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FICHA DE AVALIAÇÃO FORMATIVA

NOME: N.O: TURMA: DATA: _________

GRUPO I

PARTE A

Leia o excerto do Auto da Feira (vv. 382-436), de Gil Vicente, que se apresenta de
seguida.

Roma — Eu venho à feira dereita1 cada ũa tam sotil6


comprar paz, verdade e fé. 25 que nam vivais em canseira.
Diabo — A verdade pera quê? Mentiras pera senhores
Cousa que nam aproveita mentiras pera senhoras
5 e avorrece2 pera que é? mentiras pera os amores
Não trazeis bôs fundamentos mentiras que a todas horas
pera o que haveis mister 30 vos naçam delas favores.
e a segundo são os tempos
assi hão de ser os tentos3 E como formos avindos7
10 pera saberdes viver. nos preços disto que digo
vender-vos-ei como amigo
E pois agora à verdade muitos enganos enfindos8
chamam Maria peçonha4 35 que aqui trago comigo.
e parvoíce à vergonha Roma — Tudo isso tu vendias
e aviso à roindade e tudo isso feirei
15 peitai a quem vo-la ponha. tanto que inda venderei
A roindade5 digo eu e outras sujas mercancias9
e aconselho-vos mui bem 40 que por meu mal te comprei.
porque quem bondade tem
nunca o mundo será seu Porque a troco do amor
20 e mil canseiras lhe vem. de Deos te comprei mentira
e a troco do temor
Vender-vos-ei nesta feira que tinha da sua ira
mentiras vinta três mil 45 me deste o seu desamor.
todas de nova maneira E a troco da fama minha

1
dereita: direita.
2
avorrece: aborrece.
3
tentos: cuidados.
4
peçonha: veneno, maldade.
5
roindade: ruindade.
6
sotil: subtil.
7
avindos: acordados, ajustados.
8
enfimdos: infindos.
9
mercancias: mercadorias.

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e santas prosperidades E pois já sei o teu jeito
me deste mil torpidades quero ir ver que vai cá.
e quantas virtudes tinha Diabo — As cousas que vendem lá
50 te troquei polas maldades. são de bem pouco proveito
55 a quem quer que as comprará.

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Explique o motivo pelo qual se pode considerar este excerto como parte de uma
alegoria e indique o que representam estas duas personagens alegóricas.

2. Descreva os produtos que Roma deseja adquirir e refira as mercadorias que o


Diabo lhe oferece. Justifique a sua resposta com quatro citações do texto.

3. Neste excerto, é óbvia a anterior relação comercial entre Roma e o Diabo.


3.1 Explique que significado terá a recusa de Roma em relação às propostas do
Diabo. Faça citações do texto para comprovar a sua resposta.

PARTE B

Leia o excerto do Auto da Feira (vv. 725-773), de Gil Vicente, que se apresenta de
seguida.

Branca — Dizei senhores de bem Marta — Tendes vós aqui burel7


nesta tenda que vendeis? do pardo, de lã meirinha?
Serafim — Esta tenda tudo tem. Branca — Eu queria ũa pucarinha
Vede vós o que quereis pequenina pera mel.
5 que tudo se fará bem.
Conciência1 quereis comprar 20 Serafim — Esta feira é chamada
de que vistais vossa alma? das virtudes em seus tratos.
Marta — Tendes sombreiros2 de palma Marta — Das virtudes? E há ‘qui patos?
muito bôs pera segar3 Branca — Quereis feirar a cevada
10 e tapados pera a calma4? quatro pares de sapatos?
25 Serafim — Ó piadoso Deos eterno
Serafim — Conciência digo eu nam comprareis pera os céus
que vos leve ao paraíso. um pouco d’amor de Deos
Branca — Não sabemos nós que é isso5 que vos livre do inferno?
dai-o ò decho6 por seu Branca — Isso é falar per pincéus8.
15 que já nam é tempo disso.

1
conciência: consciência.
2
sombreiros: chapéus.
3
segar: ceifar.
4
tapados pera a calma: que tapam a cabeça quando está calor.
5
Não sabemos nós que é isso: nós não sabemos o que isso é.
6
decho: demónio.
7
burel: pano grosseiro de lã.
8
falar per pincéus: falar por jogos de palavras, de forma que não se entenda facilmente a mensagem.

