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Resumo
Palavras-Chave
Abstract
Keywords
Introdução
3
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência – Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57.
1998 e 2011, períodos que comportam o início da vigência da lei 9610/98 e o fim das
consultas públicas para sua reformulação. Buscou-se trabalhos acadêmicos em
repositórios de instituições de ensino das regiões norte, nordeste, sul e sudeste do
Brasil. O mesmo ocorreu em relação às publicações de periódicos, recorrendo-se a
bases de dados de amplo alcance como a base Scielo e o Portal Capes.
A análise qualitativa empregada aos trabalhos tem como matéria-prima a
combinação de dados empíricos e teóricos que, além de conferirem suporte para o
distanciamento entre objeto e analista, fortalecem a confiança nas interpretações. A
aproximação direta entre a “realidade” e o produto de valor acadêmico, conforme
BOURDIEU, também pode apresentar controvérsias, consubstanciadas na “ciência
escrava”, em oposição ao “fetichismo do texto automizado”4, sendo este último a
potencial característica inerente a dogmática apontada. Logo, a combinação de
métodos complementares (teórico e empírico) atua junto ao pressuposto segundo o
qual não é a verdade intrínseca dos instrumentos de pesquisa utilizados que
definirão o rigor do trabalho realizado, porém o entendimento dos limites de suas
possibilidades, a fim de evitar mobilizações extremas que suponham a qualidade da
pesquisa conforme a mensuração e intensidade da “realidade apreendida” e do
alcance do objeto trabalhado5.
A ciência do direito, ou análise zetética, permite problematizar o objeto eleito,
facultando ao analista escapar ao compromisso com a decidibilidade ou da
composição de conflitos sociais visualizados no mundo dos fatos. Deslocar a
literatura típica do campo jurídico à função de marco teórico tradicional à
interpretação do direito implica tomar as contradições e condições de ação em um
determinado tempo e espaço que, mais do que assimilar a potencial existência de
um “senso comum teórico dos juristas” 6, confirma ou refuta a tese presente na
representação do direito como um produto estatal intepretado e intrepretável
segundo um corpus legislativo decodificado por um campo social específico.
O discurso como prática social envolve não apenas o explícito ou o que está
implícito na fala, mas as suas condições de produção que supõem não apenas a
4
BOURDIEU, Pierre. Os Usos Sociais da Ciência - para uma sociologia clínica do campo científico. Texto
revisado pelo autor com a colaboração de Patrick Champagne e Etienne Landais.Tradução: Denise Barbara
Catani. São Paulo: Editora UNESP, 2004(a)
5
SPINK, Mary Jane. Desvendando as Teorias Implícitas: uma metodologia de análise das representações
sociais. In: JOVCHELOVITCH, Sandra e GUARESCHI, Pedrinho (Orgs). Textos em Representações Sociais.
Pág.117-145. Petrópolis:Vozes, 1995
6
aceitação do discurso como verdade, mas a sua formação sob condições
diferenciadas que identifiquem os discursos, por exemplo, como pertencentes a uma
dada disciplina7. Para FOUCAULT, a análise do discurso não pode ser equiparada à
efetuada pela linguística, nem o discurso à linguagem. A análise compreende não as
especificações das frases possíveis ou gramaticalmente possíveis, mas a
especificação sociohistoricamente variável de formações discursivas por elementos
que tornam possível a ocorrência de certos enunciados, e não outros, em
determinados tempos, lugares e localizações institucionais, constituindo, eles
mesmos, os objetos sobre os quais falam8. Neste caso, tomaria-se a ciência jurídica
como uma disciplina que, teoricamente, fixaria os limites pelo jogo de uma
identidade que teria a forma de uma reatualização permanente das regras, em um
modelo autorreferencial.
Isto porque, sendo o discurso uma prática social, suas condições de
possibilidade seriam as formações discursivas creditadas como o meio onde,
no interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições
verdadeiras e falsas, repelindo, para fora de suas margens, toda uma
teratologia do saber. O exterior de uma ciência é mais e menos povoado do
que se crê: certamente, há a experiência imediata, os temas imaginários
que carregam e reconduzem sem cessar crenças, mas, talvez, não haja
erros em sentido estrito, porque o erro só pode surgir e ser decidido no
interior de uma prática definida9
É neste sentido que a obra de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR10.,
dedicada a análise da ciência dogmática jurídica como estrutura de um sistema
social, é mobilizada como um dos marcos teóricos que sugerem a autonomia da
ciência jurídica em relação aos domínios externos de onde provêm o discurso do
senso comum. Considerando que o direito é construído por fatores externos ao
âmbito dogmático, o mesmo se ocuparia da decidibilidade, o que lhe conferiria
qualidade tecnológica, pois seu objeto, em tese, não se submeteria ao debate entre
o verdadeiro e falso, mas do válido e inválido perante dogmas preestabelecidos.
Estes, por sua vez, originados do mundo circundante, albergariam as ações sociais
consideradas juridicamente relevantes enquanto, simultaneamente, encontrariam,
7
FOUCAULT, Michael. A Ordem do Discurso - aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 15 ed. São Paulo:Loyola, 2007
8
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. coordenadora da tradução, revisão técnica e prefácio :
Izabel Magalhães. Brasília: Universidade de Brasília. 2001, p.64-65. IÑIGUEZ, Lupicinio (coordenador). Manual
de análise do discurso em ciências sociais. tradução de Vera Lucia Joscelyne. - Petropolis, RJ :Vozes, 2004.
9
FOUCUALT, Michael. A Ordem do Discurso - aula inaugural no Collège de France, pronunciada em
2 de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 15 ed. São Paulo:Loyola, 2007.
p.33.
10
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Revista dos
Tribunais,1980b.
nestes mesmos dogmas, liberdade para retraduzir as novas demandas do campo
social sem que, contudo, fragilizasse a abstração preconizada em relação aos
interessados em uma determinada decisão judicial 11.
Associada à busca pela abstração, a universalidade, paradigma estrutural da
“ciência jurídica” strictu sensu, segundo FERRAZ JUNIOR12, é um modelo de
formulação epistemológica pautado na razão, na purificação de um discurso que
almeja sua continuidade no tempo, mas que prescinde os sistemas de significações
inerentes às condições sociais de onde emana a sua própria eficácia simbólica. Em
outras palavras, a “ciência jurídica” e sua trajetória epistemológica tradicional
conceberiam o mundo social como sendo um sistema de regularidades objetivas e
independentes. Esta proposta sugeriria a coisificação das relações sociais,
concebendo-as em seu estado ingênuo, teoricamente inapto e excluído das
possibilidades de descrição da verdade creditada às nomeadas autoridades
simbólicas do direito13.
