You are on page 1of 48

ESCÓRIA DE PAISAGEM

REVISITANDO LUGARES, MATERIAIS E RELAÇÕES


Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Letras e Artes
Escola de Belas Artes
Dep. BAB – Curso de Pintura

ESCÓRIA DE PAISAGEM
REVISITANDO LUGARES, MATERIAIS E RELAÇÕES

Ranny Vidal da Silva

Monografia de Conclusão do Curso de Pintura

Orientadora: Profa. Dra. Martha Werneck

Rio de Janeiro

2014
Ranny Vidal da Silva

DRE 107376607

ESCÓRIA DE PAISAGEM
REVISITANDO LUGARES, MATERIAIS E RELAÇÕES

Orientadora: Profª Martha Werneck

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Graduação em Pintura da Escola
de Belas Artes da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como requisito parcial para
obtenção do título de Bacharel em Pintura.

Rio de Janeiro

2014
Ranny Vidal da Silva

ESCÓRIA DE PAISAGEM
REVISITANDO LUGARES, MATERIAIS E RELAÇÕES

Monografia de conclusão de curso submetida


ao corpo docente do Curso de Pintura da
Escola de Belas Artes da Universidade Federal
do Rio de Janeiro como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de
Bacharel em Pintura.

Aprovado em:

_____________________________________________________
Doutora Martha Werneck - Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________________
Mestra Maria de Lourdes Barreto Santos Filha – EBA/UFRJ

____________________________________________________________
Doutor Wladimir Machado – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Para Luiz e Marina, minha força, meu porto seguro.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente àquela madrugada fria de 2005, quando eu estava


desenhando e ouvindo uma fita de vídeo bem velha com um show do Nirvana. Eu
experimentava uma plenitude tão intensa que naquele momento percebi que trocar aquela
sensação por qualquer estabilidade seria uma forma de suicídio. Os berros roucos
daquela fita me deram coragem para seguir esse caminho. Agradeço também aos meus
pais que, mesmo não gostando das perspectivas que aquela escolha me oferecia, nunca
deixaram de me apoiar da forma que pudessem no que eu precisasse. Sem eles eu
provavelmente não estaria escrevendo isso.

Agradeço a cada amigo que entrou na minha vida durante o curso. Aos que me
chamavam pra beber quando eu não tinha dinheiro, aos que me deram lugar pra morar,
que dividiram suas suas vidas comigo, que me emprestavam os ouvidos quando eu
precisava. Agradeço inclusive os que chamavam de “maluca” a opção que eu fizera: eles
me ajudaram a manter meus pés no chão e não esquecer do quanto aquele caminho não
era fácil. Agradeço imensamente aos que me deram trabalho quando o peso financeiro de
viver no Rio foi demais e eu precisei me revezar entre a faculdade e o aluguel: o trabalho
na obra me fez resistente, atento e me manteve buscando meu objetivo.

Muito obrigado especial aos professores que me enriqueceram e amadureceram


meu pensamento estético, poético, pessoal e artístico e aos grandes artistas que
encontrei pela vida, seja em livros ou pessoalmente, e aos grandes pensadores de boteco
que tive a honra de dividir uma mesa: sem suas contribuições, eu seria incapaz de
produzir algum trabalho que me inspirasse orgulho. A todos que me elogiaram, que me
criticaram, que me provocaram e que nunca desistiram de mim. Aos que me ensinaram as
tintas, os discursos, a camaradagem e o amor.

A todos cujas contribuições eu nunca poderei retribuir. A todos, cujo apoio eu nunca
serei suficientemente grato.
“Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral
dessa montanha cheia de noite forma
por si só um mundo.”
Albert Camus
RESUMO

Essa série pretende investigar e conjugar as texturas da escória com a pintura de


paisagem a partir da vista dos anticartões-postais da minha terra natal. Por um lado o
desenvolvimento de laboratório para o emprego da escória e dos materiais da construção
civil, por outro a utilização de várias técnicas como fotografia, manipulação digital,
projeção e pintura, tudo isso utilizando-se de portas de madeira, que seriam descartadas,
como suporte. Observando o comportamento das pessoas que olhavam as obras,
subsidiado por textos de Nelson Brissac, chego a algumas conclusões sobre como se dá
essa relação expectador/obra, e, baseado na noção de territórios e fronteiras, ilustrei um
mapa da zona de influência dos trabalhos.

Palavras-chave: Escória, paisagem, porta, pintura, camadas, olhar.

ABSTRACT

This series aims to investigate and combine the textures of the slag with landscape
painting from the view of my my hometown's antipostcards. On the one hand the research
for the use of slag and construction materials, on the other hand the use of various
techniques such as photography, digital manipulation, projection and painting materials, all
using wooden doors, that would be dropped, as support. Observing the behavior of people
who looked at the works, supported by texts from Nelson Brissac, come to some
conclusions about this relationship, and based on the notion of territories and boundaries,
a map of the influence zone of the work.
SUMÁRIO
1. Introdução.......................................................................................................................................10

2. Nota inicial......................................................................................................................................11

3. Tema e Influências..........................................................................................................................12

3.1 Aspecto Imagético....................................................................................................................13


3.1.1 Anticartão-postal..............................................................................................................15
3.2 Aspecto Matérico do Trabalho................................................................................................17
3.3 Aspecto de Objeto - Suporte....................................................................................................19
4. Influências......................................................................................................................................20

4.1 Don Hertzfeldt.........................................................................................................................20


4.2 Anselm Kiefer..........................................................................................................................22
4.3 Jenny Savile.............................................................................................................................23
5. Processo e Desenvolvimento..........................................................................................................25

5.1 Domínio Matérico....................................................................................................................26


5.1.1 Escória..............................................................................................................................27
5.2 Domínio Imagético..................................................................................................................28
6. Reflexões Posteriores.....................................................................................................................30

7. Conclusão.......................................................................................................................................35

Referências bibliográficas..................................................................................................................36
1. Introdução

A investigação gira em torno do diálogo entre dois hemisférios principais: da


visualidade dos materiais mais brutos, dos índices deixados pelas ferramentas, tendo
destaque um material incomum no meio pictórico, a escória; e do visual das técnicas mais
convencionais da pintura em parceria com a fotografia digital, manipulada e projetada
sobre os suportes, retratando paisagens marginais da minha terra natal.
De um lado houve a necessidade do desenvolvimento de uma “cozinha” exclusiva,
fruto de um laboratório elaborado para iniciar a manipulação artística da escória, e
explorar seus limites, resultados estéticos e durabilidade, juntamente com a introdução de
outros materiais utilizados largamente na construção civil e naval. Do outro a maturação
do meu processo pessoal de captação das imagens, manipulação digital, transposição
para o suporte e execução da pintura.
Para nortear a pesquisa, foram estudados artistas que buscaram os modelos fora
dos padrões de beleza atuais, como Jenny Saville, e os que trabalharam a relação de
duas ou várias visualidades brutalmente distintas, como Don Hertzfeldt e Anselm Kiefer.
Da inter-relação dessas duas linguagens, do choque entre suas visualidades tão
distintas, sob a luz desses grandes artistas, nasce essa série apresentada aqui.

