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O CANTO CRISTÃO NOS PRIMEIROS SÉCULOS DA IGREJA

Thais Fernanda Vicente Rabelo thaisrabelomusica@gmail.com Resumo: O presente est


udo, tem por objetivo analisar a música cristã nos primeiros séculos de sua formação, suas
principais características e funções, tanto no contexto social como no religioso. Faz
-se necessário abordar a música na Igreja primitiva tendo em vista que a história da mús
ica ocidental européia começa a florescer a partir da mesma. Muitos dos elementos pr
esentes na música cristã eram provenientes de outras culturas, todavia, partes deste
s elementos foram desaparecendo pela razão de não serem condizentes com o ideal filo
sófico cristão. Portanto, se faz necessário tentar compreender quais eram estes ideais
. Após apresentar cada um dos principais elementos que fundamentavam a música dos pr
imeiros cristãos será feita uma análise sobre a visão da Igreja a respeitos destas carac
terísticas. O estudo será finalizado com uma breve discussão sobre as razões que teriam
levado o clero a determinada ideologia, de acordo com as fontes pesquisadas. Pal
avras-chave: Canto Cristão; Igreja Primitiva; Ideologia.
Introdução
A música na Igreja cristã primitiva carrega consigo uma série de elementos proveniente
s da cultura ocidental antiga (Grécia, principalmente e Roma) bem como da oriental
. Apesar de os primeiros cristãos haverem sido judeus, a Igreja não incorporou à sua l
iturgia muitos aspectos da música e do ritual judaico, provavelmente até mesmo pelo
fato de não querer propiciar uma associação entre ambas, visto que o cristianismo surg
ia no ambiente judaico, mas não fazia parte deste. A música antiga estava repleta de
significados místicos e teóricos, como a idéia de que a música possuía origem divina e a
crença de que tinha a capacidade de interferir e influenciar na personalidade do i
ndivíduo (Doutrina do Ethos). De acordo com Pitágoras a música estava diretamente asso
ciada à matemática, enquanto que Platão e Ptolomeu adicionavam a esta idéia a ligação entre
música e astronomia. No contexto popular, deixando-se a parte todos estes ideais t
eóricos e rigorosamente elaborados, a música fazia parte da vida da sociedade e de f
orma gradual ia se direcionando, no mundo pagão, para dois eixos paralelos, o prim
eiro deles era o cultivo da música pelo prazer e o outro, o crescente refinamento
da técnica instrumental, ou seja, busca pelo virtuosismo. Neste ambiente surge a I
greja Cristã, com um objetivo primordial: a conversão dos povos pagãos.
I Simpósio Sergipano de Pesquisa em Música Apesar das perseguições sofridas pela Igreja
nos primeiros séculos, ela absorveu elementos musicais das civilizações pré-existentes,
outros elementos, porém, foram rejeitados. Faz-se relevante, portanto, a abordagem
desta temática visto que não é possível um entendimento satisfatório da música ocidental a
ual, sem o conhecimento prévio de sua origem, no sentido sistemático. A grande impor
tância da Igreja para a música provém da razão de ter sido ela a responsável por sistemati
zá-la e conservá-la ao longo dos séculos. Para tanto, serão destacados, ao longo deste e
studo, elementos como: melodia, texto, uso de instrumentos musicais etc, e sua r
elação com o ideal filosófico cristão.
Relação entre melodia e palavra
É característica da música da Igreja a soberania da palavra (texto) sobre a melodia, c
aracterística esta herdada da Grécia Antiga. A palavra não somente exerce influência sob
re a melodia, mas também sobre o ritmo. Esta relação fica clara no Tratado De Música, es
crito por Santo Agostinho de Hipona, em especial nos livros III e IV (FUCCI AMAT
O, 2005, p. 8-9). De acordo com o clero da Igreja primitiva, a melodia de seus c
antos deve estar isenta de toda característica profana, sem querer imitar as canções d
os teatros, repletas de modulações complicadas para brilho dos atores. A melodia do
canto cristão deve ser tal que em sua própria composição faça mostrar a simplicidade cristã
e provoque ao mesmo tempo a compunção no coração dos ouvintes (BASURKO, 2005, p. 39). Po
rtanto, fica claro que o objetivo da melodia no canto cristão era o de destacar a
palavra de Deus, Ele é o centro, tendo em vista a visão teocêntrica da Igreja. Ou seja
, a mensagem a ser proferida era o mais importante e não o cantor, este deveria se
r apenas instrumento de transmissão da mensagem.
