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[verso da guarda]
FERNANDO OLIVEIRA:
UM HUMANISTA GENIAL
(pelos 500 anos do seu nascimento)
[verso da folha de rosto]
António Tavares (Coord.)
FERNANDO OLIVEIRA: UM
HUMANISTA GENIAL
(pelos 500 anos do seu nascimento)
UA EDITORA | AVEIRO
2018
Título: Fernando Oliveira: um humanista genial (pelos 500
anos do seu nascimento)
Autor: António Tavares
UA Editora
Campus Universitário, Av. da Universidade
3810-193 Aveiro
Impressão e acabamento:
Copyfast
ÍNDICE
I Vida e obra 9
Texto 1 11
Autor(es)
Texto 2 57
Autor(es)
II O filólogo 103
Gramáticas portuguesas de quinhentos no quadro 105
do humanismo europeu
Carlos Assunção; Maria Helena Santos
Texto 2 151
Autor(es)
III O historiador 191
Texto 1 193
Autor(es)
Texto 2 233
Autor(es)
IV O marinheiro 273
Texto 1 275
Autor(es)
Texto 2 315
Autor(es)
[verso do índice]
I.
Vida e obra
[verso]
Gramáticas portuguesas de quinhentos
no quadro do humanismo europeu
Carlos Assunção
cassunca@utad.pt
Maria Helena Santos
hpessoa@utad.pt
UTAD
Resumo
Pretende-se com este texto fazer a contextualização
do aparecimento das primeiras gramáticas da língua
portuguesa. Num primeiro momento, far-se-á um
breve excurso sobre o quadro humanista europeu
coevo desses textos metalinguísticos; num segundo
momento, apresentar-se-á uma sumária descrição de
alguns aspetos das obras gramaticais de Fernão de
Oliveira e de João de Barros considerados relevantes.
Palavras-chave: variação; mudança.
Abstract
With this text we intend to contextualize the
emergence of the first grammars of the Portuguese
language. First of all we will depict the framework of
European humanism that surrounded those
metalinguistic texts. Secondly, we will present a brief
description of some of the most important features of
the grammars of Fernão de Oliveira and João de
Barros.
Keywords: variation; change
[105]
Todas cousas têm seu tempo: e os ociosos o perdem.
Fernão de Oliveira, Grammatica da lingoagem portuguesa (1536).
[106]
e no estudo comparativo entre os sistemas
gramaticais daquelas e das recém-descobertas.
O conhecimento de novas línguas, decorrente
da expansão dos povos europeus, colocou, por um
lado, problemas de comunicabilidade, mas, por outro,
acelerou o estudo interlinguístico, resultando na
proliferação de dicionários e de sistematizações
gramaticais, destinadas a aprender a ler e a escrever.
Apesar de o conhecimento europeu do árabe e
do hebreu remontar aos séculos VII e VIII, devido à
expansão do poderio árabe, o seu aprofundamento
ocorreu na época renascentista. Como consequência
deste interesse dedicado à língua do Antigo
Testamento, surgiram algumas gramáticas hebraicas,
destacando-se a de Johann Reuchlin. O conhecimento
europeu do árabe e do hebreu, conjuntamente com a
descoberta das línguas exóticas, abriu caminho para
que a ênfase dos estudos linguísticos se deslocasse das
línguas clássicas para as vernáculas, as quais foram
objeto de um estudo científico pormenorizado.
[107]
Não será, contudo, demais insistir na ideia de
que os gramáticos quinhentistas aspiravam dar à sua
língua a regularidade e a sistematização que os
Alexandrinos tinham conferido ao grego e os
gramáticos da época imperial ao latim. Com isto,
visavam atribuir às línguas vulgares a dignidade e o
prestígio proclamados nas «apologias», nos
«louvores» e nas «defesas».
Esse prestígio e essa dignidade são diretamente
proporcionais ao rigor e à exatidão da codificação das
realidades gramaticais[,] e daqui deriva a
preocupação primordial dos gramáticos renascentistas
com a fonética, a fonologia e a ortografia. O objetivo é
estabelecer princípios gerais de ordem prática,
rejeitando as subtilezas da especulação medieval, já
que tinham no horizonte a tarefa de regularizar a
anarquia que dominava o uso da língua e da
ortografia.
