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eee FINLEY, Moses |. Escravidao antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991 —— ee Adriana Pereira Campos" INTRODUCAO. ‘A presente resenha tem como finalidade apresentar as principais formulagées do his- toriador Moses Finley sobre o conceito de es- cravidao, na obra “Escravidao antiga e ideo- logia moderna”, publicada pela Graal em 1991. O objetivo é tentar aproveitar a obra como referencia de anilise da escravidio no Brasil, demonstrando que a renovagio historiogréfica brasileira sobre 0 assunto se relaciona com um quadro mais geral de ino- vagio do tema No inicio da obra, o autor logo explicita que seu objetivo é a discussio de duas das cinco sociedades “genuinamente” escravistas —aGrécia Classica e a Itélia Clés parando-as as outras trés sociedades escravistas da América — Brasil, Caribe ¢ EUA ~ para que se tornem mais esclare- cedores seus argumentos. Esse recurso anall- tico sustenta nosso objetivo de utilizar a obra ‘como referéncia paraa critica dos estudos da escravidiio no Brasil e reforga nossa compre- ica, com- ensdo de que as mudangas historiogréficas sobre a escravidio brasileira fazem parte de tum quadro geral de inovagao do tema. 1 | No primeiro capitulo da obra, Moses Finley discute as correntes que tentam expli- | caro grande interesse pelo estudo da esera dao antiga e da moderna e os acalorados de- bates a respeito da matéria, que nio se justi- ficam somente pela polémica heranga deixa- da pela escravidio de negros, pois esse argu- ‘mento no explicaria o interesse pelo assunto nas sociedades antigas classicas. Essas cor- rentes esto polarizadas, de um lado, por uma visio moralista ou espiritualista e, de outro, por uma visio sociol6gica do proceso hist6- rico de desenvolvimento da escravidao antiga. ‘A primeira visio, dominante desde o int- cio do século XIX, chegou perto de monopo- lizar 0 estudo académico sobre 0 tema. Os es- | tudiosos do conjunto dessas correntes divul- Professora do Departamento de Histéria da UFES e Doutoranda pelo Programa de Pas-graduagao em Hisiria Sovial da UFR REVISTA DE HISTORIA ~ N° @ — VITORIA: EDUFES ~ 1° SEMESTRE/1999, 123 garam a opinitio de que o “interesse moderno pela escravidao antiga despertou com a idéia de liberdade no século XVIII, com o inicio da moderna critica social construtiva” (p.14) Apresentando sua discordancia, Finley afir- ma que houve motivagao para o estudo do tema em outras épocas: “Por toda a Antigii dade, o interesse na escravidao como tal foi contemporineo e, nao histdrico” (p.19). “(...). A conclusio inevitdvel é que afirmar o inte- resse moderno na escravidao antiga surgido com o Iluminismo € © abolicionismo € pro- curar coisas erradas em lugares errados. Es- quece-se de que nos séculos XVILe XVIII ‘os modemos escreviam antiquitates'(...)” (p.25). © autor explica que esses historiadores nao se ocupavam com avaliag&es morais sobre a escravidio antiga. A preocupagao deles era 0 estudo dessa instituigdo camo sustentagiio da grandiosidade das sociedades clissicas. As discussdes contempordineas sobre a escravi- dio tinham pouco interesse para os historia- does do século XVII; “tampouco foram um estimulo para seu estudo da escravidio ant ga(...)” (Pp. 29). A segunda abordagem, baseada numa perspectiva sociolégica do processo hist6ri- co, segundo autor, teve sua origem com os primeiros “economistas”, i, e., os estudiosos da riqueza, do trabalho, da produgio ¢ do comércio, que desenvolveram seus estudos apés meados do século XVII. A reflexdo mais importante desses pesquisadores era a de ser ‘0 trabalho escravo o menos eficiente, devido aO seu alto custo em comparagao com o li- vre, © que certamente niio estimularia qual- quer interesse por um trabalho académico sétio. A escravidio, contudo, acabou tornan- do-se um interessante tema de estudo demografico com conseqiiéncias inesperadas. Duas questdes debatidas naquela época reper- cutem ainda hoje: “I. Seria 0 mundo mais densamente povoado na Antigitidade do que agora?; 2, O uso em larga escala de escravos teria, ou nfo, afetado 0 crescimento populacional?” (p.31). O autor concentra-se nas respostas oferecidas por Hume e por B. Franklin, que no comprometeram suas ex- plicagées com uma condenagio exclusiva- mente ética dessa espécie de sujeigao civil. Para ambos, mesmo reconhecendo a desuma- | niidade da escravidao, sua condenagiio se dava por razGes mais “preocupantes”, Franklin con- siderava perniciosa a escravidio porque in- centivava os brancos a indoléncia ¢ ao luxo, referindo-se, sobretudo, ao perfodo moderno. Hume creditava & escravidio a principal di- ferenga entre a antiga economia doméstica e a moderna (p.32), tornando o levantamento sobre a populacio escrava de vital compre- ensfio para a hist6ria social e econdmica da | Antigiidade, autor apresenta outras duas perguntas que impulsionaram o estudo da escravido dentro da perspectiva sociolégica: “I. Por quais causas foi abolida a eseravidio antiga; 2. A partir de que época houve apenas servi- dio (...) na Europa ocidental, desaparecendo aescravidao antiga?” (p.34), Segundo Finley, muitos esperavam, dentro de um enguadramento hist6rico, uma investigagao | de ordem moral, atribuindo & aboliggo uma tinica causa —a busca de lucro. Algumas res- postas, todavia, trilharam outro caminho, Uma delas foi aquela que colocava o cristianismo | como chave. As leis muito favordveis aos 124 REVISTA DEHISTORIA -N* 8 VITORIA:EDUFES~ 1 SEVESTRE/1999 / | j j escravos no periodo de influéncia dessa reli gido enfraqueceram todo o edificio social, jé vacilante sob os golpes das invasées estran- geiras (p.35). Uma vusra foi muito influenci- ada pela nova escola histérica alema de Di reito, que creditava As instituig&es germanicas a causa da aboligo daescravidio. Outra apoi ava-se nos fundamentos da escola dos “eco- nomistas”, que via a escravido como um sis- tema pouco eficiente, Os sucessores, no século XIX, dos eco- nomistas do século XVII introduziram, con- forme Finley, uma nova dimensio na apreci- agio da escraviddio antiga. “(...), primeiro, sua preocupacdio era com 0 mundo contempord- neo: segundo, tinham uma perspectiva histé- rica (...) num sentido evolucionista, pois con- sideravam a sociedade contemporanea como um estdgio da hist6ria humana, interessando- se (...) pelo estabelecimento (...) das causas da ascensio e queda de cada estégio; tercei- ro, tinham todos uma educagdo clissica € conheciam as fontes, que liam no original” (pl). Para os estudos da escravidio segun- do essa “nova dimensao”, Finley destaca 0 papel de Karl Marx, que legou aos seus sc- ‘guidores uma preocupacio teGrica com aevo- lugo social baseada em estagios, entre os quais destacava-se a escravida0, apesar de nfo ‘ocupar lugar central no interesse desses estu- diosos: “Por mais profundo que fosse 0 inte- resse de Marx no processo histérico, em ne- nhum momento de sua vida tentou (ele ou Engels) realizar um estudo da sociedade ou da economia antigas. (...). Na Antigilidade, a escravidio era apenas um dos modos de pro- dugdio que ele submeteu a uma andlise curtae abstrata. No mundo moderno, foi primeiro uma das formas de “acumulagao primitiva” nas coldnias, depois uma estranha anomalia (na América do Sul) num contexto capitalis- ta." (p43), Somente na virada do século, houve uma ‘mudanga substancial nesses estudos, nos quais a escravidio recebeu uma atengio diferenci- ada. Inicialmente, a preocupagio foi romper com a visio que atribufa ao cristianismo oua qualquer sistema ético a responsabilidade do declinio da escravidio. Utilizando-se do es- quema te6rico marxista, a abordagem alter- nativa “consistia em examinar a escraviddo antiga (ao contrario da moderna) como “ins- trumento geral e indispensdvel da produciio” e-em seguir suas mudangas de papel & medi- da que a economia antiga se transformava, sob os romanos, de uma forma que reduziria ‘anecessidade de escravos, mas exporia tam- bém seu cardter inerente de desvantagem eco- ndmica” (p.45). Finley observa que esses es tudos representam o esforgo de andlise daes- cravidio antiga no contexto da economia € da sociedade antigas. ‘As exaustivas consideragdes de Finley sobre as abordagens moralistas € sociolégi- cas guiam-se no sentido de ‘compreender a im- portancia do estudo da escravidio a0 longo do tempo. Em sua opinido, trata-se de uma tarefa dificil e compensadora, mas que exige a proposicao de questies corretas. A aborda- gem moralista formulava suas questées a par- tir da demiincia da escravido como um gran- cde mal. Finley afirma que “ndo ha razio para um historiador nao dizé-lo; mas dizer apenas isso, ndo importa com que apoio factual, & uma maneira vulgar de marcar pontos para. a nossa sociedade contra uma que j& morreu REVISTA DEHISTORIA N'8 VITOR: EDUFES ~ 1° SEMESTRE/TO99 125

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