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Uma leitura da série televisiva The Walking Dead a partir do realismo grotesco de
Bakhtin
2018
São Paulo
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Resumo:
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar que o mito do apocalipse zumbi e dos
mortos-vivos está cada vez mais presente na cultura popular do século XXI por expressar
o anseio pela transformação das forças autoritárias da civilização e por alegorizar a
constante busca por significado de vida do indivíduo contemporâneo. Faz isso analisando
a popular série televisiva The Walking Dead, através da estética bakhtiniana do realismo
grotesco, mostrando como a série está inserida na cosmovisão carnavalesca, superpondo
duas camadas de realidade, a civilizada e a deteriorada a partir da presença do
monstruoso. Também, mostra como o mito do zumbi na série revigora e transforma a
estética do realismo grotesco não a partir do riso, mas do horror, e como esse horror
resguarda a ambivalência positivo-negativa e seu papel regenerador.
Introdução
As histórias de zumbis são sucesso. Em 2003, o criador Robert Kirkman junto do então
desenhista Tony Moore lançaram uma série em quadrinhos de publicação mensal que até
hoje não para de crescer. The Walking Dead já chegou à 180° edição e venceu o Eisner
Award de melhor série continuada em 2010. Dos quadrinhos, duas séries de televisão e
oito livros já saíram como parte deste universo. Destacamos aqui a série homônima, que
estreou em 2010 pela produtora AMC, com a participação de Robert Kirkman como um
dos criadores. A série, que atualmente já foi renovada para a 9a temporada, recebeu várias
indicações de prêmios, entre eles o Golden Globe Awards. Além do mais, bateu o recorde
do episódio de drama mais assistido da história da televisão com a estreia da quinta
temporada, tendo 17,29 milhões de telespectadores.
Tanto a série em quadrinhos quanto a série televisiva do mesmo nome contam a história
de um grupo de sobreviventes liderado pelo ex-xerife Rick Grimes, e a busca por
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encontrar vida em um mundo que foi devastado por uma epidemia de zumbis. A história
se aproveita da mitologia pós-apocalíptica de mortos-vivos, tal como clássicos como o
filme de 1968 dirigido por George Romero, “A noite dos mortos-vivos”, e faz coro com
várias outras mídias contemporâneas que utilizaram o mito, como os jogos de vídeo game
Resident Evil, lançado em 1996, e que em 2017 lançou sua 7a edição; ou a franquia que
já anunciou sua segunda edição para 2019, “Guerra mundial Z”, protagonizada por Brad
Pitt, baseada em obra literária homônima, escrita por Max Brooks; ou até mesmo o filme
“Eu sou a lenda”, dirigido por Francis Lawrence e estrelado por Will Smitt.
Todo esse sucesso demonstra que as histórias pós-apocalípticas de zumbis encontraram
no século XXI um solo fértil. Queremos demonstrar neste artigo que as narrativas de
zumbis, longe de serem mero entretenimento do gênero horror, expressam o anseio por
transformação, por um novo mundo, por significado, e faz isso revelando o horror da
civilização humana. Pretendemos fazê-lo a partir de uma leitura da série televisiva The
Walking Dead sob a ótica do realismo grotesco conforme elaborado por Bakhtin.
Para Bakhtin, o realismo grotesco é uma manifestação literária e artística que rebaixa a
realidade, tratando de um modo irreverente tudo o que a sociedade sacraliza e eleva. Esse
rebaixamento ocorre a partir de uma realidade disforme, que distorce as proporções e
mistura os domínios do corpo e da matéria. Essa realidade disforme é a cosmovisão da
carnavalização do mundo, o mundo ao revés, quando o elevado é rebaixado, e o homem
comum é entronizado. Mas esse rebaixamento da cosmovisão carnavalesca possui uma
ambivalência, isto é, tem ao mesmo tempo um valor negativo e positivo. Esse
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horror, do qual a série faz parte, não poupa o expectador da aparência horripilante de seus
monstros. A deformidade é altamente visível, de modo não a causar medo, mas asco e
nojo. É desta forma revelada, horripilante, nojenta, horrenda, que a série apresentará os
seus monstros.
