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The Ballad of the Sad Café:

o grotesco e a solidão na construção e desconstrução


do amor
SILVA, Sheila dos Santos (UFSJ)
sheilacax@hotmail.com
LAGUARDIA, Adelaine (UFSJ)
adelaine@ufsj.edu.br

RESUMO The Ballad of the Sad Café é uma novela que narra a história de uma mulher estranhamente mas-
culinizada e solitária, Miss Amelia. Ela tem sua vida e seus hábitos transformados com a chegada
de um corcunda que se diz seu primo, Lymon. O enredo, então, é construído a partir desse acon-
tecimento, uma vez que Miss Amelia torna-se mais sociável e faz de tudo para agradar o suposto
primo o que surpreende as pessoas da pequena cidade onde moram. O presente trabalho busca
analisar a representação do corpo em The Ballad of the Sad Café. Buscou-se observar também como
essa representação se relaciona com os conceitos de solidão e de amor defendidos pela autora. Essa
análise é informada por uma perspectiva queer, que confere ao discurso as experiências do estigma
e da humilhação social a que estão sujeitas as pessoas que não se conformam aos padrões sociais,
especialmente os padrões de gênero e sexualidade. Em The Ballad of the Sad Café o grotesco, o amor,
o ódio e o isolamento espiritual estão interligados de forma tão emaranhada que é impossível rom-
pê-los, entendendo-se se assim que um não pode existir sem o outro.
Palavras-chave: Carson Mccullers, grotesco, amor, solidão.

ABSTRACT The Ballad of the Sad Café is a novel which tells the story of a woman strangely masculinized and lo-
nely, Miss Amelia. She has her life and her habits changed with the arrival of a humpback who claims
to be her cousin, Lymon. The plot is constructed from this event, since Miss Amelia becomes more socia-
ble and she makes everything to please her supposed cousin whose attitude surprises the people of the
small place where they live. This article seeks to analyze the representation of the body in The Ballad of
the Sad Café and it sought also to observe how this representation relates to the concepts of loneliness
and love defended by the author. This analysis will be informed by a queer perspective, which gives the
speech the stigma and social humiliation experiences which are subjected to those who do not agrees to
social standards, especially the standards of gender and sexuality. In The Ballad of the Sad Café the gro-
tesque, love, hatred, and spiritual isolation are interconnected so tangled that it is impossible to break
them up, thus understanding that one can not exist without the other.
Keywords: Carson McCullers, grotesque, Love, isolation.

Introdução
Carson McCullers nasceu em 19 de fevereiro de 1917 em Columbus, Geórgia, no sul dos Estados Unidos,
onde morou até os 17 anos, quando então decidiu se mudar para Nova Iorque. Na Universidade de Colúmbia,
matriculou-se no curso de escrita criativa. Em 15 de agosto de 1967, McCullers teve uma hemorragia cerebral
e entrou em coma, vindo a falecer dias depois.
O presente trabalho busca analisar a representação do corpo em The Ballad of the Sad Café, da escritora
norte-americana Carson McCullers. Buscou-se observar também como essa representação informada por

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uma perspectiva queer, que segundo Richard Miskolci (2012) interessa-se por experiências “historicamente
subalternizadas, até mesmo ignoradas” (p. 17).
Nessa perspectiva, traz-se ao discurso as experiências do estigma e da humilhação social a que estão sujeitas
as pessoas que não se conformam aos padrões sociais, especialmente os padrões de gênero e sexualidade. A
teoria queer, lida com o gênero como uma categoria cultural e não como uma essência natural do ser humano.
Dessa forma, o masculino e o feminino existem em homens e mulheres, pois como afirma Miskolci (op. cit.),
“o gênero é relacionado a normas e convenções culturais que variam no tempo e de sociedade para sociedade”
(p. 31).

Referencial teórico
O grotesco
The Ballad of the Sad Café (1998) é uma novela que narra a história de uma mulher estranhamente
masculinizada e solitária, Miss. Amelia. O cenário é um vilarejo no Sul dos Estados Unidos, onde a protagonista
um armazém que abastece a cidade. Ela não é sociável, mas essa condição muda com a chegada do corcunda,
Primo Lymon, um corcunda. O armazém torna-se um café, devido à facilidade de comunicação de Primo
Lymon, onde as pessoas se encontram e aproveitam a companhia umas das outras. Contudo, com a chegada de
Marvin Macy, ex-marido de Miss Amelia, que ficou fora durante muitos anos, a tranquilidade de Amelia acaba
e ela passa a disputar constantemente a atenção do Primo Lymon com Marvin. Vindo a perder eventualmente
essa disputa, quando os dois homens fogem e ela fica sozinha novamente. Logo nas primeiras páginas a
senhorita em questão assim é descrita:
She was a dark, tall woman with bones and muscles like a man. Her hair was cut short and
brushed back from the forehead, and there was about her sunburned face a tense, haggard quality.
She might have been a handsome woman if, even then, she was not slightly cross-eyed. There
were those who would have courted her, but Miss Amelia cared nothing for the love of men and
was a solitary person (McCULLERS, 1988, p. 198).1

Nos textos de McCullers o corpo se faz presente, ou seja, está no centro de seus enredos. A autora constrói
seus personagens a partir de sua aparência física. Miss Amelia é uma mulher com um corpo masculinizado, o
Primo Lymon é corcunda, Marvin Macy é um rapaz bonito.
Para Adams (1999), a ficção de McCullers é povoada por personagens esquisitos, constrangidos por
anomalias corporais que desafiam a imposição de categorias normativas de identidade. Esses esquisitos sofrem
uma alienação de seus corpos que se assemelha as suas experiências de estranhamento dentro da sociedade.
Adams afirma ainda que as personagens de McCullers se classificam como freaks ou monstros e assinala o
papel queer que tais personagens desempenham em sua obra:
As McCullers uses these terms, their function depends not upon their correspondence to any
fixed identity but upon their opposition to normative behaviors and social distinctions. The
queer refers loosely to acts and desires that confound the notion of a normative heterosexuality
as well as to the homosexuality that is its abject by product. Freaks are beings who make those
queer tendencies visible on the body’s surfaces. Freaks and queers suffer because they cannot
be assimilated into the dominant social order, yet their presence highlights the excesses,
contradictions, and incoherences at very heart of that order (p. 552)2.

1. Era uma mulher morena e alta, com ossos e músculos de homem. Seus cabelos eram curtos, puxados para a nuca, o rosto
queimado pelo sol tinha uma expressão tensa e selvagem. Poderia até ter sido bonita quando moça, se não fosse ligeiramente
estrábica. Muitos a cortejaram, mas a Srta. Amélia não se importava com o amor dos homens: era uma pessoa solitária
(Tradução de Caio Fernando Abreu, 2010, p. 15).
2. Como McCullers usa esses termos, a sua função não depende de sua correspondência com qualquer identidade fixa, porém
se baseia na sua oposição a comportamentos normativos e distinções sociais. O queer refere-se livremente aos atos e desejos
que confundem a noção de uma heterossexualidade normativa, bem como à homossexualidade, que é consequentemente
a sua forma abjeta. Freaks são seres quem tornam essas tendências estranhas visíveis na superfície do corpo. Freaks e queers
sofrem porque não podem ser assimilados pela ordem social dominante, mas sua presença destaca os excessos, contradições e
incoerências no coração desta ordem (Minha tradução).

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Para Adams, McCullers tem uma relação direta com sua capacidade de reconhecer a dor experimentada
pelas pessoas reais designadas como “freaks”. De acordo com Vasconcelos (2001) isso acontece porque McCullers
sempre teve a percepção de si mesma como alguém que carregava uma “anormalidade”, o que tem também
relação com a ideia de maternidade, bem como com as terríveis alterações no corpo da mulher durante a
passagem da adolescência para o estado adulto, e deste para a decadência, para a velhice e para a doença.
Segundo Kohler (1951), em The Ballad of the Sad Café, horror e angústia unem o destino do sensível e
da aberração física. Para ele, o triunfo de McCullers é que ela fez Miss Amelia grotesca sem torná-la ridícula,
assim como Primo Lymon é sinistro sem ser melodramático.
Kohler acredita que McCullers retrata sua própria visão trágica da vida através de símbolos do disforme e
do ferido, cujas deformidades físicas revelam exteriormente as agruras de suas vidas interiores.

A Rejeição Feminina
Como The Ballad of the Sad Café foi escrito por uma mulher, não se pode deixar de conferir ao texto
uma interpretação ligada ao gênero. A representação física de Miss Amelia é masculinizada, uma vez que a
personagem, além de ter a aparência máscula, também tem atribuições masculinas. Ela administra o armazém,
cuida da plantação e de suas criações. O negro Jef é o responsável pela limpeza da casa e das refeições de Miss
Amelia. Esse comportamento da personagem é totalmente contrário ao comportamento das mulheres de seu
vilarejo, que cuidam de suas casas, maridos e filhos. Além de não fazer os serviços domésticos, Miss Amelia
ainda paga a um homem para fazê-los para ela.
Broughton (1974) defende que os atributos físicos de Miss Amelia estão ligados à dominação masculina,
sendo assim ela se comporta como homem para exercer essa dominação que exclui as mulheres:
With her father, himself described as a ‘solitary man’, Amelia may have been, despite her six-foot-
two-inch stature, known as ‘Little’ but with everyone else she is the big one, the dominant force.
Amelia is ‘like a man’, then, not because she wears overalls and swamp boots, not because she is six
feet two inches tall (though McCullers does remark that Amelia’s height is indeed ‘not natural for
a woman’), not even because Amelia settles her disputes with men by a wrestling match; Amelia
is ‘like a man’, instead, simply because of her insatiable need to dominate. The assumption here
is that it is masculine to dominate, to force one’s shape upon matter, whereas it is feminine to be
receptive and malleable. In these terms, Miss Amelia is as masculine as Marvin Macy; for we learn
that ‘with all things which could be made by the hands, Miss Amelia prospered (p. 40)3.

Em virtude dessa necessidade de dominar, e se sentir no poder, Miss Amelia gosta de lidar com pessoas
doentes, o que faz com que ela improvise seu escritório como uma espécie de consultório médico: “This Office
was also the place where Miss Amelia received sick people, for she enjoyed doctoring and did a great deal of it”4
(p. 208). Broughton (1974) explica que isso ocorre na medida em que essas pessoas são maleáveis, facilitando
assim a dominação: “With them she can achieve a symbiotic union which confirms her sense of Power even
more than litigations and profit-making do”5 (p. 40). A satisfação de Miss Amelia é tão grande que ela, mesmo,
sendo extremamente materialista, não cobra consulta, pois a sensação de estar no poder já lhe é suficiente.

3. Junto ao pai, que se descrevia como um «homem solitário», Amelia poderia ter sido, apesar de sua estatura de seis pés e duas
polegadas, conhecida como “Pequena”, mas perto de todos os outros, ela é um dos grandes, a força dominante. Amelia é «como
um homem», não porque ela usa macacão e botas de pântano, não porque ela tem seis pés e duas polegadas de altura (embora
McCullers observe que a altura de Amelia de fato ‘não é natural para uma mulher «), nem mesmo porque Amelia resolve seus
conflitos com os homens com uma luta; Amelia é «como um homem», simplesmente por causa de sua necessidade insaciável
de dominar. O pressuposto aqui é de que o masculino é para dominar, para forçar sua forma sobre a matéria, o feminino é
receptivo e maleável. Nesses termos, a senhorita Amelia é tão masculina como Marvin Macy, pois aprendemos que «com todas
as coisas que poderiam ser feitas pelas mãos, a senhorita Amelia prosperou” (Minha tradução).
4. Esse escritório era também onde a Srta. Amélia recebia pessoas doentes; ela adorava dar-se ares de médica, e não faltava
ocasião para isso (Tradução de Caio Fernando Abreu, 2010, p. 30).
5. Com eles, ela pode conseguir uma união simbiótica que confirma seu sentimento de poder ainda mais do que os processos
com fins lucrativos (Minha tradução).

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Contudo, Miss Amelia não é capaz de lidar com problemas femininos, por mais corriqueiros que eles
sejam:
In the face of the most dangerous and extraordinary treatment she did not hesitate, and no
disease was so terrible but what she would undertake to cure it. In this there was one exception.
If a patient came with a female complaint she could do nothing. Indeed at the mere mention
of the words her face would slowly darken with shame, and she would stand there craning her
neck against the collar of her shirt, or rubbing her swamp boots together, for all the world like a
great shamed, dumb-tongued child. But in other matters people trusted her. She charged no fees
whatsoever and always had a raft of patients. (p. 208).6

Neste vilarejo, se um homem mostra seus sentimentos, ele é rotulado como “Morris Finestein”. Morris
Finestein era um judeu que morava no vilarejo e começava a chorar toda vez que era caçoado pelos moradores
que o chamavam de matador de Jesus Cristo. Segundo Broughton (1974), essa referência a Finestein é
importante porque revela o conceito de homem e mulher na cidade. Ou seja, o que é sensível é feminino,
ligado ás mulheres. Broughton esclarece que as virtudes humanas de ternura e sensibilidade são consideradas
exclusivamente femininas e decididamente supérfluas e desprezíveis por uma sociedade pragmática e racionalista.
A psique humana tem sido, então, dividida, ou “fragmentada” em qualidades que são femininas e desprezíveis,
por um lado, e masculinas e admiráveis, por outro.

Assim no texto de McCullers, o narrador explica “(…) if a man were prissy in any way, or if a man ever
wept, he was known as a Morris Finestein” (p. 202)7.

A Solidão e o Amor
The Ballad of the Sad Café narra o “triângulo amoroso” entre Miss Amelia, Cousin Lymon e Marvin Macy
e como o amor e a traição alteram o comportamento de Miss Amelia.

O amor é um tema bastante recorrente nos textos de Carson McCullers. Conforme Vaughan (1999),
os personagens da ficção dessa autora frequentemente são andróginos ou deficientes físicos, o que revela
a incapacidade de o amor físico completar as necessidades emocionais do ser humano. Vaughan cita
McCullers:
O amor, e principalmente o amor de uma pessoa que é incapaz de dar ou de receber amor,
constitui a razão da minha seleção de personagens grotescos sobre os quais eu escrevo – pessoas
cuja incapacidade física se torna um símbolo da sua incapacidade de amar ou receber amor – seu
isolamento espiritual (1999, p. 51).

De acordo com Vickery (1960), o padrão arquetípico do amor é apresentado na sua forma mais clara e
simples em The Ballad of the Sad Café. O autor explana que cada um dos três personagens principais assume
sucessivamente a função de amante e amado. Cada um, então, é por sua vez um escravo e um tirano, dependendo
se ele é o amante ou o amado. A recusa ou a incapacidade dos personagens de sincronizar suas mudanças de
função produz os triângulos entrelaçados românticos que constituem a trama, enquanto a comédia grotesca
surge cada vez mais em conformidade com o papel que desdenhosamente foi rejeitado pelo outro.

Ao longo do texto, a autora diferencia o amante (lover) do amado (beloved), discorre acerca da diferença
entre os dois e explica como o amor pode ser uma experiência solitária:

6. Frente ao mais perigoso e extraordinário tratamento, ela não hesitava, e não havia doença, por mais terrível que fosse, que
ela não curasse. Só havia uma exceção: os problemas femininos. A qualquer menção deles, a Srta. Amélia ruborizava-se e ficava
desnorteada, enfiando um dedo entre o pescoço e a gola da camisa, esfregando as botas e parecendo uma menina grande muda
de vergonha. Mas, para qualquer outro assunto, o povo confiava nela. Não cobrava consultas, todavia, e tinha sempre uma
multidão de clientes (Tradução de Caio Fernando Abre, 2010, p. 31).
7. (...) se um homem parecia de alguma forma delicado demais, ou se chorava, era chamado de Morris Finestein (Tradução de
Caio Fernando Abreu, op. cit., p. 21).

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First of all, love is a joint experience between two persons – but the fact that it is a joint experience
does not mean that it is a similar experience to the two people involved. There are the lover and
the beloved, but these two come from different countries. Often the beloved is only a stimulus
for all the stored-up love which has lain quiet within the lover for a long time hitherto. And
somehow every lover knows this. He feels in his soul that his love is a solitary thing. He comes to
know a new, strange loneliness and it is this knowledge which makes him suffer. So there is only
one thing for the lover to do. He must house his love within himself as best he can; he must create
for himself a whole new inward world – a world intense and strange, complete in himself.
Now, the beloved can also be of any description. The most outlandish people can be the stimulus
for love. (…)The beloved may be treacherous, greasy-headed, and given to evil habits. Yes, and
the lover may see this as clearly as anyone else – but that does not affect the evolution of his
love one whit. (…)Therefore, the value and quality of any love is determined solely by the lover
himself.
It is for this reason that most of us would rather love than be loved. Almost everyone wants to be
the lover. And the curt truth is that, in a deep secret way, the state of being beloved is intolerable
to many. The beloved fears and hates the lover, and with the best of reasons. For the lover is
forever trying to strip bare his beloved. The lover craves any possible relation with the beloved,
even if this experience can cause him only pain.”8 (p. 216)

Broughton (1974) esclarece que, como amante, cada um é escravo; como amado, cada um é tirano.
Ninguém pode atingir uma relação humana satisfatoriamente equilibrada. Ele/ela não pode amar sem sacrificar
a sua própria integridade individual, nem pode ser amado/amada sem exercer o seu poder e superioridade.
Seu problema resulta diretamente do pressuposto de que alguém se aproxima de uma relação humana só para
explorar, não para desfrutar. Os personagens – Miss Amelia, Marvin Macy e Primo Lymon – não podem
superar um sistema de valores em que é melhor subjugar a compartilhar, melhor usar do que amar.
Vickery esclarece como o amante (lover) realmente se sente “Moved by his desire to break out of his isolation,
to communicate and share his thoughts and experience, to become part to another person, a group, or the world, the
lover finds only a new and more intense loneliness” (1960, p. 14)9 .
Para Presley (1972), McCullers baseia-se numa visão de homem, informada pelo potencial redentor do
amor. As criações grotescas de McCullers partem da hipótese de que não existe uma norma contra a qual as
aberrações de seus personagens devem ser julgadas. Ela, então, conclui que McCullers enfatiza a escuridão da
vida sem a luz do amor.
Além do tema amor, encontra-se ainda o tema da solidão, ou como a própria escritora prefere, isolamento
espiritual. A motivação para a exploração desse tema é revelada pela autora nos seguintes termos: “Imagino que
o tema central dos meus escritos seja o de isolamento espiritual... eu sempre me senti sozinha” (McCULLERS
apud VAUGHAN, 1999, p.51).

8. Antes de mais nada, o amor é uma experiência conjunta entre duas pessoas, mas o fato de ser uma experiência conjunta
não significa que seja uma experiência semelhante para as duas pessoas envolvidas. Há o amante e o amado, e cada um vem
de mundos diferentes. Muitas vezes, o amado é apenas um estímulo para todo amor que, até então, permaneceu guardado no
amante. E, de alguma forma, todo amante sabe disso. Ele sente em sua alma que o amor é uma coisa solitária. Ele aprende a
conhecer uma nova e estranha solidão, e é este conhecimento que o faz sofrer. Portanto, há somente uma coisa que o amante
pode fazer. Ele deve abrigar o seu amor dentro de si, da melhor maneira que conseguir; deve criar para si mesmo um mundo
interior totalmente novo, um mundo intenso e estranho, completo em si mesmo.
O ser que é amado também deve ser descrito. As pessoas mais inesperadas podem servir de estímulo para o amor. (...) O
ser amado pode ser trapaceiro, estúpido e cheio de maus hábitos. Sim, e o amante verá seus defeitos tão claramente quanto
qualquer outra pessoa. Mas isso não afeta a evolução do seu amor. (...) Portanto, o valor e a qualidade de qualquer amor só
podem ser determinados pelo próprio amante.
Por essa razão, a maioria de nós prefere amar a ser amado. Quase todas as pessoas querem ser amantes. E a dura verdade é
que, secretamente, a condição de ser amado é insuportável para muitos. O amado teme e odeia o amante, e com toda razão.
O amante necessita desesperadamente da relação com o amado, mesmo que essa experiência não lhe cause senão sofrimento
(Tradução de Caio Fernando Abreu, op. cit., p. 42-43).
9. Movido pelo desejo de sair de seu isolamento, de se comunicar e compartilhar seus pensamentos e experiências, para se
tornar parte de uma outra pessoa, um grupo, ou do mundo, o amante só encontra uma nova e mais intensa solidão (Minha
tradução).

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Em The Ballad of the Sad Café (1998) essa solidão é explicitamente marcada. Já no início da narração a
cidade é descrita como melancólica e solitária:
The town itself is dreary; not much is there except the cotton mill, the two-room houses where
the workers live, a few peach trees, a church with two colored windows, and a miserable main
street only a hundred yards long. On Saturdays the tenants from the nearby farms come in for
a day of talk and trade. Otherwise the town is lonesome, sad, and like a place that is far off and
estranged from all other places in the world (p.197)10.

Broughton (op. cit.) acredita que a apresentação da cidade dessa maneira e a descrição das construções
como arruinada e sem cuidados simboliza que a vida continua, mesmo depois de todo o sofrimento que
Miss Amelia passou. De acordo com ela, essa descrição nos dá a impressão de que a cidade em si é grotesca,
deformada por seu isolamento e que o edifício, com a sua aparência rachada, sua construção em ruínas, e sua
fachada coberta com tábuas, podem servir como símbolo de que a vida continua. A individualidade significa
apenas confinamento na solidão do próprio coração.
Nas obras de Carson McCullers percebe-se, então, que a solidão não é algo exclusivamente dos personagens,
mas de todo o cenário, de todo o contexto. A atmosfera parece melancólica em virtude dessa solidão que assola
cada linha de seus textos. De acordo com Broughton (op. cit.), em The Ballad of the Sad Café, o ambiente em
si serve como metáfora para o isolamento espiritual que a escritora norte-americana explora em sua escrita.
A solidão afeta também a população da cidade. Com a chegada de Primo Lymon, sua facilidade de se
comunicar com as pessoas e Miss Amelia tornando-se mais sociável devido à chegada do corcunda, tudo isso
faz com que o armazém passasse a ser um café. Nesse lugar, as pessoas se reuniam para conversar. Mas essa
reunião era voluntária, porque do contrário reuniam-se na fábrica para trabalhar ou em piqueniques da igreja.
Eram educados e tímidos, reflexo da falta de costume de se relacionar com as outras pessoas pelo simples
prazer de uma conversa: “For people in this town were then unused to gathering togehter for the sake of pleasure”
(McCULLERS, 1998, p. 213)11.
A personagem principal, Miss Amelia, é uma mulher solitária. O pai falecera quando ela tinha apenas 19
anos e a mãe não é mencionada. Ela não possui irmãos e não há menção a familiares próximos, com exceção
de um primo distante, porém os dois não têm uma relação de afetividade: “Miss Amelia ate her Sunday dinners
by herself; her place was never crowded with a flock of relatives, and she claimed kin with no one” (p. 200-201)12.
Broughton (op. cit) afirma que McCullers acreditava que precisamos uns dos outros e que atingimos
nossa individualidade através da convivência e do dar e receber nas relações humanas. Assim, ela apresenta
uma cidade não identificada no Sul dos Estados Unidos e uma mulher que juntas quase conseguem escapar
da solidão.
Ao longo da leitura em questão é possível surpreender-se com o comportamento de Miss Amelia, uma vez
que ela é apresentada no início como uma mulher austera, mas com a chegada do Primo Lymon ela torna-se
mais flexível e suporta ainda a presença de seu ex-marido, Marvin Macy. Ela tolera situações que o leitor não
acreditaria serem possíveis depois de ler sua descrição inicial. Miss Amelia aceita, inclusive, que Marvin vá
morar em sua casa, mesmo depois de ter passado anos afirmando que ele jamais colocaria os pés lá novamente.
E para surpreender ainda mais o leitor, ela dorme no sofá, de maneira bastante desconfortável, já que é uma
mulher enorme, enquanto seu ex-marido dorme muito bem no quarto que foi do pai de Miss Amelia. No
entanto, esse comportamento é explicado:

10. A própria cidade é melancólica. Não há muita coisa nela além da fábrica de algodão, das casas de duas peças onde vivem os
operários, alguns pessegueiros, uma igreja com dois vitrais coloridos e uma miserável rua principal, medindo apenas uns 100
metros. Aos sábados, os rendeiros das fazendas próximas vêm fazer compras e conversar. Fora isso, a cidade é solitária e triste,
parece um lugar estranho, distante de todos os outros lugares do mundo (Tradução de Caio Fernando Abreu, op. cit., p. 13).
11. Acontece que, naquela cidade, as pessoas não estavam acostumadas a ficar juntas por puro prazer (Tradução de Caio
Fernando Abreu, op. cit., p. 38).
12. Srta. Amélia comia sozinha até nos domingos, sua casa nunca era invadida por uma manada de parentes, ela não se
importava com eles (Tradução de Caio Fernando Abreu, op. cit., p. 18).

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But still she did not put Marvin Macy off the premises, as she was afraid that she would be left
alone. Once you have lived with another, it is a great torture to thave to live alone. The silence of
a firelit room when suddenly the clock stops ticking, the nervous shadows in an empty house – it
is better to take in your mortal enemy than face the terror of living alone (p. 244).13

Desse modo, entende-se, então, o quão sofrida é a solidão e como é difícil, mesmo em meio ao sofrimento
de uma convivência que não é positiva para as partes envolvidas, abrir mão dessa companhia nefasta. Miss
Amélia, mesmo não estando satisfeita com a presença de seu ex-marido em sua casa, não o expulsa pelo medo
aterrorizante de ficar sozinha novamente.

Conclusão
Como apontado neste trabalho, em The Ballad of the Sad Café, o grotesco, o amor, o ódio e o isolamento
espiritual estão interligados de forma tão emaranhada que é impossível rompê-los, entendendo-se assim que
um não pode existir sem o outro. Para Kohler (1951) o texto de McCullers é uma história impressionante,
porque é preciso lançar um olhar longo e constante para a maldade moral que é também o mal obsessivo e
devorador da sociedade moderna, o isolamento do amor e da solidão.
McCullers, diferentemente de outros autores, mostra um amor conturbado, confuso, que nasce de onde
menos se espera. Ela mostra ainda a força do amor para mudar alguém, como quando Marvin Macy torna-se
uma pessoa melhor quando está apaixonado por Miss Amelia: “And love changed Marvin Macy” (p.217)14.
Mas, por outro lado, a autora revela também a força do ódio motivado por um amor não correspondido:
Marvin torna-se pior do que era antes, devido à rejeição de Amelia.
Enfim, ler The Ballad of the Sad Café é não se chocar com a representação grotesca ou a falta de caráter
de alguns de seus personagens e nem esperar por um “final feliz”: é encantar-se com a busca do amor e da
aceitação, através da solidão.

Referências
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27 mai. 2011.
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Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/372354>. Acesso em: 27 mai. 2011.
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MISKOLCI, Richard.Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

13. Mesmo assim, não expulsava Marvin Macy de casa, como se tivesse medo de ficar sozinha. Quando se viveu com alguém,
é uma grande tortura voltar a viver só. O silêncio de um quarto onde arde um fogo, quando de repente para o tique-taque do
relógio, as sombras nervosas de uma casa vazia... É melhor cair nas mãos do pior inimigo do que enfrentar o terror de viver só.
(Tradução de Caio Fernando Abreu, op. cit., p. 86-87).
14. E o amor mudou Marvin Macy (Minha tradução).

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Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/1207136>. Acesso em: 27 mai. 2011.

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Desterritorialização e pertencimento:
o sujeito feminino contemporâneo

SANTOS, Ana Cristina dos (UERJ)


anacriss@terra.com.br

Encontrar um lugar supõe tanto um exercício de verificação como de imaginação.


(MONTALDO G., 2004, p. 144)

RESUMO Este trabalho objetiva discutir como as narrativas contemporâneas problematizam a presença da
mulher em um contexto globalizado e de que maneira os deslocamentos espaciais modificam e,
consequentemente, redefinem os sujeitos femininos. Para tanto, analisam-se o conto “Muslim:
Woman” (2003), de Marilene Felinto, e o fragmento do romance Algum Lugar (2011), de Paloma
Vidal, cujas temáticas enfocam a mobilidade espacial, questões de gênero e de identidade em um
mundo global e cosmopolita. Os textos de Felinto e Vidal permitem discutir essas questões ao pro-
blematizar as diferenças socioculturais entre o sujeito feminino e o outro. Porém, enquanto o texto
de Felinto privilegia o encontro dialógico das diferenças em um contexto multicultural e multiét-
nico; o de Vidal enfoca a incompreensão marcada pela não identificação de tais diferenças. Para a
análise proposta, utilizam-se os textos de Almeida (2010), Hollanda (2005) e Shohat (2004) sobre as
relações de gênero; de Toro (2010) e Bauman (2006) para as noções de espaço e deslocamento e Hall
(2005) para as questões das identidades na contemporaneidade.
Palavras-chave: espaços contemporâneos, deslocamento, gênero, identidade.

RESUMEN Este trabajo objetiva discutir cómo las narrativas contemporáneas problematizan la presencia de
la mujer en un contexto globalizado y de qué manera los desplazamientos espaciales cambian y,
consecuentemente, redefinen los sujetos femeninos. Para tanto, se analizan el cuento “Muslim: Wo-
man” (2003), de Marilene Felinto, y el fragmento de la novela Algum Lugar (2011), de Paloma Vidal,
cuyas temáticas enfocan la movilidad espacial, cuestiones de género y de identidad en un mundo
global y cosmopolita. Los textos de Felinto y Vidal permiten discutir esas cuestiones al problema-
tizar las diferencias socioculturales entre el sujeto femenino y el otro. Sin embargo, mientras, el
texto de Felinto privilegia el encuentro dialógico de las diferencias en un contexto multicultural y
multiétnico; el de Vidal enfoca la incomprensión marcada por la no identificación de dichas diferen-
cias. Para el análisis propuesto, se utilizan los textos de Almeida (2010), Hollanda (2005) y Shohat
(2004) sobre las relaciones de género; de Toro (2010) y Bauman (2006) para las nociones de espa-
cio y desplazamiento y Hall (2005) para las cuestiones de las identidades en la contemporaneidad.
Palabras-clave: espacios contemporáneos, desplazamiento, género, identidad.

Deslocamentos, identidade e gênero


O ser humano transita de um lugar a outro desde os primórdios da civilização. E registra esses deslocamentos
em relatos destinados a representar o encontro com o diferente, com o outro. O deslocamento, enquanto
viagem, trânsito “desvenda alteridades, recria identidades e descortina pluralidades” (IANNI, 2000, p. 14).
Assim, deslocar-se acarreta uma transformação pessoal, que ocorre basicamente no contato com o outro, em
uma experiência de profunda mudança. Desse modo, torna-se impossível desvincular os relatos oriundos
dos deslocamentos das questões identitárias, pois no encontro com o outro, a identidade está sempre em um
constante processo de reconfiguração.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Essa relação explica o fato de as identidades estarem no centro das discussões culturais contemporâneas,
já que os deslocamentos – sejam por questões políticas, econômicas, culturais ou militares – transformaram-se
na nova condição da humanidade (TORO, 2010, p. 08) e parecem caracterizar o momento atual denominado
de globalização. Desse modo, identidade e espaço são conceitos imbricados na experiência dos sujeitos em
trânsito da contemporaneidade. As identidades afetam e são afetadas pelos deslocamentos. Com isso, os relatos
atuais trazem em seu cerne personagens em constante movência, desterritorializados, conscientes de que o
pertencimento é algo temporário e a identidade um conceito em transformação e, portanto, negociável. Ao
longo de todo a narrativa, esses personagens caracterizam-se por uma busca constante a fim de se redefinirem,
ou de (re)inventarem as próprias histórias.

Nesse contexto globalizado, em que o trânsito parece ser a experiência humana por excelência, a crítica
feminista de origem indiana Gayatri C. Spivak (1996 apud ALMEIDA, 2010, p. 13) argumenta que um dos
fatores que diferencia o que denomina de nova diáspora contemporânea das diásporas anteriores é a maciça
presença do sujeito feminino, sua participação e seu papel na sociedade. A autora ressalta assim, o caráter
gendrado dessa nova diáspora. Para ela, a presença da mulher tanto nos movimentos migratórios quanto nas
narrativas diaspóricas cria novas significações aos contatos culturais, em um diálogo constante com as questões
de raça, etnia e classe.

A crítica brasileira Heloísa Buarque de Holanda, desde 2005, também já ressaltava essa relação entre
os estudos de gênero e a globalização nos estudos críticos brasileiros ao indagar: “Como estaria respondendo
a área dos estudos de gênero ao impacto da globalização?” (2005, p. 03). Em seu texto, ela reflete sobre o
impacto do contexto global e multicultural da contemporaneidade nos estudos sobre o feminino e enfatiza que
os problemas advindos desse novo contexto “... de certa forma nos fazem renegociar as certezas e prioridades
das agendas teóricas feministas” (2005, p. 01).

A participação da mulher na sociedade contemporânea global faz que várias escritoras desloquem a suas
narrativas do espaço doméstico, privado e às vezes autobiográfico para o espaço urbano e social, em consonância
com esse novo momento sociocultural. Por tal motivo, é necessário discutir como as narrativas contemporâneas
de autoria feminina problematizam a presença da mulher nesse contexto globalizado e de que maneira os
deslocamentos espaciais modificam e, consequentemente, redefinem os sujeitos femininos. Essas reflexões
redirecionam a análise do sujeito feminino e os lugares de onde ele fala, abarcando as novas contingências
políticas, culturais e geopolíticas de um mundo global e cosmopolita, do qual são marcas predominantes a
diáspora; a desterritorialização e reterritorialização; o entre-lugar e o hibridismo cultural. Marcas facilmente
encontradas nas experiências vividas pelas escritoras como sujeitos da diáspora contemporânea e que se
espelham em suas práticas narrativas.

Sob os efeitos dessas novas contingências, as narrativas escritas pelo sujeito feminino diaspórico retratam
as diversas maneiras de viver e transitar na contemporaneidade, enfocando a relação entre espaço e construção
identitária. As autoras representam personagens que habitam os não-lugares e os entre-lugares provenientes dos
espaços de movência, em um processo constante de desenraizamento. Com isso, as personagens experimentam
pertencimentos fluidos, identidades móveis, híbridas e traduzidas1, já que os espaços de transições requerem
que o sujeito se remodele, através de (re)negociações identitárias contínuas.

Nesse espaço múltiplo e diversificado, de constantes deslocamentos e renegociações identitárias se inserem


o conto “Muslim: Woman” de Marilene Felinto (2003) e o fragmento do romance Algum lugar (2011) de
Paloma Vidal2, cujas temáticas enfocam a mobilidade espacial, as questões de gênero e de identidade em um
mundo global e cosmopolita.

1. Conforme o conceito de Tradução desenvolvido por Stuart Hall (2005, p. 87-9).


2. VIDAL, Paloma. Algum Lugar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. A parte que ora analisamos trata-se apenas de um pequeno
fragmento que compõe a obra de Wanderley (2011), conforme a referência no final do trabalho. Nossa análise centra-se apenas
nesse fragmento.

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Os lugares, os não-lugares e os entre-lugares da contemporaneidade


As duas narrativas analisadas têm em comum o espaço urbano e social das cidades cosmopolitas, porém
não um espaço qualquer, mas especificamente os espaços públicos: o aeroporto no conto de Felinto e a
universidade na narrativa de Vidal3. Segundo Bauman (2006, p.104), os espaços públicos são lugares que as
pessoas compartilham – como pessoas públicas – ou seja, nesse espaço, o individuo pode interagir sem que seja
obrigado a “... retirar a máscara, soltar-se, expressar-se, confessar seus sentimentos, sonhos ou preocupações
mais profundos”4. Enfim, nos espaços públicos as pessoas não interagem nem com o espaço e nem entre si.
Nesses lugares elas não precisam ser e nem mostrar as suas verdadeiras identidades.
Nas cidades contemporâneas há muitos lugares que recebem o nome de espaços públicos. Podem ser
de diversas maneiras, mas, ainda segundo Bauman (2006, p.104), pertencem as categorias de civis e não-
civis. O espaço civil é aquele onde as pessoas podem compartilhar e interagir como pessoas públicas; sem ser
possível a iniciativa individual. O segundo, o espaço público não-civil, divide-se em duas categorias: os que não
estimulam a permanência e os que estão destinados a prestar serviços aos consumidores e neles não se mantém
nenhum tipo de interação social, pois “são espaços que instam à ação e não à interação” (2006, p. 105).
Nas narrativas, os espaços urbanos e sociais são os públicos, por isso, de aglomeração de pessoas de diversas
procedências e que, em maior ou menor escala, não estimulam a permanência, pois são lugares de passagem.
A escolha desses espaços como o lugar de ação das narrativas não nos parece casual, já que eles simbolizam os
espaços de movência, em que o encontro com o diferente, com o outro é inevitável. Neles, as protagonistas se
deparam com as diferenças e reconfiguram suas identidades.
Na narrativa de Felinto, o espaço do aeroporto simboliza também um espaço público muito particular: o
não-lugar. Nas cidades cosmopolitas, esse é um espaço inqualificável criado para o contínuo deslocamento, nos
quais há perda de vínculos sociais e da identidade pessoal. Os não-lugares ganham cada vez espaço nas urbes
contemporâneas, e os seus habitantes paulatinamente migram para eles. No não-lugar o sujeito está só, ainda
que esteja rodeado de vários outros. Esse espaço não induz nem a relação nem a interação, pois o sujeito tem
sua conduta em público limitada por um número reduzido de regras simples e de fácil aprendizagem que ele
deve seguir, como nos esclarece Bauman (2005, p. 111):
Os não-lugares [...] desalentam qualquer ideia de “permanência”, impossibilitando a colonização
ou domesticação do espaço. [...] os não-lugares aceitam a inevitabilidade de uma permanência
prolongada de estranhos, de modo que esses lugares permitem a presença “meramente física”
– ainda que diferenciando-a muito pouco da ausência de seus “passageiros”, já que anulam,
nivelam ou esvaziam-se de toda subjetividade idiossincrática. Os residentes temporários dos não-
lugares variam, e cada variedade tem seus próprios hábitos e expectativas: o truque consiste em
transformá-los em irrelevantes durante o tempo de sua estada (grifo do autor).5

A falta de interação do sujeito característica do não-lugar permeia toda a narrativa de Felinto: a protagonista
não consegue interagir com o marido e tampouco com o espaço. A não interação com o espaço do aeroporto
aumenta a sensação do não pertencimento, de que ela não deveria estar ali, em um lugar desconhecido e em
um ambiente com o qual não consegue interagir. O único momento de interação ocorre quando vê uma
mulher mulçumana tão diversa e ao mesmo tempo tão semelhante a ela e na interseção do igual e do diferente,
reencontra a si própria.
Na narrativa de Vidal, o espaço do não-lugar está representado pelo ônibus no qual circula a protagonista.
Nos deslocamentos da personagem de sua casa para a universidade, o ônibus se transforma no espaço da
espetacularização, no qual vê os Outros, sem interagir com eles ou com o espaço, pois estão ali apenas para
serem observados – tal como ela própria: “Enquanto a paisagem urbana, passa pela janela, faço parte desse
microcosmo provisório, sentada no meu banco como uma estátua viva” (VIDAL, 2011, p. 175. Grifos nossos).
3. Cabe ressaltar que o romance de Vidal inicia-se com a chegada da protagonista no mesmo espaço público presente no conto
de Felinto: o aeroporto (nesse caso o de Los Angeles).
4. Todas as citações de Bauman são traduções livres da autora do trabalho.
5. Tradução livre da autora do trabalho.

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A sensação de não-pertencimento com o espaço urbano também é um sentimento constante para protagonista
do romance de Vidal. Ela não consegue interagir com uma cidade que não reconhece como sua, por isso, a
sensação de estar ali provisoriamente. Seus espaços na cidade são o ônibus – o não lugar- e espaço público da
universidade que não lhe permitem a criação de vínculos.
Na obra, a universidade se configura como o espaço intercultural, o entre-lugar em que se anulam as
fronteiras tradicionais e se entrecruzam as diversas nacionalidades e vozes presentes na narrativa. Nos espaços
heterogêneos da cidade de Los Angeles, circulam as personagens desterritorializadas e traduzidas da obra –
pela cultura do local de origem e a do destino –, definidas pelas diásporas internas como o zelador que vive
em Los Angeles, mas é do Tennessee e pelas diásporas externas, como a protagonista que veio do Brasil, mas é
argentina; a coreana Lucy e suas amigas também coreanas; a vizinha colombiana; a motorista guatemalteca do
ônibus da universidade. Nos entre-lugares da cidade, especialmente na universidade, destacam-se os choques
identitários da protagonista com os sujeitos desterritorializados da narrativa - especificamente com a coreana
Lucy.
A universidade, assim como a cidade de Los Angeles, tem um contexto marcadamente diaspórico e
transnacional. É o espaço da diversidade que representa o microcosmo multiétnico e multicultural da cidade
cosmopolita norte-americana. Sob essa perspectiva de heterogeneidade também pode ser compreendido o
espaço do aeroporto – o não-lugar - na narrativa de Felinto, pois nele circulam pessoas de diversas culturas/
etnias: “O aeroporto [...], por onde transitava apressada ou vagarosa gente de variada espécie, árabe, moura,
branca e negra em grande parte” (FELINTO, 2004, p. 230).
Nesses lugares públicos das cidades cosmopolitas, que conformam os não-lugares e o entre-lugares das
narrativas, as personagens se defrontam com as diferenças dentro do próprio gênero. Nos espaços multiétnicos
e multiculturais das cidades, as escritoras questionam a noção de essência cultural e ressaltam o que Shohat
(2004, p. 26) denomina “os encontros dialógicos das diferenças existentes dentro do próprio feminino”. Ao
reunir multiculturalismo e gênero, as narrativas ampliam a visão das personagens para abarcar as diversidades
culturais existentes no termo “feminino”. Mostram que os conflitos identitários provenientes dos encontros
interculturais e sua aceitação – como no conto de Felinto - ou a sua não aceitação – como no conto de Vidal -
modificam o sujeito feminino. Dessa forma, contribuem para as personagens perceberem que suas identidades
se (re)constróem no entre-lugar gerado pelos contatos espaciais e multiculturais entre elas próprias e o Outro.

Identidades deslocadas: encontros com as diferenças


Desde seu título, “Algum lugar”, a narrativa de Vidal apresenta a característica inerente da diáspora
contemporânea: a constatação de que o sujeito está sempre em deslocamento, a procura de um espaço para
estar e, consequentemente, encontrar-se. O caminho percorrido nos sugere a ruptura das fronteiras externas e
internas travada pela protagonista para a compreensão subjetiva de quem ela é. Nessa busca, o encontro com
diferente, o Outro é inevitável. Na obra esse encontro ocorre entre a protagonista e a coreana Lucy, ou seja,
entre uma mulher ocidental e uma oriental. O mesmo ocorre na narrativa de Felinto, cujo título “Muslim:
Woman” remete-nos ao embate identitário proveniente das diferenças culturais entre as mulheres: muslim,
muçulmana, é a Outra oriental, a alteridade com relação à protagonista, mas ao mesmo tempo, ambas se
identificam enquanto gênero, pois são mulheres, woman.
Ao destacar nas narrativas a im/possibilidade de comunicação entre as protagonistas ocidentais e as
antagonistas orientais, as obras vão além das questões de alteridade da escrita feminina impostas pelas marcas
entre os gêneros feminino e o masculino. Essas existem quando as reflexões das protagonistas se centram
na relação entre elas e os companheiros, mas o foco são os encontros multiculturais entre as mulheres, as
diferenças existentes no próprio gênero. Não por coincidência Lucy e a muslim são orientais. A dicotomia
mulher ocidental versus oriental é umas das oposições mais marcantes no feminino, porque está associada
a uma noção de feminino que difere da concepção existente no mundo ocidental. Por isso, ao olhar para a
mulher oriental, o feminino ocidental primeiramente destaca a diferença - o Nós versus o Elas – para depois
procurar as semelhanças.

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Na narrativa de Vidal, o olhar da protagonista enxerga apenas as diferenças, chegando inclusive a apagar
as marcas identitárias de Lucy como indivíduo, para agrupá-la apenas com relação a sua etnia:
Numa das minhas primeiras idas à universidade, fui interpelada por uma moça oriental que
sorriu como se me conhecesse. Fiquei envergonhada quando ela disse que já havíamos sido
apresentadas. Poderia tê-la confundido com qualquer outra entre tantas orientais que estudam ali.
(VIDAL, 2011, p. 175. Grifo nosso).

O encontro entre elas destaca o sentimento de estranhamento da protagonista em relação à Lucy.


Sentimento gerado pela incompreensão das diferenças de uma cultura diferente da sua. Por isso, o relacionamento
estabelecido entre as duas é superficial, não por causa de Lucy que se esforça para estabelecer um contato, mas
pela protagonista que vê a coreana como o Outro, aumentando o distanciamento entre elas. A protagonista
cria uma barreira entre elas e não consegue estabelecer um encontro dialógico com as diferenças de suas
culturas: “Gostaria de ter perguntado de onde ela vem, como veio parar nessa universidade, onde foi que
aprendeu espanhol, mas acabei perguntando somente o seu nome” (VIDAL, 2011, p. 176). Inclusive essa
simples pergunta não estabelece uma identidade para Lucy, pois culmina mais uma vez no apagamento dos
traços identitários da mulher oriental e na homogeneização das suas diferenças, forçando a adaptação da
coreana aos padrões da cultura dominante na obra – a ocidental:
[...] mas acabei perguntando apenas o seu nome. A moça lançou três sílabas incompreensíveis,
devolvendo-me o silêncio constrangedor. Para meu alivio, depois de alguns segundos, acrescentou:
Puedes llamarme Lucy. (VIDAL, 2011, p. 176. Grifo da autora).

Outro traço do distanciamento entre as duas é a língua. Utilizam para se comunicarem um idioma que
não pertence a nenhuma das duas: o espanhol. Esse fato aumenta a sensação de estranhamento da protagonista
com Lucy. O sentimento não ocorre pela incompreensão do idioma espanhol falado por Lucy, pois ela o utiliza
de maneira correta; mas pelo sentimento de não identificação com a situação em si - uma coreana falando
em espanhol: “Enquanto ela falava, eu tentava identificar sem sucesso o quê exatamente impedia que eu
compreendesse com precisão o que ela estava dizendo” (VIDAL, 2011, p. 176).
A protagonista se esforça para manter uma conversa com Lucy, pois é consciente de que a corena,
ao estabelecer um diálogo com ela, rompe com o protocolo da não interação típica do espaço público em
que se encontram. Na abordagem de Lucy, há a possibilidade de compartilhar e interagir, de romper com
a comunicação superficial característica dos ambientes urbanos de Los Angeles. Uma interação necessária
para a protagonista, caracterizada por vivências e relacionamentos deslocados, construir um sentimento de
pertencimento com os espaços pelos quais circula na cidade. A abordagem de Lucy na narrativa é o único laço
da protagonista com o mundo externo - do campus e da cidade - e a única relação estabelecida fora do círculo
instaurado entre ela e o companheiro denominado apenas por M.:
Acho que falei que me parecia interessante, procurando ser simpática com a primeira pessoa que
resolvia estabelecer um contato comigo para além das saudações protocolares, mas sem saber
como encadear a conversa a partir do ponto em que ela a deixava (VIDAL, 2011, p. 176).

O fato de a protagonista não saber como continuar a conversa demonstra que a comunicação entre elas
está fadada ao fracasso pela diversidade cultural. A protagonista, ainda que sinta a necessidade de manter o
diálogo com Lucy, não consegue ultrapassar o olhar essencialista no que se refere à outra. A incompreensão
gerada pela protagonista destaca e aumenta as diferenças culturais que as separam, impossibilitando o encontro
dialógico entre ela e Lucy, entre ela e a cidade e entre ela e o companheiro. Frente a tal impossibilidade de
comunicação, resta-lhe apenas buscar outro lugar para encontrar-se: “Depois de alguns momentos, ele se
levantou e sentou-se ao meu lado. Me descobriu e olhou para mim: “Você que voltar?” (VIDAL, 2011, p.
178).
A incompreensão das diferenças culturais não ocorre no conto de Felinto. Em um primeiro momento,
o olhar trocado entre protagonista e a muslim está fixado pela alteridade: “De modo que, perdida como
eu estava, não me restava senão desprender dela o meu olhar fixo e olhá-la na contrapartida, como mulher

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livre e liberada que eu era” (FELINTO, 2004, p. 235). Entretanto, esse olhar se desvanece à medida que a
protagonista percebe que pertencerem a culturas diferentes não é motivo para distanciá-las, pois compartilham
de uma história comum de luta e opressão de gênero que as une sobre quaisquer diferenças culturais. Com essa
percepção, instaura a identificação e a possibilidade de um diálogo entre elas, que se estabelece também através
do olhar e não só pela troca de algumas frases.
Em ambos os contos, a sensação de não-pertencimento e os choques identitários não ocorrem somente
pelas relações dentro do gênero, decorrem também dos conflitos existentes nas relações entre os gêneros.
Os deslocamentos sofridos pelas protagonistas intensificam esses conflitos. As protagonistas ressaltam a
incapacidade dos companheiros de compreendê-las e enxergá-las como elas realmente são: “O sentimento da
distância me apavora, entende? Não, ele nunca entendia.” (VIDAL, 2011, p. 177) e “[...] aquilo ia aos poucos
anulando minha existência, numa prova cabal de que ele não me via” (FELINTO, 2004, p. 229). Os conflitos
gerados pelos seus relacionamentos contribuem para as personagens questionarem suas próprias histórias de
vida, a fim de se redefinirem: “Olhei sinceramente para ele em certo momento, com toda a minha boa vontade,
procurando me encontrar na cara e na vida dele” (FELINTO, 2004, p. 229).
As situações de deslocamentos vividas pelas personagens geram também os conflitos provenientes dos
contatos interculturais dento do gênero e da ruptura do modo de agir nos espaços públicos. Esses conflitos
ganham espaço na narrativa e se sobrepõem aos conflitos individuais e sentimentais. Desse modo, desloca-se
a percepção de mundo das protagonistas do espaço sentimental e individual para o espaço público, lugar que
durante muito tempo foi negado à mulher.
No texto de Felinto, a protagonista informa sua inadaptação à exposição pública. Necessita a discrição
inerente às mulheres para que os outros não a vejam e notem que ela é apenas um espectro (como todas as
demais mulheres!). Por isso, a sensação de desconforto no aeroporto africano enquanto espera para fazer uma
escala. Nesse espaço, tudo na protagonista se destaca: as malas, sua roupa, a cor da pele, o cabelo. A exposição
no aeroporto contrasta com o apagamento de seu ser – afinal ninguém, nem mesmo o marido a enxergava.
Culpa o marido por sua exposição pública, já que ele escolheu as malas com as rodas e planejou a escala no
aeroporto: “Tudo isso queria dizer, enfim, que até isto ele tinha feito contra mim: me exposto ao ridículo de
que todos soubessem que eu não passava de um fantasma” (FELINTO, 2004, p. 232)
A transformação da protagonista de espectro a sujeito ocorre na narrativa pelo olhar da mulher oriental, a
muslim – o outro do mesmo gênero- e não pelo olhar do marido ou dos homens que transitam pelo aeroporto.
Ao retribuir o olhar, a protagonista só estabelece uma relação de alteridade. Observa apenas a diferença entre
elas marcada pela indumentária: ela, com uma roupa que mostrava mais que cobria e a muslim coberta da
cabeça aos pés com turbante, véu e manto negros. Porém, compreende quase que imediatamente que as roupas
não as separam, pois revelam “a viúva negra que havia em todas as mulheres” (FELINTO, 2004, p. 236). A
constatação as iguala e se sobrepõe as diferenças, pois a muslim é uma mulher como ela própria. Com essa
conscientização, a protagonista contradiz a afirmação feita no início do conto e se mostra a quem realmente
pode entendê-la como mulher: “Se eu quisesse ser vista, precisava me mostrar. Mas, como isso eu não faria por
ninguém no mundo, nem faria por mim, quem quisesse que me visse, se quisesse me ver” (FELINTO, 2004,
p. 229).
E a muslim quis. Ela não somente vê a protagonista, vai além: a olha com especial atenção. O ato de
olhar da muslim dilui o apagamento que os demais infligia à protagonista, já que olhar é perceber, existir,
ser. A protagonista passa a ser sujeito de si própria, pois o olhar da Outra, sustentado e compartilhado pela
protagonista, abre-se para o interior, despe-se de todos os pré-conceitos. Sob esse olhar, a protagonista se mostra,
deixando que a outra e ela própria possam vê-la como ela realmente é. Esse olhar causa uma cumplicidade
somente compartilhada por alguém do mesmo gênero:
Mas como eu era apenas outra mulher, minha vontade era de perguntar se ela seria minha
confidente, se guardaria por trás daquele manto todos os que eu lhe contasse, e se me diria,
também em segredo, como era que ela se despia de noite- se era diante do marido e se ela a via.
(FELINTO, 2004, p. 236).

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Nesse encontro, a língua estrangeira utilizada para compartilhar umas poucas frases não se torna um
empecilho, como no conto de Vidal. O uso da língua inglesa – compreendida pelas duas – contribui para
construir uma identidade de gênero não marcada pelo essencialismo: “Feliz com que tivéssemos uma identidade,
aquele código secreto em língua estrangeira, duas mulheres tão diferentes que éramos” (FELINTO, 2004,
p. 237). Através da compreensão das diferenças e das semelhanças entre elas, a protagonista que no início do
conto afirmava que “estava fazendo bolinho com a sua vida” (FELINTO, 2004, p. 229) se reencontra consigo
mesmo e com a sua relação com o marido. E sai quase que feliz do aeroporto, não sem antes se despedir da
muslim e receber dela “o mais lindo sorriso de mulher que já me deram” (FELINTO, 2004, p. 239).

Considerações finais
Ao construir personagens que se deslocam para fora do ambiente privado, Vidal e Felinto exploram a
literatura como uma prática política e social que visibiliza a mulher como parte constitutiva da sociedade
cosmopolita e ao mesmo tempo questiona o papel das mulheres no cenário social e geopolítico do mundo
globalizado. Desse modo, deslocam as obras exclusivamente do espaço sentimental e privado para o público e
das relações entre os gêneros para as relações dentro do próprio gênero, dialogando com as questões de etnia.
Também enfocam as contradições do mundo cosmopolita e globalizado ao representar personagens
femininas descentradas e moventes. As protagonistas dos contos estão tangenciadas pelas relações interculturais
provenientes contatos multiétnicos e multiculturais ocorridos nos espaços públicos das cidades cosmopolitas.
Processos que as obrigam a negociar constantemente com os sujeitos femininos das novas culturas em que
se encontram e a renegociarem as suas subjetividades e o seu lugar nesse espaço social. Assim, desconstroem
a identidade subjetiva e homogeneizante preestabelecida para elas e adquirem, como consequência de seus
deslocamentos, uma subjetividade que reflete as heterogeneidades presentes em seus seres.

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Do silenciamento à agência: a representação feminina
em A Distância entre Nós, de Thrity Umrigar

BRINCK, Gaia (UFSJ)


gaiabrinck@gmail.com
OLIVEIRA, Luiz Manoel Da Silva (UFSJ)
luizmanoel@ufsj.edu.br

RESUMO O romance A Distância entre Nós (2006), da escritora indiana-americana Thrity Umrigar, enfatiza a
opressão na Índia contemporânea das protagonistas e a maneira com que lidam com as diferentes
formas de violência na história e com as distinções de várias ordens existentes entre elas. As mul-
heres indianas retratadas são oprimidas de várias formas, e os valores individuais, constituídos e
reafirmados por uma vida inteira de preconceitos sobrepõem-se à amizade das protagonistas Se-
rabai e Bhima e se tornam pontos a considerar no estudo. Assim, a análise é centrada nos eventos
envolvendo as personagens, ao propor um estudo a respeito da representação que Umrigar faz da
opressão patriarcal, do silenciamento imposto às mulheres e das formas de agência que as perso-
nagens apresentam no enredo. Desse modo, tais circunstâncias em A Distância entre Nós podem
ser analisadas com o concurso das teorias feministas e pós- coloniais. Para fundamentar o trabalho,
foram considerados elementos da cultura e literatura indianas, os referenciais teóricos da crítica
pós-colonial e das teorias feministas.
Palavras-chave: opressão, patriarcalismo, Thrity Umrigar, Índia.

ABSTRACT The novel The Space Between Us (2006) by Indian-American female writer Thrity Umrigar emphasi-
zes India’s contemporary overwhelming environment in which the female protagonists live, as well as
the way they deal with the many forms of violence against women in this story, and with the differen-
ces in so many levels between them. The Indian women portrayed in the story are oppressed in several
ways, so that the individual values constituted and reaffirmed by a whole life of prejudices supplant
the friendship between the protagonists, Serabai and Bhima. Thus, such values are to be scrutinized in
this analysis, which will center upon the events involving them. This paper intends to research about
Umrigar´s representation of patriarchal oppression,, the silence imposed on women, and the agency the
protagonists go on displaying in the story. Given such conditions, the events involving the protagonists
in The Space Between Us may be analyzed using a post-colonial feminist theory approach. To support
this essay Indian literary and cultural elements were used, together with the post-colonial and feminist
theoretical and critical theories.
Keywords: oppression, patriarchy, Thrity Umrigar, India.

Introdução
A escritora contemporânea Thrity Umrigar nasceu em Mumbai, na Índia, e emigrou para os EUA aos
21 anos, onde está radicada. É autora dos livros Bombay Times (2001), First Darling of the Morning: Selected
Memories of an Indian Childhood (2004), The Space Between Us (A Distância entre Nós) (2006), If Today Be
Sweet (2007), The Weight of Heaven (2009) e The World We Found (2012). Jornalista, já escreveu e ainda escreve
para diversos jornais, além de também ser professora assistente de inglês na Case Western Reserve University.
Thrity Umrigar é Ph.D. em inglês e mora atualmente em Cleveland.
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Thrity Umrigar está inserida no grupo dos escritores anglófonos da literatura pós-colonial e compartilha
com eles certas características e particularidades. Isto a coloca entre os autores orientais que recentemente têm
despertado a atenção do Ocidente por chamar a atenção para o “outro”, esse, que até pouco tempo não era
reconhecido, era considerado muito diferente e temido. Na verdade, esse “outro” pode ser muito parecido
com os ocidentais nas emoções, conflitos, desejos e circunstâncias em que se movimentam, como é o caso das
protagonistas do romance em questão, que vivenciam situações muito parecidas com as experimentadas pelas
mulheres ocidentais, em termos de opressão.
A Distância entre Nós (2006) concentra-se nas histórias entrelaçadas de Serabai Dubash (patroa) e Bhima
(empregada) e nos supostos laços inquebrantáveis de amizade existindo entre as duas personagens. Com uma
narrativa delicada e ao mesmo tempo objetiva, Umrigar mostra como a violência pode aproximar as mulheres.
A violência doméstica praticada pelo bem-sucedido marido da rica dona de casa e a gravidez não desejada da
única neta da pobre empregada doméstica traçam para sempre os destinos dessas mulheres. No entanto, elas
são separadas por classe e casta, pois a “distância” do título refere-se ao abismo intransponível entre as duas
mulheres, pois, apesar de ambas serem mulheres indianas, a religião e as tradições sociais proíbem que Bhima
utilize os mesmos pratos que Sera, ou mesmo se sente nos sofás e cadeiras da casa. E mesmo assim Sera enxerga
na empregada uma importante amiga, apesar de não reconhecer o próprio preconceito e a rejeição que sente
por Bhima, o que, por vezes, faz com que ela fique desconfortável.
Em vista dessa tensão onipresente no enredo, começa-se a perceber gradativamente as camadas de
ideologia opressora que permeiam a sociedade em que vivem as protagonistas Bhima e Serabai Dubash, à
medida que se vai deixando para trás a superficialidade do tema da suposta amizade entre Sera e Bhima. Ambas
as mulheres, apesar de pertencerem a castas, religiões e classes sociais diferentes, não deixam de estar sob a
influência opressora e violenta de iniciativa masculina, seja ela do marido, do sogro, ou mesmo de pessoas que
não deveriam exercer esse tipo de autoridade repressora. Em vista disso, o objetivo principal deste artigo é
analisar a representação da mulher no romance de Umrigar, inserida em um ambiente de opressão patriarcal,
e as formas com que ela reage a esse ambiente, desde o silenciamento e a submissão, até a agencia e outras
formas de empoderamento, utilizando assim, base teórica sobre a cultura indiana, critica pós-colonial, além
das teorias feministas, por meio das ideias de Thomas Bonnici, bell hooks, Audre Lorde, Angélica Soares e
Peter N. Stearns, dentre entre outros teóricos e teóricas.
A situação ilustrada pela relação Sera-Bhima no romance de Umrigar reporta-nos ao que Angélica Soares
(2009) discute quando afirma que as ideias das classes dominantes acabam por se tornar as ideias dominantes
da sociedade em que estão inseridas. Na Bombain/Mumbai contemporânea, Bhima e Sera, reforçam a ideia
de Soares (2009), em que é urgente “[...] a necessidade de se rever os conceitos totalizadores da sociedade,
em prol da compreensão dos sujeitos e suas diferentes relações” (SOARES, 2009, p 65), pois na narrativa são
mostrados os choques e a tensão nas diversas relações existentes, tanto entre as mulheres como entre os homens
e as mulheres.
Além disto, podemos ver, sob uma ótica que entrelaça o feminismo e o pós-colonialismo, o relacionamento
entre o centro e a margem, marcas ideológicas de hierarquização patriarcal dos binarismos saussureanos, que
são definidos por Thomas Bonnici (2005) como oposições do signo linguístico, em que o primeiro elemento
do par binário é valorizado em detrimento do que fica em segunda posição, como no caso de “homem x
mulher”, “metrópole x colônia”, “branco x negro” e “patroa x empregada”, por exemplo. No romance, Sera é o
centro (rica, instruída, mais clara, viúva “respeitável”, que tem uma filha casada), enquanto Bhima é a margem
(pobre, favelada, analfabeta, mais escura, abandonada pelo marido, responsável pela neta grávida).

A contribuição das teorias feministas e pós-coloniais


Abordando a questão colonial e pós-colonial, Audre Lorde, em seu artigo Age, Race, Class, and Sex
(1997), critica as definições simplistas com que o ser humano se habituou a classificar e a ser classificado,
em que as diferenças existentes são basicamente construídas em oposição umas às outras, como em “bom x
mau”, “dominante x subordinado” e “superior x inferior”, por exemplo, de forma que o indivíduo ou grupo

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representado pelo primeiro elemento do par binário é preponderante e ascendente sobre o indivíduo ou grupo
representado pelo segundo elemento. Em outras palavras, isto nada mais é do que o resultado da crítica pós-
colonial e feminista aos pressupostos ideológicos de construção dos sentidos das relações sociais e culturais
permeados pelas oposições dos pares binários da Linguística Saussureana, conforme apontado por vários
teóricos e teóricas feministas e pós-coloniais, como Bill Ashcroft (2002.), Thomas Bonnici (2005, 2007),
Audre Lorde (1997), Leela Ghandi (1998) e Ania Loomba ( 1998).
De acordo com Lorde, “naturalizou-se” a noção de que o opressor se “exima” de seus atos e o “outro”,
o oprimido (no caso do artigo de Lorde, a mulher) passe a ser responsável por apresentar as falhas de seus
opressores, o que gera certo medo no oprimido, que acaba por reproduzir ou ignorar os erros do opressor.
Assim, desconsideram-se as diferenças entre ele e seu opressor. Lorde acredita na existência de uma “norma
mítica” que funciona como um padrão a ser seguido por todos, de forma que ser alguém que não seja “branco,
magro, homem, jovem, heterossexual, cristão e financeiramente estável” (LORDE, 1997, p. 375) significa ser
alvo de preconceitos.
Dado esse contexto, a mulher é encorajada pela sociedade a legitimar apenas uma diferença social entre
ela própria e o homem, como se dentro do grupo das mulheres não houvesse diferenças e opressões entre elas.
Assim, Lorde afirma que: “Ignorar as diferenças de raça entre as mulheres e as implicações dessas diferenças
representa uma das mais sérias ameaças à mobilização da mulher em direção ao poder” (LORDE, 1997, p.
376).
Em Sisterhood: Political solidarity between women (1997), bell hooks defende que as mulheres constituem
o grupo mais vitimizado por opressão sexista. Estruturas sociais e culturais, e ainda religiosas, como é o caso da
Índia, fazem as mulheres acreditarem que só terão valor perante a sociedade se estiverem ligadas a um homem.
Essa ideologia sexista ensina que ser mulher é ser vítima e, apesar de serem vítimas do homem, as mulheres não
são um grupo unido. Em seu trabalho, hooks critica a separação da mulher por classe, seja ela sexual, de etnia,
financeira ou religiosa, afirmando que certos privilégios que algumas classes “superiores” obtêm acontecem
graças à exploração de uma classe inferior. Ou seja, mulheres pobres e crianças desprivilegiadas acabam sendo
oprimidas por mulheres ricas, em determinadas relações sociais, como é mais ou menos o caso da relação de
Sera com Bhima e a neta desta. É conveniente lembrar aqui as assertivas de Gayatri Chakravorty Spivak (2010)
de que em sociedades patriarcais coloniais ou pós-coloniais as mulheres são vítimas de pelo menos dois tipos
de exclusão: a política, por serem indivíduos da colônia ou ex-colônia, e a de gênero, por serem mulheres,
o que lhes acarreta a opressão patriarcal endógena (da sua própria sociedade) e a exógena (perpetrada pelos
representantes do patriarcado da metrópole). No caso de Bhima, todo esse processo se torna superlativo, por
todos os estigmas e marcas de inferioridade que carrega.
Mesmo entre as feministas, existem divisões e opressões, uma vez que cada grupo luta por questões que
atingem mais diretamente os seus componentes. Assim, há um grande abismo entre o discurso e a prática,
o que gera o senso de sobrevivência entre as mulheres, que consideram passar fome e outras necessidades
mais humilhantes do que sofrer preconceito por serem mulheres. Desse modo, hooks afirma que a ideologia
sexista mostra apenas dois comportamentos possíveis: a dominação e a submissão, como se não houvesse a
possibilidade de uma coexistência pacifica. hooks acertadamente defende a aceitação e a boa convivência entre
as diferenças como armas contra a opressão, em vez da erradicação das diferenças.

Índia: um contexto histórico-cultural


Peter Stearns, em História das relações de gênero (2007), auxilia-nos na compreensão da colonização e
dos costumes enraizados na cultura indiana. Culturalmente, a Índia possui características que reforçam a
superioridade masculina em detrimento da condição feminina. Assim, os discursos religiosos indianos (hinduísmo
e, de certa forma, o zoroastrismo, mesmo que em menor escala) acabam por favorecer o patriarcalismo, que
confirma a inferioridade espiritual da mulher. Ainda segundo o autor, a partir do século XVIII a Grã-Bretanha
começou a desestimular a manufatura indiana a fim de expandir a produção agrícola. A demissão em massa
nas manufaturas acabou gerando o empobrecimento da população e diminuiu as oportunidades de trabalho

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para as mulheres, que procuraram saída na mendicância e no trabalho doméstico. Já os valores britânicos do
século XIX não favoreciam o trabalho feminino, uma vez que a classe média britânica acreditava que mulheres
de respeito não deveriam trabalhar, aumentando assim, seu poder e prestigio dentro da família. Além disso,
o fato de que as medidas coloniais restringiam a oferta de trabalho feminino acabaram por determinar a luta
das mulheres indianas apenas por sobreviver e não por melhores empregos e condições de trabalho, conforme
Stearns (2007) afirma:
[...] a superioridade do homem sobre a mulher se acentuou de forma evidente. Além do mais, os
homens indianos, fustigados pela mudança econômica, com frequência ressentidos pelas medidas
imperialistas que os reduziam a um status subserviente no governo ou no exército encaravam
as vantagens tradicionais ou novas sobre as mulheres como compensação pelas tensões que
experimentavam (STEARNS, 2007, p. 133)

Com a colonização da Índia, a superioridade do homem se acentua enquanto que a mulher é cada vez
mais desvalorizada e rebaixada. Pode-se propor uma escala hierárquica em que o governo imperialista inglês
exerce poder e consequentemente opressão sobre o homem indiano, que, por sua vez, se torna o opressor
da mulher indiana, o que nos reporta de novo às ideias já aludidas de Spivak (2010). Entre o fim do século
XIX e o início do século XX, algumas vozes começaram a ser ouvidas, como as que efetivavam denúncias do
horror de certos casamentos e dos (péssimos) tratamentos dados às mulheres pela lei indiana. Apesar de ainda
incipiente, já se delineava o potencial de influência que as ideias ocidentais passariam a ter sobre as mulheres
indianas com melhor nível de instrução e/ ou que podiam viajar.

Stearns (2007) ainda afirma que os movimentos em favor de maior autonomia e posteriormente de
independência da Índia, apesar de serem influenciados por ideias e costumes ocidentais, não levavam em conta
a questão de gênero. Buscavam melhorias nas condições de saúde e na educação; no entanto, isso não era em
benefício da mulher, e sim em função da família, para quem a mulher deveria procurar se instruir e se tornar
mãe e esposa melhor. Timidamente, as mulheres indianas começaram a ser beneficiadas em suas reivindicações,
o grau de instrução feminino foi aumentado e algumas restrições aos casamentos infantis foram criadas. A
partir daí, outros movimentos com vieses que se aproximavam dos discursos feministas foram criados, visando
reformas e mudanças que atingiriam diretamente as mulheres.

Dando agora enfoque a alguns aspectos relevantes do livro de Jean Claude Carrière intitulado Índia: um
olhar amoroso (2001), que elucidam sobremaneira certas nuances da narrativa de Umrigar que se relacionam
à cultura indiana em seus mais variados aspectos, o jornalista lança um olhar, ainda que superficial, aos mais
variados aspectos do pais, desde as línguas faladas, passando pela cultura, a questão das castas e as diversas
divindades e religiões do país. Seguindo o estilo de um dicionário, o livro facilita a compreensão do contexto
no qual se inserem os personagens de Thrity Umrigar.

Segundo Carrière (2001), Bombaim é uma cidade portuária que contém uma mistura de diversas
religiões, etnias, cores e sabores, tendo pertencido a Portugal e posteriormente à Inglaterra. É onde habita
a maior parte dos parsis que fugiram do Irã islamizado. Vale ressaltar que a personagem Serabai Dubash
e sua família pertencem à casta parsi, que geralmente congrega pessoas instruídas e de bom nível social,
econômico e cultural, e onde as mulheres têm uma situação um pouco menos oprimida do que a de mulheres
de outros grupos e castas, como a sua empregada Bhima. Em função disso, na história, assim como na Índia,
a mulher recebe um “tópico” especial. Embora seja admirada e reverenciada por sua beleza, a mulher é um
tema contraditório, já que seu destino muitas vezes é incerto e, por vezes, ela se torna um peso não desejado
nas mãos dos pais ou do marido.

Para cada divindade masculina, na cultura indiana, existe um equivalente feminino, algumas inclusive com
aspectos tipicamente masculinos, tais como garra, coragem e força, dentre outros atributos. No entanto, se a
mulher indiana apresenta alguma dessas características em busca de um futuro melhor e com mais possibilidades
para sua família, ela é punida e ainda responsabilizada pelo mal que possa vir a lhe ocorrer. Enfim, percebe-se
que a relevância que o elemento feminino tem na mitologia/religiosidade indiana, consideradas suas nuances

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multifacetadas, não encontra paralelo nas relações sociais e culturais seculares da Índia, não contribuindo assim
para melhorar a situação das mulheres.

A distância entre as mulheres de Umrigar

No romance de Thrity Umrigar, podemos ver, sob uma ótica que entrelaça o feminismo e o pós-
colonialismo, conforme já abordado, o relacionamento entre o centro e a margem, refletidos nas relações entre
as protagonistas, Sera e Bhima, como na passagem em que elas conversam:

Como de hábito, Sera se senta à mesa enquanto Bhima fica de cócoras no chão, a seu lado.
Quando Dinaz era mais jovem, implicava com a mãe por algo que considerava uma injustiça:
Bhima não poder sentar-se no sofá ou numa cadeira e ter que usar utensílios separados, em vez
daqueles que a família normalmente usava (UMRIGAR, 2006. p.35).

Bhima, por diversas razões alegadas por Sera, não é tratada como igual, ela está sempre num patamar
inferior aos das demais pessoas. Apesar da aparente amizade e da preocupação de Sera, vemos a dualidade de
pensamentos das protagonistas e o egoísmo e preconceito direcionados por outros personagens à Bhima. Um
exemplo disso é o tratamento que o funcionário da universidade que Maya frequenta dispensa a ela: “E agora
esse gorila mal-educado a estava impedindo de se encontrar com Ashok, jogando-a para lá e para cá de modo
displicente e automático, simplesmente para se divertir” (UMRIGAR, 2006, p 33).

Mesmo sendo da mesma classe, credo e religião, Banu e Sera também mantinham uma relação em que a
sogra oprimia a nora, obrigando a nora a se manter afastada da família durante certo períodos (principalmente
quando estava em seu período “impuro” de menstruação), além das frequentes humilhações diante do marido,
confirmando, assim o que foi mencionado e teorizado anteriormente por Audre Lorde (1997), acerca da falta
de solidariedade entre as mulheres.

Embora o relacionamento entre as duas protagonistas do romance encene de algum modo a relação entre
o “centro” e a “margem,” anteriormente analisado e embasado por diversos estudiosos, a relação Feroz x Sera
também pode ser vista por essa ótica, pois ele oprimia de diversas maneiras a esposa, gerando nela o medo,
além da submissão e do silenciamento, como é possível comprovar no trecho a seguir:
Já estavam casados há tempo suficiente para que Sera soubesse que era melhor não responder.
Feroz ficava como que possuído quando estava num de seus ataques violentos, e a mais leve
provocação poderia fazer a fúria girar dentro dele e se movimentar ainda mais rápido, como uma
nuvem que junta poeira (UMRIGAR, 2006, p.111).

Feroz, como homem, rico, de classe mais alta e pele mais clara, exerce poder não só perante a esposa, mas
também frente à empregada e outras pessoas ao redor dele, como podemos ver na passagem a seguir:
[...] não é como nos velhos tempos, quando Feroz estava vivo e ela e Bhima tinham que andar
na ponta dos pés, temerosas de seus silêncios e ataques explosivos. A casa parecia um túmulo,
encastelada no silêncio, um silêncio que a impedia de tocar os outros, de compartilhar seu mais
obscuro segredo mesmo com os amigos mais próximos (UMRIGAR, 2006, p.26).

O marido de Sera, em diversas ocasiões utiliza-se do dinheiro, de sua classe e cultura para oprimir o
outro e, “como sempre acontecia, Sera ficava envergonhada com essa ostentação escancarada de poder. E,
dada a situação humilde de Aban e Pervez, o gesto de Feroz parecia ainda mais deselegante” (UMRIGAR,
2006, p.168). Com relação ao outro casal, além da violência psicológica, Gopal, o marido de Bhima, fazia uso
da violência física contra a esposa, ressentido pelo erro cometido por ela, se torna frio, agressivo e insensível,
chegando ao ponto de abandonar a esposa levando consigo apenas o filho homem. A seguinte passagem ilustra
bem essa circunstância: “Antes que ela pudesse reagir, Gopal recomeçou a bater, usando o dorso da mão, o
pulso funcionando como uma dobradiça que lhe permitia fazer um movimento de vaivém como o de uma
porta” (UMRIGAR, 2006, p.251).