10
2. Nota inicial

Luigi Pareysson admite que o processo artístico se caracteriza pela


“contemporaneidade de invenção e execução” que “cria uma contínua incerteza e
precariedade”. Assumindo essa constatação, sabemos que é impossível segmentar o
processo artístico em seções incomunicáveis entre si. O processo todo é muito orgânico
e, por mais que cada etapa exija uma certa postura e um certo raciocínio próprio, uma
conclusão tirada durante uma etapa pode modificar diretamente a outra e vice-versa. A
interação entre as etapas se dá a todo momento: influenciando-se, interferindo-se,
guiando-se e construindo-se simultânea e continuamente.
Porém, no intuito de organizar a escrita e a leitura, os processos serão divididos em
dois grandes domínios: O aspecto matérico e o aspecto imagético; porém somente afim
de facilitar e organizar didaticamente. A partir de agora, o leitor assume que essa
inseparabilidade está subentendida.

11
3. Tema e Influências

Meu primeiro contato artístico com a escória se deu em 2009, na aula de Pintura III.
A princípio ela surpreendeu por sua maleabilidade, possibilidade estética em conjungar
uma variedade enorme de granulações e sua interessante coloração própria. O trabalho
consistia numa imagem de silhueta da CSN vomitando fumaça por suas chaminés - a
escória crua colada representando a indústria e a fumaça - contra um pôr-do-sol pictórico,
construída dentro de uma gaveta do meu armário de infância.
Aí já estavam alguns elementos principais dessa série apresentada aqui: a ligação
com minha terra natal, a nostalgia; os elementos pictóricos e cromáticos; a escória
trabalhada formando uma imagem volumétrica; e o desenvolvimento intuitivo de uma
forma de aplicação possível. Infelizmente, o trabalho se perdeu.
Só após alguns meses de reflexão consegui me dar conta do campo fértil que uma
exploração artística encontraria. Desde seu emprego enquanto matéria para própria
pintura; até sua relação com a produção metalúrgica, que é a base da economia da minha
terra natal e a razão pela qual minha família se mudou pra lá; passando pelas lembranças
que essas pedrinhas me remetem; até a aparência final bruta, volumétrica, suja que
acabariam, senão como um contraponto, como uma rima à minha pintura, que é também
bruta, carregada, enérgica e sintética. Essa relação matéria-pintura se tornou o principal
ponto de interesse e norteou toda a pesquisa desde então.
O complemento da pintura figurativa, a qual jamais quis abrir mão, adicionou não
somente um elemento, mas toda um hemisfério de questões e aspectos estéticos e
pessoais. O processo pessoal que já vinha se desenvolvendo desde Pintura I estava já
bastante amadurecido e pronto para estabelecer esse diálogo.

12
Avenida principal do meu bairro natal, 2014

3.1 Aspecto Imagético

“Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame


dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não
é poeta o bastante para evocar suas riquezas; pois para
o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente
pobre, insignificante”
Rainer Maria Rilke

O motivo escolhido para as imagens foram as paisagens do vale sul fluminense.


Paisagens que não admitem panoramas extensos, nem belezas naturais proeminentes. A
visualidade da região é muito mais comprimida. Nelson Brissac diz sobre as cidades: “A
paisagem então deixa de ser aquilo que se oferece lá ao fundo para se converter no

13
campo, plano e extenso (...)” e declara “A paisagem é um muro” 1. Apesar de sua fala se
referir à paisagem dos muros e prédios das grandes cidades, ela se encaixa
perfeitamente numa descrição da paisagem natural de Barra Mansa. Por se tratar de um
vale, não existe horizonte longínquo à altura da vista; os morros que circundam o rio lá
embaixo, por onde a cidade precisa escalar para poder crescer, elevam o horizonte muito
acima da visão em linha reta e diminuem a profundidade de qualquer panorama que se
pretenda extrair dali. Nem mesmo do alto dos morros é possível tal profundidade. Assim,
a própria natureza impõe a visualidade chapada típica das grandes cidades.
Por outro lado, tampouco existem monumentos arquitetônicos dignos de grande
atenção. A arquitetura que merece notoriedade por sua beleza se resume a alguns
poucos prédios e monumentos construídos à época de Getúlio em Volta Redonda. São
todos tão restritos e exclusivos que jamais poderiam saber o que é o verdadeiro espírito
da cidade. O que causa então a sensação de estar ali? “O lugar não depende de
monumentos. O que lá se apreende é a força do lugar” (PEIXOTO, 1996 p.259). Foi em
busca dessa força que a procura pelas imagens se baseou.
Admitir que a força estética da cidade não se encontra nos pretensos cartões-
postais oficiais, nem na procura por paisagens naturais grandiosas que não estão lá, mas
sim na periferia, nos lugares proibidos, nos equipamentos industriais, na perspectiva
formada pela linha do trem, na silhueta das fábricas, nas linhas das chaminés, na
coloração alaranjada do céu poluído, enfim. Procurar a beleza naquelas coisas que não
foram projetadas para isso, e que, por isso mesmo, demandam um olhar mais antento,
buscar os sítios abandonados, os anticartões-postais, conseguir imagens fortes e belas
desses modelos, nisso consistiu a ideia principal do aspecto imagético da pesquisa.