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30 Serafim — Esta feira nam se fez 40 E se o hão de correger
para as cousas que quereis. quando for todo danado
Branca — Pois quant’a essas que vendeis muito cedo se há de ver
daqui afirmo outra vez que já ele nam pode ser
que nunca as vendereis. mais torto nem aleijado.
35 Porque neste sigro1 em fundo 45 Vamo-nos Marta à carreira2
todos somos negligentes que as moças do lugar
foi ar que deu polas gentes virão cá fazer a feira
foi ar que deu polo mundo que estes nam sabem ganhar
de que as almas são doentes. nem tem cousa que homem queira.

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Neste excerto, o Serafim dialoga com as esposas dos lavradores, Branca Anes e
Marta Dias.
1.1 Mostre que existe uma oposição entre os desejos das personagens e as
propostas do Serafim.

2. Branca Anes confronta o Serafim quanto à falta de adequação entre os seus


produtos (as virtudes) e o mundo real.
2.1 Explicite a teoria exposta pela personagem nos versos 32-49.

GRUPO II

Leia atentamente o texto que se segue.

O Auto da Feira e o Saque de Roma

Mercúrio como Deus do Comércio («ordeno hũa feira aqui») é


necessariamente a primeira personagem a entrar em cena. Mas, neste ano
conturbado de 1527, ele é também o Núncio da Paz e, porque simboliza o
intercâmbio entre o Céu e a Terra, torna-se o árbitro de todas as causas
5 suscetíveis de afetar o equilíbrio entre estes dois mundos. Como Deus do
Raciocínio e da Eloquência, proferirá um longo discurso inicial feito de verdades e
nonsense, do qual gostaríamos de salientar as referências parodiadas à vox
auctoritatis de Johannes Monteregio, um dos maiores astrólogos do tempo,
como se fossem prognósticos de «ajuntamento dos planetas», «operações dos
10 ceos» e, portanto, causadoras de aparecimento de prodígios da natureza
(monstros, cometas, etc.) ou cataclismos.
Mercúrio nomeia o Tempo seu «mercador-mor», e este, anunciando a
«feira chamada das Graças, / à honra da Virgem parida em Belém», sublinha que
não vende mas troca. Dá as virtudes perdidas: «rezão, / justiça e verdade, a paz

1
sigro: mundo.
2
carreira: ao caminho.

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15 desejada», «temor de Deus», «as chaves dos Céos». E o Seraphim enviado por
Deus a petição do Tempo convocará «igrejas, mosteiros, / pastores das almas,
Papas adormidos» para o arrependimento necessário, a reconversão ao
verdadeiro Evangelho «dos sanctos pastores do tempo passado».
Se Gil Vicente coloca em cena duas tendas contrárias — a do Tempo e a
20 do Diabo — com as respetivas balanças, é para dar aos que feiram uma
oportunidade de escolha entre Vícios e Virtudes.
Roma, já saqueada, entra em cena entoando um lamento e logo
deparará com esta imagem alegórica, exemplum divino de expiação dos pecados
humanos. Embora reconhecendo os seus erros, tenta ainda utilizar «jubileus»,
25 «perdões», «estações», como moeda de troca, até Mercúrio ordenar ao Tempo
que lhe mostre a Verdade.
Roma conhecerá a Verdade através de um «espelho […] que foi da
Virgem Sagrada», segundo as ordens de Mercúrio. Espelho porque, durante o
século XVI, a sua função simbólica era a de servir como meio de
30 autoconhecimento; da Virgem porque Ela mesmo é speculum sine macula, e a
Sua natureza um reflexo puro de Deus, origem de toda a Verdade e Sabedoria.
Após a saída de Roma, vêm à Feira dois casais de lavradores e vários
pastores utilizando outros níveis de linguagem capazes de evocarem, na Corte, a
atmosfera de verdadeiras feiras rústicas. Contudo, não se iluda o espectador com
35 a aparente mudança de registo cénico que desorienta os estudiosos vicentinos e
lhes causa uma perplexidade injustificada.
Entendamos Branca Anes, a brava, por Discórdia e Marta Dias, a mansa,
por Concórdia. Casadas com Amâncio Vaz e Denis Lourenço, os dois casais vivem
também uma situação contrária e fácil de remediar. O conflito desapareceria se
40 na Feira efetuassem uma «troca» em relação a si mesmos. Mas é um diálogo de
surdos o que elas travam com o Seraphim e com o Tempo. A «rezão»/justiça e
verdade, a paz desejada propostas a Roma ou a «consciência […] de que vestais
vossa alma […] que vos leve ao Paraíso» oferecidos agora a Marta Dias não
despertam qualquer interesse: «Não sabemos nós qu’he isso; / dar-o ó demo por
45 seu, / que já não he tempo disso».
Do mesmo modo que se instaura a discórdia entre o poder espiritual
(Papa vs. Lutero) e temporal da Igreja (Clemente VII e Francisco I vs. Carlos V), os
dois casais de lavradores atravessam a situação de conflito sem procurar a
solução conciliatória com a «consciência» e «rezão».