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Dinaz e Maya não têm uma relação muito próxima por toda a narrativa, mas estão diretamente ligadas
uma à outra, pois há indícios de que conviveram estreitamente na infância. Ambas representam as esperanças
tanto de Sera como de Bhima, por acreditarem que o futuro das jovens será melhor que o delas. O fato de
ambas estarem grávidas mostra claramente a diferença de tratamento dispensado a quem não está dentro dos
padrões esperados pela sociedade. Maya, pelo fato de ser mais nova, ainda na universidade, ser pobre e não
estar casada, torna-se alvo de preconceitos e discriminação, mesmo ela tendo sido vítima de violência sexual
por parte de Viraf, o marido de Dinaz. Esta não tem noção do fato, é manipulada pelo marido, que, com
seu charme e sedução, além de ser homem, rico e de classe dominante, consegue virar as coisas a seu favor,
incriminando Bhima e desmoralizando Maya. É possível verificar isso na passagem em que Viraf, depois de ser
acusado por Bhima de violentar Maya, resolve armar uma cilada para a empregada, acusando-a de ter roubado
dinheiro:
Bhima riu novamente. Riu da sua inocência estúpida que acabou sendo tão perigosa quanto a de
Maya. Riu da própria arrogância que a levou a acreditar que poderia tratar mal um homem formado
e poderoso como Viraf sem ter que pagar um preço por isso. Acima de tudo, da idéia ridícula
de que Viraf tinha se arrependido do que havia feito a Maya e de que estava verdadeiramente
envergonhado de seu momento de fraqueza (UMRIGAR, 2006, p. 311).

Apesar do o posicionamento patriarcal do homem como sujeito e da mulher como objeto, percebemos
que ambas as protagonistas, cada uma a sua maneira, tornam-se agentes de seus próprios interesses. Pode-
se citar o fato de que mesmo com todo o preconceito sofrido por Bhima, esta vai à universidade da neta,
procurar o suposto pai de seu neto, em busca de remediar o que tinha sido feito e buscar um futuro aceitável
para a neta. Isto reveste-se de importância, porque, como já abordado anteriormente, Bonnici (2005) define
o processo de agencia como “[...] a capacidade de agir de modo autônomo, determinado pela construção da
identidade. Na teoria pós-colonial, [...] é a capacidade do sujeito pós-colonial reagir contra o poder hierárquico
do colonizador (BONNICI, 2005, p.13).
A militante feminista e pesquisadora indiana Srilatha Batliwala foi fundadora e diretora do Programa
Estadual de Mahila Samkhya Karnataka (1989-1993), um projeto do Governo da Índia que lutava pela
mobilização das mulheres pobres da zona rural por melhorias na vida social, e política. Na sua visão:
O termo empoderamento se refere a uma gama de atividades, da assertividade individual até
à resistência, protesto e mobilização coletivas, que questionam as bases das relações de poder.
No caso de indivíduos e grupos cujo acesso aos recursos e poder são determinados por classe,
casta, etnicidade e gênero, o empoderamento começa quando eles não apenas reconhecem as
forças sistêmicas que os oprimem, como também atuam no sentido de mudar as relações de
poder existentes. Portanto, o empoderamento é um processo dirigido para a transformação da
natureza e direção das forças sistêmicas que marginalizam as mulheres e outros setores excluídos
em determinados contextos (BATLIWALA, 1994, p. 130).

Assim, podemos citar diversas passagens em que as mulheres do romance de Thrity Umrigar percebem a
força que possuem e tomam as rédeas da própria vida, sem a necessidade de estarem ligadas a algo ou a alguém.
Sera, após a morte do marido, sente-se mais leve, mais feliz, sem o medo que sempre a acompanhou, medo
das agressões do marido, dos olhares de pena dos amigos, das humilhações sofridas enquanto morava com a
sogra, como se ilustra a seguir:
Você pode imaginar, Bhima? Pela primeira vez na minha vida, realmente tenho vontade de viver.
Antes, poderia sinceramente dizer que não me importava se fosse assim ou assado. Mesmo quando
moça, não sei bem o que havia de errado comigo, mas não dava tanto valor à vida. Para mim,
todas as coisas que se tem que fazer só para continuar vivendo pareciam complicadas demais e
mal valiam o esforço. Mas agora estou com muita vontade de ver como é que o filho da minha
Dinu vai crescer. E quero estar aqui para... Rezo para que também não seja – diz timidamente. –
Com o neném agora para nascer [...] (UMRIGAR, 2006, p.168).

Ou ainda, quando vai visitar a sogra, agora paralisada por um derrame, Sera, dando vazão a instintos de
vingança, belisca a sogra diariamente:

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No momento em que Edna entra no quarto, Sera pega a bochecha mole, caída e sem vida de Banu
entre os dedos e lhe dá um beliscão. Com força [...] sabe que amanhã vai executar novamente o
mesmo ritual. É a única maneira que tem de construir uma pequena vitória para a garota idealista
e cheia de esperança que jaz enterrada no túmulo que é esta casa (UMRIGAR, 2006, p.56).

Apesar de ter sido acusada de roubo por Viraf e a patroa, a “amiga” de tantos anos, não a ter defendido
Bhima, esta, no momento de deixar a casa de Serabai, sente-se liberta de todas as mentiras e trapaças:
Bhima não os ouve. Está recebendo ordens de uma autoridade diferente agora, seguindo o som
que se alvoroça em seus ouvidos, o som de asas batendo, o som de aprender a voar: liberdade.
Agora chega quase a sentir gratidão por Viraf baba, pois sua traição foi a faca que cortou o cordão
que a tinha mantido presa por tanto tempo (UMRIGAR, 2006, p.325).

Dinaz e Maya fazem parte de uma geração de mulheres indianas que já nasceram em tempos de melhores
condições e perspectivas para o gênero feminino. Ambas tiveram a possibilidade de estudar e frequentar
uma universidade. Além disso, Dinaz trabalha em um escritório, casou-se com um homem de sua vontade
e, grávida, continua a usufruir do contato social dentro e fora de casa. A despeito desse pequeno nível de
equanimidade entre elas, a pobreza de Maya faz com que sua situação seja mais instável que a da amiga Dinaz,
fato de que ela tem consciência. Talvez por essa razão Maya seja uma das personagens que mais apresente sinais
de empoderamento, embora tenha sido vítima de violência sexual e psicológica por Viraf. No entanto, a partir
desse lamentável episódio, ela passou a se conscientizar que sua vida não está atrelada à família Dubash, e
quando encontra Sera ou Dinaz ela faz questão de mostrar que não é submissa a elas, conforme se constata na
passagem em que Maya conta a respeito da violência sofrida à avo:
Serabai quis acreditar que eu era uma menina burra que ela poderia salvar da ignorância. Quanto
às minhas roupas e minha comida, sou grata a você, não a ela. É o seu suor e o seu trabalho duro
que produzem essas coisas, não a generosidade de Serabai. Se você parasse de trabalhar durante
um mês, ela não mandaria o seu salário pelo correio (UMRIGAR, 2006, p.278).

Considerações finais
Dentre outros intuitos, esta análise se ocupou de situar a condição da mulher retratada no romance A
distância entre nós, de Thrity Umrigar, e a maneira com que o ambiente opressor da Bombaim contemporânea
influencia a vida das protagonistas. Séculos de opressão cultural, política e religiosa, contribuíram para que
a mulher indiana tenha convivido com episódios recorrentes de violência, silenciamento, diversas formas de
abuso, além das diferenças de várias ordens existentes entre as protagonistas do livro. Em paralelo a essa repressão,
recentemente as mulheres têm conseguido se posicionar e apresentar formas de agência e empoderamento nos
diversos níveis da sociedade indiana, conforme de certa forma o enredo do romance mostrou.
A análise da realidade apresentada no romance foi sistematizada a partir da situação cultural indiana
histórica passada e atual que fizeram da mulher um alvo de dupla opressão, por ser mulher e também por ser
habitante de um país que já foi dominado por outro, sofrendo assim as consequências desse passado colonial,
no que diz respeito à opressão, à violência e ao silenciamento.
Encerrando o presente artigo, não se pode dizer que há uma única conclusão a ser depreendida.
Entretanto, deve-se levar em consideração que o romance A Distância entre Nós, utilizando um tipo de escrita
direta e desprovida de efeitos narrativos sofisticados, e resguardando a condição da sua qualidade estética e
literária, gera reflexões relevantes para a situação das mulheres na Índia contemporânea, principalmente por
estarem inseridas em um ambiente de opressão patriarcal milenar.
Assim, curiosamente, as estratégias sutis de Umrigar sugerem que, embora Serabai e Dinaz sejam ricas
e a história termine com as duas em situação de segurança financeira e de “felicidade” no lar, a idosa Bhima
e sua neta grávida e solteira é que parecem ter adquirido empoderamento real. Ou seja, embora assombradas
pelo desemprego, traição, calúnia, desprezo, miséria, ausência de um homem na família e gravidez indesejada,
Bhima e Dinaz sofrem um processo compulsório de conscientização do fosso que as separa não só da família

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de Serabai Dubash, mas também de todas as pessoas das classes superiores às delas, de modo que sabem que
têm se tornar novas mulheres, apoiando uma à outra, para forjarem identidades mais empoderadas, para
sobreviverem naquela sociedade hostil, em que são excluídas de diversas formas.

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Escrita marginal feminina negra:
contribuições para os estudos literários, feministas
e de gênero

SOUZA, Taise Campos dos Santos Pinheiro de (FAPESB/UNEB)


tai_campos@hotmail.com

RESUMO Este trabalho faz uma reflexão sobre a escrita feminina negra, que por diversos fatores foi e ainda,
por vezes, é marginalizada e invisibilizada em nosso campo literário. Por isso, torna-se importante
dar visibilidade a essa escrita e com isso discutir as marcas de feminismo, raça e gênero que esta
traz, mostrando suas contribuições para a construção de um novo e empoderado discurso sobre
a mulher negra, o que representa um diferencial para o discurso literário e abala o cânone, uma
vez que promove a construção de um novo olhar, uma representação diferenciada sobre a mul-
her negra, dando ênfase as suas formas de luta e resistência frente a sistemas socioculturais ex-
cludentes. Para tanto, além de teóricos e teóricas, como Guacira Lopes Louro (1997); Abdias do
Nascimento (2000); Tatau Godinho (2008), entre outros que versam sobre o tema, trazemos tex-
tos de algumas escritoras negras como Alzira Rufino, Esmeralda Ribeiro e Cristiane Sobral para dis-
cutir e pensar em uma literatura que trabalhe com a autonomia do sujeito mulher negra, com o
desafio a sistemas de poder dominantes e invisibilizadores e que dê ênfase à mulher e à questão
étnico-racial a partir do olhar da própria pessoa negra, uma vez que esta por muito tempo ficou
relegada ao esquecimento ou retratada de forma estereotipada por outras vozes, outros discur-
sos pautados por um viés masculino e eurocêntrico. Dessa forma, esperamos mostrar como é re-
levante a literatura feminina negra, pois nos leva a refletir e combater os mecanismos de opressão,
subalternização contra a mulher, especialmente a negra, e o preconceito racial, de gênero e seus
efeitos, que ainda cotidianamente podem ser vistos e sentidos em diversos espaços socioculturais.
Palavras-chave: escrita feminina, gênero, raça, feminismo.

ABSTRACT This work is a reflection on black women’s writing, which has been and yet, sometimes, is marginalized
and reduced to invisibility in our literary field due to several factors. Therefore, it becomes important
to give visibility to this writing so as to discuss the marks of feminism, race and gender that it brings,
showing its contributions for the construction of a new and empowered discourses on black women,
which represents a differential for literary discourse and affects the canon, since it promotes the
construction of a new perspective, a differentiated representation of black women, emphasizing their
forms of struggle and resistance, vis avis the exclusionary sociocultural systems. In order to do that, I
bring up some theoretical voices such as that, of Guacira Lopes Louro (1997); Abdias do Nascimento
(2000); Tatau Godinho (2008), among others that deal with the theme, as well as texts written by black
women writers such as Alzira Rufino, Esmeralda Ribeiro e Cristiane Sobral to argue and think about a
literature that deals with black women autonomy, and challenges the dominant power systems, a lite-
rature that gives emphasis to women and ethnic-racial issues from the perspective of the black person
herself, since this project was relegated to oblivion for too long or portrayed in a stereotyped way by
other voices, other discourses guided by a masculine and eurocentric bias. In this way, we hope to show
how it is relevant to black women’s literature, because it makes us reflect upon and face the mecha-
nisms of oppression, subalternization against women, especially black women, and race and gender
prejudice, and their effects, that still can be seen daily and felt in different social and cultural contexts.
Keywords: black women’s, writing, gender, race, feminism.

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Introdução
A conquista realizada pelas mulheres no campo da escrita é fruto de um longo processo de lutas e
reivindicações contra um silenciamento causado por uma sociedade patriarcal, em que a mulher teve por
muito tempo, e ainda tem, por vezes, sua importância diminuída e subjugada. Para a mulher negra esse
problema do poder de fala, de escrita é ainda maior, pois além da opressão de gênero, o fator racial contribui
para que se agrave seu processo de marginalização.
Assim, é perceptível a invisibilidade de escritoras negras em nossa literatura, uma vez que ficou relegada a
estas a marginalização e o esquecimento por parte de nosso cânone literário. Em um processo de subalternização
realizado por um sistema social hegemônico, elitista e excludente, a produção de escritoras negras ficou relegada
ao silenciamento.
Por isso torna-se importante dar visibilidade à escrita feminina negra, que por muito tempo foi apagada, e
nessa linha, evidenciar suas contribuições nas discussões de questões como feminismo, gênero, raça, literatura,
entre outras. Refletindo com isso sobre a escrita autônoma e diferencial da mulher negra que se tece pela
desconstrução de estereótipos, de estigmas socioculturais e constrói um novo discurso sobre a mulher, de
forma diferencial, transgressora, que ressignifica a si e seus contextos socioculturais.

(Des) Construindo gênero por um viés feminista


O tema “mulher” é de grande repercussão e abrange várias dimensões. Estudar sobre este, vinculando-o
ao exercício do feminismo e à problematização do gênero é muito significativo, uma vez que os conceitos de
ambos se tecem a partir de sua complementação e interligação.
Nos estudos relacionados aos modos de vida femininos aborda-se a respeito das desigualdades entre
homens e mulheres. Para justificar essas desigualdades muitos se apoiavam em diferenças biológicas entre
homens e mulheres, tornando estas o único meio de relação entre ambos. Muitos dos antigos estudiosos
afirmavam essa desigualdade de uma forma naturalizada, já com um tom preconceituoso:
Assim, Platão e Aristóteles não hesitaram em estabelecer a desigualdade da mulher como “um
fato da natureza, que deveria obedecer a um fim qualquer” e justificavam a inferioridade feminina
com a mesma desenvoltura com que se referiam à sujeição do escravo. (GONÇALVES, 2006,
p.18).

Desse modo, surge a necessidade de combater tal ideia, mostrando que o masculino e o feminino,
definitivamente não se constituem em relação aos sexos de homens e mulheres, mas sim a partir das construções
feitas nessas sociedades em relação a esses sexos, construções essas que foram naturalizadas historicamente.
O estudo de gênero pelo movimento feminista foi de grande relevância, pois a partir das críticas feitas
através destes estudos se combateu todo um discurso preconceituoso sobre gênero e, ao mesmo tempo, se
construiu outra perspectiva de gênero, através de uma proposta plural, incorporando a mulher como sujeito
autônomo e crítico dentro da sociedade:
Por meio dos estudos feministas e de gênero, a literatura brasileira ganhou novos enfoques e
diferentes traduções da opressão e da estigmatização femininas em uma sociedade patriarcal em
que a violência ou crimes contra a mulher continuam a nos assombrar. (GOMES, ZOLIN,
2011, p.08).

Partindo da arena social e política que teve seu início no século XIX, para o plano teórico, já no século XX,
estudiosas e militantes feministas incorporam os estudos da mulher e passam para análise e discussão acerca
do conceito de gênero, confrontando com outros críticos. E na ligação entre estes campos de atuação surgem
os estudos da mulher.
É o que podemos constatar no primeiro capítulo do livro Gênero, sexualidade e Educação: uma perspectiva
pós-estruturalista, de Guacira Lopes Louro (1997) em que a mesma mostra como as mulheres lutaram contra

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a discriminação, opressão e inferiorização. Esta luta se configurou através da organização de manifestações,


tanto no plano prático como no teórico, pelas quais as mulheres passaram a estudar o conceito de gênero,
rejeitando o determinismo biológico, embutido nas discussões sobre homem e mulher, problematizando-o
pelo foco social. A partir disso, podemos desconstruir a noção de gênero operada na oposição binária:
masculino-feminino. Oposição que define homem e mulher de forma permanente numa relação que se dá
respectivamente por dominação-submissão: “No século XX, diversas escritoras brasileiras criaram personagens
femininas transgressoras para ressaltar o quanto à submissão do gênero feminino era uma imposição cultural”
(GOMES, 2008, p. 25).
Desse modo, surge a proposta de desconstrução dessas posições dicotomizadas, que acabam por reduzir
o conceito de gênero, passando a entendê-lo como produto da construção sociocultural de sujeitos inseridos
em um contexto histórico.
Concebendo a sociedade como área de produção e construção das relações entre os indivíduos, constatamos
que a relação de desigualdade entre estes se efetiva justamente nesse espaço:
Enquanto o termo sexo se refere ao dado biológico, o termo gênero constitui um sistema social,
cultural, psicológico e literário, constituído a partir de ideias, comportamentos, valores e atitudes
relacionados aos sexos, através do qual se inscreve o homem na categoria do masculino e a mulher
na do feminino. Essas categorias desempenham papéis na sociedade, no contexto do poder
patriarcal, moldando realidades e processos de significação [...] (SHIMIDT,1994, p.31).

O conceito de gênero, então, passa ser usado na medida em que os gêneros se constroem no campo das
relações sociais, constituindo, assim, as identidades dos indivíduos e essas identidades, por sua vez, são plurais,
não são perenes, mas estão sempre em processo de transformação, portanto não há polos fixos.
Assim, podemos entender o feminismo como um movimento de luta de mulheres que, inclusive ao lado
de homens politicamente esclarecidos, busca o reconhecimento da alteridade e direitos humanos de ambos.
Procura mostrar a construção cultural dos sujeitos, construção desigual que excluiu e invisibilizou mulheres.
Segundo a militante feminista Tatau Godinho:
O feminismo é a teoria e a prática da luta pela libertação das mulheres. Dito de outra forma:
é a teoria e a prática, a ação política para construir uma sociedade igualitária entre mulheres e
homens, ou seja, para construir relações igualitárias, romper com as desigualdades das relações
sociais de sexo ou de gênero. (2008, p.17).

E referindo-se à importância da perspectiva de gênero na história de preconceitos contra a mulher, esta


pode ser entendida como atitude crítica reflexiva, engajada politicamente, socialmente e historicamente. E
ligada, ao exercício do feminismo, ato político, cultural e social a favor não de direitos restritos às mulheres,
mas de direitos humanos, muitas vezes negados a estas.
Discutir gênero é, pois discutir, problematizar as relações de poder que estão presentes em nossa sociedade,
suas normatividades perpassadas, é pensar por um viés feminista, que o concebe em sua pluralidade, em seu
caráter construtivo, plurissignificativo, e relacional.

Mulher negra, gênero e feminismos


Há que se pontuar a dupla exclusão sofrida por mulheres negras, uma vez que estas foram marginalizadas
e oprimidas em duas esferas, a de gênero e a de raça, e ainda em vários casos também, de classe. Sobre isso Vera
Baroni enfatiza:
Eu juntaria ainda a questão da opressão que as mulheres brancas não experimentaram igualmente
como experimentaram as mulheres negras historicamente. Elas sempre foram vítimas da opressão,
elas sofriam como as mulheres brancas os efeitos do patriarcado, mas o diferencial é que as
mulheres negras além de tudo sofreram uma opressão pela sua condição de mulher negra que as
brancas não experimentaram. (2006, p.23)

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A constatação desse duplo preconceito nos leva a refletir sobre o caráter plural também do feminismo,
uma vez que não existem polos fixos, mas plurais, afinal não existe a mulher, mas “várias e diferentes mulheres
que não são idênticas entre si” (LOURO, 1997, p. 32). Desse modo, percebe-se a mulher como um sujeito
multifacetado, com características socioculturais e raciais diferentes, o que não permite pensar o feminismo
de uma forma simplista, única, como no início, em que o foco de seus estudos era mulheres brancas, de classe
média. Sua problematização, seus procedimentos e categorias de análise devem também abranger as mulheres
não brancas e as lésbicas (LOURO 1997). Neste trabalho, o foco se volta para a questão da mulher negra
inserida nesse movimento:
Vem se desenvolvendo desde a década de 1970 a inserção das mulheres negras no movimento
feminista. Hoje, como resultado da atuação das mulheres negras, o movimento de mulheres não
trabalha a questão da mulher sem considerar a questão racial. (NASCIMENTO, 2000, p. 229).

Podemos perceber a importância da inserção da mulher negra dentro desse movimento, pois estendeu suas
discussões, teorizações, problematizações, constituindo uma forma de luta e intervenção dessas mulheres para
com os problemas socioculturais que as cercam, como o preconceito racial, contribuindo para o reconhecimento
do sujeito mulher negra de forma diferencial:
As mulheres negras, ao construírem seu lugar no movimento feminista, buscaram um
reconhecimento público como grupo definido pela diferença de gênero e de raça […]. O
feminismo branco, no seu início, não viu as mulheres negras, referenciado que esteve ao
feminismo europeu  (…). Foi a organização autônoma das mulheres negras, no âmbito dos
encontros feministas, que propiciou a visibilidade concreta da necessidade da articulação das
categorias classe, gênero e raça. A construção deste sujeito coletivo - as mulheres negras- trouxe
maior complexidade e exigiu o reconhecimento das profundas diferenças culturais que marcam
as práticas das mulheres, forçando-nos a aceitar o princípio da heterogeneidade da condição e da
insubordinação das mulheres. (SOARES, 2000, p. 260).

Assim, não podemos pensar em gênero, feminismo, sem pensar pluralidades, alteridades e inserindo a
mulher negra e escritora dentro desse movimento, iremos perceber o quanto a escrita feita por esse sujeito
social se constitui como ferramenta fundamental nas discussões desses conceitos, na reflexão da figura da
mulher negra em seus diversos contextos.

Escrita feminina negra: uma voz de resistência e diferença!


A apropriação da escrita literária pelas mulheres negras foi fundamental no processo de aquisição de um
novo olhar sobre estas mesmas, suas lutas, seus modos de resistência, história e alteridade.
“Jogando” com as forças de poder circunscritas em nossa sociedade a escrita marginal feminina negra
discute questões socioculturais, de gênero, de raça de uma forma diferencial, buscando problematizar discursos
fixados, canonizados historicamente. Sobre isso a escritora negra Conceição Evaristo vem nos dizer que:
Se há uma literatura que nos inviabiliza ou nos ficciona a partir de estereótipos vários, há um outro
discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de representação da mulher negra na
literatura. Assenhorando-se “da pena”, objeto representativo do poder falocêntrico branco, as
escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de autorrepresentação.
Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como
objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulhernegra que se descreve, a partir de uma
subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. Pode-se dizer
que o fazer literário das mulheres negras, para além de um sentido estético, busca semantizar um
outro movimento que abriga todas as nossas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim
como se torna o lugar da vida. (EVARISTO, 2005, p. 54).

A literatura feminina negra é, pois discurso diferenciado, pautado pelas vivências, marcas de vida,
experiências da própria mulher negra, que busca lançar sobre si um novo olhar, que lhe é intrínseco, que parte
dela mesma e não de representações estereotipadas, baseadas em concepções preconceituosamente fixadas. Essa

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escrita se tece pela enunciação de vozes antes silenciadas, em meio à subalternização, marginalização da mulher
negra, que se lança como forma de resistência à opressão, exclusão. Como podemos ver no poema Boletim de
ocorrência (1988), de Alzira Rufino1:
Mulher negra,
Não para
Por essa coisa bruta
Por essa discriminação morna,
Tua força ainda é segredo,
mostra tua fala nos poros
O grito ecoará na cidade,
Capinam como mato venenoso
a tua dignidade, (...)
Tua negritude incomoda
Teu redemoinho de forças afoga
Não querem a tua presença
Riscam teu nome com ausência.

Mulher negra, chega


Mulher negra, seja
Mulher negra veja
Depois do temporal.
(...)
Transpiro a liberdade.

Podemos perceber como a escrita torna-se ferramenta de ressignificação da mulher negra, evidenciando
sua luta contra a exclusão, contra o racismo, a invisibilidade, o silenciamento de sua voz e sua presença. É,
pois, uma forma de se afirmar como sujeito crítico, ativo, resistente diante de um sistema hegemônico e
excludente. Constata-se, então, que apesar de toda exclusão que recai sobre as mulheres negras, da invisibilidade
que as cerca, estas têm algo a dizer, são capazes de produzir, lutam por um mundo mais equitativo, falam,
escrevem, contribuindo com um discurso literário inovador, desafiante, revelando de forma diferencial sujeitos
estigmatizados.
Além disso, a escrita marginal feminina negra se inscreve no movimento da memória, o resgate das vozes
antes silenciadas, como forma de contestação, de reivindicação pelo lugar de fala desse sujeito, trazendo à
cena a consciência da ancestralidade, a importância de afirmar a existência da mulher negra, como podemos
constatar nessas estrofes do poema Ressurgir das Cinzas, de Esmeralda Ribeiro2 (2004, p.63):
Sou forte, sou guerreira,
tenho nas veias sangue de ancestrais.
Levo a vida num ritmo de poema-canção,
mesmo que haja versos assimétricos,
mesmo que rabisquem, às vezes,
a poesia do meu ser,
mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
“nunca me verás caído ao chão”.
Sou guerreira como Luiza Mahin,
Sou inteligente como Lélia Gonzáles,
Sou entusiasta como Carolina de Jesus,
Sou contemporânea como Firmina dos Reis
Sou herança de tantas outras ancestrais.
E, com isso, despertem ciúmes daqui e de lá,

1. A escritora Alzira dos Santos Rufino, nasceu em Santos – SP, em 1949. Começou os estudos na área de saúde, graduando-se
mais tarde em enfermagem. Notória ativista do movimento negro e especialmente do Movimento negro feminino, fundou o
“Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista”, em 1986 e a “Casa de Cultura da Mulher Negra”, em 1990.
2. A escritora e jornalista Esmeralda Ribeiro nasceu em São Paulo, no ano de 1958, é participante do Projeto Quilombhoje,
lutando junto a esse movimento no combate ao racismo e pela constituição de uma literatura que dê espaço às questões da
cultura africana e afro-brasileira.

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mesmo com seus falsos poderes tentem me aniquilar,


mesmo que aos pés de Ogum coloquem espada da injustiça
mesmo assim tenho este mantra eu meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.

A autora, através da retomada de vários nomes históricos de mulheres negras que fizeram a diferença,
de alguma forma, principalmente pela escrita, demonstra uma atitude engajada e socialmente politizada,
que expressa à potencialidade e resistência da mulher negra, apontando o quanto é necessário considerar a
importante presença feminina negra, que apesar de ser, por vezes, esquecida, deixada à margem socialmente
e culturalmente, resiste e reescreve sua história, através de suas microlutas, ressignificando assim os contextos
em que se insere.
A escrita feminina negra foi crucial no processo de reconhecimento da condição social da mulher, pois
foi por meio dela que tantas mulheres, como escritoras negras subalternizadas, puderam ser agentes dentro
de seu contexto social, exercendo seu discurso, falando a sua palavra, o que lhes conferiu progressivamente a
conquista da autonomia.
A escrita marginal de escritoras negras faz parte da construção de um discurso que insere a mulher no
mundo como sujeito ativo, crítico-reflexivo, que ajuda a (des)-construir a si mesmo e ao seu espaço social. É
o que podemos ver nesse trecho do poema Não vou mais lavar os pratos, da escritora Cristiane Sobral3 (2000,
p.18-19):
Não vou mais lavar os pratos.
Nem limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito.
Comecei a ler. (...)
Sinto muito.
Agora que comecei a ler quero entender o por quê, por que e o por quê.
Existem coisas. Eu li,e li, e li...
Eu até sorri e deixei o feijão queimar. (...)
Não vou mais lavar as coisas e encobrir as sujeiras inteiras,
nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para ali e de lá para cá.
Desinfetarei minhas mãos.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Sendo assim não lavo mais nada e olho a poeira no fundo do copo.
Vejo que sempre chega o momento de sacudir, de investir, de traduzir.
Não lavo mais os pratos.
Li a assinatura de minha lei áurea.
Escrita em negro maiúsculo, em letras tamanho 18, espaço duplo.
Aboli. (...)
Está decretada a Lei Áurea.

A autora desconstrói, por meio de seu poema, os papéis socialmente e historicamente instituídos para a
mulher e nesse processo busca o rompimento de mecanismos cotidianos de opressão feminina. É um poema
que expressa a cada verso a enunciação de uma voz feminista que busca problematizar a imagem da mulher
idealizada, mostrando outro modo feminino de ser e estar no mundo, de se posicionar em seu cotidiano, em
suas relações socioculturais. Um dos marcadores fundamentais nesse poema é a afirmação da importância de
ler, refletir, o texto que é a própria vida, o que é necessário no processo de rompimento com modelos sociais
pautados pela lógica do masculino, o que opera com a discussão de gênero, em seu caráter social e construtivo.
Sobral, através de sua escrita, questiona papéis sociais imputados à mulher, rejeita-os e opera um novo modo

3. A escritora e atriz Cristiane Sobral nasceu em 1974, no Rio de Janeiro, iniciou seus estudos artísticos na área da dramaturgia,
formando-se mais tarde em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília, é pós-graduada em Educação, com ênfase para
o ensino das Artes. Entre outros trabalhos, firmou a direção do grupo teatral Cabeça Feita, fundado em 1999, formado por
atores negros também graduados pela Universidade de Brasília

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de ser, mostrando que: “Entre o público e o privado, a mulher que escreve estabelece seu mundo imaginário,
procurando dizer de si mesma aos outros e propondo novas maneiras de estar e fazer.” (FREITAS, 2002,
p.120).
A luta por um espaço mais digno, pela liberdade, pela valorização da mulher negra é uma marca da
escrita dessas mulheres, que através de um conhecimento sobre sua própria condição sociocultural,
reflete seus contextos e busca modos de intervenção contra sistemas que a aprisionam. De tal
modo, a escrita marginal feminina negra traz relevantes contribuições para os estudos literários,
quando lança uma literatura inovadoramente crítica e transgressora e colabora também para os
estudos feministas e de gênero ao ratificar a dignidade da mulher e ao lutar, paulatinamente, pela
emancipação desta.

Considerações finais
A escrita feminina negra constitui uma vasta fonte de discussão de questões socioculturais, como a
afirmação da mulher negra, das raízes afrodescendentes, a luta e resistência da mulher, o canto à liberdade,
o desafio aos sistemas de poder estabelecidos, propondo uma nova construção literária feita pelas mulheres
subalternizadas e excluídas.
Essa atuação feminina dá a ideia de deslocamento da dita escrita convencional tornando perceptível que:
“A influência do gênero e da raça na participação dos indivíduos na sociedade brasileira produziram [...] uma
expressiva literatura.” (OLIVEIRA, 1992, p. 15).
Portanto, a escrita marginal feminina negra constitui-se como um instrumento de luta e resistência,
ecoando vozes de mulheres subalternizadas, silenciadas como forma de protesto, como gesto feminista pelo
direito de fala. Sendo assim, essa escrita configura-se como forma de consciência subjetiva, política e social,
mostrando que estas mulheres, numa atitude feminista, lutam, denunciam e buscam transformar um sistema
hegemônico que de vários modos as subalterniza.

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no Brasil. São Paulo: Paz e Terra: 2000, p. 257-282.

Outras fontes
Rufino, Alzira. Boletim de Ocorrência. In: Poemas.
Disponível em: http://www.casadeculturadamulhernegra.org.br/alzira_poemas.htm. Acesso em 21 dez. 2012.
SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. In: Textos selecionados.
Disponível em: www.letras.ufmg.br. Acesso em 04 out. 2013

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O Espetáculo do Subalterno:
o corpo como diferença em Vênus Negra

RESENDE, Robinson José (UFSJ)


robinhoresende@yahoo.com.br
FERREIRA DA ROCHA Junior, Alberto (UFSJ)
tibaji.alberto@gmail.com

RESUMO O presente trabalho tem por objetivo principal fazer considerações sobre subalternidade, diferença
e colonialismo, a partir de certos pontos ressaltados pelos autores Homi Bhabha e Gayatri Spivak.
Para isso será analisado o filme Vênus Negra (Vênus Noire), de 2010, do diretor tunisiano Abdella-
tif Kechiche. O longa-metragem conta a história de uma mulher bosquímana que é levada para a
Europa em meados do século XIX e tem as peculiaridades de seu corpo exibidas em shows, além de
servir como parâmetro para a ciência da época consolidar o conceito de raça. Teço reflexões sobre o
uso do corpo como marca da diferenciação racial e sexual do sujeito subordinado, principalmente
no que se refere às mulheres negras. Destaco a Vênus Negra como um ícone de um povo que tem
na cor da pele a marca da desvalorização e como figura expoente de mulheres cujos corpos negros
ainda permanecem sob um sistema que normaliza as práticas da supremacia branca, da eugenia e
da eliminação do direito à vida de pessoas como ela. A história de Saartjie Bartman conduzirá as
considerações propostas no intuito de pensar a exploração do sujeito considerado subalterno de-
vido à sua condição de ex-colonizado e de vítima de preconceito racial, sexual e sócio-econômico.
Palavras-chave: subalternidade, raça, sexo, Vênus Negra.

ABSTRACT This main objective of this paper is to discuss subalternity, difference, and colonialism, as emphasized
by Homi Bhabha and Gayatri Spivak. The object of my analysis is the film Black Venus (Vênus Noire),
2010, by Tunisian director Abdellatif Kechiche. The film tells the story of a bushwoman who is brought
to Europe in the mid-nineteenth century and has the peculiarities of her body displayed at shows, in
addition to serving as a parameter to the science of the time to consolidate the concept of race. I also
reflect on the use of the body as a mark of racial and sexual differentiation of the subject child, especially
in relation to black women. I point out how Black Venus as an icon of a people whose skin color is nega-
tively markedand how she figures as an icon of black women whose bodies are still under a system that
normalizes the practices of white supremacy, eugenics and the deprivation of rights of people like her.
The story of Saartjie Bartman leads us to think about the exploration of the subaltern subjects due to
their status as ex-colonized and victims of racial, sexual and socio-economic discrimination.
Keywords: subalternity, race, sex, Black Venus.

I’ve come to take you home…


I have come to wretch you away -
away from the poking eyes
of the man-made monster
who lives in the dark
with his clutches of imperialism
who dissects your body bit by bit
who likens your soul to that of Satan
and declares himself the ultimate god!
Diana Ferrus

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Introdução
Muito se conhece a respeito das exposições coloniais ocorridas na Europa nos anos finais do século XIX.
Vendedores de animais e promotores dos principais jardins zoológicos europeus apresentavam ao público,
ávido por novas sensações, animais exóticos trazidos do continente africano, tendo como resultado um sucesso
estrondoso.
Mas a questão é mais complicada e ainda muito discutida quando esses espetáculos passaram a exibir
pessoas e se transformaram em shows étnicos. Indivíduos de diversos grupos eram colocados em exibição,
assim como os animais, e o público incitado a estabelecer as diferenças entre os corpos daqueles considerados
anormais, genuínas aberrações da natureza. Essas atrações singulares consistiam em apresentar nubianos,
esquimós, canibais australianos e outros trazidos dos quatro cantos do mundo com objetivos comerciais, além
de reforçar a superioridade do branco europeu sobre os demais grupos.
Envolvidos pela explosão cientificista desse período, médicos, biólogos e historiadores naturais tentaram
estabelecer as diferenças entre os povos e consolidaram o conceito de raça, através de um sistema que gerava a
supremacia de uma raça e a subalternidade de outras. Os seres que eram as atrações desses espetáculos humanos
geralmente serviam de parâmetros para as análises científicas como demonstração da hegemonia do europeu
branco.
Meu objetivo neste trabalho consiste em analisar, a partir da perspectiva da subalternidade, o filme franco-
belga intitulado Vênus Negra (Venus Noire), de 2010, do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche. O enredo
conta a história de uma mulher bosquímana que em 1817 é levada a Londres e depois a Paris, por um criador
de espetáculos circenses e induzida por ele a participar de suas apresentações. Saartjie Bartaman, mais tarde
rebatizada de Sara, era exposta como uma mulher-gorila, fechada dentro de uma jaula, acorrentada e instigada
a produzir sons como se fosse um animal selvagem e feroz.
Entre as mulheres bosquímanas, havia algumas com configurações corporais bastante singulares.
Conhecidas também como Hotentotes, nome que hoje ganhou caráter depreciativo, apresentavam genitália
diferenciada, com aumento considerável dos grandes lábios vaginais, chamado de “avental de hotentote”, além
de possuírem volume exagerado nas nádegas, que cientificamente recebe o nome de esteatopigia. Essa era a
condição do corpo de Sara que mais aguçava a atenção do público burguês, sedento por novidades.
As correntes científicas daquele momento pregavam que as mulheres negras eram mais libidinosas que
as brancas, que possuíam maior desejo e disposição para o ato sexual e, por isso, os europeus viam aquela
mulher com interesse lascivo. Em determinado momento de sua história, Sara se encontra obrigada a viver na
prostituição, doente e sem poder tomar conta do seu próprio destino.
O corpo diferente da pequena mulher torna-se elemento de racialização, reforçando o caráter de
inferioridade e valorizando a superioridade da elite européia, os colonizadores “civilizados” que concentravam
em suas mãos dinheiro e poder. Ainda viva, é levada ao Museu de História natural, para que pudessem analisar
sua anatomia e chegar a conclusões a respeito da supremacia racial branca. Depois de morta, tem o corpo
dilacerado e a medida de seu cérebro serve de parâmetro para comprovar o que os cientistas tanto afirmavam.
Nessa mistura de ciência e preconceito, não há como negar que o subalterno se transforma em atração para
o dominador e que o próprio corpo físico é a marca da diferenciação. Enquanto humanos substituem animais
nas apresentações circenses, o outro é transformado em um ser exótico, irracional, incapaz de autogoverno. O
olhar europeu sobre a alteridade configura o preconceito racial e sexual, dos quais até hoje os negros, sobretudo
as mulheres, são vítimas. A figura feminina é que mais sofre e se torna alvo das categorizações estigmatizadas e
do preconceito sexual, sendo vista como objeto de uso.
Apesar de hoje em dia o conceito de raça consolidado pela ciência do século XIX ter caído em desuso,
o preconceito ainda continua e tem vida vigorosa nas sociedades contemporâneas. O homem pós-moderno
ainda não entendeu que pertencemos todos a uma mesma raça, a dos humanos, e que cor da pele, posição
social e geográfica não definem a pessoa que se é.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Raça e sexo
A evidência de que os cientistas do século XIX tentaram provar a superioridade da raça branca sobre as
demais raças é clara durante todas as passagens do filme nas quais o médico naturalista George Cuvier está
representado em cena. Para Cuvier,
Não é por acaso que a raça caucasiana chegou a dominar o mundo e fez o mais rápido progresso
nas ciências, enquanto os negros estão ainda mergulhados na escravidão e nos prazeres dos
sentidos...O formato de sua cabeça aproxima-os de certo modo mais do que nós aos animais
(CUVIER apud LINDFORS, 1999).

Através de análises minuciosas e descritivas do crânio de Hotentotes procura-se confirmar a aproximação


de tal povo com o macaco e afastá-lo do homem europeu e branco. Fazendo-se porta-voz do discurso colonial,
Cuvier quer apontar a diferença racial, criando estereótipos por meio de uma forma de conhecimento,
conhecido então como frenologia, que produz efeitos de verdade e facilita os processos de sujeição. Bhabha
(2011) explica claramente como isso acontece:
O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos
degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas
de administração e instrução. Apesar do jogo de poder no interior do discurso colonial e das
posicionalidades deslizantes de seus sujeitos (por exemplo, efeitos de classe, gênero, ideologia,
formações sociais diferentes, sistemas diversos de colonização, e assim por diante), estou me
referindo a uma forma de governamentalidade que, ao delimitar uma “nacão sujeita”, apropria,
dirige e domina suas várias esferas de atividade. Portanto, apesar do “jogo” no sistema colonial
que é crucial para seu exercício de poder, o discurso colonial produz o colonizado como uma
realidade social que é ao mesmo tempo um “outro” e ainda assim inteiramente apreensível e
visível. (2011, p. 111.)

Para Bhabha, o discurso colonial vai além do desejo de subordinação do outro e apresenta uma necessidade
de caracterizá-lo como inferior e degenerado. No caso de Sara, isso é feito através da exposição das características
peculiares de seu povo articuladas com a configuração sexual de seu corpo. Seu corpo exótico deve ser mostrado,
devassado, tocado, ridicularizado, espetacularizado e domesticado como símbolo da manutenção da dominação
colonizadora. A respeito dessa articulação, o teórico indiano coloca que
Essa articulação torna-se crucial se considerarmos que o corpo está sempre simultaneamente
(mesmo que de modo conflituoso) inscrito tanto na economia do prazer e do desejo quanto na
economia do discurso, da dominação e do poder. (2011, p. 107)

Janaína Damasceno (2008) aponta para o surgimento das práticas de diferenciação racial, que pode ser
aplicado ao nosso estudo:
Essa prática nasceria do encontro do Ocidente com o negro em três momentos distintos: na
prática da escravidão no século XVI; na colonização recente da África no século XIX e no Pós-
guerra, quando se inicia a migração negra para a Europa e o Norte da América. Se no século XVI
o racismo será pautado pela escravidão nas Américas e justificado através da religião e da moral,
no século XIX este terá uma conotação distinta, será necessário provar racional e cientificamente
a inferioridade dos povos não europeus. (2008, p.1)

A raça e o sexo são colocados como marcas da diferenciação, construindo uma hierarquia sexual e racial
que ainda está presente nas sociedades contemporâneas.

O Corpo
A análise do corpo deve levar em consideração os três momentos de exploração do corpo de Saartijie
Bartman no filme. Num primeiro momento, nos é apresentado um corpo selvagem, possível de ser domesticado,
exposto como uma aberração dominada pelo homem branco. As cenas em que Sarah é exposta ao público
mostram bem esse caráter de dominação, de subordinação, de supremacia do homem branco que consegue

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

domar um ser tão diferente. Essas cenas aproximam o corpo subalterno ao corpo de um animal que pode ser
perfeitamente retirado de seu habitat natural e levado acorrentado para ser exibido numa exposição exótica.
Seu domador a incita para que aja como se fosse um animal, fato comprovado pela presença da jaula, do uso
de chicotes e correntes em volta de seu pescoço. Até a roupas usadas nesses momentos reforçam essas intenções.
A malha fina expõe as peculiaridades de sua anatomia e os adereços lembram enfeites de tribos indígenas que
pertencem ao mundo não colonizado.
Em segundo lugar é preciso considerar o corpo morto de Sara levado ao Museu de História Natural.
Enquanto estava viva, Sara recusou-se a mostrar em detalhes o avental de Hotentote. Agora, nos é mostrado
um corpo imóvel, incapaz de reagir, passivo, totalmente entregue à invasão da ciência positivista daquele século.
A Vênus Negra tem então seu corpo devassado, invadido, investigado, com suas diferenças cortadas e picotadas
para serem milimetricamente medidas, pesadas a fim de confirmarem sua condição submissa, de membro de
raça inferior, mais próxima de um animal que de seres humanos. A escritora feminista Bárbara Chase Riboud
(2004), em seu romance intitulado Vénus Hottentote, descreve assim a dissecação do corpo de Sara:
Agora vamos proceder à dissecação do corpo da mulher batizada como Sarah Baartman,
conhecida pelo nome de Vênus hotentote, que alguns de vocês já examinaram quando de seu
comparecimento em 1815 (...) O cadáver está fresco e em perfeito estado de conservação (...)
Como observei anteriormente, a conformação de Sarah surpreende inicialmente pela enorme
largura de suas ancas, que ultrapassam 45 centímetros e pela saliência de suas nádegas, que é de
mais de 16 centímetros. O restante do corpo e dos membros nada tem de disforme. Seus ombros,
seu dorso, a região superior de seu peito são graciosos. A saliência de seu ventre não é excessiva.
Seus braços têm algumas marcas de varíola, mas são muito bem feitos e suas mãos...charmosas
(CHASE-RIBOUD , 2004, p. 393, 397).

Nesse momento é importante realçar o que Stuart Hall aponta como uma prática semelhante ao estereótipo
que é a tendência a reduzir a representação a objetos. Nessa relação entre conhecimento, poder e objeto,
as partes passam a representar um todo num movimento metonímico que revela o fetichismo. A fantasia
intervém na representação, quebrando a integridade e autenticidade, características necessárias à construção
do que pode conceber como sendo uma pessoa. Para Damasceno (2008)
[o] Fetichismo implica também deslocamento. O interesse sexual pela genitália, pelo tablier de
Sarah foi deslocado para seu traseiro. Estereótipo e fetichismo aqui marcam o modo pelo qual
foi racionalizada a existência da mulher negra e como foi legitimada sua presença nas hierarquias
mais baixas de ser humano. (p.4)

A terceira situação desse corpo então é o corpo engessado, cena que abre e fecha o longa-metragem. Um
mistura de arte e ciência que deixa espantados os espectadores, estudantes de Medicina e pesquisadores que
assistem à aula de Cuvier. Retrato fiel do corpo vivo, agora imortalizado em gesso e delicadamente pintado
para que se aproxime da realidade ali retratada. Mais uma vez, esse corpo se torna o símbolo da autossuficiência
do branco europeu que prova sua magnitude sobre aquele corpo africano. Sara oferece então seu corpo como
símbolo da diferença entre brancos e negros e, agora de maneira inquestionável, tem-se a prova da teoria
racista.
A medicina de Cuvier foi o impulso discursivo que elegeu o corpo como lugar da significação da diferença.
O discurso médico oitocentista criou conceitos de raça e de negritude que só fizeram pensar o corpo negro
como anormal e como animal e, por isso, inferior.
Como afirma Hall (1997), a construção da identidade é feita através da diferença. O reconhecimento da
alteridade se dá através da diferença. E a diferença apontada pelas práticas de Cuvier construiu uma identidade
negra pautada na alteridade desviante, menor e desvalorizada. A criação desse estereótipo do negro marca a
ordem social, favorece a manutenção da hegemonia branca e delimita os territórios sociais nos quais o negro
não pode ter acesso, transformando o preconceito em algo natural.
Nos três momentos não se pode deixar de mencionar que Sarah carregava consigo estigmas dessa
subalternidade: era pobre, negra, mulher e ex-colonizada.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Um caso de representação
Gostaríamos de propor aqui uma aproximação do que temos discutido com as colocações do denso
projeto-político de Gayatri Spivak que passa pelas questões de subalternidade e representação sobre os quais
temos nos posicionado.
Nessa demanda de representações, Spivak nos coloca diante de um forte questionamento sobre a capacidade
do subalterno se representar. Entendemos que esse debate extremamente complexo exige articulações profundas
com a psicanálise e com a filosofia desconstrucionista de Derrida. No entanto, tentaremos apenas adaptá-lo às
questões de representação que estão mais claras e próximas da obra cinematográfica aqui discutida.
A autora levanta uma discussão em torno do termo representação e da ambiguidade que ele pode gerar.
Spivak afirma que os dois usos de
[...] representação são agrupados: representação como “falar por”, como ocorre na política e
representação como “re-presentar” como na arte ou filosofia. Como a teoria também apenas uma
ação, o teórico não representa (fala por) o grupo oprimido. De fato, o sujeito não é visto como
um consciência representativa (uma consciência que “re-presenta” a realidade adequadamente).
Esses dois sentidos do termo representação- no contexto da formação do Estado e da Lei, por
um lado, e da afirmação do sujeito por outro lado, estão relacionados- mas irredutivelmente
descontínuos. (2010, p.31-32)

Figueiredo (2010) esclarece o pensamento da autora, dizendo que


[a] condição de subalternidade é a condição do silêncio para Spivak, ou seja, o subalterno carece
necessariamente de um representante por sua própria condição de silenciado. Por um lado,
observa-se a divisão internacional entre a sociedade capitalista regida pela lei imperialista e, por
outro, a impossibilidade de representação daqueles que estão à margem ou centros silenciados.
Sobressai aí o questionamento instigante de Spivak: os subalternos podem falar? (2010, p. 85)

O principal ponto proposto pela teórica indiana seria a análise das possibilidades de o subalterno se
subjetivar autonomamente. No contexto de Vênus Negra, Sara vive uma condição de estrangeira, praticamente
escravizada por seu tutor, numa terra de dominação capitalista, estando, portanto, numa condição subalterna.
Alia-se a esta condição a questão do silêncio e da representação. Sara pouco fala durante o desenvolver da
história e quando o faz parece repetir o que a mandaram dizer. A cena em que seu “empresário” é acusado
diante de um tribunal de escravizá-la retrata bem isso. Durante seu depoimento, Sara não expõe suas angústias
e vontades e diz fazer tudo aquilo por vontade própria. Afirma que não é uma escrava, mas que é uma atriz.
Seu depoimento contradiz o que se passa entre suas apresentações e o modo como o tutor a trata. Sara não
consegue se representar. Ela necessita da interferência de alguém que fale por ela, precisa repetir o discurso de
seu dominador, sem demonstrar autogoverno.
Justamente nessa discussão é que podemos trazer o pensamento de Spivak. A representação aqui será
entendida com a aproximação feita por ela dos termos Vertretung, que é a representação por procuração passada
a terceiros e Darstellung, na qual os representados precisam de um porta-voz, de alguém que fale por eles.
No caso do colonialismo e da subordinação aplicada a Sara, podemos nos valer da definição de Vertretung.
O subalterno precisa de um representante que fale por ele, para que sua reivindicação seja ouvida. No momento
em que Sara se entrega às mediações de sua condição de oriunda do continente africano, torna-se um objeto
do poder e da ciência europeia e passa a ser representada por eles. Com isso, ela não se sente um sujeito
pleno, legítimo. Sua legitimidade enquanto africana se perde nos interesses europeus de usá-la como marca de
diferenciação e superioridade.
A agenda radical de Spivak propõe que processos de insurreição devem surgir quando se captura o
momento em que a re-presentação se mistura à a-presentação. É aí que nasce o controle da parte das classes
subalternas sobre o modo como são representadas pelas classes dominantes. Parece que isso não é vivido por
Sara. Sua revolta, sua angústia e seu de desejo de voltar à terra natal fica perdido dentro dela mesma. Sara não
consegue se representar.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

O legado de Baartman
Sara Baartamn teve seu corpo moldado em gesso e seu esqueleto, cérebro e órgãos genitais conservados em
garrafas. Seus restos materiais serviram de material para aulas de anatomia, além de ficarem expostos por mais
de cem anos no Musee de L’Homme em Paris. A ganância do seu “tutor” e a curiosidade científica a elegeram
como uma aberração. Mesmo depois de morta continuou sendo exposta como prova de que sua anormalidade
extrapolava características humanas.
Sara morreu em 29 de dezembro de 1815, após se entregar à vida em um prostíbulo, diagnosticada com
uma doença inflamatória, possivelmente sífilis, e por complicações do alcoolismo. Os estragos da cultura
estrangeira foram devastadores, unindo o abuso do corpo material à hostilidade com que fora tratada.
Em janeiro de 2002, os restos da mulher Khoisan, que tanto chamou à atenção os europeus, foram
devolvidos ao seu chão natal e enterrados em 9 de agosto de 2002, numa província de Cabo Oriental.
Depois de ter seu corpo usado como locus de diferenciação, numa postura racista e sexista, de ter sido
analisada por sábios cientistas empenhados em estabelecer uma prova concreta da aproximação de sua raça
com os animais, de ser tratada como um animal, Sarah retorna ao seu povo. Agora como um ícone de um povo
que tem na cor da pele a marca da desvalorização e como expoente de mulheres cujos corpos negros ainda
permanecem sob um sistema que normaliza as práticas da supremacia branca, da eugenia e da eliminação o
direito à vida de pessoas como ela.

Referências
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2001.
CHASE-RIBOUD, Barbara. Vênus Hottentote. Paris: Albin Michel, 2004.
CITELI, Maria Teresa. As desmedidas da Vênus Negra. Gênero e raça na história da ciência. Disponível em:
http://www.novosestudos.com.br/v1/files/uploads/contents/95/20080627_as_desmedidas_da_venus.pdf.
Acesso em 22 de fevereiro de 2013.
DAMASCENO, Janaína. O corpo do outro. Construções raciais e imagens de controle do corpo feminino negro: O
caso da Vênus Hotentote.
Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST69/Janaina_Damasceno_69.pdf. Acesso em 22 de
fevereiro de 2013.
Figueiredo, Carlos Vinícius da Silva. Estudos subalternos: uma introdução.
Disponível em: http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/Raido/article/view/619. Acesso em 21 de
fevereiro de 2013.
HALL, Stuart. Representation: Cultural Representations and Signifying Practices. London : Sage, 1997.
LINDFORS, Bernth (Org.). Africans on Stage. Studien in Ethnolkogical Show Business. Indianapolis : Indiana
University Press, 1999.
SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira
Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2010.

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Estereótipos de gênero em All you Zombies–
de Robert A. Heinlein

DAS NEVES, Bárbara Maia (FTESM/Marinha do Brasil/FAETEC)


barbaradasneves@yahoo.com.br

RESUMO Apesar do título, não se trata realmente de zumbis, esta obra aborda o tratamento dado ao mascu-
lino e ao feminino na sociedade. Aqui vemos de um lado o homem intrépido, explorador da galáxia.
Já do outro percebemos que a mulher ainda segue os papéis clássicos de mãe, amante, esposa, e
cuidadora. Usando o velho recurso da ficção científica de viagens no tempo, o autor cria uma nar-
rativa em que basicamente todos os personagens principais são no fundo a mesma pessoa: o hoje
homem que um dia se chamou Jane. Ao adotar na fase adulta o apelido de “Mãe Solteira”, Jane busca
nas memórias inspiração para escrever e mostrar que a sociedade da obra (aparentemente aberta)
ainda se prende a velhos clichés. Assim, ao fazer um relato dos eventos tanto de sua vida de mulher
como de homem, este Orlando moderno demonstra como os papéis de gênero podem variar de um
período ao outro, mas nem tanto. No seu relato, Sr. Jane traça um painel breve do tratamento dado
pela sociedade aos diferentes gêneros.
Palavras-chave: gênero, estereótipo, ficção-científica.

ABSTRACT Though the title may indicate a story about zombies, the tale deals with how society treats male and
female members. Here we have, on the one hand, the bold male, galaxy explorer; and, on the other
hand, the woman following the old stereotypes of the caretaker, wife, lover. Making use of the good old
time travel aspect of sci-fi, the author assembles a complex narrative which leads to the fact that all the
characters are the same person, the man who once was called Jane. Adopting the pen name of “Single
Mother”, Jane uses his (now that she has become a man) memories to describe how an apparently open-
minded society may not be really so. This modern day Orlando shows how gender roles may vary from
one period to the other, but not that much. In his account, Mr. Jane paints a small picture of how society
treats the different gender roles.
Keywords: gender, stereotype, science fiction.

A ficção científica sempre foi povoada por todos os tipos de seres, de monstros alienígenas a robôs,
de humanos perdidos no espaço a mutantes escondidos nos esgotos; contudo, é raro (mas não impossível)
encontrarmos uma obra em que o binômio masculino X feminino não exista, ou só em casos particulares,
como na obra The Left Hand of Darkness1 (1969) de Ursula K. Le Guin. Por mais estranhos que sejam os seres
encontrados, sempre haverá a questão de que dentre eles existe o grupo dos machos e o grupo das fêmeas.
Mesmo que não seja este o caso, ainda somos levados a pensar em certo grupo como de determinado sexo,
por exemplo: particularmente sempre pensei na criatura do filme Alien (1979) como uma figura masculina no
primeiro filme (pela questão da luta) e feminina nos filmes subsequentes (talvez pela situação com procriação
e ovos), por outro lado sempre vi o Predador dos filmes de mesmo título (o primeiro sendo de 1987) como
uma figura masculina, pelo lado agressivo. Pessoalmente, filmes como Alien vs. Predador (de 2004) para mim

1. Nesta obra os seres do planeta mostrado são de gênero neutro, podem fazer desabrochar órgãos genitais masculinos ou
femininos (de maneira aleatória) apenas em um período comparável ao cio em cães, por exemplo.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

são mais que uma mera aventura, mas uma forma de embate entre o masculino provando sua força através de
um rito de passagem e a figura feminina como um instrumento a ser dominado. Ainda assim, deixarei esta
conversa para um outro dia.
De volta ao nosso ponto principal, a ficção científica (a partir de agora denominada FC) sempre teve
personagens femininas mas, utilizando as palavras da escritora Joanna Russ: “There are plenty of images of
women in science fiction. There are hardly any women.”2 (Apud ROBERTS. 2003. p. 100.) Isto significa que
durante muito tempo a imagem do feminino foi retratada seguindo estereótipos, a Dale Arden que acompanha
o herói Flash Gordon é a eterna donzela em perigo; ou a Dra. Susan Calvin do livro Eu, Robô (I, Robot, 1950,
escrito por Isaac Asimov), que é o estereótipo da mulher pouco feminina, que se anulou para fazer parte de um
mundo dominado por homens e portanto precisa se fazer impor. Existem também os papéis da mãe, da esposa,
da filha, mas todas secundárias se comparadas às grandes aventuras vividas pelos heróis em suas batalhas
intergaláticas ou não, e pelos valorosos cientistas e suas descobertas de abalar mundos (às vezes literalmente).
A mudança começa a surgir de certa forma com a fase clássica do seriado Jornada nas Estrelas (1966-1969)
em que começamos a ver mulheres na ponte de comando, como a Tenente Uhura. Segundo Adam Roberts em
seu livro Science Fiction (2000), a ênfase em aspectos emocionais, pessoais, mais do que no tecnológico, trouxe
para o mundo da FC fãs femininas que antes se sentiam excluídas do gênero, especialmente pelos trabalhos
da era Golden Age.3 (ROBERTS. 2003. p. 95.) Outro ponto de virada na representação do feminino foi o
primeiro filme da série Alien, já que a corajosa Tenente Ripley (interpretada por Sigourney Weaver) não tem
nada de indefesa, muito pelo contrário, e também não é vista como uma mulher masculinizada, pois a cena
final do primeiro filme em que a atriz aparece em trajes sumários não dá muita margem para que ela seja vista
de maneira assexuada e/ou masculinizada.
Com base no que foi falado até o momento, pretendo trabalhar neste artigo com o conto “All You
Zombies–” (1959) de Robert Heinlein. Este autor talvez tenha seu nome pouco reconhecido aqui no Brasil,
mas uma de suas obras se tornou um filme de certo sucesso: Tropas Estelares (Starship Troopers, 1997). Já no
conto aqui a ser analisado, percebe-se a perspectiva da viagem no tempo, seus paradoxos e como ela influencia
na vida do personagem Jane. Também será possível percebermos como Jane – tanto na sua vida enquanto
mulher quanto na sua vida como homem – experimentou situações adversas e que foram influenciadas pelos
papéis designados ao gênero ao qual pertencia naquele momento.
Basicamente, o conto fala de um jovem que se autodenomina “Mãe Solteira” (“Single Mother”, no
original) e que conta sua vida para o dono de um bar. Este jovem, que revela um dia ter sido uma menina
órfã chamada Jane, conta como cresceu sozinha, engravidou muito cedo de um homem com quem teve um
breve romance e que a abandonou, teve a criança (uma menina que foi roubada na maternidade) e precisou
se tornar um homem devido a um problema em sua genética agravado por um parto muito complicado.
Resolveu escrever histórias confessionais do ponto de vista feminino porque era a única coisa que sabia fazer,
e que gostaria de encontrar o homem que a engravidou e exigir dele uma atitude, bem como exigir a volta da
bebê que Jane acredita ter sido roubada pelo pai.
Mais tarde o dono do bar, que mostra seu equipamento de viagem no tempo, ajuda Jane a voltar para a
época em que conheceu o homem misterioso, e o agora homem Jane seduz sua versão mais jovem e a engravida,
revelando assim então a identidade do namorado sumido: a jovem moça Jane havia sido engravidada pelo
homem que Jane viria a ser mais tarde devido a um recurso da máquina do tempo. Atordoado por descobrir
ser vítima e algoz de si própria, Sr. Jane é facilmente “recrutado” à força pelo dono do bar para ser viajante
do tempo como ele. Ao chegar na instituição onde receberá treinamento para a função, o leitor descobre que

2. Tradução da Autora: “Há muitas imagens de mulheres na ficção científica. Há muito poucas mulheres.”
3. Em tempo: Golden Age (Época de Ouro) é o período da história da FC americana (de 1938 a 1946) em que houve
um predomínio de publicações tanto em livros, revistas e contos, e também um grande valor dado a aspectos de avanços
tecnológicos, aventuras e romances. É considerado um período em que Asimov, Heinlein e outros produziram suas maiores e
melhores obras. (ROBERTS. 2003. p. 188.)

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o dono do bar também é Jane, só que mais velho e foi esta versão que roubou a bebê e a levou para décadas
antes, para o orfanato onde receberia o nome de Jane. Enfim, tanto a bebê, quanto a jovem, o homem “Mãe
Solteira” e o dono do bar são todos fases diferentes da mesma pessoa, são todos a mesma Jane em suas viagens
no tempo. Jane é seu próprio pai, sua mãe, sua filha e seu recrutador de explorador do tempo.

Por um momento gostaria de abordar de maneira breve a questão da viagem temporal na FC. Este é um
recurso que se tornou bastante popular no gênero, especialmente através de produções cinematográficas como
a série De Volta para o Futuro (iniciada em 1985), contudo não é algo novo. Inicialmente ele era apresentado
em uma forma mais sobrenatural, como no livro de Charles Dickens Um Conto de Natal (1843), em que um
fantasma é quem ajuda Ebenezer Scrooge a ver seu passado alegre e seu futuro de desgraça. Ainda assim, a
mudança mesmo surge com a publicação de A Máquina do Tempo (1895), de H. G. Wells, mesmo não sendo
a primeira vez que uma máquina tenha sido descrita como o meio para as viagens, é significante ver que pela
primeira vez uma forma de discurso científico (ainda que não muito preciso) tenha sido usado para justificar
o funcionamento do aparelho.

Quando Heinlein escreveu seu conto na virada das décadas de 1950-1960, vale ressaltar que foi um período
em que o tema voltou a aparecer com mais força, havendo por parte dos autores uma maior preocupação com
paradoxos e sequenciamento lógico dos eventos. (CLUTE & NICHOLLS. 1995. pp. 1227-1229.) No caso
da história sendo abordada, o autor cria uma forma de ‘looping infinito’ no sentido em que para Jane nascer
ela precisa “se engravidar” e ela só pode “se engravidar” porque nasceu, uma espécie de brincadeira como “o
ovo ou a galinha”. Um símbolo muito presente na trama é a da cobra de Ouroboros, a que devora sua própria
cauda, não deixando claro onde seria o começo e onde seria o fim.

Na fase inicial de sua vida, Jane relata como ela era discriminada pelas outras crianças do orfanato e
rejeitada por pais em potencial por não ser necessariamente bonita. Dentuça, cabelo liso demais, e “cara de
cavalo”, Jane continuou não atraindo muito a atenção agora do sexo oposto, sendo sua vida sempre solitária.
Contudo, ela almeja fazer parte de “grupos de elite” para mulheres que auxiliam os homens exploradores do
espaço em suas valorosas missões. Sendo assim, Jane decide se juntar às WENCHES4, esta sigla traduzida para
o português significa uma serviçal, porém o uso mais visto deste termo hoje em dia é o equivalente a uma moça
“fácil”, uma prostituta. E na verdade era este o serviço para o qual ela se ofereceria. Tanto que o dono do bar se
lembra desta função com outro nome: WHORES5, que nada mais é do que uma forma explícita de descrever
a função. Jane explica o treinamento e o trabalho dentro destes grupos:
[Jane] went on: “It was when they first admitted you can’t send men into space for months and
years and not relieve the tension. You remember how the wowsers screamed? – that improved my
chance, since volunteers were scarce. A gal had to be respectable, preferably a virgin (they liked
to train them from scratch), above average mentally, and stable emotionally. But most volunteers
were old hookers, or neurotics who would crack up in ten days off earth. So I didn’t need looks;
if they accepted me, they would fix my buck teeth, put a wave in my hair, teach me to walk and
dance and how to listen to a man pleasingly, and everything else – plus training for the prime
duties. They would even use plastic surgery if it would help – nothing too good for Our Boys.6
(HEINLEIN, 2004, p. 39. Itálicos meus.)

4. Women’s Emergency National Corps, Hospitality & Entertainment → Corpo Nacional de Mulheres, Hospitalidade e
Entretenimento. Tradução da Autora.
5. Women’s Hospitality Order Refortifying & Encouraging Spacemen → Order Hospitaleira de Mulheres Reforçando e Encorajando
Astronautas. Tradução da Autora.
6. Tradução da Autora: “[Jane] continuou: ‘Foi quando eles admitiram pela primeira vez que não se pode mandar homens para
o espaço por meses e anos e não aliviar a tensão. Você se lembra de como os primeiros puritanões gritavam? – isso aumentava
minhas chances já que voluntárias eram raras. Uma garota tinha que ser respeitável, preferencialmente virgem (eles gostavam
de trainam bem do início), acima da média mentalmente, e emocionalmente estável. Mas a maioria das voluntárias era de
prostitutas velhas, ou neuróticas que entravam em crise com dez dias fora da terra. Então eu não precisava de aparência, se eles
me aceitassem, eles consertariam meus dentes, ondulariam meu cabelo, ensinariam a andar e dançar e como ouvir um homem
de maneira agradável, e tudo mais – além do treinamento para os deveres primários. Eles até usariam cirurgia plástica se ajudasse
– nada era bom de mais para Nossos Rapazes.’”

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Assim, os papéis da mulher neste universo de intrépidos exploradores espaciais ainda estariam presos
aos mesmos papéis desempenhados aqui na terra: de concubina, de mãe, daquela que cuidaria tanto da parte
emocional dos pilotos como de suas necessidades fisiológicas través do sexo, basta lembrar que esta era uma
das, como diz o texto, funções primárias que Jane desempenharia na organização. O que ocorre neste caso
seria inclusive uma espécie de legalização da prostituição, tendo em vista que elas estariam lá para prestar um
serviço de grande utilidade aos homens do espaço. Desta maneira, o que Jane tanto deseja é na verdade uma
perpetuação de um papel da mulher dentro da FC em que ela nunca deixa de ser uma coadjuvante.
Haveria também uma espécie de ‘adicional’ para aquelas que participassem do programa WENCHES/
WHORES: a possibilidade de virem a se casar com algum dos astronautas no futuro, pelo fato de ambos
entenderem o que se passa no mundo fora da terra e de como as coisas precisam funcionar nestas situações. Por
este lado, vemos então que tal emprego seria extremamente atraente para uma garota solitária e pouco atraente
como Jane: a possibilidade de ser ‘consertada’ e ‘transformada’ em alguém atraente, participar de certo modo
de um mundo romanceado e valorizado dos astronautas e ainda por cima garantir o seu futuro casando-se com
um deles. Para tanto ela começa a frequentar cursos noturnos sobre como ser charmosa e agradável, arruma
um emprego de babá para uma família durante o dia para se sustentar, e dedica-se ao máximo para ser o mais
adequada possível para seu futuro e sonhado emprego.
Aqui podemos traçar um paralelo entre a história de Jane e a da personagem Guildina do livro Woman
on the Edge of Time (1976) da escritora americana Marge Piercy. Nesta obra a protagonista Connie também
tem a habilidade de viajar no tempo e visitar Luciente, que seria sua mentora em um futuro promissor para a
humanidade, sem guerras e mais igualitária, especialmente no que toca na relação entre os sexos. Contudo, em
uma de suas transições para o futuro ela acidentalmente “cai” um uma espécie de realidade alternativa onde
vive a já mencionada Guildina, uma mulher que seria uma caricatura de Jessica Rabbit:7
The woman’s hair, stippled mauve and platinum, was arranged in an intricate tower of curls
and small gewgaws, dripping pearls like a wedding headdress. She wore a long dress of slippery
substance that changed color as she moved and emitted a tinkling sound; it was slit way up the
side and cut out here and there so that her breasts occasionally peeked out or her navel appeared
and reappeared.8 (PIERCY, 1976, p. 278.)

Nesta parte Connie descobre como as mulheres se submetem aos mais cruéis tratamentos para que sejam
sempre apreciadas pelos homens, já que o casamento nesta sociedade não existe, o que ocorre é a “contratação”
de uma esposa por um tempo determinado; podendo haver a renovação caso esta esposa ainda seja de agrado
ao seu marido/empregador. Comparando a situação de Guildina à de Jane, percebemos uma ênfase na questão
de como a ascensão social está intimamente vinculada à beleza e tem como meio o casamento.
O que se percebe tanto na obra de Heinlein como neste fragmento da obra de Piercy é a questão de como
a beleza se torna um imperativo na vida das personagens. Estou apenas especulando aqui, mas se Jane fosse
uma criança bonita, ela possivelmente teria sido adotada como ela mesma alega, e talvez o círculo vicioso que
termina por ser sua origem e sua ruína não aconteceria (E assim talvez ela nem sequer existisse no final das
contas?). Contudo, Jane vive presa ao que Georges Vigarello debate no seu livro História da Beleza (2006).
Lá ele fala de como, no começo do século XX, houve toda uma submissão do corpo à vontade da mente.
A promessa de tratamentos que fariam a pele ficar melhor, que trariam a perda de peso ou outros atributos
necessários a um corpo perfeito passam a dominar a vida das pessoas. Particularmente, as mulheres se veem
como as maiores vítimas desta situação, pois com a abertura do mundo feminino para a vida fora do lar
(trabalhos, saídas e festas em que não precisam ser tão forçosamente acompanhadas por pais ou irmãos) a

7. Personagem feminina de animação com o corpo belo e sedutor, esposa do protagonista do filme Uma Cilada para Roger
Rabbit (1988).
8. Tradução da Autora “O cabelo da mulher, pontilhado de malva e platino, estava arrumado em uma torre complexa de cachos
e pequenos enfeites, pérolas caíam como uma coroa de casamento. Ela usava um vestido de substância escorregadia que mudava
de cor conforme se movia e emitia um leve tinido; ele tinha uma abertura na lateral e tinha recortes aqui e ali para que seus
seios ocasionalmente escapassem ou que seu umbigo sumisse e reaparecesse.”

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

beleza passa a ser mais um atributo de ascensão social, especialmente se conseguirem ficar cada vez mais
parecidas com estrelas de cinema – que passam a ser o padrão de beleza vigente – que ajudariam na obtenção
do sonhado “bom partido” para casar. Como exemplo é possível citar o filme Los Angeles – Cidade Proibida (LA
Confidential, 1997), onde garotas aliciadas por uma rede de prostituição são operadas para se parecerem com
as grandes divas cinematográficas do início do século XX na esperança de atrair clientes para seus chefes, e elas
mesmas ambicionam um dia conseguir sair daquela vida e partir para o estrelato. Na verdade, tanto Guildina
quanto Jane ficam presas a um padrão de comportamento que foi descrito pela revista Vogue: “A lovely girl is an
accident; a beautiful woman is an achievement.” 9 (Apud VIGARELLO, 2006, p. 163.)

Além da questão da beleza, Jane se vê um tanto quanto perdida após sua desastrosa cesariana que resulta
na sua mudança de sexo. Como o jovem homem-Jane revela ao seu “eu” mais velho, ele se sente despreparado
para lidar com o mundo. Além de ter que aprender a ser um homem, a se vestir adequadamente e usar o
banheiro correto, Jane alega que não tinha nenhum ofício decente que pudesse garantir o seu sustento e
ajudá-la a contratar algum detetive que pudesse localizar sua criança desaparecida. Sua já discutida ‘ruína’ não
estava tão ligada ao fato de ter sido uma mãe solteira, mas sim o fato de que, enquanto mulher, Jane aprendeu
coisas que eram ‘inúteis’ em um mundo prático, mas que poderiam lhe garantir o promissor futuro dentro
das já mencionadas organizações de acompanhantes de astronautas: “‘I hated him for having ruined me for the
WENCHES, too, but I didn’t know how much until I tried to join the Space Corps instead. One look at my belly
and I was marked unfit for military service.’”10 (HEINLEIN, 2004, p. 42.) Sendo assim, enquanto homem, e
não tão atraente por sinal, tudo que aprendeu em seus cursos se tornou dispensável. Só lhe restou a habilidade
de estenografia, o que não lhe garantia muitos recursos: “Hell, I couldn’t even drive a car. I didn’t know a trade;
I couldn’t do manual labor – too much scar tissue, too tender.” 11(HEINLEIN, 2004, p. 42.) Neste fragmento
é possível perceber mais um elemento da questão de gênero no texto: se Jane enquanto mulher só precisava
ser bonita (mesmo que ‘consertada’ por meio de cirurgias), agradável e sexualmente disponível, o homem
que ela veio a ser precisava corresponder a uma noção preconcebida de força e virilidade, de capacidade de
executar trabalhos e assim ganhar dinheiro; elementos aos quais ela (como ‘ele’) não corresponde. A narrativa
de Heinlein apresenta então uma sociedade que, mesmo sendo suficientemente avançada para fazer viagens
intergaláticas e tudo mais, continua girando em torno da velha dualidade: o masculino ativo e empreendedor
e o feminino passivo e acomodado.

Ainda assim, retomando as tentativas frustradas do homem Jane de se estabelecer economicamente, se a


estenografia não lhe trouxe dinheiro diretamente, trouxe por outro aspecto; pois ao copiar o texto ruim de um
cliente para uma revista e ver este mesmo texto publicado, Jane resolve adotar um novo nome e lançar-se no
mercado de escritores, agora atendendo pela alcunha de Mãe Solteria.

Nesta nova função, Jane é reconhecido por retratar muito bem uma perspectiva feminina, ainda que
seja um homem. Neste momento, percebemos no texto o debate com relação à autoria de uma obra, existem
textos femininos e masculinos? Na realidade mostrada pelo conto de Heinlein tal ponto é válido, pois é algo
assombroso que um ‘homem’ como Jane (não é apresentado no texto o seu novo nome de homem) consiga
entender tão bem o universo feminino.

Esta parte do conto retoma uma discussão que vem há muito se apresentando especialmente em grupos
de análise do discurso: existe uma escrita feminina e uma masculina? Não pretendo aqui entrar em discussão
e responder esta pergunta, pois provavelmente levaria muito tempo e nem sei se conseguiria chegar a uma
resposta. Contudo, acho relevante mencionar a tese de doutorado de Rosely D. da Silva Machado intitulada
O Estudo do Gênero pelo Viés Discursivo: Refletindo sobre a Dualidade Masculino/Feminino e Sua Relação com a

9. Tradução da Autora: “Uma moça adorável é um acidente, uma mulher bonita é um triunfo.”
10. Tradução da Autora: “‘Eu o odiei por ter me arruinado para as WENCHES também, mas eu não sabia o quanto até tentar
me alistar nos Space Corps. Uma olhada na minha barriga e eu fui marcado como inadequando para o serviço militar.’”
11. Tradução da Autora: “‘Que inferno, eu não sabia dirigir um carro. Eu não sabia um ofício; eu não podia fazer trabalho
braçal – muito tecido com cicatriz e muito sensível.”

