acesso a) qualquer informação em posse do Estado e b) qualquer informação em posse
de outra pessoa e que seja requerida para o exercício ou a proteção de quaisquer direitos”
(Ackerman, & Sandoval, 2015, p. 23, tradução nossa)

2_TENSÕES E CONFLITOS DO DIREITO À INFORMAÇÃO E


DOS DIREITOS DE AUTOR NA ERA DIGITAL

Com relação ao anteriormente narrado, o direito à informação, em conformidade


com o princípio de interdependência, interage e se nutre de diversos direitos, tais como
a educação, a cultura e o acesso à justiça. No entanto, é inquestionável manifestar as
tensões que poderia ter com outros direitos, como a privacidade, a proteção dos dados
pessoais, a própria imagem, a honra e, o caso que nos ocupa, os direitos de autor.

Dentro da plataforma universal, vê-se no artigo 27, parágrafo 2º, da Declaração


Universal dos Direitos Humanos, o amparo aos criadores de obras originais e o incentivo
aos países-membros para promover, respeitar, proteger e garantir tal prerrogativa.
Desmembrando o corpus iure internacional, os autores têm reconhecimento adicional
no artigo 15, inciso c, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos Sociais e

1 Compulsory Membership in an Association Prescribed by Law for the Practice of Journalism


(1985). In Advisory Opinion OC-5/85, 13 de novembro. Washington: Corte Interamericana de Direitos
Humanos, série A, número 5.

133
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

Culturais (PIDESC); na Convenção de Berna, no Tratado da Organização Mundial da


Propriedade Intelectual (OMPI) sobre Direito Autoral (WCT, na sigla em inglês) e em
outros tratados internacionais administrados pela organização; assim como no Acordo
sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio
(ADPIC), administrado pela Organização Mundial do Comércio.

De conformidade com a esfera regional interamericana destacam-se o artigo 14,


parágrafo 1º, inciso c, do Protocolo de San Salvador, além da Convenção Interamericana
sobre os Direitos de Autor em Obras Literárias, Científicas e Artísticas. Ratificando
este compromisso imperativo, se reconheceu sua justiciabilidade no caso Palamara
Iribarne vs. Chile, de 2005, como torna evidente o Dr. Eduardo de la Parra Trujillo
(2015), nos parágrafos 102, 103 e 107, ao aludir que a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (Corte IDH) faz uma interpretação progressiva, vinculando o direito autoral
com a propriedade privada, a liberdade de pensamento e de expressão, reconhecidos
no Pacto de San José.

Como é bem sabido, as tensões entre os direitos que são tema deste artigo não
são novas e, pela extensão do documento, não adentraremos no estudo a fundo da
interminável ponderação do direito à informação e os direitos de autor. Em virtude
disso, o trabalho somente pretende ser ilustrativo para o leitor.

O problema nasce quando, sem a autorização do autor ou do titular, se realizam


reproduções ilegítimas na web ou, pior ainda, as comercializam sem o devido
pagamento aos criadores. Os titulares dos direitos de autor argumentam que esse ato
de reprodução e de comunicação ao público prejudica gravemente seus interesses,
sobretudo os econômicos. Por outro lado, os usuários se amparam sob a proteção do
direito à informação, à cultura e à educação.

Para o conflito anterior, surgiram algumas propostas para dar o devido tratamento
harmonizador dos interesses em conflito. O Dr. José Manuel Magaña Rufino (2013),
seguindo o artigo 9º, parágrafo 2º, da Convenção de Berna, e o artigo 13 do ADPIC, destaca
a já conhecida regra dos três passos da natureza acumulativa, que dá origem a algumas
exceções ao direito de autor, como a citação de textos, quando se trata de acontecimentos
atuais, a cópia privada, o respaldo de segurança e a crestomatia2. Contudo, as exceções
não amparam a reprodução completa da obra em todos os casos.

Com a intenção de proteger as obras online, os titulares dos direitos têm de utilizar
medidas tecnológicas de proteção com base no estipulado no WCT e no Tratado da OMPI
sobre Interpretação ou Execução e Fonogramas (WPPT, na sigla em inglês), situação que
provocou a mobilização de vários setores, sobretudo o bibliotecário e as instituições de
ensino. A Fundación Conector e Open Connection tentaram conciliar, sugerindo que a
informação seja entregue de forma confidencial a tais setores e que eles possam desativar
a confidencialidade em caso de preservação digital, cópia privada ou quando passe para
o domínio público. Igualmente, Kenneth Crews (2008) propõe que na educação virtual ou
à distância as obras se outorguem com disposições que permitam a fácil manipulação

2 Nota do tradutor: antologia.

134
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

pelos estudantes (formatos abertos), fazendo-


O DIREITO À lhes a advertência que tais obras não devem
INFORMAÇÃO transcender além da comunidade acadêmica,
INTERAGE E SE nem devem ser objeto de nenhum tipo de
distribuição ou comercialização.
NUTRE DE DIVERSOS
DIREITOS, TAIS COMO A Uma das propostas mais polêmicas no
EDUCAÇÃO, A CULTURA momento é o copyleft3. A professora Diana
E O ACESSO À JUSTIÇA Arredondo Ramírez (2016) explica que a raiz
do movimento do software livre iniciado por
Richard S. Stallman surgiu nos anos 80, nos
EUA, com a busca pela contribuição de todos para um projeto em comum. O copyleft é
uma licença aberta e flexível que autoriza o uso, modificação e redistribuição de obras
ou programas, de forma livre4 e exigindo que os mesmos direitos sejam preservados
nas versões modificadas.

Também existe a postura da Creative Commons, essa uma organização sem fins
lucrativos cujos instrumentos jurídicos de caráter gratuito permitem compartilhar
e utilizar a criatividade, assim como o conhecimento. A finalidade é proporcionar
infraestrutura que permita maximizar a criatividade digital e a inovação através do
acesso autorizado. Diferentemente dos direitos de autor, em que todos os direitos estão
reservados, na Creative Commons apenas alguns direitos estão reservados.

Em outro sentido, é importante a análise das políticas legais que praticam sites
como o Facebook, o Twitter ou YouTube. Em um primeiro momento, o usuário é o
titular dos conteúdos que são carregados na plataforma, mas no momento de fazê-
lo pode conceder aos sites uma licença mundial, não exclusiva, acessível e gratuita5
com direitos de sublicença, transferível para que outros possam usar os conteúdos,
reproduzi-los, modificá-los ou distribuí-los, até com fins comerciais. Contudo, tais sites
reconhecem e respeitam os direitos de propriedade intelectual de terceiros, portanto se
reservam o direito de eliminar o conteúdo que supostamente infrinja esses direitos sem
aviso prévio e sob sua total discrição, assim como sem indenização alguma a seu favor
(exceto de porto seguro ou safe harbor).

Antes de iniciar um procedimento para retirar um conteúdo ilícito da Internet,


o professor Gerardo Muñoz de Cote (2016) sugere que se analise estrategicamente a
jurisdição e a lei aplicável, o agente e o demandado, o conteúdo infringido, os custos
e tempos, assim como a ação por disseminação (Streisand effect6). Feito isso, dá-se

3 O termo copyleft começou a ser utilizado nos anos 70 como uma deformação humorística do
copyright, aludindo à reivindicação da liberdade frente aos direitos de autor.

4 Liberdade não necessariamente gratuita.

5 Em alguns casos até se pode entregar o conteúdo “livre de direitos de autor”.

6 Nota do revisor: o “Efeito Streisand” é um fenômeno da Internet que ocorre quando uma
tentativa de censurar ou remover algum conteúdo da rede acaba tendo efeito contrário, resultando
em sua vasta replicação e acesso. Foi assim nomeado por Mike Masnick em 2003, após caso

135
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

início a um processo similar contido na DMCA (Digital Millennium Copyright Act)7:


1. O titular do conteúdo envia um aviso para o ISP (Provedor de serviço de Internet);
2. A ISP desabilita o conteúdo; 3. A ISP avisa o suposto infrator da reclamação; 4. O
suposto infrator pode enviar para o ISP uma contra-notificação (counter cleaner); 5.
A ISP restaura o acesso ao conteúdo; 6. O titular inicia um procedimento legal para a
desativação permanente do conteúdo; 7. Envia-se uma ação legal para o ISP e este deve
desabilitar permanentemente o conteúdo.

2_EPÍLOGO

a. Uma das petições mais aclamadas é, sem sombra de dúvidas, as que realizam
no dia a dia o setor bibliotecário, de arquivos e as instituições de ensino.
Torna-se importante destacar que tais entidades não pretendem, em nenhum
momento, desconhecer os direitos de autor, menos ainda infringir a lei; mas
o que buscam é uma harmonização de vontades por parte do legislador, para
que se lhes reconheçam legalmente mais e melhores exceções, e assim possam
cumprir com seu nobre trabalho de difundir a informação, a cultura e a
educação, sobretudo virtualmente ou à distância.

b. Outro dos temas controversos é o da responsabilidade dos ISP. O professor


universitário Federico Pablo Vibes (2015) destaca que o debate está no fato
de “que se o intermediário contribui com o prejuízo ocasionado, mediante a
colocação à disposição da tecnologia que torna possível a infração, e além disso
ganha dinheiro com o prejuízo, então deve responder como infrator secundário”
(Vives, 2015, p. 459, tradução nossa).

Para ilustrar a problemática anterior, o citado catedrático em sua obra (Magaña,


2015) manifesta a resolução da Corte de Apelação do Segundo Circuito dos Estados Unidos
no caso Viacom vs. YouTube. A Corte resolveu, depois das interpretações que realizou do
artigo 512, inciso c, da DMCA, que o ISP não podia invocar a exceção de porto seguro, uma
vez que não reagiu de maneira imediata para remover ou impedir o acesso do material;
além disso, a Corte aplicou ao caso, ainda que com certas limitações, a doutrina da
cegueira voluntária.

c. Um dos desafios que deverão enfrentar os titulares dos direitos é o de determinar


a lei aplicável e o tribunal competente. Nessa diretiva, o Dr. Antonio Hidalgo
Ballina (2013, tradução nossa) destaca que “o funcionamento descentralizado
da rede de redes torna quase impossível hoje em dia aplicar e regular as ações
humanas que pela própria rede se expressam”, ou seja, a dificuldade de aplicar
as leis nos territórios físicos. Por sorte, o Tribunal de Justiça da União Europeia

envolvendo a atriz e cantora Barbra Streisand. Alegando questões de privacidade, ela processou um
fotógrafo e um site em 50 milhões de dólares para que eles retirassem da Internet uma foto aérea
em que sua mansão na costa da Califórnia era visível. A notícia fez com que a foto tivesse um
aumento expressivo de acessos, logo tomando proporção contrária à que a artista pretendia.

7 Legislação dos Estados Unidos que, entre outras questões, estabelece limitações à
responsabilidade dos ISP (Internet service provider, ou provedor de serviço de Internet).

136
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

(Gran Sala), no caso Google Spain, S.L., Google Inc. Vs Agência Espanhola de
Proteção de Dados (AEPD), Mario Costeja Gonzále (Magaña, 2015), que embora seja
certo que o caso é um assunto de proteção de dados e tal jurisprudência não seja
vinculativa aos Estados não-membros, poderia servir como soft law, posto que
outro dos temas do litígio foi precisamente resolver a competência e a jurisdição
na relação com o ISP. Nesse sentido, o Tribunal resolveu (tradução nossa):

O artigo 4, parágrafo 1, letra  a), da Diretiva 95/46 deve ser


interpretado no sentido de que se leva a cabo um tratamento de
dados pessoais no marco das atividades de um estabelecimento
do responsável de tal tratamento, em território de um Estado-
membro, no sentido de tal disposição, quando o gestor de um
motor de busca cria no Estado-membro uma sucursal ou uma filial
destinada a garantir a promoção e a venda de espaços publicitários
propostos pelo mencionado motor e cuja atividade se dirige aos
habitantes deste Estado-membro. (grifo nosso)

O México seguiu o exemplo com outro assunto de proteção de dados pessoais, no


expediente PPD.0094/14 contra o Google México, S. de R.L. de C.V.8 (Google México),
resolvido pelo então Instituto Federal de Acesso à Informação e Proteção de Dados
Pessoais (IFAI)9, quando um particular queria tornar efetivo seu direito de oposição e
cancelamento de dados pessoais. O Google México argumentou em sua defesa que não é
a pessoa moral proprietária que presta, nem administra, a operação do serviço de motor
de busca “Google”, orientando assim o titular a dirigir-se a Google International LLC e
Google Inc., cujo domicílio se encontra na Califórnia, EUA. Contudo, o órgão garantidor
do México não considerou como válida tal defesa ao evidenciar que do instrumento
notarial nº. 38,627, Google México, S. de R.L. de C.V., está integrada pelos sócios Google
International LLC e Google Inc. e que, além disso, na citada ata constitutiva se menciona
seu objeto social (tradução nossa):

A comercialização e venda de publicidade online e produtos e


serviços de comercialização direta, no México ou no exterior, por
conta própria ou de terceiros, assim como a prestação de todo tipo
de serviços através de meios eletrônicos, incluindo, sem limitar,
serviços de motor de busca, de mensagem instantânea, de correio
eletrônico, de armazenamento, reprodução e retransmissão de
dados e serviços similares anexos e conexos. (grifo nosso)

O então IFAI revogou a resposta do Google México, requisitou que se fizessem efetivos
os direitos de oposição e cancelamento do titular e ordenou iniciar o procedimento
de imposição de sanções, confirmando assim sua competência e jurisdição sobre o
famoso motor de busca.

8 O leitor pode consultar o texto completo da resolução em <http://inicio.ifai.org.mx/pdf/


resoluciones/2014/PPD%2094.pdf>

9 Depois da reforma constitucional de 2014 se outorgou plena autonomia ao órgão garantidor e


se transformou no Instituto Nacional de Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais (INAI).

137
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

Com relação ao anteriormente narrado,


e parafraseando o Dr. Federico Pablo Vibes TAMPOUCO OS DIREITOS
(2015), a inovação trouxe novos benefícios
À INFORMAÇÃO,
que contribuíram para a informação e a
A EDUCAÇÃO E A
comunicação. No entanto, se não se respeitam
CULTURA ESTÃO
os conteúdos de propriedade intelectual de
terceiros, isso significa menos ganhos para os
NECESSARIAMENTE EM
titulares dos direitos e, como consequência, BRIGA COM OS DIREITOS
menos investimento para a criação de novas DE AUTOR
obras.

Finalmente, vale a pena dizer que a tecnologia não é boa nem má, depende do
uso que lhe é dada. Tampouco os direitos à informação, a educação e a cultura estão
necessariamente em briga com os direitos de autor, simplesmente os primeiros, em
alguns casos, estão condicionados: na hipótese de querer-se usar uma obra protegida,
é necessário contar com a permissão do titular do direito, uma vez que este investe
tempo, esforço e até dinheiro para criar suas obras; portanto, é justo que se reconheça
seu esforço, pedindo previamente as autorizações para usar livremente a obra ou
pagando-o, quando aplicável. Reitera-se que é indiscutível a necessidade de um
verdadeiro equilíbrio entre a propriedade intelectual e o livre fluxo da informação.

Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS

Ackerman, J., & Sandoval, I. (2015). Leyes de Acceso a la Información en el Mundo.


Cuadernos de Transparencia. Vol. 07. México: INAI.

Aguilar, J. (2008). Transparencia y democracia: claves para un concierto. Cuadernos de


Transparencia Vol. 10. México: INAI.

Ballina, A. H. (2013). Derecho informático. México: Flores Editor y Distribuidor.

Cendejas, M. (2007). Evolución histórica del derecho a la información. Revista de


Derecho Comparado de la Información, 10. México: Instituto de Investigações Jurídicas
da UNAM. Recuperado de <http://www.juridicas.unam.mx/publica/rev/decoin/cont/15/
art/art1.htm>

De la Parra, E. (2015). Libertad de expresión y acceso a la información. Colección de


Textos sobre Derechos Humanos. México: CNDH.

Díaz, Á. (2008). América Latina y el Caribe: La propiedad intelectual después de los


tratados de libre comercio. Nações Unidas, CEPAL. Recuperado de <http://repositorio.
cepal.org/bitstream/handle/11362/2526/S0600728_es.pdf?sequence=1>

138
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

Fernández, C., & Chaves, J. (2010). Excepciones al derecho de autor en beneficio de las
bibliotecas: situación de América Latina y el Caribe. Chile: IFLA. Recuperado de <http://
www.ifla.org/past-wlic/2010/121-molina-es.pdf>

Fundação Conector, & Open Connection (2016). Texto de observaciones del sector
bibliotecario nacional al proyecto de ley por la cual se modifica la ley 23 de 1982 y se
adiciona la legislación nacional en materia de derecho de autor y conexos. Recuperado
de <www.conector.co>

Kenneth, C. (2008). Estudio sobre las limitaciones y excepciones al derecho de autor


en beneficio de bibliotecas y archivos. Genebra: Organização Mundial da Propriedade
Intelectual. Recuperado de <http://www.wipo.int/edocs/mdocs/copyright/es/sccr_17/
sccr_17_2.pdf>

Magaña, J. (2013). Curso de derechos de autor en México. México: Novum.

Magaña, J. (2015). El caso Viacom vs YouTube: un nuevo paso hacia la delimitación de


la responsabilidad de los intermediarios en Internet por infracciones al derecho de
autor. Estudios en materia de propiedad industrial e intelectual. México: Novum.

Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (2010). El Derecho de Acceso a la


Información en el marco jurídico americano. Comissão Interamericana de Direitos
Humanos. Recuperado de <http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/publicaciones/
ACCESO%20A%20LA%20INFORMACION%20FINAL%20CON%20PORTADA.pdf>

Resolução contra Google México INAI (2014). Recuperado de <http://inicio.ifai.org.mx/


pdf/resoluciones/2014/PPD%2094.pdf>

Sentença do Tribunal de Justiça (Gran Sala) (2014). Recuperado de <http://curia.europa.


eu/juris/document/document.jsf?docid=152065&doclang=ES>

139
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ RAFAEL RÍOS NUÑO + JOSÉ B. GONZÁLEZ MAURICIO

RAFAEL RÍOS NUÑO


Advogado pela Universidad de Guadalajara
e mestrando em Transparência e
Proteção de Dados Pessoais pela mesma
instituição. Também é mestrando em
Propriedade Industrial, Direitos de Autor
e Novas Tecnologias pela Universidad
Panamericana.

JOSÉ BENJAMÍN GONZÁLEZ MAURICIO


Advogado pela Universidad de Guadalajara,
amicus curiae da Corte Interamericana de
Direitos Humanos em opinião consultiva do
Panamá (2015).

140
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

A PROPRIEDADE INTELECTUAL
NA ECONOMIA DIGITAL

SILVANA CRISTINA RIVERO


Advogada na Universidade de Buenos Aires, mestrado em Direito
Empresarial pela Universidade de San Andrés
silvanacrivero@gmail.com
Argentina

141
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

_TEMÁTICA

Conteúdo e bens culturais na Internet


Problemas emergentes da internet

_RESUMO

As obras amparadas pelo regime de propriedade intelectual


devem ser protegidas na era digital, tanto no âmbito offline
como online. Consciente das perspectivas que a economia digital
gera, cabe questionável como garantir que essa observância
seja efetiva e se é conveniente adotar outras medidas para
facilitar o cumprimento dos direitos na rede ou, pelo contrário,
ajustar ou reduzir as existentes. Nesse sentido, é vital garantir
o objetivo final para qual a propriedade intelectual se propõe no
campo tecnológico, que não é outro a não ser o de incentivar o
desenvolvimento da inovação.

Palavras chave: inovação; propriedade intelectual; economia


digital

142
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

1_INTRODUÇÃO

Nesta era onde a economia digital tem uma função preponderante, as Tecnologias
da Informação e Comunicação (TIC) são fundamentais para o desenvolvimento
econômico. Entre os ativos que são implantados e disseminados por esses meios estão
as obras de propriedade intelectual, que diante deste panorama enfrentam novos
desafios.

Não há dúvida sobre a aplicação da propriedade intelectual no campo das TIC em


geral e na Internet, em particular. Uma vez que os trabalhos offline estão protegidos,
os que são usados e disseminados online devem ser protegidos também. A questão é
como garantir que a execução seja efetiva e se é desejável adotar outras medidas para
facilitar o cumprimento dos direitos na rede ou, pelo contrário, ajustar ou reduzir as
existentes.

As empresas possuem vários mecanismos de apropriação e proteção dos resultados


que seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento geram. A nível legislativo,
com as variações existentes até hoje em cada nação, pode-se identificar o regime
de patentes, modelos de utilidade, desenhos industriais, direitos de autor e segredo
comercial.

Por sua vez, cabe considerar que, a nível global, atualmente há uma assimetria
em relação ao uso de mecanismos de propriedade intelectual nos países em
desenvolvimento e aqueles usados nos países desenvolvidos, sendo superior neste
último caso. Isso está ligado à capacidade de inovar e gerar produtos e/ou serviços
tecnológicos nas diferentes regiões (Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe, [CEPAL], 2016).

Dadas as perspectivas que a economia digital gera, também é interessante


considerar em qual alcance as obras de propriedade intelectual deveriam ser protegidas
no âmbito digital. Neste sentido, é vital garantir o objetivo final que a propriedade
intelectual se propõe no campo tecnológico, que não é outro a não ser de incentivar o
desenvolvimento da inovação.

Para isso, devemos considerar


os problemas envolvidos no uso É VITAL GARANTIR O
das obras no novo ambiente, entre OBJETIVO FINAL QUE A
os quais podemos identificar a PROPRIEDADE INTELECTUAL
proteção dos direitos dentro do
SE PROPÕE NO CAMPO
âmbito territorial e o uso dessas
TECNOLÓGICO, QUE
obras através das TIC, o que gera
NÃO É OUTRO A NÃO
um uso fora das fronteiras de um
país. Nesse sentido, é necessário
SER DE INCENTIVAR O
contemplar o cenário fornecido DESENVOLVIMENTO DA
pelos serviços de computação em INOVAÇÃO

143
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

nuvem (“Cloud Computing”)1 bem como o fenômeno fornecido pelos dispositivos de


Internet das Coisas (“Internet of Things”)2 e os Serviços Over The Top (OTT)3.

A descrição anterior está relacionada ao dilema ainda não resolvido, em relação à


jurisdição e lei aplicável na Internet, o que causa incerteza quanto à proteção e aplicação
dos direitos de propriedade intelectual. Como efeito disso, o que está sendo esclarecido é
o escopo dos direitos, como são definidos e quais exceções e limitações são contempladas
nesta área digital, tanto quanto como os direitos devem ser administrados e exercidos
neste ambiente.

Outra questão a ser resolvida é o fato de o exercício dos direitos e exceções na Internet,
como foi exposto até agora nos meios tradicionais, perde o sentido. Um exemplo claro
é o uso e distribuição de obras de propriedade intelectual em formato digital, o que
gera desafios para o que até então era considerado o direito de reprodução, bem como o
direito de execução pública.

Ao mesmo tempo, deve-se identificar as vantagens que a economia digital pode gerar
para obras de propriedade intelectual, entre as mencionadas, a difusão e a escalabilidade
do uso de intangíveis através das TIC. Ao mesmo tempo, a propriedade intelectual,
exercida dentro da lei, é um novo mecanismo para incentivar o desenvolvimento e a
inovação na Sociedade da Informação

2_A PROPRIEDADE INTELECTUAL E OS DESAFIOS NA


ECONOMIA DIGITAL

Entre os produtos e/ou serviços que podem ser protegidos pelo regime de propriedade
intelectual no ambiente digital estão todos aqueles que contêm música, fotografias,
programas de computador, desenhos industriais, marcas, nomes de domínio, entre
outros. Esses recursos podem ser encontrados em programas, redes, sites, plataformas,
aplicativos e qualquer outro meio que permita o acesso à obra.

1 Cloud Computing: O Instituto Nacional de Normas e Tecnologia dos EUA (NIST, na sigla em
inglês) e seu laboratório de tecnologia da informação definiram este novo conceito da seguinte
forma: “[...] é um modelo para permitir um acesso conveniente sob demanda a um conjunto
compartilhado de recursos computacionais configuráveis, por exemplo, redes, servidores,
armazenamento, aplicações e serviços, que podem ser rapidamente dispostos e lançados com o
mínimo esforço de administração ou interação com o provedor de serviços “(Mell, & Grance, 2011,
tradução nossa).