Percebida como qualidade inerente ao modelo de racionalidade científica
observado nos últimos dois séculos14, a metodologia pautada na neutralidade
importaria a estratégica oposição entre representações ideológicas, senso comum
(doxa) e conhecimento científico (episteme), processada na purificação da doxa e
seus componentes representativos- representações ideológicas, configurações
metafísicas e evocações conotativas- pela episteme. Consequentemente, o
tratamento metodológico universal pretendido pela “ciência jurídica” strictu sensu, ao
incorporar a doxa a seu discurso, acabaria por manifestar, em linguagem típica do
campo doutrinário, fatores que, em seu ambiente natural, são categoricamente
refutados como válidos ao conhecimento do direito. Todavia, o aparato
universalizante da “ciência jurídica” não impediria que o alegado conhecimento
científico do direito se caracterize por um acúmulo de opiniões valorativas e teóricas,
que se manifestariam de modo latente no discurso dogmático, aparentemente
controlado pela episteme simbolizada pelos dogmas.
11
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Revista dos
Tribunais,1980b.
12
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. 4 ed. São
Paulo: Atlas, 2003.
13
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência– Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa:
Difel, 1991.
14
SANTOS, Boaventura Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição
paradigmática. Conteúdo. V.01: A Crítica da Razão Indolente – Contra o desperdício da experiência. 4 ed. São
Paulo: Cortez, 2002.
Estamos diante do senso comum teórico dos juristas, que é um
conhecimento constituído, também, por todas as regiões de saber, embora
aparentemente, suprimidas pelo processo epistêmico. O senso comum
teórico não deixa de ser uma significação extra conceitual no interior do
sistema de conceitos, uma ideologia no interior da ciência, uma doxa no
interior da episteme15.
Ainda segundo WARAT, a partir do momento em que o discurso materializado
na doutrina jurídica visa a alcançar a solução dos conflitos do conhecimento, a este
imanente, transmutar-se-ia em um discurso que reivindicaria, de forma mítica, um
lugar neutralizado para a própria atividade profissional 16.
Tão míticos quanto a reivindicação de uma neutralidade científica seriam,
aparentemente, os limites metodológicos nos quais a ciência moderna e,
consequentemente, a “ ciência jurídica” strictu sensu estariam amparados. Isto
porque, se tomada a epistemologia bachelardiana, conforme SOUSA SANTOS 17,
como premissa do conhecimento produzido pela “ciência jurídica” contemporânea,
cabe dizer que o produto emanado do processo de assertivas simbólicas ou discurso
dogmático ajustar-se-ia a limites dentro dos quais o paradigma original gere e
resolve crises sem ele próprio sucumbir a elas. Todavia, iniciada uma crise, tais
limites mostrar-se-iam contraditórios, pois as discussões paradigmáticas que então
ocorrem decorreriam tanto do plano interno (isto é, dos que foram nomeados a dizer
o discurso do direito, como verdade) como do externo (ou seja, dos leigos,
expropriados de competências cognitivas e desarmados de poder e saber jurídicos 18.
É preciso, entretanto, definir que uma proposta crítica de estudo do direito
não importa alijar deste espaço cognitivo a ciência jurídica e suas formações
discursivas. O objeto “direito” pode ser elaborado a partir de um pensamento
relacional19. O discurso como prática social, reitera-se, perfaz o objeto sobre o que
trata segundo as formações discursivas possíveis. Para tanto, essas mesmas
formações foram dispostas conforme a teoria dos campos sociais de PIERRE
BOURDIEU. A teoria dos campos aponta uma possibilidade metodológica de
elaboração do objeto de pesquisa segundo a dinâmica das estruturas de formação
da produção de saber em um dado ambiente social. O campo de conhecimento, ou
15
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência– Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57. p.52
16
SANTOS, Boaventura Sousa. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. 5ª reimpressão. Rio de Janeiro: Graal,
2010.
17
SANTOS, Boaventura Sousa. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. 5ª reimpressão. Rio de Janeiro: Graal,
2010.
18
SANTOS, Boaventura Sousa. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. 5ª reimpressão. Rio de Janeiro: Graal,
2010. p.36
19
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1991.
microcosmo, seria um espaço intermediário entre o mundo dos fatos e o produto
científico. Intermediário, pois, neste contexto, os indivíduos (agentes) atuariam em
meio à dinâmica de uma luta pela aquisição de capital. A afirmação não pode ser
tomada de maneira simplória. A luta pelo capital, neste caso, importa uma série de
ações suportadas pela identificação entre agentes, segundo habitus20
característicos.
Enquanto fenômeno construído a partir das relações estabelecidas no mundo
social, o campo jurídico pode ser analisado pelos discursos que lhe são dirigidos,
possibilitando sua compreensão partir das suas forças constitutivas, o que permite,
consequentemente, verificar o grau de autonomia e nível de refração deste campo
em relação às forças externas21 Analogamente à tese da dupla ruptura de
Boaventura Sousa Santos,
A hermenêutica crítica tem de começar por analisar a ciência que se faz
para que seja compreensível e eficaz a crítica da ciência que se faz, do
mesmo modo que uma teoria crítica tem de começar por analisar a
sociedade que existe para que seja compreensível e eficaz a crítica da
sociedade que existe22 .
20
Em linhas gerais, habitus é a qualidade de comportamento participativo na elaboração, ou modus operandi da
produção e reprodução do conhecimento produzido pelo campo. O habitus não limitaria a conduta do agente,
visto que, sendo o conflito uma característica elementar do campo, são passíveis de serem diferenciadas e
modificadas as posições individuais. Também não reduziria as ações segundo critérios exclusivamente
profissionais. Habitus pessoal e profissional são identificáveis e convergem para o estudo das formações
discursivas. TOMAINO, Bianca. Representações do direito brasileiro: discursos sobre direito na relação estado e
sociedade. 2 de maio de 2012. 202 fls. Dissertação. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de
Janeiro, RJ,2012 p.19. BOURDIEU, Pierre. Para uma sociologia da ciência. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa:
Edições 70, 2004b
21
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1991.Os Usos Sociais da
Ciência - para uma sociologia clínica do campo científico. BOURDIEU, Pierre. Texto revisado pelo autor com a
colaboração de Patrick Champagne e Etienne Landais. Tradução: Denise Barbara Catani. São Paulo: Editora
UNESP, 2004a
22
SANTOS, Boaventura Sousa. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. 5ª reimpressão. Rio de Janeiro: Graal,
2010. p.47
verificada para a elaboração discursiva de qualidade inter-domínios, incorporando
dogmas característicos do direito constitucional contemporâneo à doutrina
autoralista, como nos seguintes exemplos:
O mundo jurídico brasileiro tomou o rumo constitucionalista in
concreto com o advento da Constituição de 1988, essa afirmativa tem
alguns referenciais, primeiramente quanto à órbita do Direito, as
mudanças alastram-se até os dias de hoje, pois as bases
principiológicas e os direitos comtemplados em seu texto são capazes
de resultar em alterações interpretativas, visando o modelo de Estado
Democrático de Direito. Secundariamente é perceptível o papel
adotado pelo Estado, no sentido de tentar efetivar as normas
constitucionais, juntamente a visão mais humana trazida pela carta
constituinte (dignidade humana, como fundamento da República,
objetivando claramente a construção de uma sociedade mais
equilibrada e menos desigual. […] Nessa seara revisional, encontra-
se o movimento de constitucionalização do direito privado, juntamente
com a relativização da dicotomia do público e privado. […]. Sendo
assim, observa-se um exagero no protecionismo do direito autoral,
mas não motivado pela ideia de defender os direitos fundamentais,
conforme a Constituição, mas somente agradar o mercado e fugir das
discussões acerca do tema. Pelo perfil protecionista adotado até
agora, veda-se a possibilidade do próprio Estado , por meio das
políticas públicas, buscar melhores resultados na efetivação dos
direitos fundamentais, como a educação e cultura (sic)23.
