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O nascimento do cristianismo

D iscussão crítica das propostas


de Burton M ack e G erd Theissen

Ekkehard W. Stegemann e Wolfgang Stegemann

Resumo

Os autores apresentam uma dis­ em relação à fé judaica foi resultado


cussão crítica das propostas de Bur­ de uma nova práxis social, que teve
ton L. Mack e Gerd Theissen sobre início em Antioquia, onde aconteceu
quando e em que condições surgiu o algo novo: a agregação de não-judeus
cristianismo. Sustentam que a iden­ à comunhão judaica dos adeptos do
tidade própria dos crentes em Cristo kyrios Jesus.

Resumen

Los autores p resen tan una fue resultado de una nueva praxis so­
discusión crítica de las propuestas de cial, que tuvo inicio en Antioquia,
Burton L. Mack y Gerd Theissen so­ donde sucedió algo nuevo: La
bre cuando y en que condiciones incorporación de los no judios para
surgió el cristianismo. Sustentan que la comunión judaica de los adeptos
la identidad propia de los creyentes dei Kyrios Jesús.
en Cristo en relación de la fe judaica

Abstract

The authors offer a critical Jewish faith was the result of a new
discussion of the proposal o f Burton social practice that had its beginning
L. M ack and G erd T heissen in Antioch where something new
concerning when and under what happened: The inclusion o f the non-
conditions Christianity arose. They jews in the Jewish fellowship of the
argue that the unique identity o f the followers of the kyrios Jesus.
believers in Christ in relation to the

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O nascimento do cristianismo

1 - A problemática

Quando surgiu o cristianismo? tos, como o “mito cristão”. Este, no


Onde surgiu ele, como e por quê? entanto, começa com a criação do
Aparentemente se trata de pergun­ mundo e para ele, na verdade, “o
tas simples, às quais, todavia, não se ponto cardeal da História” é “o apa­
podem dar respostas fáceis. A histó­ recimento de Cristo como revelador
ria da origem da religião cristã jaz dos planos de Deus para a humani­
de certo modo no escuro. Mais ain­ dade”; e a parte neotestamentária do
da: o cristianismo também carece de cânone igualmente já contém algo
algo como uma narrativa da origem, como uma “história originária ” do
ou - se quisermos - uma espécie de fenômeno que hoje chamamos de
lenda de fundação. Pode-se - a cristianismo, a saber, os Evangelhos
exemplo de Burton L. Mack - en­ e os Atos dos Apóstolos. No entan­
tender o cânone bíblico cristão, cons­ to, isso é a retrospectiva teológico-
tituído de Antigo e Novo Testamen­ canônica, ou seja, o “mito cristão”.

2 - A formação do mito cristão

O livro do especialista norte- multiculturais dos primórdios, do


americano em Novo Testamento movimento de Jesus. Segundo Mack,
Burton L. Mack é uma tentativa de essa Bíblia cristã do cristianismo
dar, num esclarecimento religioso- imperial, imposta com a virada cons-
científico sobre a Bíblia e seu papel tantiniana, não está profundamente
como “mito de fundação” de civili­ atuante apenas no processo civiliza-
zações ocidentais e especificamente tório ocidental e especialmente no
da americana, uma profundidade de norte-mericano. Ele considera, além
campo histórica a esse discurso. Ele disso, altamente problemáticos esses
deriva o surgimento do cristianismo fundamentos míticos da cultura oci­
propriamente dito do “choque das dental no mundo pós-modemo.
culturas” na Antiguidade, das cultu­ Com a forma literária final da
ras judaica e greco-romana, e apre­ Bíblia cristã está ligada, para Mack,
senta o produto final dessa formação a canonização de um mito que con­
de identidade cristã, a Bíblia, como fere ao cristianismo tanto o mandato
“livro-texto mítico”, que, como cons- para a expansão universal, para a
truto de um “cristianismo centrista”, “conversão” missionária de todos os
reprimiu por fim os experimentos povos, quanto uma referência anam-

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nética à “Terra Santa”, o lugar histó- A revolução de Constantino, po­


rico-particular dos acontecimentos rém, é igualmente o fim imperial das
de sua origem. No cânone duplo do transformações da visão de uma so­
“Antigo” e “Novo” Testamentos ele ciedade ideal, do “reino de Deus”,
desdobra, desse modo, uma história que foi iniciada por Jesus e depois
ainda inconclusa da humanidade en­ ensaiada experimentalmente em nu­
tre criação (Gênesis) e redenção merosos e diferentes movimentos de
(Apocalipse de João), que, no entan­ Jesus que não deixaram de ser pré-
to, somente cria o novo mundo me­ políticos. Segundo Mack, o próprio
diante a destruição do velho. E den­ Jesus estava sob a influência do “cho­
tro dessa história cósmica, o cristia­ que” das culturas judaica e grega na
nismo tem a pretensão de ser o “pon­ Galiléia, na “região dos gentios”, e
to cardeal” e portador exclusivo da era um intelectual com um humor
transformação para a redenção. A mordaz, filosoficamente semelhan­
apropriação dos textos sagrados ju ­ te aos cínicos. Seu projeto, o “reino
daicos lhe conferiu a dignidade do de Deus”, exigia uma sociedade e um
antigo. Simultaneamente, porém, modo de vida alternativos. Ele não
como a tradição épica de Israel, que tinha nada de apocalíptico. Essa vi­
visava o estado templário, parecia são, ainda mantida em termos muito
deslegitimizada por sua destruição gerais, foi depois concretizada em
no ano 70, os cristãos puderam apre­ diversos movimentos de Jesus, ora
sentar-se como seus herdeiros em um mais na direção de valores judaicos
sentido global. De acordo com isso, tradicionais (Evangelho segundo
a Bíblia fortaleceu o cristianismo Mateus), também com elementos
imperial pós-constantiniano tanto apocalípticos, ora mais em direção à
para peregrinar para a Igreja do Santo gnose posterior (Evangelho segundo
Sepulcro na Palestina conquistada, Tomé), portanto mediante a acentu­
ou, mais tarde, para empreender as ação do “reino de Deus” como um
cruzadas contra o domínio islâmico mundo do além acessível ao autoco-
na “terra do Redentor”, quanto para nhecimento, que é a origem do si-
a cruzada missionária entre todos os mesmo. N esses desdobram entos
povos do mundo. Toda a história an­ existiam modificações na imagem de
tes de Cristo era praeparatio evan- Jesus e relações ambivalentes e chei­
gelica, toda a história depois dele ti­ as de tensões com a história épica de
nha que ser subordinada à redenção Israel, com os sagrados textos judai­
do mundo mediada exclusivamente cos; não obstante, as atenções esta­
por ele, e, em caso de necessidade, vam centradas no mestre e profeta
com o emprego da violência. Para Jesus. Somente pela difusão para a
Mack, o cristianismo como religião área da Ásia Menor até a Grécia e
imperial e a Bíblia cristã são eqüiori- por fim a Roma acontece uma trans­
ginárias. formação que faz da gente de Jesus

