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o objetivo a que se propõe esta pesquisa, dedicada às realizações

·cênicas desta virada de mtlênfo, é discutir a encenação e seu conceito.


Aqui, em A Encenação Contemporânea: Origens, Tendências, Perspectivas,
recente trabalho de Patrqce Pavis que a editora Perspectiva publica em'
sua coleção Estudos, reencontramos vários tipos de espetáculos:
encenações de clássicos e textos contemporâneos, pertermance, teatro
do gesto, dramaturgia do atol', leitura cêntca, novas mídias, teatro da
desconstrução, experiências interculturais••. Um amplo painel de
experiências, em que o fenômeno. da encenação é estudade em
sua evolução histórica, explorado em todas as suas manifestações
e Interpretações e confrontado com a performance. Pois há razões
de sobra para desconfiar dos limites daquilo que hoje nos acostumamos
a chamar "encenação", isto é, a parte visível do teatro, aquilo que os
· atores e o seu encenador preparavam para nós, ou aquele suplemento
"espetacular" que nos era oferecido e que nos revelava, seja a pobreza
interpretativa daquilo que aprendíamos nos textos da escola, seja
questionando violentamente o que achávamos ser a "verdade da obra".
estUDOS
estu os
Há aí mais do que vislumbrava" nossa vã filosofia.I;Q.frentando com
desassombro esses problemas, Pavís construiu uma obra estêtíca,
estu os
pedagógica e didaticameute destinada não apenas ao~ estudantes
· dos ciclos iniciais dos estudos teatrais e Hterértos, niaii'sobretudo
e
ao preparo avançado de futuros profissionais, áma~iores interessados
na arte do palco.
Coleção Estudos
Dirigida por J. Guinsburg Patrice Pavis

A ENCENAÇÃO
CONTEMPORÂNEA
ORIGENS, TENDÊNCIAS, PERSPECTIVAS

Equipe de realização - Tradução: Nanci Fernandes; Edição de Texto: Iracema A. de Oli-


veira; Revisão: Ionathan Busato; Sobrecapa: Sergio Kon: Produção: Ricardo W. Neves,
Sergio Kon e Raquel Fernandes Abranches.
Título do original francês .
La Míse en scêne contemporaine - Origines, tenâances, perspectives
Sumário
© Arruend Colio, Paris, 2007

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDiTORES DE LiVROS, nr

p365e

Pavia, Petrtce, 1947-


A encenação contemporânea: origens. tendências,
perspectivas I Patríce Pavis; [tradução Nanci Pernandesl.>-
São Paulo: Perspectiva. 2010.
34 Il. (Estudos; 279)

Tradução de: La mtse en scêne contemporaíne : origines,


tendances, perspectives
Inclui bibliografia Agradecimentos XIX
ISBN 978-85-273-0897-7 Prefácio , XXIII
L Representação teatral. 2. Teatro - História. 3. Teatro -
Produção e díreçâo. I. Título. II. Série.
1. DE ONDE VEM A ENCENAÇÃO?
COO: 792
CDU: 792
ORIGEM E TEORIA " .. 1

01.09.10 17.09.10 021471 1 As Origens da Encenação: Marcos Históricos 9


1.1 Émile Zola 9
1.2 André Antoine 10
1.3 A Corrente Simbolista 13
2 Etapas da Evolução da Encenação 15
2.1 De 1887 a 1914 " . 15
2.2 Anos de 1900 a 1930 16
2.3 Anos de 1910 a 1930 17
Direitos reservados em língua portuguesai
2.4 Anos de 1920 a 1940 17
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
2.5 Anos de 1930 e 1940 17
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025
01401-000 São Paulo SP Brasil 2.6 Anos de 1945 a 1965 20
Telefa...c (OU) 3885-8388 2.7 A Ruptura de 1968 e a Reação Politica .
www.editoraperspectiva.com.br
dos Anos de 1970 . " , 20
2010
2.8 O "Tudo Cultural" dos Anos de 1980 ..... : .. 21 4. TENDÊNCIAS DA CENOGRAFIA NA FRANÇA .. 85
2.9 O Retorno do Texto e da Nova Dramaturgía,
1 Os Poderes da Ilusão Cênica 88
ao Longo dos Anos de 1990 ' .. 21
.2 O Fantasma e o Real 89

2. NAS FRONTEIRAS DA ENCENAÇÃO 25 3 Travessia da Imagem 91


4 Os Ecos do Espaço 94
I A Leitura Cênica 25
5 A Migração dos Microespaços 96
2 A Não-Encenação 28
6 O Silêncio do Espaço 97
3 A Encenação Improvisada 37
7 Conclusões Gerais 100
3. ENCENAÇÃO, PERFORMANCE:
QUAL É A DIFERENÇA? 43 5. O "PÓR EM JOGO"
TEXTOS CONTEMPORÃNEOS 105
1 Encenação e Performance: Urna Dupla Instável. 43
l.1 Nos Anos de 1910 e 1920 46 1 Combat de négre et de chiens (Combate de Ne~ro
l.2 Nos Anos de 1920 e 1930 46 e de Cães) 108
l.3 Nos Anos de 1930 e 1940 47 2 Papa doit manger (Papai Precisa Comer) 110
1.4 Os Anos de 1950 e 1960 , , .. 47 3 Le Bonheur du vent (A Felicidade do Vento) 113
l.5 Os Anos de 1970 48
4 Atou. ceux qui... (A Todos Aqueles que... ) 117
l.6 A Partir dos Anos de 1980 52
5 Hier; cest mon anniversaire (Ontem é Meu
2 O Estado Atual da Dupla Performance/
Aniversário) 123
Encenação 54
6 Les Baigneuses (As Banhistas) 126
2.1 A Constituição do Texto Contemporâneo 55
2.2 Da Autoridade à Alteridade 57 7 Conclusões 129
2.3 A Colocação no Corpo 59
3 Cinco Exemplos de Cooperação 60 6. A ARMADILHA INTERCULTURAL:
3.1 Simon McBurney: Mnemonic (Mnemônico) .60 RITUALIDADE E ENCENAÇÃO NOS VÍDEOS
3.2 Peter Brook: [e prends ta main dans la mienne DE GÓMEZ-PENA 135
(Eu Seguro Tua Mão na Minha) 62 1 Contexto Atual 138
3.3 Declan Donnellan: A Noite de Reis 63 2 Ritual? 140
'/ ..
3.4 Jean Larnbert-wild: Mue. Premiére
3 Antropologia Invertida? 143
mélopée (Muda. Primeira Melopeia) 65
3.5 Les Coréens (Os Coreanos) Encenado 4 Um Corpo de Identidades Variáveis? 145
na Coreia 70 5 A Encenação corno Teatralização de Rituais? 148
4 Conclusões: Performance Studies/Theatre Studies . . 79
3 A Indecidibilidade do Sentido 208
7. O TEATRO EM OUTRA CULTURA:
O EXEMPLO DA COREIA 155 4 Crise da Representação e Coralidade 211

Uma Temporada no Paraíso 156 5 Elogio do Vazio e da Lentidão 213


1
O Teatro Coreano Visto de Longe 162 6 Ritual Degradado da Repetição 216
2
2.1 P ara Onde Vai a Sociedade? 162 7 Saída da Representação 218
2.2 Para Onde Vai a Cultura? 165 8 Desconstruir a Representação 220
2.3 Para Onde Vai a Encenação? 168 8.1 Escolha dramatúrgica 220
2.4 Entre a Encenação e a Performance 169 8.2 Reconstrução 222
8.3 Disseminação e Descentramento 224
8. AS MíDIAS NO PALCO ·· ·· .. ··· 173 8.4 O Grito do Silêncio, o Vazio do Coração :225
8.5 O Pós-modernismo, aliás, Nada 227
"'eatro.e Mídias 173
:1 "
9 Conclusões: "Para Acabar com o Julgamento
2 Tecnologias/Mídias 178
de Deus" (Artaud) e com a Desconstrução? ..... 227
3 As Outras Mídias na Representação 179

4 Marcos Históricos 180 10. O TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA


5 Possibilidades do Vídeo no Palco 182 DOATOR 233
6 Efeitos das Mídias em Nossa Percepção 183 1 Maio B., de Maguy Marin: Esse Outro
7 Propostas para Análise das Mídias que Me Toca 235
na Encenação 185 2 Itsi Bitsi: a Dramaturgia da Atriz 238
8 Hipóteses Finais 186 3 Le Chant perdu des petits riens (O Canto Perdido
9 Três Exemplos .. , , 190 das Ninharias), de Claire Heggen e Yves Marc: a
9.1 Paradis (Paraíso), de Dominique Hervieu Delicada Arte do Contato 243
e José Montalvo 190 4 Les Étourdis (Os Aturdidos), La Cour des grands
9.2 Cappuccetto rosso (Chapeuzinho Vermelho), (O Tribunal dos Grandes), de Macha Makeíeff
de René Pollesch 192
e [érôrne Deschamps: o Corpo Deslocado 245
9.3 Crime et châtiment (Crime e Castigo),
5 Da body art de Antigamente às Identidades
de Frank Castorf 197
Múltiplas do Presente 248
10 Conclusões Gerais 199
6 Andrômaca à Flor da Pele: o Olhar e a Escuta
de Michel Liard 250
9. A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO
7 White on White (Branco no Branco), de Guillermo
pás_MODERNA ·················· 203
Gómez- Pena: Escrever as Identidades 254
1 A Impossível Anulação do Palimpsesto 206
8 Os Efêmeros, do Soleil: a Invenção Coletiva 256
2 Desconstrução e Reconstrução da Tradição 207
9 The Biography Remix (A Biografia Remixada), 6.7 Mudança de Paradigma: Da Performance
de Marina Abramovic: o Corpo entre para a Encenação : 304
a Performance e a Encenação 263 6.8 Mudança do Contexto Cultural 305
7 Alguns Signos do Tempo 307
11. ESPLENDORES E MISÉRIAS DA INTERPRETAÇÃO 8 Conclusões Gerais " 314
DOS CLÃSSICOS 271
1 O "Efeito Clássico" 274 12. A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS
2 Tipologia Difícil. 275 TRINCHEIRAS 319
2.1 A Reconstituição Arqueológica 275 1 Harmonia: Les Bonnes (As Criadas) 323
2.2 A Historicização 276 2 Reconstrução: Black Battles with Dogs (Combate
2.3 A Recuperação do Texto 277 de Negro e de Cães) : 326
2.4 A Prática Significante 278 2.1 Recontextualização/Concretização 327
2.5 O Despedaçamento , , .. 279 2.2 Diferença de Estilos de Jogo de Atuação 328
2.6 O Retorno ao Mito 280
3 Decantação: Rouge décanté (Vermelho
2.7 A Denegação 281
Decantado) 330
3 Fim da Radicalidade, Fascinação do Presente 281 3.1 Redução Cênica ", 331
3.1 O Ator 282 3.2 Mídias Decantadas 332
3.2 O Espectador 283
4 Assemblage: Pluie d'été à Hiroshima (Chuva
3.3 O Autor. , , '" ., , 284
de Verão em Hiroshima) 334
,4 Novas Formas para Velhos Problemas 286 4.1 Assemblage 334
4.1 A Reemergência do Corpo 286 4.2 A Encenação da Escritura 336
4.2 A Reapropriação da Língua Clássica 289 4.3 Experiência Sensorial 339
4.3 A Reconstituição em Declamação Barroca .. 290
5 A Travessia das Aparências: Gens de Séoul
4.4 A "Recontextualização" da Encenação 293
(Gente de Seul) 339
4.5 Recontextualização Radical
ou Pertinente? 294 6 Enquadramento: Cargo Sofia-Avignon (Cargueiro
Sofia-Avignon) 342
5 Nova Relação com a Tradição 295
6.1 O Teatro em Marcha : 343
6 Operações nos Clássicos 298 6.2 Os Límites do Teatro 344
6.1 Mudança de Tempo e de Lugar 298
7 Silêncio: Les Marchands (Os Negociantes) 347
6.2 Mudança da Fábula 299
7.1 O Som e a Imagem 348
6.3 Mudança da Intriga 301
7.2 A Encenação de Autor 349
6.4 Mudança da Textualidade 301
7.3 A Tentação do Silêncio , .351
6.5 Mudança do Sistema de Personagens 302
6.6 Mudança das Convenções e da Figuração 304
13. CAPÍTULO 13. CONCLUSÕES: 6.6 Ilha ou Quase-ilha? 393
PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 355 6.7 Reconsideração da Dupla Texto/
1 Um Percurso Sinuoso 357 Representação : 394

2 Um Balanço Contrastado: Os Anos de 1990 359 7 Para Onde Vamos? ' 400
2.1 Fatores Sociológicos ' 359
Bibliografia 403
2.2 Fatores Teatrais 362
Glossário de Noções 413
2.3 As Doenças da Encenação 363
Índice de Nomes : 421
3 O Questionamento da Encenação e
Índice de Noções 429
Suas Novas Funções 367
4 O Encenador e Seus Duplos 371
4.1 O Ator 372
4.2 O Autor. 372
4.3 O Dramaturgo 373
4.4 O Diretor de Atores 374
4.5 O Esteta das Formas 375
4.6 O Músico Silencioso 376
4.7 O Coreógrafo do Silêncio 377
4.8 Nem Deus, nem Mestre, nem Medidor
de Palco 377
5 Do Espectador à Assembleia Teatral '" 379
5.1 O Esgotamento da Teoria e do Espectador .. 379
5.2 A Reemergência do Público Afastado 380
5.3 A Comunidade Desamparada e a Assembleia
Desassembleiada 381
6 Da Fidelidade: Ou o Difícil Caminho da Dupla
Texto/Representação 382
6.1 A Dupla Texto/Representação 382
6.2 Fidelidade Funesta? 385
6.3 Três Exemplos de Ressurgimento -»,

da Fidelidade 386
6.4 Relatividade Histórica do Dualismo 390
6.5 Confusão de Papéis 392
A memória de Laurent Proteau.

Para Maríe-Chrístíne Pavís.


Agradecimentos

Como agradecer a todas as pessoas que me ajudaram durante


os anos consagrados à preparação desta obra? São muito nu-
merosas para que eu possa fazê-lo individualmente. Não obs-
tante, faço-o em pensamento, de todo coração e com gratidão.
Ao pensar no passado, não saberia excluir-me da inclinação
humana de não se lembrar mais das coisas belas. Contudo, não
as esqueço, assim como àqueles que participam da vida teatral,
especialmente abrangendo toda a extensão da representação.
O estatuto, muitas vezes precário, do exercício teatral torna
sua tarefa árdua e sempre arriscada. O mundo do espetáculo
e da arte tem se esforçado muito ao viver uma crise crónica
sem resultados, embora se encontre em expansão e pesquisa
constante: é uma das raras regiões em que há boas razões para
esperança.
-. ' I .
Este estudo sobre a encenação a partir dos anos de 1990
não pretende oferecer um panorama completo, uma história
racional desse período no qual ainda estamos imersos. Ele se
esforça mais modestamente em determinar algumas tendên-
cias, em examinar alguns gêneros de espetáculos a partir de
exemplos concretos. Tomei como regra falar apenas de espe-
táculos a que eu próprio assisti. Claro que isso não é prova de
xx A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AGRADECIMENTOS XXI

objetividade, longe disso! Pois se o meu objetivo consciente não Kent em Canterbury, por iniciativa de Paul Allain e a convite
é uma avaliação critica, uma exibição dos meus gostos e convic- da Fundação Leverhulme. As perguntas e observações de meus
ções, sendo, acima de tudo, uma empreitada teórica e histó~ica, colegas e alunos, a distância da língua e do ambiente cultural
sei, igu.almente, muito bem, que a teoria não se coloca acima ajudaram-me a concentrar as minhas ideias sobre a encenação,
das leis subjetivas da crítica e que não pode eliminar qualquer noção intraduzível na língua deles. Desde então, minha vida
juízo de valor. Em minha opinião, não é possível e nem dese- consistiu em procurar a diferença entre os termos e as concep-
jável separar, arbitrariamente, a reflexão teóríca da apreciação ções de "encenação" e "perforrnance"
crítica. Ao nos darmos conta de um espetáculo em certa hora, Alain Girault, na qualidade de chefe da revista Théãtre/Pu-
dias ou alguns anos mais tarde - inclusive a partir de anotações blie, ao me convidar, nestes últimos dez anos, para participar do
feitas «no calor da hora" -, a memória não é somente vítima do Festival de Avignon, encorajou-me a acompanhar a atualidade
esquecimento: é, sobretudo, uma lente de aumento que opera e a fazer uma triagem da enorme produção teatral. Graças ao
sobre alguns fatos marcantes, porém isolados, acentuando os devotamento dos membros do Cemea (Centres d'Entrainement
relevos, modificando as proporções e congelando aquilo que aux Méthodes d'Education Active) na procura de públicos os
foi concebido como efêmero. mais diversos, pude beneficiar-me da melhor acolhida possível
. Nenhum ponto de vista neutro ou universal pode ser es- na cidade dos Papas.
'perado (ou receado) de tal empreendimento. A semelhança do Foi uma viagem numa paisagem atormentada, em que, tal
teatro que acontece de Chaillot à Cartoucherie, de Bobigny a como Orfeu, o espectador não muda de posição sem perigo, uma
Berlim, de Lorient a Seul, fervilhando alegremente com suas viagem maravilhosa e dolorosa que hoje o leva, apesar de tudo,
missões e ilusões. Outrora arraigado no solo, o teatro, ao ser a testemunhar aquilo que entreviu de um mundo desaparecido
transformado em pós-moderno, dissolveu-se nos ares. Como para sempre, um mundo que não cessa de perseguir-lhe...
negar a ânsía por segui-lo? Ainda sabemos onde estamos quan-
do recordamos o passado de nossas ilusões teatrais? A França
com seus pés e sua alma, a Alemanha com o espírito, o mun-
do anglo-americano com a cabeça, a Coreia com o coração: é
com dificuldade que acompanho o movimento em condições
de distinguir tal Fausto ou Mefisto no tapete voador imaginá-
rio do filme de Murnau, ou os lugares em que me desloquei,
fisica ou virtualmente.
Agradeço, assim, a todos aqueles que me trouxeram de
volta à terra. Maríe-Chrístine Pavis e Iean-Maríe Thomasseau
foram meus primeiros leitores, tão impiedosos quanto bene-
volentes. Sophie Proust, Cathy Rapín, Dína Mantcheva foram
os últimos a apontar alguns esquecimentos meus ou outras
falhas. Iérôme Cailleux socorreu-me in extremis na fase final,
durante a passagem para a informática do manuscrito e das
fotos. A todos os fotógrafos que me autorizaram a reproduzir
suas fotos, livres de direitos, expresso o meu reconhecimento.
A maior parte dos capítulos foi redigida entre 2002 e 2007,
em seguida a uma série de conferências na Universidade de
Prefácio

Acreditamos saber o que é encenação e para que serve: não é


a parte visível do teatro, aquela que os atores e seu encenador
prepararam para nós? Não é esse suplemento espetacular que
nos é oferecido graciosamente quando, traumatizados pelas
nossas lembranças das matinês escolares clássicas, meio for-
çados, meio raivosos, retornamos "ao teatro': surpresos por
constatar que tudo que tínhamos aprendido nos parece, no
momento, de pouca utilidade? E não há ponto de concordância:
o teatro é escutado quando o lemos; mas o que estamos vendo
no palco não serve apenas para encher nossos olhos, para nos
transtornar o espírito ... e o corpo?
Tem-se razão ao desconfiar da encenação! Porém, mais ra-
zão se tem ainda ao interrogar essa desconfiança. A partir daí,
voltando para casa, parece-nos que as imagens do espetáculo
retornam e nos martelam para melhor prolongar e transfor-
mar a nossa experiência de espectador; como se nos obrigas-
se a repensar o evento da representação, retornando ao nosso
terror ou ao prazer.
A encenação, na forma como a conhecemos, existe há mais
de cem anos, e, contudo, é preciso lembrar incessantemente que
ela mudou a nossa maneira de conceber o teatro e, indo mais
XXIV A ENCENAÇÃO CONTEMPORANEA PREFÃCIO XXV

além, a nossa relação com a literatura e as artes plásticas. É' isso é complexo já de per si, a noção e a realidade das práticas
que nos repete também, muito a propósito, o prefácio de Pas- espetaculares e dos tipos de performances são absoluta-
cal Charvet, em um excelente conjunto de estudos dedicados mente ine~,tricáveis. Igualmente, seria o caso, aqui, de se
à LEre. de la mise en scéne (A Era da Encenação): f~z~r uma a~ostragení' de encenações julgadas caracte-
rrsticas da prática espetacular dos últimos quinze ou vinte
A encenação [mise-en-scene] não é, portanto, um suplemento anos. Abordaremos os seguintes domínios:
de vida acidental, um caderno de imagens para sobrepor um rosto
[metre-en-visage] aos personagens ou desbastar um livro, mas situ
• a !eitura-espetáculo - que desafia a cena ao propor coloca-
uma via de compreensão, uma parte integrante da história da peça
e do seu sentido. É um "pôr em jogo"[mise-en-jeu]* total da litera- çoes no espaço ou leituras nas fronteiras da encenação;
tura, como leitura e como escríta'. • a cen~g~afia - que às vezes é confundida com a encenação;
• ~s clas:lc.oS ou os contemporâneos, que necessitam de prá-
'Trata-se de um "pôr em jogo" da literatura, sem dúvida tícas cenrcas ora diversas, ora compatíveis;
alguma, mas também de toda atividade artística, de qual- • o prolongamento do teatro intercultural e ritual;
quer evento e de qualquer experiência em que a encenação • as novas tecnologias e o seu uso live no palco;
.nos arrebate. Esta será, em todo caso, a hipótese do presente • o desafio do teatro do gesto e da dramaturgia do ator:
estudo: a encenação é uma noção indispensável para se jul- • a prática pós-moderna da desconstrução. '
gar a maneira pela qual o teatro é colocado em jogo - seria
quase o caso de se dizer, colocar a sua existência em jogo. Estes capítulos são ainda cabeças de ponte que nos ajudam
Para nós, a encenação vem coroar a criação teatral, arre- a penetrar em domínios isolados e experimentais, a testar a
mata-a. Em nOSSo itinerário pessoal, ela não chegaria senão pertinência da ferramenta "encenação" para gêneros e práticas
as mais diversas.
no fim do percurso, como a última parte de uma trilogia,
após a análise dos espetáculos- e a interpretação das peças A escolha dos exemplos, apesar do esforço máximo de
contemporâneas'. abertura~ permanece inevitavelmente limitada e arbitrária para
Contudo, não seria o caso de uma única pessoa escrever a extensa~ dos territórios abordados e para os limites geográ-
a história universal da encenação no século xx. Os contex- ficas: Pans e sua região, Avignon e sua vítrine, algumas esca-
tos geográficos, culturais e institucionais são muito nume- pa~as para a Inglaterra e a Alemanha, duas estadas na Coreia.
rosos e diversos, e a diversidade dos gêneros e espetáculos Pelizrnente, como se verá, o próprio teatro está mundializado
exige competências que ultrapassam a boa vontade de um "globalizado"; não está mais ligado a um território, nem mes-
simples indivíduo. A isto soma-se outra dificuldade ines- mo a uma cultura: viaja pelo espaço e pelas práticas. Resta-nos
perada: qualquer história das encenações pressupõe uma seguir o movimento, ao invés de tentar controlá-lo.
reflexão teórica sobre tal noção. Ora, se o termo encenação

Na impossibilidade de encontrar em português um vocábulo correspondente


à forma francesa mise en jeu, optamos pela solução acima. o "pôr em jogo"
(N. da E.).
1 Avant-propos, em Jean-Claude Lallias (ed.), LEre de la mise en scêne, 'Ihéâtre
daujourd'hui, n. 19, p. 3. Especialmente preciosas são as respostas de dezoito
encenadores a um questionário único.
2 P. Pavls, I:A.na1yse des spectacles. {Trad. bras.: A Análise dos Espetáculos, 2. 00.,
São Paulo: Perspectiva, 2010.)
3 Idem, Le Théãtre contemporain: Analyse des textes de Sarraute à vínover,
1. De Onde Vem a Encenação?
De onde vem e para onde vai a encenação? A pergunta aplica-se Origem e Teoria
do mesmo modo à humanidade: vasto tema!
Contentar-nos-emos, mais modestamente, em observar de onde
provêm o termo e a noção, para o que serviram e ainda servem.
Por que a encenação adquiriu - quando se elaborou, em 1880,
aquilo que Peter Szondi denominou "drama moderno"
(1880-1950) - uma nova dimensão? Temos sempre "colocado"
as coisas no palco com um certo sistema, mas não é senão
com o advento do naturalismo, em seguida com o simbolismo,
que a encenação tornou-se mais do que uma técnica: uma arte
em si, às vezes até destacada do texto, uma prática cénica
à procura de suas próprias leis.
Saltemos alegremente, porém, um século: onde ela se encontra
no'começo do terceiro milénio?
Este é o objetivo, certamente desmesurado, deste livro.
Se é possível reconstituir sem muita dificuldade - de naval -
a história do teatro moderno a partir das suas principais obras
É preciso, m_ais uma vez e obsessivamente, retornar às origens
dramáticas, por outro lado torna-se mais difícil seguir a evolução
da encenaçao? Sua aparição e as circunstâncias de seu de-
da encenação ao longo do século. E mais problemático ainda
senvolvimento foram magistralmente descritos por Bernard
é observar de que maneira a encenação. na virada do milénio,
Dort, há qua~e quarenta anos, num célebre artigo: "Condi-
entregou-se a todas as experiências possíveis, a ponto de não
tíons s?cIOloglques de la mise-en- scene théâtrale" (Condições
se estar mais seguro de ainda se tratar do mesmo animal.
sO~l~log1Cas da encenação teatral). Foi a mudança da consti-
Para compreender o nosso presente é necessário estudar tuíçao do, ou melhor dos, públicos, que obrigou a instituição
o passado, levando-se em consideração a ocorréncia das teatral a apelar ao encenador para que a obra fosse adaptada às
práticas cénicas do último século. Em seus inícios, a encenação novas necessidades do palco. De acordo com Dort, "é somente
teve de afirmar sua legitimidade, precisou convencer-se e~ 1820 que se começa a falar de encenação na acepção que
de não ser nem uma decoração facultativa, nem um discurso hoje damos a este termo. Anteriormente, encenar significava
derivado e arbitrário. Além do mais, precisou provar que adaptar um texto literário, visando sua representação teatral:
se tratava de uma arte à parte, integral, e não uma serva e~cenar um romance, por exemplo, consistia na adaptação cê-
da literatura. Eis, no entanto, que na atualidade ela "explode" ~lca d~sse rornance'". Desde 1828, a encenação, no Théâtre de
através de inumeráveis experiências. Parece ter abandonado l'Arnbigu, por exemplo, tinha sua musa, Séneis, fazendo uma
definitivamente a dramatização cénica e a literatura para artede corpo inteiro'. Esta datação, porém, é na verdade
aliar-se a todas as demais práticas artísticas. Porém, isso parece
óbvio? Ou será que enveiheceu? Ela mudou, realmente? Mudou 1 Condition sociologique de la míse en scêne théâtrale, 7héâtre réel, p. 5I.
para um futuro desconhecido? Um rápido sobrevoo na história 2 Ver, s~bre a encenação no século xx, os trabalhos de Jean-Marie Thomasseau
especialmente ~o Díctionnaíre encycIopédique du théâtre, de M. Corvín, v. 2:
da encenação no século xx nos reiembrará que o passado abriu p. 612, e s. Ver Igualmente Le théâtre et la míse en scêne au XIX· síêcle, em P.
inteiramente o caminho à criação contemporânea. Berthíer e M. Iarrety (eds.), Histcire littéraire de la France.
2 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA DE ONDE VEM A ENCENAÇÃO? ORIGEM ETEORIA s
discutível. De acordo com pesquisas recentes de Roxane Mar- projeto estético e político concreto'. Trata-se de reconhecer que
tin, o termo pode ser atestado a partir da Revolução Francesa'. a apresentação cênica, a opsis de Aristóteles, ou a representação,
Não obstante, apenas nos anos de 1880, com Zola e Antoine - desempenhou um papel em todos os momentos da história do
é verdade que na cola dos Meininger desde 1868 -, é que o teatro. Coisa distinta é entender a ruptura epistemológica dos
encenador tornou-se o responsável incontestado do sentido anos de 1880 a 1890, que deu à encenação um novo estatuto,
assumido pela representação. ao invés de compreendê-la como a representação cêníca, isto
Essas divergências na datação nada mais fazem do que con- é) como opsis ou mimesis.
firmar a dificuldade de situar, no tempo, uma função nova, Antes de propor um rápido reconhecimento de algumas
estrito senso, mas que é antiga, na medida em que sempre hou- etapas da encenação, tomaremos cuidado em distinguir os ter-
ve - e isso a partir dos gregos - uma pessoa encarregada de mos frequentemente empregados indistintamente.
cuidar da organização material da representação. Ésquilo es-
creveu para as condições de representação da época, compôs a • A representação é o objeto concreto, físico, empírico produ-
música, dirigiu o coro, cuidou dos figurinos. Na Idade Média, zido pelos atares, o encenador e sua equipe de criação. É também
o "maitre de jeu" coordenava os elementos do drama litúrgico. a ideia que a cena re-presenta, ou seja, apresenta uma segunda
O capocomico da commedia dell'arte decidia sobre a ordem das vez e que torna presente aquilo que estava ausente. O teatro é
sequências e a conduta geral do espetáculo. Moliêre foi autor, concebido como a retomada de urna ideia ou uma realidade an-
ator e, como se vê pela forma certamente "romanceada" do Im- terior. Percebe-se toda a diferença com o termo inglês performan-
proviso de Versalhes, responsável pela interpretação, ou diretor ce: a performance sugere que a ação é complementada pelo palco,
de atores, como diríamos hoje. sendo que o palco não remete, automaticamente (como o termo
Apesar dos precedentes históricos ligados ao próprio exer- francês), à imitação do real.
cício da cena, seria o caso de reservar o termo encenação, e mais • O espetáculo é a representação de todos os tipos de mani-
ainda o de encenador, para as experiências cênicas a partir dos festações (que o inglês chamaria de cultural performance). As
anos de 1880, visto que a era dos encenadores não começou "artes do espetáculo', as performing arts, são apenas uma fra-
antes da crítica radical ao teatro feita por Zola ou Antoine, ção minoritária de todas essas cultural performances. No que
da mesma maneira que não começou "nem antes" da contra- se refere ao teatro, o espetáculo não é mais, de acordo com a
proposta do simbolismo (tomando-se apenas o exemplo da palavra de Richard Schechner, do que o quarteto de cordas do
França). Isto porque será útil, por um momento, retornar aos século xx.
anos fundadores. Faremos isso em princípio na perspectiva do • A encenação é, assim, uma representação feita sob a pers-
teórico preocupado com a produção cênica atual mais do que pectiva de um sistema de sentido, controlado por um encena-
com a de um historiador do teatro, mesmo que as duas funções dor ou por um coletivo. É uma noção abstrata e teórica, não
dificilmente sejam separáveis. concreta e empírica. É a regulagem do teatro para as neces-
Na crítica teatral francesa, observa-se uma inflação do ter- sidades do palco e do público. A encenação coloca o teatro em
mo encenação, que no caso vem a significar "o teatro") ou de- prática, porém de acordo com um sistema implícito de organi-
terminado espetáculo concreto no palco ou em outro lugar. Ao zação de sentido.