23
PELLEGRINI, Grace Kelen de Freitas; DIAS, Felipe da Veiga. O Direito de Autor a partir dos Princípios
Constitucionais de Acesso à Cultura, à Educação e ao Conhecimento.In: UFSC. Anais IV Congresso de Direito
de Autor e Interesse Público:Florianópolis: UFSC: Fundação Boiteux, 2009. p.118-126. p.127(grifo nosso)
24
MAGRANI, Bruno. Função Social do Direito do Autor: análise crítica e alternativas conciliatórias. Transcrição
editada da participação do debatedor no projeto "Além das Redes de Colaboração", patrocinado pelo Programa
Cultura e Pensamento em 2007, através da “Seleção Pública de Debates Presenciais”. São Paulo: 2007. p.03
(grifo nosso)
educação é descrito sob perspectivas que atendem ora à condição socioeconômica
de estudantes no país ora ao sugerido volume na produção de informação e
entretenimento contemporâneas, pelos seguintes fragmentos exemplificativos:
Se considerarmos que o Brasil é um país com percentual
vergonhosamente alto de pessoas vivendo na pobreza e abaixo da
linha da pobreza, é de se esperar que os estudantes das famílias
mais pobres paguem pelas obras que vão garantir sua educação,
como qualquer outro estudante? É de se considerar que, na maioria
dos casos, os alunos pobres estão fora do mercado porque
simplesmente não têm dinheiro para obter os bens imateriais de que
precisam para sua formação. Dessa forma, nenhum prejuízo, neste
caso, está sendo imputado ao editor, pois se não fosse pela
possibilidade de cópia, os alunos não teriam acesso a esses bens de
qualquer outra forma25.
25
BRANCO JÚNIOR, Sérgio Vieira. Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. p 154
26
ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras Privadas, benefícios coletivos: a dimensão pública do direito autoral na
sociedade da informação. Tese (doutorado em Direito). Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, São
Leopoldo, 2006.p. 304-307.
requer fundamentação, consubstanciada em todos os trabalhos que defendem a
hermenêutica principiológica à questão da cópia privada. Tal justificativa é anterior à
descrição do problema das reproduções como objeto de análise. A continuidade
histórica abrangendo a segunda metade do século XX é abordada como verdade
indiscutível, tendo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, como
marco cronológico27.
A unidade do percurso histórico assessora tecnicamente o autor, quando
serve de instrumento para a utilização intencional do princípio glosado. A narrativa de
fenômenos históricos e políticos restringe-se ao contexto europeu. Não há, dentre o
material analisado, obras que integrem, no corpo argumentativo, construções
legislativas nacionais ou fenômenos políticos brasileiros diretamente vinculados seja
à promulgação da Constituição de 1988 ou à emergência de valores socialmente
consagrados em normas de qualidade abstrata. O fenômeno da
“constitucionalização do direito” é discursivamente integrado ao domínio dos direitos
autorais, com ruptura espacial entre a descrição das “realidades” nacional e
internacional, ambas inseridas em linha temporal ininterrupta, independentemente
das sociedades relacionadas.
Quando não vinculada ao fenômeno da “constitucionalização”, a
fundamentação histórica é mobilizada para indicar o “processo evolutivo” dos direitos
autorais, sob panorama universal, sugerindo a admissão de regras que favoreceriam
pessoas jurídicas posicionadas em eventual situação privilegiada. O julgamento,
embora proceda de agentes típicos do campo de conhecimento jurídico, existe à
revelia de estudos empíricos sobre a conduta do grupo social criticado, em postura
que contradiz regras e princípios igualmente positivados na Constituição Federal de
1988, voltados à livre defesa e contraditório. A prática observada é aplicada em
27
Normalmente se faz uma diferenciação clássica entre os direitos do homem e os direitos fundamentais. Os
primeiros podem ser apontados como o elenco de direitos válidos que se caracterizam pela inviolabilidade,
intemporalidade e universalidade destas normas; já os segundos, como os direitos relacionados com a vigência
dos direitos do homem dentro de uma ordem jurídica limitada temporalmente.
Daí utilizar-se a expressão direitos humanos fundamentais, pois eles abarcam estes dois conceitos-
para caracterizar o conjunto de normas válidas, invioláveis e universais, suja aplicação (interpretação) se insere
dentro da ordem jurídica vigente. Em outras palavras, a análise destes direitos deve acompanhar o contexto da
sociedade atual, dos sistemas sociais.
Estes direitos humanos fundamentais constituem uma categoria especial que elenca uma série de
direitos que, em seu conjunto, formam a base de garantia da legitimidade do próprio estado democrático de
direito e da convivência dos países na esfera mundial. Em 10 de dezembro de 1948, as Nações Unidas
elaboraram a Declaração Universal Dos Direitos do Homem, a fim de que os Estados tivessem uma convivência
pacífica através da observância e respeito aos direitos e liberdades previstas neste documento. AVANCINI,
Helena Braga. Direitos Humanos Fundamentais na Sociedade da Informação. In: Perspectivas atuais do direito
da propriedade intelectual [documento eletrônico]. Helena Braga Avancini e Milton Lucídio Leão Barcellos
(Orgs.). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. Disponível em: <http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/>. Acesso em: 15
nov 2011
enunciados que solicitam a realização da justiça através da interpretação de normas
que repliquem e atendam às necessidades sociais; porém, o agir do sujeito para
atingir a finalidade almejada opõe-se a condutas previamente descritas no mesmo
diploma que encamparia, segundo esses mesmos enunciados, valores de justiça a
serem observados de modo geral e irrestrito, incluindo a proibição de julgamentos
sem que a parte atacada tenha oportunidade para se defender das acusações que
lhe são dirigidas.
A doutrina assume, tacitamente, a função de traduzir a realidade da maneira
mais correta. Ela não se define como dogmática, registrando-se o vocábulo
“doutrina” para atender a marcos teóricos de agentes do mesmo campo de saber.
Não se mencionam consultas aos membros da sociedade, mas visa-se a reprodução
de seus fenômenos para fortalecer a “melhor” visão de mundo possível. Para tanto,
são enumeradas quantidades significativas de práticas observadas no intuito de
atribuir consistência à tese proposta. Identifica-se a dogmática como um domínio
diferenciado associado ao Direito em sociedade, mas reconhece-se,
simultaneamente, a relevância do mundo social na confirmação e legitimação dos
papéis que a dogmática atribui a si mesma, como o de “dizer a realidade” para o seu
próprio campo, cuja existência não é atingida pelas críticas pontuadas nos textos. Os
agentes evitam o conflito entre si, restringindo-o às possibilidades de interpretação
de interesses opostos. Em apenas 2 ocasiões houve citação à doutrina divergente
com nomeação dos autores das ideias contraditas 28.