Portanto, regular o uso da língua vulgar era, no
início do século XVI, a grande finalidade da
[108]
gramática. É que a língua é vista como a «alma» de
cada povo e, neste sentido, a consciência linguística
anda a par da consciência nacional ou imperial.
Com o Renascimento ressurgindo na Europa
Ocidental o gosto pelas coisas da Hélade, também os
humanistas começaram a imitar a atitude mental dos
Gregos (cf. Assunção, 1997b: 66). Assim, entre a
gramática concebida durante a Idade Média como
disciplina do Trivium e a gramática renascentista,
disciplina que já fazia parte dos estudos menores1,
[113]
Em França, no princípio do século XVI, não
havia obras gramaticais de grande autoridade. Assim,
o primeiro que tentou fixar as regras gramaticais da
língua francesa foi um estrangeiro, Jean Palsgrave,
que publicou, em 1530, Lesclarcissement de la Langue
francoise. Jacques Dubois seguiu-o pouco tempo
depois, em 1531, com a obra In linguam Gallicam
Isagoge, na qual escreve em latim sobre gramática
francesa.
Em Inglaterra, a primeira gramática impressa
só aparece em 1586. No entanto, a gramática
manuscrita escrita por William Lily foi homenageada
pelo rei Henrique VIII, em 1540, e recomendada para
as escolas, em função de sobrevalorizar a vertente
prático-didática, seguindo a tradição gramatical
representada por Prisciano, e descurar a especulação
filosófica.
O Renascimento incutiu nos povos da Europa a
ideia de que os Gregos, tendo regulamentado bem a
sua língua, tinham-na introduzido em Roma, e que os
[114]
Romanos, por seu turno, tinham imposto o seu idioma
aos povos vencidos. Por isso mesmo[,] os gramáticos
renascentistas admitiam que uma língua bem
codificada é um excelente meio de expansão nacional
e estavam convencidos de que o povo que melhor
tivesse fixado a sua língua teria uma vantagem
considerável sobre os povos vizinhos. Assim se
explica que as obras gramaticais desta época estejam
imbuídas de sentimentos imperialistas e que os
príncipes da Renascença tenham encorajado
decisivamente a codificação definitiva da língua
nacional. Não podemos esquecer que a ciência
política, cujo expoente máximo é O Príncipe, de
Nicolau Maquiavel, dedicado a Lourenço de Médicis,
acaba de renascer por volta de 1500. A questão da
língua vulgar mereceu a atenção dos diplomatas, pois
eles admitem que o poder absoluto do príncipe, a
unidade da religião e a unidade da língua são as
condições essenciais para que o povo seja um.
[115]
Deste ideário renascentista, comunga Antonio
de Nebrija, fervoroso patriota, que empreendeu a
codificação do vulgar espanhol, com a sua Gramática
de la Lengua Castellana (1492), concluindo esta tarefa
de forma notável. Graças ao génio gramatical de
Antonio de Nebrija, a Espanha é o primeiro país a ter
a sua gramática nacional5. Aliás, o próprio autor toma
consciência do caráter inovador desta sua empresa
quando, no prólogo dedicado à rainha D. Isabel, diz o
seguinte:
[117]
os autores das gramáticas das línguas vernáculas
refletiram sobre as transformações fonéticas que,
partindo do latim, deram origem às línguas
novilatinas e as causas que lhe preexistem. Todo este
trabalho investigativo resultou numa reabilitação das
línguas romances, pois comprovou-se que estas não
equivaliam, como durante o período medieval se
pensava, a uma degeneralização do latim, mas eram
descendentes ilustres que mereciam o reconhecimento
da comunidade linguística internacional.
Paralelamente a esta intensa investigação
desenvolvida no continente europeu, verifica-se, no
chamado «Novo Mundo», a publicação das primeiras
gramáticas. Com efeito, a primeira gramática
ameríndia, o tarascano, editou-se em 1558,
inaugurando uma crescente produção gramatical.