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gente cristã, a saber, adeptos de um termina o Livro de Atos), até o cen­


culto de Cristo. Agora - e ainda an­ tro, portanto, que se tomou decisivo
tes de Paulo - surge um “mito crísti- para a concepção do “cristianismo
co” que, concentrado na morte de imperial” e de sua epopéia, a Bíblia,
Jesus, a interpreta, na transmissão da nos séculos 3 e 4 - como menciona­
concepção grega da “morte nobre” e do acima.
da teologia judaica dos mártires, Aqui não nos é possível exami­
como efetiva, expiatória e desse nar criticamente as numerosas carac­
modo criadora de uma nova comu­ terizações espirituosas dos compo­
nhão, e a celebra anamneticamente nentes individuais desse fantástico
no culto, em especial na “ceia do quebra-cabeça que Mack desmonta
Senhor”. A isso está ligada a forma­ e remonta engenhosamente diante de
ção do mito no qual Cristo se humi­ nós. Está claro que, para ele, o cris­
lha como soberano celestial, para ser tianismo é, por assim dizer, um
empossado depois de sua morte “work in progress”, que recebeu seu
como “Senhor de tudo”, em posição mais importante impulso de surgi­
de soberano, e ser aclamado como mento especialmente pela formação
Deus no culto. Por fim esse mito con­ do mito crístico, do culto do kyrios.
tém uma concepção universal, que Esta é uma concepção que já foi de­
ultrapassa as diferenças étnico-reli- fendida pela escola histórico-compa-
giosas, que depois foi concretizada rativa das religiões (Kyrios Christos
programaticamente, sobretudo por de Bousset) e depois sobretudo por
Paulo, na teoria (em termos teológi­ Bultmann. Ela enfatiza o amalga-
cos) e na prática (em termos missio­ mento dos crentes em Cristo dentre
nários), como inclusão dos não-ju- judeus e não-judeus numa comu­
deus no “reino de Deus”. nhão. O amalgamento numa comu­
Assim como o culto de Cristo nhão é, como ainda veremos, um fa­
ainda mantém seus seguidores cla­ tor importante que também nós su­
ramente na oposição ao Império Ro­ blinhamos. Apenas nos parece que
mano terreno, conforme Mack, as­ já a expressão “culto” é um anacro­
sim também está claramente prepa­ nismo nesse contexto. A comunhão
rada com isso a nova “religião im­ dos crentes em Cristo se distingue
perial” - a religião cristã. No entan­ tanto do judaísmo quanto dos fenô­
to, foi necessário (fundamental no menos pagãos justamente pela “au­
Livro de Atos de Lucas) inventar a sência de culto”. Na casa não havia
“tradição apostólica” (e a sucessão templos, e também o templo de Je­
apostólica) no século 2, para, por um rusalém era, enquanto existiu, ape­
lado, dominar a barulhenta e polê­ nas o lugar de culto para crentes em
mica luta intracristã e, por outro lado, Cristo judaicos. Nas casas de reunião
traçar uma história retilínea de Jeru­ dos crentes em Cristo havia refeições
salém até Roma (ali, como é sabido, conjuntas (também a ceia do Senhor

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era um deipnon, e não uma refeição lhante. O desenvolvimento cultual no


cultual), com “elementos cultuais” cristianismo é um assunto posterior,
como anúncio da Palavra e interpre­ que não é importante para o surgi­
tação da Escritura - portanto, dou­ mento do cristianismo. No início a
trina, mas não culto. A veneração do formação de uma identidade própria
kyrios Iesus Christos era uma con­ dos crentes em Cristo acontecia atra­
fissão pública (ihomologein) da fé em vés de reuniões domésticas com re­
Jesus Cristo (Rm 10.9), e não uma feições, doutrina e oração.
adoração de Cristo ou algo seme­

3 - Existem indícios da origem do cristianismo


no próprio Novo Testamento?