Atribuição de Poderes Extraordinários à Música
As civilizações antigas já atribuíam à música poderes extraordinários e por vezes mágicos,
firmação fica explícita, por exemplo, nos ritos Saturnais e Lupercais, na lenda de Orf
eu e até mesmo nos salmos, onde se encontra passagens que falam sobre a harpa do R
ei Davi. A Igreja assimilou esta crença, adaptando-a, de forma a direcioná-la para d
uas principais vertentes: o poder apotropaico e o poder epiclético do canto cristão.
Segundo o clero, o canto dos salmos, por exemplo, tinha o poder de 2
I Simpósio Sergipano de Pesquisa em Música afastar os espíritos malignos e de proteger
contra eles (apotropaico). Enquanto que a função epiclética era de atrair a presença do
s bons espíritos e até mesmo do próprio Deus. (BASURKO, 2005, p. 63-67).
Formas litúrgicas e participação da assembléia
A participação da assembléia nos ritos cristãos era algo de suma importância para grande p
arte do corpo clerical. Muitos padres tratavam de ressaltar esta participação, como
pode-se ver na pregação de São João Crisóstomo:
Desde que o salmo cai no meio de nós, ele reúne as vozes diversas e forma de todas e
las um cântico harmonioso: jovens e velhos, ricos e pobres, mulheres e homens, esc
ravos e livres, fomos arrastados em uma só melodia. Se um músico, fazendo soar com a
rte as diversas cordas de sua cítara, compõe com elas um só canto, apesar de serem múlti
plos os seus sons, é preciso ainda espantar-se de que nossos salmos e nossos canto
s tenham o mesmo poder? (...) um não é mais do que o outro, não existe nenhuma distinção,
nenhuma distinção, nenhuma diferença; todos nós temos a mesma honra, repito o, uma só voz
se eleva de distintas línguas ao Criador do universo (BASURKO, 2005, pg. 101).
Diante de tal afirmação, fica clara a preocupação dos clérigos em tornar a melodia de seus
cantos belas e acessíveis à assembléia. A utilização do canto monódico, referenciada por S
João Crisóstomo como “uma só melodia”, é a tessitura característica da música cristã. Santo
, bispo de Milão, de 374 a 397, foi responsável por inserir na liturgia ocidental o
salmo em formato de responsório. O canto ambrosiano, como ficou conhecido, teve gr
ande aceitação por proporcionar a participação de todos os cristãos, pois além do caráter d
esponsório, este também possui melodia simples. No salmo em responsório há um solista qu
e inicia o canto das estrofes, enquanto que a assembléia canta uma espécie de refrão,
em resposta à palavra que foi dita. O próprio Santo Agostinho fala sobre a influência
dos cantos ambrosianos na Igreja:
Não havia muito tempo que a Igreja de Milão começara a adotar o consolador e edificant
e costume dos cânticos, com grande regozijo dos fiéis, que uniam num só coro as vozes
e os corações (...) Se estabeleceu o canto de hinos e salmos segundo o uso das igrej
as do Oriente1 (FUCCI AMATO, 2005, p.5).
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Agostinho escreveu um tratado De Música, como decorrência da necessidade de se fazer
um estudo sobre música.
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I Simpósio Sergipano de Pesquisa em Música Outra espécie de canto muito comum na Igrej
a neste período é a antífona, caracterizada pela alternância entre as vozes. Tais formas
de canto propiciam a participação dos fiéis nos ritos litúrgicos. Tanto o formato em re
sponsório quanto o antifonário perduram até os dias atuais na Igreja Católica Apostólica R
omana. Outra liturgia importante de ser abordada é a liturgia romana, que com Carl
os Magno acabou sendo introduzida e implantada de forma ditatorial em grande par
te do Ocidente, tendo como base o canto gregoriano e também estruturada no cantochão
e melodia simples.