2 Internet das Coisas, IdC, Internet of Things ou IoT por suas abreviaturas em inglês: compreende
coisas cotidianas que se conectam à Internet. Desta forma, os objetos podem ser previamente
conectados por circuito fechado, como comunicadores, câmeras, sensores, entre outros, e permite
que eles se comuniquem de forma global através do uso da Internet.

3 Serviços Over The Top (OTT): é um serviço online, potencialmente um substituto dos serviços
tradicionais de telecomunicações e audiovisuais que possuem suporte na rede, como telefonia
vocal, SMS e televisão, usando o Protocolo TCP/IP para o seu funcionamento.

144
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

Atualmente, o valor desses ativos intangíveis de propriedade das empresas é tão


alto que excede a de seus produtos tangíveis. Por este motivo é ainda mais importante
proteger os resultados dos desenvolvimentos.

No âmbito da propriedade intelectual, é possível distinguir o direito de autor-


copyright, por um lado, e a propriedade industrial, por outro. No primeiro caso,
estamos lidando com a proteção de expressões de trabalhos originais, enquanto no
segundo caso é uma questão de proteger a invenção, logotipo, a forma ou aspecto de
um produto específico, entre outras questões específicas que se pretende proteger sob
este último regime.

Conforme indicado na introdução deste artigo, um tópico a ser considerado ao


analisar o mecanismo de proteção aplicável a um determinado intangível no ambiente
digital é a determinação da territorialidade da proteção.

Certos regimes são aplicáveis a nível nacional, de modo que diante da necessidade
de fazê-los valer fora das fronteiras de uma determinada soberania há um ônus para o
titular do direito, que envolve a realização dos procedimentos e registros necessários nas
jurisdições onde procura-se fazer valer a ação. Esse é o caso de marcas e patentes, com
exceção dos casos em que se aplica o Acordo de Madri relativo ao Registro Internacional
de Marcas (Organização Mundial da Propriedade Intelectual [OMPI], 1989) e o PCT – o
Sistema Internacional de Patentes (OMPI, 2017). Outros regimes normativos, como os
direitos de autor, são protegidos globalmente além do local de registro do trabalho,
desde que a Convenção de Berna se aplique ao caso. Essa circunstância está ligada ao
fato de que o registro em certos casos é constitutivo de direitos, enquanto às vezes é
exigido para fins de evidência.

Em resumo, o problema da jurisdição e da lei aplicável gera que certos intangíveis


tenham apenas proteção territorial, de modo que sua distribuição através da Internet cria
a necessidade de definir regras e mecanismos ágeis para proteção em outras jurisdições.

Existe normativa internacional aplicável aos países membros, como a Convenção de


Berna anteriormente mencionada (OMPI, 1979), que se refere a obras de direitos de autor
estrangeiros e indica que deve ser cumprido o princípio da proteção automática na qual
nenhum país deve subordinar a proteção do trabalho estrangeiro ao cumprimento de
qualquer formalidade. Consequentemente, a tutela deve ser concedida pela simples
invocação do direito.

Por sua vez, a Convenção Universal sobre o Direito de Autor adotou no art. III uma
fórmula que consiste na inclusão de

[…] símbolo © juntamente com o nome do titular do direito de


autor e a indicação do ano da primeira publicação, o símbolo, o
nome e o ano devem ser colocados de forma a mostrar claramente
que os direitos autorais estão reservados [...] (Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 1952,
tradução nossa).

145
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

O cumprimento de tal fórmula tem o efeito de substituir qualquer formalidade


exigida pela lei interna naqueles países que ratificaram a convenção.

Atualmente impera o art. 50 da Convenção de Berna (OMPI, 1979), que elimina


os efeitos de qualquer formalidade exigida pela lei nacional em relação às obras
estrangeiras naqueles países em que as duas convenções se aplicam.

Em relação à propriedade industrial, além dos mecanismos já mencionados, a nível


internacional existe a Convenção de Paris (OMPI, 1883), por meio da qual não se pretende
eliminar a independência dos sistemas normativos na matéria e, nesse sentido, não se
procura anular a existência da territorialidade da propriedade industrial. No entanto, os
princípios são estabelecidos para mitigar os efeitos da restrição espacial. Assim, o art.
2.1. da Convenção indica que

[…] os cidadãos de cada um dos países da União gozarão em


todos os outros países da União, no que diz respeito à proteção
da propriedade industrial, as vantagens que as respectivas
leis concedem atualmente ou no futuro aos nacionais [...]
[acrescentando que] eles devem ter a mesma proteção que essas
e o mesmo recurso legal contra qualquer ataque a seus direitos,
desde que preencham as condições e formalidades impostas aos
nacionais. (OMPI, 1883, tradução nossa).

Embora a Convenção de Paris, como a Convenção de Berna, abranja aspectos do


problema, seu objetivo é, acima de tudo, codificar leis substantivas. Por sua vez, o Acordo
sobre os ADPIC (Organização Mundial do Comércio, 1994) criou um sistema abrangente
para a aplicação dos direitos de propriedade intelectual. Sem prejuízo a ele, quando este
acordo foi aprovado a Internet estava tendo suas primeiras manifestações no campo
comercial, e o comércio eletrônico, como é conhecido hoje, não era previsto. Desde
meados da década de 1990, a Internet experimentou um desenvolvimento ininterrupto,
o que coloca novos desafios aos mecanismos tradicionais de aplicação de direitos de
propriedade intelectual (OMPI, 2000, p. 31).

A Organização Mundial do Comércio tem discutido tratados internacionais


para que o uso de obras no ambiente digital seja reduzido apenas às modalidades
autorizadas pelo proprietário. Entre os instrumentos atualmente em negociação estão
o Acordo de Comércio Anti-Falsificação (ACTA, pelo seu nome em Inglês) e o Acordo
Estratégico Transpacífico de Associação Econômica (TPP, também pelo seu nome em
inglês) (Cortes 2014).

Uma questão que foi levantada sobre a proteção da propriedade intelectual no nível
jurisdicional é aquela vinculada ao bloqueio de conteúdo ou aplicações online. Esse
tipo de bloqueio é usual quando se destina a acessar o conteúdo através das fronteiras,
devido a restrições territoriais ligadas ao regime de propriedade intelectual. Com isso,
as práticas de bloqueio geográfico incluem a recusa dos consumidores de um estado
no acesso aos conteúdos dos sites da web baseados em outros estados. Essas práticas
podem afetar o acesso ao conteúdo. A situação descrita deve ser considerada para tomar
medidas para mitigar ou impedir o bloqueio geográfico de forma indevida, o que, por

146
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

sua vez, leva ao debate sobre os efeitos gerados pela autorização territorial exclusiva e,
nesse sentido, os freios que pode gerar na industria.

Nesta linha se encontram os mecanismos de conformidade imediata, que incluem


a geração de quadros que estipulam um rápido cumprimento por provedores de serviços
de Internet. Atualmente, podemos identificar as disposições de notificação e supressão
previstas no Digital Millennium Copyright Act dos Estados Unidos de 1998 (OMPI, 2000,
p. 32). Este tipo de meio gerou controvérsias em relação às garantias que devem ser
respeitadas e ao órgão competente que deve zelar sobre elas.

Por outro lado, em relação às vantagens mencionadas na introdução deste artigo, é


possível indicar o uso que as TICs permitem das marcas – entendida como aquele sinal
distintivo que tem a capacidade de identificar um produto e/ou serviço específico –, o
que faz com que elas assumam um papel relevante na economia digital, já que quando
o contato entre fornecedor e consumidor é perdido, a marca é a que identifica o produto
e/ou serviço e, nesse sentido, atrai o usuário de forma online. Por essa razão, a situação
descrita provoca a difusão desses intangíveis em um mercado mais amplo e, ao mesmo
tempo, gera maior relevância quanto à função que eles cumprem.

Outro aspecto pensado como uma vantagem é o vinculado à distribuição online


e, nesse sentido, o uso legal do conteúdo. Isso está vinculado às licenças concedidas
online, eliminando muitos dos custos de transação envolvidos nas formas tradicionais
de obtenção, além de processos mais ágeis e adequados às novas demandas do mercado
digital. Essas ferramentas, em particular se utilizadas no âmbito de um sistema
eletrônico de gerenciamento de direitos de autor (Electronic Copyright Management
System, ECMS), podem contribuir significativamente para promover o respeito dos
direitos de propriedade intelectual na Internet (OMPI 2000, 34).

Finalmente, me deterei em outro aspecto que o comércio eletrônico introduz, como


fator da economia digital, relacionado ao desenvolvimento do comércio entre usuários,
bem como a suposição em que o mesmo usuário é aquele que é proprietário de ativos
intangíveis. Um exemplo é o caso da provisão de serviços Cloud Computing, tanto a
plataforma como serviço (PaaS) através dos quais o usuário instala e executa o software
próprio ou outra informação própria (industrial, comercial, científica, etc.).

Todos os pressupostos acima mencionados (e muitos outros que não foram


analisados neste artigo por conta de sua brevidade), juntamente com seus problemas
e vantagens, mostram a necessidade de apresentar um debate sobre o regime de
propriedade intelectual que se pretende resguardar diante do espaço digital.

3_CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre os mecanismos que podem ser promovidos para garantir o cumprimento efetivo
dos deveres derivados do regime de propriedade intelectual online há aqueles que tendem
a alcançar a solução de controvérsias, que podem ser efetivas para acelerar e reduzir os
custos derivados desde que sejam preservadas certas garantias, como o devido processo.

147
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

Outro instrumento que pode ser útil para alcançar uma delimitação dos direitos
e deveres envolvidos na propriedade intelectual é estabelecer um limite para a
responsabilidade dos intermediários por conteúdo de terceiros, cujo objetivo é garantir
segurança jurídica sobre o mecanismo a ser utilizado pelos prestadores para dar
lugar aos direitos reivindicados pelos proprietários das obras, mas ao mesmo tempo
contemplar as garantias que devem ser protegidas, dentre as quais são mencionadas a
liberdade de expressão.

Ao buscar soluções ou mecanismos adequados, deve-se considerar a necessidade


de proporcionar cooperação internacional na proteção da propriedade intelectual,
conscientes do fato de que a Internet não distingue fronteiras.

Outra maneira de facilitar o uso e o exercício adequado de obras de propriedade


intelectual online é estabelecer políticas de bom comportamento ou certos padrões
tanto para aqueles que são usuários quanto para aqueles que carregam e/ou tratam o
conteúdo. Isso para evitar usos ilegítimos e possíveis abusos no exercício desses direitos
de propriedade intelectual pelos detentores.

Resta indicar que a economia digital causa um consumo tal de conteúdo que
exige uma mudança nas regras do jogo até agora aplicáveis em relação à propriedade
intelectual. A modernização dessas regras, em termos de exercício de direitos e
cumprimento de obrigações no campo digital, é uma questão delicada; no entanto,
é de vital importância tratá-la para conseguir um maior acesso a esses recursos e,
conseqeentemente, o objetivo final do regime de propriedade intelectual.

Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS

Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (2016). Ciencia, tecnología e


innovación en la economía digital: La situación de América Latina y el Caribe. Segunda
reunión de la Conferencia de Ciencia, Innovación y TIC de la CEPAL. Santiago. p. 29-30.
Recuperado de <http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/40530/3/S1600833_
es.pdf>

Cortes, C. (2014). La gobernanza de Internet: la trampa de las formas. Centro de Estudios


en Libertad de Expresión y Acceso a la Información. p. 9. Recuperado de <http://www.
palermo.edu/cele/pdf/CELE_GobernanzaDeInternet.pdf>

Mell, P., & Grance, T. (2011). The NIST Definition of Cloud Computing. National Institute
of Standards and Technology. U.S. Department of Commerce. NIST Special Publication,
800-145.

148
CONTEÚDOS E BENS CULTURAIS NA INTERNET _ SILVANA CRISTINA RIVERO

Núñez, J. F. Contenidos y límites del derecho marcario. Ed. Thomson Reuters. Cita
Online: 0003/007503.

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (1952).


Convención Universal sobre Derecho de Autor. Ginebra. Recuperado de <http://portal.
unesco.org/es/ev.php-URL_ID=15381&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html>

Organização Mundial da Propriedade Intelectual (1883). Convenio de París para la


Protección de la Propiedad Industrial. Recuperado de <http://www.wipo.int/treaties/es/
ip/paris/>

Organização Mundial da Propriedade Intelectual (1979). Convenio de Berna para la


Protección de las Obras Literarias y Artísticas. Recuperado de <http://www.wipo.int/
treaties/es/text.jsp?file_id=283698>

Organização Mundial da Propriedade Intelectual (1989). Arreglo de Madrid relativo al


Registro Internacional de Marcas. Recuperado de <http://www.wipo.int/treaties/es/
registration/madrid/>

Organização Mundial da Propriedade Intelectual (2000). Estudio sobre Comercio


electrónico y Propiedad Intelectual. Genebra. Recuperado de <https://goo.gl/16b12u>

Organização Mundial da Propriedade Intelectual (2017). PCT - El sistema internacional


de patentes. Recuperado de <http://www.wipo.int/pct/es>

Organização Mundial do Comércio (1994). Acuerdo Sobre los Aspectos de los Derechos de
Propiedad Intelectual Relacionados con el Comercio. Recuperado de <https://www.wto.
org/spanish/docs_s/legal_s/27-trips.pdf>

SILVANA CRISTINA RIVERO


Assessora legal e de políticas públicas
no Departamento de Política Nacional e
Desenvolvimento da Internet do Ministério
de Modernização da Nação (Argentina), é
sócia na firma Maryva, especializada em
direito e tecnologia. Trabalhou para Carranza
Torres & Asociados, empresa especializada
em propriedade intelectual; como parte dos
serviços prestados, atuou no MercadoLibre
S.R.L. como advogada in house. Atualmente
é docente no curso de Negócios Tecnológicos
da Faculdade de Direito e Ciências Sociais.

149
INOVAÇÃO E
CAPACITAÇÃO
TECNOLÓGICA
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

POLÍTICAS DE INOVAÇÃO
PARA APERFEIÇOAR O
USO DA TECNOLOGIA POR
POPULAÇÕES IMIGRANTES

MARTHA CISNEROS
Mestre em Ciência da Informação e Gerenciamento de Conheci-
mento, ITESM 2012.
martha.cisneros@baruchmail.cuny.edu
México

DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA
Mestre em Sociedade, Ciência e Tecnologia, European Master’s
Programme.
damarisccl@gmail.com
México

151
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

_TEMÁTICA

Inclusão digital
Inovação e capacitação tecnológica

_RESUMO

O fenômeno da imigração está causando uma reconfiguração


nas sociedades e, se não for corretamente abordado, poderá dar
origem a novos tipos de desigualdades. No presente trabalho,
as autoras argumentam que as políticas de inovação são
importantes para aperfeiçoar o uso da tecnologia por populações
de imigrantes e para reduzir as desigualdades que podem estar
presentes devido à falta de oportunidades para participar de
atividades que exigem conhecimento. Ainda existe uma fraca
coordenação entre os programas existentes de amparo aos
imigrantes e a agenda digital e os programas de treinamento
oferecidos a essas comunidades ao redor do mundo.

Palavras chave: políticas; imigração; tecnologia

152
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

1_INTRODUÇÃO

O uso da Internet — seja através da banda larga ou de dispositivos móveis — tornou-


se uma ferramenta poderosa para ampliar as oportunidades econômicas para milhões
de pessoas e melhorar a qualidade de vida delas de maneiras significativas. O rápido
crescimento e a crescente demanda por dispositivos móveis podem ter um grande
impacto na capacidade das populações migrantes de se adaptarem à comunidade local.
As tecnologias móveis podem continuar a mudar a forma como as pessoas aprendem e
exercem seus direitos e responsabilidades dentro de seus governos.

Educação de qualidade, desenvolvimento de cidades e comunidades sustentáveis e


redução de desigualdades fazem parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
da Organização das Nações Unidas para 2030. Por essa razão, a importância da
disponibilidade, a nível nacional, de estratégias como as políticas de inovação
promotoras de programas sociais que incentivem a igualdade e a inclusão em diferentes
níveis, e que devem ser promovidas e estimuladas aos cidadãos que vivem no exterior,
também conhecidos como imigrantes.

Neste artigo, discutimos a importância da inclusão social ser incluída no escopo das
políticas de inovação. Exploramos o fenômeno da imigração como um exemplo de como
a agenda digital dos governos pode promover a inclusão entre seus cidadãos e como o
uso da tecnologia, especificamente dispositivos móveis, pode atenuar a brecha digital
(digital divide), promovendo a cidadania digital.

2_AS POLÍTICAS DE INOVAÇÃO DEVEM SE PREOCUPAR


COM A INCLUSÃO SOCIAL?

Os legisladores (policy makers) têm um papel importante na sociedade, visto que


contribuem para a formulação de algumas das regras que deverão ser seguidas por todas
as pessoas a fim de viverem em paz e harmonia. As discussões políticas preocupam-se
em dar prioridade às questões que a sociedade considera mais importantes. Como Bruno
Latour (2013) manifesta, os políticos são os principais atores no processo de negociação
para reordenar tais prioridades, concedendo a oportunidade de inclusão às entidades
que foram excluídas na construção do coletivo1. Por essa razão, os legisladores possuem
uma responsabilidade incontestável de concederem as mesmas oportunidades a todos
os indivíduos. Certamente, em matéria de uso e acesso à tecnologia, as políticas de
inovação não estão excluídas.

Os Sistemas Nacionais de Inovação [SNI] (National Innovation Systems) (cf. Lundvall


et al., 2009) são definidos em grande parte pelas políticas e pela agenda digital do governo
para incentivar o desenvolvimento tecnológico e a pesquisa. A abordagem que as políticas

1 Bruno Latour (2013) usa a palavra “coletivo” como o conjunto de humanos e não-humanos que
conformam a nossa existência. Em seu livro, ele enfatiza que as questões ambientais e a natureza
em geral seriam consideradas como parte da realidade na medida em que os diferentes atores –
entre os quais os políticos – usam seus poderes para incorporar, negociar e institucionalizar os
novos entes no chamado coletivo.

153
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

de inovação levam ao desenvolvimento


social deve permitir que os diferentes atores
OS FENÔMENOS SOCIAIS da SNI enderecem não apenas assuntos
IMPULSIONADOS PELAS relacionados ao crescimento econômico
DESIGUALDADES QUE e à produtividade, mas também outros
CAUSAM A EXCLUSÃO problemas que poderiam afetar ou impedir
DE CERTAS PARTES DA o progresso e a consolidação do próprio
SOCIEDADE RARAMENTE sistema de inovação. Alguns exemplos de
SÃO CONSIDERADOS tais problemas são a falta de educação e o
ASSUNTOS A SEREM acesso limitado à soluções e ferramentas
DESENVOLVIDOS NA tecnológicas. Paradoxalmente, mesmo que
acadêmicos e organizações internacionais
AGENDA DIGITAL
concordem em considerar instituições
sociais, sistemas financeiros, educação e
regulamentação como parte dos SNI, os legisladores geralmente têm uma visão mais
limitada (Edquist, 2001; Lundvall et al., 2009) e suas decisões geralmente seguem
uma abordagem linear centrada principalmente no investimento e na produtividade,
esquecendo a importância da construção de competências e da aprendizagem na
construção de um SNI sólido (Lundvall et al., 2009).

Como consequência, os fenômenos sociais impulsionados pelas desigualdades que


causam a exclusão de certas partes da sociedade raramente são considerados assuntos
a serem desenvolvidos na agenda digital. Em vez disso, as políticas de inovação estão
mais preocupadas com os problemas que o sistema de inovação pode ter, como baixo
desempenho na indústria, publicação de artigos acadêmicos, produção de alta tecnologia,
entre outros (Borras & Edquist, 2013). Por outro lado, as questões sociais como a pobreza,
a educação ou as disparidades de gênero são consideradas temas exclusivamente de
ONGs ou outras instituições que prestam apoio e assistência comunitária. Esta falta
de coordenação entre as instituições que trabalham no desenvolvimento social e as
que asseguram a configuração correta para o aumento da inovação foi abordada por
acadêmicos que estudam a relação entre desigualdade e capacidade inovadora.

2.1_CAPACIDADE INOVADORA DIANTE DAS


DESIGUALDADES SOCIAIS

A desigualdade de renda está presente principalmente nos estudos que exploram


os efeitos negativos que a desigualdade tem na capacidade inovadora em determinado
país ou região. Isso pode ser explicado pelo fato de que a pobreza está diretamente
relacionada à educação de má qualidade e à condições desfavoráveis,​para se conseguir
um emprego bem remunerado. Nesse sentido, Arocena e Sutz (2009) falam sobre os
círculos viciosos que estão presentes nessas condições de disparidades sociais. Eles
ressaltam que a desigualdade afeta não apenas a capacidade de inovar, mas também
o nível de uso e consumo de produtos de alta tecnologia. Quando o acesso à tecnologia
não é assegurado para todos, apenas algumas pessoas desfrutam dos benefícios das
soluções inovadoras em termos de produtividade e qualidade de vida. Apenas alguns
podem consumir e participar do desenvolvimento de novos recursos. Assim, o acesso

154
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

desigual à tecnologia é um obstáculo que precisa ser abordado para garantir o desejado
progresso na capacidade inovadora.

Segundo Cozzens e Kaplinsky (2009), existem dois tipos diferentes de desigualdades:


desigualdade vertical e desigualdade horizontal. A primeira é caracterizada por uma
distribuição desproporcional de um bem valorizado entre a população (distribuição
de renda geral para uma nação, por exemplo). A segunda também é uma distribuição
desigual, mas entre subgrupos culturalmente definidos. A desigualdade horizontal
segrega a sociedade por sexo, etnia, nacionalidade, religião etc. Diante desses tipos de
desigualdades sociais, as políticas de inovação precisam estar cientes do desenvolvimento
de capacidades ao longo dos setores mais vulneráveis da sociedade para garantir que
os benefícios da inovação sejam experimentados igualmente por todos. Quanto maior a
população que usa e consome tecnologia, maiores as possibilidades de ter pessoas que
inovam no futuro.

Arocena e Sutz (2003) expõem a existência de brechas de aprendizagem (learning


divides) na economia global baseada no conhecimento. Essas brechas acentuam as
diferenças entre países e indivíduos e dificultam as oportunidades para participar em
tarefas que demandam conhecimento. Para os autores, as sociedades do conhecimento são
caracterizadas pela participação de uma proporção razoável da população em atividades
onde o “conhecimento é compartilhado, trocado e criado” (Arocena & Sutz, 2003, tradução
nossa). No entanto, para participar dessas atividades, são necessárias certas habilidades.
É aí que a necessidade de treinamento tecnológico surge e coloca em evidência a divisão
entre certos grupos de indivíduos que têm acesso à tecnologia e outros que não.

2.2_IMIGRAÇÃO: OUTRO TIPO DE SEGREGAÇÃO

O fenômeno da imigração, que está causando uma reconfiguração de populações


inteiras em todo o mundo, está tendo lugar no debate público. Apesar das regras e
proibições que alguns governos estão tentando implementar como tentativa de parar a
imigração, o número de migrantes internacionais aumentou nos últimos quinze anos
(Organização das Nações Unidas, 2016). A migração em massa é uma questão que diz
respeito a diferentes lados. De um lado está desafiando a capacidade de resposta dos
governos às necessidades dos seus conterrâneos que vivem no exterior e, no caso do
país de acolhimento, há uma urgência de esforços que não são necessariamente sobre
o controle do afluxo de pessoas, mas principalmente sobre fornecer ajuda àqueles que
chegam a se adaptarem da maneira mais fácil possível ao seu novo contexto social.
Uma fraca coesão entre populações de habitantes locais e imigrantes que chegam
pode resultar em uma nova forma de desigualdade no tecido social. A este respeito,
as tecnologias – e as políticas e regulamentos nas quais elas são criadas, aprendidas e
utilizadas – podem desempenhar um importante papel para evitar a presença dessas
disparidades que podem ser prejudiciais para todos.