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Escrita (UFRGS, 2006). Uma parte de seu trabalho mostra como a autora fez uma experiência com leitores
(homens e mulheres) para que identificassem se tal texto havia sido escrito por um homem ou uma mulher.
O que se percebe é que nem sempre os participantes acertaram em suas respostas; porém, o que julgo mais
relevante mencionar são as justificativas destes participantes para avaliar o material proposto: eles se baseiam
nos papéis de gênero atribuídos pela sociedade e os repetem na hora de analisar um produto escrito. Como
exemplo temos a análise de Rosely Machado para uma das cartas que ela pediu a seus participantes para que
analisassem:
Havia uma particularidade correspondente ao significativo índice de “acerto” quanto ao fato
de o texto ter sido escrito por uma mulher. A pista intradiscursiva mobilizada pelos sujeitos-
leitores-autores foi a metáfora “varrendo lixo para baixo do tapete”, empregada pela autora do
texto-fonte, e, além disso, também foi referida a sensibilidade demonstrada pela autora da carta
que, segundo os participantes, foi uma demonstração sentimentalista (algo característico de uma
mulher). A leitura da metáfora empregada pela autora, Sandra, produziu para os sujeitos-leitores
um efeito de sentido relacionado diretamente a uma tarefa doméstica, ou seja, varrer significava
somente limpar a casa e, sendo assim, tal metáfora foi interpretada como uma atribuição de um
afazer doméstico tipicamente feminino. (MACHADO, 2006, p. 290.)

Sendo assim, a tendência dos leitores é que eles se apeguem ao que reconhecem do mundo fora do texto e
apliquem tal noção ao mundo da escrita. No caso do conto de Heinlein, não podemos fazer uma análise muito
profunda tendo em vista que o texto não nos fornece amostras do que Jane escreve para as revistas e alcance
algum sucesso. Ainda assim, podemos inferir que os leitores de seu material agem tal qual os leitores-cobaias
de Rosely Machado; acreditando que por falar tão bem do universo feminino, e vendo o autor como homem,
seria então um fato maravilhoso que seu discurso fosse tão bem elaborado, pois um homem naturalmente
não seria capaz de entender certas nuances da vida de uma mulher. Apresentando mais uma citação da tese:
“Tal reconhecimento [do autor] ocorre, segundo Castoriadis, em e por uma transformação do fato natural
de ser-masculino ou de ser-feminino em significação imaginária social de ser-homem ou de ser-mulher.”
(MACHADO, 2006, p. 30.)

Como tudo na vida de Jane foi determinado por estereótipos de gênero, vemos aqui no conto “All You
Zombies –” mais do que uma mera aventura marcada por paradoxos e viagens no tempo. Se a jornada da
heroína foi marcada por desventuras que são tipicamente associadas ao universo feminino, como a falta de
beleza, a gravidez e o abandono; vemos também por outro lado o que se espera do masculino ao ser operada
e tornada homem, que seja forte, viril e amplamente capaz no mundo do trabalho, seja para serviço braçal ou
não. Robert A. Heinlein pode ter escrito seu texto em um período em que os avanços nos estudos de gênero
ainda não fossem tão presentes ou marcantes, mas podemos considerar seu material como um campo bem
fértil para este tipo de discussão.

Referências
ASIMOV, Isaac. I, Robot. New York : Ballantine Books, 1977.
CLUTE, John & NICHOLLS, Peter. The Encyclopedia of Science Fiction. New York: St. Martin’s Griffin,
1992.
HEINLEIN, Robert A. All You Zombies – . In: CARD, Orson Scott. (ed.) Masterpieces: The Best Science Fiction
of the Century. New York: Ace Book, 2004.
LE GUIN, Ursula K. The Left Hand of Darkness. New York: Harper & Row, 1980.
MACHADO, Rosely Diniz da Silva. O Estudo do Gênero pelo Viés Discursivo: Refletindo sobre a Dualidade
Masculino/Feminino e Sua Relação com a Escrita. Tese de doutorado em Teorias do Texto e do Discurso. Porto
Alegre: UFRGS, 2006.
PIERCY, Marge. Woman on the Edge of Time. New York: Fawcett Columbine, 1997.

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ROBERTS, Adam. Science Fiction. New York: Routledge, 2000.


VIGARELLO, Georges. História da Beleza. Trad. Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
Referências sobre filmes e televisão
ALIEN – O 8o PASSAGEIRO. (Alien) Direção: Ridley Scott. Los Angeles: 20th Century Fox, 1979. (117
min.).
ALIEN VS. PREDADOR. (Alien vs. Predator) Direção: Paul W. S. Anderson. Los Angeles: 20th Century Fox,
2004. (101min.).
UMA CILADA PARA ROGER RABBIT. (Who Framed Roger Rabbit) Direção: Robert Zemeckis. Burbank,
California: Touchstone Pictures, 1988. (104 min).
DE VOLTA PARA O FUTURO. (Back to the Future.) Direção: Robert Zemeckis. Universal City, California:
Universal Studios, 1985. (116 min.).
JORNADA NAS ESTRELAS: SÉRIE CLÁSSICA. (Star Trek: The Original Series) Criador: Gene Roddenberry.
Los Angeles: Paramount Television, seriado detelevisão, 1966-1969. (episódios de 45 min.).
LOS ANGELES – CIDADE PROIBIDA. (LA Confidential) Direção: Curtis Hanson. Los Angeles: Warner
Bros., 1997. (138 min.).
PREDADOR. (Predator) Direção: John McTiernan. Los Angeles: 20th Century Fox, 1987. (107 min.).
TROPAS ESTELARES. (Starship Troopers) Direção: Paul Verhoeven. Burbank, California: Touchstone Pictures,
1997. (129 min.)

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Feminismo e identidade nacional no Canadá pós-colonial
em O Lago Sagrado, de Margaret Atwood

BRAGA, Bruna Cristina Afonso (UFSJ)


masakibruna@gmail.com
OLIVEIRA, Luiz Manoel da Silva (UFSJ)
luizmanoel@ufsj.edu.br

RESUMO O presente artigo discute conceitos feministas e pós-coloniais no mundo ocidental contemporâneo,
em especial no Canadá, usando como objeto de estudo O Lago Sagrado (em inglês, Surfacing). Pu-
blicada em 1972, a obra se caracteriza por provocar a desconstrução de papéis sociais e dicotomias
como homem x mulher, americano x canadense, civilização x natureza. Será abordado o crescente
nacionalismo, bem como a criação de uma identidade canadense que se forma em oposição à iden-
tidade do Outro/outro. Além disso, será discutido igualmente o complexo de vitimização feminino, a
partir da relação entre a narradora e a paisagem de Quebec, pois a mulher e a natureza são subjuga-
das pelo homem e pela civilização, respectivamente. Tendo nascido e vivido em uma sociedade pa-
triarcal, em que os papéis sociais são fortemente delimitados, a narradora, cujo nome não é mencio-
nado, descreve as relações humanas como destituídas de compaixão, comportamento semelhante
ao de animais selvagens. Com base na travessia da narradora de Ontario a Quebec, são reveladas as
disparidades entre o norte aspirante a se tornar uma nação independente falante de francês e o sul,
falante de inglês e amplamente influenciado pelos Estados Unidos. Por fim, o artigo tem como um
de seus objetivos constatar a existência do improvável sentimento de identidade cultural em um
país multicultural, bilíngue e traumaticamente fragmentado.
Palavras-chave: feminismo, pós-colonialismo, natureza, identidade.

ABSTRACT The purpose of this paper is discuss feminist and post-colonialist concepts in the contemporary Western
world, especially in Canada. Therefore, Surfacing’s Margaret Atwood will be taken as object of study.
Published in 1972, the work is characterized by causing the deconstruction of social roles and dichoto-
mies as man / woman, American / Canadian, civilization / nature. The rising nationalism and the crea-
tion of a Canadian identity formed in opposition to the identity of the Other/ other will be approached as
well. Furthermore, the complex of female victimization, based on the relationship between the narrator
and the landscape of Quebec, women and nature, both subjugated by man and civilization will be dis-
cussed. The narrator whose name is not mentioned, born and raised in a patriarchal society, where so-
cial roles are deeply bounded, describes human relationships as devoid of compassion, behavior of wild
animals. Based on the narrator crossing from Ontario to Quebec, it’s discovered differences between
the north – aspired to become an independent French-speaking nation - and the south – English-speak-
ing and largely influenced by the United States. Finally, this paper has as one of its goals to establish
the existence of the improbable sense of cultural identity in a multicultural, bilingual and traumatically
fragmented country.
Keywords: feminism, post-colonialism, nature, identity.

Introdução
Natural de Ottawa, Margaret Atwood nasceu no ano de 1939 e passou grande parte da infância
vivendo entre o norte de Quebec – onde seu pai, entomologista, realizava suas pesquisas – e sua cidade natal.
Segundo David Staines (2006), a escritora vivenciou o contexto de desvalorização da cultura canadense em

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

relação ao campo das artes, sendo que os estudos literários, na época, conferiam mérito a renomados autores
gregos, romanos, egípcios e britânicos, não havendo grande interesse em serem discutidas obras canadenses,
principalmente as de escritores contemporâneos.

Ao longo dos anos de 1950, o país passava por um conflito de identidade cultural. Ao mesmo tempo,
de acordo com Staines (2006), aquela era uma época fortemente marcada pelo patriarcalismo, em que não
era permitido a uma mulher escrever mais do que obituários ou artigos em uma seção feminina. Durante a
sua graduação, na Universidade de Toronto, Margaret Atwood viu-se novamente decepcionada com a pouca
atenção dada à literatura local.

Apesar do cenário pouco animador, Atwood manteve-se decidida a escrever e publicar. Contudo, foi
tão somente na Universidade de Harvard (EUA), durante seu programa de mestrado, que pôde divisar a
possibilidade de um fazer literário genuinamente canadense, ao perceber que outras formas de literatura eram
enaltecidas nos Estados Unidos (STAINES, 2006).

Atualmente Margaret Atwood é conhecida por sua vasta produção, incluindo poesia, não-ficção e
romances famosos, como Alias Grace (1996), The Penelopiad (2005), The Handsmaid Tale (1986), The Blind
Assassin (2000) e Surfacing (1972), além de livros infantis e roteiros para televisão.

Segundo Luiz Manoel Oliveira (2011), Atwood é também ativista social, política e ambiental, sendo
membro influente de organizações como a Anistia Internacional. Oliveira (2011) também afirma que
as atuações sociais e políticas da autora de certa forma refletem-se em suas obras, que tratam de questões
ambientais, de gênero, de identidade, pós-coloniais e neocoloniais, dentre outras temáticas de relevância na
contemporaneidade.

Em vista de tudo isto, nosso propósito principal com este artigo é problematizar e discutir conceitos
feministas e pós-coloniais no mundo ocidental contemporâneo, em especial no Canadá, de modo a se
compreender como se dão as sutilezas dos entrelaçamentos entre as questões identitárias nacionais canadenses e
aquelas atinentes à mulher, por meio da análise das ações e representações da protagonista feminina e das outras
personagens femininas de O Lago Sagrado (em inglês, Surfacing), de Margaret Atwood. A obra em questão
foi publicada em 1972 e se caracteriza por provocar a desconstrução de papéis sociais, bem como a noção
de realidade e identidade, fazendo emergirem os binarismos “homem x mulher”, “americano x canadense” e
“civilização x natureza”, por exemplo.

Assim, tem-se como propósito investigar o complexo de vitimização canadense, cuja principal faceta
é o nacionalismo extremado de cunho antiamericano. Serão abordadas temáticas pós-coloniais como parte
constituinte do crescente nacionalismo e do repensamento das questões identitárias canadenses, que antes
estavam somente vinculadas ao esquema binário reducionista da “outremização” (Outro/outro), que, segundo
Bonnici (2005, pp. 44-45) é “o processo pelo qual o discurso imperial fabrica o outro”. Naturalmente essa
concepção implica uma série de especificações e contextualizações; no entanto, grosso modo, é suficiente
aqui mencionar que a identidade canadense desde o seu nascedouro colonialista sempre esteve atrelada à
constituição da identidade de um “Outro” colonizador (França ou Inglaterra) e, mais contemporaneamente,
à Inglaterra (pelo fato de o Canadá ainda fazer parte da Commonwealth inglesa) e aos Estados Unidos, pela
flagrante e avassaladora influência norte-americana em vários setores da vida e cotidiano canadense.

Nesse sentido, em O Lago Sagrado Atwood efetiva tanto a exposição do binarismo Outro/outro, com
todos os contornos da natureza colonial passada das relações do Canadá com a França e a Inglaterra, quanto a
reconstituição dessa mesma relação em que os Estados Unidos passam a ocupar o lugar preponderante dessas
duas potências colonizadoras europeias do passado, graças às sutilezas do neocolonialismo. Naturalmente,
qualquer que seja a vertente da referida relação, o Canadá sempre está na posição do “outro” (com letra
minúscula e como segundo elemento do par binário). Vale a pena frisar, então, que o romance de Atwood tem
o mérito de propor a subversão desse binarismo, estimulando a reconsideração da identidade canadense numa
perspectiva mais transcendente do que as possibilidades oferecidas pelos modelos identitários anteriores.

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Além disso, e de forma mais abrangente, será discutido igualmente o complexo de vitimização feminino,
a partir do paralelo traçado por Atwood entre a narradora e a paisagem de Quebec, a mulher e a natureza,
ambas forçosamente subjugadas pelo homem e pela civilização, respectivamente, levando-se em consideração
o ambiente opressivo de cunho patriarcal que sempre dominou o ocidente como um todo, e, neste caso, o
Canadá, especificamente.
Para tanto, será utilizado o arcabouço teórico de autores como Ambika Bhalla (2012), Ania Loomba
(2005), Thomas Bonnici (2005), Bill Ashcroft (2002), David Staines (2006), Vandana Shiva (1988) e
Karen Warren (1997), dentre outros. Assim, será de relevância constatar com Atwood vai empoderando sua
protagonista, aliando-a às especificidades e aos mistérios da natureza, para, enquanto supera e desconstrói esse
propalado complexo de vitimização de certa forma inerente ao espírito canadense, propor a formulação de
uma identidade feminina renovada e vitoriosa, em relação a esses obstáculos de ordem cultural e ideológica,
que são partes da nossa sociedade patriarcal ocidental.

Revisão de literatura
O Pós-Colonialismo, o Feminismo e o Neocolonialismo
Ania Loomba (2005) define o termo “colonialismo” como o ato de conquistar e manter o controle sobre
o território e os bens de outra(s) pessoa(s). A estudiosa afirma ainda que o colonialismo não se refere tão
somente às expansões europeias no século XVI sobre outros territórios, sendo a ação de colonizar recorrente e
largamente difundida na história da humanidade. O colonialismo moderno, ainda segundo Loomba (2005),
tem um impacto ainda maior sobre o colonizado, por não serem mais extraídos somente bens ou tributos, mas
por haver, de fato, uma reestruturação da economia da colônia, com o objetivo de ser criada uma intrincada
rede de relacionamento entre ambos, que sempre implica desvantagens para a colônia (ou neocolônia) e os
seus habitantes.
De acordo com Vandana Shiva (1988), os avanços tecnológicos na atualidade estão de certa forma
vinculados ao projeto pós-colonial, tendo como propósito adequar o mundo a um modelo de progresso
semelhante ao do ocidente colonizador. Mascarada sob a forma de desenvolvimento tecnológico, essa é uma
forma de colonização em que não há subjugação ou exploração explícita, segundo a autora. Ao mesmo tempo
em que todo esse desenvolvimento do aparato tecnológico realmente facilita os procedimentos em geral,
o trabalho e a vida das pessoas e das comunidades, também ocorre a dependência de pessoas, instituições
e nações do que os grandes conglomerados industriais e empresariais vão criar e determinar em termos de
modas, tendências, comportamentos, aparelhagens e procedimentos tecnológicos. Ocorre que a maioria desses
conglomerados e organizações tem suas sedes em países do primeiro-mundo, notoriamente trabalham em prol
das políticas econômicas desses países e exportam dados, produtos e tecnologias para países em desenvolvimento
e países pobres, do terceiro-mundo. Dado esse contexto, não fica difícil imaginar a dependência tecnológica
e em outros níveis que estes últimos têm do que é determinado e ditado naqueles países desenvolvidos. Um
exemplo bem prático disso se consubstancia na rede de espionagem internacional levada a efeito pelos Estados
Unidos, que pirateou informações sigilosas de vários países recentemente, inclusive o Brasil, com o apoio
de várias dessas firmas de tecnologia, deixando claro como esses países podem atuar clandestinamente para
defender seus interesses e neocolonizar países menos desenvolvidos tecnologicamente.
Dessa forma, Shiva (1988) afirma que conceitos e categorias quanto ao desenvolvimento econômico
e à utilização dos recursos naturais emergiram ao longo do processo de industrialização e do crescimento
capitalista. A partir desse momento, houve uma universalização de tais conceitos, bem como aplicabilidade
ao contexto e às necessidades completamente divergentes da população dos países de terceiro-mundo,
recentemente independentes.
Loomba (2005) lembra que o pós-colonialismo vai além das fronteiras de países e continentes, de maneira
que são encontrados sujeitos pós-coloniais mesmo dentro das metrópoles. De acordo com a autora, o pós-
colonialismo tem sido comparado com outras formas de dominação, como o regime patriarcal, uma vez que
suas características básicas são semelhantes àquelas de dominação sobre a mulher.
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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Ecofeminismo
Karen Warren (1997) descreve o feminismo ecológico, ou ecofeminismo, como um conjunto de ideologias
que, em geral, sustentam que a forma como mulheres, indivíduos de classes menos favorecidas ou pessoas de
cor são tratados tem estreita ligação com a maneira como é tratado tudo o que não é humano.

Entretanto, a autora afirma que as variadas ramificações do pensamento ecofeminista possuem áreas
de atuação diferentes, o que torna inviável a criação de um conceito unitário. Apesar disso, Greta Gaard1
(2012 apud BHALLA, 2012, p. 1) considera de interesse comum às vertentes ecofeministas o histórico de
dominação sobre a mulher e sua relação com a dominação da natureza. Para Ambika Bhalla (2012), o caráter
transdisciplinar do pensamento ecofeminista torna de vital importância a abordagem de temas como poder,
dominação e subordinação.

Bhalla (2012) afirma que, durante a busca por seu pai em meio à natureza selvagem, que havia sido pano
de fundo para a sua infância, a narradora de O Lago Sagrado percebe que a natureza estava sendo vitimizada
pelos americanos. Ao mesmo tempo, e segundo a autora, a protagonista desenvolve a consciência de que ela
mesma está sendo igualmente vitimizada, formando a consciência de que a relação entre o homem e o binômio
mulher/natureza tem sido de exploração, subjugação, violência e aniquilação.

Mais uma vez se destaca o potencial de subversão do presente romance de Atwood, se considerarmos as
atitudes irracionais, instintivas e nada cartesianas da protagonista, quando passa a se integrar com a natureza
de uma maneira tão mágica que deixa de ser “humana” no sentido iluminista que reflete o famoso aforisma
“penso; logo, existo”. Se de um lado essa estratégia atwoodiana alinha-se a uma das inúmeras marcas do
pós-modernismo, que é efetivar enfaticamente uma crítica à cultura da exaltação da racionalidade iluminista
(que reduz os subalternos e as minorias à objetificação, à subjugação e à inferioridade compulsória), por
outro lado essa mesma estratégia une a crítica aos desmandos cometidos contra a natureza às diversas formas
de opressão e restrições impostas às mulheres, conforme Thomas Bonnici tão bem expressa por meio das
seguintes palavras:
O ser humano, possuidor de racionalidade, coloca-se acima da natureza, que ele domina e con-
trola, e torna-se a fonte de práticas antiecológicas. Seguindo essa mesma lógica de dominação, no
dualismo homem/mulher, o homem, supostamente com cérebro maior ou possuidor de algum
atributo espúrio, coloca-se como superior à mulher. Atribui à mulher a materialidade, o emocio-
nal e o particular, enquanto o homem se associa à cultura, ao racional e ao abstrato. [...] A atitude
do ecofeminismo radical contra essa ideologia consiste em reverter os termos, ou seja, exaltar a
natureza, a irracionalidade, a emoção e o corpo humano, em detrimento da cultura, da razão e
da mente (BONNICI, 2007, p. 68).

Em suma, Atwood evidencia e problematizava inúmeras questões que se apresentam entrelaçadas no


romance: a opressão da mulher na sociedade patriarcal colonial, pós-colonial e neocolonial; o descaso com a
natureza (exaltando as características da natureza canadense e acusando os americanos de atitudes antiecológicas
e anticanadenses) e as próprias questões da identidade canadense, frente ao poderio e às influências ameaçadoras
do grande vizinho norte-americano.

Identidade nacional
Charles Taylor2 (2001 apud FIGUEIREDO E NORONHA, 2005, p. 1) define o sentimento de identidade
como percepções que o sujeito tem de si próprio e das características básicas que o definem enquanto ser
humano. Entretanto, Eurídice Figueiredo e Jovita Noronha (2005) afirmam que, no mundo contemporâneo,
tem-se aceitado a noção de “identidades plurais”, devido ao contexto de multiculturalidade atual.

1. GAARD, G. Ecofeminism: Women, Animals, Nature. Disponível em: <www.asle.umn.edu/pubs /collect/ecofem/Glotfelty.


pdf.>. Acesso em: ago. 2012.
2. TAYLOR, C. Multiculturalisme. Différence et démocratie. Paris: Flammarion,1994. THIESSE, A. La création d’identités
nationales. Europe XVIIIe - XXe siècle. Paris: Seuil, 2001.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Buscando as origens da identidade nacional canadense, Figueiredo e Noronha (2005) afirmam que:
Ao contrário dos Estados Unidos, cuja independência é de 1776, e de todos os países conti-
nentais da América Latina, que fizeram suas independências ao longo do século XIX, o Canadá
continuou sob o domínio inglês, chegando ao século XXI com um estatuto bastante singular,
como parte do Commonwealth, conservando a figura (ainda que decorativa) do Governador
Geral, representante da Rainha, cuja foto ainda é estampada na moeda local (o dólar canadense)
(FIGUEIREDO & NORONHA, 2005, p. 6).

Tudo isso é na verdade o resultado de um processo histórico complexo e fragmentado, que se mostrou
extremamente peculiar para o Canadá e lhe fez ocupar um lugar de exceção no grupo das nações pós-coloniais
que no passado ocuparam a segunda posição do pares binários como “Outro/outro”, “Civilizado/selvagem”,
“Metrópole/colônia”. Isso equivale a dizer que o processo diferenciado a que as circunstâncias históricas
submeteram o Canadá nem sempre lhe permitiram se enxergar na posição secundária desses pares binários.
Tendo sido uma colônia de povoamento, alguns privilégios e concepções dos colonos britânicos que lá
fixaram residência (muitas vezes respaldados em concessões e deferências da metrópole inglesa) ajudaram a
forjar a mentalidade de que o Canadá “era” parte, extensão da metrópole, em vez de mais uma das colônias
inglesas. Em vista disso, dá para começar a compreender a razão da característica esquizofrênica da identidade
canadense, uma vez que, mesmo sendo uma país pós-colonial, diferencia-se da maioria das demais nações
contemporâneas nessa situação (como a Índia e o Brasil, por exemplo), por não compartilhar com elas uma
série de problemas e obstáculos ao desenvolvimento, tais como altos índices de miséria e pobreza, que de
alguma forma podem ser vistas como consequências de um passado colonial de espoliação que o Canadá não
experimentou (pelo menos não na mesma intensidade).
Em função disso, vários teóricos e intelectuais tais como Linda Hutcheon e Bharati Mukherjee são bastante
criteriosos para explicar a situação identitária fragmentada do Canadá. Por essa razão, Hutcheon (1997) afirma
que considerar o Canadá como um país de pós-colonial (e, de alguma forma, de terceiro-mundo, por mais
estranho que isto possa parecer) requer muita especificação, principalmente por causa dos efeitos psicológicos
de um passado colonial que tanto espoliou como fez o Canadá não se reconhecer totalmente como colônia
ou ex-colônia. No entanto, a teórica também ressalta que como efeito dessas circunstâncias tão peculiares, o
Canadá nunca se sentiu cultural ou politicamente em posição de centralidade. Nesse sentido, Hutcheon cita
as palavras da escritora Bharati Mukherjee, que afirma que:
Cada escritor indiano, jamaicano, nigeriano, canadense e australiano sabe exatamente o que
significa ser um indivíduo da periferia cujo grito dissipa-se sem ser ouvido por ninguém. Cada
um deles sabe o que significa ser vítima de uma absoluta desvalorização emocional e intelectual,
e morrer irrealizado e isolado do centro do mundo (MUKHERJEE apud HUTCHEON, 1997,
p. 133).

No entanto, Hutcheon (1997) complementa as elucubrações de Mukherjee, afirmando que embora:


Muitos comentaristas sejam bastante açodados em afirmar que o Canadá é um país de terceiro-
mundo e, portanto, uma nação pós-colonial, na verdade, o Canadá é de fato um país de terceiro-
mundo simplesmente porque os canadenses têm lutado para encontrar as suas próprias vozes e
escrever acerca do que seja genuinamente deles, em face de um imperialismo cultural absoluta-
mente avassalador (HUTCHEON, 1997, p. 134).

Dadas essas esparsas reflexões e tendo as temáticas de O Lago Sagrado em mente, podemos entender
como essas estratégias ecofeministas, aliadas às questões da identidade feminina e à problematização da
identidade canadense, podem ser de utilidade para uma leitura do romance que privilegie tanto a agência e
empoderamento feminino, quanto uma visão mais emancipada do Canadá e da sua produção literária.

Análise do romance
O enredo da obra baseia-se no retorno da narradora ao local onde passou sua infância, em busca de
informações sobre o desaparecimento de seu pai. Para tanto, a narradora, cujo nome em nenhum momento é
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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

mencionado, relata sua travessia de um ponto a outro do país, quando é revelada a vastidão do norte canadense
– aspirante a se tornar uma nação independente falante de francês – em contraposição ao sul falante de inglês –
amplamente influenciado pelos Estados Unidos.
A ruptura com sua terra natal se mostra definitiva, quando a narradora busca se comunicar com os
moradores da cidade na língua local – o francês -, apesar de ter estudado muito pouco o idioma durante a
infância. Sendo logo identificada como não pertencente àquela região, ela se mostra frustrada em sua tentativa
de aproximação com o passado.
Não há nada de que me lembre até chegarmos à fronteira, onde há uma placa, de um lado escrito
bienvenue e do outro welcome. […] Agora estamos em minha terra natal, território estrangeiro.
Minha garganta aperta como quando descobri que as pessoas podiam dizer palavras que entra-
riam em meus ouvidos sem significar nada (ATWOOD, 1972, p. 11).

Com base nas disparidades existentes entre Ontario, a província falante de inglês onde passou a maior
parte de sua vida, e Quebec, onde nasceu, a protagonista nos faz indagar sobre a existência do improvável
sentimento de identidade cultural em um país multicultural, bilíngue e traumaticamente fragmentado.
Tendo nascido e vivido em uma sociedade patriarcal, em que os papéis sociais são fortemente delimitados,
a narradora descreve também as relações humanas como destituídas de compaixão, comportamento semelhante
ao de animais selvagens. Para tanto, são relatadas as interações entre a narradora e seus companheiros de viagem
(seu namorado Joe e o casal de amigos, David e Anna), considerados por ela como seus amigos mais próximos.
Ao mesmo tempo, a protagonista revela a superficialidade dessas relações, ao afirmar ironicamente: “[Anna] é
minha melhor amiga. Faz dois meses que a conheci” (ATWOOD, 1972, p.10).
Ao longo do romance, a narradora retoma as memórias da infância, bem como dos anos em que morou
fora de Quebec, deixando suas impressões ao leitor sobre a vida da mulher na contemporaneidade, baseadas
no cotidiano das outras mulheres que fazem parte da narrativa. Dentre elas, Anna, que se esforça para se
enquadrar em um padrão de beleza; Madame, uma dona de casa que vive anônima e a quem nunca foi dada
a oportunidade de conhecer mais do que o lugar que habita; e sua mãe, que, apesar de morar em uma região
remota, cercada pela natureza, morreu de câncer, a “doença da civilização”.
A narradora sugere que a imersão completa do sujeito feminino na natureza pode funcionar, à primeira
vista, como uma válvula de escape dos padrões patriarcais. Entretanto, a presença de outros humanos durante
o seu refazimento identitário feminino acarreta situações conturbadas, pela não aceitação da imposição de
padrões. Um dos momentos mais marcantes se dá após uma tentativa de assédio de David, marido de Anna, ao
qual a narradora não corresponde positivamente. Diante disso, David afirma veemente que “ela odeia homens
[…] Ou é isso ou ela quer ser um. Certo?”, o que indica uma forte e difundida noção sexista.
A busca por sua verdadeira identidade é feita, portanto, em contraposição à civilização, protagonizada
no romance pelos chamados “americanos”, bem como canadenses que, segundo a narradora, teriam um
comportamento semelhante aos primeiros.
A obra, em seu viés de desconstrução, de certo modo se apropria de alguns princípios do Transcendentalismo
norte-americano oitocentista, cujos principais idealizadores foram Ralph Waldo Emerson, Henry David
Thoreau, Margaret Fuller e Bronson Alcott (OUSBY, 1996, p. 952), em meio ao emaranhado de situações e
argumentações referentes ao pós-colonialismo e ao neocolonialismo, para a um só tempo questionar a situação
identitária confusa do Canadá, os estereótipos sexistas e patriarcais que modelam os modelos de comportamento
e identidade de homens e mulheres e a maior parte das instituições que forjaram ideologicamente o mundo
ocidental (a família patriarcal; os papéis sociais e culturais das pessoas e instituições; a religião [principalmente
o Cristianismo]; as relações entre a potência neocolonizadora estadunidense o e Canadá; dentre outras).
Exatamente nessa dimensão, podemos enxergar alguns empréstimos transcendentalistas na obra de Atwood,
na medida em que o Transcendentalismo norte-americano propunha negação de todo o passado ocidental e a
redescoberta de novos parâmetros para a existência, por meio do mergulho numa vida simples e orientada pela
natureza, o que ocasionaria que o Divino se revelaria ao homem pela via da intuição.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Ou seja, concluímos que essa obra ficcional de Atwood trata da pura desconstrução e subversão dos
legados patriarcais ocidentais, em larguíssima escala, e dos pressupostos de opressão individual e nacional
canadense, revisitados pelo crítico e arguto olhar revisionista pós-colonial e acidamente contundente com
relação ao domínio neocolonial exercido a um só tempo de forma ostensiva e sutil contra os canadenses e
o Canadá, por parte dos norte-americanos e sua onipresença, tida como nefasta, que paira sobre a nação
canadense e seus habitantes.
Da mesma forma, entramos em contato com a noção pouco consistente de identidade canadense. Em
especial isso pode ser notado no seguinte diálogo, travado entre a narradora e desconhecidos que elas e seus
amigos encontraram próximo ao lago onde pescavam:
– Oh, de que parte dos EUA vocês são? É difícil reconhecer sua pronúncia. Fred e eu pensamos
em Ohio.
– Não somos americanos – eu disse, aborrecida por ter me confundido com um deles.
– Sério? – O rosto dele se iluminou, tinha encontrado um verdadeiro nativo. – São daqui?
– Sim, todos nós.
– Nós também – disse o de trás, inesperadamente (ATWOOD, 1972, p. 144).

Também reforçando a noção de resistência à influência cultural e ideológica norte-americana, a narradora


completa, entretanto, que:
[…] Não importa de que país sejam [...], ainda continuam a ser americanos, são o que nos es-
pera, no que estamos nos transformando. […] Se você se parece com eles, fala como eles, pensa
como eles – então é um deles. Se fala a linguagem deles, a linguagem é tudo o que você tem
(ATWOOD, 1972 pp. 144-145).

Essa é uma constante temática na obra, sendo que a narradora a todo momento faz referência aos
americanos como invasores destruidores. Atwood compara sutilmente as relações de poder e subjugação entre
homem e mulher a partir da caça imotivada de uma ave pelos americanos:
[...] Por que a tinham pendurado assim, como uma vítima de linchamento? Por que não a jo-
garam fora como lixo? Para provar que podiam fazer isso, que tinham o poder de matar. Caso
contrário, era totalmente sem valor: bonita a distância mas não podia ser domesticada, cozida ou
treinada para falar. A única relação possível com ela era destruí-la. Alimento, escravo ou cadáver:
a escolha era limitada [...] Matança insensata, era um jogo. Depois da guerra tinham ficado ente-
diados [...] (ATWOOD, 1972, p. 131; 137).

A protagonista analisa ao longo da narrativa a condição de vítima do sujeito feminino, fator que, ao
mesmo tempo em que é uma consequência do regime patriarcal, promove esse ideal feminino. Ela contesta tal
pensamento, indicando que, após a sua imersão na natureza, que culminou no abandono de sua posição de
vítima, tornou-se livre e desacreditou no discurso corrente.
Acima de tudo, recusar-me a ser uma vítima. Se não conseguir isso, não poderei conseguir nada.
Tenho que renunciar à velha crença de que sou inofensiva, e por isso nada que jamais fizer poderá
ferir alguém. […] O que importa é que está aqui, um mediador, um embaixador que me oferece
algo: escravidão, em qualquer uma de suas formas, uma nova liberdade? (ATWOOD, 1972,
p. 217-218).

Considerações finais
Margaret Atwood revela em O Lago Sagrado críticas sociais totalmente aplicáveis ao contexto histórico-
cultural atual do Ocidente, de maneira que se mostra de grande relevância reinterpretar e rediscutir alguns dos
conceitos e instituições sociais e culturais já há muito difundidos e que, em grande parte, são considerados
“verdades” imutáveis.
A obra foi concebida segundo a ótica emancipadora do sujeito pós-colonial, colocando-o como sujeito
ativo, provocando a desconstrução dos padrões impostos pela sociedade. Com isso, pretendemos investigar e

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

trazer à tona temas de interesse feminista, além de analisar, a partir da obra, as causas diversificadas do senso
de nacionalismo crescente em ex-colônias, como o Canadá, principalmente levando-se em conta as questões
peculiares da identidade canadense, conforme já explicado.
Foi igualmente discutida a complexa questão da identidade canadense, que em geral é definida como
oposta à identidade do Outro colonizador, o que demonstra sentimentos simultâneos de atração (flagrante
absorção do American way of life, em vários campos do cotidiano canadense) e repulsa (reconhecimento da
influência deletéria norte-americana sobre o Canadá, seus sujeitos e sua natureza) (LOOMBA. 2005). Assim,
percebe-se uma proximidade entre colonizador e colonizado (ou neocolonizador e neocolonizado, no caso
dos Estados Unidos e do Canadá), ao mesmo tempo em que se reconhece uma crítica extremante ácida e
contundente ao EUA, enquanto potência neocolonizadora. Na obra, o fato de a narradora confundir algumas
vezes canadenses com estadunidenses, em geral pelo seu modo de agir, evidencia semelhanças culturais.
Por fim, o artigo buscou identificar o processo de vitimização ainda enfrentado pelas mulheres (assim como
a sua superação, como defende Atwood), além de promover a contestação de muitas “verdades” da sociedade
patriarcal, a fim de permitir a expressão desse grupo social, em especial enquanto sujeito pós-colonial, ou seja,
duplamente colonizado. Por outro lado, também acreditamos que o empoderamento feminino que se vislumbra
no final da narrativa, quando a protagonista começa a “renascer” como uma nova mulher para a sociedade
canadense (mais intuitiva, mais forte, nada submissa e mais ecológica) também revela uma possibilidade de
expressão mais emancipada da voz e da identidade canadense.

Referências
ATWOOD, M. O Lago Sagrado. Tradução de Cacilda Ferrante. São Paulo: Globo, 1989.
BHALLA, A. Ecofeminism in Margaret Atwood’s Surfacing. International Journal of Scientific and Research
Publications, Longowal, India, v. 2, n. 10, Out. 2012.
BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá: EDUEM – Editora da Universidade
Estadual de Maringá (PR), 2005.
_______________. Teoria e crítica literária feminista – conceitos e tendências. Maringá: EDUEM – Editora da
Universidade Estadual de Maringá (PR), 2007.
FIGUEIREDO, E.; NORONHA, J. M. G. Identidade nacional e identidade cultural. In: FIGUEIREDO, E.
(Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora/Niterói: Ed. UFJF/EdUFF, 2005, p. 189-205.
HUTCEON, Linda. Circling the downspout of empire. In: ASHCROFT, Bill et al., eds. The post-colonial
studies reader. New York: Routledge, 1997.
LOOMBA, Ania. Colonialism/Postcolonialism. Londres e Nova York: Routledge, 2005.
NEVES, B.; MARTINS, C; HARRIS, L.; RODRIGUES, L.; OLIVEIRA, L.; OLIVEIRA, Luiz M. S.
Margaret Atwood’s Alias Grace and Surfacing: a comparative assessment of female and Canadian identity
under post-colonial perspectives. Revista Saberes, Rio de Janeiro, n.1, 2008. Disponível em: http://www.
estacio.br/publicacoes/saberes/saberesmar08.pdf. Acesso em 10/10/2013.
OUSBY, Ian, ed. The Cambridge guide to literature in English. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
SALGUEIRO, M.; GUEDES, P.; FUNCK, S.; FUENTES, S. Tecendo outras histórias: a parte das mulheres
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SHIVA, Vandana. Staying Alive: Women, Ecology and Survival in India. Nova Deli: Kali for Women, 1988.
STAINES, David. Margaret Atwood in her Canadian context. In: HOWELLS, C. The Cambridge Companion
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WARREN, Karen. J. Introduction. Ecofeminism: women, culture, nature. Bloomington, Indiana: Indiana
University Press, 1997.
– 770 –
O foco narrativo em A audácia dessa mulher,
de Ana Maria Machado
LEAL, Maria Aparecida Borges (UFPR)
mariacidinhaleal@yahoo.com.br

RESUMO As práticas que têm conquistado a preferência de muitos escritores na contemporaneidadeapontam


para duas vertentes da ficção histórica: a primeira tem como base os sujeitos empíricos que fizeram
parte da historiografia e os converte em personagens ficcionais. A outra adota como referentes as
personagens ficcionais, com identidades próprias que permitam que elas sejam reconhecidas nos
textos novos. As refigurações de Capitu, personagem de Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis
(1839-1908), contemplam essa segunda tendência e têm sido recorrentes. O objetivo deste trabalho
é refletir sobre a construção do foco narrativo em A audácia dessa mulher (1999), de Ana Maria Ma-
chado, com o propósito de observar de que modo o narrador olha para a complexidade de Capitu,
um século depois da sua criação, e reexamina o papel desempenhado por ela numa sociedade do
final do século XIX, na qual o conhecimento, a astúcia, a audácia e a capacidade de dissimulação
eram reservadas aos homens.
Palavras-chave: autor implícito, autor onisciente intruso, metaficcionalidade, metanarratividade.

ABSTRACT The practices that have conquered the preference of many writers in contemporary contextspinpoint
ontwo different sides of historical fiction: the first one is based on the empirical subjects who had parti-
cipated in the historiography, and converts them into fictional characters. The other one adopts as re-
ferring to fictional characters with own identities that allow them to be recognized in the new texts. The
recreations of Capitu, character of Dom Casmurro (1899) – a novel written by Machado de Assis (1839-
1908) – contemplate this second tendency and have been recurrent. The purpose of this work is to reflect
on the construction of the narrative focus on A audácia dessa mulher (1999), by Ana Maria Machado,
with the intention of observing how the narrator looks at the complexity of Capitu, a century after she
had been raised, and examines the role that she played in the late nineteenth century’s society, in which
the knowledge, the artfulness, the audacity, and the concealment’s ability were reserved for men.
Keywords: implied author, editorial omniscience, metaficcionality, metanarrativity.

Na literatura brasileira, a personagem ficcional mais reiteradamente retomada é Capitu – essa carioca com
“olhos de cigana oblíqua e dissimulada”– que depois de mais de um século de sua criação ainda desafiaescritores,
críticos e teóricos. Alguns autoresradicalizam as suas atitudes criando-a genuína, verdadeira e, por vezes até
assanhada. Outros saem em defesa da sua honra diante das acusações infundadas do marido. São exemplares
dessas recriações ficcionais:Enquanto isso em Dom Casmurro (1993), de José Endoença Filho; Capitu: memórias
póstumas (1998), de Domício Proença Filho, em que o diálogo intertextual se estabelece com Dom Casmurro
e também com Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Amor de Capitu (1999), de Fernando Sabino. Em
A audácia dessa mulher,as referências a Dom Casmurro e a Capitu não aparecerem no título do romance, o que
o torna ainda mais instigante.
Umberto Eco (2003, 15) afirma que “[...] a certos personagens literários [...] acontece-lhes de saírem do
texto em que nasceram para migrar para uma zona do universo que nos é muito difícil delimitar.” Complementa
dizendo que as personagens ficcionais migram porque têm boa fortuna, por oposição àquelas que não tiveram
a mesma sorte e que são esquecidas por críticos e leitores.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Em A audácia dessa mulher, ao longo de três histórias, desenvolvidas em três planos narrativos, os temas do
amor e do ciúme se desenrolam, juntamente com discussões sobre lealdade, fidelidade, suspeita de adultério,
poder, dominação, rebeldia e autoritarismo. A história que surge em primeiro plano tem o final do século XX
como referência temporal e está diretamente relacionada à personagem Bia. Beatriz Bueno é jornalista e escreve
para o caderno de turismo de um jornal do Rio de Janeiro. É também autora de livros de viagem de muito
sucesso e boa qualidade. Antes do curso de Turismo, porém, formou-se em Letras e foi professora de Português
e de Literatura, o que lhe dá uma vasta enciclopédia textual. Em sua vida privada, Bia é uma mulher solteira,
independente, mora sozinha, viaja com frequência, nutre um grande amor por Fabrício – que vive fora do país
– e isso não a impede de ter um relacionamento com Virgílio.Informa que ela e Fabrício “[...] têm uma relação
intensa, mas não exclusiva.” (MACHADO, 1999, 83). E acrescenta que “[...] o mundo é cheio de tentações...
para ambas as partes.” (MACHADO, 1999,85). Essa forma de relacionamento era inconcebível no final do
século XIX.
A segunda história refere-se à Ousadia, uma série para a televisão na qual Bia e Virgíliointegram um grupo
que pesquisa a vida carioca do final do século XIX, época em que a série se situa. Virgílio de Pádua Toledo é
arquiteto de formação e cozinheiro por opção, e isso dá grande contribuição ao grupo.Tal como a história que
se desenvolve em primeiro plano, Ousadia também discute os temas do amor e do ciúme, bem ao gosto das
massas populares. Um casal, com situação financeira confortável, se apaixona e se casa. Vivem bem e convivem
de perto com um casal amigo. A certa altura, o marido começa a desconfiar que a esposa o esteja traindo, e isso
faz com que ele dêmuita importância ao que se passa no dia a dia do casal.
Ao discutirem a sinopse da série, Bia e Virgílio percebem a sua semelhança com o enredo de Dom
Casmurro. Virgílio leu o romance e sustenta com veemência que Capitu traiu Bentinho – o narrador de Dom
Casmurro. Bia, por outro lado, argumenta que Bentinho não afirma isso em parte alguma do romance e que
o narrador de primeira pessoa – narrador-protagonista, de acordo com Norman Friedman (2002)1– manipula
seletivamente seus argumentos, do modo que lhe convém o que dá ao leitor uma visão unilateral da história.
Nas diferentes percepções das personagens, podemos observar que Virgílio – de acordo com Umberto Eco
(1994) – é o típico leitor semântico, que lê apenas a primeira camada do texto literário e seu único interesse é
entender minimamente o enredo e saber como a história termina. Bia, no entanto, é uma leitora semiótica ou
estética, uma vez que prefere observar como aquilo que acontece na história foi contado, isto é, quais foram os
recursos narrativos e os elementos formais adotadas pelo autor implícito2 paramanejar os disfarces do narrador
e das outras personagens.
Aterceira história, a mais relevante das três,aponta para o resgate feito por Biade anotaçõesintercaladas a
um livro de receitas, que teriam sido feitas por Lina. Esses apontamentos – um diário e uma carta endereçada a
uma amiga que havia se mudado do Rio de Janeiro para o Paraná, após a morte do marido, por afogamento –
teriam sido elaborados na segunda metade do século XIX, cedidos por uma amiga à avó de Virgílio e passados
a Dona Lourdes, sua mãe. Em virtude da aproximação entre Bia e Virgílio, esse livro de receitas chega às mãos
de Bia.
Em volta, uma margem de flores pintadas a aquarela formavam uma moldura delicadade tons
tênues. No alto, em letras enfeitadas, lia-se 1857. Logo abaixo: CADERNO DE RECEITAS DE
e o corte brusco, violento, impedia a identificação. [...]Mas por que a página estava cortada, de
propósito? De raiva? Para esconder algo? (MACHADO, 1999, 64).

Em A audácia dessa mulher, observamos o uso do dialoguismo artificial – denominação que Umberto
Eco (2003) atribui ao recurso de trazer à cena um manuscrito, seja ele um diário, uma carta, um documento
antigo sobre o qual a voz narrativa reflete, tenta decifrar e julgar no momento mesmo em que narra – e

1. O crítico estabelece uma distinção entre ambos os narradores de primeira pessoa: enquanto o narrador-testemunha tem
maior mobilidade e possui mais informações que o protagonista, o narrador-protagonista limita-se a contar a história de acordo
com os próprios pensamentos, sentimentos e percepções, como é o caso de Bentinho, em Dom Casmurro.
2. Ver ensaio: BOOTH, Wayne C. Contar e mostrar. In:______. A retórica da ficção. Tradução de: GUERREIRO, M. T. H.
G. Lisboa: Arcádia, 1980. (21-39).

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da metanarratividade. Esta, uma técnica narrativa que torna o texto literário autor reflexivo porque o autor
onisciente intruso3 vem para o primeiro plano para discutir metaficcionalmente aspectos que interessam à
prosa de ficção, quase sempre em primeira pessoa, e, por vezes, convida o leitor a participar.

Se considerarmos o posicionamento de Jean Pouillon (1946) em relação às visões como critérios de


organização do ponto de vista, perceberemos que o narrador-autor de A audácia dessa mulhercoloca-se com
Bia, a protagonista. Desse modo, a visão que o leitor tem é a dessa personagem central que não é central
apenas por estar no centro dos acontecimentos, mas também porque é partir da visão dela que o leitor vê as
outras personagens. Dessa forma, as considerações sãodo narrador, mas a visão que predomina na narrativa é
de Bia, fazendo com que o leitor se identifique com ela. Se observarmos mais de perto, perceberemos que o
último excerto está entremeado pelo discurso indireto livre, fazendo com que possamos atribuir a descrição
física do diário tanto ao narrador de primeira ordem, quanto a Bia, sobretudo no que se refere às perguntas
levantadas.

Na sequência da história, percebemos o desdobramento do narrador: enquanto o narrador inominado, de


terceira pessoa, encaminha a narrativa, outra voz (autoral?) surge em primeira pessoa, para discutir o romance
moderno:
Perdoe-nos a amável leitora ou o gentil leitor, mas as convenções que regem a feitura de um
romance em nossa época diferem grandemente das vigentes no século XIX, que permitiam a um
narrador externo, no momento da escrita, esta conversa direta com quem iria passar os olhos pela
futura página impressa. [...]. Depois que os romancistas inglesesdo século XVIII descobriram essa
possibilidade sedutora e difícil, dando ocasionais piscadelas ao leitor, ela virou moda e mania [...].
Mas a posterior tendência a transformar esse recurso em clichê não impediu que, aqui mesmo,
nesta cidade, [Rio de Janeiro] Machado de Assis elevasse esse procedimento à categoria de obra
prima, transformando-o num dos traços mais típicos e deliciosos do seu estilo.Só que hoje, um
século depois, não dá mais. [...] Mas a história continua mesmo é com uma roupagem mais atual,
uma convenção tão rígida quanto as de épocas anteriores [...]. E que embora admita e encoraje
que a narrativa se faça toda em aparente caos a partir de um ponto de vista interno, [...] não
gosta de misturas. Considera que um livro que começou com um narrador impessoal não pode
de repente trazer essas intromissões em primeira pessoa. Ainda mais quando não fica claro se
quem está falando é o autor (ou a autora, que audácia!) um narrador não identificado, ou um dos
personagens. (MACHADO, 1999, p. 19).

Ao apontar para as diferenças entre a feitura do romance nos séculos XVIII e XIX e o modo de escrever
narrativa de ficção no final do século XX, o autor implícito de A audácia dessa mulher se refere a um dos
recursos estilísticos mais usados por Machado de Assis, a ironia. Umberto Eco (2003), quando trata da ironia
intertextual4, diz que ela proporciona um entendimento mais profundo do texto literário, uma vez que abre
caminho para que o leitor usufrua o máximo da sua significação. Aquele leitor que não percebe as remissões
sugeridas pela ironia intertextual não aproveita tudo o que o texto lhe oferece.

Voltemos a 1857 e ao diário de Lina: a caligrafia, ainda muito infantil mostra que a dona do caderno o
havia ganhado da mãe quando fez quatorze anos.
Esse deve ser muito rápido, o ponto [de bordado] é fácil. Desejaria era fazer renda.No colégio,
desde os sete anos, aprendi a ler, escrever, e contar, francês, doutrina e obras de agulha, mas não
me ensinaram a fazer renda. Vou pedir a dona Justina, da casa ao pé, que me oriente. Lástima é
que não tenha conseguido que me ensinassem latim, que tanto desejo conhecer desde o dia em
que o padre afirmou que latim não é língua de meninas. Como então em Roma antiga, a senhora
que ganhou de César a pérola de seis milhões de sestércios poderia agradecer ao grande homem?
Seguramente em latim! (MACHADO, 1999, 66).

3. Autor onisciente intruso é o nome atribuído por Friedman (2002, 172) para o narrador que faz intromissões na narrativa,
que se configuram como verdadeiros ensaios dentro do romance.
4. ECO, Umberto. Ironia intertextual e níveis de leitura, in: ______.Sobre a literatura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Record, 2003. (199-217).

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Nas primeiras anotações da menina é possível perceber o diálogo intertextual explícito e intenso com Dom
Casmurro.Vejamos como Bentinho se refere à Capitu, no capítulo “XXXI As curiosidades de Capitu” (ASSIS,
1976, 52-53):“Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. [...]
Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu [...] eram de várias espécies, explicáveis e inexplicáveis,
[...].” E, o narrador de Dom Casmurro segue dizendo ao leitor que Capitu, na escola, aprendeu de tudo: “[...]
ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha,”exceto renda que foi prima Justina quem a ensinou.
O que a entristecia era o fato de não ter aprendido latim porque o Padre Cabral disse que “[...] latim não era
língua de meninas.” É curioso que quando Bentinho afirma que Capitu era mais mulher do que ele, homem, a
personagem mostra que tem consciência da sua fraqueza diante da esperteza dela, principalmente em situações
que requeiram tomadas de decisão. Isso fica ainda mais claro quando Lina, em meio a uma receita de sequilhos,
faz referência às brincadeiras de missa entre ela e B., e ao episódio do penteado – capítulo “XXXII O penteado”
(ASSIS, 1976, 56-57) – que culmina com o primeiro beijo do casal. Enquanto ela se recompõe depressa, em
completa dissimulação diante do aparecimento, de surpresa, de sua mãe, ele fica petrificado, sem nenhuma
reação. Isso abre espaço para as elucubrações de Bentinho a respeito do caráter dissimulável de Capitu, o que
rende algumas páginas de Dom Casmurro.

Curiosamente, os dados históricos contribuem para a criação da atmosfera de verossimilhança em A


audácia dessa mulher. As referências às mudanças na configuração da cidade do Rio de Janeiro, a inauguração
da estrada de ferro de Petrópolis, a implantação do primeiro trecho do sistema de esgotos, reduzindo epidemias
e os bastidores da abolição da escravatura no Brasil, desde a Lei Eusébio de Queirós (1850), até a Lei Áurea
(1888) são trazidos para o primeiro plano da narrativa – pela voz autoral – e discutidos entre Virgílio e Muniz
(o diretor) para situar cronologicamente a série. Para Muniz, esses pormenores não têm importância porque,
ao que garantem as pesquisas de opinião, “[...] a plateia quer mesmo é acompanhar a história de amor, só está
interessada em quem fica com quem. Contenta-se com muito pouco e nem ousa imaginar (já que se fala em
ousadias)que merece muito mais.” (MACHADO, 1999, 60).E as anotações de Lina prosseguem:
Para dor de cabeça – Aplicar rodelas de limão às frontes [...], sei qual é a causa de me doer hoje
a cabeça. É tudo culpa daquela beata papa-missas da mãe de B., que faz promessas para que os
outros a cumpram. E ele tem medo, não a contraria, [...]. É sempre incapaz de agir com reflexão e
método. Quando lhe exponho minhas idéias, acha-as atrevidas [...] cousa que, às vezes, lhe parece
dissimulação. (MACHADO, 1999, 93).

Em Dom Casmurro, no capítulo “XI A promessa” (ASSIS, 1976, 25-26), Bentinho diz que a causa das
lágrimas de sua mãe estava em “[...] seus projetos eclesiásticos [...]” e, adiante, explica melhor: “[...]Tendo-lhe
nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se
fosse varão, metê-lo na igreja.”Lina repudia a incapacidade de ação de B.: se de um lado ele não questiona a
promessa da mãe e apenas sonha em queixar-se ao bispo e ao imperador, de outro, ele ataca as ideias arrojadas
de Lina e aproveita para julgá-la e condená-la. A cada apontamento da menina, nos identificamos ainda mais
com ela e nos deliciamos com a narrativa que dá voz a essa mulher, calada há mais de um século. A anotação
seguinte é datada de 1858:
Aproveitei que ontem o leite azedou e fiz ambrosia, que levei para Dona Glória. Ela, porém,
nem pôde provar, perdeu o apetite devido a uma febre que a todos preocupa – a começar por
mim que lhe tenho servido de enfermeira e durante a ausência de B. tenho aprendido a apreciá-
la,[...]. Preocuparam-se todos a tal ponto que decidiram chamar o filho. Ele chegou transtornado,
correndo a se ajoelhar, entre lágrimas, ao pé do leito da enferma. Porém, graças a esses ardores
da febre, pudemos nós também arder num reencontro, ainda mais feliz porque o estado da mãe
já não suscita maiores cuidados. Infelizmente, veio ele com umas idéias estranhas sobre o que
tenho feito enquanto está distante. Queixa-se por ter sabido que estou sempre alegrinha, insinua
aleivosias a respeito de algum peralta da vizinhança, e, num verdadeiro turbilhão que o cega e
ensurdece, intima-me que lhe confesse quantos outros já beijei [...]. (MACHADO, 1999, 119).

Se nos dirigirmos aos capítulos “LXVI Intimidade” e “LXVII Um pecado” (ASSIS, 1976, 98-101)
perceberemos que é Bentinho quem pede a Capitu que sirva de enfermeira à sua mãe e que a sua chegada,

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aos prantos, à alcova da enferma nãofoi por estar preocupado com a doença de Dona Glória e sim pelo seu
egocentrismo, como ele mesmo afirma: “Mamãe defunta, acaba o seminário. [...] foi uma sugestão da luxúria
e do egoísmo.” E, mais adiante, no capítulo “LXXIV A presilha” (p.108), observaremos a lembrança do que
José Dias havia dito a Bentinho, no Seminário, sobre Capitu: “Aquilo enquanto não pegar algum peralta da
vizinhança que case com ela...”Isso nos faz crer que o narrador de Dom Casmurro preocupa-se consigo, apenas,
e, quando lhe interessa ter atitudes autoritárias, ele não hesita em intimar Capitu a confessar-lhe quantos outros
ela beijou. Que ela beijou, ele não tem nenhuma dúvida, o que ele ordena, é que ela confesse quantos. Isso
faz com que o leitor acredite que Bentinho demonstra domínio sobre o sexo frágil, contudo, essa hipótese
perde força quando ele assume que Capitu é mais mulher do que ele, homem.Então, que espécie de homem
dissimulado é Bentinho? Será que ele tenta transferir as próprias fraquezas para a pessoa que acredita dominar?
No diário e na carta que Bia resgata,temos a oportunidade de perceber a partir de que ângulo Lina olha para
B. ede que modo ela enfatiza seus pontos fracos.
[...] agora será um longo afastamento. Muito mais longo, mas não definitivo, como anteriormente
se ameaçava. Não me lembra se escrevi aqui que B. deixou o seminário. Pois deixou. [...] Agora
foi-se aos estudos de leis em São Paulo. Mas quando obtiver o diploma, retorna. [...] outro dia o
entreouvi em uma conversa com um amigo, a confessar que tem assomos de petulância, tanto do
sangue dos seus dezessete anos quanto também das moças, que na rua ou da janela o acham lindo
e não o deixam viver sossegado. Chegam a dizer-lhe isso, as atrevidas, querem mirar de maisperto
a sua beleza. Fiquei mortificada. (MACHADO, 1999, 121-122).

Mais adiante, em Dom Casmurro, descobrimos que Bentinho sai do seminário para estudar Direito, em
São Paulo. Longe da mãe que o domina e de Capitu, a namoradinha, começa a botar as manguinhas de fora:
Posto que filho do seminário e de minha mãe, sentia já, debaixo do recolhimento casto, uns
assomos de petulância e de atrevimento; eram do sangue, mas eram também das moças que na
rua ou da janela não me deixavam viver sossegado.Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas
queriam mirar de mais perto a minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção. (ASSIS,
1976, p. 133).

Nesses excertos, notamos que Lina também sofre com os assomos de petulância de B. e, nesse ponto, ela
percebe que ele não tem olhos só para ela. Enquanto ela está sozinha, sofre pela distância que os separa e torce
para que ele volte logo para casa para poder vê-lo e ficar com ele, B. ao contrário se deixa engraçar por todas as
moças que o olham e o acham lindo. Quando ele afirma que a vaidade é um princípio de corrupção, demonstra
que o que lhe interessa é o aqui agora e não uma namoradinha que está distante.Então, o que se pode apreender
é que ele sim fica na janela dando trela para as moças que passam e não Capitu, como Bentinho quer que o
leitor acredite. Na sequência das anotações de Lina, percebemos que ela se casa com B., engravida do primeiro
e único filho, quando seu filho nasce é Sancha, a amiga de infância, quem vai fazer a ela o pirão de parida e
fazer-lhe companhia por uma semana. Sancha está casada com Escobar e tem uma filha. Os dois casais moram
próximos e se visitam com frequência.
Fomos passar a noite no Flamengo, [...] Sucedeu uma coisa que me pareceu muito grave. [...]
Não tenho com quem discutir o ocorrido, visto que envolve o meu marido e a minha melhor
amiga. Por isso, antes de seguir para minhas orações, recorro agora a essas páginas, [...]. Não
tenho dúvidas do que vi ontem – os segredos ao canto da janela, os suspiros, os olhares a se
buscar durante toda a noite [...], o gesto de Santiago a ponto de beijar a testa de Sancha quando
os surpreendi, o modo como ele mirava os seus braços, a despedida lânguida, num aperto de
mão demorado e esquecido....[...] Não sei há quanto tempo isso já ocorre, sem que eu visse ou
suspeitasse. Meu coração ficou tumultuado [...] Não sei o que fazer, se finjo que nada sei, se
busco uma explicação com um deles ou com ambos. Ou se tento falar com o marido dela, [...].
Quem sabe, se ambos morrêssemos, os outros dois consolidariam a viuvez dupla nos braços um
do outro.... No momento, só logro sentir. Raiva, desespero. Vontade de matar, de morrer [...].
(MACHADO, 1999, 153).

Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela com
Capitu, não se me daria beijá-la na testa. [...]os olhos de Sancha não convidavam a expansões

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fraternais, pareciam quentes, intimativos, [...]. Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, [...].A
cautela desligou-nos; [...]. E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara para ela
com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive uma certeza só, é que um dia pensei nela, como
se pensa na bela desconhecida que passa; mas então dar-se-ia que ela adivinhando.... Talvez o
simples pensamento me transluzisse cá fora, e ela me fingisse outrora irritada ou acanhada, e
agora por um movimento invencível.... Invencível; [...] Quando saímos, tornei a falar com os
olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume.
[...]. Foi um instante de vertigem e de pecado. [...] Não havia meio de esquecer inteiramente a
mão de Sancha, nem os olhos que trocamos. (ASSIS, 1976, 157).

Depois de analisarmos esses dois fragmentos, uma pergunta grita dentro de nós, leitores: a culpa que
Bentinho imputa a Capitu não seria, então, dele? Aquela semana em que Sancha passou na casa de Capitu
– por ocasião do nascimento de Ezequiel – será que ela se limitou a fazer o pirão de parida para a amiga?
Ou será que ela e Bentinho aproveitaram o parto e o resguardo de Capitu para terem uma relação mais
íntima?Enquanto Capitu se refugia nas orações e no diário com o propósito de amainar a mágoa e a dor de
dentro de si, ele torna a falar aos olhos da dona da casa sem qualquer esforço para esquecer aquele momento.
Os fragmentos que se seguem são da carta que Lina teria escrito à amiga Sancha e apontam para a dor aguda
que Lina suportou calada:

Bem imagino tua incredulidade ao receber esta carta. Seguramente me tens por morta e enterrada
há mais de 20 anos. [...]Haveria tanto a dizer-te sobre todas as coisas que se passaram [...] desde a
trágica manhã em que a catástrofe te trouxe a viuvez e deixou tua filhinha na orfandade. [...] Meu
gesto serve apenas para trazer-me, a mim, um pouco de paz. E talvez também a ti, garantindo-
te a certeza de que não guardei ressentimentos de ti (sim, eu sabia, vi os olhares entre ti e meu
marido). [...] Ao leres o ocorrido, na certa entenderás que era impossível que eu me dirigisse a ti
sem te magoar ainda mais. [...] Agora, porém, a verdade é um dever. [...] Acompanha esta carta
um caderno de receitas que mamãe me deu [...] no qual nunca mais escrevi desde a manhã em
que ficastes viúva [...]. Por vezes foi ele meu único amigo confiável, naqueles momentos em que
conheces, em que nossa condição de mulher nos obriga a agir com discrição e cautela, por vezes
até com dissimulação. [...] Confirmarás quanto eu sempre amei meu marido e como entre nós
duas nunca houvera antes daquela fatídica noite cousa alguma que maculasse nossas simpatias
[...] soube que Santiago fora chamado às pressas à tua casa, porque teu marido se afogara. Não
pude deixar de recordar, [...] que ainda na véspera eu pensara em sua morte [de Escobar] e na
minha também. [...], cheguei a pedir aos céus que elas se abatessem, tão ferida e dilacerada me
encontrava eu com a descoberta da traição.Por vezes desejava falar-te, contar que eu vira os
olhares trocados por ti e Santiago. Outras vezes, desejava confessar-te que a morte que te atingiu
fora invocada por mim. Não ousei. (MACHADO, 1999, 187-190).

[...] Sofrendo de melancolia nessa ocasião, ele [Santiago] vivia calado e aborrecido. [...] Então
vivia assim, sempre irritado. Com o pequeno, ainda mais do que comigo, [...] Evitava-o quanto
podia, respondia com aspereza as suas perguntas, fazia-o chorar a todo momento. Para ver se
melhoravam as cousas, propus meter o menino ao colégio, de onde só viria aos sábados. Pois crês
que nesse dia, o pai saía, buscava não jantar em casa e só entrava quando ele estava dormindo?
[...] Quando acaso se encontravam, era doloroso constatar o contraste entre o menino, alegre,
turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, e a evidente aversão que lhe tinha o pai e que
já não podia disfarçar.[...] Houve, porém, um sábado em que se encontraram. Não sei o que
houvera antes, mas logo antes de sairmos para a missa, o menino entrou correndo no gabinete
do pai, chamando-o com sua alegria de sempre, querendo beijá-lo. Fui atrás, devagar, e cheguei a
tempo de ver Santiago forçando o menino a tomar uma xícara de café, a ponto de empurrá-lo pela
goela abaixo da criança. [...] Mas depois mudou de ideia, de repente, recuou, começou a beijar
doudamente a cabecinha dele e a exclamar que não era pai dele. Ouvindo isso, decidi interferir.
[...] Pedi explicações daquela cena e das lágrimas dos dois. Ele repetiu que não era o pai do
menino. Estupefata e indignada com tamanha injúria, pensei que não resistiria à dor. [...] Acabei
por lhe dizer que, se não achava que houvesse defesa possível, eu lhe pedia nossa separação. Já não
podia mais! [...]De nada me valeria argumentar. Nem eu o desejava. Não se tratava mais da pessoa
por quem me apaixonara ainda menina e com quem eu desejara compartilhar toda a vida. Desde
então, dentro de mim, passei a chamá-lo pelo sobrenome como se se tratasse de outro homem.
Talvez fosse essa uma derradeira tentativa terna de preservar o apelido familiar para o menino

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que fora meu companheiro de folguedos, o rapaz que por tantos anos eu esperara, o homem dos
primeiros tempos, do casamento, que me deu tanta felicidade. [...]Fui à igreja, confiei a Deus.
[...]Trouxe comigo a certeza de que a separação era indispensável. [...] Mais uma vez dissimulado,
Santiago não quis que soubessem de nossa separação.[...] Embarcamos num paquete como se
fôramos de passeio para a Europa. [...] No afã de tentar assegurar ao menos um pouco dessa
afeição, comecei a escrever cartas a Santiago. Respondia-me com brevidade e sequidão. [...] Por
uma antiga vizinha da nossa casa na Glória [...] soube que Santiago vinha algumas vezes à Europa
e voltava com notícias minhas como se acabasse de viver comigo. Mas a verdade é que nunca
me procurou. Mais uma dissimulação entre tantas.... [...] Já que estava vivendo uma nova vida,
decretei para mim mesma a morte daquela moça alegre e feliz que gostava de bailes no Rio
de Janeiro [...] Abandonei meu apelido de menina e passei a me apresentar como Lina [...].
(MACHADO, 1999, 190-194).

Ele [Deus] tenha piedade de uma mulher que, se um dia teve a audácia de crer que poderia se
valer da reflexão e das ideias para convencer um rapaz a ir contra as ordens da mãe, os planos da
família e desrespeitar uma promessa feita a Deus, fê-lo apenas por amor, seguindo os ditames do
seu coração, e na esperança de ser feliz. (MACHADO, 1999, 195-196).

Se formos ao texto de Machado de Assis, notaremos que Bentinho andava calado e aborrecido por ver em
Ezequiel a ressurreição de Escobar, o que lhe causava repulsa. “Quando nem mãe nem filho estavam comigo
o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo
da morte todos os minutos da vida embaçada e agoniada.” (ASSIS, 1976, 168). Menciona que comprou a
substância com o propósito de cometer suicídio, contudo,faltou-lhe coragem. Lembra-se do assassinato da
inocente Desdêmona, por Otelo – não por acaso, o capítulo LXII de Dom Casmurro é denominado “Uma
ponta de Iago” (ASSIS, 1976, 93-95) e o capítulo CXXXV, “Otelo” (ASSIS, 1976, 170-171) – e, mais uma
vez, hesita: “[...] quando ia beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitu e o filho saíssem para a missa.”
(ASSIS, 1976, 172). Na impotência, tenta dar o café envenenado a Ezequiel, não sem antes dizer-lhe que não
era seu pai. Capitu aparece e ouve a afirmativa de Bentinho: “Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor
a indignação [...]. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de acusada. – [...] ou conte o resto para que eu
me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais.” (ASSIS,
1976, 174-175). Em seguida, Bentinho diz: – que “A separação é coisa decidida, [...].” (ASSIS, 1976, 175). É
curioso que foi preciso que ela propusesse a separação para que ele atinasse que a separação já estava decidida.
Ora, se estava decidida, por que, então, ele não a propôs de início?Sobre as idas à Europa sem procurar por
Capitu, a explicação deBentinho é, ainda, mais indigna: dava notícias como se tivesse se encontrado com
ela“[...] naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião.”
(ASSIS, 1974, 177).

Em A audácia dessa mulher, o autor implícito cria um narrador metaficcional, capaz de discutir aspectos
da História do Brasil, recursos narrativos usados na prosa de ficção, particularidades que envolvem o cinema –
isso para não mencionar o diário e a carta que apontam para características do romance epistolar. Desse modo,
constatamos a imbricação de pelo menos quatro modalidades discursivas: o cinema, a escrita da História,
o ensaio e o romance (em suas diferentes formas) – que estabelecem a ponte entre o final do século XIX
e o final do século XX. O narrador metaficcional de A audácia dessa mulher, ainda, se desdobra em dois
narradores distintos: um que permanece em terceira pessoa, colado à Bia, acompanhando o seu fluxo de
pensamentos, e outro de primeira pessoa, em claras intrusões autorais que dialoga com o leitor, bem aos moldes
da prosa machadiana,atribuindo a esse narrador metaficcional também um caráter híbrido. Nesse sentido, o
desenvolvimento da atmosfera de convencimento na existência da carta e do diário que teriam sido escritos
por Capitu Lina é tão intenso que o leitor menos atento acredita que Capitu teria mesmo existido e produzido
esses textos. Umberto Eco (1994, 131) diz que, no texto ficcional, as referências ao mundo real se entrelaçam
de tal modo que, de repente, o leitor já não sabe muito bem em qual dos dois mundos os episódios acontecem.
Isso faz com que ele projete o modelo ficcional na realidade e passe a acreditar na existência real de personagens
ficcionais. Isso é o que acontece a Bia, no momento em que ela – também personagem ficcional – fica em
dúvida se Capitu teria existido, ou não. Além disso, o entrelaçamento dostrês fios narrativos que mostram

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o ciúme como tema central;a moldura de uma personagem feminina, leitora voraz dos textos de Machado,
disposta a fazer a sua parte do trabalho, a partir de profundas análises sobre o cruzamento da realidade e a
ficção;e, por último, a fusão de todos esses discursos numa unidade de sentido ao texto são habilidades de Ana
Maria Machado que emergem do romance.
A partir da criação dos apontamentos feitos por Lina,o leitor se delicia com o percurso do casal Capitu e
Bentinho contado por um narrador multifacetado que nos dá a oportunidade de conhecer o ponto de vista de
Capitu sobre a trajetória de Bento Santiago, em Dom Casmurro.O uso das váriasestratégias narrativasgera uma
mistura de focalizações que não só culmina com reflexões metaficcionais, como também coloca o autor em
evidência, na direção oposta ao que preconiza a prosa jamesiana, por exemplo, que insiste no apagamento da
voz autoral para não expor as especificidades da prosa de ficção e, muito menos, permitir a quebra da ilusão da
realidade.Lembramos que as discussões de Henry James (1843-1916) acerca da arte da ficção permaneceram
latentes no final do século XIX.
A Capitu criada em A audácia dessa mulherprefere remoer calada uma dor por longos anos, a magoar o
marido e a amiga de infância. Ela é terna, comedida, apaixonada, agradecida pelos anos vividos junto a seu
companheiro de folguedos que lhe deu tanta felicidade, mas nem por isso menos decidida. Ela não hesita em
propor-lhe a separação, dar novo rumo à vida, em outro país, com outra cultura, outra língua, situações que
não a intimidam nem um pouco.Reconhece que, muitas vezes, é preciso tomar decisões doloridas à primeira
vista que, no futuro, abram espaços para novas possibilidades. Essas atitudes tomadas por uma mulher, no
entanto, eram impensáveis no final do século XIX, época em que as mulheres eram submissas aos maridos e ao
casamento, o que as obrigavam a aceitar situações inaceitáveis.

Referências
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Editora Ática, 1976.
BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. Trad. GUERREIRO, M. T. H. G. Lisboa: Arcádia, 1980.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
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FRIEDMANN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Tradução de:
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Gênero, raça e identidade em Ponciá Vicêncio
de Conceição Evaristo

TOLEDO, Rilza Rodrigues1


FUPACVRB/UBÁ
rilzatoledo@yahoo.com.br

RESUMO Este trabalho tem como objetivo fazer uma análise da figura feminina negra na obra Ponciá Vicêncio,
de Conceição Evaristo, apresentando uma reflexão sobre gênero, raça e identidade. Com isso, tam-
bém se pretende evidenciar o potencial de resgate da voz da escritora negra (e de outras mulheres
escritoras) que essa obra passou a ter no cenário da literatura brasileira; voz essa que fora mantida
em silêncio ao longo dos séculos. Evaristo demonstra habilidade artística para retratar teoricamente
muitos paradigmas que caracterizam a produção literária, alcança a crítica social e desenvolve o
plano ideológico das questões de gênero sob uma perspectiva de quem conhece sua dupla condi-
ção de autorrepresentação através da sua protagonista, que também é mulher e negra, Conceição
Evaristo vai pontilhando os caminhos diferenciados percorridos por mulheres das ditas minorias
raciais, mas sempre contemplando novos paradigmas de representação da mulher negra. Na obra
em discussão, encontram-se a descrição e a pintura de elementos que retratam situações do Brasil,
em sua cultura e realidade, evidenciando-se, como marca frequente na produção literária. Portanto,
para identificar uma cultura, é preciso localizá-la num determinado tempo e espaço e no interior
de um grupo étnico, o que se verifica na sensibilidade de Conceição Evaristo, cuja identidade es-
taria articulada a uma identidade nacional. Nota-se, ainda, a relevância da semântica que permeia
a construção da narrativa e serve de apoio aos movimentos de lutas e de experiências africanas,
confirmando, assim, a continuidade e o reconhecimento da importância fundamental das culturas
africanas para a construção da sociedade e da cultura brasileira.
Palavras-chave: gênero, raça, identidade, Ponciá Vicêncio.

ABSTRACT This paper aims to analyze the black female figure in the work Poncia Vicencio, by Conceição Evaristo,
with a reflection on gender, race and identity. With that , it also aims to highlight the potential redemp-
tion of the black writer voice ( and other women writers ) that this work began to take in the scenery of
Brazilian literature : a voice that had been kept silent for centuries . Evaristo demonstrates artistic abi-
lity to portray many theoretical paradigms that characterize literary production reaches the critical so-
cial and develops the ideological gender issues from the perspective of someone who knows his double
condition of self-representation through its protagonist, who is also female and black , Conceição Eva-
risto will dotting the paths traveled by different women said racial minorities , but always contemplating
new paradigms of representation of black women . In the work under discussion, are the description
and the painting of elements that depict situations in Brazil , its culture and reality, revealing itself as a
brand common in literary production . Therefore , to identify a culture , we need to locate it in a particu-
lar time and place and within an ethnic group , which is found in the sensitivity of Conceição Evaristo ,
whose identity was linked to a national identity. Note, also , the importance of semantics that permeates
the narrative construction and serves to support the movements and struggles of African experiences ,
thereby confirming the continuity and recognition of the fundamental importance of African cultures to
build society and Brazilian culture.
Keywords : gender, race, identity, Poncia Vicencio.

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Introdução
A voz da mulher negra sofreu um processo de silenciamento de forma contínua e profunda caracterizado
por uma dualidade que permeia sua construção histórica e cultural: um mecanismo de omissão e opressão
respaldados em preconceitos relativos a gênero, raça, identidade, justificando-se a invisibilidade de tal sujeito
por sua definição como mulher e negra. Neste trabalho, pretende-se analisar a presença da figura feminina
negra em Ponciá Vicêncio, obra publicada em 2003, da autora Conceição Evaristo, apresentando uma reflexão
sobre gênero, raça e identidade, demarcando a construção da autora em suas escrevivências e investigações
identitárias. Evidencia-se o resgateda voz da escritora negra – e de outras – silenciada no decorrer dos séculos,
além da condição de ser mulher e negra, sob uma perspectiva de quem conhece sua dupla condição de
autorrepresentação através da protagonista, demonstrando caminhos diferenciados, percorridos por mulheres
das minorias raciais contemplando novos paradigmas de representação da mulher negra.