1
PEIXOTO, Nelson Brissac . Paisagens Urbanas. São Paulo: Ed. SENAC, 1996. p.10

14
3.1.1 Anticartão-postal

“(car.tão-pos.tal) sm.
1. Cartão para correspondência aberta, com ilustração numa das faces
P.us. ; BILHETE POSTAL. [Tb. se diz apenas postal.]
2. Ponto turístico ou símbolo visual representativo de um lugar:
Copacabana é um belo cartão-postal do Brasil.
3. Paisagem ou qualquer coisa muito bonita, digna de figurar num
cartão-postal (1): Essa ilha é um cartão-postal.
[Pl.: cartões-postais.]”. 2

Dois terços das definições falam de beleza. O dicionário somente reforça a noção
do senso comum de que cartões-postais e belas paisagens estão irremediavelmente
relacionados: “Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela / Só vejo paisagem
muito linda e muito bela” de Julinho Rasta e Katia 3. Souza fala ainda sobre os postais
oficiais: “esses cartões postais jamais ofereciam imagens-sintoma do feio e do
desagradável. Referem-se sempre a um ideal de belo consagrado pelas artes plásticas
greco-romanas e renascentistas.” (SOUZA & ANGELO, 2008. p.163).
Precisei então trabalhar com locações que não eram “dignas de figurar num cartão-
postal”. Tendo isso em mente, procurei desenvolver uma noção de anticartão-postal. A
visualidade dos, ou a partir dos lugares periféricos, marginais e esquecidos, mal vistos ou
temidos. Lugares de passagem somente, lugares de trabalho, em suma, lugares
esquecidos, invisíveis.

2
Segundo o Dicionário online Caldas Aulete. Disponível em <http://www.aulete.com.br/cart%C3%A3o-postal>,
acessado em 20/05/2014
3
Segundo a Revista da União Brasileira de Compositores # 19, de fevereiro de 2014, disponível em
<http://www.ubc.org.br/arquivos/download/revistas/revista_ubc19.pdf> acessado em 21/05/2014.

15
Passagem de nível em Saudade, Barra Mansa

A intenção era criar um interesse estético digno de poder figurar um cartão-postal


“de verdade”. A busca por tais lugares foge um pouco à ideia embrionária do primeiro
trabalho, que era basicamente um canto de saudade. Embora a nostalgia esteja presente,
todas as fotografias mostram os sítios no presente, carregados de marcas e memórias,
assumem sua autonomia e testemunham a passagem do tempo com sua própria voz.
Os lugares então ganham força e se fazem personagens dessa história, se tornam
eloquentes e desempenham seu próprio papel. Assim, o trabalho pretende transbordar os
limites das lembranças pessoais e deixar de ser somente uma canção do exílio para aspirar a
questões coletivas.

16
Vista da “Caixa d'água” em Volta Redonda

3.2 Aspecto Matérico do Trabalho

Essa parte da pesquisa buscou dar voz aos materiais não-artísticos mais brutos e
crus, evitando o emprego de materiais artísticos mais refinados, buscando assim manter
sua aparência natural rústica e explorar as possibilidades, recursos e resultados estéticos
por eles proporcionados. Dessa forma, mantive a procura por materiais menos nobres e
menos estimados do ponto de vista da arte. Utilizei desde materiais e ferramentas da
construção civil, até elementos sem aparente registro de utilização artística anterior.
“Com frequência, é a matéria mesma que impõe ou sugere ao artista uma ideia de
uma obra.” (PAREYSSON, 2001. p. 162)

17
Escória misturada à Cascorez úmida

O processo adotado nessa parte do trabalho aproxima-se mais da lógica da


bricolagem. Trata-se de eleger os materiais, entender sua função e seus limites, e
empregá-los em outra área, de outra maneira, e fazer com que eles funcionem no novo
habitat. “A obra nasce como adoção de uma matéria e triunfa como matéria formada”
(PAREYSSON, 2001. p. 165).
“Essa adoção é, em primeiro lugar, um verdadeiro e próprio diálogo do artista com
a sua matéria, no qual o artista deve saber interrogar a matéria para poder dominá-la, e a
matéria só se rende a quem souber respeitá-la” (PAREYSSON, 2001. p.164). Essa
afirmação ilustra muito bem a natureza dessa relação, embora esteja um pouco
deslocada em relação à minha experiência com a matéria, especificamente.
Pessoalmente, tratou-se mais de uma conversa que de um interrogatório, mais de uma
cooperação que uma rendição, mais de uma amizade que de uma disputa. As coisas
saíram muito naturalmente e o caminho até o resultado final foi surpreendentemente
tranquilo no campo matérico.

18
3.3 Aspecto de Objeto - Suporte

Portas grossas de madeira que estavam na área de descarte do Prédio da Reitoria


da UFRJ foram apropriadas como suporte para essa série. Elas receberam tratamento
cupinicida e tiveram seus apetrechos funcionais, que as caracterizavam como portas,
mantidos.
Sua utilização não foi planejada inicialmente, entretanto foi um elemento
importantíssimo no resultado final. Seus formatos mais alongados e suas colorações
naturalmente mais escuras impuseram as condições iniciais para o desenvolvimento dos
trabalhos.
A porta enquanto objeto apropriado de uma área de descarte depõe a favor de um
aspecto fundamental do trabalho: a subestimação das coisas. Nem mesmo a nobreza
declarada da madeira, seu valor reconhecido e sua pouca abundância nos dias de hoje
puderam salvar essas portas de irem para o lixo pelo simples motivo de terem sido
atacadas pelos cupins - um simples tratamento foi suficiente para resolver esse problema.
De todos os materiais subestimados usados aqui, a madeira é o único de caráter
reconhecidamente nobre. O fato de ter sido subvalorizada e desprezada a faz merecedora
de seu lugar entre os materiais de subestimados, porém, ao contrário dos outros, sua
menor estima se deve à decadência. Portanto, exatamente por não ser mais “digna” de
cumprir sua função, é que está apta a figurar nesse série.
Sua presença é tão marcante que acrescentou à aparência geral do trabalho, um
terceiro aspecto não planejado: ao se olhar para os trabalhos, pode-se ver além da
volumetria da composição matérica e do cromatismo da composição pictórica, a porta
enquanto porta, objeto reutilizado que passou a cumprir uma função extra além daquela
para a qual foi projetado.
A porta abre, fecha, tranca, guarda. Mas sua função não é ser um invólucro ou um
lacre, e sim uma passagem, um ponto de conexão entre o dentro e o fora, ponto de
fronteira e de encontro. Portanto, pode-se dizer que as portas enquanto suporte desse
trabalho não perderam totalmente sua função inicial, somente ganharam uma nova: a de
sustentação. A partir de agora elas servem de palco para esse diálogo, são a fronteira
entre o início da obra e o resto do mundo e ao mesmo tempo são o ponto onde esses dois
domínios – imagético e matérico – se encontram e se conectam.