Naturalmente ocorre-nos ime­ Mateus. No entanto, o Evangelho se­


diatamente a afamada confissão de gundo Mateus parte do fato de que
Pedro na versão de Mateus 16.18ss.: essa ekklesia não surge com as pala­
“Tu és Pedro, e sobre essa rocha vras de Jesus a Pedro como o firme
edificarei minha ekklesia... Eu te fundamento (rocha) da igreja; antes,
darei as chaves do reino dos céus, e Cristo irá primeiro construir a ekklesia
o que ligares na terra, também será sobre essa rocha-fundamento huma­
ligado nos céus...”, associada à cha­ na e concederá a Pedro a autoridade
mada “ordem missionária” em Mt mencionada. A execução propriamen­
28.19s.: "Ponham-se a caminho e te dita também não é mais relatada.
transformem todos os povos (panta Por isso certamente não se pode
ta ethne) em alunos/discípulos, bati- denominar Mt 16 como uma verda­
zando-os no nome do Pai e do Filho deira lenda de fundação da Igreja
e do Espírito Santo, e ensinem-lhes cristã. Trata-se, antes, da legitimação
a observarem tudo que lhes tenho or­ de uma autoridade específica de
denado...”. Pedro retrojetada para a vida de Je­
Parece que aí estão sendo formu­ sus. Trata-se naturalmente de uma
ladas como condição da possibilida­ story, não de history. Isso significa
de de pertencer à ekklesia e sua dou­ que a análise histórico-comparativa
trina a propaganda para a Igreja cris­ das origens do cristianismo dificil­
tã entre povos não-judaicos {ethne) e mente poderá começar por esse tex­
uma doutrina compromissiva de Je­ to, e também não com a chamada
sus nos moldes do conteúdo doutri­ ordem do batismo de Mt 28.
nário dos ensinamentos de Jesus ofe­ Algo semelhante decerto se apli­
recido pelo Evangelho segundo ca também ao comissionamento mis-

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sionário dos discípulos do Jesus de Tarso para Antioquia. Os dois fi­


ressurreto no final do Evangelho se­ caram naquela comunidade por um
gundo Lucas, respectivamente por ano e ensinaram muita gente. Depois
ocasião dos eventos pentecostais (Lc o relator escreve: “Aqui em Antio­
24.46ss.; At 2). No entanto, justa­ quia pela primeira vez os discípu-
mente a obra dupla de Lucas, em es­ losImathetai foram chamados de
pecial naturalmente o Livro de Atos, cristãos - christianoi.” (11.26).
nos oferece uma história de forma­ O texto reflete claramente a cons­
ção de comunidades cristãs. Ela nos ciência de que em Antioquia come­
transmite a consciência de que essas çou algo novo. Depois que, anterior­
comunidades tiveram seu início na mente - também fora de Israel - , a
terra judaica, mas que depois, sub Palavra foi pregada exclusivamente
confusione hominum deiprovidentia aos judeus, em Antioquia algumas
[“sob a confusão dos homens pela pessoas de Chipre e Cirene (é inte­
providência de Deus”], se estabele­ ressante que permanecem no anoni­
ceram também fora de Israel e, por mato) se dirigem também a não-ju-
fim, sobretudo aí. deus. Portanto, essas pessoas não são
Aqui entra em cogitação, a nos­ judeus, e, sim, de acordo com sua
so ver, primeiramente e sobretudo a procedência étnica, helenos. No en­
descrição do surgimento da primei­ tanto, em virtude de sua conversão
ra comunidade “cristã” em Antioquia ao kyrios christos Jesus, eles são cha­
da Síria. O texto se encontra em Atos mados - por quem quer que seja -
11.19ss. de cristãos, ou adeptos de Cristo, em
Aqui em Antioquia, assim conta latim christiani. Evidentemente, po­
o texto, “homens de Chipre e Cirene” rém, não apenas eles, e, sim, a co­
pregaram o evangelho do kyrios Je­ munidade como um todo, à qual
sus também aos “helenos/gregos”1. também pertencem judeus, leva a
E em virtude de ajuda divina (a mão nova designação: christianoi.
do Senhor estava com eles), um gran­ Os helenos convertidos têm em
de número deles creu e se converte­ comum com os judeus que os con­
ram ao kyrios (epistrephein epi\ verteram ao kyrios Jesus o fato de
11.20s.). Esse grupo de convertidos pertencerem a esse Senhor e uma fé
foi visitado por Bamabé, vindo de ligada a isso, que eles conheceram
Jerusalém, que confirmou sua con­ pelo evangelho a respeito desse
versão e, ao que tudo indica, ainda kyrios Jesus. O termo christianoi,
aumentou o número deles. Por fim pode-se dizer com toda a razão,
este ainda trouxe o apóstolo Paulo designa um grupo de pessoas que,

1 Leia-se hellenas em lugar de hellenistas.

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do ponto de vista étnico, são judeus saber: a agregação de não-judeus à


ou helenos, mas que, independen­ comunhão judaica dos adeptos do
temente de sua procedência étni­ kyrios Jesus. Pouco antes, o Livro de
ca, estão ligadas entre si como Atos havia relatado, com grande
adeptas do kyrios Jesus. empenho apologético, a conversão e
Esse texto bastante singelo pode o batismo da primeira pessoa não-
ser denominado, em certo sentido, judaica, o centurião Comélio (10/
como narrativa de fundação do cris­ 11). E antes (At 8.26ss.) o assunto
tianismo ou de comunidades cristãs. girava em torno do batism o do
No entanto, naturalmente ele só cum­ eunuco etíope, que evidentemente
pre essa função porque a denomina­ também não era judeu no sentido ri­
ção christianoi ou christiani, real­ goroso de prosélito, e, sim, temente
m ente como “nom e p ró p rio ” a Deus, e que, como castrado, tam­
(Hamack) dos crentes em Cristo, bém não podia se tomar um deles.
mais tarde passou da condição de No entanto, não nos ocorre relacio­
uma denominação alheia (cf. Táci­ nar essa narrativa de conversão de
to, Plínio e também em At 11 e 1 Pe algum modo com a origem do cris­
4.16 denominações de fora) para a tianismo. Essa associação é sugerida
de autodenominação dos crentes em pela mencionada história de Antio-
Cristo. O próprio texto não diz isso quia. Os episódios que envolvem a
explicitamente, pelo contrário, per­ Comélio e ao etíope, todavia, lhe
manece bastante reservado. Não prepararam o caminho, e isso tam­
obstante, emite sinais claros de que bém no sentido de que aqui o pró­
aqui - mesmo que de maneira um prio céu intervém.
tanto oculta - começa algo novo, a