I
contrário, nos esforçaremos em restringir este termo à classifi-
cação subentendida na manifestação teatral, ou pelo menos à
4 O termo encenação aplicado às práticas anteriores ao século XIX é, portanto,
maneira pela qual o teatro é colocado em prática, visando um anacrôníco, até abusivo. Traduzir o termo mímesis de Aristóteles por "ence-
nação" é no mínimo ousado: "esse efeito (terror e piedade) pelos meios do
espetéculo não depende muito da arte: é tarefa da encenação" Aristóteles,
3 La Féerie romantíque sur Ie scénes parísiennes (1791 ~1864). Poética, SObl?
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
DE ONDE VEM A ENCENAÇÃO? ORIGEM E TEORIA s
4

• A performance, no uso francês do termo, é aquilo que cha- dado momento, não se deve reduzi-lo à representação e à
Inglês de perjiormance art, um gênero frequente- mera coordenação de materiais.
mamos e ln . . A encenação é um conceito novo, mesmo que em to-
mente autobiográfico em que o artista proc~ra ne~ar a Ideia
de "re-presentação", ao efetuar ações reais e nao fictícias. apre- das as épocas se tenha podido estudar a maneira específica
pela qual os elementos da representação eram combinados
sentadas apenas uma vez.
• A direção de atores é uma expressão mais recente: é a re- e interpretados:
lação de trabalho no decorrer dos ensaios entre o encenador e
Seguramente houve um teatro antes daquilo que hoje chama-
os artistas, particularmente os ateres". mos de «encenação': porém algo novo - percebido, esboçado e al-
gumas vezes necessário nos séculos precedentes - foi instituído no
A tendênciaj;nto aos historiadores (como Jean-Marie século XIX: a arte da encenação praticada por encenadores. Seja o
Thomasseau ou Roxane Martin) é recuar ao começo do sé- que for que pensemos de sua gênese, de sua natureza. de suas vir-
culo XIX, mesmo até o século XVIII, para procurar no modo tudes, a arte da encenação constitui-se hoje como o horizonte da
de trabalho o embrião de uma encenação. A interpretação arte teatral, da mesma maneira que a perspectiva geométrica foi a
játe~ia sido decidida em grande parte pelos atores, e não da pintura ocidental da Renascença no século XIX7.
somente de acordo com uma tradição congelada", Não obs-
tante manteremos a tese de que a encenação conheceu uma É prudente sempre verificar, em cada domínio linguístico
rupt~ra epistemológica em 1880 e que adquiriu então o e cultural, o sentido de todos esses termos, pois ele varia muito
sentido moderno do termo, certamente ainda no sentido de de uma língua para outra. A performance no sentido francês
passagem do texto para o palco, mas cada vez mais como nada tem a ver com o sentido habitual da palavra em inglês,
especialmente intraduzível no francês. Quanto ao termo ence-
arte autônom a.
Uma vez estabelecidos esses detalhamentos terminoló- nação, que em francês designa o conjunto e o funcionamento
gicos, devemos, por um momento, retornar à historicida~e, da representação, em inglês limita-se ao ambiente visual da ce-
quando muito não seja para melhor compreender a prati- nografia e dos objetos: "Ele é utilizado para descrever o papel
ca atual da arte do teatro, prática que, como se verá, deve do encenador ao contar uma história; seu modo de arranjar
muito a toda a fase inicial da encenação, no exato momento os objetos e as cenografias que o cenógrafo forneceu-lhe para
em que são inventados o mundo contemporâneo e o teatro criar o ambiente desejado"'. De todo modo, as enciclopédias
de hoje. Tal fenômeno está localizado historicamente num inglesas ou americanas revelam uma extensão recente da noção
para além do arranjo espacial:

5 Ver S. Proust, La Dírection dâcteurs dans la míse en scéne théâtrale contempo- No sentido estrito, quando aplicado às técnicas da representa-
raine, ção cénica. o termo refere-se à decoração pintada. aos efeitos cêni-
6 [acquelf.ne Razgonnikoff: "Caso se interroguem ~s doc~entos, per::ebe-se que,
d de o século XVII, a partir do texto bruto destmado a representaçao, emanam
cos, aos objetos cênicos e aos acessórios. Porém, há um sentido mais
d::erentes propostas que, no decorrer da história, os comediantes não :eprd~d_u~ amplo, Significando não apenas a decoração cénica. mas também
zero sistematicamente dentro dos mesmos :squemas. tau_to qu~nto a tra rçao a iluminação. os figurinos e todos os aspectos ligados à ordem es-
tão frequentemente invocada, talvez evoluçao ou revoluçao. O Jogo dos atores, pacial e temporal de uma representação teatral. Neste sentido mais
as cenografias e figurinos, a música e os aces~6rios, to~os os detalhes de um es-
amplo. a encenação reenvia àquilo que acontece no continuum es-
té u10 testemunham uma vontade, consciente ou nao, de chegar a um resul-
pe ac , . . .. b .- pada-temporal. compreendidos. nele, as ações e os movimentos de
tado ue é a representação. A convergencla desses detalhes constitUl o em nao
de u~a 'encenação' que, por não ser 'interior', no sentido em qude o e;te~de
Antoine, não é menos o reflexo de uma concepção e de uma atitu e su jenvos
ue se renovam, se anulam ou se completam, em face do texto, no decorrer do
7 l-L. Riviêre, Comment est la nuiti Essai sur l'amour du théàtre, p. 90.
S P. Irvín, Directingfor the Stage, p. 170.
{empd: (Journa1 des Trois Tnéãtres, n. 18, janeiro 2006, p. 30.)
6 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA DE ONDE VEj\'1 A ENCENAC;Aü? ORIGEM E TEORIA 7

todos os performers (atares, cantores ou dançarinos) que fornecem


reconstituir a gênese da representação, como o pensa a genética dos
o ritmo dinâmico da representação. Na época moderna, o papel do espetáculos, mas sim emitir uma hipótese sobre o seu funcionamen-
encenador é o de organizar todos esses elementos numa obra de
to ou, pelo menos, do seu sentido. de abrir uma negociação entre o
arte unificada". objeto percebido e o sujeito que percebe.
Do que falamos quando analisamos UIU "espetáculo ao vivo"?
Um rápido sobrevoo histórico às origens da encenação Não diretamente do vivo, do corpo biológico ou outra bios", nem C<

ajudar-nos-á a compreender de onde vem 'sua prática atual. mesmo do evento live em que ele se insere, mas, antes de tudo. da
construção ou reconstrução que efetuamos a partir de alguns ín-
A Encenação nos Performance Studies: Algumas Questões dices que nos ajudam a imaginar sua forma e seu funcionamento.
Procedemos um pouco como o encenador tal como o descreve Peter
Para evitar que se fale a propósito de tudo como «teatro': arriscando- Brook'": como ele, no início da nossa reflexão (que, na verdade, por
-nos assim a etiquetar uma concepção grega ou ocidental nas cultural vezes dura apenas alguns segundos) Vislumbramos uma pre-shape,
performances (manifestações culturais espetaculares) que nada lhe UI~a .p~efi~uração, que nos ajuda a construir um objeto a partir de
devem, os performance studies imaginaram recolocar os espetáculos frágeis índices, Pouco a pouco, tanto ele como nós encaminhamo-nos
!l~m conjunto (mais que uma teoria) senão no raro sentido de desfile pal:a ~lna fo:ma, uma shape, que será o resultado de sua pesquisa
de pessoas e coisas), num desfile de manifestações espetaculares. artística, aSSIm como da nossa pesquisa crítica.
Porém, tal desfile permanente demanda, mesmo assim, que o A partir do momento em que consideramos a encenação como
estruturemos um pouco, quanto mais não seja para destacá-lo, Evi- uma das inumeráveis cultural performances, o olhar que lançamos
dentemente, evitaremos propor uma tipologia dos espetáculos; a tal sobre ela muda. torna-se complexo. hesitando, essencialmente. entre
ponto faltam critérios distintivos. A cartografia não para de evoluir dois pontos de vista distintos: a objetivação antropológica e a cons-
e as linhas de fratura, de se recomporem. Assinalemos simplesmente trução estética. A questão é saber o que estamos querendo dizer,
algumas dificuldades. para quem, para quais fins e sob qual ponto de vista.
A oposição entre espetáculo e ação performativa (rítual.cerímõ- ·ii ' A noção de performance revela-se útil porque é uma categoria
nia, jogo) choca-se com a dificuldade de separar a estética e a antropo- ']; vazia. aberta. Aceita a oposição estética/não-estética, porém seja
'_i
logia. Caso sejapermitido. ou simplesmente pertinente, descrever oú.:'·~ . . qual for o caso isso implica que uma ação é complementada pela

;:s::'~:~of~~~~~oo:s~~~:~~~s~:~~: ~:s~:r::' t:~ae:~~~ri:l'. '~E'