19
4. Influências

Ao olhar essa série pronta, percebo quantas influências se acumularam no meu


repertório visual, na minha linguagem, na minha vivência pessoal e se fazem presente de
forma mais óbvia ou mais sutil. Todos esses artistas são dignos de nota. Entretanto,
somente serão analisados brevemente três obras de somente três artistas usados como
referência e inspiração diretas a esse Projeto.

4.1 Don Hertzfeldt

Rejected (2000) – Don Hertzfeldt


Animação – 9' 19” EUA4

Rejected é o quinto filme do diretor independente Don Hertzfedt. Ganhou dúzias de


prêmios e foi nomeado ao Oscar em 20005.
O filme se apresenta como uma série de vinhetas que mostram histórias de humor
surreal, violentas e um tanto perturbadoras. Conforme a instabilidade mental do diretor
aumenta, as histórias vão ficando cada vez mais abstratas até finalmente desmoronarem
completamente. Essa é a parte que inspirou essa série.
Conforme o mundo começa a ruir, o próprio papel que sustenta os desenhos e a

4
Frame capturado do youtube.com. Filme integralmente disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=vSb-
nV8l2QY>. Acessado em 20/05/2014.
5
Segundo o site Wikipedia.org. Disponível em <http://en.wikipedia.org/wiki/Rejected#cite_note-Huffington-4>
acessado em 18/05/2014.

20
animação começa a se deformar junto. Numa alegoria à própria ruína da mente do diretor,
o papel se amassa, se rasga afetando diretamente os personagens desenhados,
atingindo-os e matando um por um. O papel se deformando e se rompendo foi animado
em técnica de stop-motion enquanto toda a animação desenhada foi planejada para
interagir com esse comportamento.
O rasgo no papel escancara a natureza do suporte da animação e rompe com a
ilusão criada de um mundo atemporal e imaterial criada pelos desenhos. Ao mesmo
tempo quebra esse truque e cria um outro muito mais poderoso, nascido da interação
entre mundo desenhado imaginário e papel físico. Cria uma fenda que diminui a distância
entre o mundo do papel e o mundo dos desenhos e aumenta drasticamente o apelo
dramático e o efeito psicológico do filme, tornando-o muito mais aterrador. Enquanto eles
se desesperam para fugir do apocalipse nós assistimos impotentes sabendo que os
desenhos jamais poderiam fugir do papel. Essa relação leva o filme a um outro patamar
além do de comédia surreal, e o torna único e genial.
Essa interação foi tão impressionante para mim, que acabou plantando as
primeiras sementes desse trabalho, mesmo anos antes de eu entrar para a faculdade.

21
4.2 Anselm Kiefer

Barren Landscape (1987/1989) – Anselm Kiefer


Acrílica, emulsão, giz, cinza, cabelo e elemento
aquecedor com chumbo tratado sobre tela

Kiefer é, sem dúvida, a referência maior de todo esse trabalho. Tanto pelos seus
motivos, quanto seu processo, até a aprência das peças acabadas, todos esses aspectos
são de interesse e se aproximam de alguma forma da intenção geral da série. A forma
como ele toma partido dos materiais, dá lugar de destaque nas composições, sem deixar
de lado a figuração, que também é extremamente poderosa e eloquente, são as aspectos
que mais visivelmente inspiraram esse trabalho.

“A paisagem serve para criar uma imagem sobredeterminada, a pintura operando


simultanemente em diferentes níveis. (…) A realidade fotografada existe em tensão com a
superfície pintada (…) a presença de material natural contrasta com a descrição da
realidade por meio de fotografias. Essa intertextualidade é que sustenta o quadro.
Passagem contínua de uma dimensão a outra, de um tempo a outro. As imagens criadas
(…) constitui um novo espaço: criado pela justaposição de diferentes imagens e tempos,
pela continguidade de fotografia e pintura” (PEIXOTO, 1996, p.248).
A análise feita por Nelson Brissac é suficiente para descrever muito bem o que há
de mais interessante em Kiefer para essa série. Depois disso, não me resta muito mais o
que dizer.

22
4.3 Jenny Savile

Fulcrum, 1997-99
Óleo sobre tela 261 x 487 cm

Jenny Saville é uma pintora inglesa da geração 90. Em seus retratos costumam
figurar personagens muito distantes do ideal de beleza consolidado em nossa sociedade
atual, historicamente machista. Eis alguns trechos de uma entevista sua.

“Beleza é sempre associada à fantasia masculina do que o corpo feminino é. Não


acho que exista nada de errado com a beleza. É só que o que as mulheres consideram
belo pode ser diferente. (…) Se há uma verruga ou cicatriz, ela pode ser bonita, de um
jeito, quando você pinta isso. É parte da sua identidade, coisas individuais que estão
escorrendo, vazando”6.

Em seu discurso a favor de um ponto de vista mais feminino acerca do próprio


corpo da mulher, Saville procura outros padrões, mais próximos da maioria das pessoas,
e dá a eles um discurso, uma estima. “Eu não estou pintando mulheres grandes e
desagradáveis. Estou pintando mulheres que foram levadas a pensar que elas são
grandes e desagradáveis, que imaginam que suas coxas se estenderão pra sempre.”
Paralelamente, ao falar dos marginalizados por esses padrões, ela está falando da

6
Entrevista concedida a David Sylvester, originalmente publicada em “The Independent”, em 20/01/1994. Trad. livre.
Disponível em http://employees.oneonta.edu/farberas/arth/arth200/Body/saville.html. Acessado em 22/05/2014.

23
maioria da população. “(...) e todas essas coisas que você poderia fazer pra deixar suas
pernas pernas melhores. Vê, se a maioria das mulheres tem as pernas de uma certa
maneira, então esse é o jeito que as pernas são. Mas nesse caso é como se fosse uma
minoria de pessoas dizendo para a maioria que eles estão errados”

Quando se vê um de seus quadros, em geral, é mais óbvio o acúmulo de carne e


pele que uma individualidade, ou personalidade próprias do modelo. Seu maior interesse
é o corpo em si. Seus modelos normalmente são dispostos de forma a privilegiar as
massas e as formas sobre a indentidade. É uma pesquisa muito menos semântica.