Notou-se, ainda, que a fundamentação amparada em princípios tradutores de
“valores éticos e sociais” reduz, significativamente, a citação a diplomas legais, a
28
A Lei 9.610/98 (LDA) provocou justamente essa mudança. De lege lata, portanto,nos termos do art. 46, II, da
LDA, é possível a reprodução apenas de pequenos trechos, e não mais da íntegra da obra.
Eliane Y. Abrão explica acerca do comentado inciso:21
Diferentemente da legislação anterior, que permitia uma (única) reprodução integral, de qualquer obra
protegida, desde que se destinasse ao uso privado e pessoal de quem a confeccionasse, o legislador de 1998
restringiu o uso da cópia privada (integral) única: só lhe autoriza a reprodução de pequenos trechos. Em outras
palavras, diante da limitação atual, infringe a lei quem reprografa um livro inteiro, ou extrai uma fita magnética
completa ou outra reprodução de um CD em todas as faixas, ainda que para uso pessoal e sem intuito de lucro.
É a proibição da chamada ‘cópia privada’.
[...]
Os argumentos em favor da proibição da cópia integral de exemplar de obra protegida são
consistentes. Tome-se, como exemplo, a possibilidade de, ao mesmo tempo, duzentos ou trezentos estudantes
de diversos pontos de um país extraírem cópias inteiras de uma edição recentemente publicada. O prejuízo do
editor e do autor seria de grande monta, uma vez que o referido livro poderia ser considerado um bom
investimento sevendidos apenas mil exemplares. Ainda que reconheçamos a procedência dos argumentos
acima, é fundamental refletirmos sobre as palavras finais da autora. Ela afirma que seria prejudicial ao editor de
determinada obra se 200 ou 300 estudantes fizessem cópia na íntegra de obra recém publicada. Mas
indagamos: que estudantes são esses? BRANCO JÚNIOR, Sérgio Vieira. A Lei Autoral Brasileira como Elemento
de Restrição à Eficácia do Direito Humano à Educação. In: SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos.
n.06, ano 04, 2007. p.120-141. Disponível em:http://www.surjournal.org/eng/index6.php . Acesso em 23 ago
2011.
ponto de um dos trabalhos sugerir a permanência do atual artigo 46, II da lei
9.610/98 e o afastamento da obediência a seu conteúdo, em nome dos interesses
coletivos da sociedade
Analisando a atual sistemática jurídica, parece que, cada vez mais o
direito autoral tende a ser relativizado em prol do acesso à
informação, acesso este que não deve ficar restrito a um pequeno
público, que goza de condições financeiras, mas que deve ser
estendido a fim de que se possa cultivar o surgimento de uma
sociedade mais justa, equilibrada e mais consciente de seu papel
perante a sociedade, o que parece ser razoável através do
conhecimento e do acesso à educação e à informação.
Nessa linha de raciocínio, possível dizer que com base na carga
principiológica trazida pela Constituição Federal de 1988 não haveria
razão para haver a edição de uma nova lei para regulamentar os
direitos autorais, bastaria uma releitura da legislação existente à luz
dos ditames constitucionais. Porém, em que pese a necessidade da
população de ter tudo devidamente positivado (o que é, de certo
modo, resquício das influências fascista e nazista), parece que tem o
legislador a incumbência de adaptar a legislação infraconstitucional à
Constituição Federal de 198829.
Fenômenos da realidade são reiteradamente destacados para construir a
base interpretativa dos princípios constitucionais utilizados para defender a cópia
sem fins lucrativos. A ausência de um conceito sob bases teóricas que fixem no
campo jurídico a terminologia “direitos humanos” e “direitos fundamentais” são
substituídas por teorizações a respeito da matéria. No entanto, observou-se
constante interpenetração entre domínios de conhecimento, diante da necessidade
de se estabelecer um paradigma para a elucidação de conceitos como “sociedade
da informação”, “modernidade” e termos que não se revelam no uso cotidiano do
operador do direito. Quanto a esses, a despeito do uso de definições
preestabelecidas pelo discurso de autoridade, a naturalização dos “direitos
fundamentais” e dos “direitos humanos” foi visualizada quando tais expressões
tiveram suas explicações diretamente atreladas à descrição das representações de
realidade social construídas nos trabalhos e direcionadas a questionar a validade e
efetividade do artigo 46, II da lei autoral na sociedade brasileira.
O grupo de autores que projetam-se contra a liberação da cópia privada é
restrito, comparado às obras favoráveis ao tema. Cinco doutrinadores reivindicam a
manutenção do artigo 46, II, ou a sua mudança diante das alegadas novas
circunstâncias sociais. Os fenômenos criticados são os mesmos adotados pela linha
de raciocínio que apoia a cópia integral. No entanto, o viés argumentativo caminha
29
ARAUJO, Neiva Cristina; DIAS, Felipe da Veiga. Direito Autoral em Tempos de Internet :a busca por um ponto
de equilíbrio entre acesso à informação e o direito à propriedade. In: UFSC.Anais IV Congresso de Direito de
Autor e Interesse Público:Florianópolis: UFSC: Fundação Boiteux, 2010.p. 135-144. p.07
no sentido de elencar a série de prejuízos que a reprografia, o “abusivo uso pessoal
da cópia privada”30, com a inserção de dados estatísticos que corroborem as
alegações firmadas nos textos. Dos 5 doutrinadores, apenas um utilizou-se da
interpretação principiológica, em trabalho de conclusão final de curso de uma
faculdade de direito. Os demais permaneceram restritos à editoração comercial, sem
relação com trabalhos de pesquisa acadêmica. No primeiro caso, os “direitos
fundamentais” são tratados em igual perspectiva metodológica acerca da
ponderação de interesses, mas em resultado que ampare a “dignidade”dos autores
cujos direitos patrimoniais foram, supostamente, violados. É o que exemplifica o
fragmento a seguir:
Diante do impasse que se estabelece entre a liberdade de acesso à
informação e os direitos autorais, é necessário que se encontre um
ponto de equilíbrio, haja vista que não há direitos absolutos e
irrestritos. Portanto, a solução é a invocação das hipóteses de
limitação e exceção aos direitos autorais como forma de fazer com
que prevaleça, nestes casos, o princípio da liberdade de acesso à
informação. […]
A internet não deve ser entendida como um ambiente em que todae
qualquer utilização pode ser livre, incluindo aí o uso dos conteúdos
materialmente protegidos. É certo que a rede prima pela liberdade de
acesso à informação. No entanto, como já referido, não há direito que
seja absoluto.