Frente a estas condições desiguais, é importante lembrar o fato de que as políticas


e regulamentos existentes, principalmente preocupados em impulsionar a capacidade
inovadora de países e regiões, ajudam não só a fortalecer o crescimento econômico
(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, [OCDE], 2015), mas

155
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

também a melhorar os processos de aprendizagem tecnológica (Cimoli, Dosi, Nelson, &


Stiglitz, 2009). No entanto, espera-se, na maior parte do tempo, que o desenvolvimento
de habilidades essenciais para participar de uma economia baseada no conhecimento
seja parte do sistema de educação formal. Por essa razão, a maioria das instituições
que constituem o Sistema de Inovação falham em lidar corretamente com a falta de
oportunidades que as pessoas excluídas da educação formal têm em relação ao seu
treinamento tecnológico.

Em resumo, é importante que as partes interessadas (stakeholders) e os legisladores


reconsiderem o impacto que as políticas de inovação podem ter na construção de
sociedades mais iguais. Ao fornecerem para as pessoas que vivem em condições
desfavoráveis não apenas as ferramentas tecnológicas, mas também o treinamento certo
para usá-las, os governos podem reduzir as desigualdades que afetam as sociedades.

3_IMIGRAÇÃO E USO DA TECNOLOGIA

Cornelius (2004) afirma que os motivos da mobilidade migratória, suas causas e


efeitos, acontecem em dois polos. Do polo da expulsão, as causas da emigração são
o rápido crescimento demográfico, a deterioração persistente do meio ambiente,
a diminuição dos níveis de bem-estar social e econômico, bem como o impacto dos
fenômenos políticos como as turbulências das violentas e irregulares mudanças
de governo, perseguição religiosa, entre outras. Do polo receptor, constituído
principalmente por países desenvolvidos, as consequências mencionadas acima terão
impacto nos mercados de trabalho, na segurança das comunicações e nos serviços
sociais e educacionais.

Por um lado, o polo receptor é constituído principalmente por economias desenvolvidas,


como EUA, Alemanha ou França. Os desafios que a imigração representa para esses
países de acolhimento são bem conhecidas e foram documentadas por muitos séculos:
quantos imigrantes aceitar, quais direitos e serviços especiais fornecer e como controlar
a imigração não documentada. Além disso, de acordo com Cornelius (2004), democracias
modernas, como Austrália e Holanda, agora enfrentam as mesmas questões.

No entanto, os Estados Unidos da América, por exemplo, um país que foi fundado
por imigrantes há cerca de 300 anos, continua a prosperar e a lidar com o fenômeno
da imigração de diferentes ângulos. Temas políticos, econômicos e de educação são
alguns dos principais problemas que as democracias modernas têm de lidar como parte
dos resultados da chegada de imigrantes de todo o mundo. A criação de um ambiente
multicultural no mercado de trabalho local e nas comunidades faz parte desse fenômeno
da imigração desde o seu princípio.

Por outro lado, os problemas que os países do polo de expulsão enfrentam são
também parte desse fenômeno da imigração. Esses países costumam ter uma
economia subdesenvolvida, apesar de terem mudado ao longo dos anos devido ao
surgimento de uma economia compartilhada e uma revolução da informação digital
que está “capacitando o uso potencial de novas tecnologias e com o complexo conjunto
de estratégias, políticas, investimentos e ações, eles podem ser capazes de criar

156
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

oportunidades digitais para seus emigrantes” (G8


REFUGIADOS SÍRIOS Information Center, 2001, tradução nossa). Embora
QUE EMIGRARAM existam programas sociais para imigrantes em
PARA PAÍSES COM suas comunidades locais dentro do novo país de
LÍNGUA E CULTURA residência, habilitados pelo país de origem, os
DIFERENTES, programas de literacia digital estão longe de ser
implementados como parte dessas iniciativas
COMO A TURQUIA
sociais. Existem programas sociais de apoio à
E A ALEMANHA,
saúde e aos componentes educacionais.
TÊM UTILIZADO
APLICATIVOS DE Por exemplo, o México, de acordo com o Instituto
SMARTPHONES Nacional das Mulheres (2013) – INMUJERES em
PARA DAREM RUMO espanhol –, através da própria organização e de
ÀS SUAS NOVAS diversas agências governamentais, promove 77
VIDAS EM UM NOVO programas que prestam ajuda e orientação sobre
questões relacionadas à educação, emprego,
SISTEMA POLÍTICO
financiamento e investimento, proteção de pessoas
mexicanas no exterior, proteção no México, remessas
de valores, saúde, tecnologias da informação e do
conhecimento, entre outros. Embora o governo mexicano tenha habilitado programas
de TIC por todo o Departamento de Relações Exteriores, não se pode presumir que esses
programas sejam acessíveis à população alvo. Os indicadores de dados que fornecem
informações sobre o uso real das plataformas ou o impacto delas em seu público-alvo são
essenciais para verificar se os recursos utilizados nessas plataformas são proveitosos e
se são realmente usados ​por imigrantes. Uma análise mais aprofundada da praticidade e
acessibilidade desses recursos também deve ser encorajada.

Outro exemplo é o número de medidas legislativas que o governo da Colômbia tomou


para apoiar vários programas para incentivar os seus cidadãos que vivem no exterior.
Por meio de seu Departamento de Relações Exteriores e de acordo com um relatório
publicado pelo Migration Policy Institute, eles promovem o programa Colombia Nos Une,
com o objetivo de “criar as condições pelas quais os cidadãos colombianos que desejam
migrar possam fazê-lo de forma voluntária e ordenada, garantindo a proteção de seus
direitos, mantendo as suas conexões com a Colômbia e amparando o seu eventual
retorno” (Migration Policy Institute, 2015, tradução nossa).

Entre as suas ofertas, o Colombia Nos Une constrói e mantém plataformas virtuais
para estrangeiros no exterior para estabelecer conexões e construir relacionamentos
com colegas colombianos. O programa, chamado Portal RedEsColombia, oferece redes
baseadas em interesses compartilhados, incluindo comércio, prestação de serviços
sociais e cultura. Talvez seu sucesso na divulgação pela web possa ser medido pela
quantidade de dinheiro que os colombianos têm doado através de plataformas
online que facilitam e incentivam os membros da diáspora do país a contribuir para
projetos específicos de desenvolvimento na Colômbia. O país tem uma estratégia
digital que fortaleceu os seus processos de governança digital e que fornece dados
para a medição de impacto.

157
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

Do outro lado do oceano, os refugiados sírios que emigraram para países com
língua e cultura diferentes, como a Turquia e a Alemanha, têm utilizado aplicativos
de smartphones para darem rumo às suas novas vidas em um novo sistema político.
Gherbtna é um bom exemplo: trata-se de um aplicativo para smartphone criado em 2016
por um refugiado sírio que vive na Turquia, e tem sido um sucesso de acordo com as
estatísticas, com mais de 40.000 downloads, 90.000 curtidas no Facebook e uma média
de 3.000 visualizações de páginas diárias no site. O aplicativo tem quatro serviços, de
acordo com o Mashable, portal de notícias sobre tecnologia (Lopez, O., 2016): Informações,
relacionadas aos procedimentos de asilo e divulgação de infográficos e animações;
Notícias; Oportunidades, que anuncia apartamentos e empregos legalmente permitidos
para refugiados; e Ajuda, onde refugiados podem fazer perguntas sobre saúde, educação
e outros serviços jurídicos.

O rápido crescimento das tecnologias móveis e sua adoção facilitou o acesso a novas
ferramentas e novas formas de comunicação entre populações vulneráveis. Os imigrantes,
como parte dessas populações, baseiam a comunicação digital com seus governos
e familiares através de dispositivos móveis. O acesso a um computador pode estar ao
alcance de suas mãos através de programas sociais de interação com a tecnologia, tanto
no polo receptor quanto no emissor, ou como produto da colaboração entre eles. O custo
da educação formal ou alternativa para a alta tecnologia poderia ser um obstáculo para os
governos melhorarem sua estratégia de contato digital para seus conterrâneos.

Para atestar o acesso e uso de dispositivos móveis, consideramos para essa pesquisa
uma estatística sobre o uso de dispositivos móveis por latinos na cidade de Nova
York, nos EUA. Os dados apresentados são baseados num estudo adulto de 12 meses
do Estudo de Consumo Nacional (National Consumer Study, NCS/NHCS) do verão de
2015 (final de julho de 2014 a início de setembro de 2015), reunidos através do sistema
Simmons OneViewTarget2. Os resultados apontaram que 24,5% (683.356) da população
latina3 que vive em Nova York usa a Internet. A maioria utiliza o telefone celular (99%)
(Figura 1) e mídias sociais (75%). Eles frequentemente acessam sites de rede sociais/
compartilhamento por meio de diferentes dispositivos (91%), visitando um site de redes
sociais 3 ou mais vezes por dia, com 58% usando o Facebook.

2 O sistema Simmons OneViewTarget contém dados do Estudo de Consumo Nacional, pesquisa


anual sobre os hábitos de compra e mídia dos consumidores dos EUA

3 Refere-se aos latinos como qualquer pessoa de descendência latino-americana e/ou imigrantes.

158
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

Figura 1

Alcance %: Últimos 30 dias


100
99% 98%

80
77%
70% 70%
60

51%
40 47%

34%
29%
20
22%

0
Leitor Console de Telefone Computador
Revistas MP3 Jornais Rádio Tablet Televisão
eletrônico videogame celular no trabalho

Fonte: Produção própria, com informações da Pew Research (Lopez, M., Lopez, G., Brown, 2016).

As estatísticas anteriores estão focadas na população latina nos EUA em geral, no qual
os imigrantes são uma parte importante. De acordo com a Pew Research (Lopez, M., Lopez,
G., Brown, 2016), os latinos ficaram para trás em comparação com outros grupos no acesso
à Internet por meio de um computador e na aquisição de serviços de banda larga em casa.
Em vez disso, estavam entre os mais propensos a possuir um smartphone, a viver em
uma casa sem um telefone fixo, em que apenas um telefone celular está disponível, e a
acessar à Internet por meio de um dispositivo móvel. Mesmo a população imigrante se
espalhando por todo o mundo, a população hispânica nos EUA é parte da Pew Research
para ilustrar o impacto do uso da Internet em dispositivos móveis.

4_BRECHA DIGITAL E CIDADANIA DIGITAL

Dois dos principais problemas de desenvolvimento para a adoção de soluções


baseadas na Internet em populações de maioria imigrante são a brecha digital e a falta
de um sistema de apoio educacional que promova a cidadania digital.

Primeiro, a disparidade entre as pessoas com acesso efetivo à tecnologia digital


e da informação e aquelas com acesso muito limitado ou nenhum é conhecida
principalmente como brecha digital. A disparidade tanto no acesso à Internet quanto
nos recursos para desenvolver a formação e as habilidades necessárias para colaborar
adequadamente com a sociedade da informação como cidadão digital ativo são dois dos
principais obstáculos no caminho para reduzir a brecha digital em todo o mundo. Por
um lado, o acesso físico à tecnologia, incluindo a Internet, melhorou significativamente
devido à capacitação de iniciativas sociais e não governamentais (cf. OCDE, 2017) através
de instituições internacionais. Um exemplo específico é o Banco Mundial, que fortaleceu
a conectividade de TIC na África do Sul com colaboração contínua para promover projetos
que expandam as capacidades de governo eletrônico. Programas de responsabilidade
corporativa que promovem o acesso de baixo custo à Internet, como a Iniciativa

159
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

de Acesso a Preços Acessíveis da Microsoft (Microsoft Affordable Access Initiative) (cf.


Microsoft, 2017), têm desempenhado papel importante na redução da disparidade na
acessibilidade da Internet.

No entanto, os desafios para ter acesso completo e igual à tecnologia em todo o


mundo provaram-se enormes. De acordo, por exemplo, com o relatório ICT Facts and
Figures, publicado pela União Internacional de Telecomunicações (2016), no final de
2016 cerca de 53% da população mundial ainda não possuía acesso à Internet. Nesse
mesmo relatório também é possível ver a diferença entre as regiões: enquanto a Europa
tem cerca de 79% de sua população conectada, a África tem apenas 35%. Isso prova
as grandes disparidades de oportunidades que existem para as pessoas que vivem em
diferentes países ao redor do globo.

Segundo, há falta de políticas educacionais e de inovação que endossem a cidadania


digital como parte importante do currículo e como prioridade para programas vocacionais
e sociais que promovam a conscientização sobre o que significa ser um cidadão no
ciberespaço. De acordo com o MIT Press (2006), a cidadania digital é a capacidade de participar
da sociedade online. A cidadania digital é crucial para a inclusão social (Warschauer, 2003),
pois garante o acesso, o uso, a adaptação e a produção do conhecimento.

Para promover a participação da cidadania digital, Mike Ribble (2015), autor da


ISTE4, propõe nove elementos principais que os estudantes devem conhecer para ajudá-
los a navegar na Internet: (1) Literacia, Direitos & Responsabilidades, (2) Etiqueta, (3)
Acesso, (4) Comércio, (5) Segurança, (6) Comunicação, (7) Lei, (8) Saúde e (9) Bem-estar.
Esses elementos principais, de uma forma ou de outra, foram implementados na
educação formal dos EUA, mas a falta de políticas que promovam esse currículo e da
acessibilidade a essa informação em um ambiente de aprendizagem não-formal que
foque em populações vulneráveis em​​ todo o mundo ainda é um objetivo a ser alcançado.
Sem uma compreensão clara do que significa participar ativamente como cidadão em
uma sociedade digital, continuaremos enfrentando problemas como cyberbullying,
violação de dados, riscos de segurança etc. Neste ponto, é importante lembrar que a
educação é fundamental para promoção de oportunidade e prosperidade.

Por fim, as políticas de inovação que apoiam a criação de oportunidades


educacionais podem ajudar a envolver os indivíduos na sociedade digital. No que diz
respeito à imigração, programas de treinamento para a cidadania digital podem ajudar
a endossar o processo de adaptação dos recém-chegados a um novo contexto cultural,
pois a inclusão social também pode ser exercida no mundo digital.

5_CONCLUSÕES

Estudos de inovação já abordam há algum tempo o dano que as desigualdades


sociais podem causar na capacidade de inovação de um determinado país ou região.
Conforme enfatizado neste ensaio, essas desigualdades muitas vezes se relacionam

4 A International Society for Technology in Education (Sociedade Internacional para Tecnologia


em Educação) é uma ONG no campo da tecnologia da educação.

160
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

com a distribuição de renda e a falta de oportunidades para participar em atividades que


exigem conhecimento. O fenômeno da imigração está causando uma reconfiguração
nas sociedades e, se não for corretamente abordado, poderá dar origem a novos tipos
de desigualdades.

Embora existam algumas iniciativas para ajudar as populações imigrantes a se


adaptarem ao seu novo contexto social, há uma questão que permanece negligenciada:
apesar de as populações imigrantes estarem aumentando o uso de tecnologia para se
comunicarem e acessarem serviços governamentais através de plataformas web, elas
nem sempre são capazes de aproveitar ao máximo esse uso. A tecnologia representa
tanto oportunidades quanto desafios para os governos que visam fornecer ferramentas
aos seus cidadãos no exterior e para aqueles que trabalham ajudando as populações
imigrantes a se adaptarem a seu novo lar. A fim de garantir um uso justo das
ferramentas tecnológicas para a população-alvo, encoraja-se que governos ofereçam
treinamento para todos os indivíduos que possam não ter as habilidades necessárias
para o uso adequado dessas tecnologias.

Apesar de existirem algumas estatísticas sobre o uso da tecnologia em alguns países,


reconhecemos que é necessária uma análise mais aprofundada para compreender
plenamente o impacto que os dispositivos tecnológicos e o uso de plataformas online têm
para fornecer serviços às populações imigrantes. Ter uma melhor apreciação do nível de
acesso e uso real dos serviços online e de outras ferramentas tecnológicas poderá ajudar
na elaboração de políticas e regulamentos direcionados ao apoio e fortalecimento da
inclusão social.

Artigo originalmente escrito em inglês

_REFERÊNCIAS

Arocena, R., & Sutz, J. (2003). Inequality and innovation as seen from the South.
Technology in Society, 25, 171–182.

Arocena, R., & Sutz, J. (2009). Sistemas de innovación e inclusión social. Pensamiento
Iberoamericano, 5, 101-120.

Borras S., & Edquist, Ch. (2013). The choice of innovation policy instruments.
Technological Forecasting & Social Change, 80, 1513–1522.

Cimoli, M., Dosi, G., Nelson R., & Stiglitz, J. (2009). Institutions and policies in
developing economies. In Lundvall, B.-A. et al .(Ed.) Handbook of Innovation Systems
and Developing Countries: Building Domestic Capabilities in a Global Setting.
Massachusetts: Edward Elgar Publishing Limited.

161
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

Cornelius, W. (2004). Controlling Immigration: A Global Perspective. Stanford


California: Stanford University Press.

Cozzens, S., & Kaplinsky, R. (2009). Innovation, poverty and inequality: cause,
coincidence, or co-evolution? In Lundvall, B.-A. et al. (Ed.) Handbook of Innovation
Systems and Developing Countries: Building Domestic Capabilities in a Global Setting.
Massachusetts: Edward Elgar Publishing Limited.

Edquist, Ch. (2001). The Systems of Innovation Approach and Innovation Policy: An
account of the state of the art. Recuperado de <http://www.druid.dk/uploads/tx_
picturedb/ds2001-178>

G8 Information Center (2001). Digital Opportunities for All: Meeting the Challenge
Report of the Digital Opportunity Task Force (DOT Force) including a proposal for a
Genoa Plan of Action. University of Toronto. Recuperado de <http://www.g8.utoronto.
ca/summit/2001genoa/dotforce1.html>

Instituto Nacional das Mulheres (Instituto Nacional de las Mujeres) (2013). Directorio
de programas institucionales dirigidos a la población migrante 2013. Recuperado de
<http://cedoc.inmujeres.gob.mx/documentos_download/101233.pdf>

Latour, B. (2013). Políticas de la Naturaleza: Por una democracia de las ciencias


(Tradução de Puig E.). Barcelona: RBA Libros.

Lopez, M., Lopez, G., & Brown, A. (2016). Digital Divide Narrows for Latinos as More
Spanish Speakers and Immigrants Go Online. Pew Research. Recuperado de <http://
www.pewhispanic.org/2016/07/20/digital-divide-narrows-for-latinos-as-more-
spanishspeakers-and-immigrants-go-online/>

Lopez, O. (2016). These are the apps refugees are using to find their way in Europe.
Mashable. Recuperado de <http://mashable.com/2016/07/07/refugees-apps-
gherbtnaankommen/#xnxPGmdqlmq4>

Lundvall, B.-A., et al. (2009). Handbook of Innovation Systems and Developing Countries:
Building Domestic Capabilities in a Global Setting. Massachusetts: Edward Elgar
Publishing Limited.

Microsoft (2017). Affordable Access Initiative. Recuperado de <https://www.microsoft.


com/en-us/affordable-access-initiative/home>

Migration Policy Institute (2015). The Colombian Diaspora in the United States.
Recuperado de <www.migrationpolicy.org/sites/default/files/publications/
RADColombiaII.pdf>

MIT Press. (2016). Defining Digital Citizenship. Recuperado de <https://mitpress.mit.


edu/sites/default/files/titles/content/9780262633536_sch_0001.pdf>

Organização das Nações Unidas, Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais,


Divisão da População (2016). International Migration Report 2015: Highlights.

162
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

Recuperado de <http://www.un.org/en/development/desa/population/migration/
publications/migrationreport/docs/MigrationReport2015_Highlights.pdf>

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2015). Innovation


Policies for Inclusive Development: Scaling Up Inclusive Innovations. Recuperado de
<https://www.oecd.org/innovation/inno/scaling-up-inclusive-innovations.pdf>

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2017). Key Issues for


digital transformation in the G20. Recuperado de <https://www.oecd.org/g20/key-
issues-for-digital-transformation-in-the-g20.pdf>

Ribble, M. (2015). Digital Citizenship in Schools: Nine Elements All Students Should
Know. Eugene, EUA: ISTE. Recuperado de <http://www.ebrary.com>

Simmons Research LLC. (2010). Summer 2015 NHCS Adult Study 12-month. [Arquivo de
dados]. Recuperado da base de dados da Simmons OneView.

União Internacional de Telecomunicações (2016). ICT Facts and Figures 2016. Retirado de
<http://www.itu.int/en/ITU-D/Statistics/Documents/facts/ICTFactsFigures2016.pdf>

Warschauer, M. (2003). Technology and Social Inclusion: Rethinking the Digital Divide.
Massachusetts: MIT Press.

163
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ MARTHA CISNEROS + DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA

MARTHA CISNEROS
Martha Cisneros é engenheira de Tecnologia
da Informação (TI) com seis anos de
experiência no setor privado e público,
atualmente cursando Mestrado em
Administração Pública na Marxe School of
Public of International Affairs - Baruch College
em Nova York. Sua pesquisa se concentra em
tecnologia educacional, direito da imigração
e análise de políticas de Internet. Ela é uma
Internet Society Next Generation Leader da
turma de dezembro de 2015.

DÁMARIS CONTRERAS-LUZANILLA
Dámaris Contreras trabalhou como
engenheira de software por mais de
cinco anos na área de TI. Possui mestrado
em História e Filosofia da Ciência pela
University of Strasbourg e é credenciada
pelo European Master’s Programme em
Sociedade, Ciência e Tecnologia por sua
especialização em Economia e Gestão da
Inovação. Sua pesquisa está focada em
política de inovação, inovação social,
desigualdade e desenvolvimento.

164
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

RUMO AO ILUMINISMO
DIGITAL:
COMO CONSTRUIR
PENSADORES CRÍTICOS NA
ERA DIGITAL?

FERNANDO A. MORA
Ph.D. em Ética, pesquisador visitante do Instituto Ibero-america-
no em Berlim, Alemanha.
feromd@gmail.com
México

165
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

_TEMÁTICA

Inovação e capacitação tecnológica


Problemas de gênero e de juventude na Internet

_RESUMO

As sociedades devem dedicar-se a um novo projeto educacional


para formar cidadãos que façam um uso responsável da
tecnologia e, especificamente, da tecnologia digital. Inspirado
pela ideia de Kant de ‘se atreva a pensar por contra própria!’
e por críticos do pensamento tecnológico, como Adorno,
Horkheimer, Byung-Chul e Habermas, o artigo propõe um
modelo educacional não puramente baseado na tecnologia,
mas também no pensamento crítico. O verdadeiro desafio
educacional visa criar para a juventude de hoje e para as
novas gerações, ferramentas e habilidades inseridas em um
“iluminismo digital” que, com base na ideia educacional de
Tony Wagner, desenvolvem capacidades e habilidades para que
as pessoas possam se adaptar ao mundo digital.

Palavras chave: educação; tecnologia; millennials

166
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

“Nada é tão doloroso para a mente humana quanto uma grande e


repentina mudança.”
Mary W. Shelley, Frankenstein,

“Nós moldamos nossas construções e elas, então, nos moldam”.


Winston Churchill,

O filme “Her”, vencedor do Oscar em 2014 de Melhor Roteiro Original, conta a


história de um homem que se apaixona por um sistema operacional de computador
(Samantha). O enredo se desenrola em um futuro próximo, em um mundo não tão
ficcional, onde a sociedade está acostumada a realizar todas as suas atividades por
meio da tecnologia. O filme apresenta um cenário em que as pessoas criaram tamanha
simbiose com as ferramentas tecnológicas que os usuários e os gadgets começam a
desenvolver relacionamentos normalmente considerados exclusivos de seres humanos,
como amizade e amor.