performance em questão. Segundo a definição de Richard Schech-
ner, "não importa qual é a ação enquadrada, oferecida, sublinhada
ou exposta numa performance"!': Para os espetáculos trata-se, mais
~~~~: ~c~:'°s~~~~Z~~ed:~=I~::~~n~~r::li~~O~:; ~~~::~~~~6~hh]t~·;, especificamente, de um showing doing, de mostrar aquilo' que um
tropológica dos corpos vivos, como introduzir a dimensão estéiiç;at:;.:'~ i{:i indivíduo ou um grupo faz para provocar a atenção de no mínimo
Até mesmo no teatro, a passagem do corpo real do ator para o corpo '" um espectador. O querer mostrar indica que a ação não tem um
ficcional,.imaginário, estético do personagem, permaIl:ece I11isteriO$~:: objetivo apenas utilitário Ç'performar" uma cerimônia. um ritual).
ou irreconhecível. Quais fantasmas permitem essa passagem? ,..',~ ,:i:.:" mas que é ficcional e estética. estando à procura do belo.
Para descrever e interpretar (sendo impossível fazer,.seugl~,.ç:l<,l~ .Neste livro justapomos vários ohjetos pouco compatíveis, aos
Ta distinção entre os dois) ll.ma representação. um.aperformanc~~,>·::,'- quais correspondem a diferentes tipos de performance:
espetáculo-temos a necessidade de uma metacategorta como.a.di '1

encenação? Isto porque. estejamos ou não conscientes,~ssang~~ • a leitura cênica, tomada como uma não-encenação;
reintroduz aquela de um sujeito, de um olhar dominante, d~:~W. • a performance, invenção dos anos de 1960;
organização funcional do sentido. Esse sujeito quepercebeedt • o "pôr em jogo" de textos criados para o palco;
crimina é uma construção. visto que não se trata absolutamente.d]

9 T. Postlewait, Míse-en-scêne, em D. Kennedy (dir.), 'Ihe Oxford Bncycíopedia 10 Directing, em The Continuum Companion to Twentíeth Century Theatre, p. 209.
11 Perjormance Studtes, p. 2.
ofTheatre and Performonce, p. 863.
A ENCENAÇÁO CONTEMPORÂNEA
DE ONDE VEM A ENCENAÇAO? ~RIGEM E TEORIA
9

a d e um o li'.;
• a performance "et nog ráfica" . Co~scientes ?~ incapacidade de ~ma noção de encenação para
• a criacão de espetáculos contemporâneos na Coreia; caractenzar as praticas espetaculares atuaís, negociamos o seu reata-
• o esp~táculo que faz apelo a diversas mídias, mento, o~ an:~s,.a s.uaconfrontação com seu duplo, sua irmã gêmea
• a representação desconstruída; elou sua irrna mirmga: a performance, Esta figura camarada acolhe
• a dramaturgia do atar. todos os casos de figuração, pois "não importa o que possa ter sido
estudado como performance'">, Ela é a outra encenação, o seu du-
A diversidade desses objetos obriga a redefinir, a cada instante, plo, aquela que~não se deixa traduzir por si mesma, o que permanece
esses exemplos, estando-se consciente que correspondem a perfor- incompatível. E preciso, também. que se confie em que a profecia de
mances muito diferentes, tão diferentes que parecerá artificial rea- Schechner não se realizará nunca, pois "a maldição da Torre de Ba-
grupá-las e analisá-las sob um aspecto único de encenação. Como não bel está a po~to de se tornar a velha história"13., Exatamente porque
conseguimos mais pensar todos esses objetos em conjunto como va- uma produçao cultural não é traduzível, ou redutível a uma outra
riantes do mesmo tipo de espetáculo, convém renunciar a um método é que de:remos procurar os meios específicos para analisá-la, sem
de análise global e adaptar (sem, no entanto, suprimir) os métodos de necessanarnente ceder ao relativismo ou ao particularismo, sem re-
análise, os olhares lançados nesses diferentes exemplos. nunciar a um mínimo de ctentificídade.
A dificuldade é míxar não somente os espetáculos, mas os mé-
todos de análise, os olhares e, sobretudo, as epistemologias desses
métodos. Um triplo movimento deve ser levado em conta: a trans- L AS ORIGENS DA ENCENAÇÃO:
ferência para o espectador de competências para 1. a análise, espe- MARCOS HISTÓRICOS
cialmente fenomenológica; 2. a faculdade de descrever as formas e
as redes de signos graças à semiologia; 3. a desconstrução, de ins- 1.1 Émile Zola
piração derrldíana- para apreender a estratégia de uma encenação,
o percurso em "destinerrâncià' de quem olha. '\
Esforçar-nos-emos para mixar os métodos de análise: para ana- :1 ' A "invenção" da encenação não se fez, evidentemente, do dia
lisar, por exemplo, urna cerimônia, pode-se fazê-lo como há cem :j', para a noite. Foi precedida por uma longa e severa crítica ao

mídias na cerimônia ou no observador da atualidade. Isto confirma _ ~_


~
anos, ou mesmo há trinta anos, sem levar em conta o impacto das . . .• .}..i•.
··_.,.·,!;...
.•_:·.:
•..•.i.:..
estado reinante no teatro da época. Através de suas crónicas
posteriormente reunidas em Le Naturalisme au Théâtre (O Na-
a necessidade de reler todos esses objetos e métodos de análise, de . 'j" turalismo no Teatro) '., Zola fez eco a uma profunda insatis-
examinar aquilo que ainda nos permite confrontá-los na perspectiva:M;' fação face à ausência de autores novos e à mediocridade das
da encenação. Com efeito, a encenação significa a última tentativa '/tV condições de representação de então. É um dos primeiros re-
para se pensar tais práticas heteróclitas em conjunto, para globalizar ::~t!-i,;­
formadores do teatro. Paradoxalmente, a crise dos autores a
a perspectiva, sistematizá-la; mui:o embora e~sa ~re~ensão ao si~te~)";I~:
sua incapacidade de mostrar o mundo na sua realidade brutal,
ma esteja justamente desconstruída, o que nao sígnífica destrulda~,':J-W:i:_
Não nOS constituiremos em advogados de uma nova ciênciàj",'Slt clamava e esboçava, como num vácuo e a esmo, a futura ence-
a dos mise-en-scene studies (estudos de encenação); proporem()_s::~{f~ nação naturalista. A crítica começou sendo feita tanto aos co-
simplesmente a reintrodução do sujeito construtor, e desconstn~:::::~\~ '~.~t'~'J ~;diantes, escravos de convenções ridículas, no que se referia
tor semiotizando e desserniotízando, centrando e descentrando.f ;!.~ a essas entradas e saídas solenes e grotescas, esses personagens
De~locar-nos-emossobre isso do ponto de vista da arte, da ficçãoÚ~~; i~ que falam com o rosto sempre virado em direção ao público">.
da vanguarda, em resumo, da estética, visto que é preciso chamá-la'j 11't
por seu nome. A encenação é, desse modo, o teatro "recolocado ~,?N ~
seu lugar': ou seja, contestado nas suas pretensões hegemônícas, ma~·!.~ i 12 Idem, p. l.
13 Idem, p. 5.
iguahnente conectado a um lugar muito preciso, a uma localizaçã?:l} 5 14 Em Oetlvre~ complêtes. (Trad. bras.: Romance Experimental e o Naturalismo
no Teatro, São Paulo: Perspectiva, 1982.)
que não é universal e que não cessa de evoluir, de se mover. "j: ",-
15 Idem, p. 357.
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;,E\t
10 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA DE ONDE VEM A ENCENAÇÃO? ORIGEM E TEORIA II

Os atores "representam para a sala", "como sobre um pedestal Em sua "Causerie sur la mise en scene" (Conversas sobre a
[... ]. Se eles vivessem as peças ao invés de representá-las, as encenação)", Antoine faz uma das primeiras exposições siste-
coisas mudariam i'"!". Porém «os intérpretes não vivem a peça; máticas da encenação tal como a denomina por conta própria.
eles a declamam'; "eles procuram conquistar um sucesso pes- Encontramos nessa obra, que nada tem de falação improvisada,
soal, sem se preocupar o mínimo possível com o conjunto"!". o conjunto das questões que se colocam para qualquer encena-
Não somente os atores não eram dirigidos em função do con- ção recente, questões que não perderam absolutamente a sua
junto - como o desejaria a encenação -, como também não atualidade, tanto assim que se pode erguer uma lista sistemá-
estavam mais integrados a um "cenário exato [que] se impõe tica. Limitemo-nos, apesar disso, a extrair-lhe alguns pontos
como o ambiente necessário da obra"!". A encenação deverá, novos na ocasião, porém sempre atuais para nós. O olhar his-
portanto, reconstituir esse meio que determina a ação humana, tórico deve ajudar-nos a seguir a evolução das formas ao longo
com o risco de fazer da cenografia o "vertedouro" do texto, o do século e, especialmente, para a mistura atual de princípios
lugar onde todos os detalhes do meio devem ser tornados vi- estéticos e de estilos.
síveis. Tal era, no entanto, a função dos cenários naturalistas:
.;'Eles assumiram no teatro a importância que a descrição as- Antoine distingue o papel do díretor de teatro daquele do en-
sumiu nos nossos romances"!". Graças à utilização do gás em cenador. Na antiga função de regisseur à gages' encarregado pelos
1820, depois da eletricidade por volta de 1880, a luz estava em diretores para "desembrulhar uma peça, fazer o trabalho prelimi-
condições de esculpir todo um universo cênico que parecesse nar que julgam, sem dúvida, de pouco interesse'?', ele vê uma ta-
autónomo e coerente. Tudo foi colocado espacialmente para refa decisiva, porém ainda mal avaliada, qual seja a de dar à obra
exigir do teatro que renascesse de acordo com as novas dire- a primeira e determinante interpretação, "avisão de conjunto?".
trizes da encenação. Porém, é muito difícil "encontrar homens de teatro artistas e que
se obriguem a esse trabalho apaixonante, mas obscuro">. Nos iní-
cios desta nova ciência, o encenador tinha, portanto, uma tarefa
1.2 André Antoine ingrata e obscura, pois sentia-se ainda a serviço de autores in-
quietos e atores célebres. Antoine deu algumas regras para a di-
Fazendo eco a Zola, Antoine, considerado na França como o reção de atores, depois descreveu as etapas do trabalho. Divisou
primeiro encenador, diagnosticou as mesmas "causas da crise claramente o trabalho em duas partes distintas: "uma totalmente
atual" (1890): Os autores eram medíocres e repetitivos, eram material, ou seja, a constituição do cenário que serve de ambiente
representados em salas desconfortáveis nas quais os lugares ti- para a ação, O desenho e o agrupamento de personagens; a outra
nham preços muito altos, eram traídos pelas vedetes cabotinas imaterial, ou seja, a interpretação e o movimento do diálogo">.
cercadas por comediantes mal ensaiados, em meio a elencos sem Como bom naturalista, Antoine começou por levantar o ambiente
coesão. Tendo podido observar, desde 1874, a precisâo histórica cênico, antes de nele incluir os atores e a segunda fase, interpreta-
das representações naturalistas e autênticas do grupo alemão dos tiva, do processo. No entanto, esta interpretação não concerne à
Meininger, do duque de Meiningen, Antoine preocupou-se com leitura da fábula, visa apenas a representação concreta dos atores.
o sentido do detalhe exato, mas igualmente com a unidade da
representação e da integração do ator ao cenário. 20 Em La Revue de Paris, mar.-abr. de 1903 (ed. bras.: Conversas sobre a Encena-
ção, trad., introd. e notas por Walter Lima Torres)
... Tradução literal: díretor de aluguel (função autônoma) (N. da T.).
16 Idem, p. 358. 21 A. Antoine, op. cit., p. 602.
17 Idem, p. 366. 22 Idem, p. 603.
18 Idem, p. 339. 23 Idem, p. 602.
19 Idem, ibidem. 24 Idem, p. 603.
12 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA DE ONDE VEM A ENCENAÇÃO? ORIGEM E TEORIA 13

Estes são convidados a não se exprimirem unicamente pelo sem- da encenação; ataque muito mais frontal e virulento, desfe-
blante e pela voz, mas a utilizar todo o seu corpo, a viver o seu pa- rido por toda uma corrente simbolista, remontando a Wagner
pel, sem criar ou falar diretamente à plateia, a dar a "cada cena de e a Mallarmé e que melhor se exprime nos estilos de Paul Fort
uma peça o seu movimento próprio, subordinado ao movimento (1872-1960) e Aurélien Lugné-Poe (1869-1940).
geral da obra''". Para ele, o ambiente determina a identidade e os
movimentos do ator, e não o contrário. A materialidade da re-
presentação é, portanto, submetida à interpretação da obra pelo 1.3 A Corrente Simbolista
encenador. Com o naturalismo, a encenação inventou um disposi-
tivo que devolveu seu sentido ao teatro e que determinou a repre- A corrente simbolista desconfia do palco concebido como acu-
sentação. Com efeito, é a partir de um ambiente, de um conjunto mulação de materiais e signos. Trocá-lo-ia com prazer por um
de detalhes e signos, de uma gargantilha de ferro exterior, que o espaço vazio, uma sensação pictórica ou um livro concebido por
sentido das ações humanas se constitui, que germina a ideia da Mallarmé: "Um livro em nossa mão, se ele enuncia alguma ideia
encenação: trata-se de produzir o sentido a partir da invenção de augusta, supre todos os teatros, não pelo esquecimento que deles
.um dispositivo. Assim enquadrada por um ambiente subjugante, possibilita, mas, ao contrário, lembrando-os imperiosamente""
a encenação naturalista inventou-se imediatamente como país e Qualquer presença física no palco é incómoda: "O teatro acon-
refutou a encenação simbolista. Esta, por sua vez, introduziu a tece, nada lhe acrescentemos': A presença, nunca totalmente
ideia no próprio cerne da representação; ideia que concentra em controlável, do ator impede a aparição do símbolo, da ideia e
si mesma toda a representação, inserindo como decorrência a des- da harmonia do conjunto. Fato que conduzirá um autor COmo
materialização de um só golpe. Maeterlinck ou um encenador como Craig a querer substituir
Muito mais que a estética mimética e seus famosos quartos os atores por marionetes. De acordo com Maeterlinck, "a repre-
de boi sangrantes colocados no palco, o que importa, na revo- sentação de uma obra-prima com a ajuda de elementos aciden-
lução de Antoine, é a inteligência imaterial de todas as opera- tais e humanos é antinómica. Toda obra-prima é um símbolo,
ções da interpretação, é a intuição da encenação como produção e o simbolo jamais suporta a presença ativa do homem [... ]. A
de sentido. No entanto, obviamente, é como inventor de um ausência do homem parece-me indispensável"".
ambiente fechado - fechado pela quarta parede - que Antoine Chega-se, nessa estética, à angústia da disseminação, ao pa-
entrou para a lenda. Jean Vilar viu nele aquele que rompeu com radoxo de uma encenação que recusa qualquer materialidade e
a tradição ancestral do teatro francês: que procura uma única ideia organizadora, aquilo que Lugné-
-Poe resumiu sem o menor humor desta forma: "Nosso desejo
Antoine, por seu lado, também fechou a caixa: E é o teatro na- é, e continuará sendo, dar a conhecer as obras [... ] nas quais so-
turalista. Para falar a verdade, é o ator voltando as costas ao público. mente a ideia dominará e nos permitiremos somente uma im-
É o quarto de carne sangrante. É a realidade crua [... ]. Esta pers- portância medíocre, ao lado material denominado teatro!""
pectiva de Antoine, escrupuloso até o absurdo, nega sete séculos e
Para compreender bem as posições decididas do simbolis-
meio do teatro de feira francês",
mo e do naturalismo, vamos justapor o bate-papo de Antoine e
o manifesto do teatro de Pierre Quillard, "De l'inutilité absolue
Será preciso esperar Copeau e seu tablado nu, menos de
de la mise en scene exacte" (Da Inutilidade Absoluta da Ence-
dez anos mais tarde, para reatar essa tradição francesa; por ora,
o contra-ataque imediato vinha do simbolismo, a segunda fonte 27 S. Mallarmé, Crayonné au théêtre, Dívagatton, p. 235.
28 La leune Belgique, 1890.
25 Idem, p. 610. 29 Apud J.-P. Sarrazac, Reconstruire 1e rée1 ou suggérer le réel, em Iacqueline de
26 De Ia tradition théâtrale, p- 17. Iomaron (dír.), Le Théâtre en Prance, p. 725.
14 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA DE ONDE VEM A ENCENAÇÃO? ORIGEM E TEORIA 15

nacão Precisa). Quillard rejeita nela qualquer realidade bruta Tal fundação do teatro moderno tem um registro de nasci-
sobre as tábuas, pois «o naturalismo, -ou seja, a representação menta muito preciso, em 1887, pelo Théâtre-Libre de Antoine; e
do caso particular, do documento mínimo e acidental, é o pró- em 1891, pelo Théâtre d'Art de Paul Fort. É também o momento
prio oposto do teatral"?". Ele concebe a obra dramática como em que a encenação não mais significa simplesmente a passagem
uma síntese na qual os personagens "são seres da humanidade do texto para o palco, mas a organização autônoma da obra tea-
geral" criados pela palavra, a qual também cria e substitui "a tral, a visão "sintética" do teatro e da encenação, à qual Guido
cenografia assim como o restante". Neste caso, falaremos, ain- Hiss consagrou, recentemente, um belo estudo". Esta autonomia
da, de encenação se "o poeta, com desprezo por qualquer meio assumirá formas variadas no decorrer da história. Sobre isso po-
estranho, requer somente a palavra e a voz humana"?" Eis aí demos fazer aqui apenas um pequeno resumo histórico, a fim de
a posição extrema da encenação idealista, trazendo de volta a propor uma possível periodização sob o ponto de vista da con-
ideia intangível do autor. Trata-se tanto da negação da encena- cepção mutável da arte da encenação. Longe da exaustão, o im-
ção, de sua "inutilidade absoluta", quanto de sua redução a um portante é reconhecer as rupturas epistemológicas, os momentos
esquema, a uma ideia, a uma síntese que se propõe a reunir, em que a encenação muda radicalmente. Bem entendido: vários
tal como a 'Gesamtkunstwerk wagneriana, todas as artes na sua modelos podem coexistir, na realidade podem misturar-se.
grande perfeição. Mas, à diferença da obra de arte total wagne-
riana, a encenação simbolista nega sua própria materialidade
e acaba por concentrar-se no vazio e no silêncio, evocando o 2. ETAPAS DA EVOLUÇÃO DA ENCENAÇÃO
mundo de maneira alusiva, concentrada e poética. Neste senti-
do, prolonga-se numa estética atemporal, que encontramos na Por simplificação pedagógica, esboçaremos em largos traços o
atualidade tanto em Robert Wilson como em Claude Régy. retrato de um século de teatro concebido sob os auspícios da
Este retrospecto histórico revela pelo menos a dupla ori- encenação. Não se incluem escolas com programas claramente
gem da encenação e sua natureza contraditória. De um lado, a definidos e limitados no tempo, porém tendências, podería-
representação naturalista procura imitar o mundo dos objetos mos quase dizer tentações, que acompanham toda a história
e do meio social, mas consegue-o apenas ao introduzir outras do teatro. Observar-se-á para cada uma dessas fases a teoria e
convenções de representação, outros tipos de codificação, de a filosofia que melhor lhe correspondem. Seria o caso, de resto,
mecanismos semiológicos mais dissimulados, que organizam, à de comparar essa evolução da encenação, vista da e na Fran-
revelia do espectador, O real em redes de signos. Por outro lado, ça' com a de outros países europeus da mesma época; estudar
a representação simbolista, fazendo em vão alusões distantes à os desenvolvimentos paralelos em outros países; esboçar uma
realidade, não teria como isolar-se completamente do mundo: história das influências recíprocas. Essa polaridade mantém-se
os corpos vivos e incontroláveis, os efeitos do real reencontram amplamente na história da encenação até os anos de 1960.
sempre o caminho do palco, por mais isolado que ele seja. Esta
dialética da abertura e do fechamento ao mundo é constitutiva
de qualquer encenação. A obra de Tchékhov, a qual Meierhold 2.1 De 1887 a 1914
mostrou o quanto ela está em frágil equilíbrio entre a imitação
naturalista e a convenção teatral, encarna perfeitamente essa A origem dupla - naturalista e simbolista - da encenação re-
dupla origem e esse fundamento da prática moderna. corta apenas parcialmente a polaridade do teatro popular (An-
30 De I'tnutllíté absolue de la míse en scêne exacte, Revne d'art dramatique, lU de
toine, Gémier, Dullin) e do teatro de arte (Port, Lugné-Poe).
maio de 1891, p. 15.
31 Idem,p.17. 32 Synthetische Visionen. Theater ais Gesamtkunstwerk von 1800 bis 2000.
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA DE ONDE VEM A ENCENAÇÃO? ORIGEM E TEORIA 17
16

Tal polaridade mantém-se ao longo de toda a história da en- 2.3 Anos de 1910 a 1930
cenação até os anos de 1960.
Seja qual for o estilo, o encenador aparece para desafiar o As vanguardas russas, particularmente com Stanislávski, Vakh-
autor, auxiliando o espectador a compreender melhor a .peça tângove Chekhov (Michael), interessavam-se mais pela forma-
apresentada, propondo-lhe sua própria interpretação da peça. ção sistemática do atar, pela sua técnica interior, do que pela
encenação na sua dimensão plástica. No entanto, outros artistas,
como Meierhold ou Taírov, no espírito de vanguarda alemão da
mesma época) fizeram inúmeras experiências espaciais e cons-
2.2 Anos de 1900 a 1930
trutivistas, enaltecendo a "reteatralização" do teatro.
A reação antinaturalista e a pesquisa do espaço: Adolphe Appia
e Edward Gordon Craig. Persuadidos da autonomia estética
do palco, estes dois artistas e teóricos buscam os dois elemen- 2.4 Anos de 1920 a 1940
tos essenciais da representação: o ator iluminado no espaço.
O espaço é portador de sentido, pois, como observa Appía, "a A era clássica da encenação, pelo menos na França, é a de Co-
encenação é a arte de projetar no espaço aquilo que o drama- peau e do Cartel (Pitoêff, Dullin, Iouvet, Baty), no apogeu de
turgo po" ed '
projetar apenas no 'T'
.lempo"33. uma reflexão sobre a leitura dos textos e também os começos
Para Craíg, um dos primeiros a utilizar em inglês o termo da era "cenocrátíca" na qual o encenador controla os signos o
stage director", "a arte do teatro" não pode ser senão aquilo que mais rigorosamente possível. A definição da encenação torna-se
entendemos, a partir do começo do século xx, por encenação: quase tautológica: "a atividade que consiste no arranjo, den-
O uso dos elementos fundamentais da representação, o movi- tro de determinado tempo e determinado espaço de atuação,
mento) a cenografia) a voz. dos diferentes elementos da interpretação cênica de uma obra
dramática'?". Copeau fornece a definição clássica: "o desenho de
Entendo por movimento o gesto e a dança que são a prosa e a uma ação dramática. É o conjunto dos movimentos, gestos e
poesia da ação, Entendo por cenografia tudo aquilo que se vê, tanto os atitudes, o acordo das fisionomias, vozes e silêncios, é a tota-
figurinos, as iluminações, quanto as cenografias propriamente ditas. lidade do espetáculo cênico que emana de um pensamento
Entendo por voz as palavras ditas ou cantadas em oposição às palavras único) que o concebe) o regula e o harmoniza":".
escritas; pois as palavras escritas para serem lidas e aquelas escritas
para serem faladas são de duas ordens inteiramente distintas".
2.5 Anos de 1930 a 1940
Craig está na origem de outra concepção da encenação:
não mais a passagem do texto para o palco (como em Antoine),
mas sim a autonomia de uma prática cênica que se emancipa
o tempo das rupturas chega com Artaud e Brecht. O autor de
O Teatro e seu Duplo reivindica uma cena autónoma que não
da literatura e do autor, a ponto de querer eliminar aquele em
se interesse pela passagem do texto para a representação, visto
proveito do ator e do encenador'", A frequente confusão entre
que esta é um acontecimento único e que «toda a criação vem
a encenação como passagem do texto para o palco e como arte
do palco': Esta ideia simples prolongar-se-á nos anos de 1960
autónoma prolonga-se até os dias atuais.
na arte da performance. Artaud tem uma atitude ambivalente
33 Acteur; espace, lumlêre, peinture, Theãtre popuiaire, n. 5, 1954, p. 8.
34 De acordo com D. Bradby e D. Williams, Drrecros-s Theatre, p. 3.
37 Notes SUT le métier dacteur. p. 4-7.
35 De l'art du théâtre, p. 225.
36 Ver M. Vínaver, Lile, Théâtre en Europe, n. 18, set. de 1988, citado infra, cap. 13. 38 Idem. p. 29 e s.
18 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA DE ONDE VEM A ENCENAÇÃO? ORIGEM E TEORIA 19

em face da encenação: não procura absolutamente renovar a (a leitura crítica do texto); ela somente adquire o seu sentido
técnica, mas sim criar uma metafísica do teatro, pois "o teatro, enquanto arma histórica e política. Brecht encenou, sem dú-
arte independente e autônoma, tem que ganhar consciência vida, outros autores no início de sua carreira) depois suas pró-
para ressuscitar, ou simplesmente para viver, tem que ressaltar prias peças, porém nem nos seus escritos teóricos nem na sua
aquilo que o diferencia do texto, do mero discurso, da literatura prática deteve-se na estética da encenação. Fala, antes de tudo,
e de todos os outros meios de expressão fixos ou escritos'?", Ar- do Spielleiter (diretor de representação) ou do Theaterarbeit
taud rejeita a noção de espetáculo e de "tudo o que essa deno- (trabalho teatral). É preciso, contenta-se em dizer, que a ence-
minação contém de pejorativo) acessório, efêmero e exterior'?", nação narre a história "engenhosamente". O encenador precisa,
Ele sabe que a encenação se constitui, na maior parte do tempo, sobretudo, aprender a reconhecer as contradições do mundo
na transferência de um texto para uma representação, daí a sua em que vive, a escolher um ponto de vista crítico e, finalmente,
atitude ambivalente em relação a ela. Por um lado, a encenação a transformar o mundo. Encenar é, portanto, reconhecer a dra-
é "numa peça de teatro a parte verdadeiramente teatral do es- maturgia da obra e encontrar-lhe os meios cênicos, ao mesmo
petáculo'; mas, por outro, "se o termo encenação ganhou, com tempo ilustrando-a e acessoriamente descobrindo-a com um
. ~ uso, um sentido depreciativo, isso se deve a nossa concepção novo olhar. Para isso, é preciso saber extrair a fábula da peça
europeia de teatro que dá preferência à linguagem articulada e, assim, contar claramente uma história. Há o perígo de que a
em detrimento de todos os outros meios de representação?". encenação encubra o texto, se torne uma ortodoxia marxista e
Com Artaud, estamos no ponto em que a concepção de ence- brechtiana. E foi isto o que aconteceu com os epígonos ou com
nação muda radicalmente. Ela não é mais a realização cênica os leitores demasiado fiéis do Modelbuch, o livro de referência
de um texto: torna-se uma prática autônoma: "É preciso con- das encenações de Brecht para uso dos futuros artistas, parti-
siderá-la não como reflexo de um texto escrito e de toda essa cularmente na Alemanha Oriental. A partir do momento em
projeção de duplos físicos que emanam do escrito, mas sim que se limita a repetir uma solução ao pé da letra ou obedecen-
como a projeção ardente de tudo o que pode ser extraído das do ao sentido comandado pela política oficial do momento, a
consequências objetivas de um gesto, uma palavra, um som, encenação congela-se e morre, mesmo a de Brecht.
uma música e de suas combinações entre Si"42. Descartando a Num dos seus raros textos consagrados à encenação, mais
encenação de tipo ocidental, Artaud abre novos caminhos para exatamente ao trabalho do "diretor de representação'; Brecht
o teatro, mas abstém-se de mostrar, concreta e pessoalmente, o faz, em algumas frases, uma crítica radical aos principais es-
caminho. Entretanto, uma nova era se abre para a prática do tilos de seu tempo". Segundo ele, o naturalismo prende seus
palco: ela não está mais centrada no texto a ser representado, personagens em posições arbitrárias, e, portanto, não têm pere
nem no mundo autónomo que se abre no palco: ela nos obriga tinência. O expressionismo não leva em conta a história, dei-
a uma análise do mundo e, se possível, a proceder a sua trans- xando os personagens exprimir-se ao invés de analisá-la. O
formação crítica. simbolismo, ao se interessar apenas pelos símbolos por trás da
O mesmo ocorre com Brecht, porém por razões muito di- realidade, perde-a de vista. O formalismo é suspeito de agrupar
versas. Para ele, a encenação não tem valor em si: é apenas o os elementos em função de imagens que não conseguem fazer
terreno de confronto entre a prática cênica e o material textual avançar a história. Brecht, nem sempre evitando tais defeitos,
não obstante mudou radicalmente a função da encenação e
39 Le Théâtre et scn double, p. 160. (Trad. bras.: O Teatro e Seu Duplo, Rio de Ia- nossa maneira de entender a sua prática.
neíro: Max Limonad, 1987.)
40 Idem, p. 160.
41 Idem, p. 66.
42 Idem, p. 111. 43 Questions sur le travai! du metteur en scêne, Écrits sur le théâtre, p. 783 e s.
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA DE ONDE VEM A ENCENAÇÃO? ORIGEM E TEORIA 21
20

2.6 Anos de 1945 a 1965 2.8 O "Tudo Cultural" dos Anos de 1980

A democratização e a descentralização teatral foram feitas sob A experiência do "socialismo à francesa', que vai da chegada
o patrocínio de Jean Vilar para o teatro popular, e de Jean- de Mitterrand ao poder à queda do Muro de Berlim, colocou
-Louis Barrault para uma vanguarda "oficial". Para Vilar, "os o teatro de pesquisa, e até mesmo o teatro comum, em inferio-
verdadeiros criadores dramáticos destes últimos trinta anos ridade. Este nada mais significava do que uma prática entre as
não foram os autores) mas os encenadores'r'", o que não o im- inúmeras práticas artísticas e culturais. A ideia de encenação
pedia de enaltecer o despojamento e a austeridade da repre- parecia dissolver-se tanto mais facilmente na medida em que
sentação. Para Barrault, a cena deve renovar-se com o teatro concorria com a da performance e tudo quanto esse termo in-
de arte e com uma cenografia concebida por vezes como um glês veicula de pragmatismo e de infinitas variações culturais.
belo cenário. Paradoxalmente, no entanto, assistiu-se ao triunfo insti-
tucional e artístico do encenador, especialmente no teatro de
imagens ao estilo de Robert Wilson. Um desvio Se aprofundava
.2.7 A Rupbira de 1968 e a Reação Política dos Anos de 1970 entre a sofisticação da prática e o desinteresse pela teoria, ex-
ceto raras exceções como as de Vitez ou Mesguich. Ao mesmo
A morte anunciada do autor coincide com o fim do progres- tempo, na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, o interesse
so económico e da teoria (Barthes, Foucault, Lacan). Apesar pela teoria pós-moderna ou pós-estruturalista na universida-
do debruçamento narcisista da encenação sobre si mesma, os de, pela desconstrução derridiana, raramente foi acompanhada
artistas americanos da performance, música, dança ou do ha- por consequências no meio teatral (salvo com Richard Fore-
ppening (Wilson, Cunningham, Beck, Foreman, Cage, Glass) man ou o Wooster Group).
conseguiram desencravá-la para melhor abri-la à performan-