Não é sempre que sobre as obras intelectuais oferecidas aos
indivíduos recaem os direitos autorais. Entretanto, sobre aquelas nas
quais tais direitos recaem, têm eles de ser respeitados. Entendida a
distinção, será dado apenas o primeiro passo de um longo caminho
que ainda se tem pela frente 31
O julgamento prévio sobre as intenções dos grupos sociais que agem
contrariamente à tese defendida é igualmente praticado. Nos exemplos
Trata-se de um negócio milionário e fácil: esse estranho
“comerciante” não paga aluguel, não paga energia elétrica, não paga
água, não paga limpeza, não paga segurança, não paga qualquer
imposto – logo pode praticar um preço por cópia realmente imbatível,
num processo de concorrência desleal
protegido à sombra daquilo que deveria ser a mais nobre das
instituições: a universidade32
33
ÉBOLI, João Carlos de Camargo. Pequeno Mosaico do Direito Autoral. São Paulo: Irmãos Vitale, 2006. p. 49.
Nota-se que o autor, ao lidar com conceitos como pirataria, uso pessoal e cópia privada, utiliza-se dos
parêntesis, indicando tanto sua visão quanto à indefinição dos mesmos quanto a retirada das expressões do
“senso comum”.
34
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. 4 ed. São Paulo:Atlas,
2003
institucionalizado por escolas, tribunais e setores correlatos à atividade profissional
do direito35, sua qualidade tecnológica importaria a centralidade da decisão judicial
como elemento central da problemática discutida pelos doutrinadores. Logo, o
conhecimento dogmático apresentaria, na estrutura de seus textos, opiniões neutras
ao mundo circundante a este domínio de conhecimento, na expectativa de atuar,
substancialmente, no agir decisório, a fim de traduzir o juridicamente possível a
partir dos fatos observáveis nas relações humanas interacionais. Dessa forma, este
modo de saber “científico”, ao ajustar elementos fáticos a dogmas preestabelecidos
e legitimados no interior do campo jurídico, cumpriria a tarefa de dizer o que seria ou
deveria ser o direito, sem provocar perturbações sociais, o que escaparia tanto à sua
função instrumental quanto à qualidade autônoma que lhe é inerente, posto que
compreendida no plano do direito enquanto sistema capaz de se reconfigurar nos
limites de sua própria estrutura36 .
O propósito de uma metodologia aplicável à ciência jurídica que promovesse
estudos neutros, “exatos e objetivos” é igualmente visualizado em HANS KELSEN. A
Teoria Pura do Direito fora elaborada como uma leitura do pensar e conhecer o
Direito como aquilo que é enquanto se mostra objetivamente, através de suas
estruturas, recusando-se a valorar o direito positivo.O fito da Teoria Pura do Direito,
respeitadas as peculiaridades de seu contexto de desenvolvimento, visava a impedir
o uso do Direito a “interesses políticos”, que lhe forneceriam “ideologias” a atuar
como intermediárias para desqualificar ou legitimar a ordem social vigente, sob o
discurso do direito “justo”ou “ideal”. Nítida a coordenação entre uma realidade
visualizada e os apontamentos de uma ciência do Direito então praticada, Hans
Kelsen diagnostica que o processo revelador do Direito, ainda que sob critérios
alegadamente científicos, traduziriam este objeto, secularmente, servindo “às
necessidades dos intelectuais” que dele se ocupavam. A Teoria Pura do Direito, por
sua vez, enquanto detentora de métodos científicos claros, atuaria no sentido de
interpretar a norma nos limites do “dever-ser”, de uma conduta legalmente
pretendida sem que, no entanto, extrapole sua função, quando passaria o
doutrinador, a prescrever condutas, atuando na decidibilidade de conflitos futuros,
ditando o Direito segundo aquilo que “ele é”, sob critérios de justiça, ética ou moral,
35
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência– Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57
36
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Revista dos
Tribunais,1980b
o que sustentaria, inclusive, o afastamento da vigência de uma norma válida, sob
estes mesmos argumentos. Ressalta-se que as interferências subjetivas são
criticadas, por KELSEN, sob a qualidade de “ideologias”, em movimento oposto ao
que constituiria a base da Teoria Pura do Direito. Nesse sentido, a ideologia,
negativamente, “[...] encobre a realidade enquanto, com a intenção de a conservar,
de a defender, a obscurece ou, com a intenção de a atacar, de a destruir e de a
substituir por uma outra, a desfigura. Tal ideologia tem a sua raiz na vontade, não no
conhecimento, nasce de certos interesses, ou melhor, nasce de outros interesses
que não o interesse pela verdade – com o que, naturalmente, nada se afirma sobre
o valor ou sobre a dignidade desses outros interesses”37. Comparativamente,
destaca-se a forma pretendida de conhecer o Direito presente na sociologia jurídica
de MAX WEBER38. Se em HANS KELSEN a interpretação da norma pela ciência
jurídica repercute proposições necessariamente vinculadas a uma ordem jurídica
previamente consolidada, WEBER descreve que as qualidades do Direito,
condicionados por fatores técnico-jurídicos internos e fatores políticos, assumindo o
caminho de investigação do Direito sob o prisma de interesse da economia
(diretamente, pelo autor, vinculada ao “direito privado”) e apontando a racionalização
como o processo segundo o qual se estabeleceria o pensamento jurídico. Em
sentido amplo, a racionalização proporcionaria, por um lado, a generalização, das
razões de decisão de um caso concreto a um ou vários princípios e regras
denominados “disposições jurídicas”. Pela via da racionalização, ocorreria,
igualmente, a sistematização, associada à determinação do que seria juridicamente
relevante no interior das ações sociais e consensuais, na configuração de uma
relação jurídica; um caso diferente de racionalizar o Direito além da análise
empreendida frente às “disposições jurídicas”39. É preciso notar, contudo, que, tanto
WEBER quanto KELSEN observam o fenômeno jurídico, em seus respectivos
contextos, construído a partir de aspectos multifatoriais. WEBER observa o Direito
como ele se apresenta à sua realidade, a partir de uma metodologia já incorporada à
sua produção intelectual. KELSEN, por sua vez, diante do que considerou uma
37
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 ed. 3ª tiragem.Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p. 75
38
WEBER, Max. Economia e Sociedade – fundamentos da sociologia compreensiva. v.02. Tradução: Regis
Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília : São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2004
39
WEBER, Max. Economia e Sociedade – fundamentos da sociologia compreensiva. v.02. Tradução: Regis
Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília : São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2004.p.115
metodologia predominante à ciência do Direito, faz da Teoria Pura uma proposta de
rigor metodológico, onde o Direito é tomado pela norma, cabendo à ciência jurídica,
pois, uma leitura, uma interpretação da prescrição materializada, elaborada nos
limites da lei. Entretanto, as justificativas de HANS KELSEN para a implementação
de uma ciência jurídica positivista não abordam, até mesmo por conta do objeto da
tese elaborada, constatações do que seria o Direito sob as bases da sociologia
jurídica em autores como MAX WEBER. Em ambos os teóricos, a norma adquire
status relevante. Nas “disposições jurídicas” e sistematizações reconhece-se a
problemática da casuística, da sublimação do Direito e suas consequentes
particularizações. A divisão do trabalho jurídico dentre os participantes na criação do
Direito influenciaria, diretamente, as qualidades formais do mesmo, amparando-se
nos seguintes postulados de racionalidade: toda decisão jurídica deveria ser a
aplicação de uma disposição jurídica abstrata a fatos concretos; que a estes
mesmos fatos seja possível encontrar, pela lógica jurídica, uma decisão a partir das
normas vigentes, pelo processo de sistematização construída sob uma ordem
jurídica sem lacunas; que o que não possa ser juridicamente racionalizado não seria
relevante ao Direito, logo, as ações sociais das pessoas deveriam, em todos os
casos, ser interpretadas como um efeito (“ação”, “execução”, “infração”) de
disposições jurídicas, pois, se à ordem jurídica não caberiam lacunas, “a situação
jurídica ordenada seria uma categoria básica do acontecer social”. É no estudo da
racionalização e na “interpretação lógica do sentido” que WEBER revela as
possibilidades de reconhecimento das condicionantes políticas na qualidade do
Direito, através da permanência do que denominou “dogmas do Direito Natural”,
representado pela “ética da convicção”, pelos “bons costumes comerciais”e pela
“Boa-fé”40, princípios de qualidade abstrata que, atualmente, norteiam as decisões
judiciais no Poder Judiciário brasileiro (artigo 422, lei 10.406/2002) e que compõem
a proposta de alteração da Lei 9.610/98 formulada pelo Ministério da Cultura na
minuta de anteprojeto apresentada no ano de 2010. Observando-se o parágrafo
único da proposta ao artigo 46,
Parágrafo único. Além dos casos previstos expressamente neste artigo,
também não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução, distribuição
e comunicação ao público de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a
prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração
por parte de quem as utiliza, quando essa utilização for:
40
WEBER, Max. Economia e Sociedade – fundamentos da sociologia compreensiva. v.02. Tradução: Regis
Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília : São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2004.