JOÃO NUNO ALÇADA, «O Auto da Feira e o Saque de Roma»


in Cintra, Luís Filipe Lindley (int. e ed.), Auto da Feira, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 79-82
(com supressões e adaptações).

1. Para responder a cada um dos itens de 1.1 a 1.5, selecione a opção que completa
corretamente cada afirmação. Escreva, na folha de respostas, o número de cada
item e a letra que identifica a opção escolhida.

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1.1 O excerto apresentado centra-se na noção de que o Auto da Feira
(A) evolui como um jogo de opostos.
(B) é uma obra híbrida que funde vários géneros dramáticos.
(C) defende uma espiritualidade mais pura.
(D) apresenta a Igreja de Roma como uma instituição condenada.

1.2 Na expressão «ele é também o Núncio da Paz» (linha 3) o vocábulo destacado é


sinónimo de
(A) precursor.
(B) pioneiro.
(C) emissário.
(D) espião.

1.3 No primeiro parágrafo do texto, o autor pretende


(A) demonstrar que Mercúrio é a primeira personagem a entrar em cena por
ser uma figura mitológica.
(B) relacionar as características de Mercúrio com a sua função no auto.
(C) mostrar que a presença de Mercúrio no auto é uma característica
renascentista.
(D) enumerar os atributos de Mercúrio.

1.4 De acordo com o texto, o motivo pelo qual Gil Vicente organiza o palco em dois
polos opostos
(A) prende-se com a ideia de livre-arbítrio dos potenciais clientes.
(B) está relacionado com uma ideia cenográfica medieval.
(C) indica que o espaço da feira era semelhante a um tribunal.
(D) demonstra que, para o cristão, existiam apenas dois sentidos possíveis.

1.5 A enumeração das linhas 24 e 25


(A) expõe os erros que a personagem Roma cometeu.
(B) enfatiza a vontade de redenção que Roma tem.
(C) lista as estratégias que Roma utiliza para dominar os fiéis.
(D) concretiza os rituais utilizados por Roma para convencer o Serafim.

2. A palavra latina MACULA- veio a dar em português «mágoa», «malha», «mancha»,


«mangra» e até «mácula».
2.1 Como chamamos a estas palavras, todas com origem num mesmo étimo latino?
2.2 Que via — popular ou erudita — corresponderá à última das cinco palavras,
«mácula»?

3. Classifique as funções sintáticas desempenhada pelos constituintes indicados.


a) «à Feira» (linha 32)
b) «a atmosfera de verdadeiras feiras rústicas» (linhas 33 e 34)
c) «vicentinos» (linha 35)

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4. Classifique as orações subordinadas presentes nas frases que se seguem.
a) «Roma conhecerá a Verdade através de um “espelho […] que foi da Virgem
Sagrada”, segundo as ordens de Mercúrio» (linhas 27 e 28)
b) «O conflito desapareceria se na Feira efetuassem uma “troca” em relação a si
mesmos» (linhas 39 e 40)

GRUPO III

O Auto da Feira apresenta-nos uma dialética intemporal: o Bem e o Mal, o divino e o


terreno, o espiritual e o material, o enriquecer e o empobrecer, os vícios e as virtudes.

Tendo em conta este aspeto e com base na sua experiência de leitura do Auto da Feira,
desenvolva uma apreciação crítica sobre as dualidades que a peça vicentina apresenta.
Construa um texto bem estruturado, com um mínimo de cento e vinte (120) e um
máximo de cento e cinquenta (150) palavras.