Há um momento no filme em que Samantha mostra


sinais de autoconsciência: “Você sabia? Eu costumava
me preocupar por não ter um corpo, mas agora eu AFINAL, A
realmente amo isso... Eu não estou amarrada ao tempo TECNOLOGIA
ou ao espaço da maneira que eu estaria se eu estivesse É AMORAL; É
presa em um corpo que inevitavelmente morreria”. INDEPENDENTE
Embora o filme levante velhas questões que preocuparam DE IDEIAS, COMO
filósofos durante décadas – como, por exemplo, se O BEM E O MAL,
criaturas não biológicas, como Samantha, são capazes E APENAS O USO
de ter consciência, ou se algum dia poderemos enviar as QUE AS PESSOAS
nossas mentes para um computador e viver para sempre
FAZEM DELA
–, ele também apresenta uma questão bastante profunda
ESTÁ SUJEITO AO
que deve ser resolvida prontamente. Já estamos em um
ESCRUTÍNIO DA
ponto decisivo: a tecnologia – especialmente no mundo
digital – está se tornando cada vez mais humanizada
ÉTICA.
e, por outro lado, a humanidade tende a se tornar cada
vez mais tecnológica. Um breve olhar ao relato de Joel
Garreau sobre como a Agência Americana de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa
(American Defense Advanced Research Projects Agency [DARPA]) está trabalhando na
remodelação do núcleo e da natureza dos seres humanos é uma imagem vívida do
futuro quando os humanos poderão ser capazes de conectarem seus cérebros a uma
rede Wi-Fi (Garreau, 2005). Enquanto alguns cientistas estão expandindo os limites
da condição humana, alguns filósofos estão muito céticos sobre a simbiose homem-
tecnologia, indicando que ela poderá ter um alto custo: a desumanização da própria
humanidade.

Este artigo não tenta fazer um absurdo e malsucedido esforço para defender
uma humanidade “destecnologizada”, ou chamar atenção para um lado diabólico da
tecnologia. Afinal, a tecnologia é amoral; é independente de ideias, como o bem e o mal,
e apenas o uso que as pessoas fazem dela está sujeito ao escrutínio da ética.

A intenção reside no projeto educacional que a sociedade deve se dedicar agora, a fim

167
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

de construir cidadãos que façam um uso responsável da tecnologia e, especificamente,


da tecnologia digital.

Marc Prensky, especialista em educação, chama a atenção para o fato de que os


jovens de hoje são a primeira geração formada nos novos avanços tecnológicos, que
os envolveu pela imersão, visto que os jovens estiveram desde sempre cercados por
computadores, vídeos, videogames, música digital, telefones celulares e outros
aparelhos (Prensky, 2012).

Esta imersão na qual a geração Y e a pós-geração Y (millennials e pós-millennials)


se tornou habituada levanta dúvidas sobre se estes jovens sabem como usar essas
ferramentas de forma responsável e em benefício deles, e que isso não seja uma
suposição dada como certa. Ter um tablet, smartphone, laptop ou um aparelho de ponta
não significa necessariamente que um usuário possua as habilidades tecnológicas e
não tecnológicas para tirar proveito de tal aparelho.

Hoje em dia, existe a crença de que todos os problemas podem ser resolvidos através
da simples presença da tecnologia. Existe uma obsessão em criar aplicativos para todos
os tipos de problemas. Mas será que a tecnologia digital é realmente uma ferramenta
para criar melhores seres humanos e, como consequência, melhores sociedades? Agora
que a Internet está coabitando nossa vida cotidiana, temos uma geração de jovens que
usam a tecnologia para se envolverem mais na política, para serem cidadãos mais
informados ou para melhorarem as suas vidas e, por sua vez, as suas comunidades?
Ou será que essas ferramentas estão sendo usadas apenas para lazer e prazer pessoal?

Alessandro Baricco, famoso escritor italiano contemporâneo, chamou a atenção para


a natureza disruptiva da geração Y, que respira
pelas brânquias do Google e valoriza a velocidade
AGORA QUE A em detrimento de profundidade (Baricco, 2008).
INTERNET ESTÁ Ele chama a geração Y de “bárbaros” porque eles
COABITANDO NOSSA estão “destruindo” ou reformulando os modos
VIDA COTIDIANA, tradicionais e antigos de seres civilizados. De
modo algum, é um grito de nostalgia onde os
TEMOS UMA GERAÇÃO
velhos tempos eram melhores; pelo contrário, é
DE JOVENS QUE USAM
uma constatação da realidade de que as novas
A TECNOLOGIA PARA
gerações estão mudando temerariamente
SE ENVOLVEREM os valores da sociedade devido à renovação
MAIS NA POLÍTICA, acelerada da tecnologia.
PARA SEREM
CIDADÃOS MAIS É verdade que a Internet começou uma
INFORMADOS OU revolução da informação nunca antes vista
desde a imprensa de Gutenberg: a chamada era
PARA MELHORAREM
da informação, onde as pessoas têm acesso a um
AS SUAS VIDAS E, POR
vasto mundo de conteúdo e podem se conectar
SUA VEZ, AS SUAS
com a população global. No entanto, assim
COMUNIDADES? como no século 15, a invenção da impressão não
foi, por si só, causa de uma sociedade voltada

168
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

ao Iluminismo, mas uma enorme oportunidade para as pessoas terem acesso ao


conhecimento que era exclusivo das elites.

No século 21 é necessário repensar as habilidades apropriadas que nossas sociedades


exigem a fim de se obter maiores benefícios proporcionados pelos avanços tecnológicos.

Immanuel Kant, em seu ensaio “O que é Iluminismo?”, resume o espírito do


Iluminismo na famosa locução latina sapere aude! Ou, “se atreva a pensar por contra
própria!” (Kant, [1784] 1979, tradução nossa). O filósofo alemão observa a urgência das
sociedades constituídas por pessoas independentes e de pensamento livre responsáveis​​
por elas próprias e pela sociedade. Ou seja, Kant enfatiza que o Iluminismo significa
formar indivíduos que são capazes de produzir suas decisões, criticar sua realidade e
respeitar as leis que permitem o bem comum.

Desta forma, fazendo referência à ideia kantiana, o verdadeiro desafio educacional


visa produzir nos jovens e nas novas gerações ferramentas e habilidades inseridas em
um “iluminismo digital”. Pessoas imersas no mundo digital que são capazes de usar
ferramentas tecnológicas através do pensamento crítico, cidadãos responsáveis que
​​ se
concentram no pleno desenvolvimento de si mesmos e da sociedade a que pertencem.

Algumas correntes educacionais estão procurando desenvolver a inovação


educacional e estão enfatizando a inclusão do conhecimento tecnológico em programas
acadêmicos. Nessa vertente, existem disciplinas em cursos como História, Matemática,
Finanças, Psicologia, Literatura etc., em que o uso de smartphones, tablets e aplicativos
tornou-se sinônimo de inovação. No entanto, a simples inclusão de tecnologia na
disciplina de qualquer curso não deve ser considerada uma forma de educação
inovadora. A inovação seria fazer com que as ferramentas tecnológicas abrissem novas
oportunidades para que os alunos possam enriquecer, manipular, transformar e aplicar
o conhecimento que cada disciplina oferece.

Aristóteles, o grande filósofo grego, dividiu as virtudes práticas em dois níveis


(Aristóteles, 1983). A primeira e a mais baixa refere-se à técnica (techné). Esta virtude é
orientada para a produção, e dá uma resposta à pergunta: como algo pode ser produzido?
Refere-se à posse de habilidades e conhecimentos que permitem que a pessoa transforme
uma coisa em outra, por exemplo, a técnica de um carpinteiro de transformar madeira
bruta em um bom móvel. No segundo nível, existe a virtude da prudência (frônese), que
Aristóteles define como a sabedoria prática que permite ao indivíduo deliberar e escolher
o que mais lhe convém em sua vida como um todo. Desta forma, a posse dessa virtude
permite que uma pessoa obtenha felicidade e satisfação. Essa virtude dá uma resposta
à pergunta: o que é melhor para mim? Ao contrário da técnica, a prudência transforma
a própria pessoa por meio das ações individuais que ela desenvolve em sua vida. Por
exemplo, essa prudência ou sabedoria prática é um equilíbrio entre o conhecimento e as
habilidades que permitem que uma pessoa decida quantos chocolates deve comer para
apreciá-los moderadamente sem arriscar a sua saúde.

Sob este entendimento, a prudência ou a sabedoria prática têm mais peso no


desenvolvimento das pessoas, porque é através do conhecimento associado a essa

169
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

virtude que o indivíduo cresce e se aproxima de um estado de bem-estar. Ou seja,


através da técnica, um sapateiro dominará a arte de produzir melhores sapatos, mas
será através da sabedoria prática que o sapateiro será capaz de tomar as melhores
decisões para sua vida e assim conseguir o bem-estar.

Ao aplicar nos modelos educacionais, apenas uma ênfase na aquisição e formação


da técnica, uma dimensão mais ampla e mais crítica da vida das pessoas é esquecida.
Atualmente, temos uma geração que pensa em 140 caracteres e publica suas ideias e
sentimentos em murais. O conhecimento técnico dessas ferramentas digitais é quase
inerente ao seu contexto. Apesar disso, alguns modelos educacionais continuam a
enfatizar o desenvolvimento dessas habilidades técnicas.

Ter conhecimento tecnológico é bom; não há dúvida sobre isso. Por exemplo, hoje
em dia, saber programar é uma habilidade valiosa, altamente apreciada por muitas
empresas. No entanto, saber como posso usar a programação para melhorar a minha
vida e a vida das pessoas é um conhecimento elevado que não está apenas relacionado
à técnica, mas também à sabedoria prática. Esse último tipo de conhecimento não é
adquirido através do domínio da tecnologia, mas através do pensamento crítico, que
permite que as pessoas usem a tecnologia disponível para resolver problemas.

Max Horkheimer e Theodor Adorno em Dialectics of Enlightenment revelaram


desencantamento sobre o conceito de “progresso”, quando acompanhado de
conhecimento técnico ou razão tecnológica. Eles afirmam que apostar exclusivamente
em um tipo de raciocínio tecnológico levou a humanidade a um pensamento cegamente
pragmatizado, que perde seu caráter de superação e preservação e, portanto, também a
sua relação com a verdade. A ideia de progresso e domínio sobre a natureza é a herança
do pensamento iluminista: tire o medo dos homens e os transforme em mestres
(Horkheimer & Adorno, 2002).

Horkheimer e Adorno indicam que a promessa de razões tecnológicas para alcançar


um estado de bem-estar foi um engano de razão iluminada. A crise do projeto de
Iluminismo reside na ideia de que o conhecimento deve ser mais técnico do que crítico.
O medo desses filósofos alemães era que a boa vontade misteriosa das massas educadas
tecnologicamente caísse sob o feitiço de qualquer despotismo, devido à ausência de
pensamento crítico.

O filósofo coreano Han Byung-Chul resgata essa ideia e fala da sociedade da fadiga.
Ele denuncia que as pessoas, hoje, optaram pela submissão e o fizeram em troca de
um modo de vida pouco interessante, quase de pura sobrevivência. Em troca desse
tipo de vida, as pessoas renunciaram à sua soberania e à sua liberdade. No passado,
agentes externos como escravidão ou sistemas feudais exploravam pessoas. Agora,
em um modelo neoliberal, as pessoas se tornaram exploradoras de si mesmas. No
neoliberalismo, o trabalho é sinônimo de realização pessoal ou otimização pessoal, até
o colapso do indivíduo. A sociedade da fadiga é uma sociedade de autoexploração; o
homem tornou- se “carrasco e vítima de si mesmo”, lançado em um terrível abismo: o
fracasso (Byung-Chul, 2012).

170
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

A presença constante de ferramentas digitais em nossas vidas incentiva e intensifica


essa autoexploração. Smartphones, tablets e outros aparelhos a tornaram possível. Em
relação a isso, é um pouco irônico que o emblemático smartphone da empresa RIM
tenha optado pelo nome de Blackberry, pois, durante os tempos da escravidão nos
Estados Unidos, “blackberry” era um dos nomes da bola de ferro que era acorrentada
aos pés dos escravos negros.

A forte ênfase e busca pelo conhecimento técnico levam a uma sociedade destinada
à frustração e ao fracasso. Uma sociedade ausente de ferramentas que permite que as
pessoas deem significado à vida. A sociedade torna-se um conglomerado de autômatos
incorporados na vida profissional sem intenções ou sonhos a serem realizados.

No final, quão gratificante é uma cultura de obsessão por mídia social? A


multiplicação tão prontamente disponível é tão efêmera e insubstancial quanto as
muitas ocasiões de nossas vidas que ela replica (Newberger Goldstein, 2014). A expansão
do nosso universo digital – Second Life, Facebook, MySpace, Twitter – não mudou apenas
a forma como gastamos nosso tempo, mas também como construímos identidade. Por
isso, devemos começar a perguntar-nos: que tipo de sociedade estamos construindo se
ela for fundamentada em cópias digitais de nós mesmos?

Portanto, apostar apenas na inclusão do conhecimento tecnológico nos modelos


educacionais gerará jovens ideais para a vida profissional, mas incapazes de se
encarregarem de suas vidas.

Por essa razão, a proposta é que os modelos educacionais retornem aos princípios
originais do Iluminismo delineados por Kant e os adaptem à geração Y imersa no
avanço tecnológico. Consequentemente, educar com inovação deve visar a construção de
pessoas com habilidades e capacidades que lhes
permitam usar as ferramentas tecnológicas em
seu benefício e em benefício da sua sociedade.
EMBORA DEVAM
Nesse sentido, a educação pode ser entendida INCLUIR A
no conceito alemão de Bildung, que inclui uma INOVAÇÃO
formação holística: religiões, artes, consciência TECNOLÓGICA,
moral e os processos de produção e reprodução OS MODELOS
social. A ideia de Bildung indica um processo
EDUCACIONAIS
ativo e dinâmico voltado para a transformação
NÃO DEVEM
da realidade. Desta forma, o filósofo Johann G.
PERDER DE VISTA
Herder a define como um processo intelectual
de formação, educação e realização da plenitude
O FATO DE QUE A
humana ligada ao conceito de Aufklärung, que SUA PRINCIPAL
é o iluminismo entendido como o despertar da MISSÃO É
consciência racional (Subirats, 2013). PERMITIR QUE
AS PESSOAS SE
Embora devam incluir a inovação
DESENVOLVAM
tecnológica, os modelos educacionais não devem
COMO INDIVÍDUOS.
perder de vista o fato de que a sua principal

171
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

missão é permitir que as pessoas se desenvolvam como indivíduos. Desta forma, a


intenção da educação é formar nos jovens as habilidades adequadas para se adaptarem
às mudanças constantes.

O especialista em inovação educacional Tony Wagner afirma que as sete habilidades


mais importantes a serem desenvolvidas nos alunos são: o pensamento crítico e
resolução de problemas, colaboração em redes e influência via liderança, agilidade e
adaptabilidade, iniciativa e empreendedorismo, comunicação efetiva (tanto oral quanto
escrita), acesso e análise de informação, e curiosidade e imaginação (Wagner, 2010).

A primeira habilidade, pensamento crítico e resolução de problemas, refere-


se à capacidade de ser curioso e de se questionar por que as coisas são como são e
simultaneamente pensar por que algo é importante. Embora a ideia do pensamento
crítico seja uma frase que recentemente se tornou moda no mundo da educação, não se
deve ignorar que a intenção de desenvolver essa habilidade refere-se a indivíduos com
uma compreensão mais ampla dos problemas em andamento. Ou seja, eles podem ver
além do presente, pensar sobre o futuro e pensar sistematicamente para poder conectar
os pontos. É uma maneira menos linear de pensar onde as pessoas podem conceituar,
mas também sintetizar uma grande quantidade de informações (Wagner, 2010).

A segunda habilidade de Tony Wagner refere-se à capacidade de trabalhar em


colaboração. É o reconhecimento do contexto atual em que os indivíduos que podem se
envolver em redes de pessoas por meio das fronteiras e culturas diferentes tornaram-se
um requisito essencial para empresas multinacionais (Wagner, 2010). A habilidade ressoa
com a ideia já anunciada por Manuel Castells: “As redes constituem a nova morfologia
social de nossas sociedades e a difusão da lógica da rede modifica substancialmente o
funcionamento e os resultados de processos de produção, experiência, poder e cultura”
(Castells, 2001, tradução nossa). Embora a forma de organização social por meio de
redes já tenha existido em outros momentos e lugares, o novo paradigma da tecnologia
fornece uma base para sua ampla expansão em qualquer estrutura social. Assim, a
capacidade de colaborar em redes é uma capacidade essencial para se adaptar ao
mundo contemporâneo.

Paralelamente, dada a vasta velocidade das mudanças – sociais, econômicas


e tecnológicas – no contexto atual, a capacidade de agilidade e adaptabilidade é
fundamental. A capacidade de responder a mudanças disruptivas e a paixão em aderir
a novas ideias tornaram-se essenciais.

Uma quarta habilidade refere-se aos indivíduos que podem tomar iniciativa e serem
empreendedores enquanto buscam por novas oportunidades, ideias e estratégias de
melhoria. Devido ao rápido ritmo de mudanças, os indivíduos com as maiores oportunidades
serão aqueles que são altamente adaptáveis ​​e aproveitam as novas oportunidades.

As habilidades mencionadas tornam-se inválidas se não houver habilidade real


de se comunicar efetivamente de forma oral ou escrita. Atualmente, muitos jovens
trabalhadores têm dificuldade em serem claros e concisos; eles são incapazes de expressar
os seus pensamentos efetivamente. A tecnologia tornou ainda mais complexa essa

172
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

capacidade. Agora, além das formas tradicionais,


também é necessário se comunicar efetivamente
através de apresentações, videoconferências,
A PROPOSTA
e-mails e mensagens de texto. Então, agora, a DO ILUMINISMO
chave para essa habilidade reside não só em DIGITAL BASEIA-
poder comunicar os pensamentos de forma clara SE NA INTENÇÃO,
e concisa, mas também a capacidade de criar um POR UM LADO,
foco, bem como transmiti-lo com energia e paixão. DE DESENVOLVER
CAPACIDADES
A sexta habilidade mencionada por Wagner refere-
E HABILIDADES
se à capacidade de encontrar e analisar informações,
QUE PERMITAM
uma habilidade fundamental em um mundo digital.
Devido à quantidade exorbitante de informações que
QUE AS PESSOAS
as pessoas têm de lidar diariamente tanto em seus SE ADAPTEM AO
empregos quanto em suas vidas pessoais, hoje, ser MUNDO DIGITAL.
um cidadão ativo e informado, não se limita a ser POR OUTRO LADO,
capaz de ler jornais. Agora, uma pessoa deve ser capaz TAMBÉM SIGNIFICA
de encontrar e avaliar informações de várias fontes QUE AS PESSOAS
diferentes; distinguir notícias verdadeiras e falsas, PODERÃO REFLETIR
baseadas em fato ou em uma mera opinião. Uma SOBRE OS OBJETIVOS
habilidade ligada ao pensamento crítico. DE SUAS VIDAS,
Por fim, ter uma capacidade de curiosidade e CONSCIENTES DO
imaginação é essencial para o desenvolvimento nos USO RESPONSÁVEL
jovens. A criatividade e a inovação são fatores-chave DA TECNOLOGIA
não só para a resolução de problemas, mas também E CAPAZES DE
para o desenvolvimento de produtos, serviços e COLABORAR NO
ideias (Wagner, 2010). Além disso, essa habilidade DESENVOLVIMENTO DE
dá um elemento mais humano ao mundo que tende SUAS COMUNIDADES
utilizar a automação em todas as suas dimensões e
vê os trabalhadores como peças substituíveis.

Tempos Modernos, o filme mudo de Charlie Chaplin, é uma paródia clássica ao


trabalhador desumanizado por causa da tecnologia. Atuando como um trabalhador da
linha de montagem, o personagem de Chaplin sempre está metido em problemas com
os chefes e acaba ficando preso nas engrenagens da máquina. Ele é simplesmente uma
peça substituível. Um modelo educacional com o objetivo de treinar futuros técnicos
acabará por fornecer peças humanas substituíveis para as empresas.

Essas sete habilidades de sobrevivência descritas por Tony Wagner são consideradas
as principais competências para as gerações presentes e futuras. Habilidades para
trabalhar, aprender e gerar cidadania no século 21. No entanto, na forma como elas
são exibidas, parece que continuam sendo habilidades que só respondem à lógica
do trabalho. Se os sistemas educacionais se destinarem a gerar essas capacidades
nos jovens, eles produzirão futuros profissionais capazes de se adaptar ao mundo do
trabalho, mas ainda faltarão as ferramentas vitais que lhes permitirão responder
questões humanamente essenciais, como “O que eu devo fazer com minha vida?”

173
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

Tomando as ideias já apontadas por Theodor Adorno e Max Horkheimer em “A


Dialética do Esclarecimento” (“Dialectic of Enlightenment”), Jürgen Habermas é um
crítico acentuado da razão instrumental: um tipo de razão que inclui modos de ação
baseados em deliberações racionais sobre a eficácia dos meios. O medo de Habermas
pela razão instrumental baseia-se no fato de que o controle tecnológico sobre a natureza
funciona como uma ideologia; uma tela que esconde o personagem portador de valores
e que responde à manutenção do status quo capitalista.

A razão instrumental torna-se palpável nas práticas do mercado, onde os anúncios


de diferentes produtos existem exclusivamente para vender mais e gerar mais serviços,
o que não é pernicioso em primeira instância, pois esse é o objetivo de qualquer empresa.
No entanto, o perigo reside quando as práticas começam a “colonizar” – nas palavras
de Habermas – outros aspectos do mundo. Por exemplo, quando as empresas dedicadas
a produzir e vender bebidas refrescantes são anunciadas como empresas que geram
“felicidade” e uma “vida saudável”.

Habermas diz que a humanidade esqueceu a outra metade do projeto do Iluminismo.


Embora a razão instrumental para o progresso tenha sido explorada, a dimensão
cultural da modernidade foi esquecida. A racionalidade consiste não só em possuir um
conhecimento particular, mas também em como indivíduos capazes de falar e agir
adquirem e usam esse conhecimento (Habermas, 1999).

Com trabalhos sendo automatizados e com o conhecimento sendo desvalorizado,


os humanos precisam redescobrir o pensamento flexível. Isso começa nas escolas.
Charlotte Blease explica que:

No futuro próximo, os alunos das escolas precisarão de outras


habilidades. Em um mundo onde a perícia técnica é cada vez
mais limitada, as habilidades e a confiança para transitar entre
disciplinas serão excelentes. Precisaremos de pessoas que estejam
dispostas a perguntar e a responder as questões que não são
respondidas pelo Google: por exemplo, quais são as ramificações
éticas da automação das máquinas? Quais são as consequências
políticas do desemprego em massa? Como devemos distribuir
a riqueza em uma sociedade digitalizada? Como sociedade,
precisamos ser mais engajados filosoficamente (Blease, 2017,
tradução nossa).

A proposta do Iluminismo Digital baseia-se na intenção, por um lado, de desenvolver


capacidades e habilidades que permitam que as pessoas se adaptem ao mundo digital.
Por outro lado, também significa que as pessoas poderão refletir sobre os objetivos de
suas vidas, conscientes do uso responsável da tecnologia e capazes de colaborar no
desenvolvimento de suas comunidades; atentas ao fato de que o projeto da modernidade
pode tornar-se patológico quando o dinheiro e o poder colonizam o mundo da vida
(Habermas, 1999).

Portanto, as universidades não devem ser governadas por estratégias de mercado, e


sim proteger a si próprias e a missão original delas a fim de estimular o desenvolvimento

174
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

integral das pessoas. Embora seja necessário proporcionar habilidades de trabalho


para os jovens, também deve-se desenvolver um senso de humanidade que os permita
deliberar sobre o que é desejável para a vida deles e para os outros.

Sob esta premissa, o Iluminismo Digital contempla desenvolver habilidades como


as mencionadas por Tony Wagner, porém orientadas a permitir que as pessoas tenham
ótimas ferramentas para dar sentido às suas vidas. Além disso, ele reconhece que a
busca da inovação tecnológica isoladamente pode ser perversa no desenvolvimento das
gerações futuras.

Embora o pensamento crítico seja vital para o ensino e o conhecimento, a abordagem


dada nos últimos anos a essa habilidade levou a uma geração que admira o desprezo
como sinal de inteligência. Examinando rapidamente o Twitter e as linhas de tempo do
Facebook, se descobre que o cinismo e o sarcasmo são os novos símbolos da inteligência,
menosprezando o valor da admiração e da ignorância que acompanham a dúvida. O
cinismo distancia as pessoas da escuta e do diálogo, e da participação colaborativa. Se
hoje continuarmos criando jovens cínicos, incapazes de reconhecer a autoignorância
sem medo, no futuro teremos adultos desempregados incapazes de colocar-se na
posição uns dos outros.