ce. Foi igualmente a grande época da criação coletiva com o
Théâtre du Soleil em torno de Ariane Mnouchkine e muitas 2.9 O Retorno do Texto e da Nova Dramaturgia,
outras experiências parecidas no mundo inteiro. Essa rejeição ao Longo dos Anos de 1990
ao encenador caminhou, no entanto, paralelamente à sua rein-
trodução subsequente. Explica-se particularmente pelo custo desmesurado dos espe-
A encenação é, portanto, concebida seja corno prática sig- táculos, a crise dos auxílios públicos e o incentivo à escrita.
nificante, obra aberta, seja corno "escritura cênica" (Planchon) Tudo isso conduziu à reconsideração do poder total dos erice-
provida de um metatexto. Supunha-se que o "discurso da ence- nadores e à pesquisa de meios mais simples e minimalistas de
nação" fornecia a chave das escolhas da encenação. Evitavam-se, encenar textos que não exigissem mais um dilúvio de imagens
nesse caso, os termos muito "burgueses" de obra, autor; teatro e efeitos.
de arte, encenação: falava-se de produção, escritor ou prática sig- A aproximação entre encenação e performance foi vantajosa
nificante. Aos termos da estética clássica preferiam-se aqueles para as duas partes: A performance theory e os performance stu-
de evento, criação coletiva ou psicodrama. dies estenderam seu domínio ao infinito, mas por vezes perderam
uma certa pertinência metodológica para a análise. Ao retornar
aos objetos estéticos e à encenação teatral, encontraram um maior
rigor e ferramentas, já consideradas como arcaicas tal como a tea-
tralidade, cujo uso nos devolve a Meierhold, Evrêinov ou Copeau.
44 De la sradition théâtrale, p. 71. Contudo, a visão continental e limitada do teatro, pouco receptiva
22 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

aOS espetáculos do mundo para além da França, tinha neces-


sidade da performance para "arejar-se" um pouco, quando muito
não fosse para testar os textos desse modo "abertos", inventando-
-lhes uma colocação no espaço que tem como efeito "destrínchar"
um escrito muito compacto e pouco legível no papel. É possível abstermo-nos da encenação?
Portanto, o problema não é mais saber quem - seja o au-
Quando o palco está vazio, a noite profunda, o desempenho
tor ou o encenador - possui ou controla o texto, nem como,
minimalista, a voz neutralizada, o ator ausente, ainda existe
de que maneira, a prática textual afeta o palco, mas antes de encenação?
tudo saber como a representação e a experimentação cêníca
ajudam o ator, e em seguida o espectador, a compreender o Diz-se, às vezes, meio rapidamente, que a melhor encenação é
texto à sua maneira. aqueia que não se faz notar. Como se diz também que a meihor
Parodiando o ensaio de Pierre Quillard, poderíamos inti- música de filme é aquela que não percebemos.
tular este ensaio: "Da Utilidade Relativa da Encenação Con- Deve-se acreditar nesses adágios banais?
temporânea, Exata ou Inexata"
O discreto charme de uma boa direção?
. Útil ou não, em todo caso essa noção generalizou-se, até o
ponto de aplicar-se aos domínios da vida social:". Não perdeu É verdade que um gênero, o da leitura em voz alta, em voz branca,
ela de um só golpe toda a sua pertinência? Se sua função evo- aproxima-se desse ideal de "não-encenação;' como se diz,
luiu consideravelmente do século XIX ao XXI, ela nos servirá, da "não-violência; dessa forte atração budista peio vazio.
no entanto, como fio de Ariadne para acompanhar a história do Ocorre o fato de uma leitura da peça, feita pejos atares com o
teatro. As diferentes etapas que aqui acabam de ser enumeradas texto nas mãos, ser mais surpreendente, mais apaixonante, mais
são tanto marcos quanto tradições, não meras curiosidades his- inesquecível do que uma encenação muito segura de si.
tóricas, mas sim descobertas que continuam a agir na prática
Porém, não será o caso de se considerar, mais uma vez,
contemporânea, "pois uma inovação bem sucedida torna-se
a encenação como o visível, o exterior, o supérfluo? Como
inevitavelmente uma convenção'?". A dificuldade não é tanto
alguma coisa evitável, da qual o melhor que faríamos seria nos
reconhecer esses rastros do passado quanto compreender por
abstermos? Um pouco de discrição, que diabo, nós gostamos de
que e de que forma eles se misturam às novas invenções, das perceber!
quais participam, assim, enquanto renovação da prática tea-
traI. Ao invés de historiar esses empréstimos e suas filiações, Nas fronteiras do palco, e sem renegar seu estatuto de
apresentaremos simplesmente alguns aspectos da prática tea- representação, a encenação faz-se discreta, faz-se morta, e, não
tral depois dos anos de 199047 • obstante, para chegar a isso ela desaparece?
A encenação, hoje em dia, tenta muitas vezes (re)tornar à
simplicidade da leitura, pública ou íntima, lábios invisíveis ou
dirigidos para o interior. '
45 Para além dos performance studies americanos ou britânicos, o termo encena-
ção, utilizado de maneira em parte metafórica, é encontrado em duas obras
Qual a fronteira existente entre a representação e a realidade? A
recentes: J. Früchtl e J. Zimmerrnann (eds.), Ãsthetik der Inszenierung, e Mises í3 ncenação?
en scêne du monde. Colloque internattonal de Rennes, Besançon: Les Solttatres
intempestifs, 2005.
46 E. Braun, The Director and the Stage: Prom Naturalism to Grotowski, p. 202.
47 Ver D. Bradby, com a colaboração de A. Poincheval, Le 'Ihéãtre en Prance de
1968 a 2000.
2. Nas Fronteiras da Encenação*

Tendo experimentado quase todas as possibilidades da cena, às


vezes o teatro gostaria de retornar a formas mais próximas da
leitura do que a representação. Reencontrar a simplicidade da leitu-
ra parece-lhe ser a tarefa mais urgente. No entanto, isso é possí-
vel? Qualquer leitura feita em cima do palco não se configura,
desde logo, como representação no ato da leitura, como uma
encenação, por mais minimalista que seja?
Examinaremos três experiências-limite nas quais a encena-
ção tenta negar-se a si mesma, seja ela uma leitura cênica, uma.
não-encenação ou uma encenação improvisada.

1. A LEITURA CÊNICA

Ê feita com a brochura na mão, com um ou mais leitores, corres-


pondendo ou não aos personagens da peça. Porém, cada vez mais
aborda peças poéticas ou românticas, lidas por um só comediante.
Pode tratar-se de uma leitura cênica propriamente dita,
de maneira tal adivulgar ao público um texto não publicado e

~ Texto publicado anteriormente em Líttérature, n. 138. p. 73-80.


26 A ENCENAÇÁO CONTEMPORÂNEA NAS FRONTEIRAS DA ENCENAÇÃO 27

ainda não criado, ou de divulgar um texto não "previsto" para o se limite a evocar o mundo pela palavra ao invés de inscrever-
palco. Faz pouco tempo que os atores são convidados frequen- -se nele e participar. Ao ler o texto, no palco, projeta-o espa-
temente a ler poetas; o recital poético tornou-se um gênero que, cialmente, cria em si mesmo e na cabeça do espectador um
depois de ter sido considerado durante muito tempo como um universo ficcional que parece brotar diretamente das palavras
meio pouco propício para divulgar a poesia, invadiu palcos e e misturar-se àquilo que é mostrado no palco. Tanto o leitor
lugares não teatrais. quanto o espectador, sem querer, "desprendem-se"; põem-se a
Exercício esclarecedor para o ator consiste em distinguir, atuar e a imaginar uma ação, quer seja ela real ou puramente
pela atuação, várias espécies de leitura e encontrar a que melhor imaginária. É claro que existem todos os tipos de leituras pos-
convém ao texto a ser lido. A leitura individual e muda é uma síveis, desde a mais intimista à mais representada. A leitura não
invenção recente. Até o fim da Idade Média, lia-se em voz alta; se faz necessariamente encolher com relação à atuação: a atua-
a leitura muda apareceu com a imprensa: "Quando a Galáxia ção pode ser muito discreta, ao passo que a leitura é, por vezes,
de Gutenberg invadiu o mundo, a voz humana calou-se. As "histriônica" (Jacques Bonnaffé), como se o leitor, sobretudo o
pessoas começaram a ler como se fossem consumídores'". A amador, procurasse compensar através da entonação a ausên-
leitura para si mesmo, em subvocalização (mexendo-se os lá- cia aparente de movimento e interpretação dramática. Caso
"bios e pronunciando algumas palavras), constitui uma segunda se trate de poesia - escrita para ser lida mentalmente mais do
etapa da leitura em voz média para um personagem nas costas que declamada cenicamente e, por isso mesmo, completa em
do ator, lendo-se depois em voz mais alta para todo um grupo e, si mesma -, qualquer "exagero" vocal e gestual parecerá redun-
finalmente, para toda a plateia. Trata-se de determinar o ponto dante e excessivo. Ao contrário, um texto dramático quando
em que a leitura se torna verdadeiramente pública, projetada lido parece-se a um texto incompleto à espera de intérprete,
para um auditório exterior ao universo ficcional. sendo que neste caso sua interpretação "histriônica" passará
Uma vez a leitura realizada com a intenção de haver um melhor do que a poesia.
público, o leitor transforma-se muito rapidamente em ator as- A maior parte de leitores no palco de um teatro ou em ou-
sim que lhe for possível discernir, ou simplesmente imaginar, tro tipo de sala relaciona-se, hoje, com a leitura de poesia, lida
suas reações à palavra e ao seu papel na ficção em vias de ga- muitas vezes por atores célebres e atraindo um público cada
nhar corpo. Antoine Vitez, com Catherine (1975), é um dos vez mais numeroso. Por que essa espetacularização da leitura?
primeiros que fez coincidir a leitura em voz alta de um romance O que tem ela a ver com o teatro?
(Les Cloches de Bâle [Os Sinos de Basileia], de Aragon) com a Questão delicada!
interpretação de personagens do texto. O limite entre a leitura Curiosamente, existem poucos estudos sobre esse gênero"
e a atuação, entre o intérprete e o personagem, é impossível de de leitura pública de textos poéticos ou dramáticos, como se
ser traçado, o que faz de qualquer leitura cênica uma visualiza- se tratasse, no caso, de uma comunicação pré-estética e prope-
ção de interlocutores e, desse modo, já uma encenação. dêutica que não merecesse a mínima atenção. Ora, os atores e
Contudo, mesmo que a voz disponha "naturalmente" o tex- os poetas por eles lidos têm muito a nos ensinar nesta tomada
to no palco, pois lhe dá necessariamente uma certa situação de de contato com a obra em vias de reconhecimento público. E
enunciação, o leitor poderá reduzir ao máximo os efeitos vi- não é exatamente aqui que o sentido emerge? Que a voz poé-
suais, esconder as escolhas dramatúrgicas, atenuar o subtexto, tica percorre o caminho teatral?
sugerir apenas "os esboços de encenação" (Denis Podalydês). A aposta na leitura pública de poemas não visa apenas di-
É preciso, portanto, que a voz se ofusque vigorosamente, que vulgar poetas confessionais: visa também divulgar a sua voz,
às vezes no sentido literal do termo, quando são convidados a
M. Mcl.uhan, The Gutenberg Geíaxy, p. 250. dizer os seus poemas, mas muitas vezes, igualmente, no sentido
NAS FRONTEIRAS DA ENCENAÇÃO 29
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
28
ítas maneiras de dizê-los e compreen- mundo da escrita'; "escutar a escrita'". Para assim proceder,
reve1ar mu , ,
figurad o, ao, ãc de repres entação (um público que assiste a
convém neutralizar a parte espetacular da representação e en-
dê-los, A sltuaç lher determinada maneira de falar, contrar o silêncio e a ímobilidade necessários à concentração
bri o ator a esco
leitura) o ng a rído possível' o autor constata en- tanto do ator quanto do comediante. Régy poderia subscrever a
'do por um sen l ' .
a tomar parti seu texto pertence a outro, que o seguinte observação de Copeau: "O ator faz gestos demais, ex-
- el primeira vez, que ,,' ,,~ t cessivamente involuntáríos, sob o pretexto do natural. E sempre
tao, p a -lh para existir. A ,performance, o ra o
mesmo deve escap~r _ e texto no sentido performático da muitos jogos fisionômicos [.. ,] Deve-se adquirir em si mesmo
al o a enunClaçao d o , - c o silêncio e a calma'",
de re lZar. ma certa versão e compreensao, raz
linguística, de mterpretartu to) um texto dramático à espera de O teatro terá, portanto, de acordo com Régy, de ser en-
' ( d qualquer ex '
da poesia ou e tece com o público: é intimado a es- tendido no texto, o que não significa que esteja a ponto de
- O mesmo acon id retroceder à literatura dramática, mas sim que a encenação
encenaçao, üo que ou lhe é muito conheci o
c ma diferente aqu , id
cutar d e ror ." A tir dos formalistas russos, e sabi o deve fazer-se tão discreta quanto possível a fim de que o es-
. «'naudlto, par . '
ou mUlto 1 ético parece sempre estranho, mes- pectador entre no texto: "Sob a condição de que não se enterre
. 1 te que o texto po . a encenação) a escritura constitui um elemento dramático em
amp amen, feit de um objeto colocado a sua frente
duzmdo o erei o -
. perad o, pro , 1 debaixo de todas as costuras, Nao si, quer dizer, transmite sensações e cria imagens. Quando se
. e observave
como extenor de interpretá-lo, de reduzi-lo a um ouve um texto, o espírito gera fluxos de imagens. A encenação
is nesse caso,
se trata mal, ' d ' -lo como objeto relativo, um pou- deve conservar-se minimalista para não formatar a visão dos
, 'fi d mas sim e ve espectadores e impedir o livre desenvolvimento do seu ima-
sigru ca o, K tor no palco nas costas dos atores,
dvacOm an '
co como se a _ ma paisagem ou objeto esperando ginário, a partir daquilo que ouvem e veem'", Praticamente, o
naçao como u
vend o a ence do "o poema transforma-se no espectador tende a tornar-se um ouvinte, quase como no rádio,
d 1 do Desse mo ,
para ser mo e aoo. o ator e o público e que é mostrado atendo-se à voz dos atores. A penumbra do palco, a lentidão da
objeto que se coloca entre "2
elocução, longe de adormecer, são pressupostos para agudizar
sob várias facetas ao mesmo tempo . seus sentidos e sua atenção,
Nas encenações de Duras, Fosse ou Maeterlínck, Claude
Régy aplica este sistema ao ralentar o ritmo da dicção e dos mo-
2. A NÃO-ENCENAÇÃO vimentos (como as encenações simbolistas da época), deixando
, ' do obi eto rios conduz àquela da encenação, à o palco na penumbra, obrigando o espectador à concentração, .
Essa relatiVldade t ) melhor limitar a representação a um a uma experiência diversa de tempo. Ele obtém êxito no pro-
ideia de que talvez osse preender o texto. Alguns criadores grama do autor que serviu à perfeição: Marguerite Duras e seu
" para fazer-se com "" . "Teatro de Voz com Paradas e Retomadas'". Portanto, esta não-
mrmmo ,. r princípio "não encenar : que ISSO
como Clayde Régy tedm P:a espécie de trabalho de parto; dei- -encenação muito seguramente é ainda única: cada variação de
. t s de mais na a u d - luz ou tempo, cada movimento sutil de um dedo ou cada infle-
seja an e b s paredes para que se possa ar vazao
tecer
xar acontecer. derru ar a d
de longe no inconsciente o autor, xão vocal assumem proporções consideráveis. Trata-se, assim,
1·lvremente àqu:Uo que vem que enquanto tal, sempre sem de uma mudança de escala.
. . nte dos atores e , "3
no mconSCle " O inconsciente dos espectadores ,A
barreiras, possa atm!?'r modo "permanecer suspenso no 4 C. Régy, 'Ihéátres, n. 5, p. 47.
tarefa do encenador e, d esse , 5 J. Copeau, Registres, p. 59.
I de la Iecture Littérature, n. 138, p- 68. 6 C. Régy, op. cit., p. 23.
2 D. podalydes, Le spectac. e Cl de Ré~Y: garder le secret du livre, I.:Art du 7 M. Duras, LAre. o. 98, 1985, p. 65. Citado em J. Danan, Le Théâtre de la pensée,
3 CitadO em M.~C. pasquter, au p.300.
thédtre, n. 6, p- 62.
30 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA NAS FRONTEIRAS DA ENCENAÇÃO
31

Numa encenação minimalista desse tipo, tal corno a de Proust, ~ atar fala de modo absolutamente não "natura]" e pa-
Phillip Zarrilli", a partir da peça de Ota Shogo, Water Station rece rnurto .mais preocupado com a precisão do ritmo do que
(Reservatório de Água), vemos as figuras aproximando-se de com o sentido de suas palavras. Daí essa impressão de leitura
uma torneira que escorre com grande barulho durante toda a apesar da declamação "de cor". Enquanto narrador-contador,
representação: elas bebem ou utilizam a água à sua maneira. A representa ser o personagem de Proust, porém enquanto leitor
menor mudança de ritmo, voluntária ou involuntária, torna-se aparece como essa criança que descobre o mundo e que nos
um verdadeiro efeito de encenação e o espectador, concentrado fala dele, uma criança ou um simplório com o qual o ouvinte
e paciente, constrói uma possível história, sem que seja preciso se identifica.
o suporte de uma história. Mesmo neste caso, a "não-encenação" (de acordo com cri-
Quando esse gênero de ação cênica minimalista é acompa- térios quantitativos e tangíveis) não o é enquanto tal; antes de
nhado, como nas realizações de Régy, por um texto que é pro- tudo, é o contrário: na verdade repousa inteiramente, e quase
nunciado como uma trilha sonora desfilando lentamente, a palavra num sentido estrito, nos ombros do ator. Longe de figurar o
assume, evidentemente, relevo inesperado. As palavras pronun- mundo de Proust, de fazer representação de sua obra roma-
~ ciadas são como que sublinhadas individualmente, e o ouvinte nesca, Sergei Maggiani escolhe dizer o texto com uma atitude
não escapa de ser conduzido, o que é uma das missões clássi- corporal que sugere a ligeireza do leitor face ao imenso corpus
cas da encenação. Ele pode então ter a impressão de que tudo proustíano. O estranho título - Eu Então Empurrei o Tempo com
decorre do texto, porém isso é verdade somente em parte: é os Ombros - deve ser tomado ao pé da letra. O atar, por sua ati-
justamente o ator, ele próprio dirigido pelo encenador, quem t~~e, sua voz, seu fraseado (phrasé), situa-se numa nova relação
decide esses sublinhamentos de texto - e isso é de escolha da físíca com o texto romanesco. Não Se trata de encarnar frontal-
encenação. mente Proust ou seus personagens, mas, sim, de encontrar um
A não-encenação frequentemente é a estratégia escolhida corpo) ~)ma postura e uma voz para "empurrar o tempo com os
para textos não dramáticos, destinados normalmente à leitu- ombros - nesse caso, enunciando as palavras de Proust com
ra e que não aguardam o suporte ou o complemento de uma ~a -;oz emitida no espaço como se sob o efeito de um empurrão
encenação. Ela quase se impõe, de tal maneira esses textos se mVls~;el. Esse e'?,purrão de ombros contra o tempo, esse esforço
revestem de riqueza inesgotável e têm necessidade de maior 1 para ex-pressar a frase proustiana, são tornados sensíveis fisi-
concentração, em todos os sentidos do termo. camente pela dureza emprestada ao corpo. O dispositivo cênico
É o caso de [e poussais donc le temps avec Tépaule (Eu En- (uma caixa_branca tendo no fundo Uma tela de cor cambiante),

II
tão Empurrei o Tempo com os Ombros), montagem de textos a enunciaçao do atar e sua inscrição no espaço) assim como a-'
de Proust "ditos" por Sergei Maggiani sob a direção de Charles duração, fazem sentir tanto o empurrão e a contração física
Tordjman". Não se trata, no caso, de falar propriamente de lei- quanto a complexidade atormentada, porém fluida, da frase. A
tura cênica, visto que o ator pronuncia essas frases sem as ler, contração dos ombros, do pescoço e dos dedos significa fisica-
usando o tom de um narrador que fala como se lesse com difi-
r mente a angústia da criança ("Mamãe sem dúvida irá chegar").
culdade, tal como uma criança que lê um texto maravilhando-
I
I" , O trabalho de Maggiani consiste em preparar a escuta da frase
-se com aquilo que descobre. Às vezes é difícil saber, seja aqui proustiana, em comunicar corporalmente o esforço físico da
ou acolá, se o ator vive seu texto e fala ou, ao contrário, se o recordação por meio da dureza e do olhar oblíquo.
lê e declama. Mesmo que esteja interpretando um papel, o de Este exemplo ilustra tanto as encenações minimalistas de tex-

9
Encenação de Phillip Zarrilli, Singapura, verão de 2004. Esta performance de
Water Station está disponível em DVD.
Festival de Avígnon, curso do Liceu Saint-Joseph, 2001. I
I
tos não dramáticos quanto o papel do corpo enunciador, seja na
leitura, seja na palavra cênica. O corpo empurra o texto, no-lo dá
a entender num certo sentido. Resta mostrar esse sentido através
32 A ENCENAÇAO CONTEMPORÂNEA NAS FRONTEIRAS DA ENCENAÇÃO 33

da interpretação ou pela voz. Encenar um texto é menos situar o


crítica dramática pratica os dóis tipos de análise, porém aqui nos in-
texto no corpo do que situar o corpo no texto. O atar procura me- teressa aquela que nos esclarece sobre a encenação, considerada como
nos caracterizar um personagem do que deslizar no texto a fim de sistema mais ou menos coerente. Em poucas palavras, este tipo de
nele sentir fisicamente o desenrolar e a trajetória; ele o incumbe crítica na verdade tem condições de descrever as opções da encena-
de experimentar a resistência do material textual com o empurrão ção, de revelar-lhe o sistema, o Konzept, como dizem os alelnães; a
do corpo. O atar opõe-se frontalmente ao espectador que nele dramaturgía, como dizem os brechtianos; o acting(atuação) ou o sta-
busca um representante e um actante do mundo ficcional; em- ging style (estilo de encenação), como dizem os ingleses. O problema
purra seu corpo lateralmente na temporalidade verbal da frase. todo é saber se todas essas noções globais ainda são pertinentes com
Desse modo, a lateralidade substitui a frontalidade: ela procura relação aos espetáculos dos últimos dez anos. A crítica dramática da
imprensa quotidiana dever-se-ia agregar tanto as estreias dos hebdo-
antes seguir o movimento da frase do que figurar um universo
madários, dos magazines do rádio e da televisão, quanto os fóruns de
perdido. O corpo, sozinho, reencontra a lembrança e experimenta espectadores na Internet.
as palavras colocando-as à prova sob o olhar do outro.
Crise da Encenação, Crise da Crítica
A Encenação e a Crítica Dramática Até os anos de 1980, os críticos estavam conscientes do fato de que sua
arte se subdivide entre uma informação para o grande público e um
A Encenação no Centro da Crítica estudo para os profissionais, quer se tratasse de pessoas do meio tea-
Do ponto de vista da teoria teatral, a questão poderia ser colocada tral ou dos próprios artistas. Com Thíbaudet (1922), o modelo ainda
nestes termos: Ernque a crítica dramática). a das mídias escritas e era ternário: "a crítica de pessoas honestas, a crítica de profissionais
audiovisuais, nos é útil para melhor apreciar (em todos os sentidos e a crítica de artistas"!". Mais comumente, o modelo é binário: dessa
do termo) a eilcenação?Ao invés de levar em conta preferencial- forma, Bernard Dort (1967) opõe uma "crítica de consumo" a "outra
mente a crítica dramática jornalística, melhor seria que a teoria crítica [... ] ao mesmo tempo critica tanto do fato teatral quanto do
sutil erguesse os olhos para ela. Além do mais, a crítica dramática fato estético e das condições sociais e políticas da atividade teatral': O
das mídias, quase instantânea, não estará mais próxima do evento crítico está, portanto: "por fora e por dentro"!'. Mais tarde, o mesmo
teatral, também ele instantâneo, do que a teoriaintemporal, pesada, Dort (1982) tentará uma delicada dialética entre dois tipos de critica:
estática, falsificadora por natureza das impressões viscerais e emo~::~1 I; a "crítica tradicional, para o essencial jornalístico" de um «espectador
danais, que o espectador recebe ao vivo? ::í : médio ideal': e a palavra "científica, ou universitária" da "Theaterwis-
Hipótese teórica: a encenação corresponde à ferramenta mais útíl -~:I !I·. senschaft ou da teatrología"; Essa síntese, essa "terceira pessoa". "ao
para se avaliar um espetáculo, não apenas no sentido de analisá-lo, mas ";1 , mesmo tempo fora e dentro': esse "espectador interessado [... ] deve
também para julgá-lo em termos estéticos. A noção de encenação, ;);j ter conhecimento teatral, devendo esse conhecimento ser histórico.
contudo, 'está longe de ser universal, e o. terrno, .conhecido interna-: ;,':.f.~. t ou serníológíco'; um conhecimento que ele "não aplica ao espetáculo"
cionalmente, adquire sentido ~~p~5íficoemca~a contexto cultural:' ,.. r': porém "submete à prova da representação teatral'"", Georges Banu
Na França, a encenação designo~iI1icialmente,a passagem do texto {~. (1983) retomará esse dualismo: O crítico tem dentro de si, segundo
dramático para o palco. Depois, vei~'f~pidamentesignificar a obra cê~:;;~:~~. t,•~ ... ele, tanto o "amador esclarecido" quanto o "dramaturgo no sentido
nica, o espetáculo, ,a representaçã~,e'm oposição exatamente ao textCt)";)~ ~., alemão do termo': o qual "dispõe de urna teoria, de uma certeza [... ]

r~~~~r·~!~~~Iei:.~.nC~~:uPçr~!ó.;j::~~::;.i~~iiA:~;~~~iE~~~fll~.C.s.:.~·;.·I'.,!:.~>.·i
que se esforça em realizar com obstinação"13. A continuidade dessa

I,. 10 A. Thibaudet, Physiologie de la critique, Conférences au Víeux-Colombier de


encenação. Portanto, fazemos uma grande diferença entre a análise,i1~ '. 1922, Physiologie de la critique, p. 23-24.
'"'.8!-' 11 B. Dort, Théâtre réet, p. 47.

:~s~J~~;~,~~~.~~::~~~~o;i~~~~d~e:~.;;:se:.~~~:aen:~~':'!'~dn".·~.l' 12 Le Monde, 1982. Texto reproduzido no livro de Chantal Meyer-Plantureux,


Un siécle de critique drama tique, p. 142.
cenação, à qual propõe uma teoria do seu funcionamento global. 1,;1 \ 13 ThéátrelPublic, n. 50, 1983. Texto reproduzido no livro de Chantal Meyer-
-Plantureux, Un siécle de critique dramatique, p. 146.
A F.NCENA(~ÀO CON'rE,,,!PORÂNEA. NAS FRONTEIRAS DA ENCENAÇÃO 35

tradição francesa deve existir provavelmente em muitos outros países, interrompidas. A mistura de gêneros (cómico, trágico, grotesco, ab-
sob outras formulações. No entanto, ela não é absolutamente univer- surdo etc.), a rnultíplícídade de regístros confundiu-se ao longo dos
sal; e o crítico alemão Henning Rlschbieter, editor por muito tempo caminhos. É dever da crítica emitir uma hipótese sobre o funciona-
da Theater heute, propõe uma divisão completamente distinta das ta- mento da encenação, seu sistema ou seu fio condutor a fim de ajudar
refas da crítica. Esta responde, segundo ele, a três realidades: 1. é um o espectador perplexo, porém tal hipótese arrrsca-se igualmente a
ramo do jornalismo e da informação; 2. tem um impacto económico: extraviá-lo ou a perdê-lo caso ela se revele forçada ou banal.
3. é uma produção literária, visto que exige talento artístico na escri- Não resta dúvida: uma mudança de paradigrna na prática da
tura. A ausência, nessa concepção, de reflexão sobre a dramaturgia ou encenação rompeu os quadros de análise inoperantes, pelo menos
sobre a encenação haverá de espantar um francês: este se perguntará temporariamente'". A concepção estrutural, funcionalista, semioló-
se tal ausência testemunha algum tipo de cinismo, ecletismo ou se gica da encenação, que concebia a representação como texto espe-
seria lTILütO mais uma grande abertura de espírito. tacular e sistema semiótico, está fora de moda. Tal mudança não é
absolutamente nova, rnesrno que a crítica francesa ainda não a tenha
Crítica e Teoria registrado. O teatro parece descobrir que o essencial não reside no
Há outro tipo de ruído pelo qual não telTIOS muita certeza se devemos resultado, na representação acabada, e sim no processo, no efeito
ou não nos felicitar: a velha distinção entre crítica jornalística e pes- produzido. A encenação tornou-se perforrnance no sentido inglês
~ quisa teórica universitária tende a romper-se. A imprensa escrita nem da palavra: participa de uma açâo, está num vir a ser permanente.
sempre desempenha seu papel de réplica imediata ao evento cênico, É preciso de algum modo considerar o espetáculo no meio des-
batida que foi pela rapidez das outras midías ligadas à Internet, tais sas duas extremidades: suas origens e seus prolongamentos, com-
COlTIO os fóruns ou os blogs. Muitos críticos publicam suas análises uma preender de onde vem a ação performativa e para onde vai.
semana, urn mês, até urn ano depois da representação. Frequentemente
são os universitários, que acompanham e mantêm tal grupo ou tal ten- o Objeto da Critica
dência, passando a impressão de serem quase comparsas dós artistas. Estamos ainda diante de um objeto estético estável, apreensível, des-
Todavia, podemos compreendê-los tendo em vista que a universidade, critível? Tem ainda o objeto da análise, a encenação, alguma coisa de
seja europeia ou americana, abstém-se de propor modelos teóricos, tangível, ou se tornou, tal como as obras plásticas descritas por Yves
configurando-se como conservatório de know-how e ready-rnade do Michaud, uma "arte em estado gasoso" no qual as obras se desman-
pós-estruturalismo e do pós-dramático. Sua imagem de clentificídade, cham no ar, reduzidas apenas à experiência estética do espectador? O
imparcialidade, rigor, até mesmo de honestidade intelectual, tem so- fato é que essa experiência estética é a única coisa que sobra quando se
frido muito. A boa nova, portanto, é que os críticos do dia a dia ou do negligencia o objeto cêníco em proveito do seu modo de recepção. O
período semanal, bem como os teóricos do transcurso anual, estão no que vale para as obras de arte plástica vale também para as encenações,
mesmo barco, não podendo mais atiçarem-se uns contra os outros. objetos ainda mais frágeis e que desaparecem no correr do tempo: tais
Pela primeira vez, a encenação contemporânea propõe uma ques- obras "não pretendem mais representar nem significar. Não remetem a
tão de confiança à crítica: corno ajudar os futuros ou potenciais es- um além de si mesmas: não simbolizam mais. Nem mesmo têm mais
pectadores a decifrar, ou simplesmente a aceitar os espetáculos? Esta poder como objetos sagrados, porém visam produzir diretamente ex-
questão dirige-se tanto aos críticos especialistas quanto ao comum periências intensas e partículares"". Nessa situação paradoxal, estamos
dos mortais! O brutal bom senso dos críticos de antanho não basta
mais. Eles não podem responder à pergunta: «O que é que isso quer i~""I
dizer?" senão por meio de uma pirueta: "O que é que você acha?" Não í ' 14 Não nos encontramos mais na alternativa do crítico dividido entre o desejo de falar
da encenação (como sistema) e de mencionar a performance dos atores. É o que