É digno de registo o trabalho levado a cabo
pelos missionários, uma vez que, ao se radicarem nos
territórios recém-descobertos e monopolizarem a
instrução escolar, contribuíram para o
[118]
desenvolvimento da ciência linguística. Acresce
referir que também viajaram pela Ásia Meridional e
pelo Médio Oriente, onde contactaram com línguas
que acusavam diferenças significativas em relação às
clássicas, o que favoreceu a análise interlinguística e,
simultaneamente, propiciou um conhecimento mais
profundo dos idiomas existentes à escala mundial. É
esta atividade missionária, associada ao alargamento
das rotas comerciais, que preexiste ao estudo
comparativo entre as línguas da China e as da Europa
Ocidental, que culminou com a descoberta de
diferenças significativas entre ambos os idiomas. O
conhecimento europeu do sistema de escrita chinesa e
das línguas exóticas abriu novos horizontes à
investigação linguística, na medida em que revelou
um conjunto de línguas que diferiam
significativamente das estudadas pela tradição
ocidental. A este respeito, Amadeu Torres observa o
seguinte:
[119]
A troca mútua de experiências redunda sempre
em prol do comum, quando criteriosamente
conduzida. A língua portuguesa é disso o mais cabal
testemunho. Subsidiária de contributos variadíssimos
de tantas línguas do mundo que se lhe depararam nas
rotas da expansão e da actividade missionária, ela
mudou muito e não mudou nada, pois é a mesma de D.
Dinis, de Camões, de Eça ou de Pessoa; a mesma na
Europa, na América, na África, na Ásia e na Oceânia
(Torres, 1998: 77).
[120]
plano linguístico, culminando na apologia da língua
nacional. Neste âmbito, os textos de natureza
encomiástica, como o Diálogo em louvor da nossa
linguagem, de João de Barros, procuram responder a
este crescente patriotismo linguístico, já antecipado
pelo rei D. Duarte, por forma a combater um certo
bilinguismo que se encontrava enraizado no seio da
comunidade culta.
Com efeito, devido a circunstancialismos vários,
como o casamento entre reis portugueses e princesas
castelhanas ou o intercâmbio entre humanistas
peninsulares, a língua castelhana concorria com a
portuguesa nos escritos literários, disso são exemplo
alguns textos de Gil Vicente e de Luís de Camões. No
universo erudito quinhentista, ao lado dos que
exaltavam a língua nacional, coexistiam os que a
marginalizavam, considerando-a imprópria para
transmitir todas as formas de pensamento. Por este
[121]
motivo, os textos encomiásticos,7 ao apresentarem a
língua portuguesa como meio privilegiado de
expressão do sentimento patriótico, destinavam-se à
sua exaltação e defesa frente ao castelhano. Aliás, esta
apologia da língua nacional em relação às
estrangeiras não é uma caraterística inédita dos
homens renascentistas: já os antigos Gregos, ao
rotularem as outras línguas de «bárbaras», exaltavam
o seu meio de comunicação verbal.
Claro está que também a gramática portuguesa
renascentista tem como fontes principais Prisciano e
Donato, os grammatici antiqui (como acontece, por
exemplo, com a Gramática de la Lengua Castellana, de
Antonio de Nebrija), e Alexandre de Villedieu. Aliás,
não podia ser de outra forma, pois, a fazer fé em
estudos de diversos investigadores, de Carolina
Michaëlis, passando por José Mattoso e, mais
[123]
com o desenvolvimento da gramática modista na
Alemanha e no norte de França, são relevantes para a
teoria gramatical renascentista. Segundo ele, esta
versão meridional da tradição gramatical ocidental, ao
florescer nos séculos XIII e XIV, proporcionou
fundamentação teórica às produções gramaticais
humanistas do século XV. Este autor acaba por
afirmar que a teoria linguística renascentista tem as
suas origens numa tradição escrita gramatical e
lexicografica que emerge na Itália e na Provença do
século XI e se desenvolveu até um determinado grau,
independentemente da tradição setentrional
representada pelos tratados modistas e pelas
gramáticas em verso (o Doctrinale de Villedieu e o
Graecismo de Evenrardo de Betúnia).
A gramática portuguesa renascentista surge
como ponto de chegada de todo este processo
evolutivo como uma tomada de consciência da
necessidade e da urgência de que a aprendizagem do
Português se fizesse por uma gramática portuguesa.