Por essa razão, a inovação educacional deve incentivar a abertura, participação e


oportunidade. Deve ser projetada para levar o estudante além do campus da universidade
para uma vida de aprendizado contínuo e pragmático baseado em fontes inesperadas e
que aumente a nossa capacidade de compreender e contribuir para o mundo (Roth, 2014);
desenvolvendo uma forte bússola moral nos estudantes, ainda relevante na era digital.

Não é por acaso que Damon Horowitz, o filósofo do Google, é responsável pela direção
da engenharia da empresa e incita o desenvolvimento de um sistema operacional moral.
Uma pista de que os monstros da tecnologia começam a perceber que o futuro não será
dos técnicos capazes de manipular a tecnologia, mas das pessoas com as ferramentas e
o entendimento para dar a resposta às perguntas, como “O que fazer com a tecnologia?
E para onde direcioná-la?”

Sherry Turkle explica a oportunidade que temos de moldar as nossas sociedades de


forma positiva, em que a tecnologia é uma aliada e não uma ameaça:

Relacionamentos com robôs estão aumentando; relações com as


pessoas estão diminuindo. Em que caminho estamos andando? A
tecnologia se apresenta como uma rua unidirecional; é provável
que descartemos os descontentamentos sobre a sua direção porque
os lemos como um crescimento da nostalgia ou um impulso
antimáquinas ou simplesmente como algo em vão. Mas quando
nos perguntamos o que nós “sentimos falta”, podemos descobrir o
que realmente nos importa, o que acreditamos que vale a pena ser
protegido. Nós nos preparamos não necessariamente para rejeitar
a tecnologia, mas para moldá-la de maneiras que honram o que
consideramos querido. Nós fazemos nossas tecnologias, e elas,

175
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

por sua vez, nos moldam. Portanto, sobre toda tecnologia nós
devemos perguntar: ela atende aos nossos propósitos humanos?
Uma pergunta que nos faz reconsiderar quais são esses propósitos.
As tecnologias em todas as gerações apresentam oportunidades
para refletir sobre nossos valores e nossa direção (Turkle, 2012,
p.19, tradução nossa).

No Iluminismo Digital, o modelo educacional para a geração Y e nativos digitais


deve criar pessoas e cidadãos que, além de saberem como usar as novas tecnologias,
possuam um critério ético para conduzi-la na direção dos melhores propósitos. Além
disso, assumir a responsabilidade de incluir jovens marginalizados da era digital. Ou
seja, abraçar o compromisso de trazer aqueles que, devido a diferentes fatores, ainda
não se beneficiaram dos avanços tecnológicos. E, por fim, que a frase kantiana sobre
ousar usar a nossa própria razão não seja apenas orientada para a visão moderna do
progresso ou para as leis do mercado, mas seja também direcionada a encontrar novas
e melhores soluções para o desenvolvimento de nossas vidas pessoais, assim como das
nossas comunidades. Se os avanços tecnológicos nos conduzirem a isso, estaremos
mais perto de nos reconhecer como uma sociedade iluminada.

Artigo originalmente escrito em inglês

_REFERÊNCIAS

Aristóteles. (1983). Ética Nicomaquea (Tradução de A. G. Robledo, 2ª ed.). México:


Universidad Nacional Autónoma de México.

Baricco, A. (2008). Los bárbaros: ensayo sobre la mutación (Tradução de X. González


Rovira). Barcelona: Anagrama.

Blease, C. (2017). Philosophy can teach children what Google can’t. The Guardian.
Recuperado de <https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/jan/09/
philosophy-teach-children-schools-ireland>

Byung-Chul, H. (2012). La sociedad del cansancio (Tradução de A. Saratxaga). Barcelona:


Herder.

Castells, M. (2001). The Internet Galaxy: Reflections on the Internet, Business, and
Society. Nova York: Oxford University Press.

Garreau, J. (2005). Radical Evolution. Nova York: Broadway Books.

Habermas, J. (1999). Teoría de la acción comunicativa, I. Madri: Taurus.

176
INOVAÇÃO E CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA _ FERNANDO A. MORA

Horkheimer, M., & Adorno, T. (2002). Dialectic of Enlightenment (Tradução de E.


Jephcott). Stanford: Stanford University Press.

Kant, I. ([1784] 1979). ¿Qué es la Ilustración? (Tradução de E. Ímaz, 2ª ed.). México: FCE.

Newberger Goldstein, R. (2014). What Would Plato Tweet.  Recuperado de: <opinator.
blogs.nytimes.com>

Prensky, M. (2012). From Digital Natives to Digital Wisdom. London, UK: Corwin.

Roth, M. S. (2014). Young Minds in Critical Condition. The New York Times. Recuperado
de <http://opinionator.blogs.nytimes.com/2014/05/10/young-minds-in-critical-
condition/>

Subirats, E. (2013). Mito y Literatura. Barcelona: Siglo XXI.

Turkle, S. (2012). Alone Together: Why We Expect more from Technology and Less from
Each Other. Nova York: Basic Books.

Wagner, T. (2010). The Global Achievement Gap. Nova York: Basic Books.

FERNANDO A. MORA
Ph.D. em Ética do Campus Tecnológico
de Monterrey, Cidade do México, e agora
pesquisador visitante do Instituto Ibero-
Americano em Berlim, na Alemanha.
Implementou estratégias de tecnologias
educacionais e busca preparar jovens
para responder as questões que não são
respondidas pelo Google. Sua experiência
profissional e formação acadêmica perpassa
as áreas de Ética, Educação e Democracia.

177
PROBLEMAS
EMERGENTES
DA INTERNET
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

COMO A “COLONIZAÇÃO DE
MERCADO” DA INTERNET
TRANSFORMOU CIDADÃOS EM
MEROS CONSUMIDORES?
MARKETIZAÇÃO DO ESPAÇO
ONLINE

GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ


Mestre em Políticas Públicas, Hertie School of Governance
g.guerrero@mpp.hertie-school.org
México

179
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

_TEMÁTICA

Problemas emergentes da Internet


Cooperação de múltiplas partes interessadas

_RESUMO

Este artigo pretende contribuir para um debate construtivo


sobre o poder crescente das cinco empresas de tecnologia
que controlam as plataformas em que os usuários mais
passam tempo online. Amazon, Apple, Facebook, Google e
Microsoft são as maiores companhias da Internet e lucram
muito com os dados de comportamento online dos usuários.
Esta “colonização de mercado” da Internet está impactando
o debate público e afetando a troca de ideias. As decisões
feitas por algoritmos limitam a neutralidade e o acesso à
informação. Grupos interdisciplinares precisam trabalhar
juntos para entenderem com o que estamos lidando e
promoverem as mudanças necessárias.

Palavras chave: empresas de tecnologia; colaboração; espaço


digital

180
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

A Internet, uma vez, foi considerada como um espaço


neutro, perfeito, em que todas as falhas da sociedade
AS DECISÕES
poderiam desaparecer. John Perry Barlow capturou esse
espírito na Declaração da Independência do Ciberespaço,
TOMADAS POR
em 1996: “Vamos criar uma civilização da Mente no ALGORITMOS
Ciberespaço. Que ela seja mais humana e justa que o LIMITAM A
mundo que os seus governos criaram anteriormente”. NEUTRALIDADE
E O ACESSO À
Hoje, em 2017, a realidade está longe daquela utopia. INFORMAÇÃO.
Não há dúvida de que a Internet, como uma ferramenta
tecnológica, cultural e econômica, transformou quase todas
as práticas humanas. Ela tem sido um espaço que amplifica as capacidades humanas e que
permite que as pessoas desenvolvam novos modelos econômicos, autonomia em face da
mídia tradicional e capacidade de tomar decisões informadas. Mas ela também abriu a porta
para novos desafios incrivelmente complexos, tais como o crime cibernético, a privacidade
e a proteção de dados, as notícias falsas e o abuso online, entre muitos outros. As mesmas
ferramentas funcionam para o bem ou para o mal. As plataformas que nos conectam
também podem nos dividir. Esta característica enfraquece os valores que as sociedades
modernas afirmam defender e proteger. Além disso, descobrimos que a tecnologia não é
neutra e a comercialização em excesso do espaço online está impactando a democracia.

Papacharissi (2002), Freelon (2010) e Bennett & Segerberg (2013) apoiam a premissa
de que a web permite a promoção do debate público. A Internet é um espaço que serve
de mediador entre o Estado e os cidadãos, um novo tipo de esfera pública sem restrições
que criou novas formas de interação neutra e livre entre ambos. Mas, para o usuário
em geral, o espaço virtual não é tão neutro e não tão gratuito, dado que governos e
corporações monitoram nossas ações online e reúnem todos os nossos dados, medindo
o nosso comportamento online. Os primeiros fazem isso por razões de segurança
nacional, os segundos, por interesses comerciais.

O espaço online é governado por entidades privadas que possuem as plataformas


onde os usuários mais passam o tempo quando conectados. Essas empresas lucram
muito com os dados sobre o comportamento online do usuário. As receitas publicitárias
alteraram a dinâmica da Internet, criando corporações multinacionais de tecnologia
gigantes. As decisões tomadas por algoritmos limitam a neutralidade e o acesso
à informação. Esses algoritmos e os termos e condições das empresas filtram as
informações que bilhões de pessoas em todo o mundo leem e compartilham diariamente.
As corporações de tecnologia denominadas Big Five, Amazon, Apple, Facebook, Google e
Microsoft, são as maiores companhias da era da Internet e dominam a vida digital. Em
suas plataformas e dispositivos, os usuários pesquisam, fazem compras e socializam.

Cada uma delas criou várias tecnologias enormes que


são fundamentais para quase tudo o que fazemos com os
computadores. No jargão tecnológico, elas possuem muitas das
plataformas mais valiosas do mundo – os principais blocos
de construção em que dependem todos os outros negócios, até
mesmo os pretensos concorrentes (Manjoo, 2016, tradução nossa).

181
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

Essas empresas estão se tornando cada vez mais indispensáveis. Suas plataformas
e dispositivos são onde todos estão e é impensável para as novas gerações imaginarem
as suas vidas sem um smartphone, jogos e compras online, Facebook ou Instagram.
Uma realidade “à la carte” em que tudo está sujeito a filtros (muitos filtros) e é
intercambiável, até mesmo os valores. Seguindo o conceito de Bauman de Modernidade
Líquida, o consumo desempenha um papel fundamental:

O ato de consumo é uma forma de ter, talvez o mais importante


para a opulenta sociedade industrial de hoje. O consumo tem
características ambivalentes: alivia a ansiedade porque o que
se tem não pode ser retomado, mas também exige que os
consumidores consumam cada vez mais, já que o consumo
anterior logo perde a sua peculiaridade gratificante (Bauman,
2000, tradução nossa).

A obsessão do consumo se entrelaça com o nosso comportamento online e


as corporações sabem bem disso. Os lucros que elas estão tendo em torno do
comportamento social online são enormes. Em 2016, as Big Five (Amazon, Apple,
Facebook, Google e Microsoft) acabaram entre as 10 maiores empresas americanas mais
valiosas de qualquer tipo (Manjoo, 2016). De acordo com o Internet Trends Report, em
2015, 75 centavos de cada dólar gasto em publicidade online foram para o Google ou o
para Facebook (Meeker, 2015). Pequenas empresas perderam participação de mercado e
os analistas sugerem que elas estão predestinadas a permanecer excluídas do mundo
das principais companhias. A essa grande concentração de poder de mercado podemos
adicionar a capacidade deste “duopólio” em estabelecer as regras do setor. Eles estão
transformando toda a indústria e impactando a maneira pela qual interagimos e nos
comportamos online. Tudo acontece nas mesmas plataformas, em torno das mesmas
pessoas, nos mesmos dispositivos. Os usuários estão se tornando consumidores passivos
de informações e produtos.

Essas empresas detêm uma enorme


concentração de poder, dinheiro e conhecimento;
PEQUENAS EMPRESAS elas possuem nossos dados e nossas interações
PERDERAM online. Além disso, essas novas corporações
PARTICIPAÇÃO DE estão explorando novas áreas, fornecendo saúde,
MERCADO E OS educação, conectividade, serviços bancários e
ANALISTAS SUGEREM habitação, diminuindo a necessidade da provisão
estadual (Morozov, 2015). Os governos agora lutam
QUE ELAS ESTÃO
para acompanhar o ritmo delas.
PREDESTINADAS
A PERMANECER A situação inteira exige mais envolvimento
EXCLUÍDAS DO MUNDO dos jovens. Como usuários, como cidadãos e como
DAS PRINCIPAIS futuros criadores, os jovens têm algo a dizer sobre
COMPANHIAS. isso. Não só como consumidores, mas também
como cidadãos, os jovens devem estar conscientes
do que está acontecendo, precisam exigir
transparência e proteger valores que não podem ser comercializados. Os cidadãos não

182
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

devem confiar suas vidas cívicas aos mercados. A lógica do mercado está assumindo o
controle de cada aspecto da vida (Sandel, 2012). Globalmente, o nível de confiança nas
instituições é baixo mas, agora, que as “corporações sejam louvadas”1.

Sob a ideia de Habermas, estamos vivendo uma “colonização” do “mundo da vida”, o


que significa que o dinheiro e o poder tomaram o lugar dos valores de solidariedade e da
troca de ideias, transformando os cidadãos em “apenas clientes”. Consequentemente,
isso afeta a qualidade do debate público.  A Internet foi colonizada e um dos perigos
de não possuir instituições fortes é que essa “colonização” pode atingir a democracia
(Habermas, 1981). Vimos algo assim durante as eleições presidenciais dos EUA em 2016.
A polarização assumiu as redes sociais.

Eli Pariser expôs o aspecto negativo desse novo meio, abordando o problema das
bolhas de filtro que apareceram devido à alocação personalizada de conteúdo com
base nas pesquisas anteriores do usuário e em seu comportamento online. Ele ressalta
como as bolhas de filtro surgem como resultado de algoritmos feitos sob medida em
plataformas de redes sociais, como o Facebook, e motores de busca, como o Google,
para facilitar a navegação dos usuários no espaço da informação digital, oferecendo
publicidade e notícias organizadas (Pariser, 2011). Essas ferramentas de personalização
podem limitar nossa exposição aos pontos de vista opostos e também limitar a
quantidade de informações visível aos usuários. (Papacharissi, 2002). Este filtro enfatiza
nosso viés de informação e afasta dos usuários a oportunidade de ter um debate
construtivo com os outros.

Habermas refletiu sobre a colonização


pelas burocracias, mas o desafio agora são as
corporações privadas. Após a última eleição OS ALGORITMOS
presidencial dos EUA, ficou evidente que as ALOCAM
medidas que essas empresas tomam para INFORMAÇÕES COM
regular e moderar conteúdos estão impactando o BASE EM CAMPANHAS
debate público. Informações falsas e publicidade PAGAS E INTERAÇÃO
dirigida no Facebook influenciaram mais o ORGÂNICA; SE ALGO É
debate público do que os fatos e as propostas “FALSO”, PORÉM TEVE
reais. A polarização da discussão política online MUITOS CLIQUES,
tornou-se perigosa no mundo offline também.
COMENTÁRIOS E
Se o país conhecido como “a democracia mais
COMPARTILHAMENTOS,
forte” foi afetado por falsas notícias e grande
OS USUÁRIOS VEEM
manipulação de dados, isso poderia acontecer
em qualquer outro lugar, e pode ser ainda pior
ISSO EM SEUS FEEDS
em regiões onde as instituições democráticas DE NOTÍCIAS.
são mais jovens e mais fracas, como nos países
da América Latina.

O nível de segmentação da oferta do Facebook e do Google para as campanhas


publicitárias executadas em suas plataformas é tão detalhado que qualquer pessoa que

1 Nota do tradutor: originalmente, “in corporations, we trust”.

183
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

tenha dinheiro pode criar anúncios de campanha direcionados a grupos específicos


com base na demografia, nos interesses e, em alguns países, como nos EUA, raça e
religião. Em termos gerais, os algoritmos alocam informações com base em campanhas
pagas e interação orgânica; se algo é “falso”, porém teve muitos cliques, comentários e
compartilhamentos, os usuários veem isso em seus feeds de notícias. O conteúdo pode
ser viral por métodos orgânicos ou por manipulação deliberada, quando alguém paga
para colocar essa mensagem em nosso feed de notícias. No feed de notícias do Facebook,
todas as ideias parecem as mesmas, mesmo que sejam mentiras.

As combinações de publicidade online são infinitas; como empresa, você tem a


possibilidade de atingir quase qualquer um. Por exemplo, as mulheres, em seus 20 e
poucos anos, que gostam de ioga e alimentação saudável. Ao mesmo tempo, como um
partido ou um grupo de advocacy, é possível selecionar homens brancos, em seus 40
anos, que apoiam a Associação Nacional de Rifles (National Rifle Association) e vivem em
Wyoming (estado onde Donald Trump obteve 70% dos votos em 20162).

Nos EUA, a comunicação eleitoral online tornou-se uma prática dominante (Aldrich
et al., 2015). De uma perspectiva de marketing estratégico, identificar perfeitamente a
pessoa “certa” pode acontecer a partir da projeção das “personas” corretas e mapeamento
dos interesses delas com métodos de pesquisa de usuário baseados nas informações que
o Facebook, a Amazon e o Google oferecem para executar uma campanha publicitária.
É mais fácil prever quem comprará determinados produtos ou, em outros casos, apoiar
determinadas políticas ou candidatos.

É fundamental estar ciente de que cada escolha feita online, cada clique, torna-se
uma decisão comercial. Há um processo de tomada de decisão automatizado por trás
de cada anúncio ou vídeo exibido em nossos murais de acordo com nossas pesquisas
anteriores e atividade online. De certa forma, essa alocação de conteúdo impacta as
ideias e crenças das pessoas. Se uma mulher de 25 anos no Bangladesh pesquisar no
Google o termo “liberdade”, ela verá algo completamente diferente de um homem de 50
anos, que mora em Nova York, que pesquisa no Google o mesmo termo. As bolhas de
filtro (Pariser, 2011) personalizam as pesquisas e os feeds das mídias sociais para que nos
seja mostrado mais daquilo que “eles” pensam que queremos ver.

O Facebook e o Google, como entidades privadas, seguem uma lógica de mercado


e tomam decisões estratégicas em direção à lucratividade. Como consequência, o que
conduz as ações deles é um modelo de negócios que permite que os anunciantes e os
editores automatizados da plataforma estabeleçam a agenda. O papel editorial dessas
plataformas não deve ser mais visto meramente como “decisões de negócios”, pois elas
estão fragmentando as nossas sociedades e transgredindo os valores democráticos. A
realidade mudou e o papel das redes sociais, motores de busca e plataformas tecnológicas
evoluiu. Assim, precisamos prestar atenção à maneira como essas empresas gerenciam
as nossas vidas online.

2 “US election 2016: Trump victory in maps”. Recuperado de: http://www.bbc.com/news/election-


us-2016-37889032. Acesso em 6 de junho de 2017.

184
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

Como afirmou Castells (1996), as condições econômicas, tecnológicas e sociais


contemporâneas geraram um estado de rede em que as interconexões superam
a centralização do poder e a tomada de decisões. Nesta rede, é possível uma maior
participação e intervenção da cidadania na vida política. Sob essa lógica, o Estado
tornou-se menor, mas as corporações assumiram um papel maior, também
participando do espaço dos cidadãos, colonizando nosso mundo online. Esse pode não
ser o único motivo, mas certamente contribuiu para a decadência do discurso racional
e crítico, provocando o declínio da esfera pública. A esfera pública é entendida como
um espaço neutro onde os indivíduos discutem os assuntos atuais de maneira racional
(Habermas, 1989).

O fato de essas plataformas possuírem regras rígidas sobre quem pode acessar os
dados delas levanta muitas questões. A quem elas prestam contas? Como os governos
podem definir limites para essas corporações sem ameaçar a inovação? Os usuários são
responsáveis por
​​ exigir mais transparência? Como deixamos elas chegarem tão longe?
Para quem elas estão vendendo os seus serviços? Para quem elas estão vendendo nossos
dados? Às vezes, os termos e condições dessas plataformas de tecnologia não são claros
para os usuários.

Uma maneira de desenvolver uma Internet melhor é pensar em novos modelos


de colaboração e assumir um papel ativo para recuperar o espaço público online. A
promessa da Internet como um espaço livre controlado pelos cidadãos ainda é um
desafio. As gerações futuras têm a tarefa de modificar isso e assumir um compromisso
mais forte para superá-lo. As entidades privadas e as elites não podem ser as únicas a
definirem as regras.

É necessária a colaboração entre os setores. As soluções são um processo em vez de


uma única ação, por causa das complexidades envolvidas em cada caso. A cooperação
entre governos, setor privado e organizações da sociedade civil permite a soma da
sabedoria e as capacidades de cada parte interessada (stakeholder) em alcançar a
melhor solução possível. Além disso, esses acordos de colaboração atuam como uma
ferramenta de responsabilidade para que os participantes se supervisionem.

A colaboração entre setores pode funcionar como uma solução a curto prazo, no
entanto, a longo prazo, a educação digital e o pensamento crítico dos usuários serão a
chave para combater os monopólios e outros complicados problemas online. As novas
gerações precisam exigir mais abertura e transparência das empresas de tecnologia.

Hoje, mais do que nunca, os governos estão buscando essas plataformas para
resolver problemas sociais. Os usuários precisam interferir, enquanto cidadãos, na
forma como as grandes empresas de tecnologia gerenciam as informações, dispõem
o conteúdo e comercializam as atividades online. A tecnologia pode ser qualificante ou
desqualificante, e uma maneira de garantir um modelo democrático para supervisionar
o seu desenvolvimento é através da colaboração entre setores. O fortalecimento e a
promoção de mais e melhores relações entre empresas de tecnologia, organizações
da sociedade civil e governos, em contextos específicos, pode ser uma boa forma de
garantir transparência e responsabilidade. Esse processo permite uma comunicação,

185
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

um acompanhamento, uma troca de ideias e uma avaliação contínua (Bryson, Crosby e


Stone, 2015). A participação de mais partes interessadas de diversos setores é necessária
para proteger a democracia online.

Há muitos exemplos de como organizações da sociedade civil, corporações e jovens


estão mudando as comunidades com o uso da tecnologia; combatendo a corrupção,
garantindo o acesso à informação governamental ou melhorando serviços públicos.
Isso é a prova de que nem tudo está condenado. Mas os benefícios precisam ser mais
amplos e garantidos para todos. Se todas as interações online estão acontecendo nas
mesmas cinco plataformas, estamos colocando em risco a concorrência e alimentando
monstros corporativos que poderiam encolher o governo e engolir os seus cidadãos. O
Leviatã tem concorrência e, no momento, ela parece estar mais fraca do que as “novas
crianças do bairro”3.

Após as eleições presidenciais dos EUA, a vergonha pública e a pressão da mídia


conquistaram o reconhecimento do Facebook de que empresas, políticos e a sociedade
civil precisam resolver os desafios sociais juntos. Os usuários precisam resgatar os seus
poderes de cidadãos e se juntarem à ação. Os consumidores passivos não mudam o
mundo, os cidadãos ativos sim.

No caso das grandes empresas de tecnologia, elas não vão parar a marketização do
mundo digital por conta própria. Portanto, grupos interdisciplinares precisam trabalhar
juntos para entender com o que estamos lidando e para promover as modificações
necessárias. Quando monopólios prejudicam os valores da sociedade, devemos elevar a
nossa voz a fim de o governo intervir.

Como indivíduos sozinhos, talvez não tenhamos uma representação sobre isso,
mas a sociedade civil como uma parte interessada pode exigir mais transparência
desses gigantes tecnológicos. O governo deve estabelecer parâmetros legais, técnicos
e políticos mais claros para gerir a influência dessas empresas. Sob uma abordagem
multissetorial (multistakeholder), os jovens devem participar em diferentes fóruns
e iniciativas para garantir que os valores democráticos sejam incorporados ao
desenvolvimento da tecnologia.