A utilização dos instrumentos musicais
O fato, já citado anteriormente, de que a música era elemento de grande importância na
sociedade contemporânea ao nascimento da Igreja, é fundamental para que se possa co
mpreender o motivo dela ter grande valor na cultura cristã. Todavia, o sentido dad
o à música no cristianismo, divergia do sentido dado pelos pagãos. Por causa disso, os
primeiros patrísticos cristãos tinham grande preocupação em separar da música religiosa a
s características profanas. Um dos elementos que preocupavam o clero era a melodia
, esta jamais deveria tender ao exagero pagão, devendo ser clara e de fácil compreen
são. Porém, também os instrumentos musicais viram-se ameaçados de perder sua função nos rit
ais litúrgicos. Sabe-se que a música profana fazia largo uso de instrumentos musicai
s, que por diversas vezes apresentavam canções cujas letras eram obscenas e por veze
s criticavam a Igreja. Por conta disto boa parte do clero passou a observá-los de
modo negativo. O outro motivo que levava alguns clérigos a se oporem ao uso dos in
strumentos nas celebrações provinha do fato do uso demasiado destes instrumentos pod
er desviar a atenção dos fiéis, o que, de certa forma, enfraqueceria o valor da palavr
a. Ao contrário do que acontecia na música profana, a intenção verdadeira da música na Igr
eja era de elevar o texto, de fazer soarem doces as palavras de Deus. Havia aind
a uma outra razão à restrição dos instrumentos musicais na liturgia, era o fato de estes
estarem diretamente associados aos sacrifícios materiais, o que já não era mais agradáv
el a Deus. Tal afirmação era defendida por uma corrente de espiritualização judaica, con
temporânea aos primeiros séculos do cristianismo. Atitude conservadora da Igreja? De
acordo com escritos de alguns padres deste período trata-se mais de uma questão ide
ológica do que de uma simples oposição. O que mais uma vez
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I Simpósio Sergipano de Pesquisa em Música se queria ressaltar era a soberania da vo
z, do canto, sobre os instrumentos. As palavras de Eusébio de Cesaréia deixam clara
esta visão da Igreja: “Nós emitimos o hino com um
saltério vivo, com uma cítara que tem alma, com cantos espirituais.”
O prazer proporcionado pela melodia
Gostaria de retomar a idéia da primazia da palavra no canto litúrgico, desta vez, pa
ra abordar a questão do prazer em cantar e em ouvir. De acordo com grande parte do
clero, o prazer de cantar deveria ser algo com o qual os cristãos deveriam se pre
ocupar.
Este prazer, como toda outra deleitação dos sentidos, deve acompanhar e seguir a razão
, o erro consiste em que o sentido preceda a razão tomando a direção dela. Consequente
mente, o prazer melódico é um meio para ajudar-nos a compreender e fazer-nos degusta
r a palavra de Deus (BASURKO, 2005, p.147).
Portanto, pode-se perceber que apesar de todas as restrições estabelecidas pela Igre
ja, com relação ao prazer melódico, o valor da música não é subestimado em seus rituais. Sa
to Agostinho trata bem claramente deste aspecto em seu livro de Confissões, onde d
iz:
Os prazeres do ouvido me prendem e escravizam com mais tenacidade, mas tu me sol
tastes e me livraste deles. Ainda agora encontro algum descanso nos cânticos vivif
icados pelas tuas palavras, quando entoados com suavidade e arte, sem porém perman
ecer preso, a ponto de não me desvencilhar quando quero. (...) Quando àsvezes sucede
que a música me sensibilize mais do que a letra, confesso que peco e mereço castigo
, nessas ocasiões preferiria não ouvir o canto (AGOSTINHO, 1984, p. 303).
Sobre a métrica e rítmica
De acordo com o tratado De Música, escrito por Santo Agostinho e já anteriormente me
ncionado, há uma íntima relação entre verso, ritmo e métrica: “Se o ritmo é um entalhamento
pés sem limites determinado, o metro se constitui na união de pés com uma extensão fixa”(
FUCC AMATO, 2005). Além da preocupação com a prosódia Agostinho também abordou sobre o silê
cio, tudo deveria, segunda a visão pitagórica, ser medido numericamente. Agostinho e
screveu este tratado preocupado em sistematizar a teoria musical. Todavia, ao fi
m deixa explícita a idéia de que o objetivo a ser alcançado com a música é o de chegar à De
s.