[124]
Para que isso acontecesse, muito contribuiram as
cópias manuscrita, que apareceram no final do século
XV, das Regulae Grammaticales (1414) de Guarino
Verona e os Rudimenta Grammatices de Nicolau
Perotti que são, a nosso ver, os grandes motores da
renovação gramatical portuguesa. Ao mesmo tempo,
vão surgindo também na literatura algumas
manifestações contra o predomínio da cultura latina
como, por exemplo, D. Duarte que, no Leal
Conselheiro, recomenda «grande cuidado e parcimónia
na adopção de palavras da língua latina», contendo
esta obra um capítulo intitulado «Da maneira pera
bem tornar algũa leytura em nossa lynguagem» onde
resume algumas regras de tradução, destacando-se
entre elas a recomendação expressa à fidelidade do
texto, a utilização de palavras estritamente
portuguesas, não alatinadas, o respeito ao decoro,
além das exigências de clareza, elegância e concisão.
(cf. Vasconcelos, 1929: 863).
[125]
É neste contexto que surgem as obras
gramaticais dos quatro gramáticos portugueses
quinhentistas: a Gramática da linguagem portuguesa
(1356) de Fernão de Oliveira; a Gramática da língua
portuguesa (1540) de João de Barros; as Regras que
ensinam a maneira de escrever e a ortografia da língua
portuguesa (1574) de Pêro de Magalhães de Gândavo e
a Ortografia e origem da língua portuguesa (1576) de
Duarte Nunes de Leão. Faremos breves considerações
sobre os dois primeiros.
Em 1536 vem a lume a primeira edição da
Grammatica da lingoagem portuguesa, da lavra de
Fernão de Oliveira, o primeiro gramático da
lusofonia, que se adianta, assim, a Pierre la Ramée
(Petrus Ramus), autor de Gramere (1562): «A
gramática de Fernão de Oliveira9 (1536) foi a primeira
que se publicou em português; foi a primeira que se
publicou do português e de um português; foi a
[128]
A articulação das vogais e consoantes, precisada
com aproximações eventuais ao castelhano, latim,
grego, hebraico e árabe; divergência entre a prolação
dos sons e a sua imagem grafémica; centro silábico e
ditongos; acentos e suas normas; ortografia e
evolução; cuidado na intromissão de estrangeirismos
e sua mais capaz adaptação — são informações
argutas «que se não podem desprezar», como acentua
Sá Nogueira.
As palavras ou dicções primitivas, compostas,
derivadas; os arcaísmos e neologismos; o valor
semântico dos prefixos; as declinações ou flexões
nominais e verbais; a evolução semântica dos
vocábulos — eis os principais temas morfológicos.
A sintaxe resume-se a página e meia, menos
cinco páginas do que em João de Barros. Mas nada de
admirar. A sintaxe foi desde sempre a secção menor
das gramáticas. A de Prisciano consagrou-lhe tão-
somente os três últimos livros, de entre 18; a de Port–
Royal tão afamada, vinda a lume em 1660, 124 anos
[129]
depois da de Oliveira, três páginas, porque as duas
seguintes já dizem respeito às figuras. Tal
metodologia, vulgar durante tantos séculos,
resultante da aceitação pacífica da prioridade da
palavra sobre a frase, radica no Crátilo de Platão e na
análise proposicional aristotélica. Nas gramáticas
modernas, a prioridade cabe geralmente à frase, no
que aliás já Humboldt, Cassirer e os modernos
matemáticos lógicos haviam reparado, ponto de vista
agora em discussão e reanálise pelo gramaticalismo
transfrástico ou teoria do texto.
Claro que em Fernando de Oliveira se
desejariam naturalmente maior desenvolvimento dos
temas, melhor distribuição, sistematização mais
apurada. O próprio autor estava absolutamente
cônscio das deficiências, tanto que por cinco vezes se
descontenta e roga desculpa delas prometendo e
reprometendo falar mais largamente em outra obra
(cf. Oliveira, 2000: 133[54]), porque nesta não
fazemos mais que apontar os princípios da gramática
[130]
que temos na nossa língua (cf. Oliveira, 2000:
152[73]); e quanto à sintaxe e ao estilo e suas
particularidades — insiste — se tratará a seu tempo,
em outra obra maior que desta matéria espero fazer
(cf. Oliveira, 2000: 113[34]). Promessas e nada mais,
na aparência; mas no fundo uma situação de lucidez
perante a complexidade de um objecto que, afora o
mais que intelectualmente julgamos lhe não
minguava, requeria disponibilidade e calma, requisitos
com que nessa ou em ocasiões próximas a vida
certamente o não favorecia.