É importante ter um público mais informado, ativo e crítico que não negligencie o
impacto dessas plataformas em nossas vidas diárias. A participação e a conscientização
são essenciais para salvar a democracia da colonização de mercado. A espinha dorsal
da tecnologia pode ser esse espírito de colaboração, afastando-se da exclusiva missão
com fins lucrativos que acabará por “personalizar” o nosso comportamento e opiniões
no ambiente online.

Artigo originalmente escrito em inglês

3 Nota do tradutor: no original, “new kids on the block”.

186
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

_REFERÊNCIAS

Aldrich, J. et al. (2015). Getting out the vote in the social media era: Are digital tools
changing the extent, nature, and impact of party contacting in elections? Party
Politics, 22(2): 165-178.

Barlow, J. P. (1996). A Declaration of the Independence of Cyberspace. Recuperado de


<https://www.eff.org/cyberspace-independence>

Bauman, Z. (2000). Liquid modernity. Polity, Cambridge.

Bennett, W. L., & Segerberg, A. (2013). The Logic of Connective Action: Digital Media and
the Personalization of Contentious Politics. Cambridge: Cambridge University Press.

Bryson, J., Crosby, B., & Stone, M. (2015). Design and Implementation of Cross-Sector
Collaboration Framework for Understanding Cross-Sector Collaborations. Public
Administration Review, 75(5), 647-663.

Castells, M. (1996). The Rise of the Network Society. 1st ed. Somerset: Wiley.

Freelon, D.G. (2010). Analyzing Online Political Discussion Using Three Models of
Democratic Communication. New Media & Society, 12 (7): 1172- 1190.

Habermas, J. (1981). The Theory of Communicative Action, Volume 2: Lifeworld and


System: A Critique of Functionalist Reason.

Habermas, J. (1989). The Structural Transformation of the Public Sphere: An inquiry into
a category of Bourgeois Society, Sixth Printing Edition.

Manjoo, F. (2016). Tech’s ‘Frightful 5’ Will Dominate Digital Life for Foreseeable Future.
The New York Times. Recuperado de <https://www.nytimes.com/2016/01/21/technology/
techs-frightful-5-will-dominate-digital-life-for-foreseeable-future.html?_r=0>

Meeker, M. (2015). Internet Trends 2015. Code Conference, Kleiner Perkins Caufield &
Byers. Recuperado de <http://www.kpcb.com/blog/2015-internet-trends>

Morozov, E. (2015). Silicon Valley likes to promise `digital socialism´- but it is


selling a fairytale. The Guardian. Recuperado de <https://www.theguardian.com/
commentisfree/2015/mar/01/silicon-valley-promises-digital-socialism-but-is-selling-
a-fairy-tale>

Papacharissi, Z. (2002). The virtual sphere: The internet as a public sphere. New Media
& Society, 4(1): 9-27.

Pariser, E. (2011). The Filter Bubble. London: Penguin. Cap. 1: Introduction.

Sandel, M. J. (2012). What Money Can’t Buy: The Moral Limits of Markets. New York:
Farrar, Straus and Giroux.

187
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ

GLORIA J. GUERRERO MARTÍNEZ


Gloria possui mestrado em Políticas
Públicas pela Hertie School of Governance
de Berlim e bacharelado (BA) em Assuntos
Internacionais pelo Tecnológico de
Monterrey, na Cidade do México. Como
profissional, desenvolveu e executou
estratégias internacionais e projetos
de inovação digital na Europa e na
América Latina. Durante os seus estudos
de mestrado, centrou seu trabalho nas
plataformas de Ética e Governança das
Novas Mídias. Atualmente, é Global
Policy Fellow do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro. Seu principal
interesse é construir pontes entre o setor
da tecnologia, a sociedade e o governo para
melhorar a boa governança e a colaboração.

188
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

REDES DE POLARIZAÇÃO E
ÓDIO:
A TRANSFORMAÇÃO DA REDE
COMO PROPAGADORA DA
CULTURA DE ÓDIO PELAS
BOLHAS DE FILTRO

LEANDRO RACUIA
Estudante da Faculdade de Economia, Administração e Contabi-
lidade (USP)
leandro.racuia@gmail.com
Brasil

ANDRÊS VELOSO CAVADAS


Estudante do Instituto de Relações Internacionais (USP)
vvelosocavadas@gmail.com
Brasil

189
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

_TEMÁTICA

Problemas emergentes na Internet

_RESUMO

A Internet hoje é inerente a muitos processos básicos da


comunicação humana em âmbito local e global, de forma
a causar significativos impactos na percepção da sociedade
sobre ordenamentos culturais e sociais. Por isso, merece
atenção como um meio que tem provocado a disseminação
de ódio e aumentado a polarização na sociedade. Uma
explicação para esses acontecimentos advém de práticas do
chamado capitalismo de vigilância. Nesse artigo, analisamos
as chamadas bolhas de filtro, mecanismo que personaliza a
informação que os usuários recebem para potencializar o lucro
das grandes empresas de tecnologia, as quais detêm oligopólio
sobre a mesma rede.

Palavras-chave: bolhas de filtro; polarização política;


capitalismo de vigilância

190
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

1_INTRODUÇÃO

A grande revolução da informática dos anos 1980 e 1990 trouxe uma mudança
essencial no paradigma da comunicação. Antes desse período, a comunicação social se
dava de uma forma centralizada, de poucos para muitos, focalizada principalmente na
figura dos veículos de massa como jornais, livros e canais de televisão. Hoje, a maior
parte do fluxo de informações parte da Internet, possuindo um caráter teoricamente
descentralizado e tendo seu conteúdo produzido também da mesma forma, de muitos
para muitos.

A maioria da comunidade acadêmica dos anos 1990 e 2000 tinha em mente que o
modelo descentralizado de conexão fim a fim da Internet traria uma nova perspectiva
no debate de ideias. Como referência, Lévy (1999) afirma que três princípios formariam
essa nova forma de relação, a qual ele chama de cibercultura, sendo eles: a interconexão,
a criação de comunidades virtuais e a inteligência coletiva. A interconexão é o princípio
que descreve a estrutura da Internet, como descentralizada e formada sobre uma
lógica acessível de fim-a-fim, ou seja, com qualquer ponto da rede podendo alcançar
outro ponto sem a influência de um intermediário. Já as comunidades virtuais, como
ainda afirma Lévy (1999, p.127), “[...] são construídas sobre afinidades de interesses, de
conhecimentos, sobre projetos, em um processo mútuo de cooperação e troca”. Por fim,
a inteligência coletiva descreve um tipo de inteligência compartilhada que surge da
colaboração de indivíduos de todos os pontos da rede, imersos em seus conhecimentos
e suas diversidades. Como descreve o autor (1999, p. 212), “É uma inteligência distribuída
por toda parte, na qual todo o saber está na humanidade, já que, ninguém sabe tudo,
porém todos sabem alguma coisa”.

Seguindo o mesmo raciocínio, Benkler (2006) afirma que a rede cria novas modalidades
de economia da informação, a qual o autor intitula Economia Interconectada. Esta nova
modalidade traria a possibilidade do surgimento de comunidades auto-organizadas, de
hierarquia fraca e descentralizada, no qual a lógica de mercado fica em segundo plano.
A partir desta configuração, cria-se uma produção social de conhecimento baseada no
compartilhamento e na cooperação. Um dos exemplos de produção social são ações
políticas coordenadas, comandadas pela comunidade de forma espontânea e individual.

Observam-se duas palavras-chaves no pensamento desses dois autores:


compartilhamento e cooperação. Somadas, ambas trariam novas formas de organização
política, abririam um maior espaço para o debate político e para formação de consenso
entre os atores da rede. Tal fenômeno apenas seria possível com uma estrutura
descentralizada da rede, na qual cada ator pode se expressar e ouvir diferentes vozes.
Entretanto, o cenário que se apresenta hoje na Internet parece conter uma realidade
diferente do que estes autores propõem existir.

Dentro dessa contradição, surgem algumas perguntas: como foi possível chegar até
esse ponto? Por que os cenários descritos por Lévy (1999) e Benkler (2006) de construção
coletiva de saber aliada à cooperação entre diferentes visões não se aplica às redes
que utilizamos hoje? Qual o impacto cognitivo e educacional que essas redes podem
carregar consigo? O objetivo principal deste artigo é responder a estas perguntas através

191
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

de uma revisão literária de trabalhos acadêmicos


relacionados ao tema.
O MAIS
DETERMINANTE Primeiramente, será analisado de que forma o
PARA FORMAÇÃO oligopólio das empresas de tecnologia se apoderou
DE BOLHAS DE da estrutura funcional da rede, tirando parte do
FILTRO É O PODER caráter descentralizado que ela possuía antes.
DE INFLUÊNCIA Depois, serão observadas as técnicas que essas
empresas utilizam para obter lucro em troca de seus
QUE PODE SER
serviços, examinando a teoria das bolhas de filtro
EXERCIDO SOBRE
e como essas bolhas acabam construindo câmaras
MECANISMOS DE
de eco. Seguindo por essa linha, será analisado
BUSCA E REDES de que forma o conteúdo viraliza dentro dessas
SOCIAIS redes por meio da análise de quais emoções estão
conectadas ao conteúdo que é mais compartilhado.

Após essa análise, será descrito pela teoria de Castells (2013) como os novos
movimentos sociais se formam e qual o papel da rede nesse novo modo de mobilização
social. Por fim, será comentado quais os possíveis impactos que essas redes causam,
analisando a Internet como um elemento educador, que tem influência sobre a cognição
e ação do indivíduo.

2_A CONCENTRAÇÃO DE PODER NA REDE

O intuito de avaliar a concentração de poder na rede é favorecer o entendimento


de como a circulação de informações dentro dela atualmente está em grande parte
atrelada às grandes empresas de tecnologia. Afinal, estas empresas controlam uma
parte significativa do fluxo da Internet com objetivo de criarem benefícios econômicos
para si próprias. Com isso, estas empresas acabam por comprometer o caráter
descentralizador da rede, e, através de algoritmos altamente complexos feitos para
identificação de comportamentos, essas empresas têm em mãos inputs poderosos para
criação de ambientes artificialmente produzidos para maior comodidade dos usuários.
Esta é uma característica das chamadas bolhas de filtro, que serão tratadas em detalhe
na próxima sessão.

O mais determinante para formação de bolhas de filtro é o poder de influência


que pode ser exercido sobre mecanismos de busca e redes sociais, pois estas duas
ferramentas constituem o núcleo das atividades realizadas por usuários na rede hoje.
Assim, chama atenção o fato de que grande parcela da população mundial tem acesso a
estes dois serviços por meio da oferta de poucas gigantes da Internet.

Para ilustrar esse cenário, expomos alguns dados do portal Statista (2016a). Para
mecanismos de busca, O Google concentra uma fatia de mercado equivalente a 89,72%,
enquanto o segundo maior rival, o Bing 4,2%, e Yahoo! 3,37% (Statista, (2016e). Não é de
se surpreender que hoje seja inimaginável o mundo sem o Google, ou melhor, sem o
Chrome para pesquisas online.

192
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

Quanto às redes sociais, reina a supremacia do Facebook. No Reino Unido, por


exemplo, o Facebook representa 78% do mercado das mídias sociais (Statista, 2016b).
Fatia que deve ser semelhante em boa parte dos outros países. Além disso, o número
de usuários ativos mensais do Facebook em 2015 atingiu a casa de 1,654 bilhões de
usuários enquanto o número total de usuários de mídias sociais no mundo era 2,34
bilhões de usuários (Statista, 2016c). Globalmente, em 2016, o Facebook é a líder em
número de usuários ativos disparadamente, com 1,7 bilhões, seguida pelo WhatsApp
com 1 bilhão de usuários, QQ Chat 899 milhões e várias posições abaixo Instagram (500
milhões), Twitter (313 milhões) e Snapchat (200 milhões) (Statista, 2016d). Por último,
para enfatizar a situação no Brasil, a taxa de penetração do Facebook é praticamente o
dobro de qualquer outra mídia social no País.

Para ilustrar como é importante economicamente para as empresas de tecnologia


exercerem influência sobre o conteúdo disponível a cada usuário, será ilustrado o
caso do Facebook ainda como um projeto de estudantes no campus universitário de
Harvard. Ries (2011) expõe que o modelo de negócios a princípio era bastante modesto
e sem certeza da fonte de receitas. As únicas premissas importantes eram o que o
autor classifica como hipótese de valor e de crescimento, respectivamente: quanto
mais atenção dos usuários for possível reter, mais as agências de publicidade estarão
interessadas em anunciar na plataforma; e quantos clientes visitavam a plataforma
mais de uma vez ao dia. Portanto, Zuckerberg sabia apenas que quanto mais atenção
(buzz) tivesse na plataforma, mais as agências de publicidade estariam interessadas em
fazer propaganda na plataforma, mas não sabia ao certo quanto estariam dispostas a
pagar por um anúncio.

Ao somar estas duas premissas, que seria buzz em torno da plataforma e número
de mais de duas visitas por dia, há um quadro interessante quanto à necessidade do
Facebook de criar um ambiente virtual agradável ao usuário e que o deixasse entretido
pelo maior tempo possível dentro da plataforma. Afinal, Wolton (UnBTV, 2014) já coloca
a Internet como uma mídia de demanda, ou seja, uma mídia na qual o usuário busca
o conteúdo e assuntos de interesse conforme a própria necessidade, criando um
sistema de participação que caracteriza uma mídia comunitária – dividem os mesmos
interesses, mas não necessariamente se compreendem. Assim, o Facebook como uma
rede social que está vinculada à Internet deveria estar alinhado com a questão de
demanda do meio e para cumprir esta lógica, fazia sentido programar um ambiente
que atenda aos desejos dos usuários. Portanto, a teoria da bolha de filtro tinha nexo
tanto economicamente por manter as pessoas mais tempo na plataforma e chamar
mais atenção de agências publicitárias quanto ideologicamente por atender o quesito
de demanda da Internet.

O Facebook então se tornou uma usina de publicidade dirigida. Sobrepondo filtros


em cima de filtros, o Facebook cria um circuito fechado o qual é acessível basicamente
a um nicho de pessoas entendidas como “amigas”, que em geral compartilham das
mesmas opiniões. A consequência é o desconhecimento de opiniões e pontos de vista
divergentes, não sendo eficaz no fornecimento da complexidade das informações. É o
caso da jornalista londrina que às vésperas do referendo do Brexit não tinha o menor

193
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

conhecimento da onda favorável à saída da união Europeia, pois o feed do Facebook


não trazia nada a respeito. Afinal, ela tinha feito parte de um documento em favor dos
pró-europeus.

Um olhar crítico sobre a campanha presidencial nos EUA pode esclarecer o papel
nefasto das bolhas de filtros das mídias sociais para regimes democráticos. Uma série
de notícias e reportagens falsas inundou as redes sociais na campanha presidencial
de 2016. O compartilhamento de artigos da web aparentemente sérios, mas incorretos,
foi uma realidade nesta eleição. E o Facebook como um importante veículo de
comunicação teve grande participação na difusão deste tipo de notícia. O candidato
Donald Trump se apoio em uma hipereconomia de nonsense (“sem sentido algum”) e
instigou informações tendenciosas com base em preceitos racistas, xenófobos, entre
outros para reforçar sua imagem aos pró-Trump.
O problema é que o Facebook foi incapaz de conter
informações deste cunho e mesmo a propagação de
falsidades, compartilhadas – e difundidas – pelas HÁ INDÍCIOS DE UM
próprias pessoas. Por essas razões, o Facebook é EFEITO DE FILTRO
uma ferramenta precária de compartilhamento DE BOLHA QUE
de informações, o que é particularmente sério por TENDE A POLARIZAR
fomentar uma cultura de incerteza até para questões OPINIÕES
básicas. A questão a se fazer então é: qual o perigo DIVERGENTES E
a democracia que as redes sociais oferecem quando
TRANSFORMAR
se somam bolhas de filtro – ignoradas pela grande
AS REDES SOCIAIS
massa dos usuários – às falácias do meio?
PELAS QUAIS NOS
De fato, as grandes empresas da Internet têm INFORMAMOS EM
ganhado uma participação expressiva nos rumos CÂMARAS DE ECO
da sociedade – como evidenciado anteriormente
no caso do Facebook para a campanha presidencial
americana. Porém, é obscuro como estas empresas
conseguiram se tornar tão poderosas. Zuboff (2015) começa uma discussão sobre
Capitalismo de Vigilância para abordar esta situação. Segundo a autora, Capitalismo
de Vigilância é uma nova empreitada mercantil das empresas da Internet com foco
na coleta “obsessiva” de dados para cumprir objetivo último de expansão dos próprios
serviços gratuitos. Através da coleta de dados – quaisquer disponíveis, desde afinidades
a finanças pessoais –, a organização monta um verdadeiro dossiê de cada usuário.
Embora estes dados não sejam tratados discriminatoriamente, o que significa não
personalizando as informações, os algoritmos são capazes de identificar cada usuário
para a criação de anúncios específicos.

Ou seja, empresas da Internet estão usando o método do Big Data a nível generalizado
e faturando sobre a compra e venda de dados. O escopo deste artigo não se aprofundará
em problemas éticos com a forma de obtenção de dados, novas formas de contratos,
personalização e customização, e experimentos contínuos, mas vale ressaltar a
recorrente transgressão da lei frente à busca pelo lucro, sendo que os eventuais gastos
jurídicos serão meros detalhes para conquista de retornos exorbitantes. Constroem-se

194
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

assim os ativos de vigilância, fonte de generosas análises econômicas. O ponto crítico


é que a grande massa de usuários não tem a menor consciência dessa prática. Surge,
dessa maneira, uma nova ordem de poder que cresce sem ser abertamente conhecida
pela opinião pública.

É sob esta sombra que impérios como o Facebook são erguidos e somente agora estão
começando a ser confrontados em uma disputa por poder com outras grandes mídias
como Washington Post e Le Monde. De qualquer modo, o Facebook, por exemplo, faz
uso desta coleta abusiva de dados em benefício próprio, não economicamente de forma
direta, mas como construção do algoritmo da rede social. Com o algoritmo mais preciso,
é possível então entender as particularidades de cada usuário e tornar a rede mais
agradável de acordo com as preferências individuais. Pois, quanto mais conveniente a
plataforma for, maiores as chances de entreter o usuário por tempo prolongado, o que
por fim resulta em aumento nos lucros.

Isto significa que a lógica do Capitalismo de Vigilância dá substância às bolhas de


filtro, o que faz desse modelo economicamente interessante por alimentar o algoritmo
responsável por criar as bolhas de filtro com uma quantidade enorme de dados,
melhorando tanto o ambiente das bolhas de filtro – ainda mais agradável – quanto a
precisão de anúncios para o Facebook. Porém, a análise é válida para outras empresas de
tecnologia. Quanto mais convenientes as plataformas forem no sentido de atenderem
uma demanda específica e em torno das preferências do usuário, mais provável é
a satisfação dele. A partir de então, estarão eles mais dispostos a cederem dados ao
mesmo tempo em que estarão menos dispostos a procurarem por outras alternativas,
haja visto o alto nível de conveniência.

Ora, neste cenário, faz sentido pensar as duas correntes da comunicação: ideólogos
que confundem a comunicação com performance técnica e os mercados; e os adversários
que usufruem da comunicação em pró da radicalidade elitista e da lógica de venda,
pois as empresas de tecnologia utilizam de uma perspectiva bastante instrumental da
comunicação, característico do universo destas duas correntes que denigrem o papel de
coabitação e diálogo da comunicação (Wolton, 2006).

Ainda pela concepção de Wolton (2006), sem os laços sociais promovidos pelos
meios de comunicação para o grande público – tevê, rádio etc. –, a sociedade corre o
risco de negligenciar a discussão de temas de interesse público, o que eventualmente
pode levar ao esfacelamento da própria sociedade em guetos culturais e/ou religiosos.
Em outras palavras, a total liberdade de escolha de conteúdo oferecida pela Internet –
como mídia de demanda – favorece a criação de comunidades fechadas, produzindo
a incomunicação, a desconfiança e a violência. Quando, na verdade, o cerne da
comunicação é a problemática do outro. Por esta razão, é imperativo repensar o conceito
de comunicação como revolução da coabitação e do diálogo (Wolton, 2006). E para esta
meta é necessário pensar a comunicação por meio da rede.

Na primeira Revolução Industrial, com o avanço da tecnologia, as máquinas


passaram por uma profunda transformação porque a partir de então as máquinas
iriam substituir o trabalho do homem em sua parte física e mecânica, sendo capazes

195
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

de acelerar movimentos e intensificar a realização de tarefas – o que permitiria lhes


chamar de máquinas musculares. Em seguida, começaram a surgir máquinas que
funcionavam como prolongamentos dos sentidos humanos, por isso chamadas de
máquinas sensoriais. As máquinas musculares tinham a função de produzir objetos,
enquanto as máquinas sensoriais de produzir e reproduzir signos (imagens e sons).
Cada uma dessas máquinas teve e tem um papel vital para o desenvolvimento humano.
As máquinas musculares até hoje estão presentes em atividades corriqueiras/essenciais
do dia a dia como o elevador e o automóvel, já as máquinas sensoriais como máquinas
de registro e reprodução ou gravação (Santaella, 2000). Estes dois tipos de máquinas
então tornaram-se máquinas cruciais à vida humana no sentido de nossas atividades
cotidianas serem permeadas por ela, muitas vezes, sem que ao menos sejam notadas.

Do mesmo modo, surgiram as máquinas cerebrais que têm por princípio amplificar
habilidades mentais, em especial as habilidades processadoras e de memória. São os
computadores, máquinas nas quais quaisquer signos podem ser absorvidos, traduzidos,
manipulados e transformados. Isso permitiu as informações circularem em um âmbito
global, promovendo uma cultura telemática multidirecional. O meio mais conhecido
para essa difusão é Internet, uma rede que liga milhões de pessoas ao redor do mundo
em torno dos mais diversos assuntos, desde negócios a arte e entretenimento (Santaella,
2000). Por fim, assim como as máquinas musculares e sensoriais são inerentes à
vida humana, as máquinas cerebrais também são à medida que se tornam uma
expansão do nosso universo cognitivo. Logo, há pouco espaço para coexistir no mundo
contemporâneo sem a presença das máquinas cerebrais por estarem cada vez mais
intrínsecas aos nossos afazeres. Assim, todos usufruem em algum grau das máquinas
cerebrais. Todos “têm” de usá-las.

Esta perspectiva da obrigatoriedade do uso de máquinas cerebrais somada ao oligopólio


das empresas de Internet cria então uma lâmina de análise relevante porque os usuários
para navegar na rede podem depender dessas empresas que controlam a maior parte do
fluxo de dados, como o Google e o Facebook. Ou seja, os usuários são induzidos a trafegarem
pelas bolhas de filtro e estarem submetidos ao Capitalismo de Vigilância.

A política novamente é um bom exemplo. No Brasil, de janeiro a junho, 51% dos eleitores
brasileiros afirmam ter recebido ou lido informações sobre política no Facebook, no Twitter
ou no WhatsApp. Hábito que é mais forte para as pessoas mais jovens, visto que destes, 55%
tinham abaixo de 34 anos de idade. Além disso, para 56% dos respondentes, as informações
recebidas pioraram a imagem dos candidatos (Ibope Inteligência, 2016). Mais surpreendente
ainda é o Brasil ser o país mais ativo na web quando o assunto é política. Cerca de 87% dos
brasileiros leram sobre temas políticos ou sociais em redes sociais de outubro de 2014 a
agosto de 2015, e cerca de 58% chegaram a postar comentários sobre temas políticos ou
sociais em redes sociais (Ibope Inteligência, 2016).

Por toda a questão da concentração de poder na rede, do impacto civil que a rede
demonstra poder ter e a necessidade de uso das máquinas cerebrais, torna-se fundamental
aprofundar a discussão das bolhas de filtro da Internet. Afinal, esferas humanas de
conhecimento como a política e a comunicação estão neste jogo da lógica capitalista.

196
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

3_AS BOLHAS DE FILTRO

Como descrito anteriormente por Zuboff (2015), o ecossistema da Internet é composto


principalmente por empresas que apenas conseguem manter e expandir seus serviços
gratuitos através de um modelo chamado capitalismo de vigilância. O princípio
fundamental desse modelo é a coleta de dados dos usuários da plataforma. Ao serem
tratados, esses dados revelam preferências, desejos, afinidades e também as aversões que
cada usuário possuí, criando um perfil personalizado de tudo que esse usuário prefere e
odeia. Além da compra e venda livre desses dados, esse tratamento permite a criação de
serviços de anúncios direcionados na plataforma, sendo essa uma das principais fontes
de ativos das grandes corporações da Internet.