I – para fins educacionais, didáticos, informativos, de pesquisa ou para uso
como recurso criativo; e
II – feita na medida justificada para o fim a se atingir, sem prejudicar a
exploração normal da obra utilizada e nem causar prejuízo injustificado aos
legítimos interesses dos autores (grifos nossos)
As expressões destacadas atingem o chamado grau de sublimação do
Direito, ainda que formalmente estabelecias por lei, que envolvem, no percurso de
interpretação lógica do sentido, a incorporação de concepções éticas a ceder
margem de interferência a outros campos sociais, atingindo, consequentemente, a
autonomia do campo jurídico. Uma constatação sob a concepção sociológica
weberiana e um problema sob a proposta e concepção de Direito de HANS
KELSEN.
Reprisa-se que, tal qual a ciência, o direito também é objeto de estudo sob
enfoques diferenciados. Dogmática e zetética compreendem formas de
conhecimento no campo do direito, a partir de pressupostos ajustados ao
funcionamento destas atividades intelectuais. À dogmática jurídica incumbiria a
tarefa de direcionar a decisão do aplicador do direito, condicionando a seleção do
juridicamente possível no mundo circundante. A decidibilidade como problemática
central atribui unidade à dogmática, que, apoiada em elementos preestabelecidos
(dogmas), assumiria postura diretiva ante a conflitos reais ou potenciais no mundo
dos fatos.
Os dogmas deveriam atingir certo grau de abstração, de modo a possibilitar o
consenso sobre a interação humana e não tornar-se um obstáculo à mesma. Dessa
forma, apoiada em elementos conceitualmente abstratos, a dogmática não se
vincularia diante de expectativas sociais em sentido contrário. Consequentemente,
indo além da subsunção do fato à norma, a dogmática interpretaria sua própria
vinculação, adquirindo liberdade na exploração de textos jurídicos e experiências
sociais41. Frisa-se, contudo, o controle desta liberdade de ação, mantida apenas se
compatível a duas exigências centrais do sistema jurídico: a vinculação a normas e a
pressão para decidir um caso concreto. FERRAZ JÚNIOR. argumenta que a
dogmática, como descrita, manifesta-se apenas em sociedades cujo nível de
complexidade permita, além da relação direta norma x fato, delimitação entre
41
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. 2 ed. 6ª tiragem. São Paulo: Atlas, 1980a.
sistemas e organização interna, onde questões de fato e de direito possam ser
opostas, tornando-se, a aplicação da norma, um problema entre os elementos
distanciados. Se a tomada de decisão é um problema, o Direito faz com que sejam
fatos aquilo que ele próprio reconhece como juridicamente relevante, utilizando-se
da dogmática como meio a este fim. O que deve ser direito na sociedade seria dito
segundo a validade das regras impostas pelo sistema jurídico. A lei conforma-se em
suporte investigativo com maior solidez comparado às evidências e hipóteses de
outros campos de conhecimento científico.
Ainda que supostamente autônoma e distante dos fatos sociais, a
complexidade social inerente a uma dogmática capaz de viabilizar as condições do
juridicamente possível reclama a mobilização de conceitos que escapariam às
características de seu modo de produção de conhecimento. Logo, termos e
expressões incorporados aos diplomas jurídicos necessitam de conceituações
retiradas de domínios externos ao Direito, como o lucro, conceito derivado da
economia, previsto no artigo 46, II, da lei 9.610/98, referente à cópia privada de
pequenos trechos.
É através do estudo das estruturas do campo que BOURDIEU propõe
distinguir a “ciência rigorosa do Direito” da ciência dogmática jurídica 42, quando a
primeira tomaria o direito como objeto43. Nesse sentido, BOURDIEU refuta a tradição
científica do Direito e sobre o direito, que o concebe de forma autônoma em relação
ao mundo social ou como um reflexo ou mecanismo a serviço dos dominantes 44.
Cabe ter em conta que a adjetivação imposta à ciência do direito deve, portanto,
acatar a perspectiva principiológica da teoria do conhecimento social, de modo a
evitar a compreensão do objeto sob o risco do senso comum esclarecido ou do
fetichismo do texto automizado.
Alegadamente distante de tais premissas, BOURDIEU atribui ao campo
jurídico a qualidade de “lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o
direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam
agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste
essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou
menos autorizada, um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do
42
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Revista dos
Tribunais,1980b.
43
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1991
44
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1991
mundo social)” (grifos do autor) 45. Logo, o funcionamento interno do campo jurídico
encontrar-se-ia diretamente vinculado à divisão do trabalho entre agentes cujos
papéis, na concorrência para manter e transformar as forças do campo, concorrem
pelo monopólio do acesso aos meios jurídicos herdados do passado, contribuindo
para sedimentar a cisão entre os leigos e os profissionais. Isto se daria através do
trabalho de racionalização próprio, aumentando, progressivamente, a distância entre
os discursos autorizados do Direito e as intuições ingênuas sobre equidade (o que
LUIS ALBERTO WARAT chama de “atividade intelectual do homem comum” 46),
fazendo com que o sistema jurídico mostre-se, tanto aos agentes do campo como
aos subordinados às normas jurídicas, completamente independente das relações
de força que ele consagra47.
Contudo, o trabalho de interpretação da lei não seria um fim em si mesmo.
