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O HOMEM QUE ESTAVA CANSADO DA VIDA

Trad. Daniela Kern

[...] seu [...] a fim de falar [...] pois sua decisão era imparcial [...] corruptível, pois sua
decisão era imparcial.

Abri minha boca em resposta a meu ba, respondendo ao que ele havia dito:

“Isso se tornou hoje demasiado oneroso para mim; meu ba não está de acordo
comigo. Isso é ainda pior do que se opor a mim; isso é como me abandonar!

Mas meu ba não deve partir! Ele precisa permanecer como minha defesa nisso
(Devo prendê-lo) em meu corpo como que com uma rede de cordas.
Ele nunca deve conseguir fugir no dia da angústia.

Mas veja! Meu ba iria me decepcionar, mas não lhe dou atenção,
Enquanto sou impelido para uma morte cujo tempo ainda não chegou.
Ele me lança no fogo para me atormentar [...].

E ainda assim ele deve estar comigo no dia da angústia;


Ele deve permanecer (comigo) no Oeste como aquele que aperfeiçoa minha
felicidade.
Ainda que fosse agora partir, deveria de todo modo retornar.

Meu ba é insano ao desdenhar a agonia na vida


E me impele à morte antes de meu tempo.
E ainda assim o Oeste será agradável para mim, porque ali não há tristeza.
Tal é o curso da vida, e mesmo as árvores devem cair.
Assim derruba minhas ilusões, pois minha aflição é infinita!

Tot irá me julgar, ele que satisfaz os deuses,


Khonsu irá me defender, ele que registra a verdade.
Rá irá ouvir minhas palavras, ele que guia a barca do sol,
Asten irá me defender no recinto sagrado,
Pois minha ansiedade é intensa demais para me trazer qualquer alegria,
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E apenas os deuses irão purgar meu íntimo sofrimento”.

O que meu ba disse para mim:

“Você não é um homem? Ao menos você está vivo!


Então o que você ganha ao ponderar sobre sua vida como o dono de uma tumba,
Que conta aos que passam por ali como foi sua vida na terra?
De fato você está apenas à deriva; você não está no controle de si mesmo,
E nenhum velhaco poderia dizer, “Eu devo guiar você”.
Você está, com efeito, morto, mesmo que seu nome ainda viva.
O além é o lugar de descanso, o desejo do coração;
O Oeste é o lugar de repouso (final),
Mas a sua jornada (ainda não atingiu o seu fim).

[A passagem a seguir é obviamente falada não pelo ba, mas pelo homem]

“Se meu ba, meu obstinado irmão, me escutar,


E se seu desejo estiver em pleno acordo com o meu, ele irá florescer;
Pois eu devo fazer com que atinja o Oeste
Como aquele que está em sua pirâmide
Que permanece acima de sua sepultura no olhar de seus descendentes.
Devo construir um abrigo sobre seu cadáver,
De modo que você possa fazer a inveja de qualquer outro ba que esteja exausto.
Devo construir um abrigo, um que será perfeitamente frio,
De modo que você possa fazer a inveja de qualquer outro ba que esteja quente
demais,
Devo beber água no poço e colher provisões,
De modo que você possa fazer a inveja de qualquer outro ba que esteja faminto.

Mas se você me compelir à morte desta maneira,


Você não irá encontrar um lugar onde descansar no Oeste.
Deixe seu coração ficar calmo, meu ba, meu irmão,
Até que eu tenha um herdeiro que faça oferendas e oficie em minha tumba
No dia do sepultamento e complete meu local de descanso na necrópole”.

Meu ba abriu sua boca para mim em resposta ao que eu havia dito:
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“Se você está obcecado com o sepultamento, isso irá causar apenas tristeza no
coração,
Pois isso traz lágrimas para afligir um homem.
Isso irá afastar um homem (intempestivamente) de sua casa
E trazê-lo para uma tumba no deserto.
Nunca outra vez será possível para você sair e ver a luz do sol.
Mesmo aqueles que constroem com pedras de granito,
Que constroem magníficas pirâmides,
Aperfeiçoando-as com excelente habilidade,
De modo que os construtores podem se tornar deuses,
Agora têm suas pedras ofertadas vazias.
E eles são como aqueles que morrem às margens do rio sem sobreviventes.
E agora apenas os peixes estão curiosos a respeito deles à beira do rio.
Para o seu próprio bem, me ouça!
Veja, é ouro quando os homens escutam.
Procure dias felizes e esqueça suas preocupações.

Havia um camponês que lavrava seu pedaço de terra.


Ele carregava sua colheita em um barco e o rebocava,
Pois sua época de pagamento de impostos havia chegado.
Ele viu aproximar-se a escuridão de uma tempestade vinda do norte,
Então ele se manteve a vigiar o barco.
O sol desapareceu, e depois surgiu outra vez,
Mas nesse meio tempo sua esposa e filhos pereceram
Em um lago infestado, à noite, por crocodilos.
Finalmente ele se sentou e gritou alto, dizendo,
‘Eu choro não pela mãe,
Pois não está dentro de seu poder afastar-se do Oeste
Para outra vida na terra.
Eu lamento suas crianças, que foram esmagadas na infância,
E que viram a face do crocodilo, sem nem mesmo terem vivido’.

Havia (outro) camponês que pediu algo para comer,


Mas sua esposa lhe disse: ‘Logo será a hora do jantar’.
Ele foi para fora e ficou amuado (?) por um momento
E então forçou a si mesmo a retornar para sua casa;
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Mas ele era como que um homem completamente diferente.