A construção da identidade
O mito da identidade nacional é constituído por uma vontade social de se fazer do espaço brasileiro
um espaço onde se pode inventar a utopia de uma terra e de uma gente rica, próspera e feliz. Ele se faz
também pelo confronto com a ironia da situação real, desperta a utopia e provoca uma certa transformação.
As identidades estariam marcadas também por polarizações e seriam construídas a partir de processos de
inclusões e exclusões, através de chaves binárias de opostos, como as que contrapõem negros e brancos,
homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, o normal do anormal, etc. “Tais construções binárias
levariam ao entendimento de que as identidades são fixas e delimitadas por esquemas rígidos de significado
e representação”(ARAÚJO, 2007, p.55).Como se observa em Kobena Mercer (Apud Hall, 2006, p. 9) “a
identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente,
estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”. Nesse contexto de análise da identidade cultural
encontra-se Conceição Evaristo, inserida de forma particular com sua produção literária, sua escrevivência
travando relações de pertencimento do eu com o mundo, através da narrativa e de seus poemas revelando seu
talento em nível nacional e internacional.
Diante dessa diversidade cultural, nota-se que a identidade nacional é alguma coisa construída e distribuída
no sentido de produzir uma sensação de pertencimento. Caso essa sensação seja possível, é preciso que as
imagens identitárias comportem a diversidade da população, no sentido de quase diluir separações, tensões
sociais, diferenças culturais, conforme explica Eneida Leal Cunha (2002): “a identidade nacional é produzida
exatamente para cimentar alguma coisa que em si é dispersa, tensa, conflitante...”
Nesta obra, encontram-se a descrição e a pintura de elementos que retratam situações do Brasil, em sua
cultura e realidade, evidenciando-se, como marca frequente na produção literária. Portanto, para identificar
uma cultura, é preciso localizá-la num determinado tempo e espaço e no interior de um grupo étnico, o que se
verifica na sensibilidade de Conceição Evaristo e essa identidade estaria articulada a uma identidade nacional.

Autorrepresentação
Segundo Evaristo “a literatura negra é um lugar de memória” (1996, p. 24). Essa literatura, que carrega
marcas desse passado não tão distante, precisa dessa memória para reafirmar sua identidade e sua cultura. A
escritora mineira passou sua infância em Belo Horizonte e guardanamemória acontecimentos e pessoas quese
tornaram elementos essenciais em suas narrativas. Evaristo seguia a profissão da mãe, era doméstica e estudava
em Belo Horizonte, onde se formou professora.Posteriormente, fez curso de Letras na Universidade Federal
Fluminense. Ingressou no Mestrado naPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde defendeu,
a dissertação Literatura negra:uma poética da afrobrasilidade. Na mesma universidade fez Doutorado em
Literatura Comparada. A autora publicou e ainda publica poemas econtos na coletânea Cadernos Negros desde
1990, Quilombhoje, da Editora Mazza de Belo Horizonte.1

1. A proprietária era uma mulher negra.

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A publicação dos Cadernos Negros é importante na divulgação e circulação da literatura afro-brasileira,


além de ser uma fonte crucial para pesquisas, uma vez que representa o único veículo de publicação periódica
no país que antologia a produção literária afro-brasileira.
Nos Cadernos Negros encontram-se nomes de relevância na produção literária de escritores afro-brasileiros
da contemporaneidade,dentre eles Conceição Evaristo, o fio condutor da nossa história literária nos aspectos
de gênero raça e identidade na literatura afro-brasileira.
A trama narrada por Evaristo solidifica-se conforme afirma Campello “como um dos veios mais
significativos da expressão da mulher negra na historiografia afro-brasileira” (2010, p.2). Evaristo demonstra
habilidade artística para retratar teoricamente muitos paradigmas que caracterizam a produção literária. Nota-
se que a autora alcança a crítica social e desenvolve o plano ideológico das questões de gênero, a partir de sua
autorrepresentação no seu processo de formação tanto como mulher quanto escritora, que segundo Campello,
sua preocupação com as questões de gênero “tornam-se aparentes no desvelamento da mulher – sua voz e
sexualidade – da etnia, da classe social, da memória e da diáspora africana” (Idem, 2010, p.2).
Em entrevista para a Revista Raça Brasil2, empostura de enfrentamento aos desafio ela retrata os seus
anseios de autora e negra.
Na contemporaneidade, encontra-se a figura da mulher negra, em linhas que conduzem à afirmação
de mulher e de artista, que pode escolher o que e como quer ser, da forma como o faz a jornalista e escritora
Ana Cruz em “Coração tição”, de sua obra E... feito de luz: “Não quero ser parda, mulata/ Sou afro-brasileira-
mineira./ Bisneta./De uma princesa de Bengala” (apud EVARISTO, 2005, p. 208).
Na passagem de “escre(vivência)”, em que Conceição analisa a representação da mulher negra na literatura
brasileira ela salienta que essa ainda vem “ancorada nas imagens de seu passado escravo, de corpo-procriação
e/ou corpo-objeto de prazer do macho senhor”, diferentemente da imagem de mulher-mãe, perfil desenhado
para as mulheres brancas em geral” (2005, p. 202).

As representações femininas em Ponciá Vicêncio


Ponciá Vicêncio tem servido de tema em que questões de raça e gênero se entrelaçam, marcando a
construção da protagonista em suas experiências e investigações identitárias. A protagonista percorre caminhos
sinuosos, entrecortados pela fragmentação cultural e econômica que caracteriza os povos da diáspora africana.A
obra narra situações do cotidiano das mulheres afrodescendentes numa ótica essencialmente feminina e negra,
em contexto atual abordando desde a infância até a vida adulta de Ponciá. Esta mora com a mãe, Maria, na
Vila Vicêncio, que concentra, no interior do Brasil, uma população de descendentes de escravos, cuja família
– pai e irmão – trabalharam na lavoura para a família Vicêncio, proprietários daquelas terras e também do
sobrenome.
Em flashback, a trama narra a infância da menina na vila junto da mãe e do artesanato com o barro que
as duas fabricam. Embora a história seja fragmentada, nota-se a presença de um narrador observador que
conduz o leitor ao âmago das personagens e à introspecção das mesmas, permeando a narrativa com o discurso
indireto livre, para demonstrara alegria da menina Ponciá que, acreditando de forma veemente nos rituais do
folclore, brincava de passar por debaixo do arco-íris temendo mudar de sexo, conforme se verifica na passagem:
“Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Diziam que menina que passasse debaixo

2. Mandei o romance Ponciá Vicêncio para uma editora e não tive resposta. Depois disso, não tentei mais nenhuma. Após
algum tempo, resolvi tentar a Mazza por uma questão ideológica, pelo fato de ser uma editora de uma mulher negra. Mas o
problema não termina com a publicação de um livro. Ponciá Vicêncio já esteve em uma livraria grande aqui do Rio, e eu o levei
pessoalmente. Só que o livro não foi colocado no sistema de informática da loja e, portanto, era como se ele não estivesse lá.
(...) Quer dizer, um livro de Conceição Evaristo numa grande livraria é colocado lá no fundo, escondido, em último lugar,
enquanto o de um autor conhecido já é posto logo na entrada. (...) Além disso, tem a questão da temática do meu trabalho, que
é uma faca de dois gumes. Por um lado, ela não interessa, mas com a lei 10.639 (...) esse tema vai atender a uma demanda – só
que sempre por uma questão mercadológica, nunca ideológica. (EVARISTO apud Raça Brasil, 2006)

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do arco-íris virava menino ”(2003, p.13). Ela se mostrava diferente desde criança. Nêngua Kainda, uma velha
sábia da região afirmava que Ponciá precisava cumprir uma missão.Depois de perder o pai, Ponciá decide ir
para a cidade grande em busca de uma vidamelhor.

Na vila Vicêncio, o irmão Luandi, também decide migrar, o que acentua a dor e a tristeza de sua mãe. O
rapaz deixa a terra natal, também de trem e na cidade, arruma emprego de faxineiro numa delegacia, através
da indicação do soldado Nestor,negro que ele conhece na estação de trem. Luandi fica feliz, já que seu sonho
era ser soldado.

A mãe, Maria, com a casa e a alma vazias, decide viajar sem rumo até o momento de reencontrar os filhos.
Algum tempo depois, Ponciá retorna à vila em busca dos seus, porém uma viagem em vão, não os encontra. De
volta à cidade, Ponciá se junta aum homem que conhece na favela. Inicialmente se vê apaixonada, depois sofre
agressões físicas, causadas, principalmente, pela apatia em que ela se encontra. Meditando sobre a ausência
dos familiares e os sete abortos que sofreu, muitas foram as perdas de Ponciá, aqui caracterizada como mulher
objeto na mão de seu senhor.

Nota-se que a memória individual da protagonista está diretamente ligada à memória de seus ascendentes
africanos. Segundo Barbosa, “se a memória é a via de acesso de Ponciá ao seu autoconhecimento, é através do
que a voz narrativa constrói, que nós leitores penetramos em suas emoções e conhecemos a história pessoal de
cada um” (2003,p. 6). Percebe-se o atrelamento entre as experiências passadas da protagonista e a experiência
coletiva representada, principalmente, pela figura de seu avô, Vicêncio, escravo que fica louco após matar a
esposa, se mutilar e tentar matar os filhos diante da ameaça de vê-los escravizados para o resto da vida.

Há na obra uma continuidade temporal do avô garantida pela netaque carrega certas marcas, especialmente
o modo de andar, com um dos braços escondidos às costas e a mão fechada parecendo cotó. O boneco de
barro feito por Ponciá e as marcas físicas demonstram o poder da memória para alcançar os acontecimentos
da infância remontando o tempo.

A trajetória da família Vicêncioremete o leitor a um sentido de orientação no passo do tempo, já que a


ordem atemporal dos acontecimentos nos remete à característica da memória como um demarcador de sua
infância na vila, rememorando momentos trágicos e felizes. Momentos que evocam a fase mulher de Ponciá,
quando seu olhar distante e sua indiferença dianteda realidade acontecem, as recordações afloram. Nota-se
delimitação demomentos agradáveis: “nos tempos de roça de Ponciá, nos tempos de casa de pau-a-pique, de
chão de barro batido, de bonecas de espigas de milho, de arco-íris feito cobra coralbebendo água no rio, a
menina gostava de ser mulher, era feliz.” (2003, p.27).

Há ainda, as recordações doloridas marcadas, principalmente, pela sua mudança para a cidade grande.
“Aos 19 anos, Ponciá mudou-se para a cidade”. Além da viagem sofrida passada no “trem negreiro”, a menina
se recorda dos momentos iniciais da novidade: quando chegou à estação e ninguém esperava por ela, seu
primeiro emprego na casa de uma senhora, retomando tantas outras realidades vividas por outras personagens
da literatura brasileira.

Embora a esperança e os sonhos fossem perseguidos pela protagonista, a dureza foi ainda maior em seu
caminho. Os sonhos de Ponciá vão se esvaindoà medida que a vida vai sendo martelada com os obstáculos.
“O amanhã de Ponciá era feito de esquecimentos” (2003, p.19). Repleta de boas recordações a memória da
infância da menina negra, vai se ocupando da memória da adolescente negra, empregada doméstica e da
mulher violentada pelo marido, aborta sete filhos e se perde dos seus. Ela ignora seu nome e se manifesta já na
infância vislumbrando um caminho à procura de si mesma:
Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe deram.
Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirandonas águas, gritava o próprio nome:
Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa. Não
ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Pandá, Malenga, Quieti, nenhum
lhe pertencia também. Ela, inominada, tremendo de medo, temia abrincadeira, mas insistia. A
cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia semnome. Sentia-se ninguém. (Idem, 2003, p.19).

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O vazio de Ponciá, inúmeras vezes citado ao longo do texto, toma configurações diversas. (ARAÚJO,
2007). O “sentir-se ninguém” é o sentimento de quem foi desprovido de sua própria história, como afirma
Memmi, ao discutir o processo de desumanização a que é submetido o colonizado (cf. MEMMI, 1977, p. 80).
Ponciá deseja romper o paradigma da opressão que lhe imprime uma marca até mesmo no nome: ela deseja
um nome que traduza quem ela é, pois pronunciar o que lhe foi dado “Era como se estivesse lançando sobre
si uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo.” (EVARISTO, 2003, p.29). Assim, a personagem questiona sua
própria história, ao mesmo tempo em que segue com sua trajetória de reconstruir, ou desconstruir a própria
identidade:
O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terrase dos homens. E
Ponciá? De onde teria surgido Ponciá? Por quê? Em quememória do tempo estaria escrito o
significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela um nome que não tinha dono. (Idem,
2003, p. 29).

A protagonista ingressa em um curso de alfabetização vendo na leitura um passaporte para a liberdade,


uma chave de acesso a outros mundos. Deixou seu universo familiar e partiu em busca de um ambiente que
lhe permitisse, buscar novos horizontes, realizar sonhos, contudo, ao chegar à cidade, ela percebe que tudo lhe
é completamente estranho, distante, adverso, faz com que a memória resgate momentos de brincadeira, um
certo saudosismo de tempos de outrora.

Ponciá representa uma possibilidade de homem moderno e seus sonhos nos grandes centros, tal condição
gera um novo conflito para uma mulher negra. Educada pela mãe, aprendeu as tarefas domésticas e fabricar
peças de barro para comercializar e ajudar na renda. Contudo nota-se certa intolerância à vida um ato de
resistência aos mecanismos de opressão que se efetivam na exploração racial,de gênero e de classe. Pela expressão
da narradora percebe-se sua incompreensão diante do temor que as pessoas do povoado cultivavam em relação
à cidade: “casos infelizes” e “histórias de fracasso” (EVARISTO, 2003, p.37).

Em busca de uma solução fácil e denunciando os esquemas de opressão imbricados na sociedade, a


narrativa mostra a cidade materializando outro cenário de miséria. Na cidade, sozinha busca refúgio na igreja,
e admira diante de tantos santos e esses “(...) deveriam ser mais poderosos do que os da capelinha do lugarejo
onde e la havia nascido” (??, p. 35). A observação sobre os santos indica que Ponciá percebe diferenças “As
pessoas dali combinavam com os santos, limpas e com os terços brilhantes nas mãos” (??, p.36).

Na trajetória da protagonista há uma ruptura. Saíra de casa em busca de um caminho mais feliz: a primeira
noite retrata a insensibilidade e desproteção da cidade. Um emprego de doméstica, reforça o padrão imposto
para uma mulher negra e pobre no contexto citadino; e um tempo depois vai morar em barraco de favela,
tendo como companheiro inseparável o sentimento da apartação que acompanha na narrativa, evidenciando
de forma a constituir distanciamento geográfico psíquico e identitário.

De retorno à “terra dos negros para buscar a família encontra a casa vazia o reencontro de Ponciá com
sua antiga casa, o povoado e as pessoas com quem sempre convivera metaforiza a história dela e de seu povo.
O envolvimento com o passado – individual e coletivo – e os recursos simbólicos utilizados são elementos
essenciais para a construir a identidade.

O sentimento de vazio, o “profundo apartar-se de si mesma” (p. 49), que acompanha a protagonista ao
longo do texto (ARAUJO, 2007, p. 84), “está associado a esta tentativa de reencontro como passado-presente
da memória que compõe sua própria identidade em formação”3. Mergulhada em sua memória, ela despreza a

3. Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si mesma, ficou atordoada. (...) Sabia
apenas que, de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e
fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia. Mas continuava, entretanto, consciente de tudo ao redor. Via a vida e os
outros se fazendo, assistia aos movimentos alheios se dando, mas se perdia, não conseguia saber de si. No princípio quando
o vazio ameaçava preencher sua pessoa, ela ficava possuída pelo medo. Agora gostava da ausência, na qual ela se abrigava,
desconhecendo-se, tornando-se alheia do seu próprio eu. (p.44).

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rotina diária, a convivência embrutecida com o marido e as notícias de jornal que costumava ler ecolecionar
quando chegara à cidade (cf. EVARISTO, 2003, p. 91). Seu interesse é “recordar a vida”, para ela também
“uma forma de viver” (Idem). A trama enigmática nos momentos de ausência da protagonista, incide sobre
a herança que o avô deixara e que ela deveria cumprir. À medida em que a narrativa se desenvolve a herança
ganha novos contornos:“Quando o avô morreu, a menina era tão pequena! Como agora imitava o avô? (...)
Só o pai aceitava. Só ele não espantou ao ver o braço quase cotó da menina. Só ele tomou como natural a
parecença dela com o pai dele. (Idem, p. 13). “Vô Vicêncio, personificado no homem-barro, conserva, de
uma só vez, a forçada ancestralidade e o poder criativo na busca identitária” (ARAÚJO, 2007, p.86). Moldar
o barro simboliza recriar os sentidos da vida, enfatizar a fortaleza de espírito e de corpo das mulheres. Nêngua
Kainda representa a guia, obraço condutor do destino de Luandi ao encontro de sua mãe na cidade.
Quanto à presença femininas na cultura afrodescendente, comoportadores desabedoria, nota-se a
preservação da memória cultural. Observa-se na história da família de Ponciá, a história da diáspora africana,
marcada por exclusões, ausências, separações sucessivas, loucura, atos brutais de violência, além de perdas e
mutilações identitárias.
A arte poética de seja prosa ou poesia, leva leitor a empreender viagens embusca de si e investigar o
mundo ao seu redor (cf. BARBOSA apud EVARISTO, 2003, p. 8).
A narrativa dá início a um esquema de construção identitária articulada nos interstícios da subjetivação:
as imagens do trem, do rio, do barro edo arco-íris denotam que estes processos de construção e afirmação da
identidade, os espaços projetam-se na fronteira entre passado e presente.
Conforme afirma Araújo, “É exatamente na perspectiva de “passado-presente” que se nota o reencontro
de Ponciá com sua mãe e seu irmão na estação de trem, fazendo cumprir a missão deixada como herança do
Vô Vicêncio, andando em círculos” (2007, p.91) “(...) como se quisesse emendar um tempo ao outro” (Idem,
p. 132), levando nas mãos o homem-barro, Ponciá remonta sua história, “(...) decifrando nos vestígios do
tempo os sentidos de tudo que ficara pra trás”; e percebendo, finalmente, que “A vida era a mistura de todos e
de tudo. Dos que foram dos que estavam sendo e dos que viriam a ser.”(2003, p.127).
Levada ao rio, a protagonista mergulha em sua ausência, regada pelosrisos e prantos do avô. O desfecho
da história de Ponciá é cíclico,retorna ao início pela paisagem do rio sobre o qual se dilui vagarosamente
o arco-íris, fechando,desta maneira, o ciclo da trajetória da personagem: “Lá fora, no céu cor de íris, um
enorme angorô multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória
reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio. (p. 132)

Considerações finais
A escrita da mulher negra constitui ma forma de recontar a história a partir de uma subjetividade própria,
criando novos paradigmas de identidade e representação. Em Ponciá Vicêncio a presença da figura feminina
negra permite uma reflexão sobre gênero, raça e identidade. Ponciá Vicêncio é símbolo da trajetória dos
afro-brasileiros, ex-escravos e de seus descendentes saem em busca de seus familiares, de sua cultura, de sua
identidade – uma trajetória marcada por um círculo formado de lacunas e perdas, misturadas ao profundo
vazio da alma e do ser.
Evaristo estabelece uma relação dialógica com uma relegada à margem do reconhecimento crítico fixar
uma leitura de sujeitos marcados pela afro-descendência.
A mulher negra é fio condutor da história um depositário de conflitos, ambivalências, marcas de opressão
da trajetória individual e coletiva. Evaristo, ao mesmo tempo em que se identifica como “mulher”, cria um
espaço de resistência de sua voz e da voz outras mulheres marginalizadas voltadas às representações desse
sujeito feminino negro que configuram o cenário social da literatura afro-brasileira.

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ABRALIC, 5., 1997. Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ABRALIC, 1997. p. 417-423.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

SOUZA, Florentina. Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica,
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TOLEDO, Rilza Rodrigues. Ataulfo Alves: raízes mineiras do Brasil pela memoria musical. 2008. 147f.
Dissertação. (Mestrado em Letras). Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora , MG, 2008.

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O grito silencioso de cinco mulheres machadianas
em O Jornal das Famílias

CASTRO, Valdiney Valente de (UFPA)


valdiney.castro@uvaamapa.com.br

RESUMO O Jornal das Famílias, editado no Rio de Janeiro entre 1863 a 1878, foi destinado às mulheres leito-
ras em uma proposta moralizante de formação e manutenção da sociedade burguesa. Machado de
Assis foi o principal contribuinte, tendo escrito contos que vão além das questões moralizantes que
o folhetim propunha. Entre os contos está a série Cinco Mulheres, mostrando atitudes e\ou com-
portamentos que permitiam despertar a criticidade da mulher leitora. Na série – composta pelos
contos Marcelina, Antonia, Carolina, Carlota e Hortência – há uma evidente distinção entre os perfis
femininos: indo desde a mulher que se resigna à infelicidade de não ter o homem amado até a es-
posa infiel que aparenta uma felicidade conjugal para satisfazer a sociedade burguesa. Apesar de
serem mulheres muito diferentes é possível perceber que aquelas que agem de acordo com o que a
sociedade lhes impõe vivem uma vida marcada pelo sofrimento, o que certamente serve como um
espelho para a reflexão da leitora. Ao invés de apresentar histórias edificantes, como era o objetivo
do periódico, o autor relata uma postura sutilmente subversiva no relato da moralidade, fazendo
críticas e questionando as regras sociais, tais como os casamentos por conveniência e a condição su-
balterna da mulher brasileira, o que possibilita a leitora repensar o seu papel de passividade diante
da sociedade patriarcal, o que sugere um grito silencioso da mulher diante da repressão em que
vivia.
Palavras-chave: Jornal das Famílias, mulher, moralidade, sociedade.

ABSTRACT The Jornal das Famílias, edited in Rio de Janeiro between 1863 the 1878, was destined to the reading
women in a moralizing proposal of formation and maintenance of the bourgeois society. Machado de
Assis was its main contributor, having written stories that go beyond the moralizing questions that lea-
flets considered. Among the stories, there was the series “Five Women”, showing attitudes and\or pat-
terns of behavior that arouse the reading women’s sense of criticism. In the series – composed by the
short stories “Marcelina”, “Antonia”, “Carolina”, “Carlota”, and “Hortência” – there is an evident distinc-
tion between the feminine profiles, ranging from the woman who resigns to misfortune for not having
the beloved man to the unfaithful wife who pretends to have a fortunate marriage, in order to satisfy
the requirements of the bourgeois society. Although those women are very different, it is possible to
perceive that those that act in accordance with what society imposes to them manage to lead a life mar-
ked by suffering, which certainly serves as a convenient pattern for the reflection of the reader. Instead
of presenting edifying stories, as it was the objective of the paper leaflet, the author reveals a subtle
subversive position while approaching morality, producing criticism and questioning the social rules,
such as marriages for convenience and money, as well as the subordinate condition of the Brazilian wo-
man, which enabled the reader to rethink her role of passivity in the schemes of the patriarchal society.
Beyond doubt, such a position suggests the embryo of the subjugated women’s cry of revolt against the
oppressive society in which they lived.
Keywords: Jornal das Famílias, woman, morality, society.

O Surgimento dos Folhetins: uma história de sucesso


Os jornais, a partir da primeira metade do século XIX, na França, passaram a incorporar, nos rodapés, um
espaço destinado aos romances, surge daí a expressão romance-folhetim. As narrativas tratavam de assuntos

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que eram interessantes para o leitor: mistérios, suspenses, dramas amorosos retratando personagens burgueses,
o que permitia com que o leitor se identificasse com os textos que lia. As histórias eram publicadas de forma
esfacelada, saíam capítulo por capítulo nos jornais: os cortes ocorriam em momentos significativos, o que
fazia com que o leitor tivesse interesse em comprar a próxima edição para saber a continuidade do enredo.
Essa técnica ampliou o grande interesse do público: no início, o periódico serviu para divulgar os romances,
mas com a consagração destes, os folhetins ampliaram a vendagem dos jornais. “Ainda que não existam as
necessárias pesquisas, de difícil execução dada a escassez de dados sobre tiragens e publicações, não faltam
indícios da correlação entre a prosperidade do jornal e o folhetim” (MEYER, 1996)

A leitura era feita por diversas camadas da sociedade francesa: dos nobres aos camponeses, dos patrões aos
empregados, o que contribuiu para que ocorresse o aumento da tiragem e o barateamento, ocorrendo então
uma democratização do jornal:
O resultado foi um grande sucesso. A fórmula “continua amanhã” ou “continua num próximo
número” que a ficção em série proporcionava ao folhetim alimentava paulatinamente o apetite e
a curiosidade do leitor diário do jornal e, obviamente, como resposta, fazia aumentar a procura
por ele, barateando os seus custos. O jornal democratizava-se junto à burguesia e saia do círculo
restrito aos assinantes ricos (NADAF, 2002, p. 18).

Diversas camadas da população tinham acesso aos periódicos, o que permite com que seja repensada não
apenas a ampliação do gosto pela leitura, mas também a moralização da população: a luta do bem contra o
mal era o tema central dos folhetins, o que o aproxima do melodrama ao se apoiar nos sentimentos de medo,
entusiasmo, dor e riso. Em geral, nas histórias, o mal perturba a ordem natural das coisas e passa a reinar até
que a situação se reverta e o bem possa triunfar. A elevação do bem como a solução final servia como meio
para moralizar e manter as regras sociais na medida em que os leitores percebiam a valorização da virtude e da
obediência, nas obras em que liam.

Para concretizar a vitória do bem na vida dos leitores, os temas passaram a ser os mais diversos: amores
mal resolvidos, injustiças familiares, mistérios, todos apresentando muitas ações como mortes, prisões, intrigas
e traições sempre marcadas pela aproximação com a vida do leitor, por isso os menos afortunados e os espaços
mais variados estão presentes:
Nos romances folhetins que elegeram como núcleo temático os chamados “dramas parisienses”, a
população pobre e marginal e os aspectos da vida miserável e criminosa da cidade ocuparam um
lugar de destaque. Os hospícios, os orfanatos, as galés, as tavernas da velha cidade e as subumanas
estalagens do proletariado e seus aterrorizantes e desafortunados personagens entrecruzavam-se
com os castelos e os boulevards e seus ricos habitantes, resultando em estórias tensas, nebulosas
e apaixonantes. A esse tempo, Paris se industrializava e modernizava, mas contradizia-se por trás
de suas famosas e luxuosas galerias metropolitanas – vitrines de moda e de cultura para o mundo
– com a miséria proletária e os dramas urbanos decorrentes desse mesmo contexto histórico.
(NADAF, 2002, p. 22).

No Brasil, após a chegada da Família Real, em 1808, o Rio de Janeiro se tornou a Cidade da Corte (a
partir de um crescente processo de urbanização) e a abertura dos portos proporcionou a todos a percepção de
como Portugal, como metrópole colonizadora, representava um atraso cultural, por isso houve a absorção das
influências que vinham da França e simbolizavam o progresso e a modernidade.

Daí, o sucesso que os folhetins faziam em Paris se proliferou também no Brasil com a estréia, em 1839,
no Jornal do Commercio, da novela Edmundo e sua prima, de Paul de Kock. Os demais jornais acompanharam
a moda e os romances-folhetins passaram a ser publicados causando um enorme sucesso:
O romance folhetim foi uma febre nacional que impulsionou muitos dos nossos grandes autores
a utilizarem esse espaço como forma de publicação das suas obras e projeção dos seus nomes entre
o público e a crítica. Sendo o jornal o veículo de comunicação mais acessível na sociedade dos
oitocentos, talvez este fosse o caminho mais rápido e fácil para o escritor alcançar notoriedade
(SALES, 2007, p. 45).

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Essa proliferação do jornal também deve-se ao surgimento de um público leitor brasileiro propriamente
dito: com a urbanização do Rio de Janeiro, a camada burguesa desenvolveu-se constituída pelos grandes
proprietários de café que tinham tempo e dinheiro para acompanhar as publicações nos jornais. O enorme
sucesso do folhetim fez com que ele ocupasse outros espaços no jornal, passando a configurar-se, além do
rodapé, no lado da página ou na página final do periódico. O interesse do público também propiciou com que
alguns jornais tivessem mais de um folhetim simultaneamente publicado. O romance-folhetim se estendia a
todos os jornais da corte.

O Jornal das Famílias e a colaboração de Machado de Assis


Entre os jornais que fizeram bastante sucesso está o Jornal das Famílias, editado por Baptiste Louis
Garnier. Ele havia editado, por quatro anos, a Revista Popular, com cunho político e informativo e em 1863
passa a publicar o Jornal das Famílias, até 1878. Com a invenção do navio a motor, a viagem a Europa passou
a durar em média 22 dias e como Garnier tinha sua firma em Paris o jornal passou a ser impresso na França,
o que barateou o custo e conquistou um público maior, pela qualidade que passou a apresentar. O periódico
tinha circulação mensal e cerca de 30 páginas ricamente ilustradas, com algumas imagens coloridas. O custo
da assinatura para Rio de Janeiro e Niterói era de 10$000 e para as províncias era de 12$000, o que era um
valor relativamente alto.
No primeiro editorial merece destaque o seguinte trecho:“Mais do que nunca dobraremos os nossos
zelos na escolha dos artigos que havemos de publicar, preferindo sempre os que mais importarem aos pais, à
economia doméstica, à instrução moral e utilidade das famílias” (Jornal das Famílias, jan. 1863, p.2-3)
O periódico era destinado às mulheres leitoras com clara intenção moralizante: formar boas esposas
prontas para coordenar as tarefas do lar e para a educação dos seus filhos.
Durante seus dezesseis anos de existência o jornal manteve a mesma ilustração da capa: uma mulher
sentada, muito à vontade, com os olhos atentos em sua costura. A capa sofreu uma alteração, em 1877, com
o acréscimo de alguns detalhes, mas a ilustração da mulher, devotada para as atividades do lar, se manteve. A
preocupação com a moralização e com a instrução da mulher para ser boa esposa e mãe é a tônica do jornal
que:
mesmo editado por homens, demonstra preocupação em satisfazer mesmo que sob a ótica
masculina, aos anseios de suas leitoras. Elas não são informadas sobre as conquistas alcançadas
pela mulher em todo o mundo, mas são retratadas pela iconografia e pelas cartas de redação
como efetivadas leitoras, que precisam ser educadas para dar ordens às criadas, que desejam ser
informadas sobre as últimas tendências da moda de Paris e que precisam ler literatura para se
distrair e para aprender com os sucessos e fracassos das protagonistas das narrativas. Enfim lendo
e se informado, seriam melhores mães e esposas. (PINHEIRO, 2002, p. 98).

As imagens presentes no periódico retratavam essa instrução moralizante da mulher. Na sua maioria as
ilustrações apresentavam diversas imagens de mulheres trabalhando em costura ou bordado, lendo para seus
filhos ou sentada, à mesa, com a família. A proliferação das imagens de mulheres leitoras coadunava-se com o
esperado crescimento da leitura no Brasil. Além de incentivar a leitura, o jornal propunha também a formação
da mulher para se tornar uma boa dona do lar, o que pode ser percebido pelas seções do periódico “Economia
Doméstica” e “Medicina Doméstica”. Ainda há a seção “Moda”, repleta de boas ilustrações apresentando a
moda européia e “Romances e Novellas”, com a presença da literatura nacional.
Em janeiro de 1864, o editor dirige-se exatamente às leitoras, afirmando:
Um ano. A imitação desses astros que giram no espaço, também fizemos nosso giro, também
nos atiramos no espaço sem limite do pensamento (...) Envidamos todos os esforços, não nos
poupamos a despesas e sacrifícios, afim de dar aos leitores, e sobretudo às gentis leitoras que
se dignam dispensar conosco algumas horas a lançar os olhos às páginas que escrevemos, um
volume nítido, variado, elegante, digno de ornar pela amenidade de seus artigos, pela perfeição
de seus desenhos, pelo fino de suas gravuras, pela delicadeza de sua impressão, as estantes dos

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literatos, os gabinetes dos artistas e o perfumado camarim de nossas amáveis leitoras. Que missão
a que cumprimos a que nos comprometemos, prova-o o acolhimento em extremo lisongeiro que
recebemos do público, acolhimento que, a continuar, como esperamos, nos permitirá a realização
de diversos melhoramentos, que temos em mente, já na parte material, já na parte literária ou
intelectual. Agradecemos também aos hábeis e amenos literatos (Jornal das Famílias, jan, 1864,
p. 7).

Em meados do século XIX a situação da leitura para a mulher era muito desfavorável, pois não era ela
quem decidia o que ler: a leitura era vaticinada pelo chefe da casa, o pai ou o marido, por isso
O universo da leitura da mulher brasileira é dos mais restritos. Iletrada na maioria dos casos, faz
parte de uma sociedade para a qual o livro, a leitura e a cultura não parecem apresentar maior
significado. Quando recebe educação formal, esta prima pela superficialidade (ZILBERMAN,
1993, p.33)

No Jornal das Famílias a leitora é quase uma personagem da narrativa: o narrador a faz participar da
história, dialogando com o texto lido, o qual ridiculariza possíveis desvios cometidos e ensinava os benefícios
do bom comportamento inclusive para formar a mulher para a vida matrimonial. O folhetim de Garnier era
considerado como um jornal casamenteiro. As heroínas são belas, educadas, prendadas, aceitam as decisões
dos pais e por mais que questionem sua condição, não se rebelam contra elas. As obras são apresentadas como
bons exemplos para as leitoras:
o novo gênero não se limitou a refletir os valores de seu tempo, mas ajudou a criá-los, ou para
dizer de outro modo, os romances foram instrumentos que contribuíram para constituir interesses
sociais mais do que lentes que os refletiram (VASCONCELOS, 2002, p. 11-12).

Essa preocupação com a moral precisa ser compreendida também considerando a preocupação em agradar
o público. Não havia as vantagens financeiras dos anúncios publicitários, o lucro estava nos assinantes. Outras
estratégias empregadas pelos escritores para atrair e manter o interesse dos leitores eram
os títulos atraentes e inícios impressionantes das histórias, a opção por tramas extraordinários e
casos singularesmnarrados com base em um discurso totalmente sensacionalista, o investimento
na ação e na multiplicidade dos incidentes, a prática do corte sistemático e a devida valorização
do suspense, a exploração da curiosidade e das expectativas do leitor por meio de anúncios e
antecipações de informações, a busca da identificação do leitor com a obra projetando-se o
universo social e psicológico do público no interior da narrativa (CRESTANI, 2007, p. 67).

Entre os vários autores que publicaram no jornal, Machado de Assis é o grande destaque: durante os 16
anos de existência do periódico foram publicadas duzentas e vinte e três narrativas, dentre elas oitenta e seis
são de autoria de Machado.
O autor ia além do que comumente se apresentava no jornal, mostrando uma renovação dos temas: o
casamento, que comumente encerra as narrativas como um grande objetivo alcançado pelas mulheres, na sua
obra, em certas ocasiões, é transferido para o início da narrativa e a partir daí são desconstruídas as mistificações
e excessos que eram comuns nas narrativas de outros autores. Com isso o matrimônio era revisitado com uma
abordagem mais realista, manifestando certa isenção aos propósitos edificantes e moralizantes do Jornal das
Famílias. Em busca de uma abordagem real, o narrador faz uma apresentação da mulher vivendo em uma
sociedade patriarcal e conservadora, sendo vista em um espaço limitado com seu destino já traçado: casar e ter
filhos. Há, nos contos do autor, a denúncia às aparências construídas pelas famílias para a apresentação de um
enlace perfeito, por isso é comum a crença de que os contos teciam uma moralidade às avessas.
É preciso entender que as condições de produção em folhetins obedeciam uma organização tipográfica
especial, o espaço limitado do papel fazia com que muitas vezes a história fosse interrompida para ter
continuidade na próxima edição. Muitos dos contos presentes nos Jornal das Famílias se estendem por mais de
um mês, tendo alguns se prolongado por até quatro números seguidos. Com essa preocupação com o espaço é
possível que muitas vezes os autores tenham sido levados a alongar as suas histórias, mesmo que não fosse esse

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o propósito. O pagamento dos escritores da época era calculado segundo as linhas escritas; os autores, assim,
prolongavam suas histórias ou pela questão financeira ou ainda pela preocupação em ocupar o espaço do papel.
Para produzir esse alongamento o expediente mais comumente usado era o diálogo que permitia ganhar espaço
porque a cada frase – às vezes, a cada palavra – há espaços em branco e se ganha uma linha.

Cinco Mulheres: diferentes espelhos das mazelas sociais


Entre os contos que Machado de Assis publicou no Jornal das Famílias está a série de contos Cinco Mulheres,
publicada de agosto a setembro de 1865 com o pseudônimo de Job. A série é dividida em quatro histórias
independentes, retratando cinco mulheres de distintas índoles e naturezas, diferentes idades e aspirações. O
próprio escritor chama atenção para o fato no preâmbulo que antecede a história:
Aqui vai um grupo de cinco mulheres, diferentes entre si, partindo e diversos pontos, mas
reunidas na mesma coleção, como em um álbum de fotografias. Desenhei-as rapidamente,
conforme apareciam, sem intenção de precedência, nem cuidado de escolha. Cada uma delas
forma um esboço à parte, mas todas podem ser examinadas entre o charuto e o café (ASSIS,
1998, p. 117).

As mulheres Marcelina, Antonia, Carolina, Carlota e Hortência são representações da sociedade burguesa
do final do século XIX. Daí, nos contos, os costumes burgueses estão sempre presentes como o hábito de tocar
piano em Marcelina; a reunião de amigos em casa e a ida ao teatro, que está presente em Antonia; o chá, que
se toma no final da tarde, em Carolina; ou ainda o enterro luxuoso em Carlota e Hortência.

O conto foi publicado em 1865 e aponta a inovação na apresentação do enredo daquele que viria, dezesseis
anos depois, surpreender a todos com a sequencia construída em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Essa
novidade pode ser percebida também na omissão de determinadas passagens, geralmente as que conduziriam
ao excesso de sentimentalismo, mostrando a consciência do escritor da necessidade de síntese exigida para a
escritura do conto e sua acidez crítica ao excesso de sentimentalismo romântico.

Em Marcelina o narrador informa: “Isto não é um romance, nem um conto, nem um episódio, não
me ocuparei, portanto, com os acontecimentos dia por dia”; e em Carolina: “Como eu não quero entreter
os leitores com episódios inúteis e narrações fastidiosas, salto aqui uns seis meses e vou levá-los a casa de
Mendonça em uma manhã de inverno”; e em Carlota e Hortência: “Não interessa aos leitores saber dos cafezais
de L. Patrício”.

Essa conversa com o leitor revela certa cumplicidade que é estabelecida ao longo do texto e acontece em
vários momentos das narrativas: “Sem conhecer ainda as nossas heroínas, já o leitor começa a lamentar a sorte
da futura mulher de Mendonça” (Carolina); ou ainda: “Este pequeno diálogo já dá ao leitor uma ideia dos
acontecimentos que precederam à morte de Carlota” (Carlota e Hortência). Esse diálogo com o leitor revela
uma cumplicidade que serve tanto – através dos cortes narrativos – para criticar os romances carregados pelo
excesso de sentimentalismo romântico quanto para auxiliar o leitor na compreensão da história: “O leitor sagaz
suprirá o resto da carta acrescentando qualquer período tirado de qualquer romance da moda” (Carolina).

Esse auxílio na compreensão do enredo é necessário porque, entre as inovações de Machado de Assis, há
a quebra na estrutura comumente usada de organização da narrativa: Em Carolina a história começa com um
diálogo entre Carolina e Lúcia e só depois se situa o leitor sobre as personagens e em Carlota e Hortência a
história inicia com o enterro de Carlota e só depois o leitor tem conhecimento sobre a história da personagem.
Essa inovação, fica ainda mais evidente, no final do conto Antonia, onde Machado de Assis apela para a
sagacidade do leitor para compreender a infidelidade da personagem.

É exatamente a (in) fidelidade no casamento o grande tema que percorre todas as quatro narrativas. Em
Marcelina a personagem-título apaixona-se pelo noivo de sua irmã, Júlio, e não revela esse amor, entregando-
se à morte. Ela abdica de sua felicidade e, depois de morta, Júlio tem acesso a uma carta deixada por ela, onde
se lê:

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Devo morrer deste amor. (...) Por que me hei de revoltar contra minha irmã? Não pode ela sentir
o que eu sinto? Se eu sofro por não ter a felicidade de possuí-lo não sofreria ela, se ele fosse meu?
Querer a minha felicidade à custa dela, é um sentimento mau que mamãe nunca me ensinou.
Que ela seja feliz e sofra eu a minha sorte.

A resignação de Marcelina, obviamente, coaduna-se com a manutenção dos ditames sociais, mas evidencia
o abandono da vida, da felicidade. Essa passividade em aceitar o destino e não entregar-se ao amor a fim de
manter as regras sociais também está presente em Carolina, em que a protagonista aceita o imposto consórcio
com Mendonça, mesmo sendo apaixonada por Fernando, o qual corresponde ao seu amor:
Se meu casamento é um túmulo, nem por isso posso deixar de respeitá-lo. Reza por mim e pede
a Deus que te faça feliz.
Foi para estas almas corajosas e honradas que se fez a bem-aventurança (ASSIS, 1998, p. 122).

A reflexão final de Machado de Assis acentua o tom moralizante, mas apresenta a infelicidade da mulher
que adentra ao casamento como em um túmulo.
Esse respeito às convenções sociais também está presente no último dos quatro contos: Carlota, mesmo
descobrindo que seu marido, Durval, a trai com sua amiga Hortência, não a expulsa de casa por lamentar o
reflexo desse ato na sociedade, o que acaba por gerar a morte da esposa que não suporta a traição do marido.
Ao contrário das honradas personagens acima apresentadas, Hortência, que depois casa com Durval, acaba por
traí-lo, o que gera também a morte dele: “O caso, porém, tornou-se pior; Hortência, que traíra a amiga, não
teve dúvida em trair o marido: Hortência tem hoje um amante!”
Há, nesse conto, duas representações da mulher: Carlota, que não aceita a traição e, por isso, morre; e
Hortência que é construída como a traída (pelo marido) e a traidora em duas perspectivas distintas: trai a
confiança de Carlota e depois trai o marido Durval.
A esposa infiel, que durante a narrativa apresenta-se como inocente e devotada ao marido e depois se
revela como dissimulada e astuciosa, está presente também no conto Antonia, em que a protagonista se mostra
entristecida pelo marido, Oliveira, não poder acompanhá-la ao teatro, mas depois surpreende o leitor quando
se descobre que já havia um encontro marcado entra ela e seu amante.

As diferentes mulheres e a recepção da leitora


Há uma evidente distinção entre os perfis femininos: indo desde a mulher que se resigna à infelicidade
de não ter o homem amado até a esposa infiel que aparenta uma felicidade conjugal para satisfazer a sociedade
burguesa. Apesar de serem mulheres muito diferentes é possível perceber que aquelas que agem de acordo com
o que a sociedade lhes impõe – como Carolina – vivem uma vida marcada pelo sofrimento, o que certamente
serve como um espelho para a reflexão da leitora.
Há, assim, mulheres díspares: aquelas que agem de acordo com os ditames sociais e, por isso, abdicam de
sua felicidade (Carlota, Marcelina e Carolina) e as que contrapõem os valores e por isso sofrem durante os contos
as privações e preconceitos: Basta lembrar que Antonia sofre pelos burburinhos que proliferam pela sociedade
de seu suposto caso com Moura e no conto Carlota e Hortência, esta última personagem é pejorativamente
analisada pelos narradores que a representam como a grande infiel da narrativa, sem considerar que antes de
traidora ela havia sido traída em seu primeiro matrimônio.
Machado de Assis relata uma postura sutilmente subversiva no relato da moralidade, fazendo críticas e
questionando as regras sociais, tais como os casamentos por conveniência e a condição subalterna da mulher
brasileira, o que possibilita a leitora repensar o seu papel de passividade diante da sociedade patriarcal em que
vivia. Isto sugere que por mais as mulheres estivessem silenciadas, discriminadas pela sua condição subalterna
diante da sociedade, as personagens tecidas por Machado de Assis representam um grito – ainda que sutil,
discreto, silencioso – diante da sua condição, podendo influenciar a leitora a reconhecer-se nas situações
diversas em que as personagens eram representadas.

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Referências
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Machado de Assis)
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MEYER, Marlise. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das Miscelâneas – o folhetim nos jornais de Mato Grosso (século XIX e XX) Rio de
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PINHEIRO, Alexandra Santos. Revista Popular (1859 – 1862) e Jornal das Famílias (1863-1878): dois
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SALES, Germana Maria Araújo. “Folhetins: uma prática de leitura no século XIX”. Revista Entrelaçes. Agosto
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SILVEIRA, Daniela Magalhães. Contos de Machado de Assis: leituras e leitores do Jornal das Famílias. (Dissertação
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VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês do século XIX. São Paulo: Boitempo
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ZILBERMAN, Regina. Leitoras de carne e osso: a mulher e as condições de leitura no Brasil do século XIX. R. Est.
Lit. Belo Horizonte, v. I n. 31 – 47, out. 1993.
___________________ Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989.

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Intertextualidade, paródia e realismo mágico: o desafio ao
cânone literário e a representação identitária feminina
em Nights at the Circus, de Angela Carter

JUNQUEIRA, Luiz Guilherme Pereira (UFSJ)


luizvga31@hotmail.com
OLIVEIRA, Luiz Manoel da Silva (UFSJ)
luizmanoel@ufsj.edu.br

RESUMO O romance Noites no Circo (Nights at the Circus), de Ângela Carter, nos apresenta Sophie Fevvers,
trapezista alada de um circo itinerante. A grande questão é: as asas e também as histórias fantásti-
cas da personagem são verdadeiras? O presente trabalho, embasado na hipótese de que o romance
oferece desafio ao cânone literário tradicional, busca identificar de que forma Carter utiliza-se de
certas estratégias narrativas para realizar essa tarefa transgressora. O artigo também tem o objetivo
de verificar a questão dos novos parâmetros de identidade propostos por Carter, que se diferenciam
dos modelos de identidade masculinos e femininos presentes em obras pertencentes ao cânone
literário tradicional. As principais estratégias narrativas analisadas neste artigo serão as possibili-
tadas pelo uso da intertextualidade, da paródia e do realismo mágico, e as análises contarão com
textos de J. A. Cuddon, Lidia Curti, Peonia Viana Guedes, Paulina Palmer e outros que forem consi-
derados necessários.
Palavras-chave: feminismo, realismo mágico, paródia, intertextualidade.

ABSTRACT Angela Carter’s novel Nights at the Circus presents Sophie Fevvers, a winged aerealist artist who is part
of a circus. But are Fevver’s wings and fantastic stories true? This article, based on the hypothesis that
the novel offers some kind of defiance to the traditional literary canon, aims to identify the ways through
which Carter makes use of certain narrative strategies to carry out such a transgressive task. The article
also analyzes the gender identity matter present in the novel, which is so different from the patterns
generally pertaining to the traditional literary canon. The main strategies analyzed in this article are
intertextuality, parody and Magic Realism, and the analysis will be based on the works by J. A. Cuddon,
Lidia Curti, Peonia Viana Guedes, Paulina Palmer and other reseachers.
Keywords: feminism, magical realism, parody, intertextuality.

Introdução
O romance Nights at the Circus (1991), lançado pela escritora inglesa Ângela Carter em 1984, talvez
seja um dos maiores exemplos do encontro de características pós-modernas com o feminismo, no âmbito da
literatura. O romance, que apresenta Sophie Fevvers, uma trapezista alada, como protagonista, desconstrói as
noções de identidade de gênero, buscando apresentar um novo conceito de mulher e, consequentemente, de
homem. A autora, ao apropriar-se do mito grego da Leda e do Cisne, lida com temas como a opressão sofrida
por mulheres, exercida pela sociedade patriarcal, a repressão e ascensão de grupos considerados minoritários e
até com a possibilidade de um final com realizações positivas para as personagens subjugadas do romance.
Nights at the Circus (1991)conta a história de Fevvers, atual trapezista de um circo que está realizando
uma turnê pelo mundo. A protagonista, porém, não é uma mulher comum: apresenta asas, uma estatura
acima do normal e sua própria história parece irreal, pois esta conta a Jack Walser, jornalista norte-americano

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que a entrevista no início do romance, que ela não nasceu por meios normais como os outros seres humanos,
mas que saiu de um ovo, assim como Helena de Tróia (e aqui aparece a primeira correlação de Fevvers com
o mito daLeda e do Cisne). A narração da história de vida da personagem, que foi criada por prostitutas e
depois fez parte de um show de horrores onde devia exibir suas proporções anormais e suas asas, até chegar ao
circo de Lamarck, mistura-sea outros personagens e situações surreais, criando um clima em que não é possível
distinguir o que é real e ficção. O próprio slogan de Fevvers acomoda tal questão: “Ela é Real ou Ficção?”
A primeira parte do livro apresenta a narração de Fevvers sobre sua história, enquanto Walser, que em
alguns momentos parece estar sonhando devido ao surrealismo das cenas, anota o que ouve para fazer uma
reportagem, esperando desmascarar Fevvers, com o intuito de provar, enfim, que suas asas são falsas, assim
como todas as outras histórias daquela mulher-aberração. Ao final da primeira parte, porém, o jornalista parece
cativado pela narrativa da personagem e decide se juntar ao circo para apurar melhor os fatos. O circo sairá de
Londres e passará, então, por Petersburgo e pela Sibéria, nas partes seguintes, e os protagonistas, Fevvers e Jack
Walser, passarão por grandes modificações identitárias no processo, ambos rumando para uma nova mulher
e um novo homem, apropriados às mudanças do século que está por vir, já que a história se passa no final do
século XIX e no alvorecer do século XX.
Além de discutir a questão da representação de identidade mencionada no parágrafo anterior, o presente
artigo busca, também, analisar e evidenciar as formas e estratégias que Ângela Carter utilizou para desafiar o
cânone literário, já que a obra apresenta releituras de mitos e relações intertextuais com obras clássicas. Dentre
as estratégias analisadas, o principal foco será na intertextualidade, na paródia e no realismo mágico, embora
outras, como o carnavalesco, também serão citadas.

Revisão de Literatura
Segundo CHILDERS & HENTZI (1995, p.148), “identidade” é definida de acordo com várias teorias
contemporâneas e não é mais vista como uma estrutura fixa e permanente, ou imutável, mas sim como um
conceito que flui e muda com o tempo. Para esses teóricos, não existe um indivíduo completo e unificado. Tal
definição rompe com certas noções essencialistas que argumentavam que as pessoas deveriam cumprir papéis
sociais e culturais determinados pelo sexo e condição social, principalmente. O verbete também apresenta uma
distinção entre “identidade” ligada à subjetividade e “identidade” ligada a grupos, no sentido de identidade
coletiva (identidade negra, identidade brasileira, etc.).
Outra “definição” apresentada pelos autores é a de pós-modernismo, período estético-literário-filosófico
que se seguiu ao modernismo e começou a mostrar seus traços iniciais por volta da década de 1960. Ele
influenciou várias áreas, entre elas, a literária. Uma das principais características pós-modernas é o desafio
à tradição herdada do neoclassicismo. As correntes críticas do estruturalismo, do pós-estruturalismo e da
Desconstrução também influenciaram o pós-modernismo, principalmente no que tange a questões relativas
à fragmentação do indivíduo e de valores sociais e culturais, como um todo. Essas questões são evidenciadas,
por exemplo, na perspectiva em relação ao significado e às “Verdades” (com “V” maiúsculo) como um todo,
pois “significados” e “Verdades” eram tidos como absolutos, imutáveis e estáveis até a época do estruturalismo.
Com o advento das visões pós-estruturalistas, quase sempre embaladas pelos pressupostos da Desconstrução
derrideana, passou-se a se privilegiar a descentralização e a mistura de gêneros literários numa única obra,
tanto como forma de desestabilizar a noção cristalizada de “cânone literário”, quanto para representar questões
variadas como a da identidade do sujeito na pós-modernidade, sem prejuízo das características estéticas e
artísticas da obra ficcional que estiver em questão.
Mary Klages, no artigo “Postmodernism” (2007), tenta definir o pós-modernismo principalmente em
suas relações de semelhança e diferença com o modernismo e também relacionando-o com as noções de
modernidade e pós-modernidade. Para a autora, este é um termo de difícil definição e de localização temporal
e histórica, embora seja possível identificar algumas características herdadas do modernismo, como a rejeição
da distinção entre a existência de arte de alta e baixa classe, a rejeição de distinções rígidas de gênero e o
reconhecimento da fragmentação, da discontinuidade, da ambiguidade e da simultaneidade.

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Apesar desses pontos em comum, o pós-modernismo difere-se do modernismo no modo como encara
a noção de caos (fragmentação, discontinuidade, ambiguidade e simultaneidade são todos elementos desta
noção). Enquanto o segundo associa a desordem com “ruim” e busca uma ordem utópica, o primeiro considera
a realidade instável e impermanente, adotando o caos em si como realidade.

Klages também relaciona o termo “pós-modernismo” com “pós-modernidade” (que é referente à era
em que vivemos). Segundo a autora (KLAGES, 2007, p. 2) o primeiro é consequência do segundo. O pós-
modernismo seria, portanto, apenas um reflexo ideológico do nosso estilo de vida, condicionado pelo atual
desenvolvimento tecnológico de nossa civilização.

O pós-modernismo, ao quebrar ideais, mudou também o ponto de vista de suas produções. O contexto
deixou de ser geral, de englobar um grande grupo para tornar-se específico e abordar questões mais definidas.
Deixou de abordar o mundo para abordar uma comunidade, por exemplo. Essa mudança também contribuiu
para dar voz a grupos até então considerados minoritários e muitos grupos liberais, como o feminista,
associaram-se ao pós-modernismo, enquanto aqueles grupos considerados conservadores aliaram-se à tradição,
mantendo suas bases no iluminismo e tentando bloquear influencias pós-modernas.

J. A. Cuddon (1999) também define verbetes relevantes para a discussão apresentada neste artigo.
Segundo o editor, a crítica feminista tem como um dos seus objetivos descrever e interpretar (e reinterpretar)
as representações das mulheres na literatura. Ao fazê-lo, consequentemente desafia as visões preconceituosas
e essencialistas em relação às mulheres, presentes principalmente em obras literárias consideradas tradicionais
ou pertencentes ao cânone literário.

A definição de “intertextualidade” apresentada por Cuddon (1999, p.424) é baseada nas ideias da crítica
franco-búlgara Julia Kristeva e diz que um texto não pode ser separado das relações que apresenta com todos
os outros textos escritos antes dele. Para Kristeva, escrever um texto é absorver e transformar outros: discursos
e sistemas de signos são transportados de um para outro texto e ao mesmo tempo são sobrepostos por discursos
e sistemas de signos diferentes.

O termo “realismo mágico” começou a ser empregado na crítica literária na década de 1980, embora
tenha sido cunhado na década de 1920 para classificar certos pintores alemães. Suas principais características
são a mistura do real com o fantástico e/ou o bizarro, mudança de tempo, narrativa e trama complexas e
confusas, uso de sonhos, mitos e contos de fada, a presença do elemento da surpresa e do choque, entre
outras.Normalmente utilizado em literaturas pós-coloniais, o realismo mágico frequentemente é associado à
subversão, já que pode misturar mitos da colônia com o realismo, estilo herdado da Europa. Angela Carter, em
Nights at the Circus (1991), também o usa como subversão, porém em relação ao patriarcado.

“Paródia” segundo Cuddon (1999) é definida como a imitação do estilo de um autor com o intuito de
ridicularizar a obra do mesmo. Este efeito muitas vezes é alcançado através do exagero e o estilo é comparado
às caricaturas.

O livro Female Stories, Female Bodies – Narrative, Identity and representation, de Lidia Curti (1998),
apresenta um estudo sobre a representação do corpo feminino em obras de autoria feminina, entre elas
Nights at the Circus. A seção Monstrous Bodies in Contemporary Writing analisa o uso de corpos híbridos e/ou
monstruosos, teorizando sobre os possíveis motivos do crescente aparecimento de tais representações em obras
de autoria feminina. Segundo Curti (1998, p. 117):
Os monstros que invadiram recentemente a ficção de autoria feminina podem ser exemplos de
uma nova liberdade, sinais da possibilidade de trazê-las (as mulheres) à vida, após os tempos em
que monstros e excluídos, como as bruxas e os loucos, tinham que ser oprimidos e reprimidos”
(CURTI, 1998, p. 117).

A autora cita exemplos como The Female Man, de Joanna Russ; The Clonning of Joanna May, de Fay
Weldon; Nights at the Circus, de Angela Carter, entre outros, para mostrar que as desproporções e alterações

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fantásticas presentes nos corpos das personagens desses romances podem servir para criticar as imposições
estéticas e socioculturais de uma cultura patriarcal. Tais personagens apresentam corpos gigantes, corpos
híbridos, com asas ou teias de aranha nos pés, contrariando a visão de fragilidade normalmente atribuída
às mulheres na literatura considerada canônica. Até mesmo o comportamento das personagens vai contra
as imposições comportamentais propagadas pelo patriarcado, já que algumas dessas personagens comem de
forma exagerada, riem de maneira extravagante e até lidam com temas como fluídos corporais de forma
explícita e sem pudores.

O artigo “Angela Carter’s Treatment of the Carnivalesque and the Fiction of Jeanette Winterson: Queer
People, Carnivalesque and the Grotesque”, de Paulina Palmer, aborda o carnavalesco, o grotesco e as teorias
Queer nas obras de Carter e Winterson. Para Palmer, o carnavalesco é utilizado nessas obras como forma de
criticar a cultura patriarcal e de estabelecer noções essencialmente feministas. A inversão ou anulação de papéis,
uma das características que a autora atribui ao carnavalesco, aparece em Nights at the Circus, por exemplo, no
bordel, quando um lugar normalmente associado às minorias (no caso mulheres e prostitutas) torna-se local
de dominação e total presença feminina, onde os homens tornam-se personagens secundários.

Para Palmer, o grotesco é utilizado como forma de exaltação e libertação feminina e age como prova da
liberdade daquele considerado secundário até então. A mulher, antes associada à inferioridade e a aspectos
negativos, assume uma posição de agente e o uso de hibridismo e “deformações” corporais como vantagem
servem como contraste para os avanços e conquistas nos campos políticos e sociais referentes aos direitos
femininos.

O artigo “The Grotesque in Angela Carter’s Nights at the Circus”, de Peonia Viana Guedes, também lida
com o grotesco na obra de Carter. A autora relaciona o grotesco ao carnavalesco, alegando que Angela Carter
(1996, p.2):
[...] Mostra não apenas o submundo do espetáculo carnavalesco – como também a perspectiva
daqueles que são oprimidos pela sua posição de marginalidade em relação à cultura dominante
– mas também mostrando que o carnavalesco está apoiado na naturalização da diferença. Com
os atores do circo, Angela Carter apresenta uma paródia subversiva da cultura dominante
(GUEDES, 1996, p. 2).

Tal subversão em relação à cultura dominante também é representada através do corpo da protagonista.
O corpo feminino, normalmente alvo de degradação e de escravização, é visto como forma de libertação por
Fevvers, que se sente verdadeiramente livre ao voar e que sabe sobre seu valor de mercado e capacidade de
impressionar as pessoas com sua excentricidade. O espaço físico do circo, dos bordéis e da casa de horrores
também é abordado e é tratado como o espaço que permite que os personagens marginais (ex-cêntricos)
possam dominar e assumir uma posição de agente, contrária à costumeira posição de sujeição.

O artigo “Arte, Literatura e Realismo Mágico na Corporeidade Freakish de Sophie Fevvers no romance Nights
at the Circus, de Ângela Carter, de Luiz Manoel da Silva Oliveira, apresenta considerações sobre o corpo
híbrido da protagonista do romance, Fevvers, relacionando sua corporeidade aberrativa a obras de arte, obras
literárias, mitos e às características do realismo mágico. Oliveira contrasta as características céticas de Walser
(herdadas do Iluminismo setecentista) com o surrealismo e as situações fantásticas apresentadas por Fevvers
e seu mundo, diferenciando, assim, o ponto de vista da cultura dominante daquela considerada subjugada,
embora a convivência do jornalista com a protagonista tenha transformado ambos os personagens.

Oliveira também aponta a característica revisionista presente no livro, que reescreve obras consideradas
canônicas por um ponto de vista patriarcal. Com o uso do realismo mágico, Angela Carter teria reescrito
mitos e obras clássicas, como o mito grego da Leda e do Cisne e até desconstruído organizações consideradas
patriarcais, como o legado rosacruz, que aparece na figura de um dos personagens. O autor também aborda
questões referentes ao corpo da protagonista, dando principal destaque ao desafio às normas de estética e beleza
praticamente impostas às mulheres em cada período histórico distinto.

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Metodologia utilizada
O método de pesquisa utilizado foi o de pesquisa bibliográfica, com a leitura crítica do romance Noites no
Circo (Nights at the Circus), de Ângela Carter e de textos teóricos específicos, como os artigos de Luiz Manoel
da Silva Oliveira, de Peonia Viana Guedes (1996) e de Paulina Palmer. O livro Female Stories, Female Bodies,
de Lidia Curti também foi utilizado, assim como os dicionários de termos de Joseph Childers & Gary Hentzi
e de J. A. Cuddon. As considerações sobre o pós-modernismo foram embasadas no texto “Postmodernism”,
de Mary Klages.

Análise dos resultados


Percebe-se, através da leitura do romance Nights at the Circus e dos textos teóricos citados que a própria
representação identitária feminina presente no romance serve como desafio ao cânone literário. No romance
de Ângela Carter, a “identidade” de Fevvers e de outras personagens aparece de forma mutável, já que a maioria
das personagens, mesmo aquelas sobre forte pressão patriarcal, como Mignon, apresentam mudança de estado,
quase sempre em direção à realização feminina. As personagens (pelo menos aquelas que inicialmente parecem
estar numa posição de vitimização) que convivem com a protagonista parecem sempre ascenderem socialmente
e/ou emocionalmente, frequentemente atingindo sucesso ou alguma outra forma de realização. A própria
protagonista passa por mudanças e tem que sofrer alterações identitárias para poder aceitar, também, uma nova
identidade masculina, representada por Jack Walser, ao final do romance.
A questão da Identidade aparece misturada às características relacionadas ao realismo mágico no romance,
que, segundo Paulina Palmer, é utilizado para desconstruir características comuns ao legado patriarcal. A
imagem de Fevvers, por exemplo, é o resultado de uma desconstrução do mito grego da Leda e do Cisne, que
apresenta Zeus na forma de cisne (que é uma imagem fálica, representante da cultura patriarcal) estuprando
Leda, criando assim uma alegoria sobre a dominação do homem sobre a mulher, comum na sociedade grega.
Em Nights at the Circus, porém, o personagem alado, com características angelicais, é Fevvers, uma mulher, e
esta possui características dominantes. Luiz Manoel da Silva Oliveira discorre sobre a inversão de papéis (sob
o ponto de vista tradicional, herdado da cultura patriarcal) que ocorre no final do romance: “[...] O romance
finaliza com Fevvers e Walser fazendo amor, mas Fevvers está por cima e Walser por baixo, invertendo os papéis
do mito de Leda e do Cisne – Fevvers é o cisne e é Zeus; Walser é a Leda” (OLIVEIRA, p. 9).
Falando ainda sobre o papel do realismo mágico no romance, é possível citar também as ideias de Lidia Curti
(1998) referentes à representação do corpo de forma fantasiosa em romances femininos contemporâneos. Para
a autora, essas formas grotescas aparecem porque são relacionadas ao Outro, àqueles excluídos pela sociedade
patriarcal e sua exaltação só é possível graças ao atual reconhecimento de classes consideradas minoritárias.
Sob tal ponto de vista, o realismo mágico atua contra a cultura patriarcal em Nights at the Circus, pois o corpo
anormal de Fevvers não é tratado como monstruoso, mas sim como algo que causa admiração e é fonte de
inspirações virtuosas, como a liberdade, frequentemente associada às asas e a força relacionada à proteção, já
que Fevvers em certo momento possui uma espada e o título de protetora alada.
O realismo mágico também aparece na obra de Carter para parodiar a cultura patriarcal e seus costumes.
Alguns animais, como os macacos e a porca Sybil, parecem ser mais inteligentes que os próprios humanos: os
macacos conseguem elaborar um contrato que garante a sua liberdade e fazem com que Lamarck, o dono do
circo, o assine. A porca Sybil, símbolo normalmente associado ao capitalismo, é a conselheira de negócios de
Lamarck, que sempre pede a opinião do animal ao fazer contratações. Segundo Peonia Viana Guedes (1996)
o próprio nascimento de Fevvers, que foi chocada, serve para distanciar a protagonista da cultura patriarcal, já
que a própria concepção da mesma não necessitou, necessariamente, de uma figura masculina.
As características pós-modernas da obra aparecem através da apropriação e da reescrita de mitos e obras
pertencentes ao cânone literário (de um ponto de vista patriarcal). Tal apropriação e reescrita acontecem através
da intertextualidade e da paródia. Aproveitando a definição de intertextualidade apresentada por J. A. Cuddon
(1999), que defende que um texto sofre influência de todos os textos escritos antes dele, é possível afirmar

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que Angela Carter se apropriou da forma e influência de textos considerados pertencentes a um “cânone”
excludente e parcial e o desconstruiu com a inserção de personagens diferentes do que seria comum a estes
textos considerados tradicionais. A paródia surge da mesma forma, ao lidar de maneira irônica com essa
intertextualidade. É possível perceber, por exemplo, traços de características realistas americanas no romance
de Carter, embora, em essência, Nights at the Circus esteja longe de ser uma romance realista.

Considerações finais
Sendo uma obra feminista, não é surpreendente que Nights at the Circus apresente críticas e desconstrua
o cânone literário tradicional e questões da sociedade patriarcal. É relevante, porém, observar as estratégias
utilizadas pela autora para fazer tais críticas e desconstruções. Ângela Carter, que já reescreveu vários mitos
e contos de fadas, volta a empregar estratégias como a intertextualidade, a paródia e o realismo mágico para
desconstruir a forma de representação identitária feminina tradicional, a forma de escrita e até as características
e estilos de escrita.
A apropriação e reescrita de obras e mitos canônicos presente em Nights at the Circus serve como exemplo
de uma tendência da escrita feminina: a representação literária da libertação feminina através de referências ao
corpo, aqui com aspectos relacionados ao grotesco e ao fantástico.

Referências
CARTER, Angela. Noites no Circo. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
CHILDERS, Joseph & HENTZI, Gary, eds. The Columbia Dictionary of Modern Literary and Cultural
Criticism. New York: Columbia University Press, 1995.
CUDDON, J.A., ed. The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory. New York: Penguin
Books, 1999.
CURTI, Lidia. Female Stories, Female Bodies – Narrative, Identity and Representation. Malaysia: Macmillan
Press LTD, 1998.
GUEDES, Peonia Viana. The Grotesque in Angela Carter’s Nights at the Circus. VI Semana de Letras
Anglo-Germânicas: UERJ, 1996.
KLAGES, Mary. Postmodernism in: Literary Theory: A Guide for the Perplexed. New York: Continuum
Press, 2007.
OLIVEIRA, Luiz Manoel da Silva. Arte, Literatura e Realismo Mágico na Corporeidade Freakish de Sophie
Fevvers no Romance Nights at the Circus, de Ângela Carter. In São João del-Rei: DELAC/UFSJ.
PALMER, Paulina. Angela Carter’s Treatment of the Carnivalesque and the Fiction of Jeanette Winterson:
Queer People, Carnivalesque Strategies and the Grotesque. www.paulinapalmer.org.uk. Acesso em 6 Out
2013.

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Jane Austen & Zumbis, com orgulho e sem preconceito:
apropriação e ressignificação do cânone literário
sob um olhar comparatista

GONZALEZ, Stella Maris de Carvalho (UFSJ)


stella14gonzalez@gmail.com
OLIVEIRA, Luiz Manoel da Silva (UFSJ)
luizmanoel@ufsj.edu.br

RESUMO Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice, 1813), obra máxima da autora Jane Austen, é considerada
um legítimo representante do cânone da literatura inglesa e universal. Em uma época em que a
única preocupação da maioria das mulheres era conseguir um casamento vantajoso, o romance,
que traz a lume uma Inglaterra bucólica e ainda algo neoclássica, trata das relações sociais do meio
rural georgiano e da situação da mulher nesse final do século XVIII e início do século XIX. Seth Gra-
hame-Smith apropria-se do romance austeniano para, por meio da intertextualidade (J. A. CUD-
DON, 1999), da paródia (Linda HUTCHEON, 1988; Simon DENTIH, 2000) e da apropriação (Affonso
Romano de SANT’ANNA, 2007), ressignificar a obra de Austen e criar o seu próprio romance, Orgulho
e Preconceito e Zumbis (2010). Diferentemente de Jane Austen, a Inglaterra proposta por Seth Gra-
hame-Smith está tomada por zumbis famintos por carne fresca, e as irmãs Bennet aprendem artes
marciais para defender suas propriedades e a si próprias. Sob um viés comparatista, pretende-se
analisar as duas obras, levando-se em conta o uso da intertextualidade, da paródia e da apropriação,
para produzir novos sentidos tanto para a obra canônica, quanto para a nova obra.
Palavras-chave: cânone, apropriação, literatura comparada, ressignificação.

ABSTRACT Pride and Prejudice (1813), masterpiece by Jane Austen, is considereda legitimate representative of the
canon of both English and universal literature. In a time when the only concern of most women was to
achieve an advantageous marriage, the novel treats the social relations of rural Georgian period and
the situation of women in the late-eighteenth and early-nineteenth-century England. Seth Grahame-
Smith appropriates the aforementioned novel to, through intertextuality (J. A. CUDDON, 1999), parody
(Linda HUTCHEON, 1988; Simon DENTITH, 2000) and appropriation (Affonso Romano de SANT’ANNA,
2007), reframe the work of Austen and create his own novel, Pride and Prejudice and Zombies (2010).
Unlike Jane Austen’s England, Seth Grahame-Smith’s is taken by hungry zombies, and the Bennet sisters
learn martial arts to defend their property and themselves. Under a comparative perspective,we intend
to analyze the two works, taking into account the strategies used by Grahame-Smith, certainly backed
up by the use of intertextuality, parody and appropriation, to produce new meanings for both the cano-
nical work by Austen and his own one.
Keywords: canon, appropriation, comparative literature, reframing.

Introdução
Jane Austen foi uma escritora britânica do final do período neoclássico e do período pré-romântico, famosa
pelos seus livros que retravam com certa ironia os bons costumes da sociedade da época intersticial do final
do século XVIII e princípio do século XIX. A maioria das suas obras traz como temaso casamento vantajoso;a

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preocupação com o status social e a situação financeira; a tensão entre os valores e sentimentos, tais como a
honestidade, a sinceridade, a amizade e o amor e o utilitarismo e a artificialidade de certas relações sociais e suas
convenções; o interesse financeiro colocado acima do amor, quando se tratava de casamentos; e a educação das
mulheres durante esse período. Entre alguns dos seus principais livros, citamosRazão e Sensibilidade, Orgulho
e Preconceitoe Emma, pertencentes ao que chamamos de “cânone literário”.

Uma atitude digna de estudo e interesse é a inclinação atual mais ou menos recorrente de alguns escritores
pela reescrita de obras anteriores, muitas delas tidas como parte consagrada do “cânone”. Neste cenário, surge
um novo gênero, se assim podemos dizer, chamado mash-up, que consiste, basicamente, em mesclar duas
obras, ou seja, utilizar um texto já existente e acrescentar a ele outros elementos narrativos, como fez o escritor,
roteirista e produtor norte-americano Seth Grahame-Smith em seus livros Orgulho e Preconceito e Zumbis
(2009) e Abraham Lincoln – Caçador de Vampiros (2010). Deve-se ressaltar que Grahame-Smith causou furor
entre os fãs mais conservadores de Austen devido a sua reescrita de Orgulho e Preconceito.

Usando de estratégias literárias como a intertextualidade (J. A. CUDDON, 1999), a paródia (Linda
HUTCHEON, 1988; Simon DENTIH, 2000) e a apropriação (Affonso Romano de SANT’ANNA, 2007)
para ressignificar o romance austeniano, Grahame-Smith propõe uma Inglaterra bem diferente daquela
retratada por Jane Austen, onde zumbis estão a solta e famintos por carne fresca e as irmãs Bennet são treinadas
em artes marciais para lutar contra essa praga que está se alastrando rapidamente.

Embasando-se nos pressupostos da Literatura Comparada(COUTINHO & CARVALHAL, 2011),


pretende-se analisar as duas obras, Orgulho e Preconceito e Orgulhoe Preconceito e Zumbis, levando-se em conta
as estratégias utilizadas por Seth Grahame-Smith para produzir novos sentidos tanto para a obra canônica,
quanto para a sua obra, também com o recurso teórico das estratégias narrativas secundadas pelas possibilidades
oferecidas pela intertextualidade, pela paródia e pela apropriação, conforme já descrito anteriormente.

Revisão de literatura
Aparentemente, poderíamos pensar que, dado o avanço em muitas áreas do conhecimento na
contemporaneidade, praticamente tudo já teria sido dito acerca da maioria das coisas. Entretanto, por nem
todos estarem atentos, ou por muitas das histórias terem sido contadas de forma insatisfatória, tendenciosa e
reducionista, na atualidade, tem-se verificado um ímpeto generalizado de recontar, reconsiderar e revisitar fatos,
histórias e eventos do passado que foram caracterizados por essas circunstâncias.Vale, desse modo, ressaltar que
tais procedimentos alinham-se aos preceitos da Desconstrução de Jacques Derrida (1981),que, como descrita
por Barbara Johnson em seu livro The CriticalDifference (JOHNSON apud CUDDON, 1992):
É, de fato, mais próxima ao significado da própria palavra ‘análise’, que etimologicamente significa
‘desfazer’ – um sinônimo virtual para ‘desconstruir’. Como consequência, a desconstrução de um
texto não procede por meio de dúvida aleatória ou subversão arbitrária, mas através da provocação
cuidadosa de fazer guerrearem as forças da significação dentro do próprio texto(CUDDON, 1992,
pp. 209-210).

Desde o início do Pós-Estruturalismo, a Desconstruçãotem permeado os discursos de vários campos do


saber, de modo que na literatura um dos indícios da Desconstrução é um certo ataque ao status cristalizado e
sacralizado das obras de ficção tidas como pertencentes ao “cânone literário”, por meio de alusões, apropriações
e intertextualidade. Assim, especificamente abordando a área da teoria da literatura e da literatura comparada,
tal traço de recontar e reconsiderar aparece nas estratégias de teóricos e teóricas da literatura que estudam
a paródia, a intertextualidade e a apropriação, tais como Linda Hutcheon (1988), Simon Dentith (2000) e
Affonso Romano de Sant’Anna (2007), que teorizam acerca desses conceitos e iluminam as análises e leituras
como as que ora levamos avante com referência a Orgulho e Preconceito (2008), de Jane Austen, e Orgulho e
Preconceito e Zumbis, de Seth Grahame-Smith e Jane Austen (2010).