Da mesma forma, o grotesco é apresentado na deformidade do corpo, e na sua unidade
com aquilo que é material. Esse rebaixamento do que é idealizado por meio da
deformidade corporal é fundamental para compreender o realismo grotesco:
"Não são apenas as paródias no sentido estrito do termo, mas também todas as outras
formas do realismo grotesco que rebaixam, aproximam da terra e corporificam. Essa
é a qualidade essencial desse realismo, que o separa das demais formas "nobres" da
literatura e da arte medieval. O riso popular que organiza todas as formas do realismo
grotesco, foi sempre ligado ao baixo material e corporal. O riso degrada e materializa."
(BAKHTIN, 1999, p. 18).
Vamos conferir como a hibridez corporal e material e como a degradação física são
apresentados na série.
Na FIGURA 1, vemos um dos primeiros zumbis que são mostrados na série, logo depois
que o protagonista Rick acorda de um coma e sai ao mundo totalmente infernal dominado
por walkers. Nos primeiros instantes da série, a câmera foca neste ser disforme, que nem
é morto nem é vivo. O objetivo não é esconder, assustar, causar medo, mas mostrar,
revelar o horripilante corpo disforme, para chocar.
FIGURA 1
Os walkers são presença constante na série, e muitas vezes eles revelam o hibridismo
entre o inocente e o horripilante, especialmente com a presença de crianças zumbis,
conforme FIGURA 2 e FIGURA 3.
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FIGURA 2
FIGURA 3
Esse hibridismo também é apresentado quando há mistura entre o corpo e a matéria, como
quando um zumbi está totalmente tomado pela água (FIGURA 4) ou por arbustos
(FIGURA 5).
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FIGURA 4
FIGURA 5
FIGURA 6
Também, de forma alegórica, para mostrar que os vivos se degradavam tanto quanto os
zumbis, na 4a temporada, os sobreviventes do Rick precisaram lidar com um grupo de
homens que se tornou canibal.
No entanto, o principal modo como a série mostra que todos são zumbis é revelando que
todos os vivos estão infectados com o “vírus zumbi”. No início da série, cria-se que
apenas aqueles que eram mordidos pelos walker é que se tornavam zumbis. Porém, no
decorrer dos episódios, descobre-se que todos se tornam zumbis quando morrem, e que o
único modo de matar de uma vez por todas é atirando na cabeça.
Com isso, queremos mostrar que, na série, todos estão com seus corpos desfigurados -
todos são zumbis.
Quanto à questão do rebaixamento, queremos mostrar que a série zomba de toda a ideia
de civilidade humana. Um zumbi, afinal, é um ser nem morto, nem vivo, que caminha
despido de tudo o que chamamos civilidade, tal como racionalidade, asseio, cordialidade
etc. Um zumbi é a negação de toda a civilidade. E é justamente isso o que irá ocorrer com
os vivos, lidando neste mundo ao revés. No decorrer dos episódios, todas as noções de
civilidade serão dessacralizadas.
A instituição da família, por exemplo, neste novo mundo, é dessacralizada, tendo como
exemplo a própria família do protagonista Rick. Ele é casado com Lori, e com ela tem
um filho chamado Carl. Essa família é a realidade do mundo anterior. Quando o mundo
se inverte, sua esposa, crendo que seu marido esteja morto, o trai com seu melhor amigo,
Shane. Quando Rick reencontra a família, Lori está grávida, e a série deixa em aberto de
quem seria o filho. Quando Lori vai ter o bebê, não tendo um médico perto, pede para
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que seu ventre seja rasgado para que o bebê sobreviva, e assim é feito o parto, e a mãe
morre. Depois, quando vão buscar o corpo de Lori, descobrem que ela mesma foi
devorada por um zumbi.