Fernão de Oliveira é o criador da filologia
portuguesa e, na opinião de Coseriu,
merece um lugar de considerável destaque na
história da linguística românica e na da
linguística em geral. Ele é, depois de Nebrija, um
dos gramáticos mais originais, em certo sentido o
mais original, e, antes de Rhys e de G. Bartoli, o
mais importante foneticista da Renascença na
România. As suas ideias na lexicologia e naquilo
que hoje se chama ‘sociolinguística’ são notáveis e
a sua contribuição para o tratamento funcional
[131]
das línguas na linguística descritiva é a de um
grande precursor (Oliveira, 2000: 60).
[132]
Letra é figura de voz. Estas dividimos em
consoantes e vogaes. As vogaes têm em si voz; e as
consoantes não, senão junto com as vogaes (...).
As figuras destas letras chamam os gregos
caracteres; e os latinos notas. E nós lhe podemos
chamar sinaes. Os quaes hão de ser tantos como as
pronunciações e que os latinos chamam elementos; e
nós as podemos interpretar fundamentos das vozes e
escritura.
Diz Antonio de Nebrissa que temos na Espanha
somente as letras latinas. Mas porque é verdade que
são tantas e taes as letras como as vozes, nós diremos
que de nós aos latinos há hi muita diferença nas letras,
porque também a temos nas vozes (Oliveira, 2000: 89-
90).
[133]
A obra talvez mais representativa do espírito
renascentista que Barros nos transmitiu é de cariz
pedagogico-didáctico: a Gramática da Língua
Portuguesa (1540). Aliás, o humanismo de pendor
linguístico, que pode observar-se também nas suas
Décadas, percorre quatro obras diversas que, unidas
pela finalidade pedagógica, se aglutinam numa mesma
obra. Na verdade, a Cartinha para aprender a ler
(1539), o Diálogo da Viciosa Vergonha (1540), a
Gramática da Língua Portuguesa, que inclui o Diálogo
em Louvor da nossa linguagem (1540), formam um
conjunto pedagógico-didático em busca da
necessidade de um método.
Pode deduzir-se que a Gramática da Língua
Portuguesa era para Fernão de Barros fundamental
mas não há dúvida de que o seu projecto gramatical
estava cimentado em materiais que o autor achava
necessários à consecução do seu programa pedagógico
de aprendizagem da Língua Portuguesa: a Cartinha
como primeiro livro, a Gramática seria um segundo
[134]
livro, o Diálogo da Viciosa Vergonha funciona na
perspectiva de que o educador deve ensinar não só as
letras mas também as normas da boa conduta, o
Diálogo em Louvor da nossa linguagem contém um
conjunto de reflexões que ajudam a esclarecer as
ideias linguísticas e gramaticais do autor,
especulações que o propositado carácter
marcadamente normativo da Gramática não podia
contemplar.
O contacto entre o Português e as línguas do
Oriente Asiático, motivado pela mundividência
epocal, resultou na interinfluência linguística. Perante
esta nova realidade, João de Barros, contrariando o
espírito da «grammatica speculativa» medieval, não
resiste ao impulso de comparar alguns fenómenos
linguísticos orientais com os das línguas que fazem
parte da tradição ocidental. Este esboço rudimentar
de uma atitude comparativista, impregnada de
pioneirismo, que se desenvolve no sec. XVII, antecipa
o Comparativismo Linguístico do século XIX,
[135]
apresentando-se como uma consequência prática do
encontro de novos povos e novas culturas.
Portanto, o estudo de lexemas e expressões
idiomáticas diferenciadas constitui uma prova
palpável de que os nossos gramáticos quinhentistas,
diferentemente dos autores clássicos gregos, embora
sobrevalorizando o seu instrumento de verbalização,
se interessaram por outras línguas. Este interesse por
outras formas linguísticas não obstou a que Barros se
enquadrasse no movimento europeu de reabilitação
das línguas vernaculares, ou seja, da mesma forma
que os seus congéneres românicos, procurou
sistematizar o idioma materno, investindo-o de um
maior prestígio e dignificação. É claro que esse
prestígio linguístico, tão reclamado pelos gramáticos
quinhentistas, se enraíza no processo de
normativização e codificação das realidades
gramaticais. É à luz deste primado linguístico, que se
compreende a vertente prática omnipresente na teoria
gramatical de João de Barros.