Em vista disso, veremos a seguir definições e características da intertextualidade, da paródia e da


apropriação, para subsidiar uma leitura comparatista das duas obras ficcionais, com vistas a se comprovar como

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esses elementos tornam-se ferramentas narrativas eficazes para desestabilizar a escrita canônica, favorecendo o
surgimento de novos vieses de significação para obras antigas e para as obras posteriores ou contemporâneas
que efetivam releituras das obras “originais”.
O termo intertextualidade, como descrito por J. A. Cuddon (1999), baseado nos estudos da filósofa
franco-búlgara Julia Kristeva (que foi quem primeiramente propôs o termo “intertextualidade”), refere-se à
“interdependência dos textos literários, à interdependência de todo e qualquer texto literário em relação a
todos os outros que já foram escritos”, assim como também diz que a intertextualidade implica “a transposição
de um ou de vários sistemas de signos para um outro sistema, ou para vários outros sistemas” (CUDDON,
1999, p. 424).
Podemos ainda ressaltar os estudos da teórica canadense Linda Hutcheonquepropõemuma análise da
paródia, queHutcheonreconhece como um fenômeno das artes modernas, diferentemente da análise proposta
por Mikhail Bakhtin, queHutcheonconsidera ser insuficiente ao abranger o sentido real da paródia. Dessa
forma, Hutcheon afirma que:
A intertextualidade paródica de clássicos canônicos americanos e europeus é um modo de
apropriação e reformulação, com diferença significativa, da cultura dominante branca, masculina,
de classe média, heterossexual e eurocêntrica (HUTCHEON, 1988, p.165).

Esses elementos culturais sãoexpressivos na obra de Jane Austen, já que a sua escrita reflete os bons
costumes e valores europeus do final do período neoclássico pré-vitoriano. De certa forma, a definição de
Hutcheon supracitada encontra ressonânciana reescrita efetivada por Seth Grahame-Smith em Orgulho e
Preconceito e Zumbis, com base na obra canônica “original” de Jane Austen. Ou seja, temos a presença da
paródia como “uma forma de imitação caracterizada por uma invasão irônica, nem sempre à custa do texto
parodiado”(HUTCHEON,1985, p. 17). Em outras palavras, a paródia passa a ser tidacomo uma formade
reconstruir e desconstruir um texto ou uma obra literária.
Para Affonso Romano de Sant’Anna (2007), “a apropriação é um termo de entrada recente na crítica
literária” (p.43). Na verdade, a apropriaçãoentrou na literatura através das artes plásticas e com o movimento
Dadaísta nos anos de 1960, que foram os percussores da ideia de “apropriar-se de algo”. Sant’Anna dá-nos o
exemplo de Andy Warhol, que retratou em pintura as latas de sopa da famosa marca americana Campbells, em
1962. Dessa maneira, a apropriação cria um novo significado, se assim podemos dizer, já que “o artista está
querendo desarrumar, inverter, interromper a normalidade cotidiana e chamar a atenção para alguma coisa”
(SANT’ANNA, 2007. p. 44). Na apropriação, “independentemente do fato do expectador gostar ou não do
resultado, é importante notar que tipo de efeito isto produz” (p. 44). Tais premissas nos dizem que, mesmo
a apropriação sendo uma técnica moderna, ela remonta ao conceito antigo de deslocamento, que consiste em,
literalmente, “deslocar”, ou seja, o objeto é “tirado de sua normalidade, [...] colocado numa situação diferente,
fora de seu uso.” (p. 45). Portanto, os artistas modernistas, como Andy Warhol, “ao invés de representarem, eles
re-apresentam os objetos em sua estranhidade” (p.45). Essa técnica ficou conhecida nos anos de 1960 como arte
conceitual, isto é, “o desenrolar de cenas caóticas onde os objetos e pessoas são manipulados” (p.45).
A literatura comparada caracterizou-se pelo legado deixado pelos movimentos dos estudos teóricos dos
anos de 1950 e 1960e pela necessidade de melhoramento nas análises, e assim temos uma mudança de vieses
da literatura, que passa a ser vista não somente pelo filtro do campo estético, como também pelas perspectivas
dos campos discursivos de várias disciplinas e de diversas áreas da cultura e do saber. Nesse sentido, a literatura
comparada, segundo Eduardo de Faria Coutinho:
Desde o início não é só a literatura de duas ou mais nações ou produzida em sistemas linguísticos
distintos, como também, as relações entre a literatura e outras áreas do conhecimento, em especial
aquelas que fazem parte das chamadas Ciências Humanas (COUTINHO, 2011, p.7).

Assim sendo, a literatura comparada nada mais é do que uma área de estudos interdisciplinares,
acrescentando à literatura propriamente dita várias outras disciplinas, incluindo até mesmo outras literaturas, e/
ou vários outros aspectos, como tempo, gênero, línguas, nações, e assim por diante. Essa multidisciplinaridade

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dentro dos estudos comparativos requer certo domínio de pesquisas de outras linguagens e literaturas; enfim,
tudo o que se relaciona às ciências humanas, buscando na transcendência da literatura os arranjos para a análise
da mesma (COUTINHO, 2011).

A palavra cânone, de origem grega, provém do verbete que significa “régua” ou um tipo de graveto usado
na antiguidade para medições de modo geral (CHILDERS & HENTZI, 1996, p.37). O sentido elitista de
que esse termo acabou se revestindo, principalmente no campo literário, foi-lhe de certa forma atribuído “por
um grupo privilegiado e pertencente a uma elite de críticos e professores universitários do sexo masculino e
de cor branca” (CHILDERS & HENTZI, 1996, p.36), resultando em uma centralização ortodoxa do que
podia ser considerado ou encampado pela rubrica “alta literatura”– ou seja, ali somente poderia se abrigar um
grupo seleto de autores e obras do período clássico antigo, de início, e alguns outros autores e obras que com o
passar do tempo passaram pelo crivo daqueles “juízes”, dos quais pouquíssimas mulheres faziam parte, dentre
elas estava Jane Austen. Porém, com o ímpeto desconstrucionista do pós-modernismo, a crença nesse “cânone
literário” vem sendo submetida a um processo mais ou menos constante de questionamento e desestabilização.
Isto não necessariamente significa destituir tais obras e autores de sua importância e valor artístico e literário,
mas sim proporcionar uma reflexão que desengesse o sistema e abra espaço para obras e autores e autoras dos
mais variados matizes possíveis, tanto os silenciados do passado, quanto aqueles que emergem aqui e ali e
também possam merecer atenção e estudo.

Segundo Childers&Hentzi (1996), a primeira aplicação de cânone foi utilizada pela Igreja Católica
para classificar os manuscritos bíblicos antigos, para que assim pudessem determinar quais dos escritos eram
considerados “verdadeiros” e “bons” para a compilação das Sagradas Escrituras.

De acordo com a Revista Mundo Estranho, os zumbis são, se assim podemos dizer, concebidos pela prática
ou culto religioso chamado vodu. Para os praticantes de vodu, o zumbi seria um morto-vivo que não possui
vontade própria, sendo uma espécie de cadáver mais ou menos “ressuscitado” pelos feiticeiros para aumentar
o número de trabalhadores braçais em suas áreas.

Ainda em consonância com a referida revista, “as figuras dos zumbis tornaram-se parte do imaginário
ao inspirarem dezenas de filmes de terror, como o clássico White Zombie, de 1932. A revista destaca também
a importância dos estudos sobre os zumbis, como, por exemplo, o do cientista, antropólogo e etnobotânico
canadense Wade Davis, que, no início da década de 1980, passou uma temporada de estudos no Haiti, que deu
origem a dois livros, sendo eles: A Serpente e o Arco-Íris (1986) e Passage of Darkness (1988, inédito no Brasil).
Dessa forma, Davis relatou toda a sua investigação sobre o que ele considerava zumbis, pois Davis desconfiava
que o zumbi fosse uma pessoa normal em estado de transe ou catalepsia por meio de um veneno. Para ele, os
feiticeiros utilizavam um pó a base de neurotoxina, uma substância forte, que danifica o sistema nervoso. A
narrativa feita pelo cientista Wade Davis teve um grande impacto na comunidade cientifica, mas logo depois
da análise do pó, que não obteve resultado nenhum, os outros cientistas rejeitaram tal suposição.

Para complementar esta ideia,a reportagem do New York Times(08/07/2011)², que traz como título “The
State of Zombie Literature: an autopsy”, aborda a propagação e imigração dos zumbis dos cinemas para a
literatura contemporânea. A primeira grande invasão de zumbis foi cinematográfica, com a ampla repercussão
da série de clássicos de George A. Romero (iniciada em 1968, com o filme A noite dos mortos-vivos). Os zumbis
de Romero são lentos e quase não se movem, bem diferentes do modelo de zumbi que aparece nos cinemas
atualmente, como podemos perceber, por exemplo, nas seguintes produções: Eu sou a lenda e Resident Evil 3 –
A Extinção, ambos lançados em 2007. Na literatura contemporânea, constatamos essa abertura para convidar
novos leitores para estes mash-ups, termo do campo musical, usado pela primeira vez com sentido literário pela
autora China Mieville (BBC, 23/08/2012) (ver site no final do artigo).

Segundo Seth Grahame-Smith, a ideia de “invadir” o cânone austeniano tinha o intuito de apenas dar
mais movimento ao romance, já que para ele este era extremamente parado e sem ação, ou seja, essa estratégia de
inserir novos elementos em obras canônicas parece ter vingado, como nos diz a reportagem do New York Times.
A reportagem ainda traz um questionamento sobre o fascínio dos leitores pelos zumbis, já que, para muitos, os

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zumbis não possuem nenhum poder ou personalidade, ou até mesmo emoção. Excluem-se desse estereótipo os
zumbis de Eu sou a lenda, que são claramente dotados de consciência, força sobre-humana e emoção. Contudo,
uma característica que acompanha todas as obras do gênero, tanto no âmbito cinematográfico, no literário,
como também nos jogos de videogame, é o contágio: seja da forma como for, vírus, mordida etc., sempre existe
a ideia de contaminação que, em sua maioria, acaba levando ao que é conhecido como “apocalipse zumbi”.

Análise da obra
Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice – publicado em 1813), romance canônico e principal obra da
escritora inglesa Jane Austen, aborda temas bastante comuns no período neoclássico, como, por exemplo, a
situação social da mulher, o arranjo prévio e os interesses que moviam o casamento, entre outros, principalmente
na Inglaterra rural georgiana em que Austen viveu e mergulhou suas personagens.O livro fora intitulado
primeiramente FirstImpressions (1796),mas, devido à rejeição de um editor, o texto não chegou a ser publicado.
Contudo, Jane Austen decidiu revisar criteriosamente o seu romance, alterando também o título para tal qual
o conhecemos hoje (OUSBY, 1996, p. 759).

A história do romance centra-se no Sr. Bennet de Longbourn, sua esposa, Sra. Bennet, e suas cinco filhas,
que em ordem decrescente de idade são: Jane, Elizabeth, Mary, Catherine “Kitty” e Lydia. O Sr. Bennet é
um pai dedicado, mas se sente mais à vontade com suas duas filhas mais velhas. Ele não se preocupa tanto
comarrumar casamentos vantajosos para elas, mas é um homem culto e sábio. Ao contrário de seu marido, a
Sra. Bennet ocupa a vida pensando em como arranjar um bom casamento para suas meninas, e é uma mulher
bastante inconveniente, que não se enquadra nas normas de comportamento esperadas pela etiqueta da alta
sociedade da época, deixando as filhas mais velhas envergonhadas em determinadas situações. E, enquanto
Elizabeth possui uma língua afiada e é boa observadora, Jane, por sua vez, é meiga e ingênua, não desconfiando
das “alfinetadas” de sua futura cunhada Caroline Bingley, a qual tem uma inclinação pelo carrancudo Sr. Fitz
William Darcy.

Orgulho e Preconceito e Zumbis(Pride and Prejudice and Zombies, 2009), considerado um mash-up, é o
romance (re)escrito pelo escritor, roteirista e produtor norte-americano Seth Grahame-Smith, no qual ele
credita a escritora da obra “original”, Jane Austen, como co-autora, certamente uma atitude revolucionária
com potencial de gerar vários estudos específicos com relação à questão da autoria em si, mas na qual não
nos aprofundaremos muito no presente artigo. Em entrevista ao Jornal O Globo (20/03/2010), Grahame-
Smith afirma que 85% do texto do seu romance permanece minalterados, preservando o mesmo conteúdo da
obra “original”, e os personagens ainda vivem no século XIX. Assim, em apenas15% da nova obra trazem-se
elementos novos para a narrativa. O enredo do livro é muito semelhante ao criado por Austen, porém Seth
Grahame-Smith acrescenta mortos-vivos em certas brechas e as irmãs Bennet aparecem como lutadoras de
artes marciais.

No livro Orgulho e Preconceito e Zumbis, Seth Grahame-Smith,utiliza-sede algumas estratégias literárias


para reescrever o clássico de Jane Austen. Já nas primeiras linhas do romance, é possível perceber a forte
relação do texto com Orgulho e Preconceito, pois temos a frase mais famosa do livro “original” parodiada, como
podemos verificar em:
É uma verdade universalmente aceita que um zumbi, uma vez de posse de um cérebro, necessita
de mais cérebros. E nunca tal verdade foi mais inquestionável do que durante os recentes ataques
ocorridos em Netherfield Park, nos quais os dezoitos moradores de uma propriedade foram
chacinados e consumidos por uma horda de mortos-vivos (p. 7).

Comparando trecho supramencionado com o seu “original” na obra de Austen, temos:


É verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro e muito rico precisa de esposa. Por
menos conhecidos que sejam os sentimentos ou as ideias de tal homem ao entrar pela primeira
vez em certo lugarejo, tal verdade está tão bem arraigada na mente das famílias que o rodeiam,
que ele vem a ser considerada propriedade legítima de uma que outra de suas filhas (AUSTEN,
p.237).

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Essas passagens confirmam os dizeres de Linda Hutcheon, que defende a paródia como sendo mais do que
apenas um meio de ridicularizar. Por significado, em alguns dicionários mais populares, a paródia atualmente
passa a ser vista como uma forma de se analisar um texto já concebido e legitimado, como no caso dos textos
literários canônicos. Em vista de todo o exposto, a paródia pode ser definida como “modelação estrutural,
revisão de re execução, inversão e transcontextualização” (HUTCHEON, 1985, p.22).

A paródia, juntamente com a intertextualidade e a apropriação, permeia a maioria das páginas do


romance de Grahame-Smith. Vejamos alguns outros trechos que sintetizam o seu uso. No transcurso do
segundo capítulo, Grahame-Smith parodia um dos diálogos entre Kitty e a mãe. O resultado é o seguinte:
A Sra. Bennet não se dignou a responder, mas, incapaz de se conter, começou a repreender uma
das filhas:
– Pelo amor de Deus, Kitty! Para de tossir desse jeito. Soa como se você tivesse sido
contaminada.
– Mãe! Que coisa pavorosa de se dizer, com tantos zumbis nas redondezas – retrucou Kitty,
perturbada. – Quando será esse seu próximo baile, Lizzy? (p.9)

No trecho original, também inserido no início do capítulo dois, o motivo do apelo da mãe para que Kitty
pare de tossir é apenas irritação, como podemos comprovar a seguir:
A Sra. Bennet não se dignou a responder, mas, incapaz de se conter, começou a repreender uma
das filhas.
– Pare de tossir, Kitty, pelo amor de Deus! Tenha um pouco de pena dos meus nervos. Assim
você acaba com eles.
– Kitty não é discreta quando tosse – disse o pai. – Sempre escolhe a hora errada para tossir.
– Não tusso por diversão – replicou Kitty, irritada. – Quando vai ser o seu próximo, Lizzy?
(p.239)

Apropriando-se desse diálogo, Grahame-Smith introduz um elemento novo, ou seja, a tosse de Kitty,
uma simples tosse na obra de Jane Austen, foi usada para mostrar a ideia de contaminação, essencial em uma
história de zumbis.

É importante ressaltar que, dessa forma, Seth Grahame-Smith atribui um novo significado ao diálogo
do qual tomou posse, ou, em outras palavras, do qual se apropriou. Podemos citar Sant’Anna (2007), que
nos aponta uma técnica antiga de apropriação (o deslocamento), usada mais comumente nas artes modernas,
que sintetiza a estratégia adotada por Grahame-Smith: “Deslocamento que está muito próximo daquele
estranhamento [...] Tirado de sua normalidade, o objeto é colocado numa situação diferente, fora de seu uso”
(p.45).

Mesmo sendo Jane Austen creditada como co-autora, percebemos que sua obra foi totalmente ressignificada,
pois ainda que a maioria das palavras usadas por Grahame-Smith sejam as mesmas da obra “original” canônica,
o sentido em que aparecem, a essência que transmitem, não são os mesmos. Assim sendo, as duas obras se
encontram em universos literários distintos, de forma que a obra contemporânea recria o conceito de mash-up,
termo que era usado apenas na música, mas que atualmente está presente também na literatura.

Outra inserção feita pelo autor é o fato de as irmãs Bennet serem treinadas em artes marciais para
combaterem o mal que está se alastrando por toda a Inglaterra. Em especial, podemos ver em outro segmento
como as atitudes inofensivas, educadas e frágeis das irmãs Bennet dão lugar a atitudes diferentes das de uma
dama do século XIX. Durante o baile oferecido pelo Sr. Bingley, os zumbis invadem a festa e a seguinte cena
tem lugar:
– Meninas! O Pentagrama da Morte!
Sem hesitar, Elizabeth juntou-se às quatro irmãs Jane, Mary, Catherine e Lydia, no centro do salão
de dança. As cinco jovens sacaram das adagas presas ao tornozelo e se posicionaram nas pontas de
uma estrela imaginária. Partindo do centro do salão, iniciaram um movimento conjunto em que
avançavam, passo a passo, mantendo o desenho, cada qual com sua adaga em riste em uma das
mãos e a outra elegantemente apoiada na parte inferior das costas (p. 14).

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Podemos perceber, nesse trecho, o treinamento recebido pelas irmãs Bennet. Elas lutam artes marciais
para defender as suas propriedades e aprenderem a sobreviver durante a “epidemia” de zumbis. O texto recriado
por Grahame-Smith ganha a presença dos zumbis em momentos cruciais da narrativa austeniana e, como
comprovamos na extração dessa passagem, é visível a mudança do comportamento dos personagens, que, em
consequência mudam a direção e os sentidos da história.
Os zumbis do romance ressignificado por Seth Grahame-Smith são descritos principalmente por meio
dos:
[...] seus movimentos desengonçados, embora ligeiros, e seus trajes fúnebres em farrapos. Alguns
vestiam túnicas tão rasgadas que os deixavam escandalosamente expostos; outros tinham vestes
tão imundas que se poderia supor que fossem nada mais que lixo e sangue seco. Os corpos
estavam em variados estados de putrefação (p.13).

Pode-se concluir que, desse modo, que a reescrita efetivada por Seth Grahame-Smith apresenta um,
como já comentado anteriormente, novo sentido para a obra canônica de Jane Austen, já que a leitura da
nova obra é consonante com a atualidade que explora esse universo de criaturas míticas, como, por exemplo,
os vampiros, lobisomens, zumbis, entre outros monstros e aberrações; portanto, o livro de Grahame-Smith
aproxima a realidade contemporânea do passado neoclássico/pré-romântico austeniano e, conquista novos
leitores, principalmente adolescentes e jovens, uma vez que confirma a existência da mais nova ferramenta
literária contemporânea –mash-up – e certamente tem o poder de sedução necessário para atrair uma leva nova
de leitores para a obra de Jane Austen.

Considerações finais
Para finalizar, percebemos, pelo presente trabalho, que é fruto de uma pesquisa que apenas está se
iniciando, que nas últimas décadas a literatura vem passando por muitas transformações, o que tem gerado
novos vieses de consideração e consequentemente tem ampliando o campo de estudos literários.

A ressignificação realizada por Seth Grahame-Smith, um dos precursores desse novo gênero, reveste-se
de significação no âmbito das estéticas da pós-modernidade, já que oferece novas possibilidades de leituras e
sentidos para obras literárias canônicas do passado, levando em conta as contribuições das estratégias narrativas
pós-modernas, como a intertextualidade, a paródia, a apropriação, assim como a contribuição indispensável
dos pressupostos teóricos da literatura comparada.

Assim sendo, poderíamos dizer de uma forma simplista que a nova obra está “de acordo” com a demanda
atual dos novos públicos leitores, visto que temos a presença dos zumbis no imaginário popular, que vem
ganhando mais e mais força na contemporaneidade devido não somente às obras literárias em que figuram,
mas também a algumas produções cinematográficasde sucesso cuja temática inclui zumbis, de modo geral.

No entanto, olhando-se a questão por outros prismas de consideração, podemos perceber por meio das
passagens selecionadas o tom de interferência e invasão que a obra contemporânea instala quando comparamos
suas passagens com as passagens correlatas do livro de Austen. Nessa tarefa, reiteramos as ideias de Linda
Hutcheon (1988, p. 165) sobre uma das funções da paródia quando se trata de lançar sua influência sobre as
propaladas obras canônicas americanas ou europeias. Nesse caso, Hutcheon afirma que a intertextualidade que
se processa transforma-se numa forma de apropriação e de reformulação, “com diferença significativa”, pois
na verdade essa intertextualidade paródica está a serviço da desconstrução de um tipo de sociedade calcada em
valores patriarcais e excludentes.

Dessa forma, a despeito de muito ainda termos que nos aprofundar nesta pesquisa, percebemos que uma
dessas “diferenças significativas” que a reescritura da obra canônica de Austen proporciona está diretamente
ligada aos papeis femininos, que são subvertidos por meio do “deslocamento de sentido de um objeto”, como
diria Affonso Romano de Sant’Anna (2007). No caso em questão a simples introdução dos zumbis na história
rural de Austen provoca a mudança radical de atitude das irmãs Bennet, que têm que aprender artes marciais

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

para a defesa dos seus bens e dos seus. Ora, processa-se aí um verdadeiro “deslocamento” do sentido do que era
ser mulher naquela sociedade conservadora e restritiva para as mulheres.
Em suma, esta seria somente uma das várias “diferenças significativas” que os padrões da paródia intertextual
vão originar e que serão prospectados com a continuação e o desdobramento da presente pesquisa.

Referências
AUSTEN, Jane. Razão e Sensibilidade, Orgulho e Preconceito e Persuasão. Tradução e notas: Roberto Leal
Ferreira. São Paulo: Editora Martin Claret, 2010.
CARVALHAL, Tânia. “Teorias em Literatura Comparada”. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada.
Nº2. São Paulo: ABRALIC, Maio/1994.
COUTINHO, Eduardo F. & CARVALHAL, Tânia. Literatura Comparada. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2ª
edição, 2011.
CHILDERS, Joseph & HENTZI, Gary, eds. The Columbia DictionaryofModernLiteraryand Cultural Criticism.
New York: Columbia University Press, 1995.
CUDDON, J. A. Dictionary of Literary Terms & Literary Theory. London/New York: Penguin Books, 1999.
DERRIDA, Jacques. Dissemination. Trad.: Barbara Johnson. Chicago: Universityof Chicago Press, 1981, [1ª
edição:1972, título original: La Dissémination]
GRAHAME-SMITH, Seth & AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito e Zumbis. Trad.: Luiz Antônio Aguiar.
Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2010.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da Paródia. Trad.: Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1985.
OUSBY, Ian. The Cambrigde Guide to Literature in English. New York: CambrigdeUniversity Press, 1996.
SANT’ANNA, A. R. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo: Editora Ática, 2007.

Sites consultados
http://www.bbc.co.uk/news/entertainment-arts-19359570, acessado em 02/10/2013.
http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-sao-os-zumbis, acessado em 29/09/2013.
http://www.nytimes.com/2011/08/07/books/review/the-state-of-zombie-literature-an-autopsy.html?_r=0,
acessado em 01/10/2013.
http://www.nytimes.com/2009/02/22/weekinreview/22schuessler.html?_r=0, acessado em 01/10/2013.

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Jane Eyre e Wide Sargasso Sea: imbricamentos feministas
e pós-coloniais sob um olhar comparatista

PINTO, Gabriela de Souza (UFSJ)


Gabi_kizy@yahoo.com.br
OLIVEIRA, Luiz Manoel da Silva (UFSJ)
luizmanoel@ufsj.edu.br

RESUMO Pretende-se realizar neste trabalho uma análise, a partir de um viés comparatista, dos imbricamen-
tos feministas e pós-coloniais entre duas obras literárias: Jane Eyre (1847), um dos clássicos da lite-
ratura inglesa vitoriana escrito por Charlotte Brontë, e Wide Sargasso Sea (1966), escrito por Jean
Rhys, que (re)constrói as histórias das personagens de Jane Eyre, de modo a possibilitar que algumas
delas (excluídas, silenciadas e invisibilizadas no romance de Brontë), adquiram voz e lugar. Propo-
mo-nos, portanto, a analisar a relevância dos cruzamentos teóricos feministas e pós-coloniais para
se constatar a efetividade da reescritura literária de Jane Eyre concretizada em Wide Sargasso Sea,
para a representação mais favorável de personagens femininas antes silenciadas e para expressar as
sutilezas das relações coloniais opressivas não claramente reveladas em Jane Eyre.
Palavras-chave: feminismo, pós-colonialismo, intertextualidade, apropriação.

ABSTRACT We intend to accomplish, in this paper, an analysis through a comparative perspective of the feminist
and post-colonial relations of two literary works - Jane Eyre (1847), one of the Victorian literary clas-
sics, written by Charlotte Brontë, and Wide Sargasso Sea (1966), written by Jean Rhys.The latter (re)
constructs the story of the characters in Jane Eyre, providing some of them (excluded, silenced and invi-
sible in Brontë’s novel) with voice and a place. We mean,therefore, to analyze the relevance of the theo-
retical relation between both the feminist and the post-colonial criticism, to put into effect the literary
rewriting of Jane Eyre that is accomplished in Wide Sargasso Sea,, in order to reach a more favorable
representation of the feminine characters that had been silenced before, as well as to express the subt-
leness of the oppressive colonial relationships not clearly revealed in Jane Eyre.
Keywords: feminism, post-colonialism, intertextuality, appropriation.

Introdução
Jane Eyre (1847) é um dos clássicos da literatura inglesa vitoriana. A obra se destaca por ser escrita
por Charlotte Brontë, em um momento histórico de raros escritos femininos, e, ainda, por retratar temas
um tanto inusitados para a época, trazendo uma mulher de classe menos favorecida e de pensamento forte
e independente para o centro da narrativa. Esse romance foi de fundamental importância para a tessitura
de um outro, Wide Sargasso Sea (1966), escrito pela dominicana Jean Rhys (1894-1979). Nessa nova obra,
algumas das personagens de Jane Eyre têm suas histórias (re)construídas, de modo a possibilitar que certas
personagens femininas (excluídas, silenciadas e invisibilizadas no romance de Brontë), adquiram voz e lugar.
Assim, propomo-nos, neste trabalho, a analisar a relevância dos cruzamentos teóricos feministas e pós-coloniais
para a constatação da efetividade da reescritura literária de Jane Eyre, concretizada em Wide Sargasso Sea, para a
representação mais favorável tanto das personagens femininas antes silenciadas, como das sutilezas das relações
coloniais opressivas não claramente reveladas em Jane Eyre.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Revisão de Literatura

Em um primeiro momento, pensar a crítica feminista e a pós-colonial unidas pode parecer difícil, pois, sob
um olhar leigo, superficial e não afinado com as tendências da crítica cultural e literária da contemporaneidade,
feminismo e pós-colonialismo podem parecer não ter muitas características comuns. Contudo, se olharmos por
um viés diferente, as interseções entre essas duas vertentes tornam-se claramente evidentes, principalmente se
consideramos os impositivos patriarcais que tanto estão implicados nas relações sociais, culturais e econômicas
das sociedades do passado e ainda nas contemporâneas, quanto estiveram imbricados nas estratégias das
metrópoles ao lidarem com suas colônias no passado. Na verdade, o denominador comum dessas relações
centra-se na opressão das relações entre homens e mulheres, que se reduplicaram nas relações entre as metrópoles
e as colônias, sendo tais correspondências objeto de estudos e análises de teóricos e teóricas do feminismo e do
pós-colonialismo, na atualidade.

O imperialismo deu origem a um discurso que estabelecia a Europa e suas características étnicas,
religiosas e sociais como civilizadas, transformando-a em um “centro”, em contraste com as barbáries presentes
na “periferia”. Edward Said (apud MILLS, 1998), precursor da teoria pós-colonial, nos diz que a Europa,
de modo geral, representou muitas das culturas com as quais entrou em contato a partir da colonização,
marcando a diferença dessas culturas colonizadas como negativa e constitutiva de um “outro”, contrastante
com a norma ocidental. Foi estabelecido, então, um construto (SAID, 1990 apud BONNICI, 2009) negativo
(ócio, irracionalidade, rudeza, sensualidade, etc.) que caracterizava os colonizados e legitimava o poder do
colonizador (racional, democrático, civilizado, etc.) (BONNICI, 2009). Nesse contexto, o termo “pós-
colonialismo” é utilizado para descrever a maneira como essas culturas foram influenciadas pelo processo de
colonização, desde seu princípio até a atualidade, e a literatura pós-colonial, por sua vez, abrange a produção
literária desses povos colonizados, refletindo a experiência da colonização e a tensão com o poder imperial
(ASCHCROFT et al., 1991 apud BONNICI, 2000).

A partir dessas literaturas, utilizando-se da escrita como estratégia de descolonização, estabelece-se um


processo de “agência”, por meio do qual o sujeito é capaz de “executar uma ação livre e independentemente,
vencendo os impedimentos processados na construção de sua identidade” (BONNICI, 2009, p. 266) e,
assim, consegue adquirir autonomia e questionar o poder colonial. Algumas das estratégias utilizadas para esse
questionamento são a releitura e a reescrita. Na primeira, o texto (literário ou não) deve ser lido de forma que
se permita perceber e expor as implicações imperialistas e as consequências do processo colonial nele presentes,
enquanto que, na última, um texto canônico da metrópole é selecionado e, a partir dele, produz-se uma nova
obra que traz o ponto de vista da ex-colônia, expondo estruturas que reforcem a mentalidade revisionista
colonial, possibilitando-se assim a subversão do texto canônico em questão (BONNICI, 2009). Essa estratégia
de reescrita tem, ainda, como finalidade “(1) a substituição de textos, (2) a conscientização das instituições
acadêmicas, (3) a relistagem da hierarquia dos textos e (4) reconstrução dos textos canônicos através de leituras
alternativas” (BONNICI, 2009, p. 271). A crítica pós-colonial, por sua vez, trabalha desnudando os efeitos
da dominação imperial nessa escrita (BONNICI, 2009), expondo os mecanismos de resistência e subversão
nela encontrados, em uma tentativa de “compreender o imperialismo e suas influências” (BONNICI, 2000,
p. 10).

Uma mudança de foco inaugurada pela crítica feminista, por sua vez, fez com que a mesma passasse a
lidar com textos escritos por mulheres e acerca das suas histórias, permitindo uma ampliação nos horizontes
de pesquisa. Para Lúcia Osana Zolin (2009), a partir dessa perspectiva, denominada por Showalter como
“ginocrítica”, tornou-se possível investigar a diferença de gênero, que pode estar marcada no texto da obra escrita
por mulheres, ou investigar as posturas críticas que podem estar nela contidas, revelando convenções sociais
que podem aprisionar ou limitar a mulher, o que passou a investigar, denunciar e contestar as peculiaridades
opressivas da estrutura patriarcal vigente em nossa sociedade. Tornou-se necessário, porém, a partir dessa nova
perspectiva, pensar a experiência feminina de modo heterogêneo, pois ela não é uniforme e não se faz idêntica
para todas as mulheres e escritoras, uma vez que outras características da condição social (como classe, raça,
nacionalidade etc.) podem influenciar a existência da mulher. A partir disso, Gayatri Chakravorty Spivak (1995

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

apud ZOLIN, 2009) nos propõe uma crítica que leve em consideração a mulher nas sociedades periféricas,
levando em conta as ideologias racistas e colonialistas que moldam as experiências das mesmas. Assim, surge
um dos caminhos da crítica feminina contemporânea que se faz, neste trabalho, de extrema importância: um
viés que permite uma associação com as questões pós-coloniais, desfazendo-se a ideia de um sujeito feminino
uniforme e reconhecendo a importância de outros eixos (como os aqui já citados) determinantes da categoria
feminina (ZOLIN, 2009, p.238). Desse modo, o foco de interesse passa de um grupo reduzido (mulheres
brancas, de classe média e falantes de língua inglesa) e vai também incluir as mulheres em contextos nacionais
e culturais diferenciados (MILLS, 1998). Esse novo caminho permitiu também que o gênero se tornasse
um importante elemento na análise de escritas colonizadoras, colonizadas e pós-coloniais, uma vez que é
importante levar em consideração que as relações de gênero (e , consequentemente, o poder associado ao
feminino e ao masculino) eram construídas de forma diferente no contexto do colonizado e do colonizador,
caracterizando-se como forma de assegurar o empreendimento do império (MILLS, 1996). A esse respeito,
Sara Mills (1996) mostra-nos que as questões de “raça” e de gênero são inseparáveis, de modo que a análise
destas deve considerar, ainda que implicitamente, aquelas.
Essa correlação entre feminismo e pós-colonialismo se faz possível porque, assim como, “gerações de
europeus se convenciam de sua superioridade cultural e intelectual diante da ‘nudez’ dos ameríndios; gerações
de homens, praticamente de qualquer origem, tomavam como fato indiscutível a inferioridade da mulher”
(BONNICI, 2009, p. 257). Do mesmo modo como o patriarcalismo oprime a mulher-objeto em relação ao
homem-sujeito, o imperialismo oprime o colonizado-objeto em relação à metrópole-sujeito. Se unidas essas
duas forças opressoras (imperialismo e patriarcalismo), a mulher pode ser considerada duplamente oprimida e
colonizada, o que de novo reporta-nos a Spivak (2010).
Além disso, essas duas teorias partilham terminologias e conceitos (como, por exemplo, voz, discurso,
silêncio etc.) e uma conclusão em comum: o valor estético do texto é construído histórica e culturalmente
(BONNICI, 2000). Por isso, constrói-se, em um primeiro momento, como objetivo dos discursos pós-coloniais
e feministas “a integração da mulher marginalizada à sociedade” (BONNICI, 2000, p. 16). Em uma segunda
fase, já mais madura, os objetivos passam a ser diversos, uma vez que passa a ter lugar:
O desmascaramento dos “princípios” sobre os quais as bases canônicas são fundamentadas
para depois serem desestabilizados; a reconstrução do cânone literário (em contraposição
a mudança de textos) e mudanças de condições de leitura para todos os textos; a construção
de uma teoria feminista (muitas vezes combatida por ser um resquício da academia dominada
pelo patriarcalismo e pelas estruturas machistas hegemônicas); a subversão da forma literária
patriarcal; o questionamento dos princípios básicos dos sistemas dominantes da linguagem e do
pensamento (BONNICI, 2000, p. 155).

Assim, “tanto a crítica feminista quanto a pós-colonial têm se ocupado com a produção de novas
subjetividades e de um maior empoderamento para aqueles que tradicionalmente ocupam posições subalternas
nas sociedades ocidentais” (FUNCK, 2011, p. 77).
Segundo Bonnici (2000), o feminismo, que se empenha em uma descolonização da cultura, como estratégia
de libertação da mulher em países pós-coloniais, deve investigar a narrativização imperialista da história, o
que implica investigar a literatura inglesa dos séculos XVIII e XIX. É importante, para tanto, compreender
que o cânone literário está diretamente ligado ao poder imperial, atuando como um dos instrumentos que
estabelece e mantém a ideia de superioridade do colonizador, ao degradar o primitivo, relegar as manifestações
culturais que não são oriundas do centro a uma posição de inferioridade e ao impor estilos e padrões literários
(BONNICI, 2000). A formação do cânone, por si mesma, se dá porque “certas obras literárias em determinados
períodos históricos cultuavam interesses e propósitos culturais particulares, como se fossem o único padrão de
investigação literária” (BONNICI, 2009, p. 269).
Surge, desse modo, um interesse pela revisão e reconstrução de textos literários, especialmente daqueles
reputados como canônicos, em uma tentativa de desvelar as negociações entre “verdades” reais e imaginadas
que se fazem presente no e através do discurso (FUNCK,2011). Para Ashcroft et al (1989, apud FUNCK,
2011, p. 80):
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a subversão de um cânone envolve uma conscientização dessas práticas e instituições, resultando


não apenas na substituição de alguns textos por outros [...], mas na reconstrução dos chamados
textos canônicos por meio de práticas de leitura alternativas.

Segundo Mills (1998), trabalhos feministas recentes têm se focado em rever a representação das mulheres
no contexto colonial, tentando recuperar a história dessas mulheres, ao retratá-las de forma positiva, não
relacionadas à opressão provocada pelo colonialismo e tentando resistir às imposições coloniais. Haggis (apud
MILLS, 1998) argumenta que o foco nas mulheres brancas em narrativas funciona como forma de silenciar
mulheres colonizadas e para representar pessoas colonizadas como se elas não fizessem parte de um gênero
específico. Ainda de acordo com a autora, a teoria pós-colonial feminista pode trazer um grande desenvolvimento
para a teorização da diferença, pois, assim:
[...] mulheres podem falar além de barreiras culturais e nacionais, não para supor que seus
contextos e preocupações sejam os mesmos, mas para desenvolver uma série de princípios teóricos
de “interpretação”, para que alianças possam ser formadas apesar das, e talvez (paradoxalmente)
por causa das, diferenças de poder e diferenças de cultura. (MILLS, 1998, p.109) (Tradução
nossa).

Análise da obra
No século XIX, fortemente influenciado pela a Era Vitoriana (1832-1901), a condição da mulher era
marcada por discriminações, pela condição de dependência e subserviência, pela destituição de poder político
e pelo argumento, utilizado pela sociedade, de que essa classe sofreria de uma inferioridade intelectual. Surge,
devido a essa situação caótica da mulher, uma primeira onda feminista e, com ela, algumas mulheres escritoras
vão emergindo, nesse período. Assim, com Jane Eyre (1847), Charlotte Brontë, consegue, com muito esforço,
impor seu nome como escritora. A autora, juntamente com essas novas escritoras, traz uma voz feminina que
denuncia a situação de opressão da mulher na época de então (ZOLIN, 2009).
Em Jane Eyre, a heroína cujo nome dá o título do romance é, a princípio, retratada como criança órfã
que vive às expensas e cuidados da tia, Senhora Reed, e na companhia dos primos, que lhe devotam desprezo
e maus-tratos. Depois, passa a ser aluna de um colégio interno chamado Lowood Asylum para meninas órfãs
e pobres, posteriormente se tornando professora do mesmo, até conseguir um emprego como preceptora
de Adele Varens, em Thornfield Hall. Monteiro (2001-2002) nos diz que a figura da preceptora surgiu no
século XVIII como recurso encontrado pela classe média alta para dar educação aos filhos em casa, tendo com
propósito reforçar os valores da era vitoriana. Segundo a autora, a preceptora constituía uma figura marcada
pelo silêncio, em negação de sua vontade própria de falar e, consequentemente, da sua própria identidade.
Ela nos diz ainda que a preceptora se caracterizava por ser marcada pela diferença: ela não era nem mãe, nem
esposa, nem filha e por isso não se encaixava nos eixos de feminilidade propostos naquele tempo e, obviamente,
também não se encaixava na esfera de poder masculino. Logo, por não se encaixar nas categorias femininas
aceitáveis para a época, a preceptora se tornou uma figura frequentemente associada à de louca e de prostituta,
uma vez que essas nomenclaturas nada mais eram que maneiras de categorizar os excluídos.
Ainda segundo Monteiro, a figura de preceptora poderia ser considerada muito perigosa por consistir em
um corpo que resiste a qualquer tipo de apropriação. Em uma época histórica em que a passividade sexual da
mulher era corroborada por registros científicos, uma mulher solteira e suscetível ao sexo, escapava de papéis
convencionais, representando aquilo que a mulher-mãe não deveria ser e também uma ameaça na esfera
familiar. Justamente por ser uma posição livre de amarras sociais, sua existência serviu para impulsionar as
mulheres a experimentarem novas situações que lhes concedessem mais independência. A preceptora “constitui
uma reivindicação de pluralismo, sinalizando desse modo a posição da diferença” (MONTEIRO, 2001-2002,
p. 72).
Por essas razões, Jane Eyre, de Charlotte Brontë aparece como uma personagem transgressora, desafiando
as convenções ideológicas em busca de liberdade e de sua realização pessoal. A questão da sexualidade na
narrativa, por exemplo, pode ser visto no “red-room” da mansão dos Reed, podendo ser considerado símbolo

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

de desejo e erotismo, e a prisão da menina nele pode ser o símbolo da repressão da sexualidade da mesma
(MONTEIRO, 2001-2002). A narrativa também é marcada por fogo e escuridão, que se somam revelando o
que está por vir no enredo. A personagem se utiliza de mergulhos no mundo da imaginação para dar espaço e
substância a seus medos, aspirações e conflitos, que não podem ser retratados no mundo real (MONTEIRO,
2001-2002).
É no espaço de Thornfield que Jane se descobre e toma decisões sobre o que significa ser mulher para
ela: um ser humano como outro qualquer (inclusive o masculino) que tem desejos, aspirações e inquietações.
A ideia aqui presente é bastante transgressora, refutando o papel social designado à mulher e se aproximando
do que era denominado insanidade na época vitoriana. Podemos perceber que Charlotte Brontë “tenta uma
conciliação entre as mensagens de auto-renúncia pelas mulheres e gratificação existencial e sexual, que requer
rompimento real com as condições de supressão e opressão da diferença” (MONTEIRO, 2001-2002, p. 77).
Entretanto é também no espaço de Thornfield que se encontra confinada Bertha Mason, esposa jamaicana
do patrão de Jane Eyre, o Sr. Rochester, proprietário da mansão e que a mantém secretamente trancada no
sótão da mansão, por alegar que Berhta é louca.
Sara Mills (1998), ao falar sobre a mulher colonial/imperial, nos esclarece que a mulher da colônia era
representante da fantasia de uma sexualidade ao mesmo tempo submissa e sedutora, que não era realizável
no contexto ocidental de então. Entretanto, as autoridades coloniais acharam que era necessário controlar
essa sexualidade em prol da manutenção da “pureza” do sangue e do “pedigree” do colonizador. As mulheres
inglesas, por sua vez, eram representadas como inocentes e puras, auxiliando na manutenção do sistema
ideológico vigente, ao serem utilizadas como justificativa para a violência cometida contra as mulheres inseridas
no contexto colonial (que não se encaixavam nesse padrão) e ao serem utilizadas como uma medida do grau
de civilização britânico. Dado esse contraste, em The Mad Woman in the Attic, Gilbert e Gubar (1979 apud
FUNCK 2008) apontam Bertha como o duplo marginalizado de Jane, uma parte violenta e, até mesmo,
sensual que Jane (na tentativa de manter a inocência e a pureza desejáveis em seu contexto) insiste em reprimir,
sem sucesso, até o momento da morte de Bertha, que a liberta de seus tormentos internos e indesejáveis.
Chandra Taluja de Mohanty (apud MILLS, 1998) também traz questionamentos sobre a produção dessa
“mulher do Terceiro Mundo” em alguns textos feministas como uma categoria homogênea, que seria uma
figura pobre, ignorante, doméstica, vitimizada, entre outros. Ela também questiona a representação da mulher
como uma categoria unificada, que compartilha os mesmos interesse e objetivos, independentemente de sua
origem étnica, sua condição social e racial e outros fatores que possam influenciar a condição feminina, e
propõe uma reflexão sobre o que realmente representam os termos “mulher” e mulheres”.
Em uma tentativa de representar justamente essa pluralidade da condição feminina, que parece ser deixada
de lado em Jane Eyre, surge Ella Gwendolyn Rees Williams, nascida na Dominica, nas ilhas do Caribe, uma das
sociedades colonizadas que mais sofreu os efeitos devastadores do processo de colonização, na qual as culturas
dos povos mais diversos foram aniquiladas (BONNICI, 2009). Mais tarde, ela adota o pseudônimo de Jean
Rhys e escreve Wide Sargasso Sea (1966), desafiando a tradição por criar uma história para um personagem
marginal. Assim, Jane Eyre testifica a dialética da mulher duplamente colonizada na sociedade pós-colonial
(BONNICI, 2009), expondo a posição da Jamaica e das Ilhas do Caribe como lugares explorados e também a
postura de gênero (presente na oposição de Antoinette e Rochester) (BONNICI, 2000).
Nessa reescrita, a autora faz uma revisão, no sentido definido por Rich (1979 apud FUNCK, 2011,
p. 78), como “o ato de olhar para trás, de ver com outros olhos, de entrar em um texto antigo a partir de uma
nova perspectiva crítica”, que nos permite “expor o caráter naturalizado dos arranjos de gênero” (FUNCK,
2011, p. 79) e, ainda, “questionar valores e crenças sobre a cultura e a sociedade” (FUNCK, 2011, p. 79). A
autora cria uma história para Bertha, a personagem de Brontë, a louca do sótão, que na obra original existe
somente de forma periférica e confinada, resgatando-a do silêncio que lhe é imposto.
A história se passa na Jamaica, no período posterior ao Ato de Emancipação de 1834. Nesse momento
histórico, Antoinette (apresentando sua perspectiva Crioula) se via como uma mestiça, filha de proprietário

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

de escravos, desprezada pelos negros, agora emancipados, e também rejeitada pelos brancos, por não ser
exatamente uma deles. Desse modo, ela se encontra entre duas culturas, mesmo sem pertencer de fato a
nenhuma delas (MONTEIRO, 2010). Pode ser percebido um “construto” (SAID, 1990 apud BONNICI,
2009) negativo dessa personagem (acusada de comportamento incestuoso, loucura, adultério e ninfomania
por ser fruto de uma miscigenação entre negros caribenhos e descendentes britânicos) (BONNICI, 2009) e,
também, da família Cosway-Mason que parece não ser capaz de escapar dos estigmas coloniais e da condição
de sociedade colonial explorada (BONNICI, 2000). À Antoinette, são atribuídas sensualidade e degeneração
moral, (FUNCK, 2011), caracterizando o horror, visto por aqueles inseridos na ideologia Vitoriana, que se
fazia presente na falta de pureza sexual e racial (MILLS, 1996).

Na relação entre Rochester e Antoinette, podemos perceber uma dicotomia entre o sujeito e o outro.
Como duas manifestações de consciência concretas, ele, o sujeito, se caracteriza como a consciência autônoma,
enquanto ela, o outro, é a consciência dependente, vivendo ou sendo para o outro e não para si mesmo
(MONTEIRO, 2010). É perceptível na maneira como Rochester enxerga e descreve a mulher uma visão da
mesma como objeto sem essência e negativamente caracterizado (MONTEIRO, 2010).

O Rochester de Rhys se diferencia do de Brontë por ser aventureiro e mergulhar em um paraíso de


intensidade desconhecida (MONTEIRO, 2010). Ao levar a mulher para a Inglaterra e prendê-la no sótão de
Thornfield Hall, ele a “encerra num meio de uma cultura diferente, na qual as pessoas e o clima compartilham
a mesma falta de calor e de cor” (MONTEIRO, 2010, p. 77). Ela tem seu corpo colonizado, assim como fora
a Jamaica, sob a justificativa da razão, da moralidade e da civilização (MONTEIRO, 2010).

Ao longo da obra, dividida, em três partes, podemos notar ainda “a objetificação da mulher nascida
numa sociedade masculina e seu esforço constante para escrever a si mesma” (BONNICI, 2000, p. 179). Na
primeira parte do romance de Rhys, Antoinette Cosway possui voz ao narrar sua infância e adolescência, sendo
capaz de atingir esse objetivo. Porém, já na segunda parte, o que tem o poder de enunciação é a ideologia
patriarcal e imperialista, representada pela voz de Rochester, noivo de Antoinette, proveniente da Inglaterra,
que retrata seu ódio pelo novo país e por sua esposa. Na terceira, Antoinette parece recuperar sua voz, narrando
seu confinamento em Thornfield Hall e a objetificação que lhe foi imposta pelo marido. Mesmo tendo seu
ambiente reduzido, Antoinette não é completamente contida e continua a lutar por sua lucidez e pela tentativa
de identificar seu próprio ser, até o ponto em que “rouba o fogo do homem todo-poderoso e o estigma da
bruxaria e escapa do patriarcalismo” (BONNICI, 2000, p. 182), revelando a necessidade de destruir aquilo
que a destruiu. Antoinette retoma a palavra nesse momento e, através da escrita, consegue deixar o sótão em
que estava presa, abrindo-se aos desejos e às palavras (MONTEIRO, 2010).

Outra forma que ela encontra para resistir à dominação masculina são seus sonhos, que “condensam
imagens, vozes, personagens, rostos e eventos históricos em novos símbolos e novas narrativas que não podem
ser reveladas de outra maneira” (MONTEIRO, 2010, p. 81). “O fogo que estrutura o sonho final consome
aquilo que jamais poderá explicitar-se: as chamas são manifestações do desejo de ser ouvida, reconhecida”
(MONTEIRO, 2010, p. 82). Acordar de seu último sonho possibilita que ela se liberte, ultrapassando dois
mundos e quebrando as “dicotomias do espaço vitoriano: sexualidade legítima e ilegítima, loucura e razão,
comportamento primitivo e civilizado, fato e ficção” (MONTEIRO, 2010, p. 83)e, ao contrário do que
acontece em Jane Eyre, o final é ambíguo, pois não se sabe ao certo se o que ela deve fazer é “conciliar
suas identidades, fugir da condição de alteridade a que foi consignada por Rochester, ou destruir a casa que
simboliza a supremacia cultural da Europa” (FUNCK, 2011, p, 88).

Desse modo, a obra reflete de forma clara como


A arapuca na qual a mulher se encontra numa sociedade masculina identifica a situação do
colonizado envolvido numa estrutura colonial, que torna inconcebível um ambiente diferente ou
um status livre do colonialismo. A pessoa “posta na alteridade” dentro de uma estrutura periférica
indica a objetificação (especialmente na linguagem da mulher) pelo patriarcalismo. (BONNICI,
2000, p. 182).

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Assim, o texto de Rhys constitui como um marco no feminismo e na literatura pós-colonial (BONNICI,
2000), “fazendo uma leitura crítica e expondo as convenções culturais sobre as quais a narrativa de Brontë
é construída” (FUNCK, 2011, p. 89), além de levantar questões de poder e privilégio, ao revisitar, revisar
e reconstruir essa figura canônica da literatura (FUNCK, 2011). Entretanto, Mills (1996) nos diz que, ao
trazer a perspectiva do Crioulo, o texto acaba por ratificar a experiência colonial que tanto tenta questionar.
Para ela, na narrativa, as pessoas miscigenadas são descritas com horror pelos olhos da personagem Antoinette
e a questão da pureza de raça parece estar, assim como na ideologia colonial, extremamente ligada à pureza
sexual
Para Mills (1998), as personagens centrais femininas dos romances Jane Eyre e Wide Sargasso Sea podem
estar, de algum modo, presas na própria lógica do texto, que não deixa de ser determinada por seu contexto
colonial de produção. Na análise que Spivak (apud MILLS, 1998) faz de Wide Sargasso Sea, ela aponta que é
perceptível a marginalização de alguns personagens na narrativa, que se foca nos interesses dos crioulos brancos
e se esquece dos nativos negros, mantendo a perspectiva do colonizador presente também na narrativa de Jane
Eyre. Firdous Azim (apud MILLS, 1998) corrobora o ponto de vista de Spivak ao afirmar que a narrativa de
Jean Rhys é feita a partir de formas extremas de individualismo que terminaram por servir aos propósitos
coloniais por representarem um determinado tipo de subjetividade que estava implicitamente contrastando
com os “sujeitos nativos”.

Considerações finais
A semelhança entre as obras pode ser vista, inicialmente, em detalhes menores. Ambas as narrativas
são permeadas por episódios de fogo e escuridão e pela cor vermelha como representante da sexualidade das
personagens principais. Além disso, o espaço de Thornfield Hall também se faz presente nas duas narrativas:
para Jane, a mansão constitui local de crescimento pessoal, uma possibilidade de aprisionamento e, ao mesmo
tempo de libertação, enquanto que para Bertha, é local de aniquilação do seu eu, mas, posteriormente, também
se transforma em lugar de libertação final.
Tanto Jane Eyre quanto Wide Sargasso Sea se mostram como obras de transgressão, pois, ainda que de
maneiras diferentes, ambas tentam dar voz e buscar um lugar na sociedade para o excluído. No caso de Jane
Eyre, a narrativa traz a voz da mulher reprimida pela ideologia Vitoriana. Por meio da figura da preceptora,
transgressiva por si só, Brontë traz uma personagem com ideias independentes e diferentes e, por isso mesmo,
inaceitáveis para a época. Wide Sargasso Sea, por sua vez, traz a voz da personagem Bertha Mason, anteriormente
suprimida no romance de Brontë, enfatizando a perspectiva da mulher colonizada e fruto de miscigenação.
Até mesmo um dos espaços de transgressão apresentados para as personagens se faz semelhante: o campo dos
sonhos ou o espaço imaginativo é o lugar em que as personagens podem falar e expor aquilo que a sociedade
não lhes permite externar, constituindo um mecanismo de resistência contra o patriarcalismo em Jane Eyre e
contra o imperialismo (e implicitamente o patriarcalismo) em Wide Sargasso Sea.
Entretanto, ambas as obras acabam por silenciar um “outro”. Jane, falando do lugar do colonizador,
silencia o “outro colonizado”, reproduzindo o construto negativo criado pela ideologia na qual a obra se insere.
Antoinette, ao narrar com os olhos do Crioulo, silencia a categoria dos nativos (que parecem ter lugar apenas
periférico em sua narrativa) e acaba por silenciar, de certa maneira, sua própria categoria, pois, inevitavelmente
inserida na ideologia do colonizador, em certos momentos, acaba por representar o miscigenado sob a
perspectiva do colonizador.

Referências
BONNICI, Thomas. O Pós-Colonialismo e a Literatura: estratégias de leitura. Maringá: EDUEM-Editora da
Universidade Estadual de Maringá, 2000.
BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana. (Orgs.) Teoria literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. Maringá: EDUEM – Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2009.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. Oxford/New York: Oxford University Press, 2000.
FUNCK, Susana Bornéo. Corpos colonizados, leituras feministas. In: HARRIS, Leila Assunção (Org.). A voz
e o olhar do outro – volume 3. Rio de Janeiro: Letra Capital Editora, 2011. CD-ROM.
MILLS, Sara. Post-colonial Feminist Theory. In: JACKSON, Stevi and Jackie Jones, eds. Contemporary Feminist
Theories. Edinburgh: Edinburgh UP, 1998.
__________.Post-colonial feminist theory. In: MILLS, Sara; PEARCE, Lynne, eds. Feminist Readings/ Feminists
Reading. Hemel Hempstead: Harvester Wheatsheaf, 1996.
MONTEIRO, Maria Conceição. Corpos des:(autorizados): e preceptora na ficção inglesa e na brasileira.
CARVALHO, Alfredo S. C.; DAGHLIAN, Carlos; MATOS, Francisco Gomes; BOHN, Hibério I.; CELANI,
M. Antonieta & HARRIS, Peter J., eds. Estudos Anglo-Americanos. Números 25-26. São José do Rio Preto:
Editora Insular, 2001-2002.
___________. “Wide Sargasso Sea: uma relação de poder e desejo”. In: Revista Vertentes. São João del-Rei/
MG: Universidade Federal de São João del-Rei, 2010, p. 74-84.
RHYS, Jean. Wide Sargasso Sea. London/New York: Penguin Books, 1968
SPIVAK, G. C. Pode o Subalterno Falar? Trad.: Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André
Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana. (Orgs.) Teoria
literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: EDUEM – Editora da Universidade
Estadual de Maringá, 2009.
http://www.wook.pt/authors/detail/id/11024 Acesso em: 24 de julho de 2013.

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Laerte Queer: a voz do travesti no cartum brasileiro

OLIVEIRA, Francine (UFSJ - PROMEL)


francine.n.oiliveira@hotmail.com
LAGUARDIA, Adelaine (UFSJ)
adelaine@ufsj.edu.br

RESUMO Ao assumir-se como cross-dresser, o cartunista Laerte Coutinho atraiu a atenção da mídia para si e
para sua nova forma de fazer histórias em quadrinhos. Mais reflexivo e profundo, porém não menos
crítico que suas tirinhas anteriores, o estilo adotado pelo cartunista nos anos 2000 é o resultado
de uma série de transformações e acontecimentos pessoais. Sua personagem recente mais famosa,
Muriel, é definida por ele mesmo como seu alterego ainda antes de se travestir. O quadrinista usa
sua personagem para exprimir sentimentos pessoais, situações representativas e metáforas que as-
socia a sua própria condição de cross-dresser, abordando temas como o preconceito, a confusão en-
tre gênero e sexualidade e outras questões ligadas à Teoria Queer. Este artigo pretende demonstrar,
por meio da análise de algumas das tirinhas da obra de Laerte, como o cartunista levanta discussões
complexas por meio do humor e da comicidade, a fim de expor aos leitores temas polêmicos, escla-
recendo-os do ponto de vista do próprio travesti.
Palavras-chave: cartum, histórias em quadrinhos, humor, queer, travesti.

ABSTRACT In coming out as a cross-dresser, cartoonist Laerte Coutinho has called the media attention to himself
and to his new style of writing comics. His more reflexive and deep style in the 2000s, even though not
less critical than his previous works, results from a series of personal transformation and happenings.
His most famous recent character, Muriel, was defined as his “alter ego” even before he became a trans-
vestite. The comic writer uses his character to express personal feelings, representative situations and
metaphors which are associated to his own cross-dresser condition, addressing such themes as preju-
dice, the confusion between gender and sexuality, and other matters related to Queer Theory. This essay
aims to demonstrate, through the analysis of some of Laerte’s cartoons, how complex discussions are
raised through humor and comics to expose polemic questions.
Keywords: cartoon, comics, humor, queer, transvestite.

Hugo, um sujeito “normal”


Para o caderno de informática do periódico Folha de S. Paulo, o cartunista Laerte Coutinho criou, em
1995, Hugo Baracchini, que viria a ser seu protagonista de maior visibilidade ao assumir-se como a cross-dresser
Muriel (COUTINHO, 2010a). Desde seu surgimento, Hugo foi concebido como um alterego de Laerte
(COUTINHO, 2010b) descrito por ele mesmo como
um exemplar da raça humana, não muito exemplar. Os grandes temas, como vida, morte, sexo,
o enchem de dúvidas; os pequenos, como vida, morte e sexo, também. Tem um carro, um
computador e uma namorada chamada Beth, estudante de psicologia. Já é demais! (COUTINHO,
1998).

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

As tirinhas de Hugo giram em torno de seu dia-a-dia, abordando seus problemas financeiros e “aventuras”
para conseguir dinheiro, seu vício por computadores e novas tecnologias, bem como sua compulsão por acessar
sites de sexo, sua relação com a namorada e os dilemas que se resultam dessas situações cotidianas. O efeito
de comicidade em suas histórias se deve principalmente ao inesperado e ao absurdo, na forma de resoluções
exageradas ou absurdas encontradas por Hugo para sanar as dificuldades que enfrenta ou para fugir delas. Em
outros casos, é a possibilidade de identificação do público com os problemas corriqueiros, e seu potencial para
se transformarem em desastres, que gera o riso.
Hugo se travestiu pela primeira vez ao tentar escapar da máfia, após sacar quarenta centavos que foram
creditados por engano em sua conta bancária. Por gastar todo o dinheiro e não ter como pagar de imediato,
os juros elevaram sua dívida a sete milhões. Disfarçado como Gilda, Hugo se depara com o cobrador e,
subitamente, o beija, atitude que faz com que ele desista de continuar a seguir o protagonista. A graça da
sequência em que Hugo se veste como mulher, formada por seis tirinhas (figura 1), resulta de duas questões
levantadas ao longo da história, sendo a primeira delas o gosto que o personagem parece tomar por aquela
encenação e a outra, a atração que Hugo parece sentir pelo cobrador quando este decide ir embora.

Figura 1

Para fugir da máfia,


Hugo decide se vestir
como mulher.
Fonte: COUTINHO, Laerte.
Hugo para principiantes. São
Paulo: Devir, 2005, p. 41-42.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

 
Na primeira tirinha, além dos gestos efeminados que condizem com a roupa, leva ao riso a afetação
da última fala de Hugo, que sugere o comprometimento com o disfarce a fim de realmente incorporar uma
personagem feminina. Ao dar a notícia, na segunda tirinha, de que o cobrador da máfia havia ido embora,
Beth se surpreende com a postura do namorado, que, em vez de se sentir feliz e aliviado, parece não se importar
com a novidade, voltando-se para a revista que lia e pedindo a opinião de Beth sobre um vestido. A graça, nesse
caso, resulta da pouca atenção dada por Hugo ao fim de sua perseguição pela máfia, que deveria ser sua grande
fonte de preocupação, em contraposição a seu maior interesse pela revista e ao comentário, usando um jargão
mais associado à moda – ou aos vocabulários feminino e gay – (“top”) para descrever um vestido específico
(“micro de matelassê”). A forma como Hugo está sentado no sofá, novamente, indica seu comportamento
afetado e comprometimento com o disfarce que escolheu.
Seus gestos são também o foco da terceira tirinha, que traz uma sequência de movimentos a sugerir que
Hugo mexe os quadris de um lado para outro enquanto desfila. A comicidade está na fala ambígua de Beth,
ao dizer que “nunca existiu mulher assim” (p. 42, grifo no original). Sua expressão facial indica reprovação
à encenação artificialmente sensual do namorado, que, no entanto, toma a avaliação como um elogio, no
sentido de ter se tornado uma mulher incomparável. Na quarta tirinha, Beth enfatiza seu descontentamento,
enquanto Hugo, na frente do espelho, parece estar gostando de se produzir, justificando sua insistência como
um ato de precaução.
Na quinta tirinha, a discussão entre o casal se intensifica, pois Beth questiona se o namorado continua
a se disfarçar realmente por um motivo específico ou se o faz por gosto. A desconfiança de Beth faz com que
Hugo decida, finalmente, tirar sua “fantasia”, mas, assim que começa a retirar os brincos, o cobrador da máfia
volta e Hugo subitamente lhe dá um beijo na boca. O fim dessa tirinha suscita a dúvida, no leitor, se o beijo
foi motivado por uma espécie de sentimento de gratidão por parte de Hugo, pois, com a volta do sujeito, ele
não precisaria mais tirar o disfarce, ou se aquela seria parte da própria encenação para enganar o cobrador.
Na sexta e última tirinha, o cobrador, surpreso com a atitude de Hugo, decide ir embora. Deixado sozinho, o
protagonista parece refletir, enquanto seu rosto mostra certo desolamento, até que, finalmente, Hugo “grita”
ao cobrador: “Escreva!” (p. 42). No último quadrinho, o pedido para que o sujeito mantenha contato revela
uma atração ou um apego àquele indivíduo que o perseguia e o torturava.
Essa sequência traz à tona um questionamento a respeito do prazer descoberto pelo personagem ao se
travestir, no entanto, não foi dada continuidade ao tema nas demais histórias de Hugo, a não ser por uma
tirinha pontual em que ele novamente se veste de mulher, mas sem motivo aparente, apenas dizendo: “Às
vezes um cara tem que se montar, ué!”. Segundo Laerte (2010b), a história foi publicada em 2004 e chamou
a atenção de uma leitora cross-dresser, que enviou ao cartunista um e-mail, sugerindo que aquela talvez fosse
uma vontade do próprio autor.
Passando por um longo processo em que ponderou sobre a travestilidade, o quadrinista diz ter sofrido,
ainda, uma crise identitária, desencadeada por problemas pessoais como o fim de um longo casamento e a morte
do filho (COUTINHO, 2007). Esse período de autoavaliação, iniciado em 2004, se refletiu diretamente no
trabalho de Laerte, com o fim de alguns personagens e títulos consolidados e a adoção de um novo estilo, mais
filosófico e menos voltado para a comicidade. Em meio aos temas abordados nessa nova fase, a travestilidade
aparece numa sequência publicada em dezembro de 2008 no blog mantido pelo próprio cartunista para expor
suas novas tirinhas, que, apesar da mudança, continuaram a figurar diariamente na Folha de S. Paulo.

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Intitulada Eu, travesti, a série é dividida em treze partes, em que se desenvolve uma narrativa sobre um
homem de meia idade, chamado Ivan, que decide dar um novo passo em sua vida e sair à rua travestido. Até
então, ele havia apenas experimentado roupas tiradas do baú de sua tia, enquanto se escondia na garagem. Ao
sair de casa sexta-feira à noite, ele leva roupas femininas para se trocar no carro, a fim de que sua mulher não
perceba, e, caminhando, depara-se com um “cliente” em um carro. O uso do termo “cliente” dá a entender
que Ivan não havia saído apenas para se mostrar publicamente como travesti, mas que procurava encontrar
homens com quem fazer sexo, prostituindo-se. O homem no carro, contudo, pede apenas que Ivan pose para
que ele faça esculturas, situação que se repete uma segunda vez, na qual o escultor propõe à travesti que venha
morar com ele, oferecendo-lhe um pagamento generoso para que Ivan esteja à disposição, posando sempre
que o artista precisasse. Ivan recusa, deixando indignado o escultor, que pede que vá embora e não volte.
Como lembrança, ele leva uma das esculturas, que coloca na prateleira de casa, como um “pequeno troféu”.
Curiosamente, sua esposa comenta que a escultura, “de um certo modo”, se parece com o marido. Apesar do
fim daquele estranho relacionamento com o artista, Ivan continua a sair travestido sem que sua esposa saiba.
A história, peculiar, contrapõe uma vida corriqueira a um desejo secreto que o indivíduo decide externar. O
encontro com o artista e a relação que desenvolvem oferece uma perspectiva pouco comum de um travesti que
se prostitui, a partir de um ponto de vista que está além do desejo sexual. Ainda que não explique claramente
o que levou Ivan a se travestir, a sequência passa pela sugestão de que aquela vontade já o vinha assolando há
mais tempo, sem que o personagem conseguisse encontrar satisfação no ato de se olhar no espelho com as
roupas da tia, em segredo.
Podemos tomar, por um lado, a noção do “enrustido” para justificar o ato de Ivan, concluindo que,
para encontrar outros homens, ele prefere se travestir, a fim de que não seja reconhecido. Porém, o foco na
travestilidade, a começar pelo próprio título da série, parece se sobressair em relação à sexualidade, que só está
implícita na ocasião em que Ivan encontra um “cliente”. Ao se tornar um modelo para o escultor, por outro
lado, percebemos um interesse, em cada um dos homens, que converge para um relacionamento não sexual.
No ateliê, uma afirmação do escultor sobre a obra que havia acabado de moldar pode servir como ponto de
reflexão para a experiência que está sendo narrada, em que Ivan se constrói como travesti. O artista diz ao
modelo que não tenta fazer com que a figura se pareça com ele, pois ela deve existir “por si só” como se a obra
fosse adquirindo vida própria à medida em que toma forma. Sem compreender o significado daquela fala,
Ivan acredita que uma parte dele também exista na figura, por ela ter sido moldada a partir dele mesmo, o que
conclui com o seguinte pensamento, antes de adormecer: “A arte tem que dividir a soberania”.
Fazendo uma analogia com o que seria uma composição de Ivan, a travesti que ele esculpe em si mesmo,
a “obra” acaba por dividir o corpo com o artista, pois uma parte de Ivan existe na travesti que toma forma
quando sai de casa à noite. O desejo do personagem emerge, como a escultura, e vai sendo moldado com
roupas, maquiagens, acessórios, até que passa a um outro nível, o da experiência em público. Contudo, Ivan
procura manter o controle de sua “obra”, separando-a de sua vida cotidiana, omitindo-a de sua esposa e se
negando a ir morar no ateliê do escultor uma “soberania” dividida, em que a “obra” parece ter o direito de existir
“por si só” apenas à noite, longe do que seria “a vida de todos os dias”. Esse conflito vivido pelo personagem
de Eu, travesti é apresentado de maneira mais sutil e séria, ao contrário de como Muriel se fará presente em
2009. Ademais, a aparência física de Ivan não guarda semelhança alguma com a de Laerte, e mesmo que se
trate de um indivíduo em idade próxima à do cartunista, não nos é possível afirmar que a história seja uma
representação do pensamento do quadrinista à época se não considerarmos um contexto posterior à publicação
de Eu, travesti, uma vez que Laerte se assumiu como cross-dresser apenas em 2010.

Muriel, travesti
Em matéria da revista Piauí, em abril de 2013, Coutinho faz uma declaração sobre seu primeiro contato
com a prática do cross-dressing em um fórum na internet, chamado Brazilian Crossdresser Club (BCC), em que
“homens que gostavam de se vestir de mulher compartilhavam experiências” (SILVA, 2013). A descrição do
clube esclarece parte do sentido de se travestir que o cartunista reproduz naquela série escrita em 2008:

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Se há uma ideologia no BCC, diz Laerte, “é a ideologia do armário”. Algo como “a construção
da arte de se apresentar femininamente num contexto específico e fechado e, ao mesmo tempo,
manter no cotidiano a identidade masculina, pela qual se é publicamente conhecido. É uma (...)
confusão. E, em resumo, é uma fuga” (SILVA, op. cit., p. 18).

Em vez de abraçar a fuga, Laerte decidiu, gradativamente, passar a “existir por si só”, usando seu alterego,
Hugo, como guia para a nova experiência. Procurando conselhos em um estúdio especializado na produção
de homens que desejam fazer o cross-dressing, Coutinho fez sua primeira “montagem completa” em fevereiro
de 2009 (SILVA, op. cit.) e, em março do mesmo ano, criou um blog para as tirinhas de Muriel nome dado à
nova faceta de Hugo, conforme explica:
Mantenho o Hugo pela questão de eu me travestir. É um personagem que me ajuda refletir,
levantar algumas bolas. Como ele foi a pessoa que me conduziu para esse mundo, eu soltei isso
como reconhecimento. (…) Esse processo de travestilidade é um caminho no escuro, não tem
guias. Cada pessoa é representativa de um tipo de gênero. A quantidade de tipos de expressão de
gênero é quase uma impressão digital (…), cada um tem seu (??) jeito de fazer isso. Resolvi deixar
o Hugo me ajudar (…) (COUTINHO, 2010b).

Notamos, na fala do autor, a percepção da diversidade ao se referir às expressões de gênero a partir de


experiências individuais, tendo, em Muriel, um instrumento de reflexão e de compartilhamento de ideias
com os leitores. A comicidade presente em Muriel Total também funciona, de certa forma, como estratégia a
favor da aceitação, uma vez que a nova fase da personagem foi bem recebida tanto pelos antigos fãs de Laerte
quanto pelo público em geral, que, mesmo familiarizado com suas tirinhas mais famosas, não acompanhou
o período mais filosófico e experimental do autor que chegou até mesmo a ser dispensado de alguns jornais
por desenhar histórias demasiadamente herméticas e obscuras (COUTINHO, 2007). Diferentemente desse
novo estilo, as tirinhas de Muriel mantêm aqueles traços mais caricatos, exagerados, e o estilo cômico pelo qual
Laerte se tornou conhecido. A temática também continua a girar em torno do cotidiano, como nas tirinhas
anteriores de Hugo, mas, desta vez, misturando o dia a dia de um “homem normal” com o de uma “mulher”
e suas implicações socioculturais.
A primeira história a ser publicada na página dedicada a Muriel recebeu o título de Silicone Blues, uma
sequência desenhada apenas com sombras e traços em preto, sem cores, dando a impressão de se tratar de um
sonho ou devaneio protagonizado por Hugo. Após passar por um estranho procedimento em que é colocado
numa forma e preenchido por silicone, o personagem ganha um corpo feminino escultural, mas insiste em se
considerar um indivíduo do sexo masculino nenhuma alteração é feita em seu rosto. Sua satisfação com o novo
corpo é justificada, como ele mesmo diz, “por razões estéticas”, não relacionadas à sexualidade. É interessante
notar, ao fim da segunda tirinha, a indignação de Hugo ao levantar a possibilidade de o considerarem
homossexual. Essa questão é mencionada diversas vezes por Laerte, que, nas entrevistas, enfatiza que seu gosto
por se travestir não está relacionado ao desejo sexual, uma associação que somos “ensinados” a fazer e à qual
nos vemos condicionados desde o nascimento, por meio de uma matriz de inteligibilidade cultural que coloca
a heterossexualidade como regra e que faz do travesti, pelo senso comum, um homossexual, uma vez que sua
busca por “pertencer” ao sexo feminino implica uma atração sexual pelo masculino. Segundo o cartunista,
(…) não é um fetiche sexual. (…) O travestimento é uma questão de gênero, não de sexo. São
coisas independentes, autônomas, que nem o executivo e o legislativo. (…) O que tenho feito
é investigar essa parte de gênero. O que tenho descoberto é que isso é muito arraigado, essa
cultura binária, essa divisão do mundo entre mulheres e homens é um dogma muito forte. Não
se rompe isso facilmente. Desafiar esses códigos perturba todo o ambiente ao redor de você
(COUTINHO, 2010c).

Silicone Blues pode ser vista como uma introdução à temática queer à qual Laerte irá se dedicar por meio de
Muriel, promovendo discussões e opinando a respeito de acontecimentos recentes envolvendo a comunidade
LGBT. O silicone como artifício para moldar o corpo é uma das facilidades do mundo contemporâneo que
tornam possível uma materialização do feminino no travesti. Porém, a contraposição entre artificial e natural

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

parece determinar o sexo na fala de Hugo, quando afirma não ser mulher, podendo ter um belo corpo feminino,
mas “continuar sendo homem”.
Em vez de negar classificações e fugir dos rótulos, Laerte procura esclarecer o queer a partir de contextos
específicos, vividos por Muriel. Problemas como a dificuldade de aceitação por parte dos amigos e de Beth,
sua namorada – que é psicanalista –­, são tratados com bom humor sem, contudo, deixar de se explicitar o
incômodo que algumas reações podem gerar tanto por parte de Muriel quanto por parte daqueles com quem
interage. A autoaceitação também é abordada e, em determinados momentos, Hugo teme que Muriel se torne
independente demais e acabe “se separando” dele, como uma outra personalidade novamente, a ansiedade
causada pela ideia de a criação “existir por si só”. Passam ainda pelos quadrinhos temáticas como a motivação
para “se montar”, a religião, o consumismo, o prazer, a vaidade e os questionamentos relativos ao binarismo
homem/mulher.
Tanto Hugo como Laerte são bissexuais, assunto que já havia aparecido nas tirinhas de Hugo em outras
ocasiões, anteriores ao surgimento de Muriel, tratando da dificuldade de identificação do bissexual com o
movimento LGBT que acaba por priorizar a causa gay e de como esses indivíduos não parecem unidos em torno
de uma causa bissexual propriamente dita. Ao adotar o cross-dressing como hábito, a própria bissexualidade
passa a ser questionada por Hugo/Muriel, diante da variedade de expressões de gênero que, não se limitando
à distinção biológica entre homem e mulher, rompe também com a oposição entre desejo heterossexual e
homossexual que admite, parcialmente, a bissexualidade como uma espécie de “junção” daquelas formas
binárias ou como uma indecisão momentânea.
Ao passar por um dilema sobre sua preferência sexual, Muriel se vê confrontada pela multiplicidade que
procura abraçar, mas que tem dificuldades de compreender (figuras 2 e 3).