Dedicada a objetivos práticos, manteria sua eficácia à custa de uma restrição de sua
própria autonomia, o que explicaria as divergências entre manifestações dos
intérpretes autorizados. Ainda que, entre estes, haja forte concorrência pela
apropriação da “força simbólica potencial” emanada no texto legal, tais agentes
permaneceriam inseridos em um corpo de instâncias hierarquizadas apto a resolver
os conflitos entre os intérpretes e as interpretações 48.
Na dinâmica da divisão do trabalho jurídico PIERRE BOURDIEU reconhece,
assim como TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, os limites da ciência jurídica no
âmbito da decidibilidade. Sob referenciais metodológicos distintos, ambos
reconhecem, no ato decisório, autoridade legitimada pelo campo a oferecer solução
válida ao conflito levado ao campo judicial.
Em FERRAZ JÚNIOR., o conhecimento jurídico proporcionado pela “ciência
dogmática jurídica” encontra na função de dizer o direito, sob eventual consenso
social, forma neutra e universal. A vinculação a dogmas socialmente
preestabelecidos e admitidos no domínio da ciência jurídica, de modo a traduzir
valores sociais, agregaria valor positivo à dogmática, a partir do momento que se
afastaria do mundo social quando a sociedade exigisse vinculação do aplicador 49.
45
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1991.p.212.
46
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência– Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57.
47
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1991
48
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1991
49
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Revista dos
Tribunais,1980b.
Ademais, a abstração conceitual dos dogmas permitiria não apenas validar o
dispositivo no tempo, desvinculando-o da intenção do legislador, como aproximar-se
da lógica moral, o que garantiria sua eficácia e permanência na sociedade como um
todo50.
Contudo, é preciso lembrar que a ausência de perturbação social,
consequência do empreendimento intelectual dogmático, importaria, segundo
FERRAZ JÚNIOR., a relação direta entre direito e consenso. A postura adotada por
BOURDIEU, no entanto, ao lidar com o processo de elaboração do conhecimento
jurídico proveniente de doutrinadores (juristas) e até mesmo outros teóricos do
Direito, esbarra no ideal de consenso sugerido, pois, qualificado o campo jurídico
como campo social, o mesmo teria na concorrência de agentes (dentre os quais
juristas e teóricos do direito) e correspondente conflito de forças aspecto elementar
ao seu funcionamento.
As diferenças no tratamento dedicado à ciência jurídica não obstam
qualidade pontual a ambos os autores, dentro do que TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ
JÚNIOR aborda como “Função Social da Dogmática Jurídica” 51 e PIERRE
BOURDIEU de historicização da norma. Historicização que, através do conteúdo
aberto dos dogmas,
[…] adaptaria as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas
possibilidades inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou o
que é caduco. Dada a extraordinária elasticidade dos textos, que vão
por vezes até a indeterminação ou ao equívoco, a operação
hermenêutica de declaratio dispõe de uma imensa liberdade52.
Assim, os juristas disporiam de poder para explorar a polissemia do conteúdo
jurídico positivado. BOURDIEU admite, como FERRAZ JÚNIOR., a influência direta
da dogmática/ ciência jurídica na decisão judicial. Alega que o conhecimento do
direito, pela dogmática, na medida que integra a razão decisória, compõe-se,
igualmente, de um trabalho de racionalização associado mais a atitudes éticas dos
agentes do que às normas positivadas, em espaço ocupado pela própria lógica do
domínio dogmático, amparada em elementos predispostos sob conteúdos abstratos,
instrumentos à construção do “dever ser” em lugar da percepção sobre a questão “o
que é o Direito?”53.
50
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. 4 ed.
São Paulo: Atlas, 2003.
51
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Revista dos
Tribunais,1980b.
52
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1991.p.224
53
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Revista dos
É a abertura às representações éticas e exteriores ao campo dos agentes
autorizados a dizer o direito que age sobre a autonomia do campo jurídico. A
consideração de aspectos sensíveis ao indivíduo, associados à região dos
conhecimentos vulgares compõem a proposta de conhecimento crítico do Direito por
LUIS ALBERTO WARAT54.
Problematizando o que considera o modelo epistemológico predominante ao
conhecimento jurídico, WARAT busca designar uma leitura crítica e científica dos
conceitos elaborados no interior de marcos institucionais específicos (escolas de
direito, tribunais, órgãos legislativos) onde considera sejam produzidas versões das
teorias ajustadas às crenças, representações e interesses legitimados pelas
instituições55. A abordagem suscitada pelo teórico argentino é projetada visando a
ruptura com o que, assim como BOAVENTURA SOUSA SANTOS, considera um
paradigma de conhecimento já estabelecido. Ambos os autores buscam assimilar as
expectativas políticas dos domínios institucionalizados, sobrepondo a política à
razão e à experiência do mundo social. Logo, não são as estruturas do campo
jurídico e o papel de seus respectivos agentes que formam o objeto de estudo de
WARAT, como fora concebida a disposição de PIERRE BOURDIEU. O plano de
observação e análise do professor argentino é a composição discursiva dos
profissionais e acadêmicos do Direito, sob a premissa da diferenciação e retradução
entre doxa e epsteme. E esta observação integra-se à preocupação das implicações
políticas que o modelo tradicional de conhecimento jurídico promoveria através do
que denomina ortodoxia epistemológica, alegadamente preocupada com o
enclausuramento lógico referencial dos discursos produzidos em nome da ciência
jurídica56.
Visando a investigar a neutralidade apregoada pelo discurso científico
dogmático, LUÍS ALBERTO WARAT desenvolve o conceito de “senso comum teórico
dos juristas”, definido pelo
conhecimento constituído, também, por todas as regiões do saber,
embora, aparentemente, suprimidas pelo processo epistêmico. O
senso comum teórico não deixa de ser uma significação extra-
conceitual no interior de um sistema de conceitos, uma ideologia no
Tribunais,1980b.
54
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência – Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57.
55
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência– Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57. p.55
56
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência – Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57.
interior da ciência, uma doxa no interior da episteme. […] definido
pelo emprego estratégico dos conceitos da praxis jurídica, ou, dito de
outra forma, a utilização dos resultados do trabalho epistemológico
como uma instância de “doxa”, que permite-nos perceber o valor
político dos processos de objetivação. E, também é, precisamente,
esse retorno que torna ideológico o discurso da epsteme, ou seja, um
discurso transfigurado em elemento mediador de uma integração,
ilusoriamente, não conflitiva, das relações sociais57.
A qualidade “senso comum” imprimida às enunciações decorreria do
momento em que o discurso dogmático, em nome do método, da sua autonomia e
universalidade, busca a resolução dos conflitos de conhecimento a partir do próprio
modelo de conhecimento estabelecido, transformando-se em um discurso fácil de
ser estereotipado e que serviria para reivindicar, miticamente, um lugar neutralizado
para a própria atividade profissional58.
Há um aspecto em comum às concepções teóricas até aqui abordadas. A
ciência dogmática jurídica possuiria caráter alegadamente neutro e apolítico, sob
premissas/dogmas preestabelecidos que, retirados do mundo dos fatos, traduziriam
valores sociais, sendo, por conseguinte, retraduzidos no interior do campo jurídico.