A forma mais comum dos grandes serviços criarem a sensação de interesse e


entretenimento é através das chamadas bolhas de filtro, termo cunhado pelo ativista Eli
Parisier (2011). O autor chama a atenção para a estratégia de personalização dos conteúdos
que são exibidos nas plataformas das grandes corporações da rede, nas quais apenas é
demonstrado um conteúdo referente às preferências previamente mapeadas pela coleta
de dados do usuário. Isso faria com que os usuários se mantivessem por mais tempo na
plataforma, gerando mais dados e melhorando cada vez mais esse mecanismo.

A ideia de personalização de conteúdo é benéfica se pensarmos em interações


sociais e mecanismos de busca. O algoritmo, em tese, aproximaria pessoas com gostos
similares, além de demonstrar conteúdos novos que provavelmente o usuário também
gostaria. Da mesma forma, otimizando os mecanismos de busca, se economiza tempo e
a chance de se encontrar exatamente o que está sendo procurado é maior.

Entretanto, o termo “bolha de filtro” remete não apenas à demonstração de conteúdo


que supostamente o usuário deseja, mas também ao isolamento de outros materiais que
o usuário supostamente não deseja ver. Um dos problemas da construção dessa bolha
é justamente a não clareza de como esse processo é conduzido. Afinal, o algoritmo é
mantido como segredo empresarial, uma vez que a presença dessa personalização é o
diferencial no direcionamento de anúncios feitos por essas plataformas. Esta falta de
transparência algorítmica é vista como perigosa pelo autor, uma vez que se coloca na mão
das empresas a seleção das informações que serão demonstradas ao usuário, filtrando de
forma sutil o que o usuário verá ou não.

Além disso, o autor classifica as bolhas de filtro como responsáveis por catalisar o processo
de polarização política na rede. Esse processo teria início com as plataformas das grandes
empresas sendo a principal fonte de informação sobre política por parte dos usuários, pois
apenas notícias e opiniões que o algoritmo considera agradáveis aos usuários são exibidas,
tendo como base as interações do próprio usuário com a plataforma. Logo, se cria o que o autor
chama de câmaras de eco, ou seja, um ambiente virtual no qual são somente demonstradas
informações que reverberam uma opinião já construída, ao mesmo tempo em que se isola o
usuário de opiniões contrárias ou diferentes das que estão sendo mostradas.

Em um estudo divulgado por pesquisadores do próprio Facebook (Adamic, Bakshy,


& Messing, 2015) revelou alguns dados que comprovam a tendência da formação das

197
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

câmaras de eco pelos mecanismos de bolha de filtro. O estudo foi conduzido com 10
milhões de pessoas dos Estados Unidos que abertamente se declaravam conservadores ou
liberais, as quais as noticiais compartilhadas foram monitoradas por cerca de seis meses
(de julho de 2014 até janeiro de 2015). Os autores consideraram conteúdo denominado
liberal aquele que era compartilhado em larga escala por usuários autodenominados
liberais, realizando um processo análogo com o conteúdo considerado conservador.

No gráfico seguinte (Figura 2), demonstra-se uma das conclusões do estudo. Nele se
mostra a porcentagem de cross-cuting content (traduzido livremente como “conteúdo de
teor político oposto ao informado pelo usuário”) acessado por liberais e conservadores,
colocando quatro canais pelos quais esse acesso ocorreu. É importante entender esses
canais pela metodologia da pesquisa e pelo serviço que o Facebook oferece. O primeiro,
Random, corresponderia a uma exposição de uma amostra aleatória de todas notícias
relacionadas a temas de relevância para democracia (chamadas pelos pesquisadores de
hard news), em um cenário em que todos pudessem observar o conteúdo compartilhado
por todos. Observa-se que Liberais veriam, em média, apenas 45% de conteúdo de viés
conservador, enquanto conservadores veriam apenas 40% de conteúdo liberal. No
segundo canal, Potential from network, se leva em consideração a rede a qual o usuário
faz parte. Nesse caso, a porcentagem considera o quanto de conteúdo contrário à visão
política declarada poderia ser visto potencialmente por meio do compartilhamento de
amizades do usuário. Nesse caso, conservadores poderiam acabar observando 35% de
conteúdo de viés liberal, enquanto os liberais poderiam ver em torno de 23%. A terceira
via, Exposed, é a de mais relevância no estudo, pois nela aparece o conteúdo que
realmente foi exibido no feed de notícias dos usuários, sendo a real medida da bolha de
filtro a diferença entre o que potencialmente seria demonstrado por meio da rede que
fazem parte e o que é de fato é mostrado. Como os próprios pesquisadores explicitam,
essa diferença é de 5% nos que se declaram conservadores, enquanto ela é de 8% nos
que se declaram liberais.

Figura 2

50% Viewer affiliation


45% Conservatives
Percent cross-cutting content

40% Liberal

35%

30%

25%

20%

15%

10%
Random Potential from network Exposed Selected

Fonte: Adamic, Bakshy, & Messing, 2015

198
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

A conclusão final dos pesquisadores é de que não existe uma diferença significativa
entre o conteúdo que seria exibido pelos amigos e o que realmente é exposto para o
usuário, fazendo com que o efeito da bolha de filtro seja bem mais fruto de escolhas
individuais que realmente do algoritmo.

Entretanto, é necessário colocar duas críticas em relação a essa conclusão. Como


o próprio Parisier (2015) afirma, primeiramente precisamos destacar que esse cenário
foi observado por um curto período de tempo e que a tendência é que essa polarização
apenas crescesse em uma série temporal, uma vez que nossas redes aumentam com o
passar do tempo e tendemos a fechar cada vez mais nosso ciclo em pessoas que pensam
da mesma forma que nós. Além disso, não é possível estabelecer uma correlação
entre ações individuais e a ação do algoritmo, uma vez que ambas se influenciam
mutuamente através de cada interação específica dos usuários.

Portanto, o que se observa através destes estudos é que há indícios de um efeito de


filtro de bolha que tende a polarizar opiniões divergentes e transformar as redes sociais
pelas quais nos informamos em câmaras de eco. O resultado desse processo é péssimo para
pluralidade de opiniões e abre brechas para extremismos que possam ameaçar a liberdade
de expressão e opinião, um dos pilares fundamentais para o exercício da democracia.

4_OS MOVIMENTOS EM REDE E A VIRALIZAÇÃO DO ÓDIO

Os malefícios trazidos pelas câmaras de eco apenas se agravam quando analisamos a


tendência de como os movimentos sociais se organizam na era digital. Com uma maior
velocidade e acessibilidade por um preço relativamente barato, cada cidadão adquiriu o poder
de acessar e de comunicar qualquer informação através da rede mundial de computadores,
quebrando em parte o monopólio da informação que os veículos de comunicação em massa
historicamente tiveram. Dessa forma, cada indivíduo adquiriu uma maior liberdade para
expressar e construir consensos diferentes do status quo, dando-lhe também a possibilidade
de encontrar e juntar outros indivíduos com pensamento semelhante (Assange, 2013).

Esse processo tornou os Estados mais suscetíveis a protestos e dissidências, já que


existe uma maior facilidade de organização dos mesmos via redes sociais (Garret, 2006).
Castells (2013) analisa de forma mais específica, afirmando que essa mudança gerou uma
organização diferente dos movimentos sociais feitos até então, o que o autor denomina
como “movimentos em rede” (Castells, 2013, p. 129). Uma das principais características
desse novo arranjo é sua forma descentralizada de ação, não possuindo lideranças
permanentes, mas sim guiando-se pelos debates, coordenação e deliberações formados
nas redes em que os movimentos sociais se inserem. Ainda que sua força principal de
pressão e luta esteja na ocupação de espaços públicos físicos, sua existência e construção
contínua apenas tem como principal plataforma as tecnologias contemporâneas como
a Internet e os smartphones, que garantem acesso a ela em praticamente qualquer
localização (Castells, 2013, p. 129). Essa fusão entre espaço cibernético e espaço urbano
dá origem a um terceiro espaço, denominado por Castells como “espaço da autonomia”,
o qual forneceria, segundo o autor, a “[...] capacidade de um ator social tornar-se sujeito
ao definir sua ação em torno de projetos elaborados independentemente das instituições
da sociedade, segundo seus próprios valores e interesses” (Castells, 2013, p. 135).

199
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

Além disso, um dos preceitos de uma rede disposta de forma distribuída é sua
resiliência, ou seja, sua capacidade de resistir a ataques sem que ela deixe de existir. Pelo
fato desses movimentos não possuírem uma liderança, a repressão individual, como a
prisão ou tortura de um líder, por exemplo, não é suficiente para que o movimento seja
extinto, já que “[...] a rede pode se reconstruir enquanto houver um número mínimo
de participantes, frouxamente conectados por seus objetivos e valores em comum”
(Castells, 2013, p. 129). A burocratização e cooptação por outros movimentos da chamada
“velha política” também é prevenida dessa forma, novamente pelo argumento de que
não há lideranças pontuais a serem cooptadas.

Após essa breve contextualização dos chamados movimentos em rede, é importante


analisar a dinâmica apresentada pelo autor de como funciona esse novo modelo de
organização. O autor dá destaque ao papel que as emoções têm na agência dos indivíduos,
afirmando que as “[...] mais relevantes para a mobilização social e o comportamento político
são o medo (um afeto negativo) e o entusiasmo (um afeto positivo)” (Castells, 2013, p. 24). O
medo agiria como um agente paralisante, gerado a partir da ansiedade construída como
uma reação a ameaça externa sobre a qual a pessoa ameaçada não tem controle. Assim, a
ansiedade leva ao medo e neutraliza a ação desses agentes. Ao demonstrar sua indignação
e enxergarem que ela é compartilhada pela rede, o medo é superado e “emoções positivas
assumem o controle, à medida que o entusiasmo ativa a ação, e a esperança antecipa as
recompensas por uma ação arriscada” (Castells, 2013, p. 25).

Analisando tudo o que foi considerado, vemos que as redes sociais e novas formas
de comunicação possuem uma influência direta nessa nova forma de organização dos
movimentos sociais. Como afirma o próprio autor:

Em nossa época, as redes digitais, multimodais, de comunicação


horizontal, são os veículos mais rápidos e mais autônomos,
interativos, reprogramáveis e amplificadores de toda a história.
As características dos processos de comunicação entre indivíduos
engajados em movimentos sociais determinam as características
organizacionais do próprio movimento: quanto mais interativa
e autoconfigurável for a comunicação, menos hierárquica será
a organização e mais participativo o movimento. É por isso que
os movimentos sociais em rede da era digital representam uma
nova espécie em seu gênero. (Castells, 2013, p. 26).

É importante destacar especificamente que “[...] as características do processo de


comunicação entre os indivíduos” são determinantes nas características do próprio
movimento. Levando em consideração que a maior parte dessas redes são feitas por
meio das grandes corporações da Internet, podemos entender que esses movimentos
são construídos juntamente com a lógica das bolhas de filtro: de polarização e não
pluralidade de ideias.

Conjuntamente, não apenas os processos de comunicação são relevantes na análise


de como os novos movimentos se formam, mas também o teor do conteúdo que é
compartilhado. Na pesquisa feita pelo Facebook, demonstrada no capítulo anterior, o teor do

200
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

que era considerada uma notícia liberal ou conservadora foi apenas definido com base em
uma correlação do que usuários que se autodeclaravam parte de alguma das duas posições
políticas compartilhavam, sendo apenas considerados as chamadas hard news, ou seja,
notícias que tinham palavras-chaves relacionadas à economia ou política. Entretanto, não
se analisava semanticamente quais emoções essas notícias despertavam nos usuários,
sendo essa uma das variáveis que os levariam a compartilha-la.

Como descrevem Berger e Milkman (2012), as emoções possuem um papel


fundamental na transmissão de ideias. Tendo como referência estudos de psicologia
comportamental (Smith, & Ellsworth, 1985; Barrett, & Russel, 1998), os pesquisadores
afirmam que as emoções possuem um papel estimulante e desestimulante, ou
seja, estimulando ou desestimulando que um pensamento, uma ação ou uma ideia
seja realizada ou transmitida. Emoções com altas nível de ativação, tanto positivas
(como admiração) ou negativas (ódio e ansiedade), teriam uma capacidade maior de
provocarem um estímulo que levaria a ação do indivíduo, enquanto emoções com baixo
nível de ativação (como tristeza ou medo) seriam desestimulantes para a ação.

Com base nessa lógica, Berger e Milkman (2012) analisaram o teor das notícias
do jornal The New York Times por um período de um ano, observando os níveis de
engajamento, cliques e compartilhamento que elas possuíam. Com base nesses dados,
o jornal sempre avaliava as notícias mais relevantes da semana, enviando-as no
newsletter do jornal para seus assinantes. Analisando o teor das notícias, verificou-
se que as que continham ideias expressando alguma forma de ódio tinham a maior
probabilidade (34%) de estarem dentro do newsletter, sendo seguida pelo sentimento de
admiração (29%). Confirmando os estudos de psicologia citados, o ódio e a admiração
acabaram por causar um maior engajamento e, dessa forma, uma maior probabilidade
de serem visualizados.

A partir destes dois estudos, podemos chegar à conclusão de que a viralização do ódio
é excepcional comparada aos outros sentimentos. Primeiro, por ser uma emoção que
possuí um alto nível de ativação da transmissão social, levando o indivíduo que sente a
responder a esse estimulo. Por essa característica, a viralização do ódio se torna maior
probabilisticamente, uma vez que o usuário que lê a notícia responde ao estímulo de ódio.

5_A REDE É O MEIO

“O meio é a mensagem” (McLuhan, 1969). De acordo com Mcluhan (1969), o impacto


causado pelo meio em si é muito maior que o “conteúdo” que por ele transita. O “conteúdo”
propriamente dito, como um programa de tevê, na opinião de McLuhan tem um efeito
secundário sobre os usuários. Não que as informações que circulam pelo meio sejam
irrelevantes. Na verdade, o “conteúdo” tem um papel essencial no compartilhamento de
informações de interesse comum. No entanto, a real mudança social e cognitiva é fruto
do meio. O meio cria uma ferramenta cognitiva responsável por moldar tanto nossa
cultura quanto nossas experiências de modo a alterar nossa percepção. Por isso, McLuhan
jogou com The medium is the massage. Duas vertentes foram exploradas, a primeira de
que o meio massageia o cérebro fazendo-o sentir de uma nova forma, perceber estímulos
diferenciados e a segunda de que o meio agora era para a grande massa (Mass Age).

201
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

McLuhan (1969) critica o fato que a maioria das


pessoas entendia o “conteúdo” como a mensagem
quando o meio que, de fato, introduz uma ruptura “THE MEDIUM IS THE
independentemente da época ou espaço. O meio MASSAGE.”
muda a “escala, a cadência ou padrões” (McLuhan,
1969) de uma sociedade como um todo provocando
fortes efeitos sociais e psicológicos. Inclusive, a dimensão deste efeito só pode ser
observada em parte quando comparada a grupos que não foram expostos aos meios em
questão. De qualquer maneira, há uma aceitação passiva e subliminar de novos meios,
negligenciando o impacto deles sobre a liberdade, sobre a percepção de outros grupos
e sobre a interação com outros meios. Os meios são considerados recursos naturais
a serem usados e, assim, configuram uma sociedade. Tal como a seda determinou
traços típicos nas culturas orientais e nas trocas com o ocidente ou o petróleo motivou
indústrias inteiras, os meios também induzem e refletem ordenamentos culturais.
Segundo McLuhan (1969), “Cada produto que molda uma sociedade acaba por transpirar
em todos e por os seus sentidos”.

As máquinas cerebrais em si são um meio de impacto gigantesco nos padrões da nossa


sociedade e cujos indivíduos sentem a necessidade de usá-las como recursos. É realmente
um produto que alterou concepções da sociedade. Principalmente, como o meio possibilitou
a criação de outro meio, a rede. A rede do ponto de vista de sua construção e arquitetura
constitui um novo meio em si própria. A forma como a rede se tornou base para nossa
sociedade e transformou completamente o fluxo de informações e a percepção das pessoas
– enquanto indivíduos e grupo – caracteriza uma ruptura paradigmática para a sociedade
contemporânea, adentrando o paradigma da complexidade. Não há mais espaço para ideias
solitárias. Um olhar sistêmico, subjetivo e de observação participativa se faz imperativo no
cenário de acessibilidade e fluidez da rede.

O próprio pensamento de Castells (2013) revela o tom de meio da rede ao evidenciar


o potencial que ela toma no rumo da civilização, por exemplo, na mobilização social
através da rede que culminaria na Primavera Árabe. A indignação compartilhada
seguida pela esperança e luta só se tornou viável graças à existência da rede. Logo, as
interações entre coisas e sujeitos, a nova percepção da realidade, a escala, a cadência
e os padrões, todos juntos assumiram um novo patamar o qual esculpi a cultura da
sociedade contemporânea.

Constata-se então: a rede é o meio. Em si própria constitui um novo modus


operandi para a civilização. Agora, as questões que envolvem a rede como meio se
fazem extremamente necessárias. Quais são os pressupostos impostos pela rede
como meio? Como permanecer à margem dessa estrutura? Quais as linhas de força a
serem percebidas e quem são os mestres do meio? Seja como for, o feitiço pelo meio é
instantâneo e a maioria da população está submissa aos seus pressupostos. Atualmente
no turbilhão de mudanças há pouca compreensão do que está acontecendo e a grande
massa está dentro do meio, não tendo discernimento das linhas de força que a envolve.
Porém, qual a relação entre os pressupostos do meio e a disseminação de ódio e onda
crescente de polarização entre grupos de opiniões contrárias ou diferentes? Qual a

202
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

participação das bolhas de filtro neste contexto?

A postura que a bolha de filtro algoritmicamente impõe aos usuários é, em resumo,


“ame os semelhantes e odeie os opostos”. O usuário terá suas opiniões reverberadas e
será induzido a rejeitar opiniões diferentes. Assim, ao serem complacentes com esta
predisposição da educação atual, cumprem por consequência os interesses monetários
das empresas da Internet, que fazem os jovens se sentirem mais dispostos a usarem as
redes devido ao ambiente artificialmente produzido para lhes criar sensações positivas
e de pertencimento a partir das bolhas de filtro.

Por isso a rede é o meio e tão logo formadora. Assim, é importante buscar alternativas
às bolhas de filtro que os usuários estão expostos. O Wikipédia e o Linux, por exemplo,
oferecem uma outra concepção lógica, a de cooperação. Mas uma restrição deste artigo é
oferecer opções aos usuários. Há de fato opções, como o próprio usuário adotar posturas
para confundir o algoritmo, como curtir páginas que não tenham nenhuma relação
com o perfil dele, por exemplo. Mas isso só possível a medida que se crie a consciência
da situação dentro da bolha de filtro. O que traz à tona a necessidade de fomento de
uma cultura de tolerância e diversidade para a sociedade. Não apenas aceitar/entender,
como também ressaltar as melhorias advindas de diferentes perspectivas. Para tanto,
o primeiro passo é a conscientização dos usuários. Somente assim é possível dar o
segundo passo no caminho da criação de uma nova cultura.

Este artigo, no entanto, limita-se a alertar sobre a lógica nefasta das bolhas de
filtro que cumprem ideias capitalistas e da parcialidade que isso cria na rede. Portanto,
ainda são necessários estudos de como conscientizar os usuários – e este artigo é um
incentivo para tal –, além de outros sobre como fomentar uma cultura de tolerância a
diversidade e análise de alternativas que rompam com as bolhas de filtro.

6_CONCLUSÕES

Pelo conjunto mencionado, é possível notar que a rede imaginada por Lévy (1999)
e Benkler (2006) como meio de compartilhamento e cooperação ainda está presente
no caráter descentralizador e de muitos para muitos da rede, mas está ameaçada pela
lógica do capitalismo de vigilância.

A necessidade de aumento de lucro e ambição por poder das empresas de


tecnologia acaba por criar um cenário nefasto para os ideais de compartilhamento e
cooperação. Isso porque o caminho escolhido por essas empresas para alcançar seus
objetivos econômicos e atingir um patamar de influência mundial não só se baseou
no capitalismo de vigilância, o qual visa primeiramente a coleta intensiva de dados
dos usuários – de forma inclusive abusiva –, mas também na criação de ambientes
artificialmente produzidos por algoritmos sensíveis à interação dos próprios usuários
na plataforma, as chamadas bolhas de filtro.

Embora as bolhas de filtro apresentem benefícios como a conveniência e facilidade de


acesso a temas de interesse, ela mascara um lado perverso de enclausuramento dos usuários
em torno das próprias convicções, as quais são reverberadas de duas maneiras: reforço

203
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

positivo nos próprios posts; e criação de sensações negativas para opiniões contrárias. Assim,
o usuário acaba por não interagir a receber a complexidade das informações, colocando em
questão a validade da plataforma em questão. É o caso exposto do Washington Post diante
do Facebook para as eleições presidenciais americanas deste ano.

A razão para esse viés é justamente propiciar experiências mais agradáveis aos
usuários e mantê-los por mais tempo entretidos, pois isso significa diretamente chance
de aumentos nos lucros. Agora isso é particularmente grave do ponto de vista que hoje
poucas empresas de tecnologia monopolizam a rede e, portanto, boa parte do fluxo de
informações. O que levanta a dúvida dos perigos que isso pode oferecer aos próprios
usuários e mesmo a regimes democráticos.

Por último, foi abordada a rede como meio porque ela em si própria produz
consequências drásticas à vida em sociedade. E sendo um meio isso torna a rede
educadora. Portanto, é importante conscientizar os usuários sobre a polarização, as
bolhas de filtro e interesses comerciais, já que isso tem grande impacto em decisões de
interesse comum. Para tanto é necessário dar esse primeiro passo de conscientização e
só assim será possível fomentar uma cultura de tolerância e diversidade.

_REFERÊNCIAS

Adamic, L, Bakshy, E., & Messing, S. (2015). Exposure to ideologically diverse news and
opinion on Facebook. Universidade de Michigan, Estados Unidos.

Assange, J. (2013). Cypherpunks: Liberdade e o Futuro da Internet. São Paulo: Boitempo


Editorial.

Barrett, L. F., & Russell, J. (1998). Independence and Bipolarity in the Structure of
Current Affect. Journal of Personality and Social Psychology.

Benkler, Y. (2006). The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets
and Freedom. Yale University Press.

Berger, J., & Milkman, K. (2012). What Makes Online Content Viral? Journal of
Marketing Research.

Castells, M. (2013). Redes de Indignação e Esperança. Tradução de Carlos Alberto


Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar.

Garret, R. (2006). Protest in an Information Society: a review of literature on social


movements and new ICTs. Information, Communication & Society, 9 (2).

Ibope Inteligência (2016). Metade dos eleitores brasileiros receberam informações


sobre política pelo Facebook, Twitter ou WhatsApp. Recuperado de <http://www.

204
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/metade-dos-eleitores-brasileiros-
receberam-informacoes-sobre-politica-pelo-facebook-twitter-ou-whatsapp/>

International Data Corporation (2016). Smartphone operational system market share.


Recuperado de <http://www.idc.com/prodserv/smartphone-os-market-share.jsp>

Kallas, P. (2016). Social Networking sites market share. Dream Grow. Recuperado de
<http://www.dreamgrow.com/top-10-social-networking-sites-by-market-share-of-
visits-august-2016/>

Lévy, P. (1999). Cibercultura. São Paulo: Editora 34.

Lévy, P. (2007). Inteligência coletiva: para uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola.

McLuhan, M. (1969). O meio é a mensagem. Tradução: Ivan Pedro de Martins. Ed.


Record.

Parisier, E. (2011). The Filter Bubble: What the Internet Is Hiding from You. Nova York:
Penguin Books.

Parisier, E. (2015). Did Facebook’s Big New Study Kill My Filter Bubble Thesis? Wired.
Recuperado de: <https://www.wired.com/2015/05/did-facebooks-big-study-kill-my-
filter-bubble-thesis>

Ries, E. (2011). The Lean Startup: How today’s Entrepreneurs use continuous innovation
to create radically successful business. New York: Crown Business.