estão mais em condições de prover um modo de se compreender a diz também Jean-Pierre Léonardíní: «Estou absolutamente persuadido de que não
encenação. A perplexidade passageira, que, de acordo com Banu, ga- falar dos atores no meu próprio trabalho é um nó cego. Acho que, na situação em
rantiria a «regeneração da crítica': tornou-se regra geral. que nos encontramos, o conceito de encenação deve ser defendido tanto quanto
aquele, nos meus artigos, da colocação em perspectiva crítica. Entretanto, falando
A partir disso, não há nada que nos espante pelo fato de a aná- daquela e não do ator, eu amputo o meu trabalho de uma construção secundária"
lise dramatúrgíca e a pesquisa por escolhas de encenação terem sido (La critique en questíon, Théàtre/Pubíic, n. 18, 1977, p- 19).
15 Yves Míchaud, I.:Art à lêtat gazeux: Essai SI/r le tríomphe de Testhétique, p. 100.
36 A EN(~ENAÇA() CONTEMPORÃNEA NAS FRONTEIRAS DA ENCENAÇÃO 37

à frente ou, rnais propriamente, no interior da obra cénica: ela é mate- Assumir e explicitar os julgamentos de valor que tanto a críti-
rial, sensível e física. Todavia. ao mesmo tempo o que conta, algo que ca quanto a teoria não podem. evitar; admitir o empreendimento
não se refere mais à sua materialidade, é a experiência na qual estamos de legitimação que todo discurso supõe, mesmo se negativo, sobre
lnergulhados. Dessa forma, a obra desmateríalíza-se, torna-se virtual, UlTI artista, HlTI movimento, Ulll modo de trabalhar; continuar, no
ünpede-nos de distinguir-lhe as propriedades e significados. O crítico entanto, consciente da relatividade desse julgamento ao fornecer ao
dos anos de 1980 estava seguro pelo menos de possuir um corpo. o leitor a possibilidade de contestá-lo ou desconstruí-lo.
qual ele partilhava com sua geração". Na atualídade, tem-se um pouco Tomar e fazer com que se tome consciência da identidade cultu-
a sensação de perda desse corpo empírico, na medida elTI que o obje- ral de qualquer pessoa que emita um julgamento, dando-lhe inteíra-
to espetacular se desmaterializa e que o espectador. ao encontrar um mente o direito de falar daquilo que não lhe diga respeito, de outra
corpo imaginário) recua na experiência estética. Dito de outro modo: cultura, outro meio) outra identidade, outra religião. Deslocalizar
o crítico perde seu corpo em proveito do corpo do espectador (e é di- os críticos. Fazê-los analisar espetáculos ainda estranhos a eles. Não
fícil dizer quem ganha com essa troca). se embaraçar pela legitimidade, autenticidade, fundamentalismo,
Tal recuo dificilmente se deixa interromper. Entretanto, a crítica mesmo que cultural.
que se mantém preocupada com a descrição da representação em Reafirmar a importância da encenação e do encenador como
seu conjunto volta incessantemente ao sistema encenado. O recente mediador entre a obra e o público. Como se disse nos anos de 1980,
" estudo sobre cinquenta encenadores por Mitter e Shevstova conclui quando Vitez entrava em Chaillot, "defenderemos a função, a pró-
por um distanciamento da palavra em proveito do domínio do cor- pria existência da encenação, hoje novamente contestada no seu
po em movimento l 7 • Essa ação corporal em movimento deve se tor- princípio. Não nos deixaremos enredar na relação inegável do atar
nar, assim, o objeto da crítica na encenação. Ao invés de comparar com o texto e com o públíco?". A lição de Vitez não foi esquecida:
o texto e sua concretização cêníca (como o fez por muito tempo a ela vale tanto para a crítica quanto para a encenação.
crítica), convém agora revelar essa lógica do corpo em movimento, A crítica é também uma espécie em vias de extinção e, não obs-
assim como o espaçotempo no qual ele se inscreve. Se a crítica, e na tante. tanto quanto o encenador) é indispensável para a mediação
sequência o espectador, preocupam-se com o conjunto do espetá- entre palco e plateia. Crítica e encenador são velhos cúmplices in-
culo e não com detalhes isolados, ser-nos-ão poupados os efeitos confessos que hoje são obrigados a entender-se caso não queiram
de zapping: eu não gosto mais, vou passar para outra coisa. Resta, desaparecer. Portanto. a encenação em sua nova extensão permane-
assim, a extrema dificuldade em ler e decifrar o espetáculo na sua ce, sob todos os aspectos, o terreno e a aposta da produção teatral e
lógica interna e na sua referência com nosso mundo. Dificuldade, da crítica dramática.
porém, não significa impossibilidade.

Novas Tarefas da Crítica Dramática Frente 3. A ENCENAÇÃO IMPROVISADA


à Renovação da Arte Cénica

Além da ampliação de perspectiva que a crítica dramática pratica -


Se a não-encenação revela-se, em verdade, uma obra muito
aliás, desde sempre -, seria preciso ousar atribuir a essa crítica no- sofisticada e estreitamente controlada tanto pelo encenador
vas tarefas, precisamente nos domínios que a political correctness quanto pelo atar, deve-se apostar firmemente que a encenação
(o politicamente correto) evita cuidadosamente. Quais tarefas po- improvisada não o estará senão a meio caminho... Ao mesmo
deriam ser essas? tempo, é preciso levar muito a sério a vontade de um homem
de teatro como Christian Ríst de propor um "recital" (termo
provisório) das Iluminações'", de Rímbaud, que não deve ser
16 Georges Banu, citado em C. Meyer-Plantureux, op. cít., p. 150: "O corpo do
crítico não é apenas o seu, mas é também aquele desta ou daquela geração a 18 A. Vitez, L'Art du théâtre, L'Art du théâtre, n. 1, 1985, p. 9.
que pertence': 19 Rimboud/Ilíumínaüons (Pragments scéniques improvisés), peça encenada em 20
17 S. Mitter e M. Shevstova, Fifty Key Theatre Dírectors, p. XVIII. de janeiro de 2005, no Teatro Firrnin Gémier, em Antony.
38 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA NAS FRONTEIRAS DA ENCENAÇÃO 39

visto, antecipadaluente, como a declamação dos poemas por ser tecida entre os actantes. Uma palavra ou um tema do poema
três atores de teatro. E, de fato, coisa alguma fica estabelecida contribuem, às vezes, para detonar a impulsão, para motivar o
de uma noite para outra: nem a escolha dos textos) nem a sua movimento, para favorecer o eco, porém os encontros são aci-
ordem de passagem, nem a identidade de seu intérprete ou o ma de tudo fortuitos: apenas relançam ritmicamente as inte-
sentido que essa interpretação pretende conferir-lhes. O siste- rações. A assunção dos textos faz-se como a leitura, segundo
ma de iluminação é estabelecido de modo aleatório, a duração Rimbaud: literalmente e em todos os sentidos. Desobrigada
da representação varia em função dos intérpretes. São dados da linearidade, ela dá a entender e a ver uma nesga de poemas
"fixos" apenas: a literalidade dos poemas e o dispositivo cêní- nos quais o entrechoque ou os encontros fortuitos de sonori-
co construído especialmente para o espetáculo: um anfiteatro dades ou temas acertam na mosca.
de madeira clara ao redor de um espaço central recoberto por No que diz respeito à pesquisa, a encenação conta com mais
uma superfície que reflete a luz. O público fica muito próximo de uma centena de anos de acúmulo de materiais e experiências.
dos intérpretes, os quais circulam tanto nas galerias superiores Porém, a saturação é sensível desde sempre, os simbolistas já se
quanto no espaço cênico retangular, onde as obras rirnbaudia- queixavam disso em 1890. O novo que acontece na França nos
nas foram· negligentemente dispostas, na improvável hipótese anos de 1960, a performance, encontra-se em outra tradição
de que os atores poderiam precisar delas. cultural, a anglófona, moeda corrente constitutiva da perfor-
matividade. Ora, assistimos talvez à passagem em escala entre
a teatralidade riquissimamente encenada e a perjormatividade,
que nada mais faz do que prolongar o drama. Teatralidade e
dramaticidade são indissociáveis na dramaturgia ocidental e são
também aquilo que permite a comparação e o confronto entre
as formas europeias e as performances culturais e/ou espetacu-
lares do mundo inteiro. Estes três casos-limite de encenação -
leitura, encenação denegadora e improvisação relativa - apenas
confirmam o diagnóstico: a velha teatralidade grega, muito em-
bora condenada desde seu aparecimento, procura desesperada-
mente limitar-se a um mínimo para sobreviver, mas o faz para
aliar suas forças com a velha retórica e com a dramaticídade,
ambas igualmente de origem grega. É certo que a teatralidade
e a performance não andam uma sem a outra, apenas a dosa-
Rimbaud. Les Illumtnatíons, encenação de Christian Rist. © C. Rist.
gem varia. Dever-se-ia inventar uma performise".
A tradição francesa, e mais geralmente a "continental';
A improvisação na dicção dos textos não se limita, eviden- concebe o teatro como uma representação ligada ao espetáculo,
temente, à entonação ou a imprevistas cabriolas. Consiste em à teatralidade, termo utilizado pelos formalistas russos (por con-
decidir, em cada momento, onde tomar a palavra, com quais traste a "literalidade") e pelos encenadores do começo do século
poemas e, sobretudo, segundo qual impulsão. A diferença do xx (Meierhold, por exemplo). A tradição anglófona, ao contrá-
texto lido, o texto decorado está disponível no corpo, mobilizável rio, conhece apenas o termo performance, que utiliza ao mesmo
a qualquer momento. Isto é feito sob a condição de apreender o tempo para a representação cênica teatral, propriamente dita, e
instante propício, de estar na escuta dos outros dois parceiros.
de se deixar inspirar pela relação espacial e física que vem • Neologismo do autor: performance + mise en scêne (N. da T.).
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA
40
típo de cultural performance, não somente do es-
a qualquer I - . . al .
par da atividade que realiza uma açao (rito, ntu ,cen-
Petáculo, . mas tc.) A chegada a, França, nos anos d e 1960 ,da ar t e o que existe de mais francês que o termo mise-en-ecéne?
- n ia Jogos e " -
mo , ce marca igualmente a aparição de uma concepçao
an
daperform. do teatro". Doravante, eI e esta,.meluíd . t O que existe de mais' inglês que o termo performance?
UI o no conjun o
performatlva Impossível é traduzir um pelo outro, converter um ao outro.
das cu ltu,~al per'ormances. .
J'
. Janvier .
constata-o muito a d equa d ament·"O
e. poe- E tanto meihor, pois essa incompatibilidade franco-inglesa
Lu d OVIe I . . "21 é antes de mais nada bem vinda/welcome. Vamos tirar
rosa [... ] convergem para o voca , o rítmico .
ma o teatro, a P - ) partido dela.
, _ . (poderíamos quase dizer essa conversao re-
T I convergen Cla , ,
a . . cartas porém não as reinventa: a leitura e POSSI- A incompafibilidade de temperamento permite imaginar
distnbUl as , d
se o leitor for igualmente um pouco especta or de que modo cada língua vê o mundo, e por tabela o "teatro';
vel soment e -
_ e imagina, Correlativamente, a encenaçao, mesmo à sua maneira. O francês imagina a passagem do texto
das açoes qu _ .
• ura modestamente se fazer esquecer, nao se torna para o palco, da palavra à ação. O inglês insiste na produção
q uan d o proc "dd
:b tária da ação performativa. A teatrah a e, na sua de uma ação durante o próprio ato de sua enunciação:
menos tn .... u mais recente, a da encenaçao, - nao - se constrit UI'
ll1ca é o célebre "performativo" da filosofia analítica anglo-americana
forma cano " . .. c . I"
. ' rnulo de signos, numa polifonía m,ormaClOna (Austin-8earle) .
mais num acu sim numa açao _ " performad" b di
a so re rversos
(Barthes ) , mas I Ora, eis então que nesse mundo multipolar as fronteiras
. eles de que fala Janvier e os de nossos exemp os: o
obJetos, aqu . d desmoronam. O isolamento textual francês não se configura
lid o palco o texto entendido pelo especta or, o poema
te:x:tol On ) _ .. mais como de colocação; a produção inglesa de ações cênicas
. 'fi d pela impulsao Improvisada do ator. performativas precisa de um discurso que a legitime.
reViVI ca o

A curta história da encenação é testemunha dessa luta secreta


de influência entre duas visões de mundo, duas maneiras
de se fazer teatro e de falar dele.
A partir dos anos de 1960, o mundo começou
a movimentar-se cada vez mais rápido. A performance
atingiu a Europa continental. Tornou-se uma nova maneira
de fazer teatro, ou melhor, de negar a re-presentação, a ilusão,
a pretensão pedagógica do teatro. De um só golpe, a técnica
da encenação "clássica" e continental, pacientemente
aperfeiçoada de Antoine a Copeau, de Meierhold a Vitez, tomou
consciência de sua incongruência no mundo anglo-americano,
performante e performativo, na arte de fazer teatro, ou antes,
de to make a performance (fazer uma períormance).
Talvez alguns exemplos internacionais nos digam o que
- ganhamos com essa performise, ou mlse-en-pert,

20 Ver infra, cap. 3. 66


. Le spectacle de la Iecture, Líttérature, n. 138. jun. 2005, p. .
21 L. JanVl er,
3. Encenação, Performance:
Qual é a Diferença?

1. ENCENAÇÃO E PERFORMANCE: UMA DUPLA


INSTÁVEL

jogando um pouco com as palavras, examinaremos uma ques-


tão muito séria: o modo pelo qual as duas palavras - encena-
ção ou performance - nos ajudam, mas também nos obrigam,
a pensar tanto na interpretação de uma representação quanto
na concepção do teatro. Com efeito, cada uma das duas línguas
vê as coisas muito diferentemente e se encontra mais ou menos
apta a descrever o fenômeno teatral, que não cessa de evoluir:
Em diversos momentos da história do teatro, no século xx
em particular, as palavras e os conceitos nas várias línguas são
inegavelmente apropriados para dar conta das mudanças de
concepção. Às vezes acontece de as palavras não estarem mais
adaptadas. Seria melhor, nesse caso, recorrer a outra forma
linguística e conceituaI de descrever os fenômenos, mudar de
língua ou) quem sabe, até mesmo recorrer aos neologismos.
O termo inglês performance, aplicado ao teatro, designa
aquilo que é desempenhado pelos atares e realizado por to-
dos os colaboradores da "representação", ou seja, daquilo que é
apresentado a um público após um trabalho de ensaios. A palavra
44
A ENCENAÇAO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFQRMANCE: QUAL t A DIFERENÇA? 45

origina-se, de resto, do antigo francês parformer, que-significa- do visual ao textual, e, finalmente, o sistema semiótica de sen-
va "parfaire"*, sendo que em francês ela manteve apenas o sen- tido que a representação veicula implicitamente.
tido de façanha, com relação a uma performance esportiva, por Estudemos esse uso dessimétríco de performance e de en-
exemplo. No domínio da arte, o termo performance (em fran- cenação nos contextos francês e inglês: tal distanciamento tem
cês: "a performance", ou em inglês "performance art") designa razões profundas e incidências graves que revelam, no fundo,
igualmente um gênero que se desenvolveu consideravelmente concepções irreconciliáveis, pelo menos à primeira vista, pois
nos anos de 1970 nos Estados Unidos. Nos dois sentidos do a partir de vinte ou trinta anos atrás a situacão evoluiu bastan-
termo, a performance indica que uma ação é executada pelos te. A encenação, pelo menos aquela consciente de si mesma,
artistas e que é também o resultado dessa execução. Uma ação surgiu quando parecia ser necessário mostrar no palco de que
é produzida em qualquer perforrnance, como o sugere Andy maneira o encenador poderia indicar a forma de ler uma obra
Lavender: "No teatro, as palavras não são uma questão de pro- dramática, que se tornou muito complexa para ser decifrada
veniência literária sutíl, mas fazem parte da maquinaria muito de maneira única, por um público homogêneo. A encenação
.lnais ampla da representação (perforrnance), a qual está fun- dizia respeito, nessa circunstância, a uma obra literária) e não
damentada no movimento?'. Na verdade, o termo inglês per- importa a qual espetáculo visual. Ela surgiu num momento de
formance não tem equivalente em francês, e inclusive a palavra crise da linguagem e da representação, uma crise como tantas
representação (pela qual é traduzida geralmente) não dá conta outras que o teatro conheceu. Passemos, então, diretamente
do sentido da palavra inglesa e trai toda uma maneira de ver as do autor do texto para o autor da encenação, sabendo-se que
coisas. Essa dessimetria, como se verá, tem suas vantagens. a interpretação desta última seria decisiva para propiciar um
Quanto à palavra francesa mise-en-scéne (encenação), não é possível sentido à peça.
absolutamente o equivalente de performance. Designa, a partir Contudo, o termo aparece desde o começo do século XIX.
do século XIX, a passagem do texto para o palco, da escrita para Ele se aplica às obras que não são literárias, como os balés, pan-
a atuação, "[rom page to stage" (da página para o palco), como se tomimas,féeries ou os melodramas. O papel do autor era, as-
diz lindamente em inglês. O sentido implícito, portanto, é mui- sim, determinante, da mesma forma que o do decorador ou do
to distinto do de performance. Bem entendido: a noção de en- mestre de balé. No fim do século XIX, a transferência de poder
cenação, do mesmo modo, existe em inglês: quando não se diz permitiu ao velho diretor, transformado em encenador, dirigir
"mise-en-scéne?", fala-se de production, ou então utilizam-se os todas as operações, controlar tudo. Este controle absoluto não
verbos to stage, to direct a play. Production insiste na fabricação teria sido possível caso a cena se fechasse sobre si mesma, cons-
técnica do objeto teatral. To stage, to direct são termos também tituindo-se num sistema de signos estreitamente coordenados:"
eles perforrnáticos, como o de performance. To stage indica a Tal foi o caso ocorrido com o simbolismo, obcecado pela coe-
ideia de dispor, de colocar no palco, enquanto to direct não é rência de signos e alienado do mundo exterior, bem como com
somente dirigir o atar, é dirigir igualmente o autor e a obra para o naturalismo, que procurava reproduzir um meio homogêneo
uma certa direção. Na França, no entanto, a noção de encenação que se autobastasse. Nessas duas fontes da encenação moderna
evoca, em primeiro lugar, para além da localização dos cenários tratava-se de fabricar um "contramundo", produzindo nele uma
no palco, a passagem do texto para o palco, depois a oposição representação mais ou menos mimética.
Na Grã-Bretanha, no começo do século XX, a situação não
Acabar, terminar; dar a última mão, aperfeiçoar; perfazer (N. da T.). era radicalmente diferente, porém essas mudanças não haviam
1 Hamlet in Pieces: Shakespeare reworked by Peter Brook, Robert Lepage, Robert SIdo lexicalizadas nurn termo que se assemelhasse à encenação:
Wilson, p. 82. o de production parecia mais neutro, por não insistir nem na
2 Escrito em inglês com hífens (N. do A.). Em português é, também, hifenizado
(N. da E.). passagem do texto para o palco, nem no caráter sistemático da
46 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO. PERFüRMANCE: QUAL É A DIFERENÇA? 47

representação, mas tornando muito pragmático o caráter da ela se encontrava estreitamente associada ao teatro de arte, a
operação. A noção de performance continuou amplamente do- uma tradição de teatro literário até mesmo elitista. Na Grã-
minante. Parece que no imaginário britânico a encenação com -Bretanha, ao contrário, não se fazia distinção tão destacada
o sentido francês seria um exercício de exegese e herrnenêu- e definitiva entre teatro de pesquisa (experimental theatre) e
tica tipicamente francês, que remete à noção de cenografia. teatro de entretenimento (entertainment). O que contava era a
Portanto, paradoxalmente, a noção inglesa de encenação não ideia de performance, de realização performativa de umaação,
cobre completamente a noção francesa. Continua sendo um e não seu nível cultural, alto ou baixo.
termo reservado unicamente aos especialistas, alheio ao uso
da língua inglesa.
Podemos constatá-lo ao fazer um sobrevoo no século pas- l.3 Nos Anos de 1930 e 1940
sado: as duas noções não se congelaram, por vezes se distan-
ciaram, algumas vezes reaproximando-se, fato que sempre é Observou-se, com Artaud e Brecht, uma dupla ruptura em face
sintoma de mutação da prática teatral. Daremos alguns exem- . da posição clássica da encenação. Artaud reclamava uma cena
pios dessa evolução no decorrer dos últimos cem anos. O que autônoma, não se preocupava com a passagem do texto para
chama nossa atenção, para além de uma periodização, sempre a representação, desconfiava da encenação que por ele é con-
difícil em arte, é a evolução do conceito de encenação. cebida como acúmulo de signos; o que procura é aquilo que a
representação tem de única. Tal concepção encontraria o seu
término no happening ou na performance dos anos de 1970.
l.1 Nos Anos de 1910 e 1920 No fundo, Artaud, que, às vezes, se queixava do melodrama,
não estava tão distante da ideia de uma performance, naquilo
Depois do aparecimento dos primeiros encenadores no senti- que ela tem de não repetível, de ativo e presente.
do atual do termo, as vanguardas europeias, particularmente Para Brecht, a encenação (Regie, Inszenierung) não tem
a russa e a alemã, fizeram experiências a partir do espaço, do valor estético e político em si. É uma noção ligada àquela da
ator e das artes plásticas; não se interessaram especialmente pe- prática cênica, que se supõe estar incumbida de demonstrar a
las relações entre texto e palco, porém preferencialmente pelo fabricação de signos e da ilusão, a transformabilidade marxis-
dispositivo construído para o palco. Somente o expressionismo ta do mundo. O teatro está aberto ao mundo e, à imagem da
preocupou-se com a força expressiva do ator, perforrnance, torna-se uma forma ativa.

l.2 Nos Anos de 1920 e 1930 1.4 Os Anos de 1950 e 1960

Notadamente na França com Copeau e o Cartel, a encenação! Na França, prolongam-se e rematam a concepção clássica da
encontrou sua fórmula clássica: esta é a "totalidade do espetá- encenação com um discurso duplo, ora aprovador, ora crítico,
culo cênico que emana de um pensamento único, que o COTIce.;. representado respectivamente pelas figuras de Barrault e Vi-
be, o regula e no fundo o harmonizá". A "autor-idade" mudou' lar, Barrault renovou com o teatro de arte, reivindicando um
de campo: a encenação fechou-se em si mesma. Transformou-se:" teatro total e insistindo na teatralidade. Este último termo, que
numa "linguagem cêníca" (Artaud) autônoma. É verdade qué" já estava em uso desde Evrêinov e Meierhold, reapareceu após
um período de ausência no discurso crítico e foi empregado
3 J. Copeau et aI., Appels, p. 30. contraste a textualidade ou literalidade. Marca o começo da
48 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL E A DIFERENÇA? 49

metaforização da noção de teatralidade e sua extensão a todos os a prática teatral continua seguindo esse modelo estrutural e
domínios, paralelamente à extensão da performance a todas semiológico, porém cada vez mais contesta essa maneira de
as atividades sociais. proceder. O apogeu da encenação como escritura cênica, nos
Quanto a Jean Vilar, desde seus primeiros escritos (em anos de 1960, coincidiu com o começo de sua crise: ela se trans-
1950), desconfia dos encenadores, que nada mais fazem do formou num sistema muito fechado, muito ligado a um autor,
que servir-se do texto ao invés de servi-lo. E, não obstante, a um estilo c a um método de atuação, muito associado à ideia
foi caridoso ao admitir que eles são "os verdadeiros criadores de "ler o teatro'". A estrutura do espetáculo é batizada de "prá-
dramáticos'". Ele teme que a encenação se degrade num esti- tica significante" (Iulia Kristeva) para evitar falar-se em obra,
lo, na medida em que não é um estilo, mas uma moral. Prefere em autor ou encenador, noções então julgadas muito "bur-
que os seus atares "indiquem", ao invés de se metamorfosearem guesa$': No fundo, ainda não se abandonara o estruturalismo
e encarnarem um personagem. Quer evitar, a qualquer preço, funcionalista. Os espetáculos continuaram, em Sua maioria,
que a atuação degenere num estilo próprio do encenador e que a funcionar com o mesmo modelo. Seguiu-se, na prática e na
seja reencontrado de um espetáculo para outro. teoria, um movimento de reação, revolta, de crítica radical da
Paralélamente a essa evolução francesa para uma maior representação teatral. Simultaneamente, e ruirn espírito análo-
teatralidade e sob a influência da antropologia, a noção de per- go, o pós-estruturalismo atingiu a Europa. Abordaram-se en-
formance não para de estender-se a todos os domínios da vida tão os textos, e a seguir os espetáculos, de maneira bastante
social. No mundo anglófono, particularmente a partir dos anos diferente. Esta mudança de perspectiva veio em proveito da
de 1960 e 70, "palco do teatro e palco do mundo - dois campos de prática teatral, na medida em que se dispunha a rever todas as
atividade que apresentam mais do que uma analogia semânti- noções da dramaturgia: o personagem, a cena, o sentido, o su-
ca - interpenetram-se numa relação dialétíca'". jeito que percebe e a finalidade do teatro. Nessa atmosfera de
crise da retomada em questão, a performance tornou-se uma
forma de contestar o teatro e sua concepção literária, julgada
1.5 Os Anos de 1970 muito logocêntrica, mas também uma maneira de ultrapassar
uma semiologia preocupada demais com a leitura dos signos e
Marcam uma curva na evolução da atividade teatral e, para o da encenação. Descobriu-se então, na performance, uma nova
"diálogo" entre performance e encenação, conduzem a um de- palavra na França. Neste contexto polêmico, a perforrnance,
sequilíbrio, a uma incompatibilidade. O que é que está aconte- no sentido não técnico do termo, tornou-se uma ferramenta
cendo então? Nos deteremos nisto mais longamente. cômoda para compreender a abertura do teatro ao mundo, ao
Com o aparecimento da semiologia, no fim dos anos de espaço vazio, ao princípio de incerteza, ao "jogo" do teatro, à
1960, houve a tendência a conceber-se a encenação como um flexibilidade de seus mecanismos.
sistema de sentido, um conjunto coerente, uma obra legível Em paralelo, a teoria semiológica afastou-se definitivamente
ou descritível para a linguística, decodificável signo a signo, da primeira semiologia, centrada ainda no texto ou na encena-
tal como para a encenação clássica de um Copeau. Às vezes ção considerada como um performance text, isto é, como textu-
ra/tecido legível. Nos anos de 1970, a encenação, pelo menos na
4 J. Vilar, De la tradition théãtrale, p. 7I. França, eclipsou muitas vezes a literatura dramática. Ela traba-
5 N. Boireau, Théâtre et société en Angleterre, des annees 1950 à nos jours, p. 1.
De acordo com Boíreau, o teatro inglês está particularmente próximo das rea-
1hava, ainda, e sobretudo, acerca dos textos, particularmente os
lidades sociais: "Espelho das ideologias que se exprimem por meio dele e para clássicos, e não sobre os espetáculos. Vista desde a Inglaterra,
cuja elaboração participa, o teatro inglês haure suas forças vivas no espaço que
o circunda e se transforma, num processo de simbolização, em máquina para 6 Para retomar o título do célebre livro de Anne Ubersfeld. (Trad. bras.: Para
compreender e explorar o tempo" (p. 1). Ler o Teatro, São Paulo: Perspectiva, 2005.)
50 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL Ê A DIFERENÇA~ 51

essa época marcou o aparecimento da noção de encenação: HO Derrida sobre Artaud)": não conseguiu encontrar nesse corpo
que parece extinguir-se, esfumar-se, é a performance, esta alter- um sucessor no palco. A encenação, com efeito, tentou man-
nativa à encenação. A encenação era um objeto mais atraente, ter seu controle sobre o corpo e os performers foram raros.
em parte porque se podia fazê-lo como qualquer coisa que se Ao mesmo tempo, na Grã-Bretanha e no mundo anglófono o
comportava tal como o texto escrito: se o livro de Keir Elam, sujeito tornou-se o único responsável, o único "produtor" de
The Semiotics ofTheatre and Drama, ocupa-se em parte com a seu corpo. Esta situação é observável ainda hoje com grupos
ação e o mundo dramático, ele ao mesmo tempo repousa numa como o Dv8 ou Complicité, ou então na escritura contempo-
análise verbal minuciosa'". rânea com os "espeleólogos do corpo", como Sarah Kane ou
A partir de então, em 1966-68, sob o efeito inconsciente do Mark Ravenhill.
pós-estruturalismo americano, amplamente inspirado nos úl- A Grã-Bretanha, apesar de seu estatuto insular, não foi pou-
timos mestres pensadores franceses (Barthes, Foucault, Lacan, pada pela teoria: a performance no sentido corrente de represen-
Lyotard), a encenação e a prática teatral tentaram reformular- tação, que vivenciou dias serenos, por assim dizer "pré-teóricos':
-se. Com dificuldade, de resto, visto que o modelo literário e . foi subitamente tomada pela febre pós-estruturalista e pós-moder-
autoritário colou na pele dos franceses e o pós-1968 foi uma na. A teoria francesa adaptada às necessidades norte-americanas
época sombria de reação social, da qual ainda padecemos o foi introduzida (para não dizer "comercializada") no mundo an-
contragolpe. A maioria do teatro continuou fazendo seu tra- glófono. Durante esse tempo, na França, a rejeição da teoria nos
balho, tranquilo e descentralizado. A performance, na Europa, meios do espetáculo fez os teóricos passarem como praticantes
acantonou-se em algumas galerias de arte. Os termos prática muito próximos dos cultural studies, da criticai theory e do pós-
significante ou produção teatral, utilizados nos anos de 1960 e -estruturalismo. A França não se interessava mais a não ser pe-
70) permaneceram como visões teóricas sem futuro nem rea- las minorias raciais ou sexuais. Enquanto na Inglaterra "uma
lização concreta, caso se excetuem os trabalhos de Vitez. Pro- militância identitária tanto no palco como na cidade'"? forne-
curando negar a concepção biográfica de autor ou encenador, cia abundante temática para os autores e atares, a encenação
substituindo-a por aquelas de produção, escritor, criação co- francesa agarrava-se à herança brechtiana e aos discursos críti-
letiva ou prática significante, o teatro não produziu na época cos na tradição das Luzes (Planchon, por exemplo). A encena-
obras) no mínimo, muito marcantes (mesmo que este termo ção permanecia submissa demais ao teatro de texto, à espera da
esteja banido do vocabulário daqueles anos). chegada do teatro de imagens de Robert Wilson e do trabalho