4 - Algumas conclusões do episódio de Antioquia

Dessa história bíblica gostaría­ deus e não-judeus. Até agora os ju ­


mos de tirar alguns indícios para a deus eram os destinatários da propa­
pergunta pelo surgimento do cristia­ ganda para esse kyrios, também fora
nismo: de Israel. Até aquele momento, por­
• A narrativa pressupõe que os tanto, a comunidade desses chama­
seguidores e as seguidoras do kyrios dos “alunos"/matheíai do kyrios Je­
Jesus são percebidos e denominados sus era um grupo intrajudaico.
a partir de fora como uma nova • A procedência étnica dos he­
grandeza, portanto como algo dis­ lenos/gregos que agora vão se agre­
tintamente diverso em relação a ju ­ gando é percebida como problema.

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Isso também é confirmado pela con­ do o costume de Moisés, não pode­


versão e pelo batismo do primeiro rão ser salvos’”. (Essa problemática
seguidor de Cristo não-judeu, Cor- também constitui o pano de fundo
nélio, narrados anteriormente com de G12.) Outros seguidores judaicos
grande empenho apologético (At 10/ de Cristo - como, p. ex., Paulo e
11) e que, em última análise, são atri­ Tiago, o irmão do Senhor em Atos
buídos ao próprio Deus. dos Apóstolos - vêem as coisas de
• Essa problemática, porém, tam­ outro modo. Eles deduzem, por seu
bém é refletida por outros textos de turno, da tradição judaica, isto é, da
Atos dos Apóstolos (quanto ao as­ Bíblia hebraica, que os seguidores do
pecto étnico, cf. também 11.18; kyrios Jesus procedentes dos povos
14.27; 15.1ss.,14,17 etpassim). Uma não-judaicos podem ser salvos esca-
vez mais: pertencer a um povo não- tologicamente, sem a necessidade
judeu (em grego: aos ethne, em he­ de se tornarem judeus (o termo-
braico goyim; em inglês: gentiles; chave para Paulo segundo K.
inadequada é a palavra Heiden em Stendahl: inclusão dos não-judeus
alemão = pagãos) é percebido como na salvação de Israel).
problema para seguidores do kyrios. • Agora podemos compreender
• Ora, por que isso é um pro­ o que o termo christianoi implica: em
blema? Dificilmente está em jogo Atos dos Apóstolos o nome “cris­
aqui um fenômeno que hoje chama­ tãos” denomina uma comunidade
mos de etnocentrismo. Trata-se, an­ do Salvador messiânico, ao qual,
tes, da convicção de muitos segui­ como kyrios de todos os seres hu­
dores judaicos do kyrios Jesus de que manos, pertencem não somente
a salvação (redenção) escatológica judeus, e, sim, também não-ju­
associada a ele, o Senhor (celestial), deus2. O termo expressa, portanto, a
pressupõe que se seja judeu. E isso pertença ao Salvador escatológico,
significa para pessoas dentre os po­ ao kyrios Christos Iesus, mas tam­
vos, na medida em que tomam parte bém a pertença a um grupo terreno
dela: adesão à aliança de Deus com de seus confessantes crentes, a uma
Israel e, ligadas a isso, circuncisão e grandeza sociológica que faz jus ao
obediência à Tora (termo-chave: no- fato de que judeus e helenos/não-ju-
mismo da aliança). Essa é, em todo deus são igualmente membros dessa
caso, também a visão de At 15.1: comunidade, salva escatologicamen-
“Então descerem alguns homens da te.
Judéia e ensinaram aos irmãos: ‘Se • Por fim, o conceito “cristãos”
não se deixarem circuncidar segun­ também implica determinadas for-

2 Também G1 2 abona essa composição específica.

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mas da realização desses fatores co­ descritível da religião. Só a era mo­


muns que também diferem institu- derna conhece a possibilidade da cha­
cionalmente do judaísmo e que in­ mada religião privada, a convicção
clusive ali são objeto de crítica. Não de fé individual independente de qual­
se trata de uma nova sinagoga que quer forma de prática social e asso­
surgiu em Antioquia, e a comunida­ ciação a um grupo. Já para a antigui­
de dos christianoi, ao que tudo indi­ dade é difícil delimitar algo assim
ca, não fazia parte, como tal, de uma como um fenômeno “religião” distin­
sinagoga nem era uma suborganiza- to, separado. Na antiguidade, a reli­
ção de uma sinagoga antioquena. gião é - isso nos mostrou, p. ex.,
Tratava-se, antes, de uma comuni­ Bruce J. Malina - um fenômeno
dade autônoma, que é chamada de embutido na cultura3. Ela está em­
ekklesia e cujos membros se cha­ butida (embedded) na área da políti­
mam “cristãos”, não importando se ca pública (culto templário), na área
seus membros judaicos pertenciam étnica, na esfera “privada” das famí­
simultaneamente à sinagoga e parti­ lias, mas também na área de determi­
cipavam de suas realizações institu­ nadas associações sociais, igualmente
cionais. e em especial, é claro, em associações
Portanto, constatamos preliminar­ cultuais (cultos de mistérios e seme­
mente: a pergunta pelo nascimento do lhantes, mas também associações fu­
cristianismo ou pelos primórdios da nerárias e as chamadas associações
religião cristã está, a nosso ver, inse­ étnicas de conterràneos/politeumata,
paravelmente ligada ao nome chris­ portanto nas organizações de emi­
tianoi, que, por sua vez, não designa grantes; emigrantes judeus, por exem­
apenas - como veremos em seguida plo, tinham essa possibilidade). [Em
- uma concepção “religiosa”, e, sim, nossa “História social do cristianis­
também determinada comunitariza- mo primitivo” enfatizamos bastante
ção, portanto uma dimensão social e, essa dimensão sociológica (v. p.
em conseqüência, sociologicamente 220ss., 228ss.)].