Figura 2

 
Sequência de tirinhas em que Muriel entra em conflito com a dificuldade de se definir, publicadas entre 14 e 28 de junho de 2010.
Fonte: COUTINHO, Laerte. Muriel Total. São Paulo: 2009-2013.
Disponível em: <http://murieltotal.zip.net/arch2010-06-20_2010-06-26.html> Último acesso: 26 de setembro de 2013.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Na figura 2, perguntada se é homossexual, desta vez no bar, Muriel diz que só responderá caso o indivíduo
esteja interessado em se envolver ou se aquela for uma pesquisa que ela avalie como séria situação bastante
improvável de ocorrer em um bar. Ao rebater as condições impostas por ela com uma pergunta igualmente
difícil de responder, o sujeito deixa Muriel desconcertada, e, com ironia, ela prefere acreditar que não se trata
de interesse. Na tirinha seguinte, já embriagada, a protagonista se abre para o indivíduo, que lhe recomenda
uma maneira duvidosa de atestar a preferência pelo sexo com homens ou com mulheres. Ao dizer que Muriel
deveria fazer sexo com “a primeira pessoa da fila” que supostamente havia se formado atrás dela, o indivíduo
sugere que, não havendo pessoas a escolher, então não deveria haver também preocupação em relação a uma
preferência. Por fim, Muriel acorda no dia seguinte sem se lembrar se ela e o sujeito que encontrou no bar
haviam “transado”. Preocupada com os papéis que ambos exerceram durante o ato sexual, ela é novamente
provocada pela hipótese que o homem coloca: a de ela ter exercido a função “ativa”, penetrando o homem
mesmo que se apresentando como figura feminina.

Figura 3

Muriel recebe a visita de alguém com quem esteve na noite anterior. Tirinha publicada em 19 de março de 2009.
Fonte: COUTINHO, Laerte. Muriel total. São Paulo: 2009-2013.
Disponível em: <http://murieltotal.zip.net/arch2009-03-15_2009-03-21.html>. Último acesso: 26 de setembro de 2013.

Na figura 3, um homem bate à porta de Hugo/Muriel pela manhã e, novamente, sem que ela se lembre,
pergunta a ele se haviam feito sexo. Nesse caso, é gerado o estranhamento pela resposta do homem de que
ele prefere “transar” quando não está menstruando. Essa informação nos leva a deduzir que o homem,
biologicamente, seja do sexo feminino. Dessa forma, o exemplo dado na tirinha chama a atenção para como a
aparência de gênero, o que se expõe no âmbito social, não permite a categorização do sexo biológico, reforçando
a concepção de Butler (2010) do gênero como performatividade. Instaura-se, então, a dúvida a respeito da
identidade do indivíduo que procura Muriel, aparentemente um homem, devido a suas vestes “tipicamente
masculinas” mas que, ao revelar que menstrua, sugere que tenha genitais correspondentes ao sexo feminino. A
situação leva ainda a questionamentos relativos à sexualidade de ambos: se Muriel se atraiu pelo sujeito que se
apresentou como homem, pode-se pensar em heterossexualidade, mas, sendo Hugo quem encarna Muriel, a
atração pelo homem indica, a princípio, uma relação homossexual que se tornaria heterossexual no caso de o
indivíduo se revelar como mulher, conforme sugere sua última fala.
Por “frequentar a área cultural do outro gênero, o reservado das mulheres” (COUTINHO, 2010b),
Muriel “se monta” de acordo com padrões estéticos associados ao ideal de beleza feminino, já explicitados
em Silicone Blues, no desejo de se ter um corpo curvilíneo, com seios grandes e quadris largos. Os artifícios
usados por travestis para moldar o corpo são tema de algumas das tirinhas, como a procura por hormônios
sem receita médica, atitude que muitas tomam em consequência da falta de apoio da saúde pública, estando,
então, sujeitas a riscos não apenas pelo uso indiscriminado dos medicamentos, mas também por adquirir
produtos pouco confiáveis em mercados clandestinos. A decisão de Hugo/Muriel pela hormonização de modo
responsável o/a leva a rejeitar a possibilidade de comprar pela internet, meio ao qual muitas recorrem hoje
em dia, pela facilidade de se encontrar ofertas e de se manter o anonimato. Então, ele recorre a outra forma
de se adquirir os medicamentos, por meio de vendedores informais, geralmente indicados por outras pessoas,
através da chamada propaganda “boca a boca”. Em uma das tirinhas, um estranho efeito colateral faz com

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que cresçam ovários nas orelhas de Hugo. Esse tipo de história cômica denuncia a perigosa informalidade que
acaba sendo comum entre travestis e transexuais, que preferem se tratar de forma independente, uma vez que
a ajuda profissional torna o processo mais caro e lento, seja pelo excesso de cautela de médicos que exigem
acompanhamento e avaliação psiquiátrica, seja pela não rara desinformação e discriminação por parte dos
próprios profissionais da medicina, que podem se recusar a indicar o uso de hormônios ao paciente ou mesmo
a dar continuidade ao tratamento.
Os altos gastos com roupas, acessórios, maquiagem e demais cuidados com a beleza, como depilação e
manicure, são também problemas que fazem parte do cotidiano de Muriel, associados à vaidade tipicamente
feminina. Muriel/Hugo se opõe veementemente ao estereótipo do homem “machão”, criticando a maneira
como crianças são constantemente direcionadas a cumprir seu papel social de gênero determinado pelo sexo
biológico. Paradoxalmente, além de vaidosa, Muriel é, como se espera de uma mulher, compulsiva, emotiva,
sensível e delicada, assumindo, de certa forma, um estereótipo de feminilidade. Essa sensibilidade que faz parte
da personagem pode também ser vista como camp (SONTAG, 1964), por aplicar uma estética mais detalhista
e colorida ao estilo de desenho cômico, usualmente mais simples, e por expor convenções e aspectos negativos
da vida de uma cross-dresser por meio do humor, que mostra uma capacidade de Laerte de rir de si mesmo e da
visão conservadora que ainda se faz presente.
A despeito de uma aparente coerência em Muriel, relativa ao comportamento esperado do gênero com
o qual “escolheu” se apresentar, esforçando-se para parecer uma mulher bonita, a descontinuidade entre sexo
biológico e expressão de gênero rompe com a matriz cultural de inteligibilidade que nos impõe a “continuidade
entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (BUTLER, 2010, p. 38), reflexão com a qual Laerte dialoga em
várias oportunidades, ciente de estar “bagunçando” as expectativas de gênero.
Ao assumir-se, publicamente, como travesti e usar Hugo, paralelamente, como instrumento condutor
de sua própria causa, Laerte se tornou um emblema da transgeneridade, no sentido de ter se tornado uma
referência para a comunidade LGBT e para o público em geral que, a partir das incursões do cartunista
na mídia, pôde tomar conhecimento de uma questão que frequentemente é deixada de lado pelo próprio
movimento homossexual. A autoafirmação e o orgulho de pertencer a uma minoria são elementos abordados
nas tirinhas de Muriel tanto no aspecto mais amplo do movimento LGBT propriamente dito quanto no
âmbito de o travesti se encontrar às margens daquele grupo que já constitui uma minoria social.

Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
COUTINHO, Laerte. Biografia. In: Laerte - página oficial. São Paulo: UOL, 2010. Disponível em: <http://
www2.uol.com.br/laerte/info/biografia-top.html>. Último acesso: 20 de abril de 2013.
COUTINHO, Laerte. Entrevista risonha e franca - Laerte. In: Caros amigos. São Paulo: Editora Casa Amarela,
março 2004. Ano VII, n. 84. Pp. 32-38.
COUTINHO, Laerte. Hugo Baracchini. In: Laerte - página oficial. São Paulo: UOL, 1998. Disponível em:
<http://www2.uol.com.br/laerte/personagens/hugo/>. Último acesso: 05 de setembro de 2013.
COUTINHO, Laerte. Entrevista: Laerte. In: Revista O Grito!. Entrevista concedida a Paulo Floro. 11 dez.
2007. Disponível em: <www.revistaogrito.com/page/blog/2007/12/11/entrevista-laerte/>. Último acesso: 23
de setembro de 2013.
COUTINHO, Laerte. Paradoxo de salto alto. In: Revista Trip - Só no site. Entrevista concedida a Diogo
Rodriguez, José Rodrigo Rodriguez e Heloísa Buarque de Almeida. São Paulo: Trip Editora, 16 dez. 2010.
Disponível em: <http://revistatrip.uol.com.br/so-no-site/entrevistas/paradoxo-de-salto-alto.html>. Último
acesso: 23 de setembro de 2013.

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COUTINHO, Laerte. Cartunista Laerte diz que sempre teve vontade de se vestir de mulher. In: Folha de
S. Paulo - Ilustrada. Entrevista concedida a Ivan Finotti. São Paulo: Grupo Folha, 04 nov. 2010. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/825136-cartunista-laerte-diz-que-sempre-teve-vontade-de-se-
vestir-de-mulher.shtml>. Último acesso: 25 de setembro de 2013.
GARBER, Marjorie. Vested interests – Cross-dressing & cultural anxiety. New York: Routledge, 1992.
SILVA, Fernando de Barros e. Laerte em trânsito. In: Piauí. São Paulo: Editora Abril, abr. 2013, n. 79, ano 7.
Pp. 16-25.
SONTAG, Susan. Notes on Camp. 1964. Disponível em: <www9.georgetown.edu/faculty/irvinem/theory/
sontag-notesoncamp-1964.html>. Último acesso: 08 de julho de 2013.

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As Malibrans: uma representação atemporal
do estereótipo feminino das sociedades patriarcais

OLIVEIRA, Aline Carrijo de (UFU)


carrijodeoliveira@yahoo.com.br

RESUMO Este trabalho objetiva discutir a representação da personagem feminina na ópera As Malibrans, in-
vestigando o voyeurismo masculino sobre o corpo feminino e os recursos multimidiáticos usados
pela compositora brasileira Jocy de Oliveira para a construção da narrativa operística em questão.
Jocy de Oliveira, compositora brasileira, trabalha com o projeto de música que integra diversas
mídias, além da espacialização sonora e visual em suas obras. A compositora afirma em depoimen-
tos que, a partir de um momento de intuição poética, procura uma cumplicidade entre artistas e
audiência para um movimento introspectivo, promovido pela percepção de tempo e espaço expan-
didos. Trata-se de um processo de absorção da essência do tempo, essência esta não estruturada
em questões primordiais de sua música. Assim, o processo criativo de Jocy de Oliveira a induz a
conceber uma visão atemporal dos mitos das sociedades patriarcais arcaicas, pautando-se na figura
da mulher transgressora, discriminada, heroica. Essa proposta pode ser verificada na ópera As Mali-
brans (2000), cujo tema, entremeado por textos de Verne, Kafka, Michel Poizat, Catherine Clement,
é a vida da cantora lírica Maria Malibran. Na ópera em questão, pode-se perceber a personagem
“Diva” consolidada nas cenas de sacrifício de Ifigênia, Desdêmona e Ofélia, representando o desejo
masculino sobre o feminino.
Palavras-chave: As Malibrans, voyeurismo, multimídia, interartes.

ABSTRACT This work aims to discuss the representation of the female character in the opera As Malibrans, investi-
gating the male voyeurism over the female body and the mediatic resources used by the Brazilian com-
poser Jocy de Oliveira, in order to construct the present opera narrative. Jocy de Oliveira works with
a musical project to integrate several media besides the sound and visual spatiality in her works. The
composer states that, from a moment of poetic intuition, seeks to a cumplicity between artists and their
audience aiming an introspective movement, performed by the perception of expanded time and spa-
ce. It is about a process of absorbality of time essence, which is not structured in primordial issues of
her music. Thus, Jocy de Oliveira’s creative process induces her to conceive a timeless vision of myths
of the archaic patriarchal societies, based on the figure of the outlaw, discriminated, heroic woman.
This purpose can be verified in the opera As Malibrans,, published in 2000, whose theme is the life of
the lyrical singer Maria Malibran, permeated with texts by Jules Verne, Franz Kafka, Michel Poizat and
Catherine Clement. In this opera, one can perceive the “Diva” character crystallized in the sacrifice sce-
nes of Ifigenia, Desdemona and Ophelia, representing the masculine desire over that of the feminine.
Keywords: Jocy de Oliveira, As Malibrans, voyeurism, multimedia, interart studies.

Este trabalho objetiva um olhar sobre a ópera As Malibrans (1999/2000), de Jocy de Oliveira, a fim de
discutir a representação da personagem feminina, investigando o voyeurismo masculino sobre o corpo da
mulher e os recursos multimidiáticos usados pela compositora para a construção da narrativa operística em
questão.
Jocy de Oliveira (1936), brasileira de Curitiba, é compositora, pianista e escritora. Suas obras englobam
publicações, ópera e peças para orquestra, câmara, solos e eletroacústico. Segundo o site oficial da compositora,

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

o seu trabalho pioneiro com multimídia teve início em 1961 e atualmente envolve música, teatro, instalações,
textos e vídeo. Ainda segundo o site, os prêmios recebidos pela compositora foram: Guggenheim Foundation,
da Rockefeller Foundation (1983 e 2007), da Bogliasco Foundation, do CAPS - New York Council on the Arts, da
Fundação Vitae e da RioArte. A obra de Jocy de Oliveira está constantemente em cena nos Estados Unidos,
Alemanha e Brasil.
Parafraseando ainda o ambiente eletrônico de Jocy de Oliveira, a ópera As Malibrans é a terceira parte de
uma trilogia sobre o feminino que enfoca o lado obscuro de uma “Diva”. Com relação à estrutura, essa peça é
para dois sopranos, um tenor, uma atriz, oboé, clarone, violoncelo, piano, instrumentos de percussão e meios
eletroacústicos. No que se diz respeito ao enredo de As Malibrans, o arquétipo escolhido para dramatizar foi a
cantora lírica Maria Malibran, que em diálogo com referências da mitologia clássica produzem a universalização
do texto operístico.
Maria Malibran (Paris, 1808 – Manchester, 1836), cantora lírica mezzosoprana, era membro da família
musical dos García. Seu pai, Manuel García, um famoso professor de canto e tenor, foi muito rígido com a
educação musical de suas filhas. Podemos perceber isso no dado de que aos quatro anos Maria já acompanhava
a rotina da companhia musical de seu pai e no confinamento da filha às atividades de estudo. A primeira
apresentação da cantora lírica foi aos 8 anos, quando fez uma participação na peça Agnese de Päer e aos
dezessete cantou sua primeira protagonista em O Barbeiro de Servilha.
O tenor e pai de Maria Malibran, quando da estadia deles em Nova York, obrigou à filha a conhecer o
banqueiro François Eugene Malibran e logo em seguida a se casar com ele. O banqueiro era mais velho que
Maria Malibran, mas ofereceu uma quantia muito alta ao Manuel Garcia que selou o casamento. Durante
esse período do matrimônio, Maria Malibran parou de cantar e o esposo faliu financeiramente, situação que
promoveu o processo de separação do casal.
Em 1826, Maria Malibran retorna à Europa e reinicia suas atividades enquanto cantora. No momento
ela conhece Chioacchino Rossini, que se torna um grande colaborador e amigo dela. É com a performance de
Maria Malibran nas óperas desse compositor que sua carreira ascende consideravelmente.
Quando Maria Malibran retorna para a Europa, ela ainda é casada com François Eugene Malibran, mas
matem um relacionamento com o violinista Charles de Beriót. Logo após à anulação do seu casamento, a
cantora casou-se com Beriót e deu à luz a dois filhos.
Dentre os compositores que se renderam aos talentos de Maria Malibran estão Gaetano Donizetti,
Vincenzo Bellini, Feliz Mendelssohn, Frédéric Chopin, Franz Liszt e Chioacchino Rossini. A extensão vocal
da cantora lírica em questão lhe garantia um intervalo vocal confortável para cantar árias para contralto, bem
como para soprano coloratura.
Atualmente, a ópera contemporânea está focada na razão, no mental. Jocy de Oliveira inova, focando sua
arte na emoção. Em As Malibrans, a personagem é criada a partir do som, mas a serviço de uma interpretação,
por isso há uma nova concepção da cena, que possibilita ao expectador uma nova experiência escutatória e
uma nova relação entre cena e plateia. Para esta linha operística, a música é uma linguagem e a cena é outra
linguagem e o que possibilita ao expectador o envolvimento é a união dessas linguagens distintas a serviço da
arte.
Alguns vídeos foram feitos sobre a ópera em questão, para representarem as passagens das vidas das
divas na arte. Um deles foi gravado na Colônia Juliano Moreira, um centro de tratamento para pacientes
mentais, em que foi possível a encenação deles juntamente com os atores/cantores. Já o outro foi gravado com
a Fernanda Montenegro, e foi inspirado na obra The Carpathian Castle (O Castelo dos Cárpatos), de Jules
Verne e na vida de Maria Malibran, mostrando a união das ideias que a ópera deseja: o da diva gótica (ficção)
e o de Maria Malibran (cuja vida parece uma ficção).
Essa peça multimidiática traz tais ideias de forma fragmentada e a estruturação operística proposta por
Jocy de Oliveira permite ao espectador a compreensão da obra. Compreensão esta motivada pela imaginação

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do espectador e seu próprio sonho, pois fazem ressurgir essencialmente fontes do imaginário da plateia. A
linguagem sonora consegue concretizar o fantástico da obra de Verne, como em Wagner, quando a orquestração
assume função de narrador, (des)contextualizando o enredo.
Para compreender essa relação posta com o compositor alemão Richard Wagner é importante saber
sobre Gesamtkunstwerk (obra de arte total). Para ele, a composição operística era o lugar do diálogo entre as
linguagens da arte e a ópera configurava-se, já naquela época, na forma mais complexa de encenação, não
envolvendo somente o teatro e a música. No século XIX, o Richard Wagner compunha com o pressuposto de
que a obra de arte tinha que ser total, deveria englobar além da música e das artes cênicas, as artes plásticas e a
dança, numa tentativa de aproximação ao real, vertente vigente desde a tragédia grega (OLIVEIRA, 2012).
Analisando a obra do compositor alemão em questão, percebemos que se incluirmos a eletroacústica
às características de seu estilo, deparamo-nos com o estilo da compositora brasileira Jocy de Oliveira, quem
também vê a ópera como uma ferramenta de diálogo entre as várias linguagens artísticas.
Também como Wagner, Jocy de Oliveira é responsável por cada parte do processo criativo e de produção
das suas montagens. É ela quem roteiriza, escreve a linha dos cantores, as falas dos atores, a grade musical,
pensa o figurino e o cenário, as montagens eletroacústicas; produz e dirige o espetáculo. Pensando, assim, cada
parte da peça operística ela garante a totalidade da sua obra de arte moderna e contemporânea.
Carlos Eduardo Amaral, crítico de música clássica, apresenta As Malibrans como a terça parte “de uma
trilogia focada nos valores e no universo simbólico da mulher” (AMARAL, 2009). As ópera dessa trilogia citada
por Amaral são Inori – A Prostituta Sagrada, Illud Tempus e, por fim, o corpus deste estudo, As Malibrans.
Essa trilogia, composta entre os anos 90 e a primeira metade dos anos 2000, marca uma transição
entre o ritual, o onírico e o mítico, aspectos em torno dos quais giram as óperas dos anos 80, e
o reivindicatório, já que “Kseni – A Estrangeira” [outra ópera com a mesma temática] é também
uma alegoria de contestação da excludência atual infligida pelos países desenvolvidos em diversos
setores –alegoria que parafraseia o mito de Medeia (AMARAL, 2009).

Esse crítico musical afirma que os elementos rituais são mais fortes em Inori – A Prostituta Sagrada,
pois resgata a figura antiga da mulher iniciadora de homens na vida sexual, figura comum nas sociedades
matriarcais. Na ópera Illud Tempus há a presença dos elementos oníricos. E personagens femininos que
marcaram a literatura e a ópera são marcas da peça musical As Malibrans.
Em entrevista concedida a Amaral (2009), Jocy de Oliveira revela que o cerne da trilogia mencionada acima
é o resgate de valores do feminino, por meio da atemporalidade dos mitos, contos de fadas e da personagem-
mulher na ópera e no teatro.
A ópera que este trabalho visa analisar foi encomenda pelo Darmstadt Staadt Theater (Alemanha), em
2000, e se inicia com um alter ego de Maria Malibran, que surge em meio a escuridão e desaparece ao mesmo
tempo em que uma fumaça a encobre, e se encerra com Maria Malibran suspensa no palco, amarrada por
cordas como uma marionete e suas dimensões ampliadas por um espelho.
Essa obra operística é dividida em seis partes e entre elas há monólogos de alter egos da personagem
Maria Malibran. As seis partes são: Ofélia presa nas cordas do piano, O mestre e a Diva, Morte de Desdemona,
Sons do sacrifício de Ephigenia, Fanfarra Fúnebre e Naked Diva. O DVD da ópera (84 min 37 seg ), gravado
em 2000-2001, teve a seguinte ficha técnica: Sopranos: Kátia Guedes e Doriana Mendes; Tenor: Ronaldo
Victorio; Atrizes : Helena Varvaki / Malu Galli; Cello: Eduardo Menezes e Peter Schuback; Clarone : Paulo
Passos; Oboe: Ricardo Rodrigues e Leonardo Fuks; Piano e percussão: Jocy de Oliveira; Produzido por  Spectra
Produções.
A narrativa operística trata da vida de Maria Malibran e de personagens femininas de óperas que, como a
cantora lírica, tiveram uma vida trágica na sua relação com a sociedade e com a figura paterna. O título da peça
As Malibrans propõe exatamente essa reflexão, objetivo da narrativa da ópera, o arquétipo feminino diante do

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voyeurismo masculino. As Divas trazidas em cena foram Ofélia, de Hamlet, Maria García, nome de batismo
de Maria Malibran e Iphigenia, de Iphigenia in Taurid.
Carlos Eduardo Amaral (2000), crítico de música clássica e colaborador da Revista Trópico, na oportu­
nidade da apresentação da ópera As Malibrans entrevista a compositora sobre o fio condutor das óperas, seja
na trilogia ou entre todas as óperas de Jocy de Oliveira.
[Revista Trópico] Qual é o fio condutor, se ele existe, que une todas as suas óperas? O que
transcende o fato de todas elas se centrarem na figura de uma mulher?
Jocy: Procuro um momento de intuição poética, um momento de verdadeira cumplicidade entre
artistas e com a audiência, um momento que nossa percepção de tempo e espaço se expanda e
mergulhe no nosso interior. Absorver o tempo em sua essência não estruturada torna-se uma das
questões primordiais na minha música. Isto me leva a trabalhar com a visão atemporal dos mitos
(AMARAL, 2000).

Sendo assim, percebemos que mesmo sendo o universo feminino o assunto de todas as narrativas, é a
atemporalidade e a expansão do espaço a preocupação da brasileira. E esse traço é perceptível no corpus deste
trabalho, pois quando os alter egos de Malibran se revelam nos “entreatos”, eles possibilitam essa cumplicidade
entre artistas e audiência.
A obra inicia com uma personagem feminina no palco, vestida de vermelho e o foco da câmera está na sua
boca aberta. Essa imagem parece pertencer a uma mulher com mais idade do que a que está em cena possui.
O cenário é escuro e vazio. Em cena se encontra somente a personagem que logo é encoberta por uma fumaça
branca e desaparece.
A cena seguinte constitui-se por monólogos de dois alter egos da personagem Maria Malibran, interpretados
por Fernanda Montenegro. O primeiro alter ego está vestido como uma das personagens que Maria Malibran
interpretou, com uma maquiagem pesada e cabelos pesados. Essa personagem revela as sensações que teve
todas as vezes que subia ao palco: “Era como se ele desejasse roubar minha voz”.
Esse monólogo é entrecortado pelo da personagem sem maquiagem, sem cabelo montado, lúcida, de cara
limpa. Por sua vez, a fala dessa personagem representada pela mesma atriz do “alter ego produzido”, é carregada
de informações que possibilitarão ao espectador atento entender e acompanhar as cenas que se seguirão.
O “alter ego lúcido” de Maria Malibran analisa sua própria vida, como podemos perceber quando ela
revela que o cabelo e a maquiagem pesada encobriam a ferida que rasgava seu rosto. Nessa dinâmina, de
monólogos entrecortados, os alter egos de Malibran darão o material emotivo e factual de sua biografia. A
angústia que sentiu ao subir no palco pela última vez, o casamento, o domínio que o pai exercia sobre ela, a
catalepsia e o desejo, como o deu um vampiro, que o pai nutre por ela.
A cena seguinte, Ofélia presa nas cordas do piano, é muito significativa. Estão em cena um piano e uma
mulher que, no plano baixo, representa a angústia de Ofélia presa nas cordas do piano. Ao desenvolver a
cena, uma segunda mulher interage com a primeira, sempre intercalando planos, entre alto e baixo. Ambas
representam a Ofélia de Hamlet, que fica louca após perder o pai. As ações são as mesmas, mas espelhadas em
planos opostos. O piano, instrumento musical, é o elemento que elencará a loucura de Ofélia à loucura da
diva musical.
O Mestre e a Diva é a próxima cena. Há em cenas instrumentistas e cantores. O piano continua no palco.
Agora, são três as mulheres no palco e todas elas estão no plano baixo como que escondidas pelo piano. Tão
logo a cena começa, um homem surge e “descobre” as mulheres. O ar imponente da personagem masculina é
característica do pai de Maria Malibran, o Sr. Manuel García.
Historicamente, sabe-se que o professor de música e pai Manuel García foi muito rígido com a educação
musical das duas filhas, Maria Felicia García Sitches e Pauline Viardot-García. Pela qualidade musical, o
cuidado com a primeira chegou ao estágio de confiná-la para que ela não cantasse para mais ninguém. Também
é fato que Manuel García ameaçava Maria Malibran com faca para que a voz dela não falhasse ou não lhe
proporcionasse prazer.

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Retomando a ópera, a cena de O Mestre e a Diva tem como pano de fundo a imagem de uma mulher,
outra representação de Maria Malibran, cavalgando. Esse fundo é mais um diálogo com a biografia da cantora,
pois sua morte foi provocada por um agravamento de sequelas não cuidadas da queda de um equino.
As três mulheres em cena são alter egos da cantora lírica e representam a filha, a cantora e a mulher, todas
elas objetos de desejo do pai. Percebemos essa relação pela dinâmica da cena produzida pelas reações das
personagens femininas em detrimento das do personagem imponente. É possível notar que um alter ego, a que
representa a filha, é mais inocente, submissa e dócil com o personagem masculino.
O alter ego que representa a cantora é mais agressiva, tem constantes explosões nos diálogos com o
personagem professor e diretor musical. Já a representação que aflora a feminilidade da mulher Maria Malibran
é sensual e se insinua para o personagem masculino, que responde às investidas positivamente.
Uma linha dos cantores que se repete muito para os alter egos é “Não me mate, papai!” e como resposta
do personagem “Sim!”. Esse diálogo pode ser lido para todas as representações de Maria Malibran nessa cena.
O confinamento a que o pai obrigou a filha é uma morte artística, o desejo físico incestuoso é uma morte física
e, por fim, a não figura da proteção paterna é uma morte da alma.
A cena se encerra com o personagem masculino mordendo o pescoço dos alter egos e logo em seguida
dançando com elas. Essa ação personifica a fala da “personagem-produzida” no “entreato” anterior: “Foi naquela
noite [última récita, a despedida dela dos palcos], seu olhar penetrou meu corpo como um vampiro”.
O próximo “entreato” revela os desejos, emoções e angústias da cantora, pela “personagem-produzida” e pela
“personagem-lúcida”, por meio de monólogos novamente. Elas revelam que a única intenção do pai era a ópera
e, por isso, desejava tanto roubar-lhe a voz. Que na ocasião de interpretarem Otelo, quando eles dividiam palco
como Otelo e Desdemona, ele a ameaçava de morte se a voz dela falhasse ou não proporcionasse a ele prazer.
A “personagem-produzida” relata, que nessa apresentação, tentou em vão cantar, mas da sua boca só
jorrava sangue, mais uma marca da morte, sofrimento e violência que a cantora sofreu. Outra violência ligada
à vida de Maria Malibran está ligada aos abortos, revelação feita pela “personagem-lúcida”, pois a vida de artista
não permitia a maternidade.
Mais uma vez a analogia ao vampiro é feita. A “personagem-produzida” chama o pai de diabólico, pois
aprisiona sua voz, imagem e alma e as confina ao seu castelo na Transilvânia. E a “personagem-lúcida” encerra
dizendo que seu corpo foi enterrado e desenterrado várias vezes, que para mim elucida os vários renascimentos
necessários após as violências sofridas contra a voz, imagem e alma.
Encadeada a essa representação, primeiro, segundo e terceiro planos se confundem com a imagem da
mulher cavalgando, uma atriz no palco correndo as personagens do “entreato”.
A próxima cena é Morte de Desdemona. Estão palco duas cantoras com uma almofadas cada uma e um
homem. Estes cantores representam as Desdemonas e o Otelo. A frase motivo da cena é “She said and died”
que traduz o clímax da narrativa da ópera Otelo, a mulher que é tida como traidora sem direito a defesa.
Na sequência, temos outra dramatização do tema morte com Sons do Sacrifício de Iphigenia. A personagem
Iphigenia é, tradicionalmente, símbolo de autosacrifício feminino e aborta outro aspecto do universo feminino,
a mulher que se entrega a funções, a posição e a condições para um bem coletivo, comumente masculino, seja
na família, na sociedade ou no meio profissional.
Há, posteriormente a essa cena, outro “entreato” com as personagens que representam a pessoa Maria
Malibran e não seus personagens ou divas outras. Comitante ao final da cena passada, uma cascata de planos
acontece com a atuação da “personagem-produzida” e da “personagem-lúcida” e as imagens sobrepostas de um
grupo de internos de uma clínica de tratamento psicológico e a mulher de vermelho que iniciou o espetáculo.
Nessa performance, um dos alter egos de Maria Malibran relata sobre um homem que a amou de verdade e
que reconhecia sua voz e foi quem possibilitou que ela revivesse mais uma vez e tivesse sua voz libertada do
confinamento.

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Nesse momento da ópera, a “personagem-lúcida” revela que quando interpreta uma personagem que se
comporta como ela e sente como se fosse perseguida. O outro alter ego diz que sua voz e sua imagem foram
eternizadas pelo seu pai, mas só para ele. Essa relação de informações do “entreato” me possibilita uma leitura
de prenúncio de morte e de autoafirmação de que a cantora Maria Malibran foi uma criação do professor, pai
e cantor Manoel García.
Minha leitura pode ser corroborada pela cena que sequencia o “entreato”, a Fanfarra Fúnebre. Duas
cantoras contracenam e dialogam corporalmente durante a cena, dispondo-se no palco como em uma marcha
fúnebre. Cada uma delas corta seu próprio cabelo como uma referência à automutilação, às experiências que
promovem dor e violência a si próprias.
Assim que elas saem de cena, inicia-se Naked Diva. Essa é o último momento da ópera e nela há uma
única cantora em cena. A personagem encontra-se a uma determinada altura do chão, com cordas amarradas a
seu corpo e seu rosto ampliado por espelhos. Ela veste-se na cor vermelha e o cenário é escuro e vazio.
Analiso a última cena como uma retomada à primeira personificação da ópera, a mulher de vermelho que
sofre e pode ser várias. Das inúmeras possibilidades de violência, mas da unicidade vida. Que a cada situação,
a máscara leva-nos a performatizar outro que não nós, mas não há como fugir à realidade única da existência.
Para retornar à condição do universo feminino diante ao voyeurismo masculino, penso a última cena como as
amarras de uma cultura que perdura controlada pelas cordas da moral e dos bons costumes de uma sociedade
hipócrita, erótica e castratória que se diz moderna, mas ainda se comporta e exige dos outros um atitude
patriarcal.
Com relação à linguagem, além da musical, cênica, eletroacústica, Jocy de Oliveira escreve a linha dos
cantores usando-se do português, espanhol, italiano, alemão e inglês. Em entrevista, a compositora respondeu
sobre as influências estéticas para sua linguagem composicional:
Em geral, na minha obra, a escolha do material sonoro soma elementos de minha experiência
musical e de vida. Assim, minha impressão de um “sadhu” (homem santo) cantando um raga
a Shiva num templo de Delhi é tão importante quanto a reminiscência de um contraponto
renascentista, uma cantilena, o uso de sons gerados por computador ou a herança de anos e anos
tocando as obras pianísticas de Messiaen e vivenciando sua nova noção do tempo, assim como o
acaso na obra de John Cage ou a voz primordial na obra de Luciano Berio...
Este tecido sonoro pode se desenvolver de séries múltiplas, nuvens de sons em constante
transformação de texturas, um tala, a tradição pós-serialista europeia, a não periodicidade oriental,
a atemporalidade da natureza, o acaso, ou nossas raízes culturais antropofágicas. É a integração de
todos os elementos e minha visão do mundo que tomam a forma de mais de 30 anos de vida em
diferentes países e de convívio com alguns mestres do século 20 (AMARAL, 2009).

Assim, Jocy de Oliveira explicita que sua forma de expressão é um conglomerado de experiência pessoal,
profissional, política e emocional. Como também é a nossa leitura e recepção da ópera multimidiática, sem
delimitação temporal e espacial, num diálogo intrínseco entre obra, intérpretes, compositora e audiência.

Referências
AMARAL, Carlos Eduardo. A operista multimídia. Revista Trópico. São Paulo. Disponível em: <AMARAL
http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/3060,2.shl>. Acesso em: 1 out. 2013.
OLIVEIRA, Aline Carrijo de. Ocorrências entre literatura e música na lenda Tristão e Isolda e na ópera homônima
de Richard Wagner. 2012. 121 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras e Linguística,
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2012.
OLIVEIRA, Jocy de. Jocy de Oliveira. Disponível em:<http://www.jocydeoliveira.com>. Acesso em: 1 out.
2013.
OLIVEIRA, Jocy de. As Malibrans. Coleção Jocy de Oliveira. Rio de Janeiro. Jocy de Oliveira, 2000.

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Meninas fora da ciranda: gênero e abjeção
em Lygia Fagundes Telles e Margaret Atwood

COPATI, Guilherme (UFSJ/IF SUDESTE MG)


jbcopati@yahoo.com.br
LAGUARDIA, Adelaine (UFSJ)
adelaine@ufsj.edu.br

RESUMO A abjeção é um recurso narrativo central ao gótico, um gênero que lida com toda ordem de pertur-
bações, terrores, purezas e ambiguidades para questionar o poder de amarras culturais. É, ainda, um
processo central à constituição e interrelação de identidades de gênero, sendo compreendida como
a exclusão de identidades que desafiam a inteligibilidade heterossexual e os imperativos culturais
que ditam a construção da feminidade e suas representações. A análise de dois romances góticos,
Cat’s Eye, da escritora canadense Margaret Atwood, e Ciranda de Pedra, da escritora brasileira Lygia
Fagundes Telles, objetiva discutir figurações da abjeção na ficção gótica e abordar o funcionamento
de tal processo na performatividade de identidades femininas que desafiam e subvertem imagens
culturalmente compartilhadas de feminidade.
Palavras-chave: abjeção, gênero, gótico, Margaret Atwood, Lygia Fagundes Telles.

ABSTRACT Abjection is a central narrative resource in gothic fiction, a genre which deals with disturbance, terror,
cleanliness and ambiguity in order to question the power of cultural constraints. It is also a central pro-
cess in the constitution and interrelation of gender identities, being understood as a preclusion of identi-
ties which defy the intelligibility of heterosexuality and cultural imperatives that dictate femininity and
its representation. The analysis of two novels written in the gothic mode, Cat’s Eye,, by Canadian writer
Margaret Atwood, and Ciranda de Pedra,, by Lygia Fagundes Telles, a Brazilian writer, aims at discussing
figurations of abjection in gothic fiction and at approaching the operation of such process in the perfor-
mance of female identities that challenge and subvert culturally shared images of femininity.
Keywords: abjection, gender, gothic, Margaret Atwood, Lygia Fagundes Telles.

Quando se toma o gênero gótico para análise, reconhecendo-se suas complexidades temáticas, construtivas
e teóricas, observa-se que a abjeção é um processo obsessivamente encenado em suas narrativas, em especial
naquelas escritas por mulheres e virtualmente direcionadas a um público leitor feminino. Tratando-se de um
gênero povoado por imagens essencialmente abjetas, como descritas por Julia Kristeva em Powers of horror
(1982), bem como um gênero interessado em explorar os diversos modos pelos quais projetamos nossas
complexidades sobre tais figuras a fim de atender aos imperativos de organização de identidades coerentes
e imutáveis, o gótico se apresenta como pórtico de imagens espectrais, monstruosas e duplicadas, as quais
figuram como metáforas para profundos conflitos psíquicos e culturais.
Ao lidar com os poderes da abjeção e com a centralidade desta à estruturação de oposições binárias que
regulam as sociedades ocidentais, o gótico oferece uma visão crítica que revela a fragilidade e meleabilidade de
tais oposições. Pois, se a abjeção é “aquilo que desestabiliza a identidade, a ordem, o sistema [...], o entrelugar,
o ambíguo e o composto”1 (KRISTEVA, op. cit., p. 04, tradução nossa), seu potencial de subversão e implosão

1. No original: “[abjection is] what disturbs identity, system, order […] the in-between, the ambiguous, the composite.”

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de identidades estáveis sugere um caminho apropriado à discussão sobre os perigos implicados em quaisquer
tentativas de convencionar identidades inalteráveis e fixas.
A abjeção tem sido apontada como elemento estruturador do gótico (WILLIAMS, 1995; HOGLE,
2002), já que, em especial sob a ótica dos estudos de gênero, a narrativa gótica pode ser compreendida como
um estudo sobre o modo como a construção de identidades convencionais depende da exclusão de traços que
ameacem a pureza e a coerência do sujeito e dos regimes de poder no interior dos quais ele se converte em foco
de produção de significados. Entretanto, é também, e principalmente, no interior do campo dos estudos queer
que a abjeção é compreendida em seu caráter coercivo e normalizador, implicado na injúria contra identidades
não-heterossexuais e na formulação de ideais de masculinidade e feminilidade centrados em concepções
unívocas, presentes nos discursos da doxa (MISKOLCI, 2012). Segundo os estudos queer, é a partir das ideias
de poluição e impureza, implícitas no modo como identidades não-heterossexuais são assimiladas no campo
da cultura, bem como da ameaça de retaliação e purificação, que se observam os processos de violência que
deflagram a construção do gênero em termos de posicionamentos complexos no interior da cultura.
Por isso, não se pode compreender a abjeção apenas no nível denotativo, conforme delineado nas reflexões
sobre a pureza e a poluição que Mary Douglas desenvolve em Purity and danger (2001), isto é, não se pode
tomá-la apenas como o esforço de ordenação e limpeza que caracteriza as sociedades primitivas e estabelece os
parâmetros para o desenvolvimento de tabus ligados ás funções fisiológicas do corpo. A poluição é também uma
metáfora para o exercício do poder e para o reforço de padrões morais e ideias culturalmente compartilhadas
sobre gênero. É por meio de metáforas de poluição, degradação e perigo que os padrões culturais pertencentes
a um determinado grupo são reforçados em um nível simbólico. Esse é um aspecto a ser considerado quando se
pretende correlacionar a abjeção ao gótico e a políticas queer de gênero, conforme discutidas por Eve Kosofsky
Sedgwick (1990) e Judith Butler (1990; 1993).
Os primeiros posicionamentos críticos no interior dos estudos feministas tenderam a ignorar a distinção
entre sexo e gênero, optando por compreender o gênero como consequência imediata do dimorfismo genital.
Em um primeiro momento, o feminino foi compreendido como uma condição perpétua de alteridade
(BEAUVOIR, 1956), ou como um fardo inescapável. Nesse sentido, tal aspecto deveria ser expresso pela
genitália, cujo poder consistia em determinar quais funções biológicas e sociais o indivíduo do sexo feminino
deveria assumir e performatizar (FIRESTONE, 1972). Sob esse ponto de vista, o feminino era tomado como
um produto de funções morfológicas, ligadas à menstruação, ao parto e à amamentação, constituindo-se como
fator de opressão das mulheres e sujeição a uma vida abnegada e restrita ao espaço doméstico.
À medida que o feminismo desenvolveu um corpo teórico mais sofisticado, o conceito de gênero foi
reelaborado de modo a marcar a distinção entre limites morfológicos e imperativos culturais. Essa segunda
onda do pensamento feminista defende que o gênero é uma construção cultural superposta à realidade biológica
apriorística do sexo. Sob esse ponto de vista, o gênero seria um conjunto de traços estáveis, culturalmente
negociados e significados por meio de consensos que possibilitariam a distinção entre a mulher e o homem.
Tal diferença residiria no poder masculino de estreitar laços familiares a partir do tráfico de mulheres
(RUBIN, 2004). A consequente estruturação de uma sociedade homossocial, na qual há a supervalorização da
heterossexualidade masculina em detrimento da opressão das mulheres, surgiria como resultado da complexa
construção de “sistemas de sexo/gênero”, os quais posicionam homens e mulheres em locais hierarquicamente
diferenciados em termos de poder e agência.
Segundo essa concepção, o imperativo biológico do sexo ainda seria eleito para justificar a construção de
identidades de gênero, como uma matriz preexistente aos imperativos culturais e que, dessa forma, pudesse
escapar às desconstruções teóricas operadas pelos estudos feministas. Os influentes, porém controversos, estudos
de Judith Butler (op. cit.) ofereceram, ao final dos anos 80, uma visão alternativa quanto à operação do gênero
na sociedade, ao propor uma radical indistinção entre sexo e gênero no sentido de que ambos só receberiam
significação – e uma consequente, porém inaplicável, diferenciação – no interior dos discursos culturais. Butler
argumenta que o gênero é construído por meio de atos performativos que se repetem em todas as instâncias
onde operam demandas culturais. A iteração de tais discursos serve, assim, para naturalizar a contigüidade

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entre sexo e gênero e conferir centralidade às identidades heterossexuais, ao passo que identidades desviantes
são transformadas em abjetas.

Assim, Butler argumenta que o gênero não apenas é performativo, mas também engendra a abjeção
de quaisquer traços que não se adéquam a concepções culturalmente sancionadas de identidade. Portanto,
as identidades de gênero somente se tornam inteligíveis quando atendem a tais concepções, convertendo-se
em abjetas quando desafiam sua coerência interna, evidenciando sua fragilidade e desafiando seu clamor por
uma estabilidade irrevogável. As identidades homossexuais, por exemplo, são consideradas abjetas uma vez
que explicitam a operação de demandas culturais que conferem centralidade à heterossexualidade. Como
consequência, percebe-se que a homossexualidade tem sido construída como local de impureza e doença, de
transgressão e punição, e como alvo de violentas respostas homofóbicas (SEDGWICK, op. cit.).

Embora seja uma dinâmica claramente envolvida no conflito entre identidades heterossexuais e não-
heterossexuais, a abjeção também opera no interior do espectro mais restrito de identidades femininas, de
modo a engendrar hierarquias de poder entre as próprias mulheres. Considerando-se que, em um primeiro
momento, o subgênero denominado “gótico feminino” (MOERS, 1985) apresentou histórias nas quais
uma mulher é invariavelmente aterrorizada por um vilão inescrupuloso, pela sombra da maternidade e pela
ausência da figura materna, as narrativas góticas produzidas por mulheres, especialmente de meados do
século vinte em diante, encenaram conflitos envolvendo mulheres em suas relações com outras personagens
femininas. A reconfiguração da abjeção em tais narrativas contribui para realçar as complexidades no interior
do próprio feminismo, as quais se tornaram claras à medida que o significado do termo “mulher” provou-se
múltiplo, complexo e instável, e que o sujeito do feminismo mostrou-se variável em função de recortes teóricos
diversificados (RICHARDS, 2002). Enquanto um efeito atrelado a quaisquer identidades de gênero, a abjeção
se apresenta como um elemento que estrutura fortemente as narrativas do gótico feminino contemporâneo,
centradas em conflitos envolvendo mulheres. Nesse sentido, os romances Cat’s eye, de Margaret Atwood (1989),
e Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles (1998), metaforizam a ação da abjeção ao transpô-la para relações
interpessoais anormais e estranhas.

Cat’s eye é narrado por Elaine Risley, uma pintora residente em Vancouver, que retorna à cidade natal
de Toronto para uma exibição de suas pinturas. Seu retorno após anos afastada reaviva memórias de uma
infância problemática, um período de sua vida em que ela estivera em constante trânsito para seguir seu pai,
um entomologista, em expedições às mais remotas e perigosas regiões do interior de Toronto. Aos oito anos
de idade, sua família estabelece residência na cidade e ela se torna amiga de um grupo de três garotas, Carol,
Grace e Cordelia. Dentre as lembranças que ela mantém das três meninas, são as memórias de Cordelia que
continuamente assombram Elaine, especialmente por ter sido ela a líder em assediar física e psicologicamente
a narradora.

O fantasma de Cordelia funciona como metáfora para os perigos do passado, para a memória e para
a abjeção que perpassam a narrativa, e gradualmente emerge como local para onde Elaine projeta suas
preocupações ligadas à velhice e à decadência física. Conforme a narradora afirma ao início de sua narrativa,
quando Cordelia e ela, ainda adolescentes, experienciam um despertar para a feminilidade,
Nos bondes sempre há senhoras velhas, ou elas se parecem velhas para nós [...], há aquelas que
não se entregaram, que ainda tentam um efeito de glamour [...]. Elas escaparam, embora do que
é que elas escaparam não está claro para nós. Nós achamos que suas roupas bizarras, seus tiques
verbais, são escolhidos, e que virá o tempo em que nós também seremos livres para escolher
(ATWOOD, op. cit., p. 4-5, tradução nossa).2

Enquanto criança, Cordelia fora atraída pela abjeção e seus poderes, o que a levava a observar de perto
senhoras idosas e identificar nelas a passagem do tempo. Cordelia era, também, atraída por toda sorte de

2. No original: “[o]n the streetcars there are always old ladies, or we think of them as old […], there are the ones who have not resigned
themselves, who still try for an effect of glamour […]. They have escaped, though what it is they’ve escaped from isn’t clear to us. We
think that their bizarre costumes, their verbal tics, are chosen, and that when the time comes we also will be free to choose”.

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dejetos e excrementos corporais que ela pudesse examinar. Imagens repugnantes e grotescas a atraíam na
medida em que revelavam os limites do corpo saudável e apontavam a existência de imperativos culturais,
exercidos sobre imagens compartilhadas de feminilidade. As observações de Cordelia sobre as estratégias que
as mulheres mais velhas exploram para parecer mais jovens e belas marcam seus primeiros contatos com o
processo de tornar-se uma mulher, no sentido de performatizar convenções, aceitar imposições e produzir
um corpo feminino tornado normal e inteligível por meio de normas discursivas que ditam a construção da
feminilidade em termos de imperativos de beleza e juventude.
Por sua vez, Elaine jamais se apercebera de tais imperativos, sendo uma personagem errante, habitante de
tendas no interior das matas, de moteis ou da van da família. Sua visão infantil sobre o que significava ser uma
garota mesclava-se a seu comportamento e aparência masculinizados, produzindo uma identidade feminina
anormal, que desafia padrões culturais de feminilidade. Ao descrever a si própria como uma menina de oito anos
de idade, ela afirma: “Estou usando calças folgadas nos joelhos, e uma jaqueta muito curta nas mangas. Sob a
jaqueta, eu sei, embora não possa ver, que há um colete de listras marrons e amarelas, de segunda mão, do meu
irmão. Muitas das minhas roupas eram antes dele”3 (ATWOOD, op. cit., p. 28, tradução nossa). A metáfora
das roupas do irmão mais velho sugere o modo como Elaine tem seu próprio corpo transformado em um alvo
de discursos performativos que contradizem a estabilidade do feminino, de forma a ser compreendido como
local de abjeção onde as convenções que ditam as identidades de gênero são desconstruídas e rejeitadas.
Elaine deseja ardentemente a companhia feminina, compreendendo as garotas ao seu redor como
identidades alienígenas, portadoras de mistérios e significados ocultos. Entretanto, tão logo é matriculada na
escola regular e encontra “garotas de verdade”, ela experiencia a estranheza de ter que lidar com as regras que
compõem o feminino:
Agora estou entre as garotas, garotas de verdade enfim, de carne e osso. Mas eu não estou
habituada às garotas e pouco familiarizada com seus costumes. Sinto-me estranha entre elas. Não
sei o que dizer. Eu conheço as regras implícitas dos garotos, mas com garotas eu sinto que estou
sempre a ponto de cometer um engano calamitoso e inesperado (ATWOOD, op. cit., p.  50,
tradução nossa)4.

Elaine é vista por seus observadores como alguém exótico, cuja família se afasta das normas de civilidade.
Como eles dormem em colchões no chão, não aderem às novidades tecnológicas domésticas, como seu pai
trabalha em contato com o grotesco do mundo animal, como ela mesma tem apenas dois vestidos e jamais
está certa sobre quais garotos da escola a amam, ela está situada sobre a corda bamba da abjeção e da diferença.
Cordelia transforma-se em seu pior algoz, aquela que gradualmente a controla, ameaça e isola do quarteto de
amigas, até alcançar transformá-la em um corpo estranho, a ser observado, isolado e excluído.
O desenvolvimento teórico do feminismo já demonstrou que distinções hierárquicas operam não apenas
no interior do patriarcado, mas também no campo complexo do feminismo. As mulheres estão engajadas
em disputas por poder umas contra as outras e são posicionadas por discursos regulatórios em disputas pela
maior ou menos validação de suas demandas particulares. Uma relação hierárquica entre Elaine e as outras três
garotas, em especial Cordelia, é então estruturada, relação essa na qual Elaine é diminuída e assediada.
Grace está lá me esperando, e Carol, e especialmente Cordelia. Assim que saio de casa, não há
como escapar delas. Elas estão no ônibus escolar, onde Cordelia se aproxima de mim e sussurra
no meu ouvido: “Ajeite-se! As pessoas estão olhando”. [...] Elas estão lá no recreio e na cantina
durante o almoço. Elas comentam sobre a minha comida, sobre o modo como eu seguro o meu
sanduíche, ou como mastigo. No caminho para casa, eu tenho que caminhar em frente a elas,
ou atrás. Em frente é pior, porque elas comentam sobre o modo como eu caminho, ou como

3. No original: I’m wearing pants, baggy at the knees, and a jacket too short in the sleeves. Under the jacket, I know though you can’t
see it, is a hand-me-down brown and yellow striped jersey of my brother’s. Many of my clothes were once his.
4. No original: I am left to the girls, real girls at last, in the flesh. But I’m not used to girls, or familiar with their customs. I feel
awkward around them. I don’t know what to say. I know the unspoken rules of boys, but with girls I sense that I am always on the
verge of some unforeseen, calamitous blunder.

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aparento se observada pelas costas. “Não ande encurvada”, diz Cordelia. “Não mexa seus braços
assim”. (ATWOOD, op. cit., p. 127, tradução nossa)5.

A abjeção é apresentada, aqui, à medida que as garotas excluem Elaine do círculo. O terrível engano que
ela sempre temera emerge daí, já que ela não é capaz de coadunar com o ideal de feminilidade do qual fazem
parte das demais garotas. O pior erro, contudo, aquele que a condenaria à perdição eterna, seria o de revelar o
jogo cruel da qual ela participa como vítima. O medo de ser irreversivelmente excluída a impede de narrar seu
sofrimento a outros, provocando nela o terror da abjeção. Já que o gótico é a literatura do terror (PUNTER,
1996), a história narrada por Elaine pode ser compreendida como um aterrorizante conto sobre os efeitos
destrutivos das demandas culturais que ditam identidades de gênero e domesticam os corpos (FOUCAULT,
2007). Tal história é, também, uma narrativa de terror, na medida em que as percepções da protagonista sobre
arte e beleza serão plenamente influenciadas por seus traumas de infância, os quais serão traduzidos em sua
falta de autoconfiança enquanto adulta e na pintura de imagens convulsas e surreais, elaboradas como efeitos
de suas lembranças problemáticas e como um meio de aceitar seu passado assustador.
O romance gótico Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles, apresenta uma personagem feminina
semelhante, a qual experimenta a abjeção e a exclusão desde a infância. A protagonista, Virginia, é descrita
como uma personagem que erra em busca de um lugar onde possa firmar raízes e fundar um ideal estável
de família. Experienciando a fragmentação e a loucura, a solidão e a deserção, a menina é assombrada pela
presença de sua mãe doente, que definha presa em um quarto escuro, e pela presença desdenhosa de seu pai,
Natércio, e de suas irmãs, Bruna e Otávia, que a dispensam e humilham, e insistem em excluí-la do círculo de
amigos e vizinhos que ela insiste em preservar.
Enquanto erra por entre lugares dominados pelos dilemas da idade adulta, Virginia carece de leveza e
autoconfiança enquanto criança. Ela lembra pungentemente a si mesma que ninguém a ama e, sendo incapaz
de eleger referências tanto entre as crianças quanto entre os adultos que a rodeiam, encontra expressão em
sonhos metamórficos, nos quais se vê transformada em animais pequenos e grotescos:
Deitou-se no assoalho e começou a se espojar angustiosamente, avançando de rastros até o
meio do quarto [...]. Ser cobra machucava os cotovelos, melhor ser borboleta. Mas quem ia ser
borboleta decerto era Otávia, que era linda. ‘E eu sou feia e ruim, ruim, ruim! (TELLES, op. cit.,
p. 09-10).

Virginia percebe sua identidade em constante comparação com a de suas irmãs, que ela acredita belas,
magníficas, dignas de atenção e privilegiadas por viverem em uma casa à parte, com o pai, enquanto ela é
forçada a aceitar a loucura de sua mãe e a presença de seu padrasto. Laura, a mãe, enlouqueceu por transgredir
convenções sociais rígidas, ainda significativas para a sociedade brasileira dos anos 50, conforme retratada no
romance de Telles. A mãe é desprezada por Bruna e Otávia por ter traído o pai e sua loucura é percebida pelas
filhas como castigo inescapável pela transgressão cometida. É essa rede de personagens femininas, composta
por sua mãe, irmãs e responsáveis, Frau Herta e Luciana, que provém os parâmetros para a performance da
identidade feminina de Virginia, identidade essa influenciada pela transgressão, abnegação e culpa.
Juntamente com Bruna e Otávia, três outras crianças, Letícia, Afonso e Conrado, o menino a quem
Virginia ama, contribuem para que ela se sinta desprezada e excluída. Esse grupo de crianças que trata Virginia
com indulgência, como se ela fosse uma criança exigente, porém indesejada, é simbolizado pelas estátuas de
anões que constituem a ciranda de pedra no jardim da casa de Natércio, local onde Virginia busca proteção
quando a deixam para trás.

5. No original: Grace is waiting there and Carol, and especially Cordelia. Once I’m outside the house there is no getting away from
them. They are on the school bus, where Cordelia stands close beside me and whispers into my ear: “Stand up straight! People are
looking!” Carol is in my classroom, and it’s her job to report to Cordelia what I do and say all day. They’re there at recess, and in the
cellar at lunchtime. They comment on the kind of lunch I have, how I hold my sandwich, how I chew. On the way home from school
I have to walk in front of them, or behind. In front is worse because they talk about how I’m walking, how I look from behind. “Don’t
hunch over,” says Cordelia. “Don’t move your arms like that.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Letícia animou-se: – Pois podemos tomar o lanche em casa, mamãe está recebendo algumas
amigas, vai ficar radiante de ver vocês [...]. Deixa Virginia vir também. – Bruna alisou as pregas
da saia do uniforme. – Mas a Fraulein já vem com o lanche, vai ficar aborrecida se não encontrar
ao menos... Você fica, hem, Virgínia. – Letícia teve um gesto, “Enfim, vocês é quem sabem”.
Observou-a com afetuoso interesse: “Ela continua não se parecendo nada com Otávia nem com
você”. Bruna teve um sorriso. “Virgínia não se parece com ninguém”.
Piscando, piscando num esforço desesperado para conter as lágrimas, Virgínia [...] transpôs a
ciranda de anões, sentou-se numa pedra e mergulhou os dedos num fio de água murmurante.
[…] “Por que não foi com eles?” – estranhou [Frau Herta]. “Porque eles não me quiseram”, disse
simplesmente. (TELLES, op. cit., p. 62-63).

Após experienciar tais episódios de rejeição, Virginia descobre que Natércio não é seu verdadeiro pai. O
verdadeiro, Daniel, que até então ela acreditava ser seu pai adotivo, suicidara-se após a morte de Laura. Tal
revelação desperta em Virginia o desejo de ingressar em um internato, onde ela passa a adolescência e de onde
retorna como uma adulta atraente e interessante, a qual todos desejam. Apesar disso, seu retorno à casa de sua
infância traz memórias dolorosas de uma infância abjeta.
Como uma mulher adulta, Virginia inicia um processo de revisão e reavaliação de seu passado, o que
culmina em tentativas de sedução de seus antigos algozes à medida que ela vivencia seu despertar sexual.
Como consequência, ela se submete à abjeção em níveis vários, em especial quando se envolve em atos sexuais
transgressores e questiona os limites do gênero por meio da homossexualidade e da negação identitária, que
a aproximam da loucura. Já que “sentia um prazer obscuro em ir passando de mão em mão” (TELLES,
op. cit., p. 144), Virginia tenta delimitar uma identidade de gênero para si própria, buscando se libertar
das amarras culturais que castram a sexualidade feminina e forçam a mulher a performatizar um papel de
gênero domesticado. Ao engajar-se em na homossexualidade, que é o derradeiro local onde opera a abjeção
(SEDGWICK, op. cit.), tanto quanto em outras atividades sexuais transgressoras, Virginia compreende o
quão provisórias são as resoluções culturalmente oferecidas ao gênero e encontra na errância que se refaz ao
longo da narrativa um modo de expurgar os medos e traumas que a amarram a um modelo preestabelecido de
feminilidade.
Tanto Margaret Atwood quanto Lygia Fagundes Telles refletem sobre a abjeção de modo a demonstrar
que ela é um processo central à constituição do sujeito e à regulação de identidades, sejam elas baseadas em
traços de gênero ou em outros aspectos que as compõem. Assim, duas ficcionistas aparentemente distantes
no tempo e no espaço podem ser aproximadas devido ao modo como descrevem o desenvolvimento de
identidades femininas e conferem especial atenção à infância como um momento da vida em que a abjeção
recebe maior ênfase, sendo direcionada à modelagem do jovem indivíduo em função de amarras sociais e
imperativos culturais.
As protagonistas despossuídas de Cat’s eye e Ciranda de pedra, Elaine e Virginia, disputam os contornos
do gênero e da feminilidade em sua relação com suas antagonistas, de modo a incorporar a sofisticação das
abordagens teóricas feministas quanto ao gênero e ao exercício do poder. Embora o poder não possa ser
reduzido à possibilidade de possessão de um objeto, devendo ser compreendido como uma rede rizomada de
discursos que regulam e domesticam os corpos para convertê-los em identidades culturalmente inteligíveis
(FOUCAULT, 2007; BUTLER, 1993), é importante notar que a diversidade de identidades femininas e a
complexidade de demandas provenientes dos diversos feminismos demonstram que as mulheres também são
posicionadas em instâncias hierárquicas distintas em relação a outras mulheres, e que a abjeção é uma dinâmica
central à operação de tais chamados culturais.
Como a abjeção é, também, um processo central à elaboração de enredos góticos, Atwood e Telles terminam
por contribuir grandemente para o gênero em questão, já que constroem suas narrativas como histórias nas
quais a abjeção é apresentada como fonte de terror e horror, rejeição e perda de referências. Os enredos góticos
frequentemente retratam o retorno metafórico do passado sobre o presente, sob a forma de um fantasma
(PUNTER, op. cit.). Ao exorcizar a presença maligna do passado e expurgar suas transgressões por meio de uma
errância incessante, ambas as protagonistas alcançam libertação e descobrem novas possibilidades identitárias.

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Embora o gótico não seja um gênero tradicional no Canadá ou no Brasil, Margaret Atwood e Lygia
Fagundes Telles mobilizam uma tradição transnacional e vislumbram novas possibilidades ao elaborar ficções
góticas particularmente nacionais. Seus escritos servem à compreensão de como a literatura cria conexões em
instâncias várias, refabulando gêneros e lendo a tradição a contrapelo. Entretanto, os complexos e controversos
romances aqui abordados negam-se a interpretações ou classificações únicas. Ao contrário, eles serviriam ao
propósito de assegurar que a literatura não conhece fronteiras, que o terror não conhece limites e que a abjeção
não conhece a delicadeza.

Referências
ATWOOD, Margaret. Cat’s eye. New York : Bantam Books, 1989.
BEAUVOIR, Simone. The second sex. H. M. Parshley (Trad.). Great Britain : Lowe and Brydone LTD.,
1956.
BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York : Routledge, 1993.
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York : Routledge, 1990.
DOUGLAS, Mary. Purity and danger. New York : Routledge, 2001.
FIRESTONE, Shulamith. The dialectic of sex: the case for feminist revolution. New York : Bantam Books,
1972.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. V. 1: A vontade de saber. José Augusto Guilhon Albuquerque e
Maria Thereza da Costa Albuquerque (Trads.). Rio de Janeiro : Graal, 2007.
HOGLE, Jerrold E. Introduction: the gothic in Western culture. In: The Cambridge companion to gothic
fiction. Cambridge : Cambridge University Press, 2002. p. 01-20.
KRISTEVA, Julia. Powers of horror: an essay on abjection. New York : Columbia University Press, 1982.
MISKOLCI, Richard. Teoria queer. Um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte : Autêntica, 2012.
MOERS, Ellen. Female gothic. In: Literary women: the great writers. New York : Oxford University Press,
1985. p. 90-98.
PUNTER, David. The literature of terror: a history of gothic fictions from 1765 to the present day. V. 1. The gothic
tradition. London : Longman, 1996.
RICHARDS, Nelly. Feminismo e desconstrução: novos desafios críticos. In: Intervenções críticas. Arte, cultura,
gênero e política. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2002. p. 156-172.
RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on a political economy of sex. In: RIVKIN, Julie; RYAN, Michael.
Literary theory: an anthology. Malden : Blackwell, 2004. p. 533-559.
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemology of the closet. Los Angeles : University of California Press, 1990.
WILLIAMS, Anne. Art of darkness: a poetics of gothic. Chicago : The University of Chicago Press, 1995.
TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de pedra. Rio de Janeiro : Rocco, 1998.

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Metáforas do olhar: o feminino em Gil Vicente

FREITAS, Amanda Lopes de (UFV)


amandaletras@yahoo.com.br

RESUMO Este trabalho tem como objetivo refletir sobre as construções do estereótipo feminino no teatro de
Gil Vicente, através das personagens Brísida Vaz e Inês Pereira, ambas das peças Auto da Barca do In-
ferno (1517) e Farsa de Inês Pereira (1523). Serão abordados aspectos da crítica feminista a partir dos
estudos de Badinter (1985,1993); Zolin (2009) e Butler (2010). A crítica feminista desenvolveu-se na
década de sessenta, tendo como eixo o resgate de obras escritas por mulheres e a interpretação lite-
rária sob a ótica do feminino e da experiência da mulher dentro de um contexto patriarcal e falocên-
trico. Neste sentido, o mito de Lilith é revisitado a fim de que possamos refletir sobre outra face da
representação feminina, que está ligada à ideia de independência e sagacidade, mas também pode
ser lida por um viés de dominação. Embora as personagens vicentinas se aproximem deste modelo,
elas são hábeis em desconstruí-lo por meio de uma crítica mordaz à sociedade quinhentista.
Palavras-chave: teatro do século XVI, Gil Vicente, crítica feminista.

RESUMEN Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre la construcción del estereotipo femenino en el teatro
de Gil Vicente a través de los personajes de Brísida Vaz e Inês Pereira en las obras Auto da Barca do
Inferno (1517) y Farsa de Inês Pereira (1523). Se abordarán aspectos de la crítica feminista a partir de
los estudios de Badinter (1985, 1993), Zolin (2009) y Butler (2010). La crítica feminista se desarrolló en la
década de los sesenta, teniendo como eje principal el rescate de las obras escritas por mujeres y su inter-
pretación literaria desde la óptica de lo femenino y de la experiencia de la mujer en un contexto patriar-
cal y falocéntrico. En este sentido, revisitamos el mito de Lilith, con el objetivo de poder reflexionar sobre
otro aspecto de la representación femenina relacionado a la idea de independencia y sagacidad, y que,
al mismo tiempo, puede leerse desde la perspectiva de la dominación. Aunque los personajes femeninos
vicentinos se acerquen a este modelo, son hábiles en deconstruirlo a través de una crítica mordaz a la
sociedad del siglo XVI.
Palabras-clave: teatro del siglo XVI, Gil Vicente, crítica feminista.

Introdução
Muitas são as personagens femininas retratadas no teatro de Gil Vicente; possivelmente mais de cem. Das
figuras femininas vicentinas, existem aquelas cuja adesão se dá ao universo do fantástico e do alegórico, como
é o caso de Eva em Breve Sumário da História de Deus (1527) ou das Fadas, no auto que leva o mesmo nome1.
Em Auto da Alma (1518), por exemplo, a personagem alma é construída a partir de aspectos atribuídos ao
feminino: o fascínio por bens materiais como joias e artefatos de luxo; a vaidade em função de uma “pretensa
beleza”. Há também personagens que pertencem ao campo do real, personagens “tipo”, responsáveis por traçar
o retrato da corte e sociedade portuguesa dos séculos XV e XVI: mães, filhas, amantes, alcoviteiras, ciganas,
profetizas, etc. Dentre elas destacam-se a profetiza Sibila Cassandra, da peça que leva o seu nome; a alcoviteira
Branca Gil, de Farsa do Velho da Horta (1512); Constança, a ama do Auto da Índia (1509); Mofina Mendes,
do Auto dos Mistérios da Virgem – mais conhecido por Auto de Mofina Mendes (1534). Este trabalho tem
porobjetivo analisar o estereótipo feminino de duas personagens provindas do real, Brísida Vaz e Inês Pereira –
personagens de Auto da Barca do Inferno (1517) e Farsa de Inês Pereira (1523) respectivamente.

1. Com relação ao Auto das Fadas, de Gil Vicente, não há indicação de data e local da representação.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Gil Vicente é um autor de transição entre a Idade Média e o Renascimento, embora possamos depreender
de sua obra mais aspectos particulares à Idade Média. De acordo com Cleonice Berardinelli (2012, p. 452):
[...] mais voltado para a tradição que para a modernidade, as unidades de tempo, lugar e ação
eram por ele desprezadas. Anos se passavam entre a primeira e a última cena; os personagens
transitavam de um lugar a outro.do céu à terra, e a ação abrangia várias ações, em vários planos
da realidade ou da alegoria.

Segundo o genealogista D. Antônio de Lima, Gil Vicente teria nascido em Guimarães. Recorre-se muitas
vezes a atribuição da idade do teatrólogo conforme a idade de muitas das suas personagens nas peças teatrais.
De acordo com Antônio Saraiva (2000, p.14), Gil Vicente teria nascido entre 1460 ou talvez 1465, durante
o reinado de Dom Afonso V, sendo um pouco mais velho que Dom João II. Pouco se sabe a respeito do
trabalho de Gil Vicente antes que este desse início a sua produção literária, datada de 1502, já como cortesão.
Há rumores de que houvesse sido frade ou mestre de retórica. De certo, Gil Vicente não só tinha uma cultura
escolar, como também se interessava por questões ligadas à teologia.
Gil Vicente era um artista da corte. Sua obra destinava-se a quem vivia na corte, ao público cortesão que
acompanhava o Rei em suas deslocações por meio de representações que traziam como cenário a vida cortesã
e também festividades e acontecimentos populares. Ninguém antes de Gil Vicente, salvo Garcia de Resende,
pode adquirir o título de escritor da corte, ainda mais sobre a proteção de D. Leonor de Lancastre – esposa de
Dom João II e irmã do Rei Dom Manuel:
Se é verdade que Gil Vicente se revela conservador em termos de estéticos (de nada valendo
tentar arrancá-lo à medievalidade a que pertence) é-o ainda muito mais sob o ponto de vista
moral e social. A sua defesa intransigente da ordem estabelecida constitui, no Portugal de
Quinhentos, um evidente protesto contra os tempos novos, sentidos como ameaça desordenadora
e descaracterizante. (BERNARDES, 2008, p. 16).

O teatro de Gil Vicente lança um olhar para o feminino na perspectiva de representar, por intermédio de
cada personagem feminina, metáforas nas quais se entrevê construções históricas e ideológicas. A identidade
da mulher ibérica do final da Idade Média é a da mulher oprimida por um modelo patriarcal e falocêntrico.
De acordo com Deleito y Piñuela (apud Maria João Dodman, s/a), embora o comportamento da mulher
espanhola já fosse de extrema reclusão, a mulher portuguesa a superava pois “...só saiam de casa três vezes na
vida: no dia do baptismo, no do matrimônio e no da morte”. Pode-se dizer que as mulheres vicentinas fogem
deste estereótipo, a partir do momento em que se tornam protagonistas de suas escolhas.

Representações do feminino
Na década de sessenta, a mulher se torna foco de estudos a partir do desenvolvimento da crítica feminista.
Segundo Lúcia Osana Ziolin (2009, p.217): “Também no âmbito da Literatura e da Crítica Literária, a mulher
vem figurando entre os temas abordados em encontros, simpósios e congressos, bem como se constituindo
em motivo de inúmeros cursos, teses e trabalhos de pesquisa.” Assim nasce a crítica literária feminista: “[...]
profundamente política na medida em que trabalha no sentido de interferir na ordem social”. (ZIOLIN, 2009
p. 218).
De caráter pós-estruturalista, a crítica feminista está empenhada em desconstruir ideologias de gênero;
ideologias de caráter discriminatório, abordando questões comoalteridade e identidade. Sobre a noção de
identidade, vale ressaltar que esta é configurada ao longo de toda uma vida, nunca se fixando totalmente. Isto
significa que a crítica feminista, embutida em um pano de fundo inevitavelmente político, lida com questões
relacionadas à formação cultural e social do sujeito, sem menosprezar aspectos subjetivos. De acordo com
Florence Giust Despraires (2005, p.201):
[...] ela é o efeito de multideterminantes, a identidade caracteriza-se não pela unidade mas por
um cruzamento de relações, formando uma construção flexível, aberta, aleatória e provisória. Na
superfície do psicólogo e social, a identidade é uma construção subjetiva e ao mesmo tempo é

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também uma inscrição social. [...] A experiência afetiva, tomada na sua história, altera as posições
psíquicas e os modos de resolução dos conflitos, bem como fornece novas identificações.

Dessa maneira, o primeiro passa para a desconstrução de décadas de opressão feminina se daria com o
questionamento dos dogmas e cânones referentes ao comportamento masculino e feminino. A crítica feminista
se baseia tanto em resgatar obras escritas por mulheres e a importância da mulher como leitora e escritora
quanto pela proposição de releituras de textos a partir da experiência feminina, seja em função do estilo, do
discurso, da temática, do gênero do leitor. Segundo Zolin (2009, p.217).
Desde a sua origem em 1970, com a publicação, nos Estados Unidos, da tese de doutorado de
Kate Millet, intitulada Sexual politics, essa vertente da crítica literária tem assumido o papel de
questionadora da prática acadêmica patriarcal. A constatação de que a experiência da mulher
como leitora e escritora é diferente da masculina implicou significativas mudanças no campo
intelectual, marcada pela quebra de paradigmas e pela descoberta de novos horizontes de
expectativas.

Outro aspecto importante da crítica feminista é a relação entre corpo, sexo e poder: “a esfera privada
acaba sendo uma extensão da esfera pública”. (ZOLIN, 2009, p. 217). As relações entre os sexos atuam de
acordo com uma orientação política e de poder, da mesa forma que o corpo feminino se constitui como espaço
para atuação de forças políticas. A categoria sexual generaliza a noção de “corpo”, concebendo a distinção sexo
e gênero por artifícios culturais externos à própria subjetividade do sujeito. O que a crítica feminista propõe
é o questionamento sobre as “políticas do corpo”, as que por sua vez estão atreladas às ideologias cristãs e
cartesianas que “compreendiam o ‘corpo’ como matéria inerte que nada significa ou, mais especificamente,
significa o vazio profano, a condição decaída: engodo e pecado, metáforas premonitórias do inferno e do
eterno feminino.” (BUTLER, 2010, p.186).
Assim, o corpo feminino muitas vezes é representado socialmente como espaço para constituição de
marcadores sexuais. Pode-se encontrar na Literatura representações que legitimam esta experiência, reforçando
o estereótipo de mulher-objeto. Não obstante, também a Literatura é hábil em cercar a experiência da mulher
enquanto sujeito, contra a manipulação de um estereótipo feminino negativo, na tentativa de sustentar
“intelectualmente” a luta pelos direitos da mulher.
Dentro desta perspectiva, pode-se recordar o mito de Lilith. É na antiga Babilônia que nasceo mito
fundador do estereótipo da mulher vil e diabólica, em função da influência de outros grupos escravizados
e incorporados pelos babilônios: sumérios e semitas. Lilith, demônio feminino por excelência, está ligada a
mitos ancestrais unidos pelo culto à serpente; trata-se da “Grande Deusa Serpente”, cujos nomes poderiam ser
Astratéia, Istar, Ishtar, entre outros:
O nome de Lilith tem uma filiação semítica e indo-européia. A palavra suméria “lil”, que
reconhecemos no nome de deus na atmosfera, Enlil, significa “vento”, “ar” e “tempestade”. É
o vento ardente que, segundo a crença popular, punha em febre as mulheres logo depois do
parto, matando-as assim com seus filhos. [...] Existe um parentesco também entre Lilith e as
palavras sumérias “lulti” (lascívia) e “lulu” (libertinagem). Lilith utiliza sua sedução (bela mulher
de cabelos compridos) e sua sensualidade (bem animal) para fins destrutivos. Foi provavelmente
durante o cativeiro da Babilônia que os judeus travaram conhecimento com esse demônio, ativo
principalmente à noite. [...] Lilith é muitas vezes representada sob os traços de uma ave noturna,
em geral a coruja. (COUCHAX, 2000, p. 582).

Uma das variações do mito defende a ideia de que Lilith teria tido a audácia de pronunciar o nome de
Deus. Este, a fim de castigá-la, concedeu-lhe asas para que deixasse o Éden e também Adão, de quem havia
sido a primeira esposa. Após presenciar o genocídio de seus filhos e a criação de Eva, mulher gerada da costela
de Adão, o demônio feminino tornar-se-ia uma devoradora dos filhos de outras mulheres como vingança, uma
“mãe destruidora”. Em outra variação do mito, afirma-se que Lilith fora expulsa do paraíso e convertida em
demônio noturno por não permitir subserviência a Adão durante o ato sexual. Dessa forma, o mito de Lilith
tornou-se uma importante referência no que diz respeito à construção de inúmeras personagens femininas na
História da Literatura.
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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

É interessante perceber a manutenção de um estereótipo: a mulher sedutora, cujo comportamento


não condiz com a expectativa da moral vigente; independente, astuta e vil;capaz de enganar o homem com
o artifício da palavra. Cria-se para estas personagens uma expectativa de comportamento semelhante ao do
mito de Lilith, a ideia de uma “mulher-fetiche”. Tal representação é igualmente distorcida e inapropriada,
como a da mulher submissa e oprimida pelo homem, porque é muitas vezes tomada apenas pelo viés da
luxúria e da vileza.
Contestar o “incontestável” foi a gênese do movimento feminista, como nos ilustra Elisabeth
Badinter:
[...] Encorajando as mulheres a serem e a fazerem o que se julgava anormal, as feministas lançaram
os germes de uma situação obviamente revolucionária. A contradição entre desejos femininos e os
valores dominantes não pode deixar de engendrar novas condutas, talvez mais perturbadoras para
a sociedade do que qualquer mudança econômica que se produza. (1985, p.331)

Sigmund Freud (1856-1939) postulou o mito da mulher passiva e masoquista, cuja ideia de maternidade
lhe vinha como vocação sacrificial e incontestável. Freud deslocava a ideia de virilidade para o pênis masculino,
alegando ter a mulher, desde a infância, inveja por não possuir o órgão sexual masculino. Kate Millet refuta
esta ideia ao dizer que “Freud desprezou esse caminho e optou, ao contrário, por uma etiologia da experiência
infantil fundada na realidade biológica das diferenças atômicas entre os sexos”. (BADINTER, 1985, p.333).
Dessa forma, o complexo de castração feminino pode ser tido como infundado, porém, fora um dos alicerces
responsáveis por impulsionar o movimento feminista. Outro mito postulado por Freud e outros teóricos é o
da maternidade desejada.
Segundo a inveja do pênis seja sublimada ou não na maternidade, a mulher será sadia ou doente.
Por conseguinte, todas as que demonstram virilidade, independência ou atividade são loucas. As
que preferem fazer carreira a procriar e aquelas – em geral as mesmas! – que não renunciam a
seu clitóris são todas “imaturas”, “regressivas” e “personalidades incompletas”. (BADINTER,
1985, p. 334).