O único domínio em que a performance realizou um ca- experimental de Peter Brook (em 1971). A forma do espetáculo
minho autêntico é o do physical theatre, teatro físico (porém na completo, literário e subvencionado, com fábula e personagens,
época não se chamava assim), o da "revolta do corpo" (Dort) continuava a dominar a encenação francesa. Ela não se prestava
por volta de 1968. Foi, contudo, nas performances individuais, a nenhuma mudança como a stand-up comedy, nascida nos pubs
fora dos teatros e das instituições, que o corpo teve os meios e nos lugares alternativos, pouco numerosos na França.
para exprimir-se: "O 'performeur' explora os limites do corpo, Pelas mesmas razões, a instalação e a site specific performance
frágil fronteira entre o sujeito e o mundo. A liberação teatral será, (representação ligada a determinado site) encontraram pouco eco
assim, a do corpo ou não o será'". No entanto, há corpo e corpol na Europa continental, particularmente na França. O percurso de
O corpo que exulta é mais americano e inglês (Living 1heater, André Engel no seu Dell'Inferno (Do Inferno) continua sendo
Schechner, Chaikin) do que francês. A França contentou-se em
canalizar esforços e teorizar (particularmente, aos trabalhos de 9 J. Derrtda, Le théâtre de la cruauté et la clôture de la représentatíon, I:Écriture
et Ia Différence. (Trad. bras.: A Escritura e a Diferença, São Paulo: Perspectiva,
7 S. Shepherd, M. Wallis, DramaITheatre!Performance. p. 237. 2009.)
8 N. Boíreau, op. cit., p_ 235. 10 N. Boireau, op. cit., p. 173.
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFüRMANCE: QUAL Ê A DIFERENÇA? 53
52

uma exceção notável. Não encontramos verdadeiramente, na dessa vaga intercultural e pós-colonial" (outro termo desco-
França, o equivalente às performances de Mike Pearson ou de nhecido na universidade francesa e que não atingirá o grande
John Fax. Mnouchkine acabou por voltar sabiamente, depois público senão em 2005, por meio dos debates sobre o colonia-
de LAge dor (A Idade de Ouro), a um palco frontal. lismo, os subúrbios e as-caricaturas do Profeta!). -Quando Vi-
tez declarou, por exemplo, querer "fazer teatro de tudo", queria
simplesmente dizer que deveríamos nos utilizar de toda espécie
1.6 A Partir dos Anos de 1980 de textos. Ele não pensava um só momento nas cerimônias, ri-
tuais ou em outras culturas. Continuava amarrado ao univer-
Contudo, a contradição entre encenação e performance tor- so literário, elitista e artístico dos textos e à universalidade do
nou-se um pouco mais aguda, mas tornou-se também cada teatro ocidental. Seria preciso aguardar seu colega Brook para
vez mais produtiva, tanto no plano teórico quanto no prático. propor aos franceses assombrados que fizessem atuar em con-
O francês não tem um termo equivalente a site specific perfor- junto atores com acentos estranhos e estrangeiros, o que não
'rnance, sendo o do teatro de rua dependente de visão teatral atingiria o reduto das letras parisienses sem um desdenhar de
distinta. ombros ou um ranger de dentes. Para Vitez, qualquer texto
Do lado anglófono, a teoria orientou-se em direção à re- pode se tornar teatro, para Brook tudo é ação performativa. A
cepção e ao espectador: perguntou-se de que forma o sujeito nuança é importante.
desconstrói o objeto e que diferença convém fazer entre os su- A reorientação, a partir do começo dos anos de 1990, da
jeitos masculino e feminino. teoria sobre a recepção do espetáculo conduziu calmamente a
Na França, ficou-se restrito a uma teoria histórica da recep- uma aproximação fenomenológica da análise do teatro, pois
ção, inspirada na Rezeptionsãsthetik alemã, teoria que se limita esta filosofia aplicada por Merleau-Ponty ao conhecimento e às
a examinar as concretizações sucessivas de uma peça. Ficou- artes (pintura) habituou-se a estabelecer qual experiência emo-
-se restrito, portanto, a uma hermenêutica histórica que define cional e cognitiva o espectador ou o observador experimentam
a obra como uma série de variantes. Pensa-se sempre que as e quais sensações físicas são transmitidas pelo ator ao espec-
ciências humanas, com ferramentas cada vez mais sofistica- tador. Por outro lado, a fenomenologia é muito conveniente
das, permitirão que se chegue a uma boa leitura da peça. Nada à noção de performance, visto que esta última define-se pelo
de espantar, visto que os encenadores retomam sem cessar as efeito produzido no receptor". Em contraposição, a semiolo-
mesmas obras na esperança ou com a pretensão de encontrar, gia, que se tornou ligeiramente arcaica, continua a basear suas
finalmente, a fórmula ideal e também para assegurar a recei- análises na representação sistematizada em uma encenação.
ta com títulos já conhecidos. Com suas leituras ou releituras Entretanto, a mudança da prática teatral, a influência das for-
(Planchon), com suas "variações infinitas" (Vitez), os encena- mas não europeias e não literárias, a provocação e a difusão da
dores estão no apogeu do seu poder e de sua arte. performance art, favoreceram a adoção da performance como
O interesse pela recepção fez-se acompanhar, no domínio o novo modelo universal, ao mesmo tempo teórico e prático.
anglo-americano, por uma extensão da performance à cultural A postmodern performance e a inspiração da desconstrução
performance, sendo lícito que a noção se preste, por sua gene-
ralidade, a todas as manifestações antropológicas, enquanto 11 Um dos únicos livros sobre a questão na França está em inglês: A. G. Hargreaves
eM. McKinney (eds.), Post-Coloníal Cultures in France, 1997.
a pobre teatralidade ficou ligada, no imaginário da língua, às 12 A fenomenologia aplicada ao teatro é teorizada por Bert States em Great Re-
outras artes e não diretamente às formas não artísticas da ckonings ín Little Rooms: On the Phenomenology ofTheater, como também no
social. Como, paradoxalmente, a França não tem o equivalente artigo The Phenomenologícal Attitude, na compilação mais influente de [a-
nelle Reinelt e Joseph Roach, Criticai 'Iheory and Performance; Les Essif The
institucional dos cultural studies, o teatro não se aoroveitou French Play.
54 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL É A DIFERENÇM 55

de Derrida constituem o mais sério desafio para a concepção análise, a rejeição em bloco de qualquer teoria por uma parte
continental de encenação. As duas entidades brevemente serão dos artistas e do público, assim como a subversão do pensa-
como que forçadas a se entender. mento teórico, assumiram muitas vezes o disfarce, para não
Durante os anos de 1980, a performance theory anglo-ameri- dizer as armas, da desconstrução".
cana adotou O relativismo de Derrida e concebeu toda reali- Três exemplos teóricos e práticos permitirão testar nossa hi-
zação cênica como uma desconstrução do texto dramático ou pótese de uma convergência epistemológica da encenação e da
da prática cênica. Constatava-se, na Inglaterra e nos Estados performance. A solução talvez seja reintroduzir um pouco de en-
Unidos, uma defasagem entre a sofisticação teórica e a prática cenação neste exame da performance e retornar aos critérios da
cénica muito mais tradicional. Inversamente, na França, com os teatralidade (tal como a definiu outrora Iosette Féral) 16, refletir
encenadores muito "intelectuais" como Vitez, Mesguich ou Ché- novamente em termos de ficção, palco, lugar, "autor-idade': A
reau, a desconstrução (que, todavia, não era conhecida enquanto solução é também conservar um rigor inteiramente semioló-
tal e com esse nome) foi colocada em prática. Observaremos gico na avaliação da obra concreta. Verifiquemo-lo a propósito
,mais adiante algumas aplicações práticas dessa desconstrução' de três questões e cinco exemplos concretos: a constituição do
derridiana, e veremos como elas nos distanciam da encenação texto contemporâneo, a alteridade e o "ernbodiment" (literal-
"fechada" e nos aproximam da performance "aberta"!". mente, a incorporação; a "colocação no corpo"),

2. O ESTADO ATUAL DA DUPLA 2.1 A Constituição do Texto Contemporâneo


PERFORMANCE/ENCENAÇÃO
Todos já tiveram a experiência da dificuldade de ler "no papel"
A partir do último decênio do século xx, a tendência à aproxi- os textos pós-beckettianos e pós-koltesianos. é preciso colocá-los
mação de encenação e performance confirmou-se. A amplitude em enunciação, quer isso se dê realmente no palco ou na imagi-
e a importância do fenômeno da performance não pararam de nação. Não basta, contudo, reconstituí-los numa situação pos-
crescer. Conforme John McKenzie, teríamos passado da era da sível; é indispensável testar aquilo que a colocação no espaço
disciplina (no sentido de Foucault) para a da performance: "A permite, tal como respiração textual, de que forma pode-se
performance será, nos séculos xx e XXI, o que a disciplina foi distribuir a palavra de forma diferente àquela feita de acordo
para os séculos XVIII e XIX, ou seja, uma formação ontológico- com a origem dos personagens.
-histórica de poder e conhecirnento't'", A inflação da performan- Basta nos lembrarmos de fetais dans ma maison et j'attendais
ce em todos os domínios e como novo paradigma universal que la pluie vienne (Eu Estava em Minha Casa e Esperava a Chu-
não deixa de influir em nosso objeto de estudo e na maneira de va Chegar), de Jean-Luc Lagarce. Para diferenciar as palavras
compreendê-lo, em todos os sentidos do termo. Esse frágil ob- das cinco mulheres, o encenador, Stanislas Nordey, não pro-
jeto está como que submerso numa massa de práticas culturais; curou caracterizá-las "de forma a diferenciá-las" com detalhes de
Essa massa e essa avalanche tornam problemática qualquer pre- comportamento ou figurino, deu a cada atriz um ritmo ao mesmo
tensão teórica de conjunto, no mínimo por intimidação, pois se tempo diferente e coletivo. O texto é levado por vagas sucessivas, o
tornou impossível analisar todos esses tipos de perforrnance, ritmo é aquele, global, de uma orquestra de câmara. O arranjo
em todo caso, no mesmo padrão. A crescente dificuldade de dessas vozes faz sentido: obriga O ouvinte ou leitor a construir

13 Ver ínfra, cap. 9. 15 Ver infra, cap. 9.


14 J. McKenzie, Perform ar Blse: From Discipline to Performance. p. 18. 16 J. Péral, Théátraííté, écriture et mise en scêne.
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL t A DIFERENÇA? 57
56

progressivamente a experiência dramática. O sentido - ou a espectador, dava lugar, por um instante, ao prazer imediato e in-
_ constitui-se durante a escuta, do que resulta sua tuitivo do momento. Esta é uma sensação que se pode encontrar
sensaçao -
fragilidade, sua estreita ligação com a performance vocal. O muito nas performances anglo-americanas. Basta que se pense
espectador.tem a sensação de fluxo graças a um embncamen- nas de Robert Lepage ou de Simon McBurney.
to de réplicas: há sempre um novo encantamento de uma das
mulheres que começa quando a precedente ainda não acabou,
ou que pelo menos prolonga sua réplica de igual modo, de sor_te 2.2 Da Autoridade à Alteridade
que tanto é muito difícil distingui~as VaZies, comdO a impressao
de conjunto é a de um fluxo geral a seme hança e um quinte- Esta "experimentação" da peça à maneira de um Nordey ou de
to de câmara. Notemos que essa técníca de embricamento foi um Chéreau confirma uma evidência: o texto não tem mais um
também a do Theatre Workshop de Joan Littlewood, segundo centro indiscutível, sendo preciso, portanto, fazer experiências
a descrição de Clive Barker: "Trabalhando sobre as unidades com sua topologia, com sua atopia. Estaríamos errados, assim,
da ação havia uma cavalgada contínua. Antes que uma umdade em crer, como na época clássica da encenação, dos fins do sé-
terminasse, a seguinte já havia começado. Em inúmeros pontos culo XIX e até os anos de 1930, que o encenador é novamente o
do diálogo ocorria que o pensamento podia ser compreendido autor do espetáculo, a instância central que restabelece a ordem
sem que qualquer réplica fosse dita"!". _ ou o equilíbrio. Por um lado, porque não existe o metatexto da
Tomemos outro exemplo: Na Solidão dos Campos de AIgodao, encenação inscrito ou escondido na peça; por outro lado, por-
montada por Patrice Chéreau. Para além da análise dos motivos, que a interpretação tem sempre alguma coisa de indecidibili-
da progressão do deal, da subida da tensão dramática, o e~ce- i dade, indeterminável, diferenciado, para retomar o termo de
nadar reencontrou na atuação uma interação lúdica, uma retonca Derrida. O encenador, assim como antes dele o autor e depois
da justa verbal (que pode ilustrar segundo o e::emplo da,iusta à{ dele o espectador, está submetido a uma "destinerrânciá'19 -
qual imprime a cultura escolhi~a pela encena~,~o) . Ele. cnou um,. seu destino é errar de um lugar do texto para outro; os lugares
fluxo, umflow, no sentido de Csikszentmihal)'l : o sentlmen~o de :·k de indeterminação não são mais fixados pela História, não se
perder-se a si mesmo numa ação, est~do-se s~mente consciente :út- acha mais qualquer metatexto "ready made", "solidificado'; con-
de cumprir essa ação. Cada atar devia ressentir-se e, sobretudcvsf gelado como uma estátua de mármore ou um filme em celuloi-
restituir esse flow, ao sustentar a longa frase koltesiana (de uma~~. de. A partir do momento em que se renuncia a exercer a menor
ou duas páginas às vezes) e deixando-se levar por ela. Era como se . '5~ autoridade sobre o texto ou sobre a representação, o poder de
a única preocupação fosse então manter a frase como substância ·...t. decisão acha-se transmitido ao atar e, em última análise, ao
temporal e verbal quase física. O ator, tanto quanto o espect,;do:, .',',11' olhar do expectador. A performance retoma seus direitos.
não distinguia mais, assim, aquilo que era da ordem da semantl-;mlii A performance pós-moderna está habituada a praticar a
ca da frase e aquilo que era produzido pelo movimento e ritmo:'0~ alteridade, uma vez que admite em seu seio diferentes mode-
cênicos. Como no flow, segundo Csikszentlnihalyi, ele se sentia·JI los culturais, distintas maneiras de pensar, materiais hetero-
unificado e dono de sua vida, na circunstância presente de su~.)'!(Íj\'.·' géneos. Apresenta esses elementos sem procurar unificá-los.
- .""""~
percepção do texto e do evento verbal e teatral. Nao era t~to 9,i~!1 As encenações de Peter Sellars ilustram muito bem essa técnica
caso da perda deliciosa do ego na ação, quanto da sensaçao cl~:(ít!·· eclética, errática até. Em Les enfants d'Héracles (As Crianças
uma performance que dava a um texto aberto sua identidade~.•i~j;.

':::::::.:'::o=l::~",:,,:"d,::,"'quanto ;!.I.H~.!.·• •.'.•


19 J. Derrrda, Sur parole. Instantanés phiíosophiques, p. 53 ("Como a morte, a in-
decldíbllídade, o que chamo também de 'destínerrâncía; a possibilidade para
do.•;.·.•:. .• . um gesto de não chegar ao destino, é a condição do movimento de desejo, que
de outra forma morreria antes do tempo").
18 Ver Vivre: La Psychologie du bonheur._:~,%~;,t~<-
.fr t~-~:,-,:
A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL J?; A DIFERENÇA? 59
58

de Hércules}", Sellars baseia-se numa tragédia pouco conhe- resolver o enigma da peça e mostrou-se mais circunspecta e to-
cida de Eurípides para tratar do direito de asilo hoje e da imi- lerante do que os dois heróis irreconciliáveis. Inaugurou um tipo
nência da guerra no Iraque. Louvável intenção, mesmo que o de interpretação cênica que deixa as opções abertas totalmente,
efeito de parábola da peça obrigue a contorções para transmi- ao entregar aOS espectadores as chaves para construir sua própria
tir a mensagem atua1. O rei Euristeu (nomeado "presidente" opinião. Por isso que, na nossatopología imaginária, ela situa-se
para facilitar a alusão a Bush) persegu~ os meninos refugiados a meio caminho entre a encenação muito autoritária e a perfor-
e vê-se finalmente enviado à morte por Alcmena. A alteridade mance muito pouco legivel.
funciona mal e a tragédia grega não garante absolutamente a
validade da comparação. Por certo a distribuição de atores de
origens muito diversas foi apropriada para sugerir a questão 2.3 A Colocação no Corpo
do asilo político e da alteridade, bem como a dos prisioneiros
políticos de Guantânamo, porém a análise dramatúrgica não o embodiment é um desses termos tipicamente ingleses que não
. conseguiu estabelecer claramente os paralelos com a nossa épo-' nos parece inconveniente verter para o francês. Para evitar as co-
ca. Desse modo, o valor imediato, frontal do jogo transformou notações místicas de encarnação, seria o caso de traduzi-lo para
esse espetáculo numa performance bem-sucedida, mas o sistema "incorporação" ou "colocação no corpo". Para analisar as ações e
da dramaturgia e da encenação embaralhou gravemente a men- o gestual numa encenação ou numa performance, melhor seria
sagem política e enfraqueceu o empreendimento teatral. Feliz- evitar reduzi-los a uma descrição verbal, como o faziam recen-
mente, isso acontece raramente no caso dos trabalhos de Sellars, temente a primeira semiologia e a encenação clássico-mimética.
e o impacto de seu estilo "presentacíonal" (direcionamento ao Consideramos essas ações, ao contrário) à maneira de uma antro-
público quase que em seu próprio nome) permanece marcante: pologia como em Kirsten Hastrup, como os "embodied patterns
incita o público à reflexão, embora esta última fique, por assimf 0/experience" ("formas colocadas no corpo da experiência"}".
dizer, sob a responsabilidade do espectador. A ausência de auto- Concretamente, o espaço é considerado como "bodied" (cor-
ridade não serve, portanto, necessariamente à alteridade. ,~~ poral) ou "embodied" (encarnado), isto é, constituído de corpos
Inversamente, uma encenação pode muito bem ser organi- .,~ atravessados pelas contradições sociais (realçadas no gestus), as di-
zada de maneira rigorosa, "à antiga" e abrir-se ao mesmo tempo <fc ferentes densidades> (os corpos são mais ou menos densos, ou seja,
num discurso não autoritário, favorável à alteridade. É o caso d0lj.t) apresentados conforme sua utilização em tal ou qual momento). O
Misantropo montado em 2004 por Stéphane Braunschweig no%~. corpo é ressentido pelo ator e pelo espectador nas suas qualidades
Bouffes du Nord'". O seu Alceste ficou ambíguo, não tendo nada ;~~ de totalidade ou fragmentação: é um corpo inteiro ou desmem-
do romântico personagem honesto e vítima da sociedade cor- ';:IT!: brado, um corpo em peças. Tomemos um exemplo, já clássico,
rompida, tendo um ciúme doentio, um puritanismo reacionário,<!&. de A Disputa, de Marivaux, montada por Chéreau (1973-76). Os
de um narcisismo que nada perde em relação àquele de Célime-.t%~ adolescentes, repentinamente colocados em liberdade, olham-se
ne. Sua radicalidade, "sua necessidade de certeza e possessão do.il em grandes espelhos e se esforçam, como o menino no estágio de
outro'22 são a imagem invertida da rejeição ao engajamento deq~l', espelho (conforme Lacan), em perceber e constituir a sua unidade
Célimene. Suas posições radicais e contrárias as excluem da ex,z:%~ corporal. Mas, no fundo, qualquer personagem no palco define-se
periência da alteridade, do amor e da sociabilidade. A encenação;~ por um corpo que o desempenho testa e figura. O conjunto dos
sugeria esse bloqueio, porém ao mesmo tempo não pretendel\·~I.. corpos é aquilo que está em jogo numa espécie de radioscopia,

l
20 Encenação em Bobigrry; em dezembro de 2002.
21 Ver foto ínfra, no cap. II. 23 K. Hastrup, A Passage to Anthropology, 1995.
22 S. Braunschweíg, Petítes portes, grands paysages, p. 150. 24 Sobre a questão da densidade, ver Patrice Pavis, Lítnalyse des epectades, 1996.
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL Ê A DIFERENÇA? 61
60

revelando o estado perfeitamente estabilizado, através de uma en- Ele comunica prazer ao manipular seu auditório, pede-lhe para
cenação que controla seus signos, ou instável, numa performance colocar a máscara distribuída pelos porteiros, para lembrar-se
bmetida à improvisação dos atares ou ao azar dos reencontros. daquilo que ele fazia há uma hora, um dia, um ano. Porém, esse
su d ' .
Seja como for, a performance theory e a renovação a pratica prólogo cômico é de curta duração. McBurney torna-se rapida-
teatral revelam-nos as noções outrora incompatíveis de perfor- mente o personagem principal de uma fábula apaixonante. A
mance e encenação. Esta aproximação é tão marcada que seria intriga combina várias histórias paralelas, cada ator utiliza ele-
preciso quase que criar palavras híbridas*: co,:,o', mise-en-perf mentos de sua biografia. Virgílio, o narrador, conta a história de
ou performise. O diagnóstico desta contammaçao e simples: n:o sua amiga Alice. Por que é que ela partiu e o que procura. Qual a
saberíamos, no momento, criar uma encenação sem a reflexão origem desse homem reencontrado nas geleiras? Monta-se uma
da performance theory, nem uma performance sem a p?S~ibi­ intriga complexa no interior da qual diversas declamações se en-
lidade de se fazer uma análise semiológica e fenomenológica- caixam umas nas outras, multiplicando os níveis, confundindo
No entanto, qual é o resultado de cooperação e certa hibri-. as pistas. A sequência dos quadros forma uma encenação muito
•dação? Para verificá-lo a partir de alguns exemplos recentes, ob- clássica, graças à representação de ações coletivas num espaço-
servaremos mais de perto três encenadores ingleses cliretamente -tempo em função de um objetivo. Imagens, na maioria das vezes
confrontados com a encenação na França: Simon McBurney, Peter muito belas e originais, que não esperaríamos numa dramaturgia
Brook e Dedan Donnel1an, aos quais acrescentaremos, para dar de narração, são periodicamente criadas: assim são as silhuetas
uma medida exata, dois franceses imersos numa outra cultura, percebidas por trás de uma cortina de plástico translúcido, ou
Jean Labert-wild e Marion Schoevaert (com Buyn Iung-Ioo). os atores passando por cima da mesa uns após outros. Tal é o
paradoxo desse trabalho: a mixagem de todos esses elementos
não forma um discurso homogêneo, nenhum sujeito centraliza
3. CINCO EXEMPLOS DE COOPERAÇÃO e nem homogeneíza os materiais, e, entretanto, graças à habi-
lidade da estrutura dramática, uma rede de motivos é colocada
3.1 Simon McBurney: Mnemonic (Mnemônico) no espaço, uma circulação é estabelecida sem que seja necessário
sinalizar o centro da obra. Aquilo que começou como perfor-
Não seria difícil encontrar em McBurney o rastro de sua passa- mance, um jogo com o público, uma mistura inabitual de teatro
gem por Jacques Lecoq. Ele mesmo parece divertir-se sobre essa de imagens e teatro físico) adquire uma coerência neoclássica,
passagem lendária: "1 thought 1 was going to see some dance, or porém sem qualquer dogmatismo e, por assim dizer, com uma
something [...]. It's this company that people said were really phYSI- graça juvenil. Uma performise perfeita, esta Mnemonic! Uma téc-
cal, apparently they used to be very funny"25: ~ ma~sinteres~~te nica de ator, portanto, acha-se encenada. Fenômeno raro, pois
observar a maneira pela qual McBurney utiliza vanas rradíções a performise exige uma formação física impecável, mas sem a
de atuação, deixar-se surpreender pela aparente incompatibi- rejeição - como no caso de Decroux, Lecoq ou alguns outros
lidade de técnicas e estilos. A "peça" começa por uma stand-up formadores - da encenação considerada como impura ou supér-
comedy: McBurney dirige-se diretamente ao público C?~o _ flua. Somente alguns espíritos fortes - Complicité, I:Ange fou, o
charlatão/ilusionista, não sem zombar do teatro de partícípaçao- Théâtre du Mouvement, ou mesmo Barba - tiveram a coragem
de se desligar de seu mestre para criar o seu próprio universo
* No original: mote-valise - palavras criadas a partir de sílabas de idiomas dífe-
visual, para elaborar um método de encenação que não dege-
rentes, por exemplo: francês + inglês (N. da T.). . nerasse num estilo e numa marca de fábrica para transpor, no
25 Mnemonic, p. 8: "Pensei que fosse ver uma dança, ou qualquer corsa como plano da estrutura de conjunto da encenação, a organicidade de
[ ... [. É essa companhia da qual se diz que era muito física, aparentemente
seus atares ou de seus mimos.
trora eles eram muito divertidos".
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL É A DIFERENÇA?
62 63

3.2 Peter Brook: [e prends ta main dans la mienne maneira geral, a direção de atares deve estar no centro da ence-
(Eu Seguro Tua Mão na Minha) nação, mas neste caso esse centro vazio não se configurou num
vazio '/.en que geraria o sentido. A direção de atores não conduziu
Na sua encenação da peça de Carol Rocamora, em 2003, nos Bou- a encenação, a qual somente ostentou a garantia do estilo Brook
ffes du Nord, Peter Brook interveio após numerosas mediações, (espaço vazio, ausência de objetos, proximidade do público, sim-
visto que a peça é feita de citações de cartas autênticas de Tchékhov plicidade das ações). Semelhante encenação tem por estratégia de-
para Olga Knipper, citações essas colocadas em diálogo pelo autor. saparecer, porém a performance que sobra não tem nada de uma
Qual poderia ser o olhar do encenador sobre esses documentos? desconstrução, pois se assim o fosse, o que estaria sendo descons-
Brook é conhecido por suas denegações: a encenação não deve truído? Nem a escritura ambígua da peça, visto que ela não existe,
propor uma leitura ou uma releitura pessoal; nã~ deve_impor su~s nem o vínculo da biografia na obra teatral, pois a peça é de fatura
escolhas, servir-se delas etc. Os protestos de modéstia sao habituais muito tradicional para prestar-se a tais desconstruções. Eis-nos,
entre os encenadores, mas não é o caso de levá-los muito a sério: portanto, bloqueados entre o "encenar e o "performar". . .
Desta vez; no entanto, Brook parece, com efeito, ter-se contenta-
do com uma não-encenação. Tanta modéstia haveria de honrá-lo,
caso os atores tivessem, eles próprios, tomado seu lugar. Mas eles 3.3 Declan Donnellan. A Noite de Reis
parecem entregues a si mesmos) isto é) não se entre~am nem,à. c~­
racterizaçâo psicológica, nem à não-atuação assumida, nem a iro- o caso da encenação da peça de Shakespeare, na França, com
nica citação brechtiana ou ao pastiche pós-moderno. Onde estão uma distribuição inteíramente russa, aproxima-nos ainda um
eles, afinal? Em uma no man's land, uma terra de ninguém, entre pouco mais dessa convergência objetiva de duas concepções,
a performance (onde qualquer pesquisa é permitida) e a mise- ~ a inglesa e a francesa, e nos convence, do mesmo modo, sobre
-en-scéne (onde o ator deve se submeter ao ensemble), em uma", as vantagens de uma performise de sucesso.
performance bastante cabotina, bulevardeira; ou então o ator for- . 0' Pois o êxito desse trabalho (pode-se chamá-lo como for) é es-
nece ao público aquilo que ele espera: efeitos de real, ternas re-l pantoso. Donnellan teria podido instrumentalizar os ateres, utílí-
cordações, façanhas de feras do palco, lembrança~ de espetáculos' [ zá-los para ilustrar sua tese, desenhar, portanto, uma encenação a
precedentes, como essas de O Jardim das Cerejeiras, no mesmo.:. priori. Porém, esse artista é conhecido por seu desejo de colocar
lugar. Brook decerto encorajou a'performance (no se~tido nega-;s~ o ator no centro do processo, de modo a não partir de Uma con-
tivo e esportivo do termo), porem aparentemente nao deu ne-}:,: cepção prévia da encenação: "Um dos objetivos de Cheek by Jowl
nhuma diretiva de atuação, não escolheu nenhum ponto de vista;~ é reexaminar os textos clássicos do teatro mundial e estudá-los de
reconhecível, deixando o desempenho derivar num mecanismo;rJ uma maneira fresca e não sentimental, escapando dos esquemas
autossatisfeito. Disso decorreu a interpretação bastante afetada de",\!
d. de encenação para concentrar-se no atar e na arte do ator"26.
Michel Piccoli e Natacha Parry: diante do público, frequentemente.';;~' Fiel a esse princípio, Donnellan partiu do homogêneo gru-
a contemplá-lo, começavam suas réplicas por meio de falsas hesi o
• po de atares russos que, no início, apresentava-se totalmente na
tações. Os raros deslocamentos nem sempre faziam sentido, com forma de coro; depois, tomando os grupos uns em seguida aos
se os comediantes não quisessem descer a tais simplificações. outros, dirigiu cuidadosamente a construção não do personagem,
encenação recusou-se a interferir) mesmo que fosse para regular. 'x'"
díreção de atores, uma direção estranhamente ausente sem motiv9}í:
26 Deda.l~ Don~ella~> citado em G:,Glannachí e M. Luckhúrst (eds.), On Directíng:
aparente (aliás, para não incomodar as stars nos seus hábitos). " Intervle«:s wíth Dírectars, p. 19: One oflhe aíms ofCheek by Iowl is to reexamine
desinteresse de Brook, o "descontrole" absoluto, reencaminhe the classic texts of world theatre and to ínvestigate them ín a fresh and unsenti-
me,~tal way, eschewing directorial concepts to focus on lhe actor and ati the actor!;
os atores para seus tiques como nas piores horas do bulevar. D art . Ver, em francês, D. Donnellan, L:Acteur et la Cible.
64 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL É A DIFERENÇA? 65

mas do travestimento. Vemos cada ator entrar no jogo, construir como Disfarce) (1929), a feminilidade é um disfarce voluntário,
o seu travestimento ao invés de vivê-lo. Os signos da feminilidade no caso de Donnellan a masculinidade foi um "masked ball"
são colocados sem histeria, com certa distância, mas sem paródia. (baile de máscaras) no qual seus atores se divertiam em ocultar
O mesmo procedimento aplicava-se à dicção do texto em russo: e exibir, em construir e desconstruir. E isso no espírito da peça,
enunciado claramente, serviu de base para toda a caracteriza- visto que a dissolução da identidade, a impossibilidade de julgar,
ção. "A energia da peça surge das modulações e impulsos gerais de avaliar o amor, de recobrar-se a realidade, de distinguir o ver-
através dos versos, que se exprimem pelo movimento do corpo dadeiro do falso, tudo isso é evocado por Shakespeare e colocado
inteiro"27. Não havia, assim, análise dramatúrgica ou psicológica à vista nessa performance excepcional.
a priori, mas uma montagem rítmica que) por extensão, formaria A rica reflexão de Donnellan nada tem de ilustração de
a encenação em sua integralidade. Este método assemelha-se ao qualquer uma dessas teorias, porém ela seria inimaginável sem