Santaella, L. (2000). Novos desafios da comunicação. Cultura das Mídias. 3. ed. São Paulo.

Smith, C. A., & Ellsworth, P. C. (1985). Patterns of Cognitive Appraisal in Emotion.


Journal of Personality and Social Psychology, 48 (4), 813–38.

Statista (2016a). Leading social networks worldwide as of September 2016, ranked by


number of active users (in millions). Recuperado de: <https://www.Statista.com/
statistics/272014/global-social-networks-ranked-by-number-of-users/>

Statista (2016b). Market share held by the leading social networks in the United Kingdom
(UK) as of October 2016. Recuperado de: <https://www.Statista.com/statistics/280295/
market-share-held-by-the-leading-social-networks-in-the-united-kingdom-uk/>

Statista (2016c). Number of monthly active Facebook users worldwide as of 3rd quarter
2016 (in millions). Recuperado de: <https://www.Statista.com/statistics/264810/
number-of-monthly-active-facebook-users-worldwide/>

Statista (2016d). Number of social media users worldwide from 2010 to 2020 (in billions).
Recuperado de: <https://www.Statista.com/statistics/278414/number-of-worldwide-
social-network-users/>

Statista (2016e). World Wide Market Share of Search Engines. Recuperado de: <https://
www.Statista.com/statistics/216573/worldwide-market-share-of-search-engines/>

205
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ LEANDRO RACUIA + VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS

UnBTV (2014, 25 de setembro). Palestra: Dominique Wolton [Arquivo de vídeo].


Recuperado de: <https://www.youtube.com/watch?v=_omtVarLnrQ>

Wolton, D. (2006). É preciso salvar a comunicação. Tradução Vanise Pereira. Paulus, 2.


ed. São Paulo.

Zuboff, S. (2015). Big Other: surveillance capitalism and the prospects of an


information civilization. Journal of Information Technology. 30, 75-89.

LEANDRO RACUIA
Estudante de Administração da USP e fascinado
pelos temas de empreendedorismo, inovação e
impacto social. Trabalhou para a Força Tarefa
Brasileira de Finanças Sociais e construiu
conhecimento no campo social através da
contribuição para o estudo Mapeamento
dos recursos disponíveis no campo social.
Possui forte inclinação para desenvolvimento
de conteúdos ligados à criação de novos
negócios de cunho social, capacitação em
desenvolvimento de processos criativos grupais
e clima/cultura no universo de startups.

VICTOR ANDRÊS VELOSO CAVADAS


Estudante de Relações Internacionais da USP
e pesquisador em diferentes temas referentes
à tecnologia e sociedade. Sua pesquisa envolve
principalmente temas como Vigilantismo,
Liberdade de Expressão na Internet, Cyberwar e
Cybersegurança. Foi representante da juventude
brasileira no IGF 2016 e atualmente é estagiário
na área de Direitos Digitais do Instituto Brasileiro
de Defesa do Consumidor (Idec). Também é
cofundadores e coordenador do Núcleo de Estudos
em Tecnologia e Sociedade da USP, instituição
estudantil que tem como objetivo difundir
e estimular o debate sobre temas ligados a
tecnologia.temas ligados a la tecnología.

206
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

DEFESA DA CONCORRÊNCIA
E PLATAFORMAS ONLINE EM
TEMPOS DE BIG DATA

PALOMA SZERMAN
Advogada especialista em direito e políticas das Tecnologias da
Informação e Comunicação
paloma.szerman@gmail.com
Argentina

207
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

_TEMÁTICA

Problemas emergentes da Internet

_RESUMO

Como resultado de la actual revolución productiva basada Como


resultado da atual revolução produtiva baseada no uso e coleta
de dados, cada vez mais empresas desenvolvem seus modelos
de negócios baseando-se no uso do big data. E embora isso lhes
permita melhorar seus produtos e serviços, a partir da defesa
da concorrência há cada vez mais perguntas sobre a relevância
dos bancos de dados e como seu uso pode levar a práticas
abusivas ou gerar efeitos anticompetitivos. Este artigo explora
como as agências da concorrência começaram a envolver-se em
assuntos relacionados com o big data e os dados pessoais.

Palavras chave: competência; big data; proteção de dados;


privacidade

208
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

1_INTRODUÇÃO

Em agosto de 2016, o Facebook anunciou uma mudança nos termos de serviço do


WhatsApp – do qual é proprietário – informando que agora seria possível o tratamento
cruzado, com o aplicativo de mensagens, de dados pessoais dos usuários em mãos da
rede social1. O fato gerou uma cascata de reações adversas por parte de advogados, policy
advocates, ativistas do direito à privacidade e usuários em todo o mundo, irritados pela
possibilidade de que o gigante das redes sociais pudesse dispor discricionariamente de
seus dados a fim de maximizar seus ganhos.

Apenas dois anos antes, a Comissão Federal


de Comércio (Federal Trade Commission) dos EUA
AGORA O USO,
(2014) e a Comissão Europeia (2014) – os órgãos
COLETA E competentes em questões de defesa da concorrência
TRATAMENTO em tais jurisdições – haviam dado luz verde à
MASSIVO DE DADOS aquisição do WhatsApp por parte do Facebook,
SÃO CHAVES PARA apesar da oposição por parte de alguns agentes
REALIZAR NEGÓCIOS relevantes. Para aqueles que estavam contra, era
claro que o Facebook buscava ter acesso aos dados
dos usuários do WhatsApp para refinar ainda mais
seus serviços de publicidade online (Medina, 2015; Oreskovic, 2014; Westerholm, 2014).
Embora a enorme pressão pública tenha conseguido que – ao menos por enquanto, e na
Europa (Hern, 2016) – o processamento cruzado de dados fosse suspenso, muitos agentes
do ecossistema digital ressaltaram que isso havia sido advertido por eles no momento
de se realizar a transação.

O que aconteceu com o Facebook/WhatsApp não é um fenômeno isolado, e sim


parte de um panorama maior que evidencia uma nova era em termos econômicos.
De fato, é cada vez mais evidente que nos encontramos frente a uma mudança crucial
nas bases de nosso sistema econômico: agora o uso, coleta e tratamento massivo de
dados são chaves para realizar negócios. Vemos isso todos os dias quando cada vez
mais empresas – operadoras de telecomunicações, bancos, provedores de serviços de
Internet, motores de busca web, redes sociais, cartões de crédito etc. – coletam enormes
quantidades de dados pessoais para melhorar seus negócios. O fato se evidencia ainda
mais no crescimento do que chamamos de big data. Nesse sentido, diversos estudos
demonstram que o que foi denominado “inovação impulsionada por dados” permite às
empresas melhorar a qualidade de seus produtos e serviços, assim como criar novos, ao
entender e direcionar-se melhor a seus consumidores e usuários (Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], 2016).

As empresas coletam, organizam e sistematizam conjuntos de dados –geralmente


chamados data-sets – que integram bancos de informações para seu uso. Assim,
na busca de otimizar processos e maximizar ganhos, as empresas adaptam seus
modelos de negócios à aquisição e tratamento de grandes volumes de dados pessoais

1 Pode-se acessar a versão dos termos de serviço do Whatsapp do dia 25 de agosto de 2016 em
<http://bit.ly/2qBUZ6t>. Acesso em 27/02/2017.

209
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

de seus usuários. Isso lhes permite oferecer produtos e/ou serviços cada vez mais
personalizados, o que os torna mais atrativos para os usuários, bem como serviços de
business intelligence e anúncios publicitários para públicos específicos de forma cada
vez mais refinada (OCDE, 2016).

Como podemos imaginar, esse fenômeno tem efeitos em múltiplas esferas de


nossas vidas. É por isso que reguladores nacionais e órgãos transnacionais começam a
investigar a possível aplicação das normas e princípios de defesa da concorrência em
assuntos relacionados ao big data e ao uso de dados pessoais. Aqui, particularmente,
vamos observar de que modo poderiam-se analisar os possíveis efeitos do tratamento
massivo de dados na concorrência econômica. A seguir, sem esgotar o universo de
possibilidades, algumas avaliações.

1.1_ENTENDER A NOVA LÓGICA DO MERCADO

No que diz respeito à análise dos data-sets como um insumo, o Supervisor Europeu
de Proteção de Dados (2014) considerou que os dados pessoais se tornaram o método de
pagamento invisível para o que denominou “serviços online gratuitos”, que incluem as
redes sociais, serviços de e-mail etc. Como consequência, a coleta massiva de dados
pessoais deve ver-se refletida nas novas definições do que, no direito da concorrência, se
chama “o mercado relevante”2. Por exemplo, uma análise de mercado relevante nos dias
de hoje deve examinar novos modelos de negócios e avaliar o valor dos data-sets como
um ativo intangível dentro do “mercado de serviços gratuitos online”.

Enquanto que redes sociais, motores de busca e demais serviços gratuitos podem ter
uma enorme porção do mercado em relação às suas limitadas ofertas de serviços, os
mercados em si são, no mínimo, bilaterais – e o lado que mais ganha geralmente é o
publicitário. Esse se caracteriza por uma concorrência feroz, contrapartidas poderosas
e uma avaliação constante da performance dos distintos vendedores publicitários.
É por isso que, para esses casos, as preocupações tradicionais relativas às condutas
abusivas, tais como os preços abaixo do custo marginal ou a venda em pacotes de
diferentes produtos, não são aplicáveis, e inclusive podem beneficiar a concorrência
e os consumidores. Não obstante, as companhias possuidoras de grandes quantidades
de dados, como toda empresa, podem ter condutas anticompetitivas, assim como usar
fusões e/ou aquisições para acumular poder de mercado suficiente para manipular
preços e espremer os negócios de seus concorrentes. Quando isso acontece, as agências
da concorrência devem intervir e as leis vigentes devem considerar estas questões
(Kennedy, 2017).

2 “Mercado relevante” é o conceito utilizado na defesa da concorrência para delimitar os produtos


e empresas em que existe uma concorrência próxima. Usualmente, para fazê-lo, costuma-se analisar
a substituibilidade de produtos ou serviços, tanto a partir do ponto de vista dos consumidores como
das empresas que os oferecem. Para isso, costuma-se aplicar o “teste do monopolista hipotético”,
segundo o qual se um monopolista hipotético fizer um pequeno, mas significativo e não transitório,
aumento dos preços (entre 5% a 10%) e como resultado disso os consumidores escolherem outros
produtos, são aqueles os que definem o mercado relevante. Não obstante, a aplicabilidade desse teste
em relação aos serviços ligados ao ecossistema digital é discutida.

210
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

1.2_O VALOR DOS DATA-SETS E O CONTROLE DE


CONCENTRAÇÕES

Tal como aconteceu nas fusões Google/DoubleClick3 e Facebook/WhatsApp4, as


agências de defesa da concorrência podem avaliar até que ponto uma transação desse
tipo pode levar à acumulação de dados em mãos de um só agente de tal modo que pudesse
restringir a concorrência. Especialmente caso os concorrentes não tenham capacidade
para replicar ou adicionar livremente, por seus próprios meios, tais informações, ou se
não puderem contar com os meios necessários para fazer uso delas – esse foi o maior
argumento utilizado pelos opositores às fusões mencionadas5.

Além disso, a Comissão Europeia acaba de aprovar a aquisição do LinkedIn por parte
da Microsoft6, apesar da forte oposição de seus competidores, especialmente Salesforce
– uma empresa que compete com a Microsoft no mercado da computação em nuvem.
Os rivais da Microsoft tornaram públicas suas preocupações pelo acesso aos dados
em posse do LinkedIn e sua futura exploração comercial. Para acelerar a aprovação
da operação, a Microsoft ofereceu concessões de todo tipo: que os desenvolvedores de
empresas rivais tenham acesso a certas ferramentas do Outlook – um software de
gestão de e-mail, calendário, contatos, entre outros –, resultando que perfis das redes
sociais rivais possam aparecer no Outlook (Motta, 2016).

A Comissão definiu suas exigências: assegurar-se que os fabricantes de


computadores tenham a opção de não instalar o LinkedIn no Windows; permitir níveis
de interoperabilidade entre os produtos da Microsoft e as redes sociais profissionais que
competem com o LinkedIn; e outorgar às redes sociais profissionais da concorrência
acesso a dados de usuários armazenados na nuvem da Microsoft com prévio
outorgamento de consentimento por parte dos usuários (Comissão Europeia, 2016).

A novidade no estabelecido pela Comissão foi que, pela primeira vez, analisou-se a
potencial concentração de dados como resultado da fusão e seu impacto na concorrência.
Embora tenha deixado claro que não é o objetivo do direito da concorrência europeu
lidar com assuntos relacionados à privacidade dos usuários, entendeu que sim, pode-
se ter isso em conta se os usuários veem a privacidade como um fator significativo de
qualidade, além de haver competição nesse fator entre as partes que se fundem. No caso,
a Comissão concluiu que a privacidade é um parâmetro importante de concorrência
entre redes sociais profissionais no mercado, o que poderia ter afetado negativamente a
transação mesmo que não fosse o caso concreto na aquisição (Comissão Europeia, 2016).

3 Ver Caso COMP/M.4731 Google/DoubleClick Regulation (EC) No 139/2004 Merger Procedure


(“Google/DoubleClick case”, 2008).

4 Ver Caso No COMP/M.7217 Facebook/Whatsapp Regulation (EC) No 139/2004 Merger Procedure


(“Facebook/WhatsApp case”, 2014).

5 Competition Law and Data, Informe da Bundeskartellamt e da Autoridade da Concorrência


(Autorité de la concurrence), 10 de maio de 2016, p. 24.

6 Nota do tradutor: em dezembro de 2016.

211
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

Apesar do dito anteriormente, a Salesforce


destacou que é impossível para qualquer entidade
COMISSÃO externa acessar ilimitadamente e/ou reproduzir as
CONCLUIU QUE A informações nas mãos do LinkedIn (Motta, 2016). Ao
PRIVACIDADE É mesmo tempo, a Microsoft argumenta que grande
UM PARÂMETRO parte dos dados estão disponíveis no Facebook, que
IMPORTANTE DE deveria ser considerado parte do mesmo mercado.
CONCORRÊNCIA O certo é que no centro da discussão encontra-se
ENTRE REDES uma questão de oportunidade de negócios, na qual
SOCIAIS tanto a Microsoft como muitos outros agentes
PROFISSIONAIS NO de peso, entendendo a direção que está tomando
a nova “economia de dados”, estão dispostos a
MERCADO
investir muito dinheiro.

1.3_DANOS AO CONSUMIDOR POR MEIO


DOS ABUSOS DE POSIÇÃO DOMINANTE

Alguns órgãos públicos começaram a investigar se quando um agente dominante se


aproveita dessa posição para negar aos usuários acesso a informação pessoal ou para
implementar termos de serviço enganosos não só está incorrendo em descumprimentos
às normas de proteção dos dados pessoais mas também em práticas anticompetitivas
que geram danos diretos ao consumidor.

Esta é a base para a pesquisa que começaram as agências de defesa da concorrência


na Alemanha (Bundeskartellamt [BKA], 2016) e Itália (Sisto, & Binnie, 2016) contra o
Facebook. Tomando de algum modo as reações negativas provocadas pela mudança
abrupta nos termos de serviço do WhatsApp, as agências consideram que o possível uso
ilegítimo dos termos e condições por parte do Facebook poderia implicar uma imposição
abusiva para seus usuários. Elas têm um enorme desafio: provar se de fato existe uma
conexão entre o possível abuso de posição dominante da empresa e o uso de cláusulas
contratuais e termos de privacidade abusivos.

2_CONCLUSÕES

Com base no exposto anteriormente, pode-se concluir que há um consenso crescente


na Europa de que, enquanto avançamos até uma economia digital baseada em dados e
informação, o direito da concorrência terá um papel crescente em prevenir que atividades
conectadas à coleta e uso de dados restrinjam ou evitem a concorrência em qualquer
mercado. Nesse sentido, e levando-se em conta os diferentes temas identificados ao
longo deste artigo, podem-se ressaltar algumas considerações principais que devem
consideradas por agências reguladoras, empresas e usuários ao tratar de assuntos
relativos a dados pessoais sob a ótica da defesa da concorrência:

212
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

2.1_OS BENEFÍCIOS PRÓ-COMPETITIVOS E DE QUALIDADE


DE SERVIÇO QUE SURGEM DA COLETA E TRATAMENTOS
DE DADOS PARA O USUÁRIO

A coleta de dados gera benefícios para a concorrência e os usuários, dado que os


provedores de serviços online utilizam esses dados para melhorar seus serviços e
monetizá-los efetivamente, gerando serviços que são oferecidos a preços subsidiados,
inclusive gratuitos em termos monetários. Como consequência, os provedores de
serviços online estão em uma melhor posição para competir entre si e prover melhor
qualidade de serviços. No entanto, as empresas que coletam dados precisam levar em
conta como os usarão, considerando os riscos regulatórios de defesa da concorrência
que podem ser implicados.

2.2_AUTORIDADES EUROPEIAS E REGULADORES


NACIONAIS

Parece que as agências nacionais na Europa estão tomando a dianteira para


entender os efeitos da coleta de dados e o big data na concorrência em geral, enquanto
que a Comissão Europeia se focou na revisão de fusões. Nada indica que a Comissão
abrirá uma nova frente em relação à coleta de dados e o uso do big data e as possíveis
condutas anticompetitivas. No entanto, com exceção das ações iniciadas pela Alemanha
e Itália contra o Facebook, as agências nacionais não realizaram nenhum procedimento
específico relativo aos abusos de posições dominante por meio do uso de dados pessoais.
Ainda assim, se a tendência de coletar dados para acelerar os negócios continuar – e tudo
parece indicar que assim o será – é só uma questão de tempo para que as autoridades de
defesa da concorrência se vejam obrigadas a envolver-se no assunto e inclusive exigir o
cumprimento de certas questões regulatórias.

2.3_EQUILIBRAR AS ANÁLISES DE PODER DE MERCADO


COM O USO COMPETITIVO DE DADOS

As autoridades europeias e as agências nacionais devem encontrar um equilíbrio


justo, discernindo quando um agente dominante está utilizando seu poder de mercado
até mercados adjacentes de quando há ganhos em eficiência que surgem da especificação
(“targetização”) das transações. Em outras palavras, a coleta e uso de dados, quando é
analisada sob a ótica da concorrência, deve prevenir não só os efeitos restritivos à
concorrência, mas também estimular seus benefícios pró-competitivos e pró-consumidor.

2.4_OLHAR ALÉM DOS MOTORES DE BUSCA E OS


ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS

O uso e coleta de dados têm implicações em um espectro de indústrias e mercados


muito mais amplo que o dos motores de buscas, a publicidade online e as redes sociais,
especialmente com a chegada e avanço da Internet das Coisas. Num futuro não tão
distante, todos os setores da indústria elaborarão seus modelos de negócios com base
na coleta e inteligência de dados e, portanto, deverão considerar tal modelo não só a

213
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

partir da perspectiva da proteção, mas também a partir dos riscos e o compliance7 com
o direito da concorrência.

2.5_COLETA E USO DE DADOS NÃO NECESSARIAMENTE


IMPLICAM QUE A DEFESA DA CONCORRÊNCIA DEVE
INTERVIR PARA PROTEGER A PRIVACIDADE DOS
USUÁRIOS

Há um consenso generalizado de que, de modo geral, a proteção da privacidade está


fora do alcance do direito da concorrência. Assim, deve ter-se em conta que a defesa da
concorrência é uma disciplina cujo objetivo serve aos fins de defender a concorrência,
não proteger a privacidade. Contudo, algumas agências identificaram termos e políticas,
além de privacidade de alguns serviços, que poderiam ser considerados abusivas se
infringem o regulamento de proteção de dados pessoais e afetam a concorrência,
especialmente quando são praticados por agentes dominantes.

As críticas recebidas pelo Facebook quando alterou os termos e condições do


WhatsApp e a pesquisa da BKA sobre a empresa se baseiam nisso. Ainda assim, duas
questões devem ser consideradas a respeito: (i) a BKA tem a difícil tarefa de provar um
vínculo causal entre o descumprimento da legislação de proteção de dados pessoais, a
dominância e a prática de condutas abusivas de acordo com o direito da concorrência;
(ii) inclusive se a BKA conseguir provar esse vínculo causal, e inclusive se as empresas
de fato abusam de sua posição dominante por meio de políticas de privacidade pouco
transparentes, não significa que o direito da concorrência deva incluir dentro de seus
objetivos a proteção da privacidade. Por outro lado, a BKA e qualquer outra agência de
defesa da concorrência devem gradualmente reavaliar suas interações institucionais
com as agências de proteção de dados para evitar a superposição jurisdicional e
melhorar a proteção dos usuários.

Artigo originalmente escrito em espanhol

_REFERÊNCIAS

Bundeskartellamt (2016). Bundeskartellamt initiates proceeding against Facebook


on suspicion of having abused its market power by infringing data protection rules.
Recuperado de <http://bit.ly/1RlhW5w>

Comissão Europeia (2014). Mergers: Commission approves acquisition of WhatsApp by


Facebook. [Release de imprensa]. Recuperado de <http://bit.ly/2qBAyqf>

Comissão Europeia (2016). Mergers: Commission approves acquisition of LinkedIn by


Microsoft, subject to conditions. [Release de imprensa]. Recuperado de <http://bit.
ly/2he9Pva>

7 Nota do tradutor: do inglês to comply, que significa agir de acordo com as regras.

214
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Comission) (2014). FTC Notifies Facebook,
WhatsApp of Privacy Obligations in Light of Proposed Acquisition. News & Events.
Recuperado de <http://bit.ly/2r2q438>

Hern, A. (2016). Facebook ‘pauses’ WhatsApp data sharing after ICO intervention. The
Guardian. Recuperado de <http://bit.ly/2fAsQ6i>

Kennedy, J (2017). Should Antitrust Regulators Stop Companies from Collecting So


Much Data? Harvard Business Review. Recuperado de <http://bit.ly/2oisKoP>

Medina, E. (2015). Facebook/Whatsapp: Competition analysis in the new Digital


Economy. Public Policy Blog de Telefónica. Recuperado de <http://bit.ly/2qcyrIh>

Motta, C. (2016). An American duel in Brussels: Salesforce against Microsoft over


Linkedin deal. The European Sting. Recuperado de <http://bit.ly/2qbizWQ>

Oreskovic, A. (2014). Privacy groups ask regulators to halt Facebook’s $19 billion
WhatsApp deal. Reuters Technology News. Recuperado de <http://reut.rs/2qcwfAB>

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (2016). Big Data:


Bringing Competition Policy to the Digital Era. p. 7-8. Recuperado de <https://one.oecd.
org/document/DAF/COMP(2016)14/en/pdf>

Sisto, A., & Binnie, I. (2016). Italy antitrust agency probes WhatsApp messaging service.
Reuters Canada. Recuperado de <http://bit.ly/2pHHRIN>

Supervisor Europeu de Dados Pessoais (2014). Preliminary Opinion on Privacy and


Competitiveness in the Age of Big Data: The Interplay between Data Protection,
Competition Law and Consumer Protection in the Digital Economy. p. 57.

Westerholm, R. (2014). Facebook’s WhatsApp Purchase Challenged: Privacy Advocates


Ask FTC to Put Deal on Hold, University Herald. Recuperado de <http://bit.ly/2pHyidc>

215
PROBLEMAS EMERGENTES DA INTERNET _ PALOMA SZERMAN

PALOMA SZERMAN
Paloma Szerman é advogada, graduada
na Universidade de Buenos Aires com
orientação em Direito Público. Depois
de cursar um semestre na Universidade
de Nova York, se formou em Direito da
Internet e Tecnologias das Comunicações na
Universidade de San Andrés, e atualmente
está fazendo mestrado em Direito e
Economia na Universidade Torcuato Di
Tella. Tem mais de seis anos de experiência
como assessora em direito, regulação
e políticas públicas de Tecnologias da
Informação e Comunicação, tanto no setor
público como no privado, assessorando
empresas, órgãos públicos e organizações
internacionais. Além disso, participa em
diversas iniciativas acadêmicas e grupos de
pesquisa sobre a temática.

216

You might also like