[136]
No entanto, apesar de manter uma certa
equidistância entre o português e o latim, resultante
da apologia da língua materna, não rejeita a filiação
gramatical do idioma pátrio, isto é, a língua-mãe é
perspectivada como «ponto de referência, como
modelo de codificação gramatical e como fonte de
empréstimos vocabulares» (Barros, 1971: 43), pois
exorta os seus contemporâneos a subsidiarem a língua
materna com importações vocabulares latinas.
Em conformidade com o exposto, a doutrina
gramatical de Barros evidencia fenómenos
linguísticos que constituem paralelos aproximativos
do latim, mas realça, sobretudo, as assimetrias que
individualizam o Português em relação à língua do
Lácio. Com efeito, o uso alternado do pronome
pessoal nós, equivalente aos portugueses, e eles,
correspondente aos latinos, traduz a dicotomia entre
os fenómenos linguísticos latinos e as formas
«aportuguesadas»: «Nós não temos estes vérbos (que
[137]
os latinos têm). (...) Temos máis este vérbo (h)ei (h)ás
(...)» (Barros, 1971: 93).
A reflexão sobre as línguas «exóticas» reveste-
se de grande importância, pois indicia uma atitude
que podemos classificar como comparativista (cf.
Barros, 1971: 71). De facto, Barros ao confrontar o
português com as novas línguas, avalia positivamente
a permuta vocabular e admite uma reciprocidade
enriquecedora da língua nacional.(cf. Barros, 1971:
71).
Na obra de Barros, também se insinuam
informações relativas ao bilinguismo literário, entre o
português e o castelhano, que marca o panorama
linguístico quinhentista. Nesta linha, O Diálogo em
louvor da nossa linguagem, ao veicular uma apologia da
língua portuguesa, assume-se, conjuntamente com a
sua gramática, como uma resposta concreta que visa
ultrapassar essa rivalidade linguística, com privilégio,
como é óbvio, para o idioma materno, a fim de
[138]
possibilitar a sua afirmação no quadro de bilinguismo
apontado.
Os gramáticos renascentistas das línguas
vulgares usaram o método constrastivo com uma
quase permanente referência à língua latina. No
entanto, parece-nos abusivo considerar que as suas
gramáticas sejam gramáticas latinas. Pelo contrário, o
método fundamentado na comparação linguística é
utilizado para constatar aspectos comuns e específicos
a cada uma das línguas consideradas (latim-
português). Acresce, ainda, que o fervor patriótico da
época da Renascença, que é possível apreciar nos dois
gramáticos, explica a preocupação de emancipar as
línguas nacionais a partir da ortografia, na ânsia de
fixar os sons próprios de cada língua.
E, se é verdade que Nebrija, genericamente,
considera que as letras próprias do castelhano são as
que mantêm a originária pronunciação latina, Fernão
Oliveira representa um caso à parte, pois descreve um
sistema fonético/fonológico, para o português,
[139]
autónomo, que lhe confere, neste aspecto, na opinião
autorizada de Coseriu, o estatuto de gramático
renascentista mais original de toda a România (cf.
Oliveira, 2000: 60).
Não é por acaso que os aspectos relativos à
fonética e à ortografia constituem o conteúdo fulcral
da primeira gramática do português, ocupando vinte e
quatro dos cinquenta parágrafos que a integram, ao
contrário de João de Barros, que, seguindo a tradição
dos gramáticos latinos, assente no legado das
Institutiones Grammaticae de Prisciano, dá primazia à
descrição das partes orationis.
Na verdade Barros apresenta a classificação das
oito partes da oração de Prisciano, acrescentando o
artigo que não existia em latim, e divergindo,
claramente, de Nebrija, neste ponto, pois, o mestre
salamantino estabelece um esquema de dez classes de
palavras para o castelhano, identificando o gerúndio e
o nome participial infinito como classes autónomas, e
[140]
integrando a interjeição no advérbio, seguindo
Dionísio da Trácia.