da dicção, ao da declamação anterior à invenção da encenação, o trabalho preparatório da criticaI theory, notadamente a pro-
porém não se trata meramente de uma técnica normativa para pósito das identidades sexuais e dos simulacros.
dizer bem o texto, é um método para chegar a uma interpretação Existe ainda, pois, uma diferença entre a "encena" e a "perj'?
de conjunto (método próximo ao de [ouvet e, na atualidade, ao de Certamente que sim, porém cada vez menos: a diferença ten-
Villégier para as tragédias barrocas). O "sistema" da encenação é de a reduzir-se, pois a direção de atores e a performance estão
visível somente no fim, quando o conjunto das células rítmicas cada vez mais no centro do dispositivo de qualquer encenação.
e dramáticas acaba por formar um todo. Como a encenação é Estas duas maneiras de ver e fazer teatro são complementares,
montada progressivamente, por proliferação de células, apenas como o provam bem Donnellan, McBurney e Braunschweig.
no final o metatexto e toda leitura da peça são perceptíveis, fato Quando um dos dois aspectos predomina, pode-se acreditar
que exclui qualquer logocentrismo da interpretação. Equilíbrio num desequilíbrio e numa insuficiência.
instável e milagroso entre a "mise" e a "perj'! Tomaremos a seguir dois exemplos de teatro intercultural.
Nesse caso, não se tratava de um jogo formal, construído
nobsentiddo dtadabdstraçãdo ecda peSremucotam'poooremendsae JumUdl~e:~~:~
so re a I en I a e e o israrce, , p' , .~
ª' 3.4 Jean Lambert-wild: Mue. Premíêre mélopée
o gênero (gender) é sempre uma questão de performance, uma 'c (Muda. Primeira Melopeia)
=:F--
construção cultural ("gender is always a matter ofperformance, ,i,
a cultural construct"), a simulação desses homens interpretando f Na longa odisseia de Avignon de 2005, em meio a calamida-
mulheres ou interpretando mulheres que interpretam homens;:;,; des, Muda, interpretada no castelo de Saumane, na Provence
(e assim sucessivamente, sem interrupção), indica sua perda vo-;\~; profunda, ofereceu-nos um momento de calma, um contrae-
luntária da identidade. Para eles, como para o espectador, não há@~:: xemplo perfeito dessa obsessão pelo desespero que acreditamos
mais referência estável. Portanto, é inútil pretender compreendê- • Iii' perceber na edição desse Festival de Avignon: ocorre a apre-
-los numa representação mimética, como o faria uma encena-;~f sentação de um mito fundador para melhor compreender não
ção clássica e bem intencionada. É mais interessante organizar 01, < tanto a natureza do homem quanto seu lugar no universo.
disfarce (não tanto de maneira metafísica, psicológica e sexua1,~~' Muda. Primeira Me/apeia é um "Warã* sonoro e poético para
como o fazia um Genet) com a finalidade de colocar a questão da4!i" .',:-~
nove vozes, uma voz eletrôníca, um percussionista e instalação
identidade e do simulacro. Se, como o avalia Joan Riviere no seu;i~
magistral artigo "Womanliness as a masquerade" (Feminilidade{~ Espaço central da aldeia, pátio onde acontece a assembleia geral da aldeia, na qual

','t~;:_­
os anciãos e homens maduros se encontram e discutem a cerimônica do waiã, a
caçada, e tudo mais que for importante. Disponível em: <http://wara.nativeweb.orgl
27 Idem, ibidern.
ii
~.y
wara.html» (N. da T.).
66 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇAo, PERFORMANCE; QUAL Ê A DIFERENÇA? 67

sonora'; retomando o estranho título do programa. Jean Lambert- do círculo. O que ouvem foi anunciado como "discurso de
-wild, encenador, e Jean-Luc 1herminarias, compositor, fizeram Serebura acompanhado de um sonho de Waehipo júnior e
apelo, após uma estada junto aos xavantes da reserva indígena do mitos da comunidade xavante de Etenhiripipá'. É inútil ten-
Rio das Mortes, no Mato Grosso brasileiro, a cinco índios para tar distinguir o que vem de Serebura, de Waéhipo ou da (re)
reconstituir com eles e quatro atrizes e atores franceses um Wara, criação de Lambert-wíld, pois tudo está disposto precisamen-
espaço descoberto onde os homens do ''conselho dos anciãos" se te de forma a embaralhar as palavras e os sonhos, o mito e a
reúnem diariamente em círculo no nascímento e no pôr do sol. poesia. A origem das palavras e dos sonhos, assim como a das
fontes sonoras, permanece indeterminada. O interculturalis-
mo é colocado em prática. Muito tato, discrição, elegância e
probidade nessa delicada cooperação, Sem voyeurismo nem
condescendência.
A cerimônia obtida - deveríamos chamá-la de "espetácu-
lo"? Melhor talvez fosse dizer: a cultural performance - evita
a armadilha de um ritual "exótico" artificialmente transposto
para esse parque e sob o céu provençal, dirigido a um público
ilustrado aberto às culturas do mundo. O dispositivo espacial,
musical e discursivo torna desatualizada qualquer questão de
autenticidade, identidade cultural, universalidade ou essen-
cialismo cultural. Opera-se assim, com doçura, uma retoma-
da em questão do teatro intercultural dos anos de 1980 e 90,
aquele dos Brook, Mnouchkine ou Barba. Não nos depara-
Iean-Lambert-wiid, Muda. Primeira Melopeia. Foto Groupe 326. mos com uma transferência de pedaços culturais, com uma
©Jean Lambert-wíld. reconstituição da cultura do outro, muito menos com um elo-
gio das culturas universais ou um relativismo pós-moderno de
Que se imagine, na floresta amazõnica, um grupo de indígenas: homens reunidos
todas as culturas, ou, menos ainda, com o discurso queixoso
para discutir o dia que passou ou o próximo. Não se entende sua palavra: nem
o som da voz, nem o sentido. Não se saberia representar sua vida. Figuramo-nos da proibição de citar-se uma cultura que não nos pertence e
somente as calamidades às quais sobreviveram. Que nos lembremos desse grupo que está protegida pelas leis comunitárias disfarçadas de po-
de indígenas, visto naquele verão na esplanada do castelo na noite provençal, liticamente correto. "
misturado com atores e músicos franceses. Ouvimos apenas sua voz, recepção
de fragmentos de sua vida, de sua maneira de falar e narrar, as costas viradas Longe de querer restituir a palavra autêntica dos indígenas,
p'ara o mundo que veio ouvi-los. Nada mais a representar? Nem verdadeiro de exibir restolhos de dança ou ritual, a encenação recorreu
nem falso? Claro que sim! O mundo está para ser descoberto no nosso interior,
para escutar-se apurando o ouvido. O teatro, laboratório do real? às tecnologias ocidentais de som, as mais recentes, e utilizou-
Isso veremos mais tarde. -se dos talentos de composição de Therrnlnarias, As vozes,
tão diferentes na Sua textura e efetividade, são valorizadas no
Os quatro membros da Cooperativa 326 e os cinco xavan'; espaço ora centrado, ora periférico dos locutores. Não para
tes estão em círculo numa plataforma central, de costas par~" tornar moderna ou para impressionar as imaginações, mas sim
o público, cada um diante de um microfone. Os espectadore.; para inserir-se delicamente no tecido das palavras do outro.
sentados ao redor desse montículo numa cadeira colocada. A~ vozes contribuem para desorientar os espectadores, que
no mesmo chão arenoso, escutam as palavras pronunciada nao se acham mais em condíções de reconstituir uma palavra
pelo coro, bem como as do narrador que circula no exterio C"'o"W' ou primária. Quando os espectadores jogam o jogo
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL É A DIFERENÇA? 69
6S

ien ci am a voz e a música como palavra em movimen- colocado. pelo contrário, na continuidade moral e na desconti-
e expe r . - nuidade matertal-".
em cessar mudando de origem, o Wara torna-se o centro
to, s
descentrado de on d e parte a re fi exao
- poética.
,. C a d a um craz a
d a de adolescente: tornamo-nos outros na medida em Sem negar as evidentes diferenças culturais, Lambert-wild
sua 1nu . insiste, também ele. nessa natureza humana única. Sua tarefa
ue continuamos nós-mesmos. Mudamos de voz e a voz nos
~uda. A muda significa também a mudança de nossa atitude consistiu em reunir vozes, pessoas, textos, estilos diferentes,
mental e política, frente às outras culturas, o despojamento de porém o dispositivo do jogo, as traduções incessantes, as mu-
danças de identidade contrabalançaram essa diversidade por
nossas concepções, de nossas palavras:
meio de um ernbaralhamento voluntário de pistas: quem é que
Eis o que me ensinaram 'os A'Uwé Uptabí, fala realmente e o quê? Até o término da noite, o comentador
Os verdadeiros homens de Etênhiritipa exterior, essa "voz eletrônica", anunciou suas intenções: «Vou
Infiltrar-me por todos os alhures contidos nos meus sonhos, contar-lhes como o mundo foi criado. Estou aqui como nossos
Achar um jeito de os compartilhar antepassados mandaram". Concluiu o relato de xavante à ma-
Despojar-me de minhas palavras neira de um antropólogo formado por Léví-Strauss:
E dizer
O alvorecer de uma Muda É desse jeito que fala o mito [... ]. O mito do qual estou falando
Que não mais me pertencerá. mantém a tradição viva [... ]. Vocês são parecidos conosco [... ]
vocês também descendem de nossos antepassados [... l. Eu lhes
Estas palavras são assinadas por Lambert-wild, porém peço para nos respeitarem [... ]. Eu não quero mais que vocês nos
la são o sonho de todos nós. Esse alvorecer de uma Muda tratem como animais [... ]. Vá, você pode ir embora. Esqueça a
~ão contém mais nada da véspera da "grande noite" dos re- nossa existência.
volucionários de antigamente! Talvez ainda seja o momen-
to imperceptível em que a posição culturalista e os valores A calamidade já aconteceu há cinco séculos; a única coisa im-
humanistas universais procedem a um discreto retorno. portante, no momento, é limitar seus efeitos e aprender a viver
Esse retorno, que se segue ao despojamento, corresponde coletivamente.
a uma fase da etnologia contemporânea, a de um Philippe Espantamo-nos ao ouvir O narrador branco falar assim,
Descola, por exemplo. Nos seus estudos sobre os jivaros da mesmo que rebatizado como "voz eletrônica": o representante
Amazônia, ele insiste ao mesmo tempo na aprendizagem do coro invisível ou do público europeu fala no lugar dos ín-
necessária da diversidade cultural e na crítica às posições dias, mantém o discurso do humanismo, emprega conceitos da
antropologia ocidental. Porém, ao se olhar mais de perto, e na
culturalistas extremas, que
lógica do processo de trabalho, esse discurso tentou justamen-
acabam por dizer que tudo é produto da vida social e das coa- te transcender as clivagens habituais. Em termos sociológicos,
ções culturais [... ]. A antropologia teve por objeto, durante muito seria mais fácil demonstrar as enormes diferenças econômicas
tempo, a compreensão da natureza humana na sua diversidade. A entre os xavantes e os cidadãos do território de Belfort, entre
acumulação de informações etnográficas fez perder de vista que,_ a coprodução internacional (da qual o anúncio traz quinze li-
fundamentalmente, nosso objetivo é compreender, de maneir~ nhas) e a frágil comunidade indígena. Lambert-wíld invoca a
satisfatória, uma natureza humana única, que traga soluções di-, poesia e o sonho para justificar essa convergência, e seu traba-
versas para alguns de nossos problemas. O acento está colocado lho coloca tais princípios à prova. É evidente que o aporte de
na nosso murrdo de descontinuidade entre o humano e o não
humano (descontinuidade moral de qualquer tipo), e na , 28 P. Descola, Les Ifvaros d'Amazonie et naus, Le Nouvel Observateur 14-20 de
fiuidade material. Em sociedades como a dos jívaros, o acento e [ul. 2005, p. 71. Ver também o livro Par-delà nature et culture. '
70 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORlv[ANCE: QUAL E A DIFERENÇA?
71

instituições deve ter sido indispensável para a realização desse movimento coletívo, para não limitar a passagem, atuahnente,
empreendimento, que se pode imaginar seja muito caro; cer- apenas ao personagem de Belair. Explica-se, dessa forma, a es-
tamente, o programa político continua no estágio de declara- colha de uma música, um gestual e uma coreografia inspirados
ções de intenção (contra o impasse neoliberal e a necessária na cultura coreana tradicional. Essa escolha é perfeitamente le-
retomada em questão da propriedade e da divisão de trabalho); gítima, não apenas porque dá à ação uma cenografia plausível,
no entanto, nenhum espetáculo em Avignon, naquela semana, trazendo a referência da peça ao seu lugar de origem, mas, so-
renovou tanto a arte da encenação, colocou questões tão can- bretudo, porque o ritmo coreano da música, do movimento e
dentes com tal energia. da palavra dera à obra uma unidade estilística que a afastava
de uma interpretação muito psicológica e realista. A encena-
ção (ou será a escritura, até mesmo a dran1aturgia?) construiu
3.5 Les Coréens (Os Coreanos) Encenado na Coreia uma partitura musical em bloco, uma dicção mais salmodiada
e gritada do que falada, uma coreografia de deslocamentos, mo-
Para verificar essa lei da complementariedade entre a encená- vimentos e atitudes emprestadas da dança coreana tradicional.
ção e a 'performance, tomaremos um terceiro exemplo: o da Não se tratou do "pôr em jogo" dramático do texto, mas sim de
recente encenação de Coreanos, de Michel Vinaver, em Seul, uma ópera e uma coreografia que formam, nesse caso, a exata
por Marion Schoevaert e Buyn Jung-Joo". Esta peça de 1955 partitura de uma performance, mais do que encenacão de Um
narra um episódio imaginário da guerra da Coreia (1950-53). : texto pré-existente. O texto certamente contemplado'estava em
Na "apresentação de suas obras': Vinaver descreve-a nos seguin- ~;~ sua quase integralidade, permaneceu audível e não se reduziu a
tes termos: um libreto de ópera no qual o sentido seria secundário em rela-
t"-
ção à música. Mas, graças à possibilidade de uma retradução, o
Após um bombardeio, no qual tudo parece ter sido destruido, "', texto é maleável de acordo com as exigências do ritmo musical e
no qual não restou mais nada a não ser alguns sussurros, alguns ,ii- gestual. Houve um feliz reencontro rítmico da tradução reescrita
gestos e escombros, uma vida se reanima. _~,~,
de Ahn Chi-Won com a música composta por Kim Dong-Guen,
Enquanto a cidade coreana volta a si - porém sem ser mais ~_j2~L
com a coreografia imaginada por Park Iun-Mí, O reencontro
mesma -, cinco soldados patrulham nas urzes vizinhas, à procura_'1!~_
foi cuidadosamente preparado pela encenação como colocacão
de um prisioneiro. Eles vivem sua guerra como um sonho e não se:~{r:­
reconhecem. .: };~: em enunciação de todos esses signos e registros diferentes: u'ela
Um sexto soldado foi abandonado como morto durante a bata'f4 coincidiam a métrica) a orquestração dos instrumentos ociden-
lha noturna. Uma garotinha de oito anos encontra-o ferido, carrega-o:;~' tais (acordeão, clarinete, flauta, guitarra) e coreanos (bateria oci-
até a cidade. O que acontece então - _aq~ilo que acon~ece na :idad~~:t.t~f:.:fJ dental e Buk, enorme tambor), as figuras dançadas ou posadas.
aquilo que acontece ao soldado -, nao e um acontecímento lnscrltQ~~~ O tr~balho em cima da composição dessa ópera de tipo novo, a
na eternidade. É, surpreendentemente, a reconquista do hoje". "\~~i partn- da encenação, consistiu em integrar esses ritmos em qua-
'i;r~":
dros que permitissem organizar a narrativa musical, coreográ-
A última frase dessa descrição feita pelo autor é antes l'· " fica e textual. Certamente o texto, embora muitas vezes criado
mais nada uma interpretação) de resto muito obscura, da peça;,:, no
O mesmo . tom e segundo a mesma energia,o · ,
ainda era audível
encenação, talvez por coerência, não contribuiu para esclarecê-la uS:Ja, 'perceptível e compreendido pelo ouvido e pelo espírito,
Convidou, no entanto, a que se reconsiderasse a ação como ~ •..•. porem mtegrava-se igualmente muito bem e rapidamente ao
:\;;o.~xento dançado e musicado. A peça encontrava-se, dessa forma,
"'~. SItuada num "b
29 Em Seul, Seongnam Art Center, novembro de 2006. Música de Kim Dong-G_,
coreografia de Park Iun-Mí.
:,1.','-';:< . •.. . an h"
o coreano: sena. o caso de se falar tanto em
30 M. Vinaver, Présentation, Théâtre complet. p. 25. :i;·l.!ltraculturalidade"luanto em interculturalidade.
&
A ENCENAÇAO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL É A DIFERENÇA? 73

n
a uma certa estilização do palco; ela tem necessidade, porém, de
uma enunciação ao mesmo tempo enérgica e pouco realista, a
fim de integrar-se ao dispositivo puramente artificial e codificado
da ópera, dispositivo esse que é o de uma performance regulada
e codificada, como o seria para uma forma teatral tradicional.
Esse novo encontro intercultural é igualmente a combina-
ção da encenação de tipo ocidental com a perfonnance defini-
da como fórmula tradicional fixa, muitas vezes "oriental'; mas
não necessariamente. Tal encontro epistemológico traz à luz
a concorrência entre dois estilos de showing doing (mostrar a
. os encenação de Maríon Schaevaert e Buyn jung-Too. maneira de fazer), que é como Schechner define nosso objeto
I Vi" aver; Os C 01 ean •
Miche ln . Players ©Kim Kwang-Lim. de estudo, ou seja, mostrar aquilo que é feito diante de nós,
Fotos Wutun . .
Para descrever esse encontro da maneira mais técnica possí-
. . semelhante à importância do ritual e da inter- vel, observaremos as diferenças entre os modos de agitar, mar-
De maneira - di
_ t pológica de Vinaver, a encenaçao reforçou a 1- char, falar e ritmar o texto. A coreógrafa Park [un-Mi realiza a
P retaçao an ro 1
_ . l: cantos e danças, máscaras, cogu as, maqui agem '1
montagem de várias técnicas corporais, especialmente:
ensao t'itua . . 1 d
m 1 - s ao xamanismo por meio de dOIS a tares, aon e
~aamoe 1h
esp' gens bem como os atores, vinham reco er-se, • a marcha de pato do camponês barrigudo, emprestada da
d sos person a , .
to o t s não foram autenticados por um cuidado de arte popular coreana tradicional;
en o
E s ses elem c. , .
, fica mas sim concebidos como rorrna estétí- • o leve e repetitivo movimento dos ombros de uma cam-
tidão etnogr a , d
exa. r da e imaginária. Essa evocação do gesto e as so-l:· ponesa, movimento esse apenas esboçado, mas que pode
cá, Idea
. d rza reanas nao ~. uma reconstituição , de qualquer',",',,
_ 101 mudar a qualquer momento para uma elaborada dança
nonda. es co ' 1 de um Homo coreensts, . tanto o imencont raivel ..., mascarada;
modo lffipOssl,:e. " í ' .
• as poses mantidas por bastante tempo pelos soldados france-
quanto imagl;:~~'qualCoreia estamos falando? Os encenado-1;~ ses, os comissários do povo e às vezes pela moça (Wen-Ta);
Nc~:~:er;e Byun, e antes deles os Wuturi Players de Kim"~ • a maquilagem estereotipada muito espessa, especialmente a
res, S . _ pretenderam de forma alguma reconstituir .J dos camponeses e comissários, como que para sublinhar
Kwang- Llm, nao . . . ,
autêntico da Coreia: Simplesmente írrventaramr.g a rigidez da tradição, da ideologia e do uniforme.
u m fragm.
en t o
da cultura coreana. Uma coreamda e em gran de };,~.
. d <'i
alguns signos , . t"'"
arte fantasm
al (mesmo para os coreanos), porem convmcen e;':B
.,,"
o atar-dançarino, ajudado pela coreógrafa e em confor-
P t ad o s estéticos: era tudo a que aspiravam os ar- ::i., midade com o desenho geral da encenação, constrói pouco a
os seuS resul . d .,>--~
n c. '-lo e sem o saber, inventaram um novo tipo e',0"; pouco um comportamento) uma atitude, urna tensão caracte-
tistas Ao raze ) 1 1 -,".
.. ltural ou mais exatamente, intracu tura , rística de seu personagem, Isso resulta de uma técnica corpo-
teatro mtercu " d "
, lturalidade não está colocada, como nos anos ~; ral que é, ao mesmo tempo, individual e, em parte, comum aos
Amtercu , - o,
1980 em termos de trocas culturais, de comunícaçac: personagens do mesmo grupo, Essa técnica solidifica-se numa
1970 e 1 's dessas instâncias ou de conflito entre cultura do;' tensão corporal do corpo em pose: do mais leve (Wen-Ta) ao
entre os po o . " f i a'
, ultura dominada, Este exemplo de Vmaver sigm c mais rígido (Kim). Os comissários do povo integraram em seus
111lnante tudo
e c um reencontro, menos passlOn tonal porque "natural
na, passos, depois em suas poses, um movimento violento em-
antes d e ' ções , de atuação e uma escnta , dial
la oga d a que se presta prestado do kung-fu, em conotação imediata com a sinistra
entre trad 1
ENCENAÇÃO, PERFORMANCE: QUAL.to A DIFERENÇA? 75
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
74

revolução cultural chinesa e a ópera de Pequim maoísta. Essa espectadores são frequentes. Não obstante, esse universo per-
fonte chinesa de trabalho corporal integra-se facilmente ao cor- manece sendo estranho aos coreanos) mesmo para os melhores
po dos atores, da mesma maneira que as atitudes que citam coreanólogos, pois repousa numa visão simbólica, idealizada,
cartazes pró-americanos ou norte-coreanos. Q corpo fascista abstrata, coreografada e, portanto, numa performance estética
ou comunista, inteiramente controlado, igualmente toma em- de dança, realizada num tablado neutro de ópera dançada.
prestado as técnicas do elose combat ocidentaL Tal corpo diz, Felizmente, o dispositivo que nos introduz na ficção ajuda-
de sua incompatibilidade com o corpo dos camponeses, que -nos a penetrar nesse universo imaginário tão longínquo. Não
obedece a uma lógica totalmente contrária. naquele de uma aldeia de 1953 na Coreia, mas sim naquele
Todo trabalho da coreografia consistiu em confrontar esses de um grupo de aldeões participantes de uma cerimônia, ce-
diferentes corpos e modelos corporais, esses tipos de movi- lebrando conosco, mais do que diante de nós, um episódio do
mento e de parada, com o objetivo de produzir uma montagem passado, já teatralizado, "restaurado" (Schechner), ritualizado.
e fazê-los evoluir de acordo com a transformação do persona- No início, os atares nos acolhem na plateia aos gritos, manipu-
gem. Belair, por exemplo, desfaz-se dos automatismos de seus lando freneticamente seus trajes, provavelmente os dos mortos.
colegas, humaniza-se ao contato com a moça, entra timidamen- No fim, tiram suas máscaras, colocam na boca de cena; depois,
te na dança camponesa final, não sem a ambiguidade dessa in- uns após outros colocam os mesmos trajes cuidadosamente
tegração forçada (hesitações, defasagens, inabilidades). A figura dobrados, antes de deixar o palco através da plateia. Uma ce-
coreográfica escolhida às vezes espanta: os soldados franceses, rimônia, portanto, aconteceu, da qual no fundo participamos,
encapuzados como terroristas, põem-se em dado momento + ao menos por procuração. Tanto quanto os atores, no decorrer
do espetáculo, fomos nos recolhendo paulatinamente diante de
a fazer reviravoltas saltando à moda coreana, como na dança
mascarada. Esteticamente, o movimento é espetacular; mas do ',' dois pequenos altares de um lado e outro do palco. Tais rituais
ponto de vista dramatúrgico é bastante deslocado, pois poderiaJ levam a peça para uma cultural perforrnance, para uma ação
sugerir uma assimilação ao grupo dos camponeses. Esse pro";[f performativa. Estes nas distanciam, desse modo, da clássica
blerna soa como sendo mais de coerência da encenação do que_i~: encenação de um texto submetido à interpretação.
erro da performance coreográfica, que antes de tudo é cuida-f~~ Não obstante, esse exemplo ajuda-nos a compreender me-
dosa no sentido de manter o ritmo. A coreografia conseguejs lhor a luta de influência mútua entre a encenação e a perfor-
perfeitamente esse intento ao criar conjuntos homogêneos den~ mance. Com efeito, o espectador deve decidir se privilegia a
grupos) que ora se congelam num quadro vivo) ora são arras~~s:i leitura da fábula por meio da encenação, ou se irá interessar-se
tados numa dança ao redor da marmita de sopa sugerida pelo-ali unicamente pela performance dançada e musical, à qual possui
enorme tambor (Buk), batido em cadência pelos dançarinos.·~ll:. sua lógica própria. De acordo com a lógica ocidental, a coreo-
A luta de influência entre performance (coreográfica) e en-;il~ grafia e a música devem estar à disposição da encenação. De-
cenação (dramatúrgica) manifesta-se na hesitação entre uma"' vem ser compostas em função das intencões ou escolhas em
cenografia muito distante (palco levantado e distante do pú- conjunto da encenação, à falta do que tornar-se-iam indepen-
blico, de modo algum redondo como teria sido o caso de u dentes da fábula e permitiriam que o texto dramático resvalasse
peça apresentada na vila) e figurinos ou maquiagens mui para a categoria de libreto insignificante. Ora, no trabalho dos
próximas desses camponeses coreanos de uma época antiga. encenadores Byun e Schoevaert, o texto não é nem modificado
chão liso, a plateia brilhando de nova contradizem a aparêncl . nem recortado. O motivo que envolve a triagem dos figurinos
rústica e popular dos semblantes e costumes dos campon~ . torna -Se metáfora total da fábula: a restauração e a ordem dão
ses. O palco avançado, quase shakespeariano, esforça-se pai' sequência à destruição e à reconciliação. A interpretação de al-
suprimir a distância; as invasões dos soldados ao espaço do .:~umas cenas finais fechadas, especialmente as cenas 15, 17 e 19,
.---- A ENCENAÇAO CONTEMPORÂNEA
ENCENAÇÃO. PERFORMANCE: QUAL Ê A DIFERENÇA? 77

na qual os objetos, gestos e os leitmotive musicais foram coloca-


H -
, 1 paraoesta b eleci m ento da fábula que toda a encenaçao
, . de L111-'H ' " mu- dos um ao lado do outro, prescindindo do olhar organizador e
é caplta d ldeões por íntermédío uai, centralizador do encenador de tipo ocidental, Do ponto de vista
" caso os a , " B 1 z.,
exige. DO, "" lher implacável", que decidem integrar e an ocidental, ficamos um pouco perdidos devido à justaposição
'rglCa rnu , tA
lher en e, ~'da aldeia, tranquilizando-o quanto a sua po en- de coisas no palco e no espaçotempo da representação: passa-
à comumdad to em que ele acaba por anunciar sua 111-
1 no mom en . d 1:4- -se, com efeito, de um conjunto ao outro sem razão lógica, nem
cia seXu a . Numa reescritura de La Surprzse e mour lnesmo cronológica, como se se tratasse de uma instalação, e
- de partir. t
tençao A ) de Marivaux, Vinaver mos ra como o a encenação (no sentido ocidental) tivesse renunciado a impor-se
esa do mor). id
(A surpr . dei as a galanteios, achando nunca ter SI o e se apagasse por trás da performance pseudocoreana, Essa
, d debnnca err 'I' 31 N
par, ln o amor e pelo desejo, encontram este u timo. o performance o é também no sentido de uma explosão artística,
fisgadOS pelo_, 'antropológica do que psicológica. A en-
a acao e rnars .' musical, coreográfica. Remete, igualmente, a algo de sensual
entanto" , di de uma cena marivaudlana, POlS com e desorganizado. Em contrapartida, a encenação permanece
- âo faz paro la fl .
cenaçao n _ e J' ogo físico fica-se muito longe dos oreios sempre na base de um sistema organizado e conceitual.
duçao e ess ' ,. f
essa tra im de sua eventual parodia. Este en raque- Tal é precisamente aquilo que hoje o teatro da desconstru-
.vau di nos, e aSSI , ,
man la, d matúrgica e da assinatura crttica de uma ção ou da performance tenta, frequentemente, realizar: emanci-
da leitura ra - d
dmen t o - rolonga-se na cena final , que a encenaçao trata e par-se do constrangimento de um ponto de vista do encenador,
encenaçao P al oreográfica do que de modo discursivo
. mais cor e c , dispor as coisas sem uma perspectiva privilegiada. Essa atitu-
maneIra,. Globalmente, a encenação cede um pouco a de coincide com um novo interculturalismo, que não procura
en eutl Co. . tl d
e h errn . al e dançada, à ópera coreana, mves 111 o a mais controlar tudo como o fazia a encenação ocidental quan-
c mance VISU ,. d
penar , erimônia de um poder catártico, e um do dominava todos os signos e adotava uma perspectiva úni-
mÚSIca e a c , . , .
dança, a , 'voz e ao corpo do que ao espírrto e a in- ca, Esse interculturalismo inscreve-se numa poliperspectiva ou
frute ligadO mats a _
des _ discursiva de uma encenaçao. . , numa des-orient-ação (não conseguimos perceber mais nem o
terpretaçao " criatividade, forca de sedução e seu liris- Oriente, nem o Ocidente "puros'; nem uma direção). É, portan-
Por sua coerencla,
afi
>
música dessa ópera neocoreana a maneira
"

coreogr a e a . to, um interculturalisrno sincrético, profissional, pós-moderno.


mo, a L' tendem a subverter, a subjugar, e ate mesmo Os signos que utiliza são às vezes voluntariamente ambíguos,
TT: Kwang- irn d
de rum ção Sabe-se que a ópera preten e cxn.nan- abertos, não redutíveis a índices claros como no caso da ence-
c ocIítar a encena . d 'I
a 1ag didas aí as veleidades do encena or, POlS e e nação clássica. Como, por exemplo, os soldados encapuzados:
do compreen
dar tu , e do ritmo aos quais todo o restante representam uma massa amorfa de não importa qual exército
, stre do tempo , ,
e o me , .ca impõe um certo tempo, uma rítmica da atualidade, ou são antes terroristas? Mas, nesse caso, de que
ter-se, A mUSI , d
su b me espaço a seguir atraves dos corpos os tipo? E quanto ao tambor transportado para o centro do palco:
traduz no , c'
a d ança itud Na Franca a ópera frequentemente 101 é um caldeirão que nutre e regenera a aldeia, ou seria simples-
fi uras e atitu es. , ). ~
em g ção Na Coreia, a mvençao de uma en,cena'çãcli!,~~, mente um ponto de reunião para o jogo, puramente uma figura
t íz da encena . .
ma n " talvez por ser uma ópera de outro tipo. de rodopio, uma maneira simples de girar em roda, tanto no sen-
« reana passa, ,- - t
CD "te continuar nossa comparaçao en re a tido próprio como no figurado? Esses signos são culturalmente
I so nos permI 1
s a ti "coreana' de colocar as coisas no pa co .' polissémicos, não sendo índices sociais ou psicológicos como
, perform rva d i
neIra 'd t 1 de encená-las, dispondo-as de acor o com, no caso da encenação. Fornecem um quadro geral e universal
't do OCl en a - a'
me o li dor e organizador. Estes Coreanos sao core " a performance virtuosa e polimorfa, Escapam em definitivo
lhar centra iza c ce
um o dão a impressão de uma pertorrnan j interpretação muito discursiva, muito ligada ao texto, muito
nos na medida em que <. "

ber Vínaver consagrou um longo relatório à encenaçt SulDmissa à "autor-idade" do encenador, Eles nos fazem voltar a
" . rtante sa er que I' 34
31 r. tmpo . R u planchon, em Théâtre Popu erre, n. .
desta peça por °oer