Sua esposa era polida (?) com ele, mas ele não a ouvia.
Ele estava deprimido (?) e sua família estava perturbada (?).”

Eu abri minha boca para meu ba em resposta ao que ele havia dito:

1.

“Veja, meu próprio ser está repulsivo,


Veja, mais do que o estrume de abutres
Nos dias de verão quando o céu está quente.

Veja, meu próprio ser está repulsivo,


Veja, mais do que uma rede com peixes
Em um dia de pescaria quando o céu está quente.

Veja, meu próprio ser está repulsivo,


Veja, mais do que o fedor de patos
Ou os abrigos de junco onde os patos se recolhem.

Veja, meu próprio ser está repulsivo,


Veja, mais do que o cheiro dos pescadores
Ou os charcos onde eles pescam.

Veja, meu próprio ser está repulsivo,


Veja, mais do que o fedor de crocodilos
Que se oculta naquela praia da qual se originam.

Veja, meu próprio ser está repulsivo,


Veja, mais do que uma mulher
Sobre a qual são ditas mentiras ao marido.

Veja, meu próprio ser está repulsivo,


Veja, mais do que um vigoroso jovem
Sobre o qual se diz, ‘Ele é desprezado por seu pai.’
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Veja, meu próprio ser está repulsivo,


Veja, como o território do rei
Que maquina uma revolta tão logo ele dê as costas.

2.

Em quem eu posso confiar hoje?


Nossos irmãos se tornaram maus,
E os amigos de hoje não têm compaixão.

Em quem eu posso confiar hoje?


Os corações estão ávidos,
E cada homem rouba os bens de seu vizinho.

(Em quem eu posso confiar hoje?)


A compaixão pereceu,
E a violência ataca a cada um.

Em quem eu posso confiar hoje?


(Os homens) se comprazem com o mal
Que em toda a parte subjuga a bondade sob os pés.

Em quem eu posso confiar hoje?


Apesar de um homem ser desgraçado pela má fortuna,
Sua difícil situação faz com que todos riam dele.

Em quem eu posso confiar hoje?


Os homens fazem pilhagem,
E todo mundo rouba seu camarada.

Em quem eu posso confiar hoje?


Um condenado é meu amigo mais íntimo,
E o companheiro com o qual me associei se tornou um inimigo.

Em quem eu posso confiar hoje?


Não há lembrança do passado,
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E os homens agora não tratam ninguém de acordo com seu próprio mérito.

Em quem eu posso confiar hoje?


Nossos irmãos se tornaram maus,
E nos voltamos aos estrangeiros em busca de integridade.

Em quem eu posso confiar hoje?


As pessoas estão indiferentes,
E cada homem intratável para com seus camaradas.

Em quem eu posso confiar hoje?


Os corações se tornaram ávidos,
E nenhum homem tem um coração em que se possa confiar.

Em quem eu posso confiar hoje?


Não há homens corretos,
E a terra se encontra abandonada aos fora-da-lei.

Em quem eu posso confiar hoje?


Há um vazio nos amigos fieis,
E temos de nos voltar aos estrangeiros em busca de conforto.

Em quem eu posso confiar hoje?


Ninguém está satisfeito,
E ele, com quem se caminhava, não está mais aqui.

Em quem eu posso confiar hoje?


Estou carregado de tristeza
E não há ninguém para me confortar.

Em quem eu posso confiar hoje?


O mal corre rampante pela terra,
Infinito, infinito mal.

3.
7

A Morte está diante de mim hoje


(Como) a cura de um homem doente,
Como ir para fora depois da doença.

A Morte está diante de mim hoje


Como a fragrância da mirra,
Como sentar sob as velas de um barco em um dia de vento.

A Morte está diante de mim hoje


Como a fragrância do lótus,
Como cambalear no limite da embriaguez.

A Morte está diante de mim hoje


Como o curso do Nilo,
Como quando os homens retornam para casa depois de uma campanha.

A Morte está diante de mim hoje


Como quando o céu clareia,
Como quando um homem compreende o que havia sido desconhecido para ele.

A Morte está diante de mim hoje


Como o anseio de um homem por ver o seu lar
Depois de passar muitos anos no exílio.

4.

Mas certamente aquele que está além será um deus vivo,


Tendo purgado o mal que o afligia.

Certamente ele que está além será o que fica em pé na barca do sol,
Tendo feito as ofertas necessárias aos templos.

Certamente ele que está além será o que conhece todas as coisas,
Que não será impedido de permanecer na presença de Rá quando ele falar”.
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O que meu ba me disse:

“Deixe suas reclamações de lado, meu companheiro e meu irmão.


Faça oferendas no altar e lute por sua vida,
Assim como você declarou.
Ame-me aqui (e agora), e esqueça o Oeste.
Continue na verdade com seu desejo de atingir o Oeste,
Mas apenas quando seu corpo estiver enterrado na terra.
Eu devo pousar depois que você tiver se cansado,
E devemos fazer nossa morada de repouso juntos.”

Assim foi transcrito do começo ao fim, tal como encontrado no escrito.

FONTE: The man who was weary of life. In: SIMPSON, William Kelly (Ed.). The
literature of Ancient Egypt. An anthology of Stories, Instructions, Stelae,
Autobiographies, and Poetry. 3. ed. New Haven and London: Yale University Press,
2003. p. 178-187.

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