3 Bruce J. MALINA, Religion in the World o f Paul, Biblical Theology Bulletin, v. 16, p. 92-
101, 1986.
O nascimento do cristianismo

5 - A formação do cristianismo (primitivo)


como religião

Naturalmente o termo cristianoi ral de sinais”, com ênfase em “siste­


já implica, como tal, uma dimensão ma de sinais” (!), e compara, com
religiosa; e naturalmente implica base na teoria da religião que lhe ser­
uma diferença marcante em relação ve de fundamento, o cristianismo pri­
a concepções religiosas pagãs. Mas mitivo com o judaísmo, sua religião-
também em distinção ao judaísmo? mãe. Na verdade, ele quer ligar o sur­
Essa pergunta deverá levar-nos ao gimento do cristianismo primitivo à
novo livro de Gerd Theissen intitu­ “dinâmica da vida”. No entanto - fa­
lado Die Religion der ersten Christen lando francamente após a leitura
: Eine Theorie des Urchristentums de seu livro tem-se a impressão de que
(“A religião dos primeiros cristãos : essa intenção não se cumpre em gran­
uma teoria do cristianismo primiti­ de parte. Mais ainda: em alguns tre­
vo”) (Gütersloh, 2000). chos tive até a impressão de que o
Theissen com efeito se ocupa nascimento do cristianismo primiti­
quase que exclusivamente com a vo a partir do judaísmo, com o que
questão do surgimento do cristianis­ Theissen designa o surgimento de
mo como religião. Ele não pergunta, uma nova religião, ou - como o diz o
assim se poderia dizer para melhor próprio Theissen - o surgimento de
esclarecimento, pelo surgimento do um novo “sistema de sinais” religio­
cristianismo como comunidade so­ so com uma “gramática” própria, ti­
cial. Eescreve um livro sobre a “reli­ vesse sido, afinal, uma espécie de pro­
gião dos primeiros cristãos” e preten­ duto cerebral, em todo caso sobre­
de esboçar uma “teoria do cristianis­ tudo um assunto do espírito humano!
mo primitivo”, isso é, oferecer, por Isso embora o próprio Theissen sinta
um lado, uma fenomenologia da re­ - especialmente em relação ao cha­
ligião cristã e, por outro, também uma mado conflito antioqueno e à conven­
teoria histórica de sua gênese. Em ção dos apóstolos - que aí estava
última análise, Theissen não quer se­ atuando uma dinâmica da prática de
parar a religião da vida, o cristianis­ vida cujas conseqüências os atores di­
mo de sua realidade institucional e ficilmente puderam avaliar de início
social. Isso o mostra, por exemplo, sua (Theissen 2000, p. 229). E embora en­
discussão da importância de ritos (p. xergue que conflitos rituais se toma­
171 ss.). No entanto, aspectos histó- ram o fator desencadeador do surgi­
rico-sociais desempenham papel ape­ mento de um cristianismo primitivo
nas marginal em seu livro. Ele en­ autônomo (id., p. 228). No entanto, a
tende a religião como “sistema cultu­ relação com a vida permanece estra-

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nhamente pálida em sua análise, não Theissen sabe, naturalmente, que


por último também porque Theissen com isso ele está selecionando uma
não toma em consideração as parti­ definição dentre numerosas defini­
cularidades da religião da antiguida­ ções possíveis e controvertidas. E,
de, também porque - segundo nossa diferenciando-se de Geertz, que ini­
convicção - ele subestima a impor­ cialmente está interessado no fato de
tância social proeminente de ritos e que a religião é um sistema cultu­
rituais4. Neste sentido certamente se ral6, Theissen acentua o conceito
vinga o fato de que Theissen não to­ “sistema de sinais”, isso é, o caráter
mou conhecimento de toda a literatu­ cultural desse sistema é antes secun­
ra referente à antropologia cultural do dário para Theissen. Em outras pa­
Novo Testamento5. lavras, ele o vê sobretudo no fato de
que a “linguagem” religiosa “de si­
5.1 - O m odelo de ciência nais” não é nem “um fenômeno na­
da religião de Theissen tural nem sobrenatural”, e, sim, “pro­
duzido por seres humanos indepen­
Não obstante, o modelo teórico dentemente do fato de as religiões se
oferecido por Theissen, que o orien­ entenderem como resultado da ação
ta na análise fenomenológico-reli- divina” (p. 27). O conceito de cultu­
giosa do cristianismo primitivo, é útil ra, portanto, expressa aqui sobretu­
e tem qualidade heurística. Acima eu do que a religião é um construto
já disse que Theissen define a reli­ humano. Em princípio, Theissen
gião como “sistema cultural de si­ não pergunta em seu livro pelo como
nais”, retomando a afamada defini­ e quê, pelas particularidades da
ção de religião de Glifford Geertz, cultura mediterrânea da antigui­
que ele modifica para seus fins e dade, respectivamente das antigas
reformula do seguinte modo: “A re­ religiões como parte da mesma,
ligião é um sistema cultural de si­ pelos sistemas de valores específi­
nais que promete ganho de vida cos, pelas convenções e códigos da­
por meio da correspondência a quelas sociedades nas quais se de­
uma realidade última” (p. 19). senvolveu a religião cristã primitiva7.