“Que estas imagens devem, então, ser positivamente ultrajantes - gorda, inchada,
nus femininos distorcidas, riscado e rabiscado com slogans e pichações, alegremente
desprezando todos os cânones do bom gosto e decência - só agrava o choque visual” 7.

Trata-se de buscar a beleza de outros padrões, ou, antes, criar boas imagens, e
trabalhos imensamente interessantes a partir desses padrões diversos. Mais que buscar o
belo, Saville está produzindo imagens fortes, impactantes, que falam alto, e não toleram
ser ignoradas.

7
William Packer, Financial Times, de 28/01/1994.

24
5. Processo e Desenvolvimento

Escória e verniz acrílico escorrendo pela primeira porta trabalhada.

Pareyson afirma que “o processo artístico é caracterizado pela contemporaneidade


de invenção e execução, e pela co-presença de incerteza e orientação, e é guiado pela
teleologia interna do êxito, isto é, pela dialética de forma formante e forma formada”
(PAREYSSON, 2001. p. 189). Admite-se então essa noção de que o processo se dá no
diálogo entre o projeto imaginado e a imposição da matéria, a técnica do artista e criação
inventiva, tudo regido pela falta de leis gerais preexistentes, a não ser a regra individual
de cada obra e a imposição do êxito, e que dará origem a um objeto inteiramente novo,
um organismo vivo, coisa entre coisas. Seguindo sua lógica, o processo será descrito em
anexo de forma mais técnica e detalhada, apresentando cada etapa de cada um dos
domínios até a sua justaposição final e o nascimento do trabalho.
“É absurdo pretender dividir na atividade artística uma parte original, inventiva, e
uma parte mecânica, fabril, já que o ato artístico é todo criativo, e, ao mesmo tempo
técnico. E esta criatividade de arte e ofício, na verdade, não significa que a técnica se
dissolva na pura criatividade da arte, mas, antes, que a arte se encarna necessariamente
numa atividade fabril” (PAREYSSON, 2001. p. 171).

25
5.1 Domínio Matérico

“... a matéria tal como se encontra na obra é totalmente diversa daquela


que era primeiro: o mármore tem uma aparência diversa, a pedra um
aspecto inédito e a palavra uma profundidade totalmente nova; o fim
utilitário é absorvido na figura artística e parece não preexistir no desígnio
do autor, mas emanar da mesma realidade da obra.

“Sem o olhar fecundador do artista, a matéria é inerte e muda”.


(PAREYSSON, 2001. p.p. 161, 163)

A investigação visando o emprego da escória nas obras foi o gatilho inicial de todo
esse projeto. Ela atua como pivô dessa série: ela é a protagonista dos elementos
volumétricos nas composições, e ao se misturar com o elemento adesivo forma uma
espécie de “têmpera” criando a ponte entre o aspecto matérico e o aspecto pictórico dos
trabalhos. Ela também é produto da manufatura metalúrgica, sendo assim registro físico
dessa produção, formando um complemento ao registro fotográfico, a testemunha ocular
dessa fatura.

A escória em quatro granulações distintas

26
O material de cobertura auxiliar utilizado foi a massa-corrida. Sua escolha se deveu
a sua alta maleabilidade, a capacidade de guardar os indícios das passagens das
ferramentas, preparar e clarear o suporte de cor escura e formar volumes mais densos ou
mais líquidos dependendo da ocasião. Atua então como registro matérico intermediário
entre a pedra e o verniz.

O material adesivo utilizado foi o Verniz Acrílico. Acaba servindo como o veículo
dessa “têmpera” inusitada se somando à escória e aos restos de madeira lixada. Por ser
bastante espesso, sua secagem formou seus próprios indícios, por sua vez mais líquidos,
como escorridos, gotas e desníveis mais suaves.
Serviu ao mesmo tempo para unir as pedras, colorir sem dar aspecto de tinta,
enfim, enriquecer a coleção de registros matéricos. E ao formar essa têmpera, faz uma
ponte entre as tintas e o material bruto, destruindo mais ainda os muros que separam
esses dois domínios.

5.1.1 Escória

O ferro, assim como a maioria dos metais, “não é encontrado na crosta terrestre
em seu estado elementar, e sim na forma de minério, combinado com o oxigênio ou com
o enxofre” (BATISTA & MENDES, 2009. p. 85). A escória é um dos subprodutos
resultantes da produção do ferro-gusa (ferro em estado líquido) nos alto fornos e se forma
“com a ligação das impurezas (oxigênio ou enxofre) com o carbono, assim o ferro fica em
estado líquido e as impurezas se acumulam numa espécie de espuma (escória)”
(BATISTA & MENDES, 2009. p. 86)8. Não se pode dizer que ela seja um resíduo ou um
produto de descarte, já que é empregada desde o assentamento de vias férreas,
produção de asfalto, fertilizantes, até a construção civil, e só raramente é desprezada.
Entretanto, não seria errado dizer que a escória é um produto menos nobre dessa
produção.

8
João Batista e Luiz Rinaldo Mendes “Metalurgia: Conceitos e Práticas”, pg 86, Coleção Artes & Ofícios, Ed.
Fiocruz

27
Quatro granulações usadas nos trabalhos

De todas as pesquisas que realizei, não encontrei um caso sequer da utilização


artística da escória, então, me vi na necessidade de desenvolver uma “cozinha” que
viabilizasse esse novo emprego. Para isso, sob orientação da Profª Lourdes Barreto, foi
iniciado um laboratório de experimentações investigativas, ainda no ano de 2012. Um
breve relatório em anexo.