Em função de tantas discussões levantadas, pode-se dizer que a maternidade estaria mais para dom
que para instinto. Toda mulher deve eleger suas prioridades e, caso não esteja a maternidade entre elas, tal
escolha não deve ser vista como doença psíquica ou tabu. Da mesma forma, deve-se desconstruir as noções
de masoquismo feminino e “eterno feminino”. A crítica literária feminista, instrumento de estudo para este
trabalho, também é responsável por essa desconstrução ideológica.
Ainda que muito se tenha avançado em termos de feminismo e, consequentemente, crítica feminista, a
mulher enquanto sujeito ainda é vitimada, discriminada e menosprezada de diversas formas.

Brísida Vaz e Inês Pereira: desconstruindo estereótipos?


O Auto da Barca do Inferno (1517) é uma peça de riqueza inestimável, desenvolvendo-se em várias
dimensões e planos. Ao mesmo tempo em que evoca vários tipos sociais do Portugal quinhentista, também se
constrói como uma feroz sátira contra os constituintes da vida social portuguesa e dos grandes e poderosos.
Na margem de um rio, “do outro mundo”, há duas barcas prestes a partir: uma que leva ao Paraíso e outra ao
Inferno, “comandadas” pelo Anjo e pelo Diabo. Mortos vão chegando à praia, à espera do julgamento final:
aparecem sucessivamente um fidalgo, um onzeneiro, um parvo, um sapateiro, um frade, uma alcoviteira,
um judeu, um corregedor e um procurador; em seguida, finalizando o auto de moralidade, quatro cavaleiros
cruzados. Todas as personagens são destinadas ao inferno, pelo seu mau comportamento, corrupção, usura e
enganação ao longo do tempo na terra, exceto o Parvo e os Quatro Cavaleiros; o primeiro, por sua inocência
e o segundo grupo, por representarem a honra e a glória de Portugal. Neste interim destaca-se a personagem
Brísida Vaz, a alcoviteira:
Brísida. Hulá da barca, houlá!
Diabo. Quem chama?

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Brísida Vaz.
Brísida. E aguarda-me, rapaz!
Diabo. Como não vem ela já?
Companheiro. Diz que não há de viir cá
Sem Joana de Valdês.
Diabo. Entrai vós, e remares.
Brísida. Não quero eu entrar lá.
(VICENTE, 2012, p. 80).2

Brísida Vaz foi a segunda alcoviteira criada pelo autor, e que difere tanto da primeira, Branca Gil, quanto
das demais que ainda seriam criadas, por ser a primeira que se apresenta no plano do “além”. De acordo com
Berardinelli (2012, p 458): “Dos castigos que lhe infligiu a Justiça, sabemos que foi açoutada, transformando-
se em mártir, segundo ela, e não merecedora do fogo infernal. Se lá fosse ‘iria todo mundo’”. Certo é que
através do discurso tendencioso da personagem, temos notícia de uma mulher cuja memória e consciência
dos atos cometidos ao longo da vida terrena não condizem com a moral e os bons costumes que cercavam a
experiência da mulher portuguesa do século XVI.
A mulher no contexto quinhentista dificilmente poderia burlar o destino que lhe era atribuído: o de zelosa
esposa e heroína do lar. Desde o casamento arranjado até o trabalho pesado, no campo e no lar, esta mulher não
tinha o direito de questionar a sua realidade, tampouco de esperar alguma “ascensão social” ou emancipação.
Inferiorizada perante o homem, este estereótipo de mulher submissa está relacionado à interpretação bíblica
(errônea intepretação...) da mulher como ser inferior e destinado ao desejo do marido. Como descendente de
Lilith e Eva, ambas símbolos do pecado, entendia-se a mulher como símbolo do mal, este que devia ser expiado
durante a vida através da sina de esposa e mãe.
Brísida Vaz rompe com este estereótipo em partes, por se apresentar como uma mulher pecadora e,
sobretudo, pelo gosto em sê-lo. A personagem vicentina serve-se do cômico e do profano como caracterização
e demonstra felicidade em ter agido, durante a vida, como aliciadora de meninas para os “cônegos da Sé”:
“Eu sou aquela preciosa/ que dava as moças a molhos. A que criava as meninas/pera os cónegos da Sé.../ Passai-me,
por vossa fé, meu amor, minhas boninas, olho de perlinhas finas!” (VICENTE, 2012, p. 82). A personagem leva
consigo, no momento do embarque no batel infernal, símbolos que destoam do estereótipo da mulher de
família, mãe e esposa:
E trazês vós muito de fato?
O que me convém levar.
Que é o qu’havês d’embarcar?
Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que não podem mais levar.
Três almários de mentir,
e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assi em joias de vestir,
guarda-roupa d’encobrir,
enfim – casa movediça;
um estrado de cortiça
com dous coxins d’encobrir.
(VICENTE, 2012, p. 81)

Embora condenada a embarcar na Barca do Inferno, Brísida Vaz vê a si mesma como digna de salvação.
Se por um lado tal discurso é, obviamente, tecido a fim de manipular a consciência inquisidora alegorizada
pelo Diabo, também pode ser interpretado como uma voz audaciosa que tenta driblar, a todo custo, a norma
vigente. Pode-se dizer que a personagem é marcada por outra representação típica da mulher medieval, a do

2. Os fragmentos escolhidos para a ilustração desta análise foram retirados da obra de Cleonice Berardinelli, a saber: VICENTE,
Gil. Autos. Organização, apresentação e ensaios Cleonice Berardinelli. Rio de janeiro: Casa da Palavra, 2012.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

pecado e da luxúria, outra visão estereotipada cujo germe está no mito de Lilith. Ainda que neste sentido a
representação não avance em um “sentido positivo”, atribuir a tal personagem tamanha força e ousadia é um
sinal positivo que marca a expressividade da mulher vicentina, sua liberdade e criatividade dentro de uma
sociedade predominantemente masculina.
A Farsa de Inês Pereira (1523),também traz uma representação do feminino bastante atípica para o seu
tempo, conseguindo confluir entre a mulher demoníaca e a camponesa medieval; contudo, a ironia presente
nesta personagem – a protagonista Inês – seu senso de liberdade e autonomia é inimaginável se pensamos
que a peça foi escrita no início do século XVI. Representada perante D. João III, no mosteiro de Tomar, o
argumento da peça já adverte “Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube”. De acordo com Teyssier
(1982, p. 69): “Inês Pereira é uma jovem emancipada, sabe ler e escrever (talentos raros na época). Recusa a
vida submetida e reclusa que era então o destino das mulheres equer casar com um homem avisado e discreto,
isto é, espiritual e brilhante”.
O que sucede de imediato é que Inês é cortejada por um camponês bronco e ignorante, Pero Marques;
esta o rejeita devido a seu jeito inocente e ignorante, mesmo sendo o pretendente de agrado de sua mãe. Em
seguida, a protagonista se interessa pelo elegante escudeiro Brás da Mata, este que a conquista pelo uso da
palavra, ainda que com os “judeus casamenteiros” avisando-a de que ele, Brás da Mata, não era de fato “boa
gente”. Com passar do tempo, Inês sentia-se sufocada e humilhada pelas proibições de seu marido, muito
intransigente:
Escudeiro. Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas de andáveis vós?
Juro ao corpo de Deos
Que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar,
Eu vos farei assoviar...

Inês. Bofé, senhor meu marido,


Se vós disso sois servido,
Bem o posso eu escusar.

Escudeiro. Mas é bem que o escuseis,


e outras cousas que não digo.
Inês. Por que bradais vós comigo?
Escudeiro. Será bem que vos caleis.
E mais, sereis avisada
que não me respondais nada,
em que ponha fogo a tudo;
porque o homem sesudo
traz a molher sopeada.
(VICENTE, 2012, p. 337).

Como o marido escudeiro de Inês morre pelas mãos de um pastor, a protagonista procura seu primeiro
pretendente, Pero Marques, contraindo segunda boda. Inês alude ao segundo marido com termos pejorativos
que significam “cornudo”; isto porque em dado momento, a personagem reencontra um ermitão com que
tivera um caso.
Inês. Bem sabedes vós, marido
Quanto vos quero;
Sempre fostes percebido
pera cervo.
Agora vos tomou o demo
com duas lousas.
Pero. Pois assi se fazem as cousas.
(VICENTE, 2012 p. 349).

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Inês Pereira desconstrói o estereótipo feminino do século XVI por inúmeras razões: ao contrário do
discurso patriarcal e machista da mãe Lianor – no qual se enfatiza o valor da mulher pelas qualidades que
lhe possibilitem um bom casamento, como beleza, doçura, maternidade, etc – Inês não se preocupa com a
ideologia social da sua época. O discurso de Inês se contrapõe ao da matriarca quando se mostra enfadada pela
temática do casamento. A personagem não tem pressa em arranjar um marido; não só isso, como também
se permite escolher o próprio esposo, não dando ouvidos aos conselhos da mãe que representa a sociedade
patriarcal. Ainda que desiludida com o rumo do primeiro casamento, Inês demonstra sagacidade ao casar-se
pela segunda vez apenas por interesse. Tendo em conta que o casamento era a única forma de “sobrevivência”
da mulher naquele período, ela cumpre com seu dever; porém, rompendo com o estigma de mulher submissa,
a narrativa é finalizada com a suspeita de que Inês continuará a desfrutar dos prazeres da vida “mundana” ao
lado de outro amante. Nota-se que assim como Brísida Vaz, Inês é dotada de certa mobilidade por se negar a
cumprir com os preceitos sociais de sua época. Do ponto de vista comparativo, trata-se de uma personagem
mais complexa que Brísida Vaz: enquanto esta não é feliz em seu plano manipulador, Inês é hábil em driblar a
própria sorte. Mais uma vez se destaca a personalidade “faceira” da mulher vicentina, que em muito remonta
ao mito de Lilith, no que diz respeito à negação de uma ordem opressora.

Conclusão
Em se tratando de Portugal e Brasil, o modelo patriarcal sobre o qual se embasou a construção desses
países ainda prevalece em muitas zonas periféricas e inclusive no inconsciente coletivo de homens e mulheres. É
comum escutarmos notícias de violência contra a mulher, piadas sexistas, discriminação de gênero no trabalho;
discriminação quanto à orientação sexual de mulheres e homens. Possivelmente, em função de uma cultura
oligárquica, católica, repressora e falocêntrica, por mais que se tenha em voga o “feminismo” e os movimentos
derivados desse conceito, é comum vermos mulheres oprimidas por um sistema silencioso que as converte,
desde crianças, em seres destinados à procriação.

Simplificando, pode-se perceber, em se tratando de estereótipos femininos na História da Literatura, o


da mulher oprimida, mãe, dona de casa, proletária ( recordemos Sinhá Vitória de Vidas Secas, 1930) e, por
outro lado, o da mulher sedutora e diabólica (pensemos em Carmen, 1845 e Dom Casmurro, 1889), sendo este
último estereótipo uma revisitação do mito de Lilith. Em Gil Vicente, as personagens Brísida Vaz e Inês Pereira
aproximam-se do segundo modelo. Ambas desconstroem a ideia de “feminino” que se tinha na época.

Embora sejam personagens com características “vilanescas”, são mulheres humanizadas e dotadas de
complexidade. Brisída Vaz foi agredida durante a vida por homens maus; Inês Pereira, por sua vez, também sofre
nas mãos do primeiro marido. Tal carga dramática caminha ao lado do discurso cômico e satírico proveniente
destas mulheres, que usam da inteligência para romper com o modelo opressor de seu tempo. Mesmo que não
consigam fazê-lo completamente (Brísida não se salva do inferno e Inês é obrigada a buscar outro casamento),
a mulher vicentina não é mais uma vítima do destino e sim uma subversão: “...é olhada como um ser que tem
direitos que devem ser respeitados, entre eles, o de errar...” (BERARDINELLI, 2012, p. 464).

Referências
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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

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Disponível em: <http://www.yorku.ca/mdodman/files/The_Voice_and_Choice.pdf>. Acesso em: 20  set.
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VICENTE, Gil. Autos. Organização, apresentação e ensaios Cleonice Berardinelli. Rio de janeiro: Casa da
Palavra, 2012.
VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. In: Gil Vicente, Obras Completas. Volume II. Lisboa: Livraria
Sá de Costa, 1959.

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Mulheres e a escrita de si:
reflexões sobre modos de produção

SILVA, Gislene Alves da (UNEB)


galves11@hotmail.com

RESUMO O presente estudo é uma pesquisa, de natureza qualitativa e que se pauta em estudos de gênero
e da crítica feminista e cultural, buscou investigar modos de produção de escritoras, identificar os
modos de produção de escritoras de Alagoinhas/Ba e região, refletindo sobre sua dinâmica, verifi-
cando quais os sentidos, dificuldades, demandas e perspectivas deste processo. Constatamos que
as escritoras de Alagoinhas continuam sendo apagadas por um mercado hegemônico, produzem
sem contar com políticas públicas e com um apoio mais sistematizado, contam apenas com apoios
de familiares na publicação, que é toda arcada com dinheiro próprio; e tem a Casa do Poeta de Ala-
goinhas – CASPAL como um parceiro para divulgação dos seus trabalhos.
Palavras-chave: literatura, escritoras de Alagoinhas, escrita de si, modos de produção.

ABSTRACT The present study is a research, qualitative and staff in gender studies and feminist criticism and cultu-
ral sought to investigate ways of producing writers, identify ways of producing writers Alagoinhas / Ba
and region, reflecting on their dynamics, determining the senses, difficulties, demands and perspectives
of this process. We note that the writers of Alagoinhas remain off the market for a hegemonic place
without relying on public policies and support more systematic, rely solely on support from relatives in
the publication, which is all arcade with their own money, and has the House of the Poet Alagoinhas -
CASPAL as a partner for dissemination of their work.
Keywords: literature, Alagoinhas writers, writing itself, modes of production.

Considerando o fato de muitas mulheres, escritoras, terem sido excluídas de uma historiografia literária
pautada em um cânone patriarcal, procuramos identificar seus modos de produção, de escape e fala nesse
processo de silenciamento, considerando que algumas estratégias já foram criadas para se fazer visível no
circuito o contradiscurso feminista, mas que ainda são insuficientes para uma pluralização da escrita e que
o processo de subalternização, neste caso, envolve gênero em suas inter-relações com marcadores como raça,
classe e lugar.
Assim, buscamos dar visibilidade, no que diz respeito a produção de escritoras, às dificuldades de produção,
publicação e distribuição em contextos específicos, como os locais-regionais, de suas obras, às demandas desta
dinâmica, ao tempo em que procuramos também visualizar suas perspectivas e sentidos ativos.
Para falar em produção literária de escritoras não podemos deixar de mencionar alguns mecanismos que
vem sendo criados para produção e divulgação dessas obras. Um dos exemplos que quero trazer aqui é a da
Editora Mulher, que tem como uma de suas finalidades visibilizar e reeditar os livros das escritoras do passado,
assim como, editar ensaios sobre gênero.
Em relação à literaturanegra, dentre outros modos de produção abertos ao feminino, destacamos o
Quilombhoje Literatura1. Ou seja, movimento formado por escritores paulistanos, que teve sua fundação em

1. Pode-se encontrar mais informações por meio do site: http://www.quilombhoje.com.br/

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

1980, por Cuti (Luiz Silva), Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues e outros. Dentre outras
atividades do grupo, organiza e publica, em 1978, o primeiro volume da série Cadernos Negros, contendo oito
poetas, os quais dividiam os custos do livro, publicado em formato de bolso, com 52 páginas.
Escritoras negras como Esmeralda Ribeiro, Marise Tietra, Miriam Alves, Anita Realce, Rosa Egipicíaca,
Teresa Margarida da Silva, Maria Firmina dos Reis, Antonieta de Barros, Auta de Souza, Conceição Evaristo,
dentre outras, tem encontrado espaços para publicar seus trabalhos nos Cadernos Negros.
Ressaltamos ainda a importância deste tipo de produção coletiva que abre espaço para a escritora negra,
visto que gênero articulado com a raça constitui dupla exclusão imposta às mulheres. Ou seja, se à mulher,
em geral, foi-lhe negado vários direitos, entre eles o do acesso à leitura e escrita, à escola, no que diz respeito à
mulher negra, em geral tudo isso foi impetrado com muito mais reforço. Assim, se ao gênero forem atribuídos
outras categorias, ou marcadores sociais, como raça, classe, geração, regionalidade etc., a exclusão, geralmente,
se acentua.
Nesse sentido, o que dizer das escritoras nordestinas, ou mais especificamente das escritoras de Alagoinhas
e região. Assim, quais são as dificuldades que as escritoras de Alagoinhas e região têm encontrado para produzir,
publicar, dando visibilidade, ou seja, fazendo circular suas expressões escritas? O que e como tem produzido?
Em face da situação que se esboçou, perguntamos: quais os modos de produção de escritoras subalternas de
Alagoinhas e região? Qual a dinâmica destes modos de produção? E quais os sentidos, dificuldades, demandas
e perspectivas da mesma?

Os sujeitos da pesquisa: as escritoras


Os sujeitos da nossa pesquisa, ou seja, as escritoras de Alagoinhas e região que pesquisamos são as seguintes:
Alealda Portugal Miranda (63), Marina Oliveira, Margarida Maria de Souza (71), Luzia das Virgens Senna
(65), Madrilena Berger, Noêmia Alves, Valdelice Sena. Todas as escritoras são associadas da Casa do Poeta de
Alagoinhas (CASPAL) e duas destas são membros da Academia de Letras e Arte de Alagoinhas (ALADA) que
são Margarida Maria de Souza e Luzia das Virgens Senna.
Com relação ao local de nascimento destas percebemos que muitas dessas escritoras são de cidades
circunvizinhas, mas escolheram Alagoinhas-BA para viver. Por exemplo: Alealda Portugal Miranda nasceu em
Catu-Ba e mora em Alagoinhas; Marina Oliveira passou a infância em Alagoinhas e atualmente encontra-se
morando em Brasília; Margarida Maria de Souza é uma escritora nascida em Serrinha-Ba e atualmente reside
na cidade de Salvador;Luzia das Virgens Senna nasceu na cidade de Queimadas-Ba e mora em Alagoinhas;
Madrilena Berger, Presidenta da Casa do Poeta de Alagoinhas (CASPAL), mora em Alagoinhas; Noêmia Alves,
nascida em Salvador, reside em Alagoinhas; Valdelice Sena nasceu na Caraíba entre Alagoinhas e Aramari e
atualmente mora em Alagoinhas.
Em relação à formação profissional: Alealda Portugal Miranda é professora, atualmente está aposentada;
Marina Oliveira é freira; Madrilena Berger artista plástica; Noêmia Alves radialista, jornalista e poetisa e
Valdelice Sena aposentada.
Assim, pode-se dizer sobre suas experiências de trabalho que: Alealda Portugal Miranda lecionou por
19 anos em Catu-Ba, retornando pra Alagoinhas onde trabalhou no colégio CENEC; Marina Oliveira trabalhou
em uma escola como educadora, foi coordenadora da comunidade no Rio de Janeiro por 38 anos; Madrilena
Berger fez várias exposições de quadros no Centro de Cultura, em Feira de Santana, Colégio Modelo, shopping
e algumas em casas residenciais; Noêmia Alves criou o programa de rádio De mulher pra mulher, foi dona e
redatora do Jornal Folhão da Bahia que tem 14 anos.

2. Informações concedidas pelas escritoras no encontro realizado em novembro de 2010, na UNEB Campus II, durante o
2° Fórum de Critica Cultural e II Seminário Sobre Modos de Violência Contra Mulheres e de Lutas a Favor dos Direitos
Humanos. Assim como, por meio de questionário aplicado em 30 de julho de 2011.

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Algumas dessas escritoras são casadas, por exemplo: Alealda Portugal Miranda é casada e é mãe de três
filhos; Luzia das Virgens Senna é também casada e tem seis filhos, quatorze netos e uma bisneta; Valdelice Sena
mãe de sete filhos; Noêmia Alves tem uma filha e um filho.

Algumas escritoras ainda nos revelam dados sobre suas condições sociais, assim como nos contou Valdelice
Sena que seu pai era lavrador e contador de história; Luzia das Virgens Senna informou que seu pai era vaqueiro
e lavrador; Madrilena Berger, conforme nos disse, é filha de petroleiro.

A iniciação na escrita dessas escritoras acontece de forma bem peculiar. Margarida Maria de Souza,na
adolescência, escrevia cartas, e trocava por broche ou batom dentre outras coisas, para as meninas entregar aos
namorados. Na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA) atual (UNEB), com 35 anos, a
biblioteca criou um concurso de contos e foi quando escreveu seu primeiro conto e ganhou em segundo lugar.
Valdelice Sena revela que quando seu pai voltava da roça sentavam todos no terreiro para ficar contando histórias
e também para ensinar a ler. Assim aprendeu a ler escrevendo na areia. Uma das histórias que ela mais recorda
é a do pavão misterioso, com a qual ela ficou empolgada e começou a inventar suas próprias historinhas. Luzia
das Virgens Senna começou a escrever nas folhas de um vegetal chamado de palmas. Começou a fazer as letras
sem ninguém vê e já estava escrevendo seu nome e também já sabia ler quando sua mãe descobriu. Aos nove
anos seu pai a colocou em uma escola, porém o mesmo não permitiu que continuasse a estudar. Madrilena
Berger também passou por situação semelhante, seu pai não queria que estudasse.

Os tipos das produções dessas escritoras são bastante diversificados, por exemplo: Alealda Portugal Miranda
escreve poemas, gênero que a escritora gosta; Marina Oliveira escreve poemas; Margarida Maria de Souza
escreve poesias, contos, romances e crônicas;Luzia das Virgens Senna escreve poesias, prosas, autobiografia e
cordéis; Madrilena Berger escreve poesias; Noêmia Alves escreve peças teatrais e poesias; Valdelice Sena escreve
poesias, contos, letras de músicas.

Os temas mais tratados em suas produções são os seguintes: Alealda Portugal Miranda escreve sobre a
história da infância e todas as suas idas e vindas para Alagoinhas; Marina Oliveira faz homenagem aos seus pais,
falecidos, e também à congregação que tem 75 anos de missão na Bahia; Margarida Maria de Souza atualmente
tem mais escrito sobre a solidão; Luzia Senna escreve sobre casamento, o Brasil, sua história de vida dentre
outros.

Assim, vejamos as produções publicadas: Alealda Portugal Miranda publicou seu primeiro livro intitulado
Histórico de Sítio Novo; Marina Oliveira o seu livro intitulado Em verdades poemas em cultura da paz; Margarida
Maria de Souza publicou seu primeiro livro intitulado Pedaços de mim, depois publicou Alma menina, que
é um livro de poesia; Luzia das Virgens Senna tem como obras publicadas: Te amo Brasil (poesia, 1995); O
casamento (prosa 1997); A estrada por onde andei (autobiografia, 2011); Tudo passa (cordel); Rio Catu (cordel);
Mandacaru (cordel); O casamento de João Sem Braço e Mikilina (cordel); Noêmia Alves tem os seguintes poema
publicadas: Volta inteira, Alma de poeta, Ecos machadianos; Valdelice Sena tem dois trabalhos publicados no
livro organizado pela CASPAL que são Preciosa e Desencanto. Atualmente tem em torno de 100 trabalhos
guardados.

Para suas publicações Marina Oliveira encontrou apoio por parte da irmã para publicar seus poemas,
Margarida Maria de Souza tem publicado com recursos próprios,Luzia das Virgens Senna tem o apoio do
marido.

Modos de produção, circulação da escrita feminina:


dificuldades, apoios, sentidos, demandas
Com o intúito de rastrear os modos de produção de escritoras subalternas, refletindo sobre a dinâmica
deste processo e focando nas escritoras de Alagoinhas e região (região norte da Bahia e Nordeste do Brasil)
promovemos, como estratégia de pesquisa, um encontro com algumas escritoras, de modos que nos possibilitasse
colher, através de gravação feita, alguns depoimentos destas a respeito da problemática que aqui discutimos.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

No primeiro diálogo percebemos mais claramente que as dificuldades encontradas por essas escritoras são
diversas, que se iniciam na sua infância e se refletem em sua idade adulta, em suas poesias, carregadas com suas
marcas do passado. Trata-se de mulheres às quais foi negado o direito ao estudo, negado o direito ao sonho.
Alealda Portugal Miranda, escritora de Catu, mas residente em Alagoinhas, descreve as dificuldades que
encontra no que diz respeito à produção e publicação, assim como fala do sentido que atribui ao escrever:
Quanto à vida de escritora há dificuldades muitas, eu não faço, quer dizer eu não fiz o livro
pra ganhar o dinheiro em cima da minha obra; eu fiz para apresentar pelo menos...a cultura
da minha terra, a mandioca o aipim, o feijão, as hortaliças, eu vim de um sítio [...] realmente
há dificuldades, porque a gente que escreve os poemas, estes ficam escondidos nas gavetas…3
(Alealda Portugal Miranda)

Uma questão a qual todas as escritoras passam, segundo as depoentes, é justamente o engavetamento dos
seus trabalhos, a falta de oportunidades para tirá-los desse lugar invisível.
Percebemos também, através da fala das escritoras, que nesse percurso existem pessoas que, de alguma
maneira, tentam suprir, as dificuldades, sejam as produção ou visibilidade das suas obras.
Mas graças a Maria José Oliveira os meus trabalhos são apresentados aqui na UNEB, são
trabalhados com alunas e alunos de Letras e tem sido divulgados. Isso eu agradeço a Deus o
bastante, sem precisar realmente capital e nem divulgação porque tenho que ganhar dinheiro pra
sobreviver, não. Eu só fico sobrevivendo do meu salário, sou professora aposentada do Estado
e realmente dar pra fazer as coisas com amor sem precisar tanto de capital.” (Alealda Portugal
Miranda)

Uma forma outra de apoio que as escritoras encontram para publicar vem da própria família. Segundo
Marina Reis seu livro Em verdades poemas em cultura da paz foi publicado por conta deste incentivo/apoio
familiar. Sobre isso ela diz:
[....] e então eu comecei a fazer poesia, quando mostrei a minha irmã Tereza que é professora da
universidade do estado da Bahia e minha cunhada. – Ave Maria, vamos aproveitar! E então com
a ajuda delas publiquei o meu primeiro livro tranqüilo, também não é para ganhar dinheiro nem
comercializar.” (Marina Reis).

Porém, muitas são as dificuldades encontradas por essas escritoras para quem não foi fácil tornar-se
produtora textual e vários foram os empecilhos nesse percurso. O depoimento de Margarida Souza é exemplar
para mostrar como estes empecilhos às vezes estão em casa, nas pessoas mais próximas, na cultura patriarcal
ainda arraigada.
A biblioteca foi que criou um concurso de contos, então eu fiz o meu primeiro conto aí ganhei em
segundo lugar. Daí então eu comecei a escrever, escrever e guardar, escrever e guardar, foi quando
eu publiquei meu primeiro livro, foi pedaços de mim, aí eu saí pegando os meus pedaços, juntei no
livro. O segundo foi esse, aliás o segundo é Coisas da vida que, ainda não saiu. São contos, Coisas
da vida e Milena que foi um romance, que esse romance eu comecei quando minha filha estava
novinha [...] aí eu comecei aquele livro, mas o meu ex-marido, na época não sei porque, sai para
pegar água pra botar pra ele tomar banho, quando eu voltei só vi a fumaça. Ele queimou tudo, a
papelada toda do meu livro. Vocês acreditam que eu coloquei frase por frase e retomei meu livro
todo e está até naquele processo do Banco do Brasil para editar. (Margarida Maria de Souza)

Assim, da mesma maneira que a família as apóiam encontramos exemplos de como estas famílias podem
diminuí-las, não lhes dando valor e respeito. Constatamos isso por meio do relato de Margarida Souza, o qual
nos mostra um marido que se sente dono de sua companheira, de sua escrita, sente-se no direito de queimar
o escrito da sua esposa. Ou, constatamos este desvalor, através de um parente que chama a irmã de louca pelo
fato desta escrever, como foi o caso da escritora Valdelice Sena, segundo seu depoimento transcrito a seguir:

3. Entrevista concedida pelas escritoras no encontro realizado em novembro de 2010, na UNEB campus II, durante o 2° Fórum
de Critica Cultural e II Seminário Sobre Modos de Violência Contra Mulheres e de Lutas a Favor dos Direitos Humanos.

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Fui pra Salvador, comecei a escrever por lá, mas num certo dia na mudança, meu caderno ficou
numa sacola cheia de revistas. Daí fui embora, não encontrei mais o caderno, me chateei e destrui
todas as poesias. Aí eu já tinha um trabalho de 150 poesias, aí acabou a coragem de escrever. Às
vezes escrevia umas coisinhas, mas não guardava, jogava fora,aí há uns 15 anos, mais ou menos
atrás, eu me separei do meu marido, me divorciei, ai fiquei sozinha e a solidão é um bom remédio
para inspiração. Comecei a escrever novamente, ai fiz umas poesias e guardei, comecei a escrever
uns contos guardei também, daqui a pouco me mudei para Alagoinhas. Tornei a destruir tudo,
larguei tudo pra lá. Primeiro porque meus irmãos falavam assim: - Ah, isso nunca vai sair do
papel! Aí desilude a gente, aí não fiz mais nada, aí tinha um irmão que dizia assim: - Ah o que
você tem de artista você tem de louca. Aí eu disse a ele: talvez eu seja louca, talvez eu seja artista.
Posso ser as duas coisas, depende do seu ponto de vista. (Valdelice Sena)

Embora Valdelice Sena perceba que o mundo, os sujeitos, são construídos por pontos de vista que
divergem e não se fazem único, deixa-se abalar pela perspectiva de seus irmãos, de uma cultura patriarcal que se
impõe como vontade de verdade e que exclui a mulher do campo da produção, fazendo parecer algo anormal,
quando esta ganha cena neste lugar.
Valdelice Sena tem dois trabalhos publicados no livro produzido pela (CASPAL). Diante de todas as
dificuldades encontradas por Valdelice ela ainda conserva um sonho: “[...] eu tenho mais ou menos uns 100
trabalhos, mais ou menos guardados, e espero um dia sair do papel e espero que alguém um dia dê valor ao
meu trabalho, porque é muito difícil.” Aqui também já encontramos um vestígio da importância que pode ter
uma organização como a CASPAL no apoio a produção da escrita feminina.
Continuando a rastrear os modos de produção dessas mulheres e suas dificuldades percebemos que estas
surgem na infância quando lhes é negado o direito de estudar. Assim aconteceu, dentre outras, com a escritora
Luzia Senna, que, mesmo sendo sua mãe professora da região onde morava, aos seis anos de idade, foi proibida
de estudar, pois a turma era multisseriada, contendo alunos com mais de vinte anos de idade. Assim, como
tinha o sonho de ser professora aprendeu a ler e escrever sozinha, observando as aulas que sua mãe dava. Na
falta de caderno escrevia na folha de palma, uma planta conhecida na região sertaneja que morava. Era tudo
escondido, foi quando seu pai a colocou em uma escola. Eis o seu relato:
Em Alegrete tinha uma única escola. Papai botou todos. Eu já estava com nove anos. Estudei a
primeira serie, mas aí pronto, foi só essa. Meu pai não deixou. Pronto, já sabe ler e escrever, não
precisa mais. Aí eu dizia: ah pai, eu quero é ser professora! Aí eu recebia muitos gritos: filha de
pobre que sabe assinar o nome e escrever alguma coisa já tá bom demais! (Luzia Senna).

Segundo Senna, chegou um momento em que desistiu de ser professora, casou-se, teve filhos, mas
continuou sempre pensando em estudar. Diante da solidão que sentia, segundo ela, resolveu escrever sobre as
dores: “Eu comecei a escrever, mas eu não escrevia poesia não, apesar de gostar muito. Eu não escrevia poesia,
eu escrevia, quando na adolescência, aborrecimento, tristezas, alegrias, mas também não guardava, jogava
fora”.Senna nos diz que agora era diferente: “[...] aí veio uma depressão sem fim, depressão, angústia, tristeza.
Eu escrevia tudo isso, mas eu guardava”.
Já avó, voltou a estudar e concluiu o ensino médio, e sempre pensando em escrever, inclusive escrever esta
estória de exclusão feminina que agrega gênero e classe, estória de exclusão sua, mas também de sua mãe:
[…] minha mãe dizia muito, quando ela sofria chorava, quando meu pai resolveu que ela ia
desistir da escola, ela chorava muito e dizia: minha vida dá um romance. Eu dizia: mãe porque a
senhora não faz? Ela dizia: não é assim não, é difícil. Eu disse: eu vou fazer, vou pra escola, vou
estudar e um dia escrevo o romance de minha mãe. (Luzia Senna)

Em busca do seu objetivo, Luzia Senna continuou sua trajetória, procurando quem podia lhe ajudar a
escrever e publicar:
Veio à época de Collor de Melo. Vou escrever. Escrevi. Mas eu pensava em fazer a minha biografia:
vou contar a minha vida. Aí veio Collor de Melo e eu fiz a poesia contando a historia do Brasil

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

com literatura de cordel, como foi feita [...] Aí fiquei com aquilo guardado. Ai pensei: isso dá
um livro. Aí comecei a procurar quem me ajudaria porque eu continuava com vergonha, quem
me ajudaria a escrever esse livro, porque eu ainda não tinha ido até a 2ª série. Só tenho a 1ª série.
Um livro desse, eu tenho vergonha. Mas aí eu quero fazer, tenho que procurar alguém que me
ajude. Aí eu procurei pessoas que me orientou Altamiro Lira [...] ele olhou meu trabalho, eu com
uma vergonha, aí ele me orientou para que eu procurasse José Olívio (escritor de Alagoinhas).
Eu procurei e José Olívio que me deu o endereço da editora no Rio de Janeiro ai eu mandei meu
trabalho escondido, também com vergonha. (Luzia Senna)

Para Luzia Senna, depois de enviar seu trabalho para uma editora no Rio de Janeiro, foi de fundamental
importância a resposta que esta lhe enviou, conforme nos diz a seguir:
Veio uma carta com o material de volta dizendo: parabéns pelo belíssimo trabalho. Ai me senti
honrada, né? Se a editora tá dizendo que é um belíssimo trabalho, ela está me dando parabéns, é
porque realmente é bom e perdi o medo, a vergonha de mostrar as pessoas. (Luzia Senna)

Luzia Senna, resumindo a duplicidade da família no apoio e não apoio à produção feminina, pois foi
impedida de estudar por seu pai, também contou com o incentivo de seu marido, para escrever e publicar,
conforme nos diz em relato a seguir:
[...] aí meu esposo disse: você vai fazer um livro. Ai ele disse: agora faça seu livro. Eu fiz o
primeiro, Te amoBrasil, depois veio o segundo que eu pensava que seria o terceiro. Eu queria que
fosse já a minha biografia, não foi. Fiz uma história de casamento [...] eu já não tinha vergonha,
o marido assumiu também. Aí fiz o livro e as pessoas passaram a tomar conhecimento, mas eu fiz
com a cara e a coragem. (Luzia Senna)

A “cara e a coragem” de Luzia Senna revelam a resistência da escrita subalterna feminina, que encontra
vários empecilhos, inclusive traços da cultura patriarcal, negando a possibilidade feminina, na própria mulher,
por vezes, traduzindo-se em vergonha e medo. Mas, ao lado desta está à coragem, como sugere Senna apontando
para o jogo subalterno feminino que luta contra as forças da subalternização. Nessa luta, que é de vida, saúde e
auto-estima a escrita, como produção feminina é arma e tem esse sentido. Vejamos o que ainda afirma Senna:
“Eu sai da cozinha, uma mulher depressiva, que vivia chorando, que vivia angustiada, que vivia com medo
do mundo, com medo de tudo”.Lançou seu terceiro livro, que é sua autobiografia, As estradas por onde passei
(2011).
Assim, percebemos que muitas são as dificuldades que as escritoras encontram nesse percurso. A presidenta
da CASPAL, Madrilena Berger, ainda acrescenta: “Há dificuldade em relação à sociedade abraçar a arte, é
difícil porque a política econômica não nos ajuda muito e quando ajuda é vendo o lado econômico mesmo,
não é valorizar você com seu potencial. E às vezes choca”.
Nesse caso, não se trata nem de subalternização de gênero, mas da arte, da cultura, da Literatura. Que
importância é dada a elas? Se articularmos esta ultima ao gênero o que percebemos? Marcas de subalternização,
sim, mas também a marca de um outro sentido de arte, de Literatura como critica cultural, (re) escrita de si,
vida.

Algumas considerações
Assim, percebemos que as dificuldades encontradas por essas escritoras são diversas, que se iniciam na
sua infância e se refletem em sua idade adulta, em suas poesias, carregadas com suas marcas do passado.
Mulheres, às quais foi negado o direito ao estudo, negado o direito ao sonho. Todas as escritoras passam pelo
engavetamento dos seus trabalhos, a falta de oportunidades para tirá-los desse lugar invisível. Estes empecilhos,
às vezes, estão em casa, nas pessoas mais próximas, na cultura patriarcal ainda arraigada, cultura patriarcal que
se impõe como vontade de verdade e que exclui a mulher do campo da produção literária, fazendo parecer algo
anormal, quando esta ganha à cena neste lugar.
Assim, da mesma maneira que a família apóia essas escritoras, encontramos exemplos de como estas
famílias podem diminuí-las, não lhes dando o seu valor e respeito. Isto se faz visível, quando muitas relatam
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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

que foram impedidas de estudar por seus pais, mas que também contam com o apoio e incentivo de irmãs ou
parentes do sexo feminino e, em alguns casos, de seus maridos, para escrever e publicar. Ou ainda quando, por
meio dos relatos, nos mostram maridos que se sentem donos de sua companheira, de sua escrita, sentem-se no
direito de queimar o escrito da sua esposa; ou mesmo nos dizem como, por vezes, são chamadas de loucas por
seus irmãos, simplesmente pelo fato de insistirem em escrever. Apesar disso, como citamos, a forma de apoio,
que as escritoras encontram para publicar vem da própria família.
São essas dificuldades, essa falta de apoio mais sistemático e continuado que talvez gere a ausência dessas
escritoras em alguns cenários literários.
Apesar do pouco investimento contra a subalternização dessas escritoras, da falta de um investimento mais
institucional, da falta de apoio, percebemos que as escritoras e escritores têm procurado meios de continuar
produzindo e divulgando suas produções. A Casa do Poeta de Alagoinhas (CASPAL) existe nesse sentido e tem
sobrevivido, resistido a esse descaso.
Assim, concluímos que as escritoras de Alagoinhas continuam sendo apagadas por um mercado
hegemônico, por uma cultura patriarcal e por uma visão de cultura e de literatura que se reflete na falta de
importância atribuída para estas. Por conta disso, as escritoras produzem sem contar com políticas públicas
e com um apoio mais sistematizado. Apesar disso, como já dissemos, estas escritoras continuam produzindo,
insistindo em falar-escrever, resistindo a este apagamento. Para tanto, contam com apoios de familiares na
publicação que é toda arcada com dinheiro próprio e, no que diz respeito à divulgação, contam com parceiros
como a Casa do Poeta, que funciona como uma estratégia de divulgação e solidificação de um mercado
alternativo.
Nessa linha, fica clara a importância da mediação, de ações desenvolvidas, por exemplo, pela Universidade
e, nesse sentido, a demanda pelo fortalecimento desta cooperação é fundamental. A demanda por políticas
públicas, por ações conjuntas. Também fica clara a importância de se estudar, considerar os escritos femininos
como expressão de uma cultura feminina que entrelaça literatura, vida e resistência, ou seja, a crença de que a
literatura é potência.

Referências
FERREIRA, Luzilá Gonçalves; et al. O discurso feminino possível: um século de Imprensa feminina em
Pernambuco (1830 a 1930). In: GOTLIB, Nádia Battella (org.). A mulher na literatura. Belo Horizonte,
Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1990.
LOURO, Guacira Lopes. A emergência do gênero. In: Gênero, sexualidade e educação uma perspectiva pós-
estruturalista. Petrópolis: Vozes, 2003.
MUZART, Zahidé Lupinacci. Histórias da Editora Mulheres. Revista Estudos Feministas, set.-dez. año/vol. 12,
número especial. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil: PP.103-105.
QUILOMBHOJE: Espírito de Quilombo nos Dias de Hoje. Quilombhoje. Disponível em: http://www.
quilombhoje.com.br/quilombhoje/historicoquilombhoje.htm Acesso em: 28 de jan 2011.
REIS, Roberto. Cânon. In: José Luís Jobim, org. Palavras da crítica – tendências e conceitos no estudo da literatura.
Rio de Janeiro: Imago, 1992.
SCHMIDT, Rita Terezinha. Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria feminina. In: NAVARRO,
Márcia Hoppe(Org.). Rompendo o silêncio. Porto Alegre: UFRGS, 1992. p.182-189.
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre,
jul/dez de 1990.
XAVIER, Elódia. Tornar visível o invisível: um desafio feminista. In. REIS, Lívia Freitas de; VIANNA, Lúcia
Helena; PORTO, Maria Bernadete. (Orgs.) Mulher e Literatura. VII Seminário Nacional. Niterói, RJ: EDUFF,
1999.

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Ntozake Shange e as sete histórias de mulheres negras
REYES, Júlia (Mestranda em Letras UFSJ)
ilhadehortela@gmail.com
LAGUARDIA, Adelaine (Orientadora UFSJ)
adelaine@ufsj.edu.br

RESUMO Ntozake Shange (1948 -) é uma escritora negra contemporânea nascida em Trenton, Nova Jérsei,
nos Estados Unidos, que mudou a dramaturgia negra quando sua peça For colored girls who have
considered suicide/ when the rainbow is enuf: a chorepoem (1975) estreou na Broadway em 1976 e
recebeu diversos prêmios, por enfocar especialmente as experiências das mulheres negras. Neste
trabalho, seleciono sete dos vinte e dois coreopoemas do espetáculo e relaciono suas temáticas com
discussões e apontamentos teóricos de importantes autoras do feminismo negro, tais como An-
gela Davis, Audre Lorde, Darlene Clark Hire, Shirley Chisholm, Patricia Hill Collins e Michele Wallace.
Dos poemas selecionados, foram extraídos sete temas: auto-expressão (“dark phrases”); exercício
da sexualidade e erotismo (“graduation nite”); estupro (“latent rapists”); aborto (“abortion cycle #1”);
representatividade (“sechita”); empoderamento (“somebody almost walked off wid alla my stuff ”) e
união feminina (“a layin on of hands”). Os sete temas e poemas são relacionados com questões e pro-
blemas pessoais e sociais enfrentados pelas mulheres negras, mostrando que a autora dialoga com
reflexões fundamentais do feminismo negro de forma poética e política. Através da leitura dos co-
reopoemas inventados e escritos pela autora, percebemos sua capacidade de colocar em discussão
experiências, dores, alegrias, dificuldades e potenciais das mulheres afro-americanas, fortalecendo
assim sua auto-expressão, auto-consciência e empoderamento.
Palavras-chave: Ntozake Shange, feminismo negro, teatro negro.

ABSTRACT Ntozake Shange (1948 - ) is a contemporary black writer born in Trenton, New Jersey, United States who
changed black dramaturgy when her play titled For colored girls who have considered suicide/ when
the rainbow is enuf: a choreopoem (1975) premiered at Broadway in 1976 and received several prizes,
focusing especially on black women’s experiences. In this paper, I select seven out of the twenty-two cho-
reopoems from the spectacle and connect their themes with discussions and theoretical claims made by
important authors within black feminism such as Angela Davis, Audre Lorde, Darlene Clark Hire, Beth E.
Richie, Patricia Hill Collins and Michele Wallace. From the selected poems, the seven following themes
were extracted: self-expression (“dark phrases”); the exercise of sexuality and eroticism (“graduation
nite”); rape (“latent rapists”); abortion (“abortion cyce #1”); agency (“sechita”); empowerment (“some-
body almost walked off wid alla my stuff ”) and female bonding (“a layin on of hands”). The seven themes
and poems are related to issues and personal and social problems faced by black women, showing that
the author dialogues with fundamental black feminist reflections in a poetic and political way. Through
the reading of the choreopoems invented and written by the author, we perceive her capacity to discuss
experiences, pains, joys, difficulties and potentials of Afro-American women, strengthening their self-
expression, self-consciousness, and empowerment.
Keywords: Ntozake Shange, Black feminism, Black theatre.

Introdução
A escritora, poeta, ensaísta, romancista, dramaturga e artista multimídia Ntozake Shange nasceu com
o nome Paulette Williams em 18 de outubro de 1948 em Trenton, New Jersey, nos Estados Unidos, mas
mudou seu nome nos anos 1970 para “Ntozake Shange”, que em Zulu significa “aquela que veio com suas

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

próprias coisas” e “aquela que caminha como um leão” (EFFIONG, 2000). Fortalecendo sua ligação com seus
ancestrais africanos através do novo nome, Shange afirma sua identidade através de valores como a identidade
negra (“aquela que veio com suas próprias coisas”) e a força pessoal (“aquela que caminha como um leão”).
Em 1976, for colored girls estreia na Broadway e sua autora recebe diversos prêmios, entre eles um Obie
e indicações aos prêmios Emmy, Tony e Grammy, transformando a dramaturgia afro-americana ao enfocar
especialmente as experiências das mulheres negras. Em 1994, no aniversário de vinte anos de for colored
girls, teatros de todo o país apresentaram o espetáculo, celebrando a arte de Ntozake Shange. Em 2010, o
diretor afro-americano Tyler Perry transformou o espetáculo no filme For Colored Girls (2010), estrelado
por atrizes negras e personalidades importantes da música, do cinema e da televisão estadunidense tais como
Janet Jackson, Macy Gray, Loretta Devine, Anika Noni Rose, Thandie Newton, Whoopy Goldberg, Phylicia
Rashad, Kimberly Elise, Tessa Thompson e Kerry Washington.
Criativas e políticas, as produções de Ntozake Shange ligam-se tematicamente a dois eixos principais: a
luta política negra e as experiências das mulheres negras, temas que se relacionam a movimentos importantes
vivenciados pela autora: o “Black Arts Movement”, movimento artístico negro, o “Black Theatre Movement”,
movimento teatral negro, o Movimento dos Direitos Civis e o movimento das mulheres, especificamente o
feminismo negro.
Seguindo os pressupostos de construção de uma arte e de uma estética próprias da comunidade negra
fomentados por lideres do “Black Arts Movement” e do “Black Theatre Movement”, em oposição ao teatro
europeu tradicional e aos pressupostos literários tradicionais nos Estados Unidos, Shange criou poemas
coreografados onde a declamação, o movimento, a interpretação e a dança fundem-se, valorizando, destacando
e discutindo as histórias pessoais, escritas, declamadas e teatralizadas que ganham vida com as atrizes da
peça. Estas destacam vivências e dificuldades, alegrias e tristezas, quedas e conquistas de mulheres negras,
experiências que entrelaçam arte e política.
A seguir apresentarei sete coreopoemas de Ntozake Shange, relacionando-os a problematizações
fundamentais do movimento feminista negro. Articulando a arte dos choreopoems de Shange e questões do
movimento negro, busco desfazer a distinção entre arte e política, mostrando que o feminismo da autora
percorre seu espetáculo. Shange trabalhou poemas coreografados com músicas criando um novo gênero e
trabalhou a declamação desses poemas com gestos, movimentos, interação entre movimento e fala com uma
linguagem que remete ao Black English, o inglês falado pelos afro-americanos, o que reforça suas identidades
e perspectivas. As vozes das atrizes ecoam no espetáculo com uma expressividade bem marcada na forma e no
conteúdo - enfocando assuntos difíceis como o estupro, o aborto, e ao mesmo tempo temas positivos como
o exercício da sexualidade enquanto propõe novas representações para as mulheres negras através de relatos e
reflexões poéticas e pertinentes. Com suas produções, Shange consolidou-se como uma artista consagrada da
geração de 1970, ao lado das romancistas Alice Walker e Toni Morrison e das dramaturgas Alice Childress,
Lorraine Hansberry e Adrienne Kennedy, entre muitas outras.

Silenciamento e expressão
For colored girls foi um espetáculo criado nos anos 1970, portanto em uma época de fortalecimento das
escritoras e dramaturgas negras que nos anos 1960 recitavam seus poemas em lugares públicos tais como cafés,
igrejas, bibliotecas, escolas, hospitais, ruas e bares, atingindo diretamente seu público através de declamações
por vezes acompanhadas de músicos, mostrando a influência da música em outras artes (como o teatro e a
performance).
Segundo Olga Barrios (2003), as décadas de 1960 e 1970 são um período fundamental para a história
e as artes afro-americanas. Em 1960 surge o “Black Theatre Movement” com as propostas de re-imaginar e re-
construir as artes e a cultura das comunidades negras e desenvolver e seguir uma estética própria (BARRIOS,
2003). Influenciadas pelo “Black Theatre Movement”, as dramaturgas afro-americanas começaram a desenvolver
suas próprias vozes dentro de suas comunidades, adicionando às propostas de re-imaginação e re-construção de
artes e culturas a perspectiva de gênero própria de suas experiências (BARRIOS, op. cit).

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Dentro desse contexto de re-construção de artes, cultura adicionando uma perspectiva gendrada, Ntozake
Shange cria seus coreopoemas unindo poesia, dança e movimento para mostrar diversos recortes nas vidas de
mulheres negras e suas vivências, pensamentos e emoções. O primeiro coreopoema de for colored girls1 chama-se
“dark phrases” (“frases sombrias”) e conta a história de uma jovem dançarina negra que atua em uma casa mal
assombrada. Nesse cenário fantasmagórico elementos musicais danificados sugerem o sofrimento psíquico
dessa mulher frente ao racismo e ao sufocamento de sua representatividade e expressão. A relação da jovem
com a música problematiza sua necessidade de expressão e de empoderamento.

Os primeiros versos do coreopoema sugerem destruição, desequilíbrio e sentimentos negativos em:


“frases sombrias de mulher/ por nunca ter sido uma jovem/ semi-notas dispersas/ sem ritmo/ sem afinação/
risada desesperada caindo/ sobre o ombro de uma jovem negra/ é divertido/ é histérico/ a falta de melodia de
sua dança”2 (FCG, p.17). Elementos desarticulados reforçam a metáfora de sofrimento e incompletude, de
necessidade de expressão das mulheres negras.

A relação entre a jovem do poema e a música passa por dois momentos. Primeiramente, elementos
como “semi-notas dispersas”, “sem ritmo/sem afinação”, “canção sem cantores” e “letras/ sem vozes” (p.17)
funcionam como metáforas para o estado emocional de sofrimento das jovens diante das dificuldades, como o
racismo, o sexismo e a falta de representatividade. Em contraposição, no trecho:
eu não posso ouvir nada / a não ser gritos enlouquecedores/ & e as tensões macias da morte/ &
você me prometeu/ você me prometeu.../ alguém/ qualquer um/ cante uma canção de jovem
negra/ traga-a para fora/ para conhecer a si mesma/ para conhecer você/ mas cante seus ritmos/
carinho/ luta/ tempos difíceis/ cante sua canção de vida/ ela esteve morta tanto tempo/ fechada
em silêncio tanto tempo/ ela não conhece o som/ de sua própria voz/ sua infinita beleza”3 (FCG,
p.18)

O eu-lírico clama para que alguém “cante uma canção de jovem negra” (p.18), portanto, para que alguém
crie um espaço de representação e expressão para as mulheres negras que estiveram sufocadas e oprimidas,
lutando para desenvolver seus talentos e encontrar oportunidades favoráveis a essa busca4.

Considerações importantes a respeito da relação entre a música negra e as mulheres negras são tecidas
por Angela Y. Davis (1990). A autora ressalta as tradições étnicas musicais da comunidade negra mostrando
um contínuo (desde sua origem no continente africano, remodelada durante a escravidão, no período da
Reconstrução estadunidense e mais tarde durante as duas guerras mundiais) que permaneceu ligado à herança
étnica, histórica e sociológica dos afro-americanos e tem sido uma expressão capaz de influenciar todas as
outras formas de arte.

David Lionel Smith (1991) ressalta as propostas de Larry Neal no posfácio de Black Fire: alteração de
conceitos sobre o que é arte, construção de novos conceitos, desenvolvimento de uma identidade negra, suas
preferências, reivindicações, valorização a cadência do discurso de Malcolm X, com a qual se poderia aprender
mais do que com a poética ocidental. Enquanto a música é vista como central, a literatura é vista por muitos
críticos e artistas como um meio através do qual alguns escritores negros burgueses buscavam aceitação dos

1. For colored girls who have considered suicide/ when the rainbow is enuf: a choreopoem foi editado em 1975. Neste trabalho,
porém, trabalho com a edição atualizada da peça, editada em 2010 pela Simon & Shuster.
2. No original: dark phrases of womanhood/ of never havin been a girls/ half-notes scattered/ without rhythm/no tune/ distraugt
laughter fallin/ over a black girl’s shoulder/ it’s funny/ it’s hysterical/ the melody-less-ness of her dance (SHANGE, FCG, p.17)
3. No original: “I can’t hear anything/ but maddening screams/ & you promised me/ you promised me…/ somebody/anybody/ sing
a black girl’s song/ bring her out/ to know yourself/ to know you/ but sing her song her rythms/ caring/ struggle/ hard times/ sing her
song of life/ she’s been dead so long/ closed in silence so long/ she doesn’t know the sound/ of her own voice/ her infinite beauty” (FCG,
p.18)
4. A esse respeito, a escritora Alice Walker criou um texto seminal da literatura afro-americana, “In Search of Our Mother’s
Gardens” (1974) (“Em busca dos Jardins de Nossas Mães”) em que problematiza a questão do desenvolvimento dos talentos
individuais e os sofrimentos sociais e históricos enfrentados pelas mulheres afro-americanas.

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brancos. Segundo Smith, “(…) os escritores que tentam levar “A Estética Negra” a sério estariam inclinados
a rejeitar estéticas formalistas e a pensar mais seriamente sobre o som de seu trabalho e seu efeito sobre uma
audiência de ouvintes.5” (SMITH, 1991, p.101).
Assim, a música no poema de abertura de for colored girls, “frases sombrias” não apenas remete a uma
arte escolhida pela comunidade negra para re-imaginar e re-construir identidades, culturas e artes. A música é
fundamental para as dramaturgas negras continuarem forjando estéticas próprias negras e gendradas. Ao clamar
para que alguém “cante uma canção de jovem negra”, Shange reforça a invisibilidade criada pelo racismo, o
silenciamento e a dor das mulheres negras e sua necessidade de contar suas próprias histórias, compartilhando
suas vivências. Davis ressalta ainda o conceito de Nommo, (ligado ao poder mágico da palavra), através do
qual as cantoras de blues estadunidenses como “Ma” Rainey e Billie Holiday utilizaram letras de canções para
expressar desejos de escapar do racismo, da discriminação e de situações de opressão social e/ou psicológicas,
contribuindo para criar uma consciência coletiva e um vínculo com seus espectadores, finalmente identificados
com músicas que tratavam de questões relevantes para suas vidas.
Da mesma forma, a presença da música em for colored girls e da musicalidade dos depoimentos poéticos
das atrizes evoca reivindicações e experiências, mas também formas e estratégias de reação contra a violência
do racismo e do sexismo, por exemplo através da auto-preservação (“somebody almost walked off wid alla my
stuff ”) e união com o ego, com as outras mulheres e com a dimensão transcendente (“a layin on of hands”),
incluindo processos de cura, superação e empoderamento, como será comentado a seguir.

Sensualidade e liberdade
A questão da sensualidade e da sexualidade, dentro do feminismo negro, relaciona-se ao enfrentamento
de mitos e estereótipos sobre as mulheres negras que atravessaram o século XIX e permanecem sob outras
formas nos dias atuais, segundo as observações de Patricia Hill Collins (2005) em Black Sexual Politics. Collins
traça um paralelo entre as mulheres negras que atuaram no mundo do entretenimento em várias épocas
mostrando sua ligação com estereótipos de selvagem e de portadoras de sexualidade exacerbada, enfocando
desde a “Vênus de Hottenthot”, enjaulada como “selvagem sexual” pelo tamanho de suas nádegas e por sua
etnia, Josephine Baker, que fez sucesso na Europa apresentando-se com os seios de fora, até a cantora Jennifer
Lopez e o enfoque dado às suas nádegas, bem como a cantora Beyoncé e sua canção “bootylicious” que se
refere à mesma parte do corpo. Na contramão das representações deturpadas das mulheres negras criadas
no século XIX, como as imagens de “Mamãe”, “Rainha” ou “Jezebel”, Ntozake Shange aborda o tema da
iniciação sexual no segundo coreopoema do espetáculo, reforçando o exercício de uma sexualidade livre, alegre
e descompromissada, que escapa de figurações negativas.
Em “graduation nite”, a dama de amarelo conta para suas amigas e para os espectadores sobre sua primeira
experiência sexual de forma alegre e sem remorso ou sentimentos desconfortáveis. Junto de primos e amigas,
a dama de amarelo escolhe perder a virgindade com um dos primos, dentro de um carro, contrariando ideais
romantizados sobre a iniciação sexual de uma mulher. A dama de amarelo diz na abertura do coreopoema
“noite de formatura”: “era noite de formatura/ e eu era a única virgem na multidão”6 (FCG, p.21) e demonstra
uma sexualidade livre dizendo que ela e seus amigos estavam “fazendo velhas brincadeiras maliciosas/ que eu
tinha pensado desde maio/ porque a noite de formatura tinha que ser quente”7 (FCG, p.23) Segura entre seus
primos, a garota vivencia sua iniciação sexual de forma prazeirosa e positiva, reforçando através de sua história
uma representação positiva da sexualidade da mulher negra, contrariando uma tradição de representações
deturpadas e racistas.
Audre Lorde (2001) discute o erótico como uma fonte de poder das mulheres que não está ligado
estritamente ao que fazemos, mas ao quanto de realização podemos vivenciar no ato erótico. O ato erótico está

5. (...) writers attempting to take “the Black Aesthetic” seriously would be inclined to reject formalist aesthetics and to think most
seriously about the sound of their work upon a listening audiencce” (SMITH, op. cit., p.101)
6. “it was graduation nite/ and i was the only virgin ini the crowd” (FCG, p.21)
7. “doin nasty ol’ tricks i’d been thinkin since may/ cuz graduation nite had to be hot” (FCG, p.23)

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relacionado a um sentido interno de satisfação que quando experimentado por uma mulher pode estimular
o respeito próprio. Relacionando o erótico com a força vital das mulheres, Lorde afirma que este conecta as
dimensões da política e da espiritualidade e relaciona-se a um conhecimento profundo (LORDE, op. cit.) que
empodera as mulheres trazendo-lhes satisfação e auto-conhecimento. O erótico, ao estimular a força vital e
o auto-conhecimento e a auto-valorização permite que as mulheres busquem situações igualitárias e recusem
relações desiguais marcadas por mentiras, violências e traições. Em “graduation nite”, a dama de amarelo
exemplifica uma sexualidade negra alegre e sensual e evoca um uso empoderador do erótico, que implica
vivenciar a sexualidade em um momento festivo, entre conhecidos, sem culpas e de maneira liberada. E relata
ao final do poema “UAU/ de madrugada/ eu não conseguia parar de sorrir”8 (FCG, p.24)

Violências e reações
Em for colored girls, mesmo as situações mais dramáticas para as mulheres negras carregam em seu contexto
e conteúdo um elemento de reação, formas de reivindicação de justiça, movimentos contra os abusos que se
traduzem em denúncias (“latente rapists’”), relatos (“abortion cycle # 1”) e gestos (“sechita”).
A denúncia contra o agressor é feita no dramático coreopoema “latent rapists’” (“estupradores latentes”)
pela dama de vermelho. Ao ser estuprada e fazer a denúncia, a protagonista defronta-se com discursos que
buscam atenuar o crime, ignorá-lo ou culpar a vítima. Ressaltando falas que colocam na vítima e não no
agressor a causa do estupro, Ntozake Shange destaca o trauma e a dificuldade de denunciá-lo. A dama de azul
diz “é sempre difícil denunciar um amigo”9 (FCG, p.31); a dama de vermelho encara o estupro como “um mal
entendido”10 (FCG, p.31); a dama de azul pergunta “você tem certeza de que não sugeriu?”11 (FCG, p.31);
enquanto a dama de púrpura enfoca o álcool em “você andou bebendo?”12 (FCG, p.31).
Além de alertar para a necessidade de autoridades responsáveis e amigos apoiarem a vítima que denuncia
seu agressor, Shange revela uma face obscura do estupro, quando enfoca uma história em que a dama de
vermelho é estuprada por um homem conhecido, com emprego e hábitos sofisticados. Tais homens são definidos
como aqueles “que fazem jantares mediterrâneos elaborados/ & deixam o conjunto de arte carregar todos os
fardos éticos/ enquanto eles convidam alguns amigos para ter você”13 (FCG, p.33). Desmistificando a figura
do estuprador como um homem sem dinheiro ou em dificuldades financeiras e ligado a filmes pornográficos, a
autora alerta para crimes que acontecem a portas fechadas, entre mulheres e homens supostamente conhecidos.
A dama de vermelho afirma: “um estuprador é sempre um estranho/ para ser legítimo/alguém que você nunca
viu/ um homem com óbvios problemas”14 (FCG, p.31) enquanto a dama de púrpura completa: “pin-ups
presas no interior de suas lapelas” (FCG, p.31) e a dama de azul completa: “pontas de tickets de show pornô
esvoaçando de seu bolso” (FCG, p.32).
O estupro foi um crime praticado desde a colonização estadunidense pelos senhores de terra brancos
até o Movimento dos Direitos Civis pela polícia estadunidense, que brutalizava mulheres negras. Muitas
vezes o agressor não era um estranho, mas o proprietário de terras que explorava a mulher negra como força
de trabalho, cuidadora e objeto sexual. Darlene Clark Hine (1995) aponta que a migração para o norte dos
Estados Unidos estava ligada a um desejo das mulheres negras de alcançar a autonomia pessoal e escapar da
exploração sexual ocorrida dentro e fora do ambiente familiar, e do estupro e ameaça de estupro por homens
brancos e negros. Essas mulheres buscavam, na migração, um controle sobre seus corpos e sobre os filhos que

8. No original: “WOW/ by daybreak/ i cndt stop grinnin” (FCG, p.24)


9. No original: “a friend is Always hard to press charges against” (FCG, p. 31)
10. No original: “a misunderstanding” (FCG, p.31)
11. No original: “are you sure/ you didnt suggest?” (FCG, p.31)
12. No original: “had you been drinkin?” (FCG, p.31)
13. No original: “who make elaborate mediterranean dinners/ & let the art ensemble carry all the ethical burdens/ while they invite
a coupla friends over to have you”(FCG, p.33)
14. No original: “a rapist is Always to be a stranger/ to be legitimate/ someone you never saw/ a man wit obvious problems” (FCG,
p.31)

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elas carregavam. Dessa forma, percebemos que o estupro assombra as mulheres negras desde a colonização do
país, passando pela migração e pelo Movimento dos Direitos Civis, e perpetuando-se nos anos 1970, com os
estupros de mulheres por homens conhecidos, com emprego e poder aquisitivo.
No coreopoema “abortion cycle # 1” (“ciclo de aborto # 1”), Shange enfoca o relato de uma jovem
que engravida, sente vergonha e medo de sua gravidez e decide realizar um aborto clandestino. A dor e o
sofrimento da jovem são ressaltados nas imagens: “olhos subindo em mim”15 (FCG, p.36), “cavalos de metal
corroendo meu útero”16 (FCG, p.36) e “tire essas hastes de aço de dentro de mim”17 (FCG, p.36). A solidão
e o desamparo da jovem são ressaltados ao final do poema em: “isso machuca/ isso me machuca/ & ninguém
veio/ uma vez que eu estava grávida e com vergonha de mim mesma”18 (FCG, p.36-37). Shirley Chisholm
(1995) destaca a falta de assistência médica e de aconselhamento como um dos problemas enfrentados pelas
pessoas mais pobres que em 1995 não iam a clínicas e médicos a não ser em casos de extrema necessidade e
não conheciam anticoncepcionais nem sabiam onde consegui-los. Assim, a falta de contraceptivos, informação
e assistência médica fazia com que as pessoas mais pobres tivessem mais filhos não por falta de inteligência ou
imoralidade. A decisão pelo aborto, para a autora, ligava-se ao medo de não poder proporcionar um futuro
melhor aos filhos quando o anticoncepcional falhava (CHISHOLM, op. cit.).
No poema “sechita”, temos uma nova representação feminina com a personagem principal do poema,
Sechita, que é chamada de “egípcia”, “deusa da criatividade” e “deusa do amor” (FCG, p.37). Sechita é uma
mulher negra vestida com uma saia de can-can que dança em um cenário com “violinos” e “pisos de mármore”
(FCG, p.37). Depois de uma luta livre que ocorria nos arredores, Sechita reage à sua maneira. Enquanto
pessoas apontam moedas para as suas cochas, com um vigoroso movimento de perna, Sechita mostra sua força:
“sechita/ egípcia/ deusa/ harmonia/ chutou violentamente pela noite/ pegando estrelas com seus dedos”19
(FCG, p.39).
Apesar da tristeza em seu rosto em: “suas bochechas pareciam fundas”20 (FCG, p.38), o chute para o
alto, que faz com que ela pegue estrelas com os dedos, mostra que reagir aos abusos dos homens é possível
(abusos simbolizados aqui no jogar das moedas dos homens em suas cochas). Sechita reage e busca sua própria
expressividade e a força e o sofrimento de Sechita mostram que, mesmo em contextos em que a mulher negra
é vista como uma animadora de shows de can-can, ela possui meios de reagir e desconstruir a cena.

Fortalecimento e união
No poema “somebody almost walked off wid alla my stuff ” (“alguém quase foi embora com todas as minhas
coisas”) Shange cria uma cena de roubo em que uma mulher reivindica a posse de seus pertences. Entre eles,
ela reclama: “eu quero meu braço com a cicatriz de ferro quente/& minha perna com a picada de mosquito”21
(FCG, p.64) e “e dê-me minha memória/ como eu era quando eu estava lá”22 (FCG, p.64). Através da cena de
uma mulher ameaçada de ser assaltada mas escapa, a autora reforça a questão da necessidade do cuidado de si,
do cuidado com seus “pertences”, com seu corpo, sua vida e com os relacionamentos que estabelece para que as
mulheres negras continuem desenvolvendo livremente seus potenciais, evitando a anulação e o silenciamento
e traumas ligados ao sexismo e ao racismo.
O último poema de for colored girls, “a layin on of hands” (“um repousar de mãos”) enfoca a necessidade
de cura e união as mulheres negras consigo mesmas, entre si e com a dimensão transcendente, demonstrando

15. No original: “eyes crawling up on me” (FCG, p.36)


16. No original: “metal horses gnawin my womb” (FCG, p.36)
17. No original: “get them steel rods outta me” (FCG, p.36)
18. No original: “this hurts/ this hurts me/& nobody came/ cuz nobody knew/ once i waz pregnant and shamed of myself ” (FCG,
p.36-37)
19. sechita/ egypt/ goddess/ harmony/ kicked viciously thru the nite/catchin stars tween ther toes. (FCG, p.39).
20. “her cheeks appear sunken” (FCG, p.38)
21. “want my arm wit the hot iron scar/ & my leg wit the flea bite” (FCG, p.64)
22. “and give me my memory/how I waz when I waz there” (FCG, p.64)

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formas de cura e empoderamento que as levem a negar o suicídio e a fortalecer seus potenciais. Em “a layin
on of hands”, a protagonista passa por um profundo sofrimento psicológico até ser carregada e abraçada por
uma árvore e vivenciar um renascimento. Tal imagem, unida à imagem das atrizes tocando-se e restaurando o
corpo da protagonista ilustra o tema do empoderamento. Através do verso “eu encontrei deus em mim mesma/
e eu a amei/ eu a amei ferozmente”23 (FCG, p.87), Shange representa a divindade como feminina, colocando
também o sentimento amoroso como chave para a restauração de si, além do encontro da protagonista com
seu eu, com as outras mulheres e com a dimensão transcendente. Em for colored girls, Shange entrelaça poesia
e política em uma peça feita, interpretada e direcionada para mulheres negras, em sintonia com as discussões
teóricas do feminismo negro de sua época. Neste trabalho, procurei descrever o feminismo negro de Ntozake
Shange inscrito nos temas, ideias e imagens de seus poemas. Esse feminismo se marca por características como
a auto-expressão (“dark phrases”), a representação positiva da sexualidade (“graduation nite”), a denúncia do
estupro (“latente rapists’”), a questão do aborto (“abortion cycle #1”), a representatividade (“sechita”) e a união
(“a layin on of hands”) celebrado o potencial e a força das mulheres negras.

Referências
BARRIOS, Olga. “From Seeking One’s Voice to Uttering the Scream: The Pioneering Journey of
AfricanAmerican Women Playwrights through the 1960s and 1970s”. African American Review, Vol. 37,
No. 4, 2003, p. 611-628.
CHISHOLM, Shirley. “Facing the Abortion Question”. In: GUY-SHEFTAL, Beverly (ed.). Words of Fire:
an anthology of African-american feminist thought. The New Press: New York, 1995, p.390-395. In: GUY-
SHEFTAL, Beverly (ed.). Words of Fire: an anthology of African-american feminist thought. The New Press:
New York, 1995, p. 254-267.
COLLINS, Patricia Hill. Black Sexual Politics. New York; London: Routledge, 2004.
DAVIS, Angela Y. Black “Women and Music: A Historical Legacy of Struggle.” In Joanne M. Braxton and
Andrée Nicola Mclaughlin, eds. Wild Women in the Whirlwind: Afro-American Culture and the Contemporary
Literary Renaissance (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1990. pp. 3-21. In BOBO, Jacqueline
(ed.). Black feminist cultural criticism. Malden, Massachusetts: Blackwell, 2001.
EFFIONG, Philip U. In Search of a model for African-American drama: A study of selected plays by Lorraine
Hansberry, Amiri Baraka, and Ntozake Shange. Lanham: University Press of America, 2000, p.132.
GUY-SHEFTALL, Beverly (ed.). Black Fire. New York: The New Press, 1995.
HINE, Darlene Clark. Rape and the Inner Lives of BackWomen in the Middle West: Preliminary Thoughts
on the Culture of Dissemblance. In: GUY-SHEFTAL, Beverly (ed.). Words of Fire: an anthology of African-
american feminist thought. The New Press: New York, 1995, p. 380-387.
LORDE, Audrey. “Uses of the Erotic: The Erotic as Power”. In: Audrey Lorde. Sister Outsider. Freedom, CA:
The Crossing Press, 1984, p.53-9. In: BOBO, Jacqueline (ed.). Black Feminist Criticism. Malden: Blackwell,
2001, p.285-286.
SHANGE, Ntozake. For colored girls who have committed suicide/ when the rainbow is enuf: a choreopoem. New
York: Scribner, 1975.
SMITH, David Lionel. “The Black Arts Movement and Its Critics”. American Literary History, Spring, Vol. 3,
No. 1, 1991, p.93-110.
WALLACE, Michele. Anger in Isolation: A Black Feminist Search for Sisterhood. In: GUY-SHEFTAL,
Beverly (ed.). Words of Fire: an anthology of African-american feminist thought. The New Press: New York,
1995, p. 220-227.

23. “i found god in myself/ and i loved her/i loved her fiercely” (FCG, p.64)

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WALKER, Alice. ‘In Search of our Mother’s Gardens”, In: Ms. (May, 1974). In Southern Exposure, no. 4,
Generations: Women in the South, Winter, 1977: 60-4.

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Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus:
uma autobiografia política

SILVA, Franciane C. Da (UFV)


francyebano14@hotmail.com
LEITÃO, Cláudio Correia - Orientador (UFV)
leitaorio@gmail.com

RESUMO Este trabalho tem como objetivo estudar aspectos da autobiografia na obra Quarto de despejo:
diário de uma favelada, da escritora afro-brasileira Carolina Maria de Jesus, além de destacar as
características que fazem dessa narrativa uma “literatura menor”. Partindo de um ponto de vista
particular, de moradora de uma favela, Carolina Maria de Jesus, ao produzirliteratura nas condi-
ções mais adversas, assume o papel de porta-voz da sua comunidade, denunciando as condições
desumanas às quais estavam submetidos os moradores das favelas. Nesse sentido, mesmo sendo
catadora de lixo, favelada e semianalfabeta, Carolina construiu uma narrativa inovadora e original,
que vai de encontro a uma tradição literária elitista, masculina e etnocêntrica.
Palavras-chave: escrita feminina, autobiografia, literatura menor.

ABSTRACT This work aims to study aspects of the autobiography, in the work Quarto de despejo: diário de uma fa-
velada, by Afro-Brazilian writer Carolina Maria de Jesus, besides pointing out the characteristics which
make this narrative a “minor literature”. From thespecific point of view of a slum dweller, Carolina Maria
de Jesus produced literature under the most adverse conditions, and assumed the role of speaker of her
community, denouncing the inhuman conditions under which the inhabitants of the slums lived. This
way, though she was a waste collector, a slum dweller and virtually illiterate, Carolina built an innova-
tive and original narrative, which goes against an elitist, male and ethnocentric literary tradition.
Keywords: female writing, autobiography, minor literature.

A história da literatura sempre foi marcada e demarcada por um cânone europeu, branco e masculino.
Essa literatura androcêntrica, em boa parte de sua história, excluiu as mulheres. Afinal de contas, escrita era
coisa de homem, as mulheres deveriam se contentar em cuidar da casa, dos filhos, do marido, fazer crochê
e bordado e copiar receitas. Essas mulheres, excluídas do sistema literário, eram representadas pelos homens
escritores com o estereótipo de frágeis, submissas, débeis, incapazes de decidirem por si mesmas, apareciam
assim como objetos manipuláveis e nunca como sujeitos da ação.
Depois de séculos de silenciamento forçado,as mulheres começaram a exigir o seu direito a voz. Desse
modo, a partir do século XIX, já podemos vislumbrar manifestações femininas pelo direito a uma igualdade
que sempre lhe foi negada. Com o boom da Revolução Feminista da década de 1960, as mulheres começaram
a ter um maior reconhecimento da sua luta e obtiveram sucessivas conquistas, desde então. No entanto, é
importante destacar que,
Mesmo que se entenda que o feminismo esteja restrito aos últimos dois ou três séculos, trata-
se de um movimento político bastante amplo, que alicerçado na crença de que, consciente e
coletivamente, as mulheres podem mudar a posição de inferioridade que ocupam no meio social,
abarca desde reformas culturais, legais e econômicas, referentes ao direito da mulher ao voto, à

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educação, à licença-maternidade, à prática de esportes, à igualdade de remuneração para função


igual etc., até uma teoria feminista acadêmica, voltada para reformas relacionadas ao modo de ler
o texto literário (ZOLIN, 2009, p.220).