4 Apesar de sua extensa exposição às p. 171 ss.


5 Sobre essa pesquisa, confira o panorama oferecido por W olfgang STEGEM ANN,
Kulturanthopologie des Neuen Testaments, Verkündigung und Forschung, v. 44, p. 28ss.,
1999.
6 Clifford GEERTZ, Religion als kulturelles System, in: id., Dichte Beschreibung: Beiträge
zum Verstehen kultureller Systeme, Frankfurt a.M., 1983, p. 44ss.
7 Isso também se revela no fato de que em seu livro os resultados da antropologia cultural
do NT permanecem fora do enfoque in toto. Para ele é mais importante o fato de que a

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O nascimento do cristianismo

Depois Theissen distingue den­ primitiva” é um “sistema de sinais


tro desse “sistema de sinais” axio­ (...) que os primeiros cristãos cons­
mas fundamentais, motivos bási­ truíram no solo da religião judaica”
cos e formas de expressão. Entre as (p. 385). Portanto, para o cristianis­
formas de expressão contam, segun­ mo o judaísmo é a “religião-mãe”, o
do ele, o mito, o etos e o rito de uma “material” a partir do qual os cons­
religião. trutores do cristianismo construíram
Restrinjo-me a essas observações - nas palavras de Theissen - sua “ca­
sobre a metodologia das ciências da tedral constituída de sinais”. E mais:
religião do livro (Theissen faz ques­ o material de construção da catedral
tão de deixar claro que não quer fa­ cristã constituída de sinais procede,
zer teologia. Isso, porém, é um caso ao que parece, em 100 por cento do
à parte, com o qual não nos ocupa­ sistema religioso de sinais do judaís­
remos aqui). Passemos a suas con­ mo. Para Theissen, o helenismo, a
clusões: cultura greco-romana, não tem qual­
quer participação na formação do
5.2 - A teoria da origem cristianismo (primitivo).
da religião cristã (prim itiva) • Ora, não faz sentido dizer: o cris­
tianismo primitivo é judaísmo. Pelo
segundo Theissen
contrário, a religião dos primeiros
cristãos é um fenômeno religioso
Limitamo-nos a uma exposição novo, distinto do próprio judaísmo.
sucinta em forma de teses. O próprio Theissen diz: “A história
• Em primeiro lugar e antes de do cristianismo primitivo é a história
mais nada, é preciso constatar a tese da formação de uma nova religião,
da proposta de Theissen: o cristia­ que se separa de sua religião-mãe e
nismo primitivo, e com isso o cris­ se toma autônoma. Uma teoria da re­
tianismo em geral, é uma religião fi­ ligião cristã primitiva se ocupará com
lial do judaísmo. A “religião cristã a explicação dessa mudança” (p. 27)8.

religião é um “fenômeno semiótico”, termo com o qual designa um sistema de interpreta­


ção com cuja ajuda o ser humano faz “do mundo um lugar habitável”; nesse contexto um
sistema “religioso” de sinais tem suas particularidades no fato de que pode ser caracteriza­
do “como combinação de três formas de expressão”, a saber, do mito, do rito e do etos (p.
21). Essas três formas de expressão da religião se tomam posteriormente os princípios de
estruturação de sua análise de conteúdo. Além disso, TheiBen destaca o caráter “sistêmico”
da linguagem religiosa de sinais, com o que - para dizê-lo em palavras simples - entende
a esta como que como uma linguagem que contém uma espécie de “gramática” e “léxico”
(p. 25). Trata-se, portanto, assim podemos concluir, de uma teoria da religião em grande
parte própria e independente a que Theissen esboça aqui e a qual toma por base de sua
análise.
8 O grifo é nosso.

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Estudos Teológicos, 40(3):74-90, 2000