5.2 Domínio Imagético

Cromaticamente, a pintura buscou uma paleta menos abrangente dentro do balão


cormático, na maior parte dos casos favorecendo os alaranjados, já que remetem à
coloração do céu de Barra Mansa à noite.
Em noites de nuvens mais carregadas, o céu fica tão alaranjado que chega a
brilhar de tanta luminosidade que emana (ou é refletida) dele. Esse tipo de poluição é
conhecido como brilho do céu, ou sky glow e caracteriza-se pelo “aspecto alaranjado do
céu, causado pelas luzes indevidamente direcionadas para o alto. É pior em áreas com
alta concentração de poluição atmosférica”9. Embora a poluição e a perda do avistamento

9
Segundo a apostila “Identificação e Combate à Poluição Luminosa” do Laboratório Nacional de Astrofísica, 2012,

28
da maior parte das estrelas sejam uma tragédia, isso em nada interfere na beleza visual
desse efeito, nem nas possibilidades estéticas por ele criadas.
Formalmente, a pintura se apresenta bastante carregada de empastamentos e
escorridos, tendo poucas velaturas. Enquanto se instala nas áreas delimitadas pelo alto
contraste, a pintura ajuda a contar a imagem, age num sentido altamente semântico.
Porém, quando os escorridos descem pelo suporte, vão se moldando à volumetria da
escória, criando seu próprio leito, como um rio, e dessa forma, vão evidenciando e
sublinhando ainda mais as texturas do trabalho, trabalham dessa forma próximas ao
domínio matérico. Já os empastamentos trabalham de forma bem mais ambígua: eles
saturam mais a pigmentação das tintas, de forma que a cor fala mais alto e se liberta da
coloração do verniz misturado à escória que insiste em respirar, e criam seus próprios
volumes baseados na cor, sendo tanto um elemento pictórico e cromático quanto um
elemento volumétrico e de textura. Assim, ao agir de maneira tão bivalente, a pintura
estabelece uma nova ponte entre os dois domínios através da cor. Completa-se o círculo
que a escória inicia ao se portar de forma análoga a uma têmpera e criar suas próprias
imagens.

A escória, ao se juntar com verniz e formar a têmpera, constói uma ponte partindo
da matéria para a imagem. Quando a pintura se empasta e forma sua própria volumetria,
faz a ponte partindo da imagem para a matéria. Já não se sabe mais onde um domínio
termina e o outro começa.

disponível em http://www.lna.br/lp/apostila_pl.pdf, acessado em 20/05/2014

29
6. Reflexões Posteriores

Entre os desdobramentos percebidos a partir do final da execução dos trabalhos e


depois de tê-los prontos está a postura do observador em relação à obra. Unanimamente
todas as pessoas que observavam os trabalhos se deslocavam no espaço. Ora andavam
para trás e se distanciavam tanto que saíam do espaço reservado para Pintura IV, ora
chegavam tão perto que quase esbarravam o nariz na escória (boa parte das pessoas
simplesmente encostavam a mão nas obras sem a menor cerimônia), também
circundavam o quadro, no intuito de olhá-lo por trás. Esse deslocamento evidencia a
quantidade de informações visuais disponíveis e o alcance que cada uma delas tem. Por
esse motivo, as obras devem ser expostas de forma que o espectador possa circundar o
trabalho. Em anexo, segue um esquema desses domínios e seus limites.
Nelson Brissac discorre sobre os jardins pitorescos e as esculturas de Serra de
forma muito análoga ao que acontece aqui. “O pitoresco pressupõe um caminhante,
alguém que constrói sua percepção a partir do movimento, não do olhar. (…) Em vez do
dispositivo ótico, uma visão peripatética.” e finaliza: “A escultura de Serra pede para se
'ver com os pés'.” (PEIXOTO, 1996, p.150). Uma das grandes surpresas foi descobrir o
papel dos pés no ato de ver os trabalhos, algo que sequer passou pela minha cabeça.
“Dá-se um deslocamento do espectador para o vidente” (PEIXOTO, 1996, p.152). A esse
ponto, o termo “espectador” já não é mais suficiente para nomear quem olha o trabalho.
Outra foi a constatação de que quanto mais matéria existe no suporte, mais diminui a
bidimensionalidade do trabalho, fazendo assim com que ele se aproxime da escultura.

O distanciamento favorece a visão da pintura. A imagem pictórica fica mais clara


com a distância. Uma vez que se tem um panorama do objeto, ele pode ser visto na
totalidade e há menos interferência do aspecto matérico. Existe o ganho da semântica e
da figura representada. A visão à distância favorece o olhar contemplativo. “A hegemonia
da visão leva à consideração do mundo como espetáculo, reduzindo o espectador a uma
posição contemplativa” (PEIXOTO, 1996, p.160). Particularmente, eu não diria
“reduzindo”.

30
Primeiro trabalho finalizado em meio aos outros trabalhos no ateliê

Por outro lado, a aproximação favorece a visão dos menores detalhes. Vê-se
melhor a rugosidade da escória, as marcas dos dentes da desempenadeira, os
empastamentos da tinta, os caminhos que os escorridos das tintas e do verniz acrílico
percorrem, a madeira superficial da porta descascada, as texturas todas.

Detalhe do primeiro trabalho

31
Enquanto a distância é curta, o observador se movimenta mais: ele abaixa, se
estica, anda em volta e em frente da porta, fica com as mãos mais inquietas. A visão de
curta distância favorece o olhar mais ativo, mais palpável: o olhar tateante. “Mas a
percepção da complexidade das coisas, por trás da sua aperente unidade, exclui a visão
panorâmica. O enfrentamento do pormenor impõe uma atenção ao material.” (PEIXOTO,
1996, p.160).

Nelson faz várias considerações em sua leitura do trabalho do fotógrafo cego


Evgene Bavcar que se encaixam perfeitamente. Partindo de uma proposição de Merleau-
Ponty de que a visão é palpação pelo olhar, ele tece um raciocínio sobre o ver com a
mão, “o ótico é substituído pelo tátil” (PEIXOTO, 1996, p.160) sobre a “superação do
universo retiniano”, sobre construir uma visão sem a participação do olho, sobre o usar o
tato para ver. Porém, seus comentários mantém total coerência e sentido ao se considerar
o caminho inverso por ele proposto: em vez de ir à visão pelo tato, ir ao tato pela visão.
Ter a sensação clara do toque, mesmo sem envolver as mãos, somente a visão. Nesse
sentido, é possível a aproximação do texto, e do trabalho fotográfico de Evgene, com
essa série apresentada aqui.
Em algumas das passagens, existem reflexões que realmente interessam a esse
trabalho. “Passamos do olhar ao tato. A linha – ou mancha – não traça um contorno, não
delimita nada. Não vai de um ponto ao outro, mas passa entre os pontos. Uma pintura
que se faz entre as coisas. As formas podem ser figurativas, mas já não tem mais laços
figurativos: a ligadura entre elas é propriamente pictórica, feita pelo movimento e pela
coagulação de seus próprios elementos.” (PEIXOTO, 1996, p.162) e ainda “O horizonte
vira muro, solo. […] Quando o olho dá lugar à vidência a imagem passa a ser tão legível
quanto visível. A visibilidade da imagem torna-se um acúmulo de camadas de significação
que exigem leitura” (PEIXOTO, 1996, p.162). Todas essas colocações se encaixam bem,
tratando-se do menor distanciamento provocado pelo aspecto rugoso dos trabalhos, muito
embora a mão não entre nesse caso: o tato entra, mas através da visão. É o olho que
decodifica essa tateabilidade e age sinestesicamente para enriquecer mais o leque de
experiências sensoriais dos trabalhos, quebrando a hegemonia da visão, através da
própria visão. “O olhar apalpa as coisas visíveis (…) o visível e o tocável pertencem ao
mesmo campo” (PEIXOTO, 1996, p.160).