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Correção da ficha de avaliação formativa

GRUPO I
PARTE A

1. O excerto indicado situa-se na segunda parte do Auto da Feira e constitui uma


alegoria, pois o mundo é apresentado como uma feira em que um Serafim (o Bem)
e um diabo (o Mal) vendem virtudes e vícios. Roma representa a corte papal e
deseja comprar a paz em troca de indulgências, perdões e bens de valor material.

2. Roma desloca-se à feira para adquirir virtudes essenciais para exercer o seu
ministério sagrado de forma correta: a paz, a verdade e a fé («comprar paz,
verdade e fé», v. 2). Todavia, o Diabo tenta persuadi-la da inutilidade dessas
virtudes e apresenta-lhe a ruindade, as mentiras e os enganos como produtos mais
benéficos para uma vida de acordo com as circunstâncias («a roindade digo eu / e
aconselho-vos mui bem», vv. 16 e 17; «Vender-vos-ei nesta feira / mentiras vinta
três mil», vv. 21 e 22 ; «vender-vos-ei como amigo / muitos enganos enfindos», vv.
33 e 34).

3.1 O afastamento de Roma do Diabo demonstra uma mudança de comportamento


por parte daquela personagem. A sua anterior cumplicidade com o Mal tê-la-á
levado a corromper-se e a afastar-se do seu objetivo central (ser representante de
Deus na terra, ser exemplo de paz, verdade e fé): «outras sujas mercancias / que
por meu mal te comprei» (vv. 39 e 40). As consequências da sua conivência com o
Diabo levaram-na a reconhecer o seu erro, e a sua atitude pode ser interpretada
como uma tentativa de se absolver dos equívocos cometidos e procurar redimir-se.
O seu arrependimento torna claro que ela procura a redenção, uma vez que o
arrependimento é, segundo a doutrina da Igreja Católica, condição essencial para
alcançar o perdão. Note-se que Roma, no início do diálogo, deixa explícito que
mudou («eu venho à feira dereita», v. 1) e escolhe, no final do excerto, afastar-se
do Mal («E pois já sei o teu jeito / quero ir ver que vai cá», vv. 51 e 52).

PARTE B

1.1 Branca Anes e Marta Dias pretendem comprar bens materiais (sombreiros de
palha, tecidos, louça, patos, cevada, sapatos) mas o Serafim tem apenas para
oferecer bens espirituais (consciência, virtudes e amor de Deus). Esta oposição
parece indicar que, nesta feira alegórica, as ofertas do mundo divino não são
adequadas às necessidades quotidianas do mundo terreno.

2.1 Branca começa por se referir ao discurso do Serafim como «falar por pincéus» (v.
29), ou seja, o tipo de linguagem utilizada por este enviado dos Céus e os assuntos
a que se vem referindo não são adequados ao público a quem se dirige, pois «falar
por pincéus» indicará utilizar uma linguagem figurada ou demasiado complexa
para os clientes da feira (lavradores e pastores). Começa, depois, a expor a sua

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teoria sobre os bens que o Serafim tem à venda e o fracasso do seu negócio,
explicando que os seus artigos nunca poderão ser vendidos porque no «sigro em
fundo» (v. 35) que é o mundo real, em que vivem os seres humanos, ninguém é
perfeito («todos somos negligentes», v. 36). A imperfeição está não só no Homem
mas no próprio mundo, «todo danado» (v. 41), ou seja, naturalmente corrompido.
Desta forma, a presença do Serafim e dos seus bens na feira é, portanto, inútil. A
partir desta teoria, bastante pragmática, de Branca, percebemos que a conciliação
entre o mundo celeste e o mundo terreno (porque mundos contrários, por
natureza) é mais complicada do que o Serafim poderia pensar.

GRUPO II

1.1 (A); 1.2 (C); 1.3 (B); 1.4 (A); 1.5 (D).

2.1 São palavras divergentes.

2.2 A palavra «mácula» chegou ao português por via erudita.

3. a) Complemento oblíquo; b) Complemento direto; c) Modificador restritivo do


nome.

4. a) que foi da Virgem Sagrada: oração subordinada adjetiva relativa restritiva; b) se


na Feira efetuassem uma «troca» em relação a si mesmos: oração subordinada
adverbial condicional.

GRUPO III
Construção de um texto que respeite a tipologia do texto de apreciação crítica e se
centre, sobretudo, no tema proposto — as dualidades que a peça vicentina apresenta.
O texto deve respeitar a extensão proposta.

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