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I Simpósio Sergipano de Pesquisa em Música
Conclusão
Em meio a um mosaico de diferentes formas de pensamento, características e cultura
s, a Igreja cristã ocidental, em seus primeiros séculos de formação apresenta sua ideolo
gia que, obviamente, condizia com o contexto histórico e social da época. Por meio d
a adoção, ou melhor, da assimilação de determinados elementos de outras culturas e da re
jeição de outros ela estabeleceu sua música, com características próprias. Mas afinal, o q
ue realmente teria levado o clero a se opor a determinados aspectos da música prof
ana? LE MÉE (1996, p.47-48), relacionando este fato com a perseguição religiosa sofrid
a pelos cristãos diz:
Uma coisa é certa: as autoridades, em Roma, encaravam com suspeita o que os cristãos
faziam, levando-os a adotar práticas clandestinas, (...) Seria natural, para os p
rimeiros cristãos, continuar a cantar músicas já conhecidas, talvez mudando a letra, n
um dado momento, no sentido de refletir suas novas experiências e crenças. (LE MÉE ,19
96, p.47-48)
De acordo com Lê Mée2, é muito provável que a música folclórica judaica estivesse presente
o início do cristianismo. Todavia, com a conversão de Constantino “os cristãos passaram
a realizar abertamente seus cultos, sem medo, e com isso sua liturgia começou a fl
orescer”, ou seja, a partir de então a Igreja passou a estabelecer um distanciamento
entre a música litúrgica e a música profana. Basurko justifica a questão à rejeição de det
inados elementos por meio de um dos principais pensamentos da Igreja, “A melodia c
omo um serviço à palavra de Deus”3. Enquanto que Grout e Palisca justificam a questão ap
ontando como razão principal a preocupação da Igreja em distinguir e afastar os ritos
cristãos dos ritos pagãos, por se tratarem os cristãos de um grupo minoritário na época.4
A meu ver, apesar de todos os argumentos apresentados anteriormente, o clero tin
ha como principal objetivo tornar o canto cristão estruturalmente simples, para qu
e pudesse ser acessível e facilmente assimilado pela congregação, por conta disso algu
ns elementos da música profana não foram aceitos, tendo em vista que tinham como bas
e o destaque do intérprete e uma preocupação cada vez mais intensa com relação à estrutura
a música, que iria tornar-se cada vez mais complexa.
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Cf. Lê Mée, 1996, p. 60. BASURKO, O canto cristão na tradição primitiva, 2005, p. 39. 4 GR
OUT/PALISCA, História da música ocidental, 1995, p.43-44.
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I Simpósio Sergipano de Pesquisa em Música Portanto, somando-se esta visão particular
de valorizar a participação dos cristãos nos rituais litúrgicos, pensamento que está prese
nte até os dias atuais na Igreja Católica Apostólica Romana, às justificativas apresenta
das pode-se ter uma visão dos motivos que levaram a Igreja primitiva a se opor a d
eterminados elementos. Tentar analisar a música cristã simplesmente por meio de uma
análise generalista e histórica, sem levar em consideração a filosofia e teologia da Igr
eja não nos leva a resultados amplamente satisfatórios, deste modo, corre-se o risco
de entender de forma generalista e em parte negativa as características ideológicas
da cultura cristã, de enxergá-la como uma instituição ditatorial que visa esmagar deter
minados aspectos das outras culturas e não como uma cultura que possui também suas c
aracterísticas e ideologias próprias.
Referências Bibliográficas
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Amaria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulu
s, 1984. BASURKO, Xabier. O Canto Cristão na Tradição Primitiva. Tradução de Celso Maria T
eixeira. São Paulo: Paulus, 2005. FUCCI AMATO, Rita de Cássia. A Música em Santo Agost
inho. Porto Alegre: Em Pauta, 2005. GROUT, Donald; PALISCA, Claude. História da Músi
ca Ocidental. Lisboa: Gradiva, 1995. LE MÉE, Katharine W. Canto: as origens, a for
ma, a prática e o poder curativo do canto gregoriano. Tradução de Carlos Araújo. Rio de
Janeiro: Agir, 1996.
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