32
Então ocorreu-me uma nova constatação: a volumetria dos materiais, da pintura e
da porta, se não criam, acentuam a tridimensionalidade dos trabalhos. Agem no sentido
de alongar a dimensão da profundidade, além da altura e da largura, aproximar um pouco
o trabalho da escultura e conferir um caráter maior de objeto, de coisa.

“A obra de arte é, antes de tudo, um objeto sensível, físico e


material, e que fazer arte quer dizer, antes de qualquer coisa,
produzir um objeto que exista como coisa entre coisas, exteriorizado
numa realidade sonora e visiva” (PAREYSSON, 2001, p.58)

Mas, para além dessa terceira dimensão física que o objeto acabado ganhou, é
possível dizer que existe uma terceira dimensão virtual, que não está clara no trabalho,
mas se evidencia ao perceber a interação das pessoas com as obras. É na verdade uma
bolha, uma zona de interferência na qual, uma vez dentro, o vidente está sob sua
influência e passa a interagir com ela: aí começa o trabalho. Ele existe não só da sua
materialidade e do lugar que ocupa no espaço, mas através da interação com quem vê.
Dessa forma, essa dimensão virtual se alonga muito à frente do quadro, onde
predomina a visão contemplativa e instala-se o domínio imagético da obra. É onde falam
mais alto o motivo e a paisagem. Conforme essa dimensão se aproxima do trabalho, nota-
se uma interferência, uma mudança de degrau na forma de percepção. O trabalho passa
a apresentar-se de forma gradualmente diversa daquela que se apresentava ao
contemplar a distância. E quanto mais perto o vidente chega, mais ele adentra o domínio
da matéria.
Aí predominam a volumetria, o caráter físico bruto das coisas, a construção da
composição volumétrica, os discursos simultâneos de cada material que podem ser
ouvidos individualmente quanto mais próximo se chega ou inseridos nesse burburinho
artístico quanto mais distante se vai. Aí prevalecem a postura mais ativa, os pés que
guiam o olho, a movimentação dentro do espaço virtual criado pela influência do trabalho,
prevalece a visão tátil e a sinestesia. Para a percepção é um trabalho inteiramente novo.
E por último, essa bolha estende-se não só à frente do objeto, onde estão os temas
pictóricos e volumétricos, mas também envolve-o, incluindo em seu interesse também as
“costas” do trabalho: é a força da porta como objeto em si. Também foi com espanto que
constatei o interesse das pessoas na parte de trás do trabalho, que tradicionalmente é
esquecida, fadada a ser virada e encostada na parede, para privilegiar somente um lado

33
das obras. Ao circundar o objeto, é possível ver escancarada a natureza da porta,
enquanto objeto utilitário, sem a interferência de nenhuma tinta e nenhuma escória. É aí
que o trabalho como um todo também ganha seu caráter de objeto, aproximando-se mais
ainda da escultura. O fato das pessoas procurarem esse lado do trabalho sem nenhuma
orientação de texto preexistente algum, mesmo se demorando menos nessa parte, mas
nem por isso com menos interesse, justifica a constatação e legitima essa afirmação.

34
7. Conclusão

Esse trabalho é ao mesmo tempo um tratado das coisas esquecidas e


marginalizadas, das lembranças, da descoberta, da sobreposição e da coexistência. Da
junção do subproduto metalúrgico menos nobre com os materiais e ferramentas da
construção civil, somando-se aos locais mais corriqueiros e marginalizados e às portas de
madeira descartadas no lixo nasceu essa série, que tem a pretensão de ser bela e
poderosa ao olhar, explorando cada característica de cada personagem subestimado,
formando um coral de patinhos feios. É um belo cortiço habitado harmoniosamente por
cidadãos de segunda classe.
A nostalgia e os sentimentos que carrego comigo se combinam à curiosidade e a
vontade de inventividade inatas em mim e formam o combustível que impulsionou essa
pesquisa. As constatações vindas da observação do comportamento de quem olhava os
trabalhos prontos permitiram divagar um pouco mais sobre essa dimensão virtual na obra
- pensamento que me acompanha desde muito tempo – e por fim, elaborar um esquema e
uma ilustração para evidenciar melhor essa ideia. Considero ainda que, por mais que o
tenha explorado, essa pesquisa é tão vasta e surpreendente que ainda pode render
muitos trabalhos mais e muitas questões ainda a serem verificadas, portanto, esse Projeto
é só o começo.
Em sua análise, Nelson Peixoto levanta uma questão que eu gostaria de deixá-la
aqui, porém em aberto: “a arte pode trascender a paisagem decaída”?

35
Referências bibliográficas

BATISTA, João, MENDES, Luiz Rinaldo. Metalurgia: Conceitos e Práticas. Coleção


Artes & Ofícios. Rio de Janeiro: Ed. In-Fólio. 2009

PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Ed. SENAC, 1996.

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução Pedro Süssekind. Porto
Alegre: L&PM, 2009.

SOUZA, L. A. S., Angelo, R. B.. Cidades (in)visíveis: imagens, caminhos, fotografias e


representações. Londrina, 2008.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro:
Best Bolso, 2010.

36
ANEXOS

37
ANEXO 1

A seguir uma breve descrição do laboratório realizado para investigar e testar as


possibilidades e limites da escória.

Laboratório:

-Pesquisa de Veículo: Cascorez, Cascorez diluído em água; Médium Acrílico, Óleo


de Linhaça.