Em conseqüência disso surge a per­ servado em princípio, sendo, porém,


gunta: em que sentido essa nova reli­ modificado por uma “fé no Reden­
gião chamada cristianismo (primiti­ tor” na qual o Redentor passa a fi­
vo) se distingue da religião originá­ car ao lado do Deus único. Isso era
ria? Qual é seu elemento próprio em bastante problemático para a reli­
relação à religião-mãe judaica? gião-mãe. Todavia, mais importante
• Antes de entrarmos em deta­ é para Theissen o fato de que o se­
lhes, antecipamos a hipótese central: gundo axioma fundamental do sis­
para Theissen, o cristianismo primi­ tema religioso de sinais do judaísmo
tivo é, “em grande parte, judaísmo é modificado - o nomismo da alian­
universalizado” (p. 27). O que ele ça, portanto a ligação exclusiva do
quer expressar com isso pode ser dito único Deus a Israel. O cristianismo
em poucas palavras. Trata-se de uma primitivo abre o “judaísmo para
espécie de abertura do judaísmo para todas as pessoas”. Eu já disse aci­
todos os seres humanos, um despren­ ma: “O cristianismo primitivo é em
dimento do aspecto étnico-exclusi- grande parte judaísmo universaliza­
vo do “nomismo da aliança” judai­ do” (p. 38).
co, segundo o qual Deus escolheu Para Theissen, portanto, o cris­
para si apenas um povo, o povo de tianismo é uma religião filial do ju ­
Israel, como parceiro da aliança (cf., daísmo. Como característica diferen-
por exemplo, p. 288). Theissen já ciadora Theissen aponta sobretudo o
encontra essa perspectiva cristã uni­ aspecto da universalização: o cris­
versal em Jesus, a saber, na “supera­ tianismo é judaísmo universalizado,
ção dos limites entre o próprio povo desacoplamento do sistema de sinais
e os estrangeiros” (p. 55). religiosos judaico de sua vinculação
• O enfoque universalista do cris­ exclusiva com o povo de Israel.
tianismo parece, portanto, ter retroa- Numa formulação exagerada poder-
gido de modo especial sobre o cha­ se-ia afirmar que para Theissen a re­
mado “nomismo da aliança”. Theis­ ligião cristã se distingue da judaica
sen denomina essa estrutura básica sobretudo pelo fato de que substi­
do judaísmo, descrita mais detalha­ tuiu o segundo axioma fundamen­
damente por E. P. Sanders, como um tal, o nomismo da aliança, por uma
axioma fundamental do judaísmo, “fé no Redentor”, transformando-
dos quais existem dois, a saber, ao o desse modo.
lado desse e inicialmente o axioma Perguntem os agora como se
fundamental do “monoteísmo”. pode demonstrar historicamente o
• Segundo a análise de Theissen, nascimento do cristianismo a partir
ambos os axiomas fundamentais do do espírito do judaísmo. Quando
judaísmo são modificados no cris­ começa - na opinião de Theissen -
tianismo primitivo de modo tal que essa transformação do judaísmo que
o monoteísmo, na verdade, fica pre­ levou a uma nova religião que cha-

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O nascimento do cristianismo

mamos de cristianismo? Que papel renúncia à circuncisão dos


desempenhou Jesus ou o movimen­ não-judeus convertidos
to de Jesus nesse processo? Como pressão interior para o de­
imagina Theissen o processo de senvolvimento de uma nova
transformação em seu conjunto? Ex­ linguagem religiosa de si­
ponho a seguir um resumo do qua­ nais
dro geral do surgimento do cristia­ 2a geração / separação defi­
nismo (primitivo) segundo Theissen. nitiva do judaísmo
Os evangelhos sinóticos re­
5.3 - A teoria de Theissen presentam delimitação em
acerca do surgim ento relação ao judaísmo
O Evangelho segundo Mar­
do cristianism o prim itivo
cos representa delimitação
com o religião ritual
O Evangelho segundo Ma­
Diagrama: Surgimento da reli­ teus representa delimitação
gião cristã primitiva segundo Theis­ ética
sen O Evangelho segundo Lu­
cas representa delimitação
I. Origem histórico-narrativa
O judaísmo como religião-mãe * 3a fase: auge prelim inar da
história das origens da reli­
II. O cristianismo primitivo como gião cristã primitiva como
religião filial sistema de sinais autônomo
3 fases de desenvolvimento O Evangelho segundo João
* Ia fase: precursor do cristia­ representa a tom ada de
nismo primitivo consciência da autonomia
movimento de Jesus, no en­ interna do mundo de sinais
tanto, movimento judaico, protocristão
todavia uma forma espe­ conquista de uma autono­
cial: judaísmo “aberto” mia do cristianismo primi­
* 2a fase: o cristianismo primi­ tivo na forma de delimita­
tivo como nova religião fi­ ção rigorosa em relação à
lial a caminho da autonomia religião-mãe
I a geração / cisma dentro do
judaísmo III. Resultado do processo de deli­
dados/acontecimentos his­ mitação
tóricos: concílio dos após­ O sistema de sinais religioso cris­
tolos / conflito antioqueno / tão primitivo era internacional, ex­
Paulo; Antioquia e Síria, clusivo e novo (p. 283)

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3 crises 228ss.). O processo foi desencadea­


1 - crise judaísta no séc. I do por um “problema ritual”, a sa­
2 - crise gnóstica no séc. II ber, a questão da circuncisão dos
3 - crises proféticas nos sécs. I e II “gentios” convertidos “à nova cren­
ça” (p. 229). Em Antioquia e na Síria,
Breve síntese da teoria da gêne­ onde pela primeira vez foram ganhos
se histórica da religião cristã primi­ gentios, se teria renunciado a esse
tiva: rito por convicção, visto que a peri-
Do ponto de vista da fenomeno- tome era considerada sinal de sepa­
logia da religião, o cristianismo é ração entre judeus e gentios; e justa­
judaísmo “universalizado” - é o que mente essa separação estaria supe­
já aprendemos de Theissen. Ora, se rada no tempo escatológico messiâ­
esse dado é expresso em termos his- nico, tomando-se, por isso, essa “de­
tórico-genéticos, então a formulação marcação ritual” desnecessária (p.
correspondente de Theissen é a se­ 229).
guinte: No concílio dos apóstolos, então,
“A gênese do cristianismo primi­ foi imposto o “reconhecimento dos
tivo é a história de uma tentativa fra­ cristãos gentílicos incircuncisos”
cassada de universalização do judaís­ contra a resistência de alguns “cris­
mo. O poder criativo do cristianis­ tãos judaicos” (p. 229). Ora, com isso
mo primitivo revelou-se no fato de os primeiros cristãos se colocaram
que transformou esse fracasso em sob uma enorme pressão no sentido
motivos para a fundação de uma re­ de desenvolver uma linguagem reli­
ligião independente” (p. 227). giosa de sinais própria, que pudesse
Aqui se evidencia mais uma fez ser compartilhada por todos os mem­
com clareza que, para Theissen, o ele­ bros, judeus e não-judeus. O batis­
mento próprio da linguagem religio­ mo tomou-se definitivamente o rito
sa de sinais do cristianismo primitivo de admissão, que substituiu a circun­
reside na abertura para todas as pes­ cisão, a santa ceia tomou-se rito de
soas, para todos os povos. Para ele, a integração, que substituiu as ceias
tendência nesse sentido já começa sacrificais.
com Jesus e o movimento de Jesus, Theissen, todavia, entende ini­
que para ele representam um “judaís­ cialmente esse passo em direção de
mo aberto”, mas ainda não formulam uma linguagem religiosa de sinais
uma nova religião. protocristã própria, autônoma apenas
O passo de desenvolvimento em como um “cisma”, portanto uma “se­
direção ao cristianismo primitivo paração na comunidade (...) sem con­
como religião autônoma Theissen denação recíproca ou rejeição defi­
vincula historicamente ao concílio nitiva” (p. 230).
dos apóstolos, ao conflito antioqueno “Os cristãos se reuniam em reu­
e sobretudo à figura de Paulo (p. niões próprias. Tinham sua própria
O nascimento do cristianismo