Barros coloca no topo da hierarquia das classes
de palavras o nome e o verbo, os dois reis da
linguagem, mas não explica a posição ocupada pelas
outras dicções na escala hierárquica até porque não se
refere explicitamente à divisão das dicções em
flexionadas e não flexionadas, critério que permitiu a
Prisciano estabelecer a sequência do seu sistema
classificatório.
Esta sequência das partes da oração resultam
igualmente distinta da apresentada por Nebrija na
Gramática Castellana. Isto leva-nos a concluir que, se é
incontornável que, em alguns passos da Gramática da
língua portuguesa, João de Barros segue quase à risca
Nebrissa, nos parece igualmente irrefutável que, no
que concerne à Etimologia, esta divergência resulta
fundamental pois é por demais evidente que cada um
dos autores enveredou por um esquema classificatório
das partes da oração bem diferenciado.
[141]
Outra ilação que nos ocorre mencionar é o
imperativo pedagógico que os dois gramáticos
ibéricos abraçam na elaboração dos seus estudos
gramaticais. No entanto, enquanto Nebrija foi capaz
de unir na sua obra, com notável equilíbrio, as
componentes filológica e especulativa, na Gramática
da língua portuguesa há uma quase completa ausência
de reflexão teórica que nos permita identificar as
ideias do autor sobre a linguagem. Na verdade,
Barros contempla apenas a componente filológica,
resumindo-se o seu compêndio a um conjunto de
preceitos, que não tem em linha de conta a
consideração da gramática como ciência mas apenas
como arte (ars), destinado aos meninos do Reino que
têm a língua portuguesa como mãe e às pessoas dos
povos conquistados que percorrem milhares de léguas
para a aprenderem.
Aqui está uma possível explicação para o
carácter pouco discurssivo do estilo usado na
descrição das partes da oração por parte de João de
[142]
Barros. Aliás parece que o gramático tinha
precisamente a preocupação de ser pouco exaustivo
nas suas exposições, ou seja, tendo em conta aqueles a
quem destina a gramática, o seu objectivo seria o de
apresentar apenas os preceitos e exemplos essenciais,
relativo a cada uma das classes de palavras. Isto
mesmo pode verificar-se na forma repetitiva com
termina diversos segmentos da sua descrição
morfológica: «estes bástem pera exemplo deles» (Barros,
1971: 306); «Éstas bástem por exemplo» (Barros, 1971:
308); «estes bástem pera exemplo» (Barros, 1971: 311);
«ante sejamos bréve que prolixo» (Barros, 1971: 345).
No entanto, esta intenção premeditada não pode
servir para explicar incompreensíveis omissões na
sistematização das partes da oração, como é o caso do
particípio e da conjunção, embora esta seja tratada
sumariamente na sintaxe. De qualquer forma, pese
embora a justeza de algumas das críticas que
permitiram identificar aspectos menos conseguidos na
gramática de João de Barros, não pode deixar de
[143]
referir-se a preocupação demonstrada em captar a
realidade linguística e idiomática da língua por parte
de um homem entregue à constante preocupação com
o seu ensino, bem patente no conjunto formado pela
Gramática, pela Cartinha e pelos dois Diálogos, e que
transparece até na obra Ásia, que o notabilizou como
historiador.10 Além de que a gramática de João de
Barros representa um significativo impulso para o
desenvolvimento da perspectiva filológica do
humanismo em Portugal e não podemos esquecer-nos
de que esta perspectiva irá ser dominante nos estudos
linguísticos dos gramáticos vindouros, pelo menos até
ao século XVIII.
Referências Bibliográficas
1. Edições
[146]
Antiguidade, Nobreza, Liberdade e Immunidade do
Reino de Portugal. França, Biblioteca Nacional,
Ms. 12, fls. 1-176.
[147]
2. Estudos
[148]
KUKENHEIM, Louis (1974): Contributions à l’Histoire
de la Grammaire italienne espagnole et française à
l’époque de la Renaissance. Utrechet-Netherlands,
1974.
[149]
TORRES, Amadeu (1998): Gramática e Linguística.
Braga: Univ. Católica Portuguesa, Faculdade de
Filosofia, 1998.
[150]
Esta edição de Fernando Oliveira: um humanista genial (pelos
500 anos do seu nascimento), de António Tavares, foi composta
nas fontes, em papel, reproduzida por, em junho de 2018, numa
tiragem de
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