No Brasil, temos o primeiro registro de uma mulher escritora, nos anos de 1859. Em uma condição
totalmente desfavorável, numa região pobre e marginalizada, ainda em um país escravocrata, a escritora Maria
Firmina dos Reis, negra e maranhense, escreve Úrsula, romance de denúncia social, considerado a gênese da
literatura feminina e afrodescendente no Brasil. Essa narrativa critica o sistema escravocrata e dá voz para
as mulheres e os negros, indivíduos historicamente silenciados. Depois de Maria Firmina dos Reis, muitas
outras escritoras despontaram e começaram a falar por si mesmas,deixando evidente que “Sempre fomos o
que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos” (TELLES, 1999
apud Cruz, 2010). Essa pertinente fala da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles denuncia uma tradição
literáriaem que as mulheres sempre foram invisibilizadas, condenadas ao silenciamento, confirmando algo que
durante anos esteve velado:
A história literária está povoada de mulheres. Paradoxalmente, é uma história sem mulheres, uma
história exclusivamente masculina. Em geral o feminino não aparece como sujeito da narrativa,
pois nos acostumamos a vê-lo como objeto de uma história contada por homens (CRUZ,
2010).

É em meio a esse contexto de uma literatura com mulheres, mas, contraditoriamente, sem mulheres,
que surgeCarolina Maria de Jesus: mulher negra, favelada, semianalfabeta, catadora de lixo, solteira e mãe de
três filhos, que enfrentando as condições mais adversas, em meio a uma situação de extrema miserabilidade,
escreveu Quarto de despejo: diário de uma favelada [1960], livro de cunho autobiográfico que é o objeto de
estudo deste trabalho. Escrito entre os anos de 1955 e 1960 em forma de diário, muitas vezes, em pedaços de
papel queencontrava no lixo, Quarto de despejo foi descoberto quando o jornalista Audálio Dantas fazia uma
reportagem sobre a favela do Canindé, local onde Carolina viveu durante onze anos. De acordo com Dantas,
a história da favela que buscava “estava escrita em uns vinte cadernos encardidos que Carolina guardava em
seu barraco. Li, e logo vi; repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão
de dentro da favela”(1995, p. 03).

Depois de ser editado pelo jornalista, que fez alguns cortes no que ele considerava repetitivo,
selecionando os trechos mais significativos, Quarto de Despejo, finalmente, foi publicado em 20 de agosto
de 1960. O sucesso extraordinário da obra, que alcançou a surpreendente marca de dez mil exemplares
vendidos em um mês, sendo editado em mais de 40 países e em 13 idiomas diferentes, levou Carolina
Maria de Jesus ao estrelato, conquistando admiradores no mundo inteiro e a tão sonhada casa de alvenaria.
Todavia, a queda da autora foi tão rápida quanto a sua ascensão. O estrelato de Carolina durou uma média
de cinco anos, época em que ganhou muito dinheiro, mas gastou na mesma proporção, sendo muitas vezes
enganada por pessoas que se aproveitavam da sua pouca instrução. Depois da repercussão inicial, Quarto
de despejo começou a sofrer inúmeras críticas em relação a sua qualidade literária, afinal de contas, “uma
catadora de lixo não podia escrever um bom livro, mesmo um testemunho” (SANTOS, 2009, p.18).
Nos dias atuais, mesmo sendo desconhecido pela maioria do público brasileiro, Quarto de despejo ainda
faz muito sucesso, mormentenos Estados Unidos e em países europeus. E depois de mais de cinquenta anos
de publicada a sua primeira edição, esta obra ainda gera muitas discussões a respeito da sua qualidade e da sua
classificação literária. Desse modo, tal narrativa já
foi classificada como testemunho, diário pessoal, relato próximo a um registro antropológico,
e até mesmo tido como resultado de um modismo em que ex-domésticas semi-alfabetizadas,
pobres e faveladas, resolveram contar as suas terríveis experiências de vida numa sociedade que
sequer as reconhecia como seres humanos. O fato é que o mercado editorial brasileiro preferiu
manter a obra da autora na esfera do pessoal, uma vez que toda a sua produção utiliza a forma
confessional. Para escritoras como ela, entretanto, o diário era a única forma de expressão literária,
pois desconheciam a técnica da representação que emprega (LIEBIG, 2010).

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Independente de como pode ser classificada a escrita forte e corajosa de Carolina Maria de Jesus, o mais
importante é a contribuição histórico-social desse livro para a história da literatura, principalmente, a literatura
brasileira.Neste sentido, numa tentativa de encerrar previamente a discussão a respeito de que tipo de escrita
de si pertence Quarto de despejo, destacamos uma citação de Leonor Arfuch (2010, p.73).
Seria possível afirmar, então, que efetivamente, e para além de todos os jogos de simulação possíveis,
esses gêneros, cujas narrativas são atribuídas a personagens realmente existentes, não são iguais;
que inclusive, mesmo quando estiver em jogo uma certa “referencialidade”, enquanto adequação
aos acontecimentos de uma vida, não é isso o que mais importa. Avançando uma hipótese, não é
tanto o “conteúdo” do relato por si mesmo – a coleção de acontecimentos, momentos, atitudes
– mas precisamente asestratégias – ficcionais – de autorrepresentação o que importa. Não tanto
“a verdade” do ocorrido, mas sua construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o
vaivém da vivência ou da lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa na sombra; em última
instância, que história (qual delas) alguém conta de si mesma ou de outro eu. E é essa qualidade
autorreflexiva, esse caminho de narração, que será, afinal de contas, significante.

Diante de tal constatação, discutir se Quarto de despejo é um diário pessoal, testemunho, registro
antropológico, documento histórico ou qualquer outro gênero literário, para nós não é o mais relevante. Nesse
contexto, nos interessa destacar algunsaspectos que fazem de Quarto de despejo um romance autobiográfico,
discutindo, ao mesmo tempo,o porquê dessa narrativa ser considerada uma literatura menor, baseando-nos na
relevante teoria de Deleuze e Guattari [1977], no livro Kafka: por uma literatura menor.
Desse modo, é importante destacar que, ao falarmos em literatura menor, não estamos desvalorizando
a obra caroliniana em relação ao cânone, que chamamos de grande literatura. Quarto de despejo surge em um
contexto totalmente improvável. Quem imaginaria que uma catadora de lixo, semianalfabeta, se revelaria
uma escritora? Em meio a escritores consagrados da literatura brasileira e mundial, que em sua maioria são
oriundos das classes sociais abastadas, a literatura de Carolina Maria de Jesus surge como inusitada e, mais do
que isso, surge como uma escrita revolucionária. Neste sentido, “vale dizer que menor não qualifica mais certas
literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou
estabelecida)” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 28).
Em Quarto de Despejo, mesmo fazendo uma escrita de si, Carolina Maria de Jesus fala em nome de uma
coletividade. A singularidade de sua narrativa é falar ao mesmo tempo em nome do individual e do coletivo.
Sendo uma das poucas moradoras da favela do Canindé a ter acesso à escrita e à leitura e, mais do que isso,
sendo a única mulher negra, pobre, favelada, catadora de lixo a poder publicar um livro, falando das mazelas
sociais às quais todos os moradores do local estavam submetidos, Carolina Maria de Jesus,
Acentua a cisão dualística entre indivíduo e sociedade. Mas esse processo é em si mesmo
contraditório: o eu – a consciência de si – que se enuncia a partir de uma absoluta particularidade
busca já, ao fazê-lo, a réplica e a identificação com os outros, aqueles com os quais compartilha o
habitat social (etnia, clã, parentesco, nacionalidade). (ARFUCH, 2010, p. 49).

A literatura individual que fala em nome do coletivo da obra caroliniana, aspecto presente na obra de
muitos outros autores que escreveram autobiografias, é também uma das características de uma literatura
menor, aspecto que chamamos de “o agenciamento coletivo da enunciação”. Nesse contexto, ao falar sobre essa
característica de uma literatura menor, Deleuze e Guattari afirmaram que
Em uma literatura menor “tudo adquire um valor. Com efeito, precisamente porque os talentos
não abundam em uma literatura menor, as condições não são dados de uma enunciação
individuada,que seria a de tal ou tal “mestre”, e poderia ser separada da enunciação coletiva. De
modo que esse estado da raridade dos talentos na verdade é benéfico, e permite conceber uma
outra coisa que não uma literatura dos mestres; o que o escritor sozinho diz, já constitui uma
ação comum, e o que ele diz ou faz, é necessariamente político, ainda que os outros não estejam
de acordo. (1977, p. 27)

Tendo o privilégio de pertencer ao mundo da escrita, sabendo que as pessoas da comunidade onde
morava não tinham, assim como ela, consciência da manipulação dos políticose de denunciar as condições

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miseráveis em que viviam, Carolina se sente como uma espécie de mensageira dos favelados, como a mente
privilegiada em meio aos “incultos”. O trecho da narrativa, que destacamos abaixo, evidencia essa “enunciação
coletiva” de Quarto de despejo:
Quem não conhece a fome há de dizer: “quem escreve isto é louco”. Mas quem passa fome há
de dizer:
– Muito bem, Carolina. Os gêneros alimentícios deve ser ao alcance de todos.
Como é horrível ver um filho comer e perguntar: “Tem mais?. Esta palavra “tem mais” fica
oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais.
… Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na
política para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os
preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se
do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere nossa sensibilidade.
[…] No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os
políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia.
… Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo
oprimido (JESUS, 1995, p. 34).

O relato que Carolina faz da fome é em alguns momentos tão chocante,que o leitor que vivencia um
contexto diferente do denunciado pode chegar a se questionar até que ponto a autora está narrando a realidade
dos fatos ou ficcionalizando – os. O certo é que qualquer texto autobiográfico faz uma alternância entre o
vivido e o inventado. Portanto, ao falarmos de Quarto de despejo,
Não se tratará então de adequação, da “reprodução” de um passado, da captação “fiel” de
acontecimentos ou vivências, nem das transformações “na vida” sofridas pelo personagem em
questão, mesmo quando ambos – autor e personagem – compartilham o mesmo contexto.
Tratar-se-á, simplesmente, de literatura: essa volta de si, esse estranhamento do autobiógrafo, não
difere em grande medida da posição do narrador diante de qualquer matéria artística(ARFUCH,
2010, p. 55).

Qualquer texto literário é sempre ficcionalizado, em maior ou menor grau, e, nos dias atuais, em que a
realidade se torna cada vez mais parecida com o real, muitas vezes, é mais fácil conceber a ficção comoverdadeira
do que a própria realidade. O fato é que “esta proximidad entre la ficcionalidad y la vida real es algo que va a
generalizar cada vez más”(ROBIN,1996, p. 42). Se em alguns trechos de Quarto de despejo, Carolina Maria
de Jesus ficcionalizou o real, este feito não tira o caráter político e de denúncia de sua obra. Toda ficção é
altamente política e na literatura “menor” tudo é político.Nesse contexto, é importante afirmar, que Quarto de
Despejo não é uma obra importante apenas pela literatura em si, mas pelo contexto no qual esta se manifesta,
tornando- se uma grande ferramenta de denúncia social e, acima de tudo, política. Ao falarmos de literatura
com cunho político, adentramos em mais uma das características de uma literatura menor. Nesse sentido, ao
discorrerem sobre esse aspecto, Deleuze e Guattari afirmaram que,
O campo político contaminou todo o enunciado. Mas, sobretudo, ainda mais, porque a consciência
coletiva ou nacional está ‘sempre inativa na vida exterior e sempre em vias de desagregação’ é a
literatura que se encontra encarregada positivamente desse papel e dessa função de enunciação
coletiva, e mesmo revolucionária: é a literatura que produz uma solidariedade ativa, apesar do
ceticismo; e se o escritor está à margem ou afastado de sua frágil comunidade, essa situação o
coloca ainda mais em condição de exprimir uma ou outra comunidade potencial, de forjar os
meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade.(1977, p. 27)

Quarto de despejo é uma obra de caráter eminentemente político. Mesmo sendo pobre e desprotegida,
Carolina denuncia os desmandos dos governantes da sua época, denuncia a arrogância dos poderosos, o
desperdício de alimentos que eram jogados no lixo em vez de serem doados aos pobres, denuncia a prostituição,
o descaso das autoridades com os favelados. O trecho que destacamos abaixo é um exemplo dessa denúncia
corajosa feita pela narradora:
O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos
ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para

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não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E
os favelados são os gatos. Tem fome (JESUS, 1995, p. 30).

A consciência política e social de Carolina não se dá somente por conta da crítica que faz aos governantes.
A consciência política surge em sua linguagem, em seu comportamento e atitude, nas profundas e constantes
reflexões que faz sobre a realidade que a cerca: desde a temática da fome, da sua condição de mulher e mãe
solteira, da sua paixão pela literatura. Podemos perceber essa consciência coletiva da escritora em alguns
exemplos da narrativaque destacaremos abaixo. Em um primeiro exemplo, temos uma reflexão de Carolina
sobre a sua condição de mãe solteira:
Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz que elas. Elas tem marido. Mas, são
obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associação de caridade. Os meus filhos não são
sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E
elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu
tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas
do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que
levam vida de escravas indianas (JESUS, 1995, p. 14).

Mais adiante a escritora reflete sobre a desigualdade social da cidade de São Paulo, ressaltando a discrepância
entre a riqueza do centro e a miséria das favelas:
As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com
barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus
lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho
a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar em um quarto de despejo. [...] Sou
rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se
no lixo (JESUS, 1995, p. 33).

Carolina faz ainda uma profunda reflexão sobre a importância da literatura em sua vida. A literatura
surge para a escritora como uma válvula de escape, uma maneira de fugir da realidade e, ao mesmo tempo, de
falardessa realidade:
Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no
quintal e escrevo (JESUS, 1995, p. 19).
Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei
em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir
sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem (JESUS, 1995, p.
22).
A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos
no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta.
Preta á a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro (JESUS, 1995, p. 147).

Ao escrever Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus, muitas vezes, infringe as regras gramaticais. A
linguagem de sua obra é fragmentada, é uma mescla de norma culta e padrão, de expressões extremamente
rebuscadas e da mais simples linguagem popular. Carolina cria metáforas, imagens belíssimas e,ao mesmo
tempo, chocantes do mundo que a cerca. Esse uso original que a autobiógrafa faz da língua atribui aQuarto
de Despejo mais uma das características de uma literatura menor, ou seja, “a desterritorialização da língua”.
Essas “linhas de fuga criadoras” utilizadas por Carolina, frutos de desterritorialização, podem ser entendidas
da seguinte forma:
Ainda que única, uma língua permanece massa, uma mistura esquizofrênica, uma roupa de
Arlequim, através da qual se manifestam funções de linguagem muito diferentes e centros de poder
distintos, ventilando o que pode ser dito e o que não pode: tiremos proveito de uma contra a outra,
colocaremos em jogo os coeficientes de territorialidade e de desterritorialização relativos. Ainda
maior, uma língua é suscetível de uso intensivo que a faz correr seguindo linhas de fuga criadoras, e
que, por mais lento, por mais precavido que seja, forma dessa vez uma desterritorialização absoluta.
Quanta invenção, e não somente léxica, o léxico pouco conta, mas sóbria invenção sintática, para
escrever como um cão... (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 41).

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A originalidade dessa escrita caroliniana, dessa língua com linhas de fuga criadoras pode ser percebida
no fragmento da narrativa que destacaremos a seguir. Em um momento em que fala de maneira poéticada
vida dura do favelado e das desigualdades de São Paulo, de repente, de forma abrupta, a escritora quebra a
sequência da narração e começa a falar de assuntos do seu cotidiano, mesclando discurso direto e indireto,
além de combinar uma linguagem rebuscada com infrações gramaticais e informalidade.
Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.
Oh! São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste
viludo e seda e calça meias de algodão que é a favela.
... O dinheiro não deu para comprar carne, eu fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura,
ficou horrível. A Vera é a única que reclama e pede mais. E pede:
– Mamãe, vende eu para Dona Julita, porque lá tem comida gostosa (JESUS, 1995, p. 37).

Toda a narração de Quarto de despejo é composta de incorreções gramaticais. Desse modo, a linguagem
de semianalfabeta utilizada por Carolina é uma forma de desterritorializar a língua. Essa escrita com gramática
irregular é um dos elementos que tornam sua obra tão original. Em um mundo em que se valoriza uma
linguagem culta e formal, Quarto de despejoemerge da desterritorializaçãoda língua e mostra que a produção
de uma obra literária vai muito além de correções gramaticais. A forma inusitada como Carolina trabalha
com a linguagem, misturando linguagem formal e informal, discurso direto e indireto, provérbios populares,
metáforas, entre outros, cria imagens belas e criativas. Em um dos muitos trechos do livro em que fala da fome,
que de tão presente na narrativa torna-se uma personagem, Carolina mostra toda a sua sensibilidade poética e
sua aguçada consciência social.
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que
comemoramos a libertação dos escravos. [...] A Vera começou a pedir comida. E eu não tinha.
Era a reprise do espetáculo. [...] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravidão
atual – a fome! (JESUS, 1995, p. 27).

Amante da literatura, Carolina viveu toda a sua vida em função dela. Ler e escrever eram um vício, uma
devoção. Além de Quarto de despejo, o livro que a tornou famosa, foram publicadas mais quatro obras da
escritora, que tiveram pouca ou nenhuma repercussão, são elas: Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada
[1961], Pedaços de fome [1963]Provérbios [1963], Diário de Bitita [1983], publicado seis anos depois da morte
da escritora. Além das obras editadas, muito do que foi escrito por Carolina esta microfilmado na Biblioteca
Nacional, somando mais de cinco mil páginas escritas, sem contar a imensa quantidade de papéis avulsos que
estão com seus filhos. Esta enorme quantidade de coisas escritas por Carolina mostra a sua verdadeira obsessão
por cadernos e livros. Tal fato
Prova que a residência do ser humano é a palavra; outra residência é o trabalho vivo, transformador
da natureza. Nenhum dos nossos parentes animais tem palavra (embora se comuniquem por sons,
gestos, cheiros, etc) e, portanto, os escritores valem por isso: afirmam sem cessar as possibilidades
do humano. Não é difícil amar a palavra quando se é instruído, difícil é amá-la irrestritivamente
quando não passou do curso primário (SANTOS, 2009, p.20).

Diante do exposto, fica claro que o diário de Carolina Maria de Jesus não é simplesmente um diário
intimo, não é apenas uma escrita da sua vida individual, mas do coletivo. Em seu diário, a autora representa
todas as mulheres negras, pobres, semianalfabetas, faveladas, jogadas ao esquecimento e à indigência. Quarto
de despejoé um livro que, escrito nas condições mais adversas, muito nos ensina sobre a condição humana e,
mais do que isso, quebra vários tabus a respeito do acesso à literatura e à produção literária.

Ao escrever em meio ao caos e a miséria absoluta, escrevendo para fugir do vazio no estômago ou das
discussões com a vizinhança, Carolina Maria de Jesus nos ensina que a literatura deve estar ao acesso de todos,
que não pode ser privilégio de alguns. “O seu exercício tem o dom de nos fazer mais humanos, o que não
é pouco” (SANTOS, 2009, p. 25). Quarto de despejo nos mostra que a produção de uma obra literária de
qualidade não é privilégio de uma elite branca, masculina, mas de todos aqueles que ousam adentrar nesse

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terreno arenoso. E, sobretudo, nos faz refletir sobre poder transformador da literatura, que tem a capacidade
de nos fazer refletir criticamente sobre o mundo que nos cerca, sendo uma das mais eficientes ferramentas de
denúncia social e política.

Referências
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: mapa do território. In: O espaço biográfico: dilemas da subjetividade
contemporânea. Tradução: Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010. p. 35-82.
CRUZ, Maria de Fátima Berenice da. Quarto de despejo: autobiografia em branco e preto de um diário resiliente.
Disponível em: http://www.telunb.com.br/mulhereliteratura/anais/wp-content/uploads/2012/01/maria_de_
fatima_berenice.pdf. Acesso em: 17 mar. 2013.
DANTAS, Audálio. A atualidade do mundo de Carolina. In. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São
Paulo: Editora Ática, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. A literatura menor. In: Kafka: por uma literatura menor. Tradução:
Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA, 1977. p. 25-42.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática, 1995.
LIEBIG, Sueli Meira. Redescobrindo Carolina Maria de Jesus, cidadã do mundo. Disponível em: http://www.
telunb.com.br/mulhereliteratura/anais/wp-content/uploads/2012/01/sueli_meira.pdf. Acesso em: 18 mar.
2013.
ROBIN, Regine. Conferencia II: Identidad narrativa, autobiografía y autoficción. In: Identidad, memoria y
relato: la imposible narración de sí mismo. Buenos Aires: UBA, 1996. p. 37-55.
SANTOS, Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus: uma escritora improvável. Rio de Janeiro: Garamond,
2009.
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: Teorias Literárias: Abordagens Históricas e Tendências
Contemporâneas. 3ª ed. Maringá: Eduem, 2009. p. 217-242.

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As sutilezas da dor: o limite entre o individual e o coletivo
em The Turquoise Ledge, de Leslie Marmon Silko

SALLES, juliana (UERJ)


juliana.salles18@gmail.com

RESUMO Mesmo tendo feito sua estreia na literatura em 1977, a renomada autora nativo-americana Leslie
Marmon Silko só lançou sua primeira obra de cunho autobiográfico – The Turquoise Ledge: a Me-
moir– mais de trinta anos depois, em 2010. Devido às suas origens diversas, e, portanto, variadas
influências culturais, estas memórias trazem não só as lembranças do passado distante da autora,
mas também passagens que sutilmente deixam transparecer sua dor enquanto indígena, mulher,
escritora, e indivíduo. Contudo, a dor individual não vem sozinha. Através de indivíduos silenciados,
desempoderados, resignados e injustiçados, é possível captar o que há de doloroso para toda uma
comunidade, e, inevitavelmente, para cada membro da mesma.
Palavras-chave: escrita autobiográfica, literatura nativo-americana, dor, Leslie Marmon Silko.

ABSTRACT Despite having made her debut in literature in 1977, the renowned Native-American writer Leslie Mar-
mon Silko only launched her first autobiographical work – The Turquoise Ledge: a Memoir – over thirty
years later, in 2010. Due to her mixed ancestry, and, therefore varied cultural heritage, this memoir not
only brings the memories of a long gone past, but also passages that subtly show Silko’s pain as an indi-
genous woman writer, and mainly, as an individual. Nevertheless, there is more than individual pain. By
depicting silenced, disempowered, resigned and oppressed subjects, it is possible to capture what is truly
painful to a whole community, and, unavoidably, to each member of it.
Keywords: autobiographical writing, native-american literature, pain, Leslie Marmon Silko.

Eu não queria escrever sobre isso; eu não queria que isto estivesse no manuscrito de The Turquoise
Ledge. Eu tinha decidido antes de começar minhas memórias que eu queria evitar ao máximo assuntos
desagradáveis, conflitos e política – Leslie Marmon Silko1
[...] todas estas [construções] imperceptivelmente criam um complexo deleite, que é de suma importância
no contraponto com a dor que sempre permeia descrições poderosas das mais profundas paixões –
William Wordsworth2

Em uma das obras de referência do romantismo, Baladas Líricas, publicada pela primeira vez em 1798,
William Wordsworth afirma que a presença da dor em obras literárias é inevitável. A epígrafe escolhida para
este artigo, portanto, trata desta onipresença, até mesmo em momentos em que o prazer ou as paixões são
trazidos à tona. E é ao analisar a primeira obra deliberadamente autobiográfica da autora nativo-americana
Leslie Marmon Silko, The Turquoise Ledge: a Memoir (2010) que foi possível notar como esta, além ser uma
narrativa atravessada pela cultura de seus antepassados, traz alguns aspectos da identidade híbrida da autora (cf.
Hall, 2006), e, sutilmente, deixa transparecer a dor em relação à sua existência no mundo.
Como o subtítulo já anuncia, The Turquoise Ledge: a Memoir trata das memórias de Silko, e por inúmeros
fatores, traz algumas diferenças se comparado à autobiografia canônica. As teóricas Sidonie Smith e Julia
Watson, em seu livro Reading Autobiography: A Guide for Interpreting Life Narratives (2010), usam o termo
autobiografia com referência ao gênero tradicionalmente conhecido e utilizam então o adjetivo autobiográfico,
1. Tradução nossa.
2. Tradução nossa.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

para se referirem de uma forma mais abrangente aos diferentes tipos de narrativas de vida (cf. SMITH &
WATSON, 2010)3. E é por ter analisado e percebido o teor exclusivo do termo autobiografia – uma vez que
“o termo privilegia o indivíduo autônomo e a história de vida universal como o feito definitivo da escrita de
uma vida” (ibidem, p. 3) – que o adjetivo autobiográfico será usado de agora em diante com um propósito
mais abrangente.
De acordo com Georges Gusdorf, em seu conhecido ensaio “Conditions and Limits of Autobiography”:
O homem que se deleita em delinear sua própria imagem acredita ser digno de interesse especial.
Cada um de nós tende a pensar em si como o centro do universo: Eu conto, minha existência
é significante para o mundo, e minha morte deixará o mundo incompleto... O autor de uma
autobiografia... olha para si e se deleita em ser observado – ele se considera testemunha de si
mesmo; outros ele chama de testemunha para o que é insubstituível em sua presença. (GUSDORF,
1980 apud HEIBLMN, 1986, p. 14)4

A autobiografia, sob seu ponto de vista, seria, então, um gênero profundamente ligado à significância de
um ser no mundo. Porém, não um ser qualquer: a significância de um homem, que é capaz de se perceber digno
de observação, de ter uma obra focada em sua identidade que, por sua vez, é facilmente delimitada ao longo
da narrativa. Este homem nos remete ao “sujeito do Iluminismo”, de Stuart Hall, que está “baseado numa
concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades
de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior” (HALL, 2006, p. 10-11) que
permanecia imutável ao longo de sua vida. Mas na pós-modernidade, diversas mudanças no conceito de
identidade ocorreram, desconstruindo o “sujeito do Iluminismo”.
Ter trazido este ideal de homem como foco da autobiografia mostra que Gusdorf não levou em
consideração o recente reconhecimento das obras autobiográficas de autoria minoritária, como a feminina
por exemplo. Mesmo tendo começado a ganhar reconhecimento no campo da autobiografia nos anos 80, as
escritas femininas datam de muito antes, e, desde cedo se percebeu que esta prática destoava bastante da noção
tradicional. É baseada nesta diferença que a teórica Susan Stanford Friedman criticou Gusdorf, alegando que
ele não levou em consideração os modelos de indivíduos femininos e minoritários, pois:
Em primeiro lugar a ênfase no individualismo não leva em consideração a importância da
identidade de grupo para mulheres e minorias. Em segundo, a ênfase na separação ignora as
diferenças em socialização nas construções das identidades dos gêneros masculino e feminino.
(FRIEDMAN, 1998, p. 72)5

Basicamente Friedman afirma que Gusdorf fechou os olhos para o papel do coletivo e do relacional no
processo de identificação e individualização de mulheres e minorias (idem).
Apesar da significância de ser mulher, afirmar que a questão de gênero por si só é o único fator que define
uma mulher é bastante simplório. Em seu ensaio “Making History: Reflections on Feminism, Narrative and
Desire” (1998), Friedman afirma que outros muitos fatores atravessam o sistema de gênero, como “discursos
de múltipla opressão, intercessão, posicionamento, ponto de vista, e posicionamentos contraditórios de
sujeitos [que] têm suplantado a categoria monolítica de mulher no feminismo acadêmico nos Estados Unidos”
(FRIEDMAN, 1998, p. 208)6. Estes múltiplos discursos podem ser relacionados ao que a teórica Elleke
Bohemer (2005) se referiu como diversidade ou layerdness da experiência feminina. A partir deste ponto de
vista, a mulher seria composta por inúmeras camadas que as influenciam, porém cada uma destas camadas vem
à tona dependendo da situação em que a mulher se encontra. Se esta está inserida no ambiente profissional,
por exemplo, e precisa ser definida perante um grupo de homens, o fato de ela ser mulher falará mais alto; em
outra situação, uma outra faceta de sua identidade pode ser realçada.

3. Tradução nossa. Daqui em diante, todas as citações de SMITH & WATSON, 2010 foram de autoria nossa.
4. Tradução nossa.
5. Tradução nossa. Daqui em diante, todas as citações de FRIEDMAN, 1998 foram de autoria nossa.
6. Tradução nossa. Daqui em diante, todas as citações de FRIEDMAN, 1998 foram de autoria nossa.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Levando em consideração as diferentes influências que permeiam a identidade da mulher, é possível afirmar
que estas, assim como suas obras autobiográficas são frequentemente ligadas à relacionalidade (cf. Bohemer,
2005)7 e diametralmente opostas às de autoria masculina – normalmente relacionadas à tradição literária,
e, portanto, à individualidade. Por isso, é importante corroborar que quando a perspectiva indígena é posta
em pauta, seguir os preceitos tradicionais do gênero autobiografia é ainda mais complicado, principalmente
porque de acordo com Hertha D. Wong, especialista em literatura nativo-americana, falar ou escrever sobre si
na cultura indígena, chamando atenção para seus próprios feitos mostra que este indivíduo foi mal criado, pois
seu foco na individualidade pode significar um desprezo pela noção de comunidade (ver WONG, 1998)8. Se
quando se trata de do gênero autobiográfico ser mulher é significativo, ser uma autora indígena faz da situação
um pouco mais delicada.
Em seu artigo “First-Person Plural: Subjectivity and Community in Native American Women’s Autobiography”
Hertha D. Wong traz uma oposição dialógica homem-mulher no âmbito nativo-americano, que pode ser
comparada à dicotomia subjetividades nativo-americana (outro, diferente) e européia (individual, universal)
–uma vez que o homem é ligado à individualidade e universalidade, enquanto as mulheres têm suas identidades
fundadas em relações, e são, portanto, diferentes. Wong conclui que este modo de pensar é um simples jogo
de opostos, mas tem sua relevância para o desenvolvimento de sua própria linha de raciocínio. Ao longo de
seu texto, a teórica traz questões pertinentes para reflexão sobre a escrita autobiográfica de autoria de mulheres
nativo-americanas: quais seriam as diferenças entre homens e mulheres nativos? Se a subjetividade feminina é
diretamente proporcional à nativa, e, por sua vez, à diferença, qual é o lugar das mulheres nativas na sociedade?
E o dos homens? Apesar de um campo complicado, é possível afirmar que a relacionalidade define os indivíduos
nativos atualmente, já que possuem múltiplas influências culturais, além de outros aspectos que podem ser
determinantes ou não, como a cor da pele, orientação sexual ou nacionalidade, por exemplo. Além disso, a
subjetividade indígena em particular oferece uma gama de escolhas, o que Wong chamou de “relacionalidade
não-oposicional” (WONG, 1998, p. 170).
A autora Leslie Marmon Silko refere a si mesma como sendo de “descendência mista” (SILKO, 2010,
28)9, e por isso, recebeu ensinamentos dos mais velhos do povoado, que achavam que ela poderia não aprender
certas coisas em casa (idem). Ela afirma ter descendência Laguna, Pueblo, Cherokee, mexicana, alemã, escocesa
e inglesa. Com estas diferentes influências moldando sua identidade, não é surpreendente que sua primeira
narrativa autobiográfica, The Turquoise Ledge: a Memoir10 seja de fato uma subversão do gênero canônico
tradicional, pois desconstrói o “eu” autônomo ao trazer a importância do “nós” – a comunidade – além de
também se mostrar claramente como um sujeito cuja identidade não é fixa, mas sim relacional. Ao longo de
sua obra, Silko traz junto ao seu passado, diversas histórias11 que lhe foram contadas enquanto criança, assim
como breves comentários da vida de pessoas relevantes em sua vida; mas, a presença e a relevância da natureza e
seres espirituais em sua narrativa, como parte da comunidade, e, por consequência, parte da autora/narradora/
personagem é o que ressalva o quão distante do cânone está obra realmente está.
Tendo em mente que o povo indígena tem sofrido ao longo da história com preconceito e, por isso, foi
oprimido e sua cultura12 tem sofrido diversas tentativas (muitas vezes obtendo sucesso) de apagamento por

7. Tradução nossa. Daqui em diante, todas as citações de BOHEMER, 2005 foram de autoria nossa.
8.Tradução nossa. Daqui em diante, todas as citações de WONG, 1998 foram de autoria nossa.
9. Tradução nossa. Daqui em diante, todas as citações de SILKO, 2010 foram de autoria nossa.
10. De acordo com as teóricas Smith e Watson, as memórias têm sido concebidas na contemporaneidade como “trabalhos
autobiográficos caracterizados pela linguagem densa e auto-reflexividade em relação ao processo de escrita, trazendo o autor
como um escritor profissional com o status de um objeto estético” (SMITH & WATSON, 2010, p. 4). Para elas, o termo
também “parece mais maleável do que o termo autobiografia, trazendo à tona mudanças históricas e cruzando formações
culturais” (idem).
11. Por ter backgrounds culturais variados, a pequena Silko ouvia histórias bíblicas, histórias locais, familiares e as histórias hummah-
hah, que revelam a perspectiva da nação Laguna em relação aos animais, plantas e seres espirituais (SILKO, 2010, p. 43).
12. Trazer a palavras cultura no singular é uma maneira simplória de tratar as inúmeras e variadas nações que existem espalhadas
pelos mais diversos países.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

parte da Igreja Católica, e também de outras instituições/indivíduos influentes do mundo ocidental. Para
exemplificar esta constante opressão, Silko narra seu primeiro contato com a escola:
No primeiro dia no jardim de infância eu aprendi sobre as linhas imaginárias: a velha cerca
na entrada da escola tinha uma linha imaginária passando no meio dela. Nós crianças fomos
avisadas: uma vez tendo passado pela linha para dentro da escola, falar “índio” era proibido. Se
desobedecêssemos, seríamos mandados para a sala do diretor para devida punição. Esta foi a
primeira coisa que os professores ensinaram nós crianças no primeiro dia do jardim de infância
(SILKO, 2010, p. 40-41)13.

Esta instituição era de responsabilidade do BIA – do inglês, Bureau of Indian Affairs, responsável por
“assuntos” indígenas – que ironicamente planejava desvincular os pequenos de sua língua materna, e por fim,
fazer destes, estranhos à cultura de seus ancestrais. Assim, a primeira instituição com a qual as crianças nativas
tinham contato já começava a oprimi-las.

Sabendo do engajamento de Silko com as questões indígenas, pode-se perceber que esta memória de
seu primeiro contato com a escola não veio para engrandecer a história de vida de um indivíduo, e sim para
criticar o início do processo de apagamento cultural. Além disso, em uma passagem de The Turquoise Ledge,
Silko afirma não querer deixar transparecer nenhuma questão desagradável – nem nada de política – (SILKO,
2010, p. 170) mas não consegue escrever sobre si sem mencionar tal opressão, e a dor que ela sente enquanto
indivíduo e enquanto parte de uma comunidade que vem sofrendo há séculos.

Sara Ahmed, no primeiro capítulo de The Cultural Politics of Emotion (2004), menciona que a dor:
[...] tem sido frequentemente descrita como privada, até uma experiência solitária, como um
sentimento que os outros não podem ter, ou um sentimento que outros têm, mas que eu não
posso sentir [...]. Mas mesmo assim a dor de outros é continuamente evocada no discurso
público, como aquele que demanda uma resposta tanto coletiva, quanto individual. (AHMED,
2004, p. 20)

Esta primeira definição, portanto, ao longo do capítulo, é posta em cheque por Ahmed já que a
possibilidade de representação da dor, e até de seu compartilhamento – salvo as devidas particularidades deste
processo – são trazidos à tona e discutidos. Ao fazer referência à cultura indígena, Ahmed ratificou que a dor não
necessariamente é privada, e necessariamente se mostra coletiva no cenário cultural indígena norte-americano.
A autora faz referência a um relatório da separação de crianças aborígenes e Torres Strait de suas famílias. Estas
crianças, chamadas de “a geração perdida” (ibidem, p. 34), cresceram com contato mínimo com suas famílias,
ou até mesmo sem contato algum. Esta dor foi infligida sobre cada um dos indivíduos envolvidos, mas, por se
tratar da comunidade indígena, “[a] pele da comunidade sofre um estrago, estrago este que é sentido na pele
dos indivíduos que compõem esta comunidade” (idem). Como Leslie Marmon Silko foi criada numa cultura
que valoriza a vida em comunhão, é bem improvável que dentro deste meio, dentre as fortes relações entre
indivíduos de uma mesma nação, a dor fosse sentida apenas individualmente. Com isso, é somente analisando
a dor pela perspectiva nativa que esta pode ser compreendida em The Turquoise Ledge.

Nesta memória, portanto, é importante ressaltar que cada vez que o pronome “eu” é trazido, seu significado
é bastante diferente do tradicionalmente concebido: no Ocidente, o “eu” é ligado a um indivíduo autônomo,
significando um só ser; na cultura nativa, o “eu” traz muito mais do que a referência a um só, mas a um “ser
multi-vocal – [...] e caracterizado como múltiplo, mutante e relacional” (WONG, 1998, p. 169).

Para Silko, indígena de descendência variada, ter de lidar com o preconceito e discriminação é parte
de sua existência. Além deste constante “não-pertencer”, existe a dor relacionada a um importante membro
da comunidade na qual a autora/narradora/personagem também se insere: a natureza. Claramente ligada ao
homem branco, a destruição do meio ambiente é uma grande questão nesta obra. A frequente menção às minas
abertas no território da comunidade da qual Silko faz parte, traz problemas à terra e população da área:

13. Tradução nossa. Daqui em diante, todas as citações de AHMED, 2004 foram de autoria nossa.

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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

O governo federal dos Estados Unidos através do Departamento do Interior/Bureau de Assuntos


Indígenas forçaram o povo Laguna a permitir que a Anaconda abrisse a Terra próxima a Paguate
para uma mina aberta de urânio. A tribo tentou resistir mas a política da Guerra Fria fomentava a
corrida por urânio para bombas atômicas. No início dos anos 50 a área de testes a céu aberto em
Jackass Flats em Nevada começou a ser utilizada (SILKO 2010, p. 69).

Após estes testes a céu aberto muitas áreas foram contaminadas, incluindo a área habitada por Silko e sua
comunidade. Porém, nada foi feito por parte dos governantes.

Além da radiação, o governo costumava enviar às comunidades uma vez ao ano, vans com aparelhos
de raio-x para checar casos tuberculose dentre os indígenas. Contudo, para economizar alguns centavos, as
crianças da escola do BIA recebiam doses de radiação destinadas a adultos (ibidem, p. 70). Estas claras passagens
de descaso com o povo indígena estão ligadas ao que Sara Ahmed afirmou em relação à ligação entre histórias
de dor e complexas relações de poder (AHMED, 2004, p. 22); neste caso, “o Ocidente dá aos outros apenas
porque se esqueceu do que o Ocidente já tomou destes outros na posição de capaz de dar” (idem). Assim, fica
claro que o Ocidente toma e dá, “e é no momento do dar que repetem e ocultam o tomar” (idem)

As emoções de Silko são externadas toda vez que qualquer tipo de agressão é feita à natureza. Já na idade
adulta, a autora/narradora/personagem vai viver em um rancho no deserto do Arizona, e, tendo o costume
de caminhar pela área, ela acaba encontrando um buraco feito por uma máquina – buraco onde costumava
haver pedras de vários tamanhos. Ao se deparar com a destruição, ela não contou a ninguém pois “[a] perda e
o ultraje me engasgaram. Eu sabia que as autoridades locais não se importavam em reforçar as leis de proteção
da terra, e isso me enraivecia ainda mais.” (SILKO, 2010, p. 169). E ela continua:
Mas as lindas pedras de basalto na cor cinza e as de quartzo cor laranja-claro foram retiradas das
laterais do arroyo e levadas pela velha estrada de terra batida para decorar a “paisagem” no jardim
da casa suntuosa com sua torre e muros que mais lembram uma prisão. [...] Os donos desta casa
grotesca poderiam facilmente ter pagado para ter pedras e areia escavados legalmente de uma
área. Mas ao invés disso, ele agiu como se fosse seu destino manifesto: destruir sem dar a mínima,
não importa o impacto sobre os outros ou si mesmo – esta é a crença do sul do Arizona, e grande
parte do Ocidente (ibidem, p. 170).

Esta destruição feita pelo homem desencadeia um desequilíbrio no ecossistema e só aumenta a raiva de
Silko: “[...] eu culpo os homens dirigindo as máquinas que acabam com o deserto. Eu ponho a culpa nos
imbecis no governo do Condado de Pima que fracassam em tudo, exceto em recolher impostos e propina”
(ibidem, p. 207).

The Turquoise Ledge: a Memoir não é uma obra com foco na dor e na perda, seja individual ou coletivamente.
Sua autora/narradora/personagem, Leslie Marmon Silko é capaz de escrever de uma forma lírica, mas conforme
colocou Wordsworth, inevitavelmente traz a dor nas entrelinhas. As sutilezas da dor, portanto, estão no fato de
apesar da vontade da autora de não escrever sobre o que a machuca, ela acaba trazendo sua dor para a narrativa,
já que é algo inevitável para a escrita de (o que ela concebe como) si mesma. Seus sentimentos em relação à sua
comunidade, seus familiares mais próximos e também à natureza permeiam a narrativa, mostrando o quanto
da cultura de seu povo ainda resta em Silko, e agora, se perpetua na palavra escrita. Quanto a esta perpetuação,
a teórica Hertha D. Wong afirma que: “Para muitas mulheres nativo-americanas reivindicar suas próprias
histórias e cultura não é um olhar romântico para um passado já perdido, mas uma estratégia política para
sobrevivência cultural (e nacional) e identidade pessoal.” (WONG, 1998, p. 171). Então, a “[d]or está ligada
a como habitamos o mundo, como vivemos em relação às superfícies, corpos e objetos que constituem o meio
em que vivemos. Nossa questão não é tão só o que é a dor, e sim o que ela faz.” (AHMED, 2004, p. 27). Com
isso, é importante levar em consideração o poder da narrativa autobiográfica sobre seu autor: “[a] narrativa
de uma vida, então, [é vista] como um alvo em movimento, um conjunto de práticas auto-referenciais em
constante mudança, que, em tratar do passado, reflete na identidade no presente.” (SMITH & WATSON,
2010, p. 1).

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Referências
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BOHEMER, Elleke. Colonial and Postcolonial Literature: Migrant Metaphors. New York, Oxford University
Press, 2005, p. 214-259.
FRIEDMAN, Susan Stanford. “Women’s Autobiographical Selves: Theory and Practice”. In: SMITH, Sidonie,
WATSON, Julia (eds.). Women, Autobiography, Theory: A Reader. Wisconsin, The University of Wisconsin
Press, 1998, p. 72-82.
_________________. “Making History: Reflections on Feminism, Narrative, and Desire”. In:
_________________. Mappings: Feminism and the Cultural Geographies of Encounter. New Jersey, Princeton
University Press, 1998, p. 199-227.
GUSDORF, Georges, 1980. In: HEILBMN, Carolyn G. “Woman’s Autobiographical Writings: New Forms”.
In: DODD, Philip (org). Modern Selves: Essays on Modern British & American Autobiography. New Jersey,
Frank Cass and Company Limited, 1986, p. 14-28.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2006.
SILKO, Leslie Marmon. The Turquoise Ledge. New York, Penguin Books, 2011.
SMITH, Sidonie, WATSON, Julia. Reading Autobiography: A Guide for Interpreting Life Narratives. Minneapolis,
The University of Minnesota Press, 2010.
WONG, Hertha D. Sweet. “First-Person Plural: Subjectivity and Community in Native American Women’s
Autobiography”. In: SMITH, Sidonie; WATSON, Julia (org.). Women, Autobiography, Theory: A Reader.
Wisconsin, The University of Wisconsin Press, 1998, p. 168-178.
WORDSWORTH, William. The Miscellaneous Poems of William Wordsworth (vol. 4). London, Longman,
1820, p. 317. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=eFeaAAAAIAAJ&pg=PA317&lpg=PA31
7&dq=william+wordsworth+%22all+these+imperceptibly+make+up+a+complex+feeling+of+delight,+which
+is+of+the+most+important+use+in+tempering+the+painful+feeling+which+will+always+be+found+intermi
ngled+with+powerful+descriptions+of+the+deeper+passions.%22&source=bl&ots=1YgV8A3B0X&sig=u8s-
0P3w4Xnp4OXfUhlPym_kTqQ&hl=pt-BR&sa=X&ei=dh9LUtXhN63C4APIvoGQDA&ved=0CDgQ6A
EwAQ#v=onepage&q&f=false> Acessado em: 1 out. 2013.

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Vulgo, Grace: metaficção historiográfica e reconstrução
identitária feminina no universo ficcional
de Margaret Atwood
RESENDE, Allan Franck de (UFSJ)
allanfranck@ymail.com

RESUMO Sob o pano de fundo colonialista canadense oitocentista, o romance Alias Grace (Vulgo, Grace) de
Margaret Atwood narra os famosos assassinatos de Thomas Kinnear e de sua governanta Nancy
Montgomery no Canadá, em 1843. Grace Marks e James McDermott, imigrantes irlandeses e em-
pregados de Kinnear, foram culpados e sentenciados; McDermott enforcado e Marks condenada à
prisão perpétua. Não obstante o romance ser baseado em eventos factuais, Atwood elabora uma
narrativa com o médico ficcional Simon Jordan, que investiga o caso sob o prisma do comportamen-
to criminal. O presente trabalho estuda os cruzamentos de teorias literárias feministas, culturais,
históricas e de certas estéticas narrativas da pós-modernidade, para explorar as possibilidades de
análises dos novos tipos de romance da contemporaneidade, assim como das suas estratégias nar-
rativas, que favorecem a construção de formas inovadoras de pensar e de configurações identitárias
do sujeito, principalmente em se tratando do sujeito pós-colonial feminino subalterno. O referencial
teórico utiliza-se dos autores Stuart Hall (2001), Thomas Bonnici (2007), Linda Hutcheon (1992), den-
tre outros. Pretende-se uma análise do romance a partir das estratégias narrativas de desconstrução
da autora, com enfoque nos cruzamentos teóricos pós-coloniais, pós-modernos e feministas; no uso
da metaficção historiográfica; e na fragmentação identitária da personagem Grace Marks e da pró-
pria narrativa.
Palavras-chave: metaficção historiográfica, pós-colonialismo, empoderamento feminino.

ABSTRACT Considering the background of nineteenth-century-colonialist Canadá, the novel Alias Grace (Vulgo,
Grace), by Margaret Atwood, recounts the famous murder of Thomas Kinnear and his lover and hou-
sekeeper Nancy Montgomery in Canada in 1843. Grace Marks and James McDermott, Irish immigrants
and Kinnear`s employees, were found guilty and sentenced; McDermott was hanged and Marks was
sentenced to life imprisonment. Despite the novel being based on factual events, Atwood elaborates
a skilful narrative with the ficcional doctor Simon Jordan, who investigates the case from the perspec-
tive of criminal behavior. This paper studies the intersections of feminist literary criticism and theory,
and some of the cultural, historical and aesthetic assumptions of postmodernity, to explore the range
of possibilities of new models of novels in contemporaneity, as well as the author`s narrative strategies
that favor the construction of innovative ways of thinking and conceiving new forms of identity confi-
gurations of the female post-colonial subject. The theoretical contributions of authors such as Stuart
Hall (2001), Thomas Bonnici (2007), Linda Hutcheon (1992), among others, will be used here to analyze
Atwood’s novel based on Deconstruction and the intersections between postcolonial and feminist theo-
ries, as well as historiographic metafiction, and the fragmentation of both the protagonist`s identity
and the narrative itself.
Keywords: historiographical metafiction, post-colonialism, female empowerment.

Introdução
Antes de abordar a temática proposta pelo presente trabalho, algumas informações sobre a autora são de
fundamental importância para o conhecimento de suas estratégias narrativas e sua atuação, no que tange à
divulgação da cultura do Canadá e também à repercussão mundial de seu trabalho.
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4° CLAC/1° International • UFSJ • 2013 Gênero e sociedade: representaçôes femininas na contemporaneidade

Margaret Atwood é romancista, contista, poeta, ativista de causas sociais, ambientais e humanitárias, e
crítica literária contemporânea, sendo um dos expoentes da literatura canadense contemporânea, destacando-
se bastante no cenário internacional. O seu trabalho notabiliza-se por sua rica e vasta produção literária, que
aborda, entre variados tópicos, temáticas sociais inusitadas, como o sobrenatural, o gótico, a ficção científica,
distopias, metaficção historiográfica, mitologia, ecologia, questões identitárias do indivíduo e da nação,
questões femininas/feministas, teorias e questões coloniais, pós e neocoloniais da contemporaneidade.
Atwood possui obras de grande destaque e em diversas áreas, como The Journals of Susanna Moodie
(1970), Surfacing (1972), A Thematic Guide To Canadian Literature (1972), You are happy (poesia) (1974),
Selected Poems (1976), Up in a Tree (livro infantil) (1978), The Handmaid’s Tale (1986), Alias Grace (1996),The
Blind Assassin (2000), Oryx and Crake (2003), The Penelopiad (2005), The Year of The Flood (2009) e o recente
MaddAddam (2013). Com os seguintes romances, Atwood alcançou renome internacional: Life Before Man
(1979), Bodily Harm (1981), The Handmaid’s Tale (1985) e Cat’s Eye (1988). Além de todas as obras citadas, a
autora continua a produzir avidamente, inclusive inaugurando agora o campo da literatura cibernética. Ela já
ganhou prêmios importantes da literatura como o “Los Angeles Times” (prêmio de ficção), o prêmio canadense
“Giller” e, por duas vezes, o “Governor General’s Award”. Em muitas ocasiões, Atwood foi criticada por incluir
muitas mulheres na formação de sua literatura, fato este que contribuiu para a sua desconstrução, interpretação
e reavaliação do cânone literário canadense. Atualmente, ela está politicamente ativa em PEN (uma organização
literária e de direitos humanos que promove a liberdade de expressão) e a Anistia Internacional, trabalhando
também como ativista pela justiça social e pelo meio ambiente. Em vista disso, a autora tem influenciado várias
mulheres na contemporaneidade pelo seu trabalho de reconhecimento literário e social das situações opressivas
a que as mulheres sempre estiveram expostas.
Em Alias Grace, Atwood reescreve a história da personagem Grace Marks, concedendo-lhe voz, agência e
subjetividade em sua reconstrução identitária feminina, criando novas possibilidades de leitura e interpretação
de fatos históricos conhecidos. Atwood desconstrói as convenções presentes em sua ‘real história’, retratada em
jornais sensacionalistas que noticiavam o assassinato e o julgamento observado pela imprensa internacional da
época. Em vista disso, propõem-se aqui releituras que evidenciem o olhar feminino sobre Vulgo, Grace, com
o subsídio teórico de críticos e autores contemporâneos, tais como Thomas Bonnici (2005), Linda Hutcheon
(1987), Bill Ashcroft et al.(2002), Peonia Guedes (2002), Lucia de La Rocque (2001).
Partindo dos estudos sobre metaficção historiográfica e reconstrução identitária feminina, observa-se a
desconstrução do patriarcado e da outremização que dominavam de forma autoritária o cenário da sociedade
vitoriana canadense daquela época, de natureza patriarcal presente em vários outros setores, tais como a política,
a medicina, a religião e demais instituições.

Revisão de literatura
Dando abertura à abordagem no que tange alguns conceitos da teoria pós-colonial, feminismo, agência
e metaficção historiográfica, subsidiarão a pesquisa em foco os embasamentos crítico-teóricos formulados
por Thomas Bonnici (2005), Wanda Balzano (1996), Bill Ashcroft (2002) e Linda Hutcheon (1987), dentre
outros/as pesquisadores/as.
No que concerne à metaficção historiográfica, Linda Hutcheon (1987) explica que:
A metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de senso comum, para distinguir
entre o fato histórico e a ficção. Ela recusa a visão de que apenas a história tem uma pretensão
à verdade, por meio do questionamento da base dessa pretensão na historiografia e por meio da
afirmação de que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de
significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua principal pretensão à verdade.
(HUTCHEON, 1987, p. 127).

Com base no que Thomas Bonnici (2005) observa sobre o conceito de agência, percebemos que se
aplicarmos tais ideias à Grace Marks, perceberemos que a aptidão que a personagem tem de agir autônoma e

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determinadamente pela construção de sua identidade já é um indício forte de agência. Na verdade, a agência
se constrói pela via da ideologia, pela linguagem e pelo discurso, pois está intimamente ligada à ideia de
subjetividade, uma vez que o sujeito pós-colonial tende a reagir contra o poder hierárquico do colonizador
(BONNICI, 2005, p. 13).
Observa-se, ainda, dentro do desenvolvimento dos conceitos teóricos pós-coloniais, como a subversão
do discurso dominante se dá através da ironia presente na narrativa. Essa é uma das formas pela qual o
subjugado requer para si o que lhe foi retirado. Da mesma forma, Bonnici observa como esse processo de
empoderamento e reconstrução identitária feminina se desenvolve por meio da aquisição de alteridade. Para
ele, alteridade significa “ser o outro, ser diferente, manter a diversidade” (BONNICI, 2005, p. 14). Em outras
palavras, a alteridade refere-se ao outro engajado num contexto político, cultural, religioso e linguístico onde
a personagem apresenta voz e autonomia perante a ‘centralidade’ das instituições dominantes que falam em
nome de todos. Portanto, este é um dos primeiros passos para que um indivíduo adquira subjetividade e se
imponha como sujeito perante a sociedade em que vive.
Para Bill Ashcroft (2002), “o conceito de subjetividade problematiza a relação simples entre o
indivíduo e a linguagem, substituindo a natureza humana pelo conceito de produção do sujeito humano
através da ideologia, discurso ou linguagem” (ASHCROFT, 2002, p. 220), de forma que este se constitui
um conceito de muita relevância nas áreas das teorias feministas e pós-coloniais. Outro fator igualmente
importante para as mesmas teorias são as camadas ideológicas dos sentidos das relações dos pares binários,
desenvolvidas pelo linguista Fernand de Saussure. Saussure acreditava que o significado se construía através
da diferença. A partir desse princípio, muitos teóricos desenvolveram proposições acerca da oposição desses
pares binários de signos linguísticos. Bonnici (2005) ressalta a importância dos estudos de Lévi-Strauss
no contexto do estruturalismo antropológico que deram subsídios ao pós-estruturalismo, assim como
Derrida no campo literário, que trouxe à discussão a crise entre centro (termo privilegiado) e periférico
(termo não privilegiado). Respectivamente, os pressupostos das teorias pós-estruturalistas e feministas
têm colaborado para refletirmos sobre até que ponto tais binarismos (centro/margem; homem/mulher;
colonizador/colonizado; branco/preto etc.) implicam uma hierarquia violenta, em que o primeiro termo
do par binário é sempre dominante em relação ao segundo. (BONNICI, 2005, p.16).
Uma das relações mais controversas no discurso pós-colonial tem sido o centro / margem (periferia).
Bill Ashcroft (2002) observa que a estrutura binária de dominação está intrinsecamente condicionada
ao mecanismo da ideologia, onde se molda todo o pensamento de uma sociedade, de um povo, de uma
nação. Nos estudos pós-coloniais, a ideologia é responsável pela reprodução de marcas como a submissão
feminina ao patriarcado, assim como de outras formas de dominação. Ashcroft explicita que:
Ideologia é o sistema de ideias que explica, ou faz todo o sentido de uma sociedade, e de acordo
com Marx, é o mecanismo pelo qual as relações sociais desiguais são reproduzidas. As classes
dominantes não apenas preceituam, elas também governam como pensadoras e produtoras de
ideias para que elas determinem como a sociedade vê a si mesma (hegemonia) (ASHCROFT,
2002, p. 221).

A implantação gradual de um Império dependerá de uma relação hierárquica estável em que os colonizados
existam como o outro da cultura colonizadora. Partindo de tal pressuposto, Bonnici ressalta que o Canadá,
como exemplo de colônia povoadora, insurgiu-se de sua experiência de colonização e de alguma forma impôs-
se ao poder imperial. Hoje, apesar de ser um estado autônomo, ainda mantém certa relação de lealdade e
amizade com a ex-metrópole inglesa, com a qual mantém estreita união. A experiência de apagamento de sua
cultura e da proscrição de suas identidades integra o conteúdo das narrativas de povos pós-coloniais.
A literatura pós-colonial baseia-se nessa rede de relações imperiais e pós-imperiais complexas e narra
ficcionalmente acontecimentos de povos e indivíduos colonizados, criando uma estética a partir do excluído.
Pode-se também inserir nesse contexto, aquele que advém de outro lugar que, de uma forma voluntária ou
involuntária, foi deportado de sua terra e, convivendo em um ambiente forasteiro, sente-se desenraizado de
seus costumes culturais e de seu lar. Bonnici define tal condição com as seguintes palavras:

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Diáspora (do grego diasporein: semear) significa a dispersão de pessoas. As pessoas diaspóricas
vivem longe de sua terra natal, rela ou imaginária, a qual ainda está enraizada ou na língua
atualmente falada, ou na religião adotada ou nas culturas produzidas (BONNICI, 2005, p. 21).

Não obstante, acerca das observações feitas sobre os conceitos de ideologia e diáspora, Wanda Balzano
(1996), observa que o poder colonial ostenta uma forte tendência a identificar as mulheres como sujeitos
passivos, com necessidade de orientação, incapazes de governarem-se, românticas, idealistas e apaixonadas. Por
todas essas características, as mulheres irlandesas têm sido tradicionalmente tanto elogiadas quanto identificadas
em seus arquétipos:
Para as mulheres irlandesas a tentativa de (re) descobrir a sua identidade feminina tem sido ofuscada
não só pelos ditames do patriarcado, mas também pela “alteridade” da Irlanda. O anonimato do
feminino, isto é, a dificuldade de definir-se como mulheres, foi ainda mais complicada por uma
história nacional da colonização, privação e luta (BALZANO, 1996, p.92).

Abordando agora a temática da loucura e da mulher e a relação paciente/doutor, darão subsídios para tal
estudo, as autoras Lucia de La Rocque (2001), Leila Assumpção Harris e Lilian Nascimento Pinho (2003), e
Sandra Gilbert e Suzan Gubar (1979).
Como observa Lucia de La Rocque (2001), “o tema da loucura esteve sempre presente na história da
literatura ocidental”. No passado, a tradição da loucura expressa na literatura deixava de lado a questão do
gênero, focando-se em arquétipos de protagonistas masculinos e escrita em sua maior parte por autores homens
(ROCQUE, 2001, p. 515). Suas palavras evidenciam como a esfera médica estava totalmente inserida na égide
do poder patriarcal:
A verdade é que a discussão em torno do tema da loucura feminina, tanto na literatura quanto
na vida real tem, frequentemente, ignorado a relação entre a opressão patriarcal e o equilíbrio
mental da mulher. Como, no passado recente, a medicina era uma atividade exclusivamente
masculina, o diagnóstico e o tratamento das mulheres com problemas mentais imbuíam-se das
ideias patriarcais a respeito do “sexo frágil” (ROCQUE, 2001, p. 516).

Em The madwoman in the attic: the woman writer and the nineteenth-century literary imagination, de
Sandra Gilbert e Suzan Gubar (1979), a abordagem da loucura é descrita sob uma perspectiva feminista, onde
a inconstância pode alimentar o âmago das mulheres e sugerir que as mesmas tenham o poder de criarem-se a
si mesmas como personagens. Valendo-se da metáfora de Virgínia Wolf, as escritoras salientam que a mulher
em estado de insanidade possui duas imagens: a do anjo doméstico e a do monstro. Ela tem que matar o “anjo
doméstico”, ou seja, o ideal estético que a mata na arte. Além disso, tem que matar também o monstro. Para as
feministas, matar o anjo e o monstro significa entender a natureza e a origem dessas imagens. Isso porque tais
imagens têm estado tão presentes na literatura, de homens e de mulheres, que muitas vezes parece que poucas
delas realmente conseguiram banir essas figuras. Somente assim, “obtém-se o poder de alcançar a mulher presa
do outro lado do espelho/texto e ajudá-la a sair” (GILBERT & GUDAR, 1979, p.).
Leila Assumpção Harris e Lilian Nascimento Pinho abordam diretamente a questão da insanidade presente
na obra de Atwood em seu artigo “(In)sanidade em Alias Grace” (2003). Segundo as autoras, a loucura é
concebida no romance principalmente como uma questão de ponto de vista, conformidade e situação social.
Os personagens que detêm poder para determinar quem é realmente louco, o fazem com base em seus pontos
de vista e conveniência. Por outro lado, a condição social de Grace Marks, moça irlandesa de baixa classe social,
faz com que ela seja excluída da sociedade e classificada como louca. Harris e Pinho observam que:
A arbitrariedade do conceito de loucura é, portanto, sublinhada através da diversidade de
definições oferecidas pelos personagens. Cada um expressa, de acordo com a sua visão de mundo,
sua opinião sobre o que seja loucura. Para a mãe de Dr. Simon, por exemplo, é uma questão de
providência divina e, condição determinada por Deus, não deixa espaço para a intromissão dos
homens. Para o Dr. Bannerling, psiquiatra responsável pelo manicômio na época em que Grace
esteve internada, que acredita que a loucura tem origem orgânica, a insanidade está no sangue.
Já para o Dr. Jordan, a loucura é a incapacidade de manter a imaginação sobre o jugo da razão. A

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ironia nessa última definição é evidente, uma vez que ele próprio não tem controle algum sobre
os voos de sua imaginação (HARRIS e PINHO, 2003, p. 388).

Valendo-se de Elaine Showalter em Female Malady, Harris e Pinho (2003) contrapõem-se à ideia da
autora que, chama a atenção para a relação culturalmente estipulada entre ‘mulher / loucura’ na qual “loucura
é associada com a natureza essencialmente feminina que se revela diante da racionalidade científica masculina”
(HARRIS e PINHO, 2003, pp. 388 – 389).
Atwood desconstrói essa relação em seu Vulgo, Grace: a protagonista-paciente substitui o Dr. Simon
Jordan na posição de racionalidade e autoridade em várias ocasiões, de acordo com a sua própria conveniência.
Ao mesmo tempo, ainda que cônscio do poder que a sociedade patriarcal confere aos médicos e a ele próprio, o
Dr. Jordan contraria, com sua insegurança e ausente perspicácia, o arquétipo do homem da ciência, totalmente
seguro de si e de suas ações. Repetidas vezes por toda a obra, exemplos de tal situação são fartamente oferecidos.
Enquanto Grace chega a experimentar, em determinadas ocasiões, certo aversão ao Dr. Jordan, este, distingue
a astúcia de sua paciente e o problema que tem em acompanhá-la.

Análise da obra
Em Vulgo Grace, Margaret Atwood reconstitui um acontecimento histórico utilizando-se de diversas
estratégias narrativas pós-modernas. Misturando ficção e história, a autora consegue surpreendentemente
elaborar um admirável exemplo de uso bastante eficaz dos recursos da metaficção historiográfica.
Linda Hutcheon pondera muito bem quando explicita que “a metaficção historiográfica nos lembra
que, embora os acontecimentos tenham mesmo ocorrido no passado real empírico, nós denominamos e
constituímos esses acontecimentos como fatos históricos por meio da seleção e do posicionamento narrativo”
(HUTCHEON, 1987, p. 131). Em vista disso, Atwood por meio de sua narrativa apropriou-se de uma
determinada personagem histórica para construir sua personagem, que não só se mantém como figura histórica
através de fragmentos reunidos durante a pesquisa para a elaboração de seu romance, como também é (re)
constituída como criação literária a partir desses próprios fragmentos de verdades históricas.
Segundo Peonia Viana Guedes (2002, p. 70), Atwood reconta o famoso caso na imprensa canadense e
internacional do verão de 1843, onde Grace Maks, juntamente com James MacDemortt, é condenada pelos
assassinatos do fazendeiro e patrão Thomas Kinnear e da sua governanta e suposta amante (grávida de semanas)
Nancy Montgomery. Os crimes ocorreram em Richmond Hill, propriedade rural de uma pequena cidade ao
norte de Toronto, no Canadá. Os corpos das vítimas foram descobertos no porão da fazenda. Ambos os
‘assassinos’ eram muito jovens – Grace Marks, moça irlandesa que havia atravessado o oceano para tentar uma
nova vida no continente americano, com 16 anos e, James McDemortt, peão da fazenda de expressões faciais
que revelavam certa má índole, com 21 anos de idade. Os dois chegaram a fugir, em sentido à fronteira com
os Estados Unidos, mas logo foram encontrados e presos. Retornaram a Toronto, onde o veredicto do tribunal
com base no testemunho do outro funcionário do fazendeiro Kinnear, James Walsh, condenou-os à pena de
morte. Logo estipulada a sentença, McDemortt foi enforcado pelos assassinatos dos quais fora acusado. No
entanto, a jovem Grace Marks teve sua sentença comutada pelo sistema jurídico para prisão perpétua.
Deve-se observar que as pressões de algumas personalidades de grande influência política e religiosa
daquela sociedade interferiram a favor de Grace, por terem dúvidas quanto ao seu envolvimento consciente
nos crimes. Bill Ashcroft (2002) elucida como o conceito de classe, dentro dos estudos pós-colonialistas,
cruza em aspectos importantes com as implicações culturais de dominação colonial. A influência econômica
é significativa inclusive para determinar quem é realmente dono de sua própria sanidade. O autor delimita o
conceito da seguinte maneira:
[...] Classe foi um fator importante no colonialismo, essencialmente na construção das atitudes
dos colonizadores para diferentes grupos e categorias dos próprios povos colonizados como eles
começaram a empregar o discurso cultural colonial para descrever a natureza mutável de suas
próprias sociedades (ASHCROFT, 2002, pp. 37-38).

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Salva da sentença de morte, Grace Marks passa a cumprir nove anos de confinamento na penitenciaria
de Kingston. Posteriormente, Marks é transferida para o Hospício Provincial de Toronto, depois de uma
crise nervosa e, consequentemente, o diagnóstico de loucura furiosa como consta em sua ficha médica, com
observações quanto ao seu comportamento com resistência à autoridade e nuances de exacerbada rebeldia. Assim
como em ‘The madwoman in the attic: the woman writer and the nineteenth-century literary imagination’
de Sandra Gilbert e Suzan Gubar (1979), onde a cura para o desespero da mulher deve ser espiritual e físico,
estético e social e, até uma louca, sentenciada a estar presa na casa do seu próprio corpo, pode descobrir que
ela tem a si mesma para recupera, Vulgo, Grace apresenta uma Grace Marks confinada entre as paredes de uma
penitenciária e de um hospício, vítima das circunstâncias, com identidades múltiplas e fragmentadas, tendo
para si própria, suas mentiras e oportunismo para não entrar em um estado de insanidade. O problema é que
praticamente tudo sobre Grace Marks é sujeito à instabilidade e está sempre em processo, de modo que não se
tem certeza de se ela é mesmo assassina, se é louca mesmo ou se está fingindo, e se as várias versões do crime e
dos acontecimentos que a envolveram no passado são verdadeiras ou não.
Na obra de Margaret Atwood, a protagonista Grace Marks recebe as visitas de seu médico alienista Simon
Jordan, um jovem americano recém-formado e adepto das “modernas” teorias de psicologia e psiquiatria. Ele
foi contratado pelo Reverendo Verringer, que, se propõe a investigar a sanidade da jovem. Simon substitui
os médicos anteriores que procuraram tratar Grace enquanto ela estava no hospício. Depois de um ataque
histérico, a protagonista é levada novamente à penitenciaria, onde começa a ter contato com o jovem médico
americano, interessado em doenças mentais e em estudar o comportamento dos assassinos. Atwood, com sua
metaficção historiográfica desconstrói e reconstrói a personagem histórica Grace Marks, de maneira a revisar
aquelas imagens de mulheres herdadas da literatura masculina, especialmente, conforme Gilbert e Gudar
(1979) exemplificam, “as de polaridades paradigmáticas de anjo e monstro”. Segundo as autoras, é imperativo
que se recusem, sobretudo, os valores que a nossa sociedade cunhou para tais paradigmas, desconstruindo a
visão masculina que se tem e instaurando a individualidade. Para tanto, a mulher deve libertar-se do ‘espelho’
em que ficou aprisionada por tanto tempo para ganhar assim, seu empoderamento (GILBERT and GUDAR,
1979, p. 115).
Dr. Simon Jordan, assim que apresentado à Grace Marks, começa aos poucos a construir uma relação
amigável entre médico/paciente para coletar depoimentos de Grace. Jordan aspira descobrir se ela mente ou se
realmente tem problemas de memória, que a impedem de se lembrar do que aconteceu no dia da morte do Sr.
Kinnear e de Nancy. Grace conta-lhe sobre sua vida, desde a época passada na Irlanda, onde nasceu e de onde
a família parte para o Canadá em busca de melhores condições. Conforme Ashcroft (2002) e Bonnici (2005)
acentuam, o movimento da diáspora, sendo ele voluntário ou forçado, é caracterizado pelo deslocamento de
pessoas de suas terras em novas regiões, é um fato histórico central da colonização. O Colonialismo em si, foi
um movimento radicalmente diaspórico que envolveu as dispersões temporárias ou permanentes de milhões
de europeus pelo mundo inteiro, assim também como aconteceu com Grace Marks. Mantendo a imagem da
relação entre Grã-Bretanha (metrópole) e Irlanda (colônia), pode-se transferir tal paradigma para a relação
Canadá/Irlanda, de modo que se observa aí uma sociedade canadense em que a ideologia presente é a de o
Canadá é uma extensão do império britânico, o que se tornou uma das razões a problematizar a identidade
canadense. Vulgo, Grace demonstra tal estratificação social em relação ao histórico da personagem Grace Marks,
considerada como um ser ex-cêntrico, marginal. É interessante que por vezes se percebe a assimilação desse
comportamento pela própria Grace Marks, como quando ela afirma que é da Irlanda, sim, mas da Irlanda do
Norte, o que acredita que a tornaria quase igual (ou igual) aos ingleses e, nesse caso, aos canadenses também,
se o “outro” da relação binária fosse alguém da Irlanda do Sul (católica e bem diferente da Inglaterra e do
Canadá).
Apesar de muitas vezes mostrar ao leitor detalhes dos acontecimentos que compõem a história de
Grace, Margaret Atwood utiliza-se de sutilezas para deixar subentendidos importantes aspectos da trajetória
da protagonista. Suas declarações ao jovem doutor são contraditórias, pois marcam a imprecisão de todos os
eventos narrados, o que gera uma total incerteza ao leitor quanto à culpabilidade ou mesmo inocência de
Grace. Na obra de Atwood, Grace Marks possui um senso altamente crítico, característico da narrativa pós-

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moderna irônica, como é observado na seguinte passagem em que a protagonista faz um juízo de seu médico
alienista Simon Jordan logo após conversarem sobre afazeres domésticos:
Olho para ele. Ele está usando uma gravata amarela com quadradinhos. Não está fazendo uma
piada. Ele realmente não sabe. Homens como ele não tem que limpar a própria sujeira que
fazem, mas nós temos que limpar a nossa própria sujeira, e mais as deles. Nesse sentido são como
crianças, não tem que pensar no futuro, ou se preocupar com as consequências do que fazem.
Mas não é culpa deles, é como foram criados. (ATWOOD, 1997, p. 207).

Aos poucos, Simon Jordan se envolve na história de Marks e busca distinguir a mulher doce e educada
que vê da mulher que outrora fora condenada pelo assassinato. Consequentemente, o romance é cercado por
ambiguidades, tanto no discurso contraditório de Grace quanto na sua manifesta identidade de várias faces. Isso
é marcado pelas revelações e velamentos sobre o que ela diz ou diz não se lembrar sobre os assassinatos. Vulgo,
Grace lembra uma colcha de retalhos, em que cada pedaço de tecido remete a um momento ou personagem
diferente, mas que, no final, quando todos estão costurados, formam uma história completa na qual Margaret
Atwood, com eximia maestria, estimula os leitores a formarem sua própria opinião sobre a personagem e sua
história.

Considerações finais
Em vista da situação submissa reservada às mulheres no século XIX, compreende-se por que Vulgo, Grace
subverte e desconstrói esses pressupostos da cultura androcêntrica. Em função da contribuição das estéticas
da pós-modernidade, com o seu revisionismo, e a refutação de valores monolíticos e absolutos dos papéis
reservados aos gêneros na contemporaneidade, podemos entender a relevância estética, política e social dessa
obra de Atwood. Na verdade, o pensamento androcêntrico “naturalizou” a subserviência da mulher ao longo
da história, como afirmam Thomas Bonnici (2002) e Lucia de La Rocque (2001), dentre outros teóricos e
teóricas.
Assim, adotando tal perspectiva de desconstrução, a narrativa metaficcional analisada é de fato representante
da desconstrução dos papéis femininos opressivos e subalternos. Essa subversão produz novas possibilidades de
visão, identidade, agência e empoderamento femininos.
Quanto à pós-modernidade, também fica patente que não cabem mais versões definitivas sobre quaisquer
assuntos, tópicos ou temáticas na contemporaneidade. Ao contrário, privilegiam-se as pequenas histórias, os
pequenos relatos e as vozes das minorias, sejam elas quais forem. Assim, conferem-se visões contemporâneas
emancipadas do papel da mulher na nossa sociedade, as quais possibilitam desafios à pretensão de verdade da
historiografia, como o levado a efeito por essa obra de Atwood. Na obra analisada, a personagem Grace Marks,
conforme já abordado, estava situada em uma posição ex-cêntrica na sociedade. Sendo assim, Grace tem
agência e voz a partir de uma perspectiva descentralizada para revelar fatos e motivos de sua (não) participação
no crime de Thomas Kinnear e de Nancy Montgomery.

Referências
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Routledge, 2002.
ATWOOD, Margaret. Vulgo, Grace. Tradução: Maria J. Silveira. São Paulo, SP: Marco Zero Editora, 1997.
BALZANO, Wanda. Irishness – Feminism and Post-Colonial. In: CHAMBERS, Iain and CURTI Lidia. The
Post-Colonial Question. London and New York: Routledge, 1996.
BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá. PR: Eduem, 2005.
GILBERT, Sandra, GUBAR, Suzan. The madwoman in the attic: the woman writer and the nineteenth-century
literary imagination. New Haven: Yale University Press, 1979.

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GUEDES, Peonia Viana. Entre os Discursos da História e da Ficção: Múltiplas Verdades e Personalidades em Alias
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HARRIS, Leila Assumpção e PINHO, Lilian Nascimento. (In)sanidade em Alias Grace. In: BRANDÃO,
Izabel e MUZART, Zahide L., org. Refazendo Nós: Ensaios sobre Mulheres e Literatura. Florianópolis: Editora
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HUTCHEON, Linda. Descentralizando o Pós-Moderno: o Ex-Cêntrico. In: _____________Poética do Pós-
Modernismo: história ∙ teoria ∙ ficção. Rio de Janeiro. RJ: Imago Editora, p. 84-103. 1987.
HUTCHEON, Linda. Metaficção-Historiográfica: “O Passatempo do Tempo Passado”. In: _____________
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ROCQUE, Lucia de La. Médicos e Monstros: a Mente Feminina à Mercê do Controle Patriarcal da Medicina
em The Bell Jar, de Sylvia Plath. In: TORRES, Sonia (Org). Raízes e Rumos: Perspectivas Interdisciplinares em
Estudos Americanos. Rio de Janeiro: 7 letras, p. 515-525. 2001.

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