organização, na medida em que esta nificação. Só a segunda geração pro-


já estava desenvolvida. Mas conti- vocou uma separação definitiva” (p.
nuava viva a esperança de uma reu- 233).

6 - Crítica e posicionamento próprio

P roblem as da exposição de riências de gênero carismático (co­


Theissen a respeito do cristianismo meçando com Jesus), tem, na verda­
primitivo como religião: de, um aspecto universal (imanente);
1. Tem-se a impressão de que a pois com a realização vindoura do
inclusão de não-judeus foi uma con­ senhorio de Deus sobre Israel asso­
cepção religiosa programática (te­ cia-se naturalmente a idéia do senho­
órica), que começa com Jesus. Essa rio universal de Deus. No entanto, é
concepção teria rompido finalmente claro que isso pode também signifi­
o etnocentrismo judaico, de modo car explicitamente a destruição de­
que, no final, o cristianismo teria finitiva das nações como inimigas de
surgido com base no conflito entre Israel. Como, porém, ficam as coi­
“universalismo” e “particularismo”. sas se de repente pessoas crentes em
Esta é, todavia, uma racionalização C risto dentre as nações são
tradicional do “mito cristão”, exis­ abrangidas pela redenção messiâni­
tente desde o iluminismo, que tem o ca, como se evidencia em suas “de­
propósito de, por um lado, legitimar monstrações” carismáticas “do Es­
a expansão cristã e, por outro, pírito e de poder”?
deslegitimizar a existência do judaís­ 3. A partir dessa situação da fé
mo. em Cristo atropelada pelos fatos so­
2. Provavelmente, porém, se deu ciais (!) resulta o conflito “religio­
justamente o contrário. O fato de so” no cristianismo primitivo: ou se
que pessoas dentre os povos (espe­ exige selar a participação na salva­
cialmente “tementes a Deus”) parti­ ção messiânica escatológica de Israel
cipam socialmente do carismatismo (qua carismatismo) pela participação
do movimento de Jesus judaico con­ também na identidade étnico-religio-
fronta a este com a pergunta - diga­ sa do povo de Israel (conseqüência:
mos: teológica - pela relação entre conversão ao judaísmo, circuncisão/
a salvação messiânica crida e espe­ obediência à Tora), ou então se sela
rada por ele e nele e a salvação dos a identidade carismática como uma
povos. A perspectiva apocalíptica da grandeza que também transcende a
fé na irrupção da salvação escatoló- identidade judaica temporal, ou seja
gica de Israel, fortalecida por expe­ (para usar palavras de Paulo): com

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vistas à participação no poder de o cristianismo é, na verdade, um fi­


Deus para a salvação não existe di­ lho do espírito do judaísmo, mais
ferença entre judeus e helenos. precisamente do espírito de um ju ­
4. Portanto, o aspecto universal, daísmo apocalíptico, messiânico e
isto é, o que inclui programaticamen- carismático, mas que seu elemento
te os crentes dentre as nações na “re­ universal-transétnico representa a
ligião cristã primitiva” é, por um conceitualização da efetiva reali­
lado, uma conseqüência secundária dade social que o carismatismo do
do carismatismo do movimento de movimento de Jesus alcançou na
Jesus, uma legitimação posterior; por diáspora.
outro lado, porém, igualmente a ra­ 6. Só a cotidianização do caris­
zão do surgimento efetivo da reli­ matismo, porém, para falar com
gião cristã primitiva. Pois a legiti­ Weber, ou o fracasso da concepção
midade dessa programaticidade de­ apocalíptica básica em relação à rea­
pende do reconhecimento ou da ex­ lidade - isto é, o fato de que a reden­
periência daquilo que, para os cren­ ção escatológica não se concretizou
tes em Cristo, constituía o centro de - transformaram os conteúdos do
sua experiência social e religiosa, a movimento de Jesus em concepções
saber, a irrupção da consumação es- míticas, isto é, em concepções como
catológica ou do término da criação que racional-religiosas, conforme
com vista à redenção. foram descritas por Mack.
5. Distanciando-nos, portanto, de
Theissen, somos da opinião de que

Ekkehard W. Stegemann
Theologisches Seminar
Nadelberg 10
CH 4051 Basel
Suíça

Wolfgang Stegemann
Augustana-Hochschule
Waldstr. 11
91564 Neuendettelsau
Alemanha

(Tradução: Uson Kayser)

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