Esta etapa visou investigar a durabilidade da mistura em ambiente exposto,


a maleabilidade e as possibilidades físicas do material, além dos efeitos visuais
produzidos pela mistura direta com a escória antes da fixação no suporte, e pela
introdução da escória por cima da mistura já fixada no suporte.

Conclusão: O Médium acrílico se mostrou não muito confiável, além de ter


pouco rendimento. Tanto a Cascorez pura quanto a diluída funcionaram muito bem,
com bom rendimento. A mistura prévia com a escória se mostrou mais confiável
embora a fixação na Cascorez já sobre o suporte também tenha funcionado bem,
com exceção de grandes granulações. A linhaça demora demais para secar, mas
sua fixação também é extremamente satisfatória, além de ter aspecto esverdeado
sob a luz negra.

-Pesquisa de suportes e superfícies: Lisas, estriadas, planas; madeira, Eucatex,


plástico, papel, papelão, Linho sobre chassi.

Esta etapa visou investigar a aderência dos diversos materiais.


Conclusão: Todos eles responderam muito bem à Cascorez. O linho bem
esticado segurou muito bem a escória e o óleo (depois de seco) e até o presente
momento (passado um ano e meio) não apresentou craquelamento ou outra
interferência qualquer.

38
-Pesquisa de Pigmentação: Pó xadrez, tinta acrílica, tinta a óleo.

Esta etapa visou a investigação dos efeitos visuais dos pigmentos


adicionados à mistura e aplicados por sobre a escória já fixada.
Conclusão: Os pigmentos imersos na mistura coloriam a mistura de uma forma
mais profunda, deixando ainda a cor da própria escória respirar. O tom tendeu a ser
mais escuro, por interferência da coloração natural da escória. A tinta espalhada
por sobre a mistura conferia um tom mais chapado e mais claro, anulando
totalmente a coloração da escória.

-Pesquisa das possibilidades da própria Escória: Granulações desde pedras de 5


a 8 cm de diâmetro até o pó moído e peneirado.
Esta investigação buscou os limites da escória, seus efeitos visuais
enquanto granulações diversas, seus efeitos estéticos pós-secagem, sua
possibilidade de ser misturada ao veículo agindo também como pigmento e
resistência ao clima.
Conclusão: A escória de maior granulação não se fixa muito bem por cima
do veículo já espalhado sobre a superfície, e as menores granulações também
tendem a soltar com o tempo. A escória coberta tende a ser mais escura. Funciona
muito bem como pigmento, além de ser muito facilmente usada cobrir áreas e
desenhar nesse formato. Sobrevive muito bem às intempéries.

Experimento exposto às intempéries Experimento guardado ao abrigo da luz

39
Experimento com massa corrida como adesivo e
verniz acrílico sobre a escória

Teste de fixação com óleo de linhaça

40
41
ANEXO 2

ESQUEMA DO PROCESSO

Com os resultados do laboratório e já sob orientação da Profª Martha, que


dispunha de vasta experiência, dei início aos trabalhos.

Suporte

As portas foram descupinizadas, receberam uma camada superficial de verniz e já


estavam prontas para uso. Nenhum acessório de porta (maçanetas, janelas, dobradiças)
foi retirado, o que está faltando já não estava mais lá quando da apropriação. Em alguns
casos, a superfície acabada da porta foi retirada em alguns pontos, mas somente para
revelar o “esqueleto” que jaz sob aquela madeira mais preparada.

Péssima foto do início do primeiro trabalho

Domínio Matérico

Por indicação da orientadora, o verniz acrílico foi eleito como veículo. Por vezes
aplicando mais de uma demão e criando volumetrias mais “líquidas”.
Em dois dos trabalhos, a massa acrílica foi escolhida para clarear a cor

42
naturalmente escura da madeira, sem ter de se recorrer à aplicação de nenhuma tinta,
formando áreas mais, menos ou não cobertas além de escorridos e impressões da própria
desempenadeira dentada usada na aplicação.

Início do terceiro trabalho

Finalmente a aplicação da escória misturada ao verniz antes da aplicação, com seu


aspecto pedregoso/arenoso, pontual e aglomerado dando o grosso e forma principal da
volumetria.

Fase intermediária do primeiro trabalho

43
Domínio Imagético

O processo de obtenção das imagens se iniciou em Pintura I e continuou mais ou


menos inalterado desde então. Agora uma breve descrição.

Apropriação de Imagens

Primeiramente, ocorre a etapa de apropriação das imagens. As imagens


apropriadas para essa projeto partiram de uma série de fotografias tiradas in loco,
já durante a execução dos trabalhos, seguindo as proposições já discutidas. As
fotografias geralmente, mas não necessariamente, procuram o ponto de fuga e as
linhas oblíquas.

Pontilhão entre os bairros de Saudade e Vila Maria, Barra Mansa

44
Manipulação Digital

As fotografias serão submetidas então a um tratamento digital no Corel ou


Photoshop, que as modificará profundamente. Serão feitos testes de
enquadramento, cortes, por vezes superposições. Na maioria das vezes as
imagens receberão alta saturação e alto contraste, afim de diminuir o leque tanto
de formas quanto de cores. Essa etapa tem por objetivo deixá-las mais suscintas e
mais agressivas ao olhar. Elas não devem ter aparência de acabamento cuidadoso
após essa fase. Em geral, depois dessa simplificação feita digitalmente, sinto
compreender melhor a imagem “resumida”.

Referência digital para o segundo trabalho

45
Projeção

A técnica de transposição escolhida dessa vez foi a projeção sobre o


suporte previamente trabalhado. A projeção irá deformar timidamente a imagem
projetada, uma vez que o suporte não estará inteiramente perpendicular à
projeção. Essa deformação foi planejada. A imagem formada será uma camada
imagética transitória. Essa “layer” espectral será, de todos, o aspecto mais
transitório e menos ferrenhamente encarnado na matéria.

Pintura

Por fim a aplicação da camada imagética definitiva, que formará a identidade final
da obra. Os pormenores dessa etapa já foram explanados e analisados
anteriormente.

Segundo trabalho finalizado, dentro do Pamplonão

46
47
ANEXO 3

A seguir, um esquema das zonas de influências e fronteiras entre cada domínio.


Importante notar a ausência de fronteiras muito bem delimitadas, exceto entre o Domínio
do Objeto e os outros domínios.

48

You might also like