Outro exemplo de rebaixamento ocorrido logo na primeira temporada é daquilo que
poderíamos chamar de conservadorismo, alegorizado pela figura do Hershel Greene, um
patriarca de uma grande família numa fazenda, onde os sobreviventes liderados por Rick
irão encontrar refúgio. Esse patriarca, agarrado ao passado, mantem em segredo todos os
zumbis que encontra presos em um celeiro, na esperança de um dia revivê-los. Durante a
temporada, todavia, ele vai se dando conta da gravidade do mal, e todos decidem então
por matar todos os zumbis que estavam presos no celeiro. Assim, sua esperança em
reviver o passado é frustrada, afinal, ele cria cultivar vida, mas cultivava morte em seu
celeiro.
A religião também é dessacralizada neste mundo carnavalizado de The Walking Dead, na
figura do padre Gabriel. Esse padre é introduzido na série na 5a temporada, e sua história
vai sendo revelada aos poucos. Ele é um padre atormentado pela culpa, pois, nos
primórdios do apocalipse zumbi, os fiéis foram buscar refúgio na igreja, mas o padre, por
medo, deixou-a trancada, e viu os fiéis sendo mortos por zumbis do lado de fora, se
debatendo, sem salvar ninguém. Assim, a igreja, que deveria salvar, não salva.
A sociedade como um todo também é zombada em vários temas das temporadas. Por
exemplo, na 3a temporada, os sobreviventes encontram segurança dentro de uma prisão,
enquanto os walkers caminham livres do outro lado dessa prisão.
Na 5a temporada, depois de o grupo de sobreviventes já ter passado inúmeros perigos
lutando pela vida, encontram uma comunidade chamada Alexandria que vive
completamente intocada pelo mundo zumbi, como se nada houvesse acontecido. Todos
dentro da comunidade vivem como se não houvesse um mundo lá fora, totalmente
alienados da realidade. A chegada do grupo de sobreviventes choca pelo contraste de
ambos os grupos. Ali, as duas realidades colidem, uma que sabe o que está acontecendo
com o mundo, e outra que está completamente despreparada para lidar com ele.
Enfim, o mundo instaurado pelo apocalipse zumbi superpõe duas camadas semânticas, a
da civilidade, da racionalidade, dos princípios de asseio e de cordialidade, da tradição, da
religião, da sociedade, e o mundo ao revés, quando os vivos se utilizam da máscara zumbi
para revelar-se em sua crueldade, em seu desejo de domínio, em violência, é quando toda
a desfarsatez da civilidade é revelada. Para Bakhtin (1999, p.123), a cosmovisão
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Esse mundo em transformação, para além do terror, da violência, também traz significado
e renovação aos personagens. Por exemplo, a personagem Carol, antes do mundo ser
revertido, era uma dona de casa explorada que apanhava do marido. Já no novo mundo,
ela se torna uma mulher corajosa, que toma decisões difíceis e se vê em torno de novos
relacionamentos amorosos. O personagem Daryl, também, era menosprezado pelo irmão
mais velho, mas no grupo de sobreviventes é valorizado e encontra significado. O
personagem Glenn, que era um simples entregador de pizza na realidade anterior, no novo
mundo se torna um grande provedor de alimento para os sobreviventes, encontra uma
esposa e a felicidade.
Todos os personagens estão em transformação. Eles saíram de um mundo estático para
um mundo que ainda precisa ser reconstruído, e esse é o grande anseio que o realismo
grotesco de The Walking Dead explora.
Considerações finais
A série televisiva The Walking Dead, ao apropriar-se da mitologia apocalíptica dos
mortos-vivos, expressa o anseio por uma libertação da força centrípeta da civilização,
instaurando assim um discurso centrífugo, em busca de significado. Faz isso seguindo a
tradição da estética do realismo grotesco da Idade Média e do Renascimento, e ao mesmo
tempo transformando-a, por meio do horror e não do riso, e por meio dele revela sua face
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Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento,
A: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec : Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 1999.
DISCINI, Norma. Carnavalização. In: BRAIT, Beth (org). Bakhtin: outros conceitos-
chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 53-93.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Contexto, 2017.