Para tanto, a dogmática jurídica, dada sua característica tecnológica e
instrumental59, sob o aporte de dogmas abstratos, não apenas manteria sua eficácia,
como adquiriria meios para atribuir validade à norma positivada, através da prática
hermenêutica susceptível às mudanças sociais, evitando-se, desse modo, a
imposição arbitrária de normas consideradas ultrapassadas e caducas 60, o que faria
com que a ciência jurídica não devesse ser subestimada na sua relação com o
Direito e suas respectivas instituições de funcionamento como os poderes legislativo
e judiciário, além de outros campos sociais.
O conhecimento jurídico, reitera-se, não se limitaria às disciplinas pautadas
pela análise dogmática. Sob exame zetético – da ciência do direito - a sociologia, a
psicologia e a história admitem o direito como fenômeno a ser problematizado.
Reforça-se que a utilização de conceitos imprimidos ao discurso dogmático, mas
originários das demais ciências, ratifica a importância de ambas as análises à
compreensão do Direito, através da observação e aceitação de suas respectivas
características e limites.
57
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência– Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57. p.52-53
58
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência– Estudos Jurídicos e
Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57.
59
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. 4 ed.
São Paulo:Atlas, 2003.
60
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1991.
A zetética tem na abertura constante ao questionamento dos objetos
investigados sua maior característica. Assim como a dogmática, admite
pressupostos como suporte inicial de investigação, que passariam a orientar os
quadros de pesquisa, construindo-se, pois, os limites zetéticos. Admitidas as
subdivisões entre zetética empírica e analítica, os resultados destas últimas podem
ser dirigidos ao aperfeiçoamento de técnicas de conflito, sem que a utilidade dos
resultados prevaleça ou seja a motivação ao empreendimento intelectual. Em
comum a ambos os subtipos, trabalhos direcionados a uma questão (“o que é ?”) e
não a uma resposta vinculada, necessariamente, a um empenho interpretativo, em
se tratando do contexto jurídico. Neste mesmo caso, os esforços para delinear de
maneira válida o que deve ser direito, sem perturbações sociais, seriam intrínsecos a
uma preocupação imediata para orientar a ação enquanto em lei 61
O conhecimento pela zetética admitiria, portanto, a verdade como
constatação vinculada a um processo de racionalidade que submete a premissa a
isentos métodos de verificação. Este, por sua vez, pode confirmar a premissa
inicialmente adotada como evidência ou desconsiderá-la ante um resultado negativo.
Os reflexos da postura neutra assimilada pelo padrão científico sustentado por Tércio
Ferraz Jr são visualizados, inclusive, na linguagem manejada pelos pesquisadores.
Privilegiando o caráter descritivo, os textos científicos visariam a atingir a
neutralidade necessária à abstração exigida para dedicar a verossimilhança
necessária à verdade científica.
considerações finais
61
FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. 4 ed.
São Paulo:Atlas, 2003.
aspectos do “real”, a ponto de se cogitar o afastamento da norma em detrimento da
“realidade apreensível”. Tal fato implica um comportamento interessante sobre os
contornos do desenho institucional jurídico brasileiro da atualidade.
Se, discursivamente/expressamente, diplomas jurídicos nacionais e
internacionais ainda se mantêm como fonte primária do direito, o significado
emanado das obras examinadas traduzem a ressignificação da doutrina, por ela
mesma, como fonte deste fenômeno e, consequentemente, do papel que este grupo
social atribui a seus pares na elaboração simbólica e material do que é direito, a
partir de conceitos abstratos como “direitos humanos” e “direitos fundamentais”.
Notou-se, ainda, que a preocupação com potenciais situações ditas precárias ou
culturais da “sociedade” não comporta a opinião dessa mesma “sociedade” como
agente apto a contribuir, materialmente, à construção do ideal de direito enquanto lei.
E isto também não se revela pelas estruturas subjacentes aos discursos. Logo, a
modulação entre os elementos formadores ou produtores do direito nacional limita-se
a agentes cujos papéis restam introjetados, inconscientemente, na coletividade
estudada. Ou seja: a autoridade de fazer e dizer o direito compete a dois campos
sociais distintos e comunicáveis: os campos político e jurídico.
Todavia, não há que se falar em um “senso comum teórico dos juristas” a
partir de uma abordagem teórica que vise a dissociar modos de análise do direito
como se tais métodos de leitura do social importassem eventual hierarquia quanto à
qualidade dos mesmos. É preciso atentar para o sentido universalizante que
informaria o pensamento via ciência jurídica quando, segundo os dados examinados,
reprisa-se, apesar de polarizadas entre os que aprovam ou desaprovam a cópia
integral de obras intelectuais, há claras particularidades entre os autores,
consequência da conjugação e afinidades de habitus pessoais e profissionais
distintos.
As críticas direcionadas à dogmática jurídica são propostas por parte da
ciência que toma o direito como objeto de estudo seriam, por sua vez, zetéticas. Esta
análise, e seus respectivos teóricos, ao abordarem os problemas da ciência jurídica,
não se veem refletidas em espelho62, de modo a não observarem seus próprios
paradigmas, estruturas e limites. Algumas formas de conhecimento do direito
abordadas na pesquisa ora supõem como evidência a autonomia relativa do campo
62
Aqui, faz-se alusão à metáfora dos espelhos utilizada por Boaventura Sousa Santos na obra Crítica à Razão
Indolente, publicada em 2002.
jurídico, ora adota a premissa, também universalizada, de que o produto emanado
da ciência jurídica é integralmente disponível a interesses políticos ou fruto de um
consenso por integrar a estrutura de sistema autorreferenciável. Cabe ter em conta
que os discursos alegadamente críticos negam um agir efetuado, por eles mesmos,
segundo o modelo epistemológico criticado.
Ambos os quadros procedimentais de realização do saber comportariam
métodos característicos do chamado paradigma científico moderno. Os dogmas
propiciariam variabilidade ao discurso dogmático e construção direcionada às
decisões judiciais sem que, contudo, o agente revele-se no enunciado. A
variabilidade conceitual opõe-se, formalmente, à segurança do direito positivo fixado
no ordenamento jurídico. O que possibilitaria, pela doutrina, o acompanhamento das
mudanças sociais, incorporando-as controladamente a seu discurso. O dogma não
seria uma hipótese colocada à prova e constantes confirmações via instrumentos de
medição, mas uma certeza cujo conteúdo é dominado pelos agentes do campo
específico.
Tanto a análise dogmática quanto a zetética, no que diz respeito ao processo
de construção de conhecimento do Direito, possuem limitações. Entretanto, é no
interior de tais limites que se aponta a questão da autonomia do campo jurídico e
dos meios práticos e acadêmicos de se dizer o direito, problematizando,
consequentemente, em meio a seus enunciados, o processo racional de construção
do que é o direito, seja qual for o mecanismo institucionalizado adotado.
______. Para uma sociologia da ciência. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa:
Edições 70, 2004b.
WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In:
Sequência– Estudos Jurídicos e Políticos. v.03-n°05 (1982). p.48-57.