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇAo, PERFORMANCE: QUAL É A DIFERENÇA? 79
78

um estado anterior à encenação, o de um saber técnico, norma- nagem se transformando, mas aqueles de qualquer sociedade
tizado, não ligado à interpretação individual, mas sim codificado concebida antropologicamente. A peça e seu tratamento cê-
e perfeitamente dominado, como o seria U1"a tradição secular. nico insistem na assimilação do soldado Belair a outro teci-
Esse retorno a um estado anterior ainda nao individualizado, do vivo. Teatro antibrechtiano, por consequência, pelo fato de
porque interpretado por um único explicador e r:sp~nsável ar- não se situar na história política, apesar d'os nomes e lugares.
tistican1.ente, não é necessarimnente urna regressao: e um meio A peça presta-se ao travestimento de uma cultura distinta, co-
de unir de novo a coreografia coreana, como se ela já tivesse reana neste caso, mas que também poderia ser muito bem a
existido e nós estivéssemos a ponto de descobri-la. tailandesa ou a irlandesa. Ela parece convidar à performance
Começamos a compreender as duas tentações atuais do no sentido de uma explosão formal e à forma codificada anti-
teatro: a tentação da performance e a da encenação. A tenta- _histórica de teatro tradicional, imutável no seu desenvolvi-
ção da performance é a de congelar as categorias dramáticas, os mento e, portanto, de forma alguma dependente da nova leitura
personagens e o sentido para unicamente e melhor tr~balhar a de um encenador. O aspecto performativo é capital, enquanto
forma; é a de utilizar os intérpretes, instrumentistas, vírtuoses, a exigência mimética, política, etnológica, geográfica, é quase
performers. A tentação da encenação é a de apreciar, julgar, in- nula. A peça de Vinaver refere-se certamente à Coreia, porém
terpretar os conteúdos e as nuanças do texto, de mostrar a sua de forma abstrata e arbitrária, sem dar indicações culturais
relatividade. Ela recorreu aos atores-imitadores que "apossam-se" específicas no texto. A encenação não denuncia a guerra, a
dos personagens. No espetáculo destes Coreanos, os atores são propaganda, ou o comunismo norte-coreano. Essa ausência
antes de mais nada dançarinos, aos quais fica difícil fugir da ,J de visão política, que tanto impressionou os contemporâneos
rotina coreográfica, de sua codificação formal para situá-los t' na criação da peça, autorizou os encenadores e a coreógrafa a
numa situação dramática e teatral ao pedir-lhes para inter- , tentar uma reconstituição muito livre da coreanidade através
pretar as "grandes cenas': para nuançar e interpretar a fábula e ;:\\ da performance dançada e cantada, uma coreanidade imagi-
para clarificar um subtexto e uma situação. Tudo leva a crer quef~ nária, espantosamente estética.
esta peça situa-se deliberadamente na performance abstrata e~l
antropológica, e não na encenação histórica ou historicizante~~
à la Brecht. E é isto que os "autores" do espetáculo, Schoevaert~~ 4. CONCLUSÕES
e Byun, compreenderam p e r f e l t a m e n t e . } ! t Performance studies/theatre studies
O que a peça, com efeito, exige? Na sua apresentação, Vina-,\í,~
ver insiste no fato de que a representação não deve preocupar-se,)'i ; O exemplo da encenação coreana e coreanizada de Coreanos
com a "passagem para a atualidade" do seu personagem prin ajuda-nos a compreender melhor as relações entre perfor-
cipa!". Com isso quer dizer, provavelmente, que não se trat mance e encenação, e, de maneira mais geral, a diferença en-
de interessar-se por uma conversão milagrosa de Belair par tre performance studies e theatre studies, estudos de espetáculos
a cultura coreana, pois essa conversão seria uma conclusã e estudos teatrais.
muito anedótica, muito "hollywoodiana", Sugere, ao contrá A realização dos Coreanos tem origem dupla: é "ociden-
rio, que "é, antes de mais nada, a peça inteira que deve proe tal" com relação à escritura de Vinaver, à análise dramatúrgi-
rar simbolizar na sua evolução, um 'tempo novo', um mun c~ e à encenação de Marion Schoevaert; é "coreano/asiático/
liberto de qualquer processo: aberto a qualquer movimento". por conta do "estilo Wuturi" de Kim Kwang-Lim e
Nesse sentido, o tempo e a ação não são os anedóticos do pers; direção de atores de seu colaborador e encenador nomeado
32 M. Vínaver, Présentatlon, op. cit., p. 41.
33 Idem, íbídem. Ob,e,,"e-,;e que as aspas protegem essas denominações.
5

A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ENCENAÇAo, PERFORMANCE; QUAL É A DIFERENÇA? 81


80

Byun jung-joo. Não nos espantemos, portanto, que ela se ca- verdade que, tal como Schechner, estamos, no momento, em
racterize igualmente por uma dupla influência, às vezes difi- suas próprias palavras: "muito pouco confiantes na futurologia
cilmente legível e distinguível: uma europeia, de um teatro de a longo prazo". Porém, não temos necessidade dos estudos hu-
texto que a encenação, tal como uma esfinge, deve decifrar; e manist.~s) para continuar a pensar e para não desesperar?
outra, performativa e performante, que a performance da ópera POIS na outra margem, a dos perJormance studies, abertos
e da dança-teatro deve produzir. sobre o mur.do inesgotável das cultural perJormances (manifes-
Após uma vintena de anos, sob o impulso e o cajado de tações culturais), encontramo-nos subitamente tão desarmados
Richard Schechner, os theatre studies e os performance studies quanto Robinson Crusoé na sua ilha. Existem poucas aborda-
defrontam-se e Comparam seus métodos e seu balanço. Em gens políticas para analisar todas essas formas, julgadas muito
um espetáculo como Coreanos, os coreanos nos provam que as diversas e "diferentes" para que se lhes insiram "os sujos direitos
duas abordagens são válidas, necessárias e complementares, ao ocidentais"35 e, acima de tudo, poucas abordagens que não se
mesmo tempo em que nos levam a compreender a fabricaçãp contentam em descrever o funcionamento técnico das formas
da obra.e a avaliar sua recepção. e codificações. Ora, trata-se de definir o perJormance model do
Não se deve, contudo, escamotear a dificuldade epistemo- qual fala Schechner: será que funciona verdadeiramente por
lógica do encontro dessas duas abordagens e de sua coabita- si mesmo, sem_ referência à western dramaturgy, à dramatur-
ção. Os theatre studies têm utilizado todo o arsenal das ciências gia ocidental? E possível duvidar! Por certo, nós a vimos com
humanas, especialmente a criticai theory. Disciplinas como a Coreanos, a música e a dança tendendo a constituir-se numa
filologia, a sociologia, a psicanálise, a desconstrução derridía- linguagem pura, isolada da cultura, declarando-se protegê-la
na, deram os seus testemunhos. Também nos espantamos pela totalmente. A música e a dança têm um efeito imediato, paté-
atual crise de confiança, até mesmo pelo autodescrédito da teo- tico, diretamente emocional. Contudo, seria conveniente, em
ria. Por conta disso, na Europa e na América ela se acha muito todo caso, compreender o momento em que esse efeito se tra-
ocidental, muito cartesiana, muito humanista. Sente-se respon- duz numa incidência no sentido e na dramaturgia, consequen-
sável por todos os males desde Adão e Eva, acredita-se estar temente na encenação enquanto sistema de sentido.
obrigada a pagar pelo colonialismo e pelo racismo. É verdade Na prática, assim como na teoria, esforçar-nos-cmos para
que a tarefa das ciências humanas, assim como a da encenação, conciliar ou confrontar performance formal e encenacão car-
é ser crítica, autocrítica até: procura explicar a representação regada de sentido, notadamente político. Em teoria, sugerimos
e avaliar se ainda é descrítível como encenação propriamen- ultrapassar as clivagens improdutivas, como performatividade
te dita ou como cultural performance. Pretende situar-se na versus mímesis: pode-se constatar, na ação performativa que
história, adaptar-se às exigências e faculdades do público do constítuí a performance, efeitos do real que fazem o espectador
momento. As lições da encenação, assistida pela dramaturgia, c~mpreender imediatamente que a ficção e a forma artística
são preciosas: a relatividade do tempo, da época, do olhar, sao unidas também por inumeráveis mediações com sua vida
desejo, do efeito produzido, eis aí uma lição que nunca r1~,,~"Ó e com sua experiência cotidiana. Na prática, isso implica que o
ser esquecida. É verdade que tais lições foram fT<"quenten1e:riti';t' i espectador possa ter a possibilidade e o desejo de oscilar, sem
esquecidas e que as análises marxistas ou simplesmente bre- parar, entre, de uma parte, o gozo da música e da dança, a for-
chtianas, quando foi o caso de se ler ou interpretar uma obra, tân e o n;mo em que elas se manifestam, e de outra parte a dis-
foram simplificadas. É verdade que depois de 1989, fim do coo ,anCla crítica que se encarrega de toda a reflexão com respeito
munismo, assim como depois de 1789 (início dos direitos a prganização do sentido cênico. Nesse Coreanos coreanízado,
manos na engrenagem da história revolucionária), as ciências:
humanas foram algumas vezes desconsideradas. É, tambérn.I . 35 Citação imaginária, mas de nenhum modo apócrífa.
82 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA ENCENAÇÃO,' PERFORMANCE: QUAL E A DIFERENÇA? 83

a escolha por privilegiar (exceto a elaboração do espetáculo) dológicas: a análise de espetáculos passa de uma semiologia
seja a performance, seja a encenação, é decisiva. Essa escolha descritiva para uma fenomenologia do sujeito perceptivo. No
foi incontestavelmente a da performance virtuosa, que guiou entanto, essa passagem é antes de mais nada uma aliança entre
os criadores do Coreano de Seul. Disso decorreu, às vezes, a di- os dois métodos: a semiologia, que é uma ferramenta indispen-
ficuldade em pensar a peça quanto ao modo de interpretação e sável para a descrição estrutural do espetáculo, enquanto a fe-
de fazer-se a junção da performance com a reflexão dramatúr- nomenologia inclui ativamente o espectador na sua dimensão
gica da peça (velha reflexão europeia). Resta julgar - decisão corporal e emocional. Esse duplo método com vistas a esses
critica - se essa ausência de junção foi feita "de propósito" ou se estranhos objetos que se tornaram os espetáculos da atua-
.é testemunha de uma concepção ligada muito unilateralmente !idade, é um double chek, uma verificação dupla. No presente,
à performance da cultura coreana, que foi decididamente con- abandonamos a margem do sentido óbvio, estamos em face
vocada a fazer milagres. e no interior de performises ou de mise-en-perf que a semiofe-
Outro e último dos milagres: a peça de Vinaver inaugu- nomenologia nos ajudará um dia, quem sabe, a abordar. Des-
rou, em 1956, uma concepção radicalmente nova de teatro. tinerrância garantida ...
Tratava-se de "um teatro que abole qualquer memória, que faz
tábua rasa de imagens e significados, que apresenta um mundo
onde as relações entre os seres e com as coisas estão vazios de
qualquer profundidade, produzidos sem delongas, literalmente
constatados":". Ao invés, então, de procurar um sentido para
a "conversão" individual de Belair à cultura coreana, de iden-
tificarmo-nos com uma busca de sentido, valeria mais a pena
observar, como o fez a encenação, de que maneira o aspecto
performativo da interpretação dessa ópera-dança coreana con-
tribui para o advento desse novo tempo, "aberto a qualquer
movimento". As relações entre os seres são expressas pelo mo-
vimento, pela voz, pela coreografia e especialmente pelas atitu-
des: isso se dá na mesma medida em que os elementos rorrnais
não implicam nenhum subtexto, nenhuma profundidade, e sim
"tricotam" um conjunto de relações que transformam "em bloco"
a imagem do nosso mundo em rede. Trata-se mais, nesse caso,
da performance interconectada e anónima, da cultura coreana
imaginária que triunfa sobre os indivíduos, sobre os mestres
do palco e do sentido. Dessa forma, a cultura coreana enquanto
metáfora assume todo seu valor e toda sua justificação,
por razões pós-modernas, e não etnológicas. _-
Tal passagem da encenação para a performance que podei~
ser observada nesses Coreanos de Seul, bem como em mui::P!:
tos espetáculos contemporâneos, tem consequências meto-I

36 M. Vinaver, op. cit.• p. 41.


4. Tendências da Cenografia
na França

A c:nografia é a parte visível e material da encenação. Não é


senao um componente entre outros. No entanto, é exatamente ___
nela que se concentra boa parte das pesquisas de crlacão teatr :F'
e espetacular da atualidade. ' a
O espaço como barómetro do tempo, como crisálida de onde
surge a encenação. .

Uma luta subterrânea opõe a cenografia à encenação:


a partir do aparecimento, ou pelo menos da tomada de
consciência desta última, a cenografia seguramente ficou
na defensiva, como se tivesse perdido definitivamente seus
poderes. adquiridos na Renascença. Muitas vezes a cenografia
se idontltíoa Com essa encenação, procurando ultrapassar Se fechássemos os olhos, por um instante, a fim de examinar o
o quadro fixo e arquitetural de um espaço contido nos limites estado atual da cenografia na França nos anos de 1980 e 90, o que
do palco, tal como nas Suas origens. se veria?' O mesmo caleidoscópio existente para a encenação:
Todavia, estamos ainda na era das "Revoluções Cénicas uma multitude de formas e cores, uma infinidade de propostas,
do Século XX" de que falava Denis Bablet num livro célebre? espaços embaralhados, uma incomensurável riqueza de reali-
A cenografia dos últimos vinte anos renovou e prolongou as zações. Porém, constataríamos, igualmente, a impossibilidade
vanguardas históricas? Explorou novos caminhos? de reduzir essa riqueza a qualquer sistema, da mesma maneira
que a retomada quase sistemática e antológica de todas as ex-
Alguns exemplos concretos, se bem que necessariamente
perimentações cênícas que pontilharam o século passado. Isso
parciais, alimentarão nossa reflexão.
porque - e esta será a outra revelação - estamos, atualmente
No teatro, assim co::"o em qualquer outra parte, deve-se esperar numa fase barroca (ou seria o caso de dizer pós-moderna?):
tudo. A desonentaçao espacial ajuda-nos, pelo menos, utilizam-se em excesso as soluções anteriores e aperfeiçoam-se
a reconstderar a nessa posição no mundo. os procedimentos experimentados. Certamente, inventa-se
bem, ainda, algumas novidades formais cenográficas, mas os
anos de 1990 e 2000 são antes de tudo de balanço, arremate, até
de apoteose das experiências precedentes. A cenografia é o baró-
metro fiel dessas variações, o espaço é revelador disso. Luc Bou-
cris observa-o a justo título: "O espaço modela a comunicação.
1 Este capítulo resultou de conferência pronunciada fora do colóquio: L'Espace
théâtral (O Espaço Teatral), organizado por Hyun-Sook Shln, em Seul, em
novembro de 2003.
86 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA TENDÊNCIAS DA CENOGRAFIA NA FRANÇA 87

Todos sentem isso. Sim, mas de que maneira? O espaço teatral As incursões aventadas não constituem, de modo algum)
e suas transformações poderiam bem ser a entrada que melhor uma tipologia das cenografias, nem mesmo um padrão re-
permite abordar todas as explorações [... ]. Modelar o espaço presentativo: não são mais do que uma primeira orientação.
é, nesse caso, a preocupação e a ambição do homem de teatro Qual quer tipologia na matéria seria muito arriscada. Os ce-
contemporâneo":?'. nógrafos, com efeito, geralmente não reivindicam um méto-
A cenografia na França e em outras partes tornou-se uma do único, nem um estilo particular ou determinada estética,
das mais belas florações da criação teatral, o real caminho para pois trabalham com diferentes encenadores ou, caso colaborem
entender o projeto cênico, para esclarecer sob nova faceta o com os mesmos artistas, participam de projetos muito varia-
papel do ator e, em consequência, para avaliar as mudanças dos. Certamente existem constantes de uma cenografia para
na encenação. À falta de poder descrever exaustivamente es- !. outra do mesmo artista, mas o que chama nossa atenção, no
sas mudanças ou de entrar nos detalhes técnicos da prática ce- ,- caso) não é nem o estilo nem a carreira dos cenógrafos) mas
f
nográfica, valer-rios-ernos de alguns exemplos concretos. Os sim os diferentes meios de viver o espaço e sua transmissão ao
mesmos não representam todas as tendências atuais, porém f- ator e depois ao espectador. A cenografia - será preciso relem-
não são casos menos típicos de uma produção pletórica. Pouco ~ brar? - não procura necessariamente os efeitos espetaculares,
preocupado com a exaustão, este sobrevoo pretende estabelecer Tj; da mesma maneira que a perforrnance técnica não é um fim
a ligação dessas cenografias com a questão da encenação e do "', em si mesma) e a magnificência da decoração não é senão uma
corpo do ator, Nessas observações, apoiar-nos-ernos no traba- ,,- "doença infantil" da prática teatral.
lho de um dos mais talentosos jovens cenógrafos franceses, Da- :; A escolha de nossos exemplos é, em parte, arbitrária. Ironi-
niel [eanrieteau: "O espaço do teatro deveria ser uma emanação camente, muitas vezes é ditada pela documentação fotográfica
do corpo e do mental do ator. Não deveria existir antes dele'", _', que os teatros aceitam colocar à nossa disposição. Procuramos
O que observamos numa cenografia não teria sentido, assim, _., distinguir, simplesmente, os seguintes usos do espaço:
senão pela relação estabelecida com o ator e com a maneira .:~
pela qual ele é tratado cenicamente, para dado público. Esta ,~i; 1. os poderes da ilusão cênica (Collet/Demarcy-Mota);
hipótese desemboca, de resto, naquela da etnocenologia* de.;~ 2. o fantasma e o real (Peduzzi/Chéreau);
Jean-Marie Pradier, que vê no palco a "maquete antropológica ii'J 3. a travessia da imagem (Vígner/Vígner):
do corpo'". Semelhante ideia nos ajudará a encarar a cenografia;l 4. os ecos do espaço (Timar/Timar);
na sua conexão com o atar e com a encenação, pois, confor~:~i~ 5. a migração de subespaços (François/Mnouchkine),
>'~rn.;

me o disse [ouvet, a arquitetura, a dramaturgia e a encenação~ " 6. o silêncio do espaço (Jeanneteau/Ollivier).


"mantêm-se unidas" (Prefácio ao Traité, de Sabbattini). A essa :.~~ "
trilogia conviria acrescentar o corpo e o olhar do espectador";;\li ;, Essa escolha não pretende, absolutamente, ser representa-
A fim de verificar tais hipóteses, no mínimo ousadas, exarni- <-, liva do conjunto de práticas atuais e, muito menos, de tipos de
naremos, nos seis exemplos a seguir, a maneira pela qual o eSl,'.;.}',rquitetura teatral, questões que deixaremos de lado. Observa-
paço situa o ator no centro da encenação antes de nele inserir: ::.p;:mos apenas que, em cinco dos seis exemplos, trata-se seja de
o corpo e o olhar do espectador. ' '3ugares que foram recuperados: fábrica de cartuchos (5), igreja
)'1), entreposto (2); seja de teatros à antiga restaurados/repli-
2 L'Espace en scéne, p. 9. Para uma visão sobre a cenografia nos Estados ".â~dos (1) ou deixados no estado original (6). Um único teatro,
ver A. Aronson, Looking into the Abyss. _().:Casa da Cultura de Créteil (3), foi construído especialmente
3 Notes de travail, Revue d'esthétique, n. 26, 1994, p. 20.
* Ciência que estuda as características da encenação (N. da E.).
mr a os espetáculos atuais.
4 r-Mo Pradier, La Scéne e la fabrique des corps, p. 18.
88 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA TENDÊNCIAS DA CENOGRAFIA NA FRANÇA
89

1. OS PODERES DA ILUSÃO CÊNICA Acham-se reconstituídos diante de nossos olhos, tanto o corpo do
personagem segundo a metafísica pirandelliana, como o corpo do
Com a encenação de Seis Personagens à Procura de um Autor, de ator "encarregado de encarná-lo'. a cenografia re coIoca-se a seu
Pirandello, Emmanuel Dernarcy-Mota e seu cenógrafo Yves Collet serviço, preside a .sua criação
. '
serve-se da confusão
.llil
t
en re o corpo
participam da reconquista dos poderes da imagem, redescobrem a e sua sombra. Por Identificação, ou seja, por reconhecimento e em-
magia da representação à italiana. No transcurso dos anos de 1960 pana, o espectador "comunica-se"
. ) no sentido propno
' , e figura d o,
e 70, a imagem à distância e adaptada do palco à italiana tornou-se COI~ esses c~rpos, orgamza a sua percepção do espaço, constrói a
suspeita e o êxodo do teatro para fora das plateias parecia anun- ficçao a partir deles e de si próprio, todos os corpos estando COn-
ciar o dobre de finados desse belo imaginário fantasmagórico. Os fundidos. Yves Collet revela todas as possibilidades d t
'fi ' a ar e certo-
últimos vinte anos do século viram o retorno do teatro às origens gra ca, partIcularmente sua função imaginativa e fantasmática;
e, portanto, ao poder da ilusão. A cenografia e a iluminação de f' o momento em que, como no prólogo do Fausto, de Goethe,
Collet invadiram todos os cantos e recantos do palco e da plateia. " :~
as sombras teatrais se aproximam e tomam COI'PO nas fi guras d 08
Criaram um espaço maleável, particularmente na medida em que ~ atores.
, Essas figuras falltasmáticas parecem'mvad'Ir o espaço mte-,
o espetáculo se deu num teatro como o Bouffes du Nord em Pa- i'r nor dos espectadores, provocam uma sensacão o
dí ' ,

, ' uenaonaose
-
n de 0li esbPaço de"atuação p:nQetra no do. público à manheira .,.:.i,'.•
rdis, 0al ístíngue mais o que foi percebido exteriormente daqui!
' , o~~
o p co e za etano, em espora. uanto mais esse espaço cega, expenmentou Interiormente.
próximo dos espectadores, tanto mais avança até o fundo do pal--.g . Inúmeras imagens de Collet inspiraram-se na estética de
co limitado pelo muro do edifício, criando, graças a uma cortinai'~, Imagens glaClals dos anos de 1970 e 80; nas de um Ché
I "d ereau,
transparente, sombras e objetos de uma parte à outra, Desse modo;~ e e propno a escola de um Strehler, mas igualmente nas estu-
acham-se mobilizados, alternadamente, vários tipos ~e espaço: 0 ·.• •.
espaço nas proximidades, quando os comediantes estao voltadoS;;'fI
:1.•. pendas Imagens dos espetáculos de Richard Demarcy e Teresa
Mota, No entanto, essa fantasmagoria de imagens é, ao mesmo
aos ensaios; o espaço a meia distância, no praticável de atuação; ofª " tempo, colocada em questão, ou pelo menos complementada
espaço a distância, que serve como área de evocação de fantas-~l' por um prmcípio distinto ao da encenação o da des t
- d "d ) cons ru-
mas e aparições do passado, aos quais a foto de Bellang apreende'" çao, a oce ruptura" da ilusão rompida e ressuscitada. Esse
tão sutilmente. O dispositivo joga sobre dois quadros: um espaço procedImento ambivalente encontramos na obra de Chéreau
frontal com diversas escadas e uma multitude de subespaços signi- e Peduzzí, embora com atmosfera diferente e numa coloração
ficando vários lugares, A caixa à italiana aparece por vezes recriadaj emocional muito mais sombria.
e desconstruída. Graças a esse domínio e maleabilidade do espaço'"
a cenografia e a encenação pal'ecem ter esgotado todas as possi '
lidades da cena ocidental. Elas denunciam e desmontam a repr 2. O FANTASMA E O REAL
sentação ilusionista burguesa, empurrando-a totalmente para
seus limites e restabelecendo-a nos seus atributos, Essa cenogr Ghéreau e Peduzzí b lh
"ef" UZZI, que tra a am em colaboração há cerca de
de geometria variável é um exercicio de estilo sobre os poderes };,:,},:~lnta anos, ~ermaneceram fiéis ao refinamento estético da irna-
teatro - reforça a identidade do ator e, por meio dele, a do auto .;~,"~~:s:re~enana,que neles transformou-se com grande plastici-
Faz a constatação e o inventário de fim de século no que se referé ;'}b'real rqmteturaL Não se c?ntentam em figurar mimeticamente
todas as artimanhas e possibilidades da teatralidade, transporia" ';,-ti.' . ' POIS colocam em cnse a realidade através de um excesso
para uma perfeição estética absoluta, traz para os comediant ce teatralIdade p I I'
'. 'c, , ' e amonumenta Idade da decoração e pelo jogo
sua área de atuação, sua espontaneidade e sua liberdade, esped .en1atlcode t E
".. 0."1' a ores. ssa contradição entre o realismo e o fantas-
mente o prazer de fazer canastrices e flertar com seu personage , ~. esse oxí '
.'~T:'-, moro, nos o reencontramos na encenação da Fedra,
"'!

A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA TENDÊNCIAS DA CENOGRAFIA NA FRANÇA 91


90

de Racine, nos Ateliers Berthier, lugar de substituição tempo- e os abalos do real são os dois princípios dessa dramaturgia e,
rária do Théâtre de l'Europe. Num volumoso espaço industnal por extensão, de toda a encenação. O espectador sente-os em
reorganizado em palco-plateia bifronta:' o público senta~se des- seu corpo com a mesma dilaceração, a mesma oscilação entre a
confortavelmente nas arquibancadas Inclinadas, uma area es- perspectiva à distância, sonhada, e a ruptura dolorosa e próxi-
treita e longilínea. Esse espaço é partilhado entre, de um lado, ma. O corpo "esquizofrénico" não sabe, então, onde se refugiar:
a fachada muito imponente do palácio de Fedra, e do outro, o será na ausência do sonho desperto ou na presença dolorosa do
espaço aberto dos estúdios, com seu velho monta-cargas e .ca- corpo em sofrimento? A cenografia é conduzida, às vezes, por
deiras contemporâneas, provavelmente utilizadas nos ensaios.,. princípios contraditórios os quais a encenação, justamente, pos-
Assim, está-se às voltas com a reconstituição arqueológica de sui enquanto arte de conciliar.
um palácio e de um "lugar descoberto'; prosaico e contemporâ- ~.
neo. A cenografia reproduz com idêntica e grandiosa natureza r-
um dos túmulos rupestres de Petra, na Jordânia. O contraste :. 3. A TRAVESSIA DA IMAGEM
entre a ficção trágica e a realidade banal, entre a artificialidade;i
monumental e o realismo cotidiano não deixa de perturbar o 'é. Às vezes, os encenadores experimentam a necessidade de rea-
espectador, dividido entre o imaginário do alhures-antigamente:! lizar, eles próprios, a sua cenografia, a fim de ficar o mais perto
(a "amável Trézene") e a presença ~os c.orp?s e objetos: yt.. possível de sua visão dramatúrgica. Inversamente, cenógrafos
Da mesma maneira, os atores sao divididos entre a lmobill':'<" acabam, cedo ou tarde, por passar à encenação: Yannis Kokkos,
dade trágica e os impulsos passionais de seus personagens. Seus/ Daniel Ieanneteau, Alain Timar, Éric Vigner especialmente,
deslocamentos entre esses dois polos da ficção e da presença fí~:' vindos das artes plásticas ou da cenografia, dirigem atualmente
sica conduzem os atores a uma dupla atuação, ora formal e até seus espetáculos, como se temessem ser absorvidos pela ence-
fria, ora psicológica, ora histérica. Toda a representação obedec, nação. Quer dizer, isso ocorre pela imbricação e pela conver-
ao mesmo princípio: cria a atmosfera angustiante de um c~aro' gência das duas artes e das duas práticas.
-escuro, porém às vezes sublinha cruamente, com um projet Ao montar a peça de Margueríte Duras, La Bête dans la jungle
do tipo "perseguição'; uma ação como no c~rco ou no mu:,c-?? (ABesta na Selva) (2001), Eric Vigner tratou plasticamente a adap-
quebrando então o clima para melhor subhnhar uma açao fís~ t~ção cénica de James Lord que Duras retomou, ela própria, para
decisiva. Graças a esse duplo jogo da cenografia e da encenaçao o,palco. A~ térmi~o dessa série de reescrituras torna-se impos-
o corpo da atriz (o de Dominique Blanc interpretando Fedra, p SIVe1, e, aliás, sem Interesse, retraçar a origem da ficção, avaliar
exemplo) transmite essa impressão de dilaceração tão caract a "autoridade" dessas adaptações sucessivas ou estabelecer-lhes
rística de Racine. A impossibilidade do olhar frontal, enquadr .cl-:ramente a fábula. A cenografia tomou nota desses embara-
do, estável, confere ao espectador o sentimento de assistir a -;.;.Ilfàmentos de textos, de sua superposição e de sua relativa ile-
torneio trágico cujo desafio ele não sabe qual seja. A cenogr '. ·?Vidade. Es~olheu um dispositivo análogo: uma imagem que
de Peduzzi, a iluminação claro-escuro de Dominique Bru ;t"T~te para alem dela mesma, para outra imagem, tal como uma
("que torna o público mais atento com uma iluminação somb . :.:._e d e aparencias,
.se , . d esencad eando sempre sobre novas aparên-
ou quando ocorre uma luz plena'"), a direção de Chéreau,;. <,:Todo vazio abre-se sobre um vazio. A decoração aparenta-se
"dupla interpretação" dos atores, tudo corresponde a esse du~ ~e~te com um castelo medieval e uma floresta virgem, dos
princípio do espaço: ora uma imagem distante fantasmal.' us nao se saberia dizer qual é um e qual é outra. Periodica-
uma ação próxima e imediata. A imagem distante do fanta ,l)te: uma cortina translúcida separa, por um efeito de ilu-
,;açao, o palco da plateia, incitando o espectador-voyeurista
5 A. Díot, Les comédíens, Actualité de la scénographie, n. 100, p. 37. ~f~eber essa misteriosa separação, a fim de penetrar nesse
92 A ENCENAÇÃO CONTEMPORANEA
TENDÊNCIAS DA CENOGRAFIA NA FRANÇA
93
universo proibido. O herói masculino parece sucumbir ao tabu,
à interdição de dizer em que consiste seu mal e o que representa
ao certo essa besta escondida na selva. Trata-se de uma doença
vergonhosa, da homossexualidade, da paixão devoradora, da
indecisão ou de outra tara? Esse tabu é, em todo caso, figura-
do plasticamente através da impossibilidade de deter-se numa
imagem ou fixar-lhe o fluxo constante. A solução de Vig-
ner consistiu em jogar com 'a caixa cênica como espaço aberto,
transformando-se magicamente na medida em que se aproxima
dele pelo olhar, assim que se tenta descobrir o mistério das ima-
gens em série. Os cenários sonoros evocados pela trilha sono-
ra e pelas iluminações transformam sutilmente a natureza e o
estatuto ficcional dos lugares, a encenação gera uma sequência
de cenários imateriais e cortinas de imagens cénicas em fuga
constante. Dessa forma, a cenografia, perfeitamente senhora dos
seus procedimentos, trabalha com os meios da ilusão e da suges-
tão mais do que com materiais reais. No interior dessa imagem Marguerite Duras, A Fera na Selva, encenação de Éri TT.'
u Th .. d c vlgner.
rato eãtre e Lortent. ©Alain Fanteray,
quase virtual ou hologramática, percebem-se os corpos muito
reais dos dois atores, porém eles são absorvidos, de certo modo ~
desrealizados, pela fantasmagoria visual. Para esses corpos reais ' entretanto, no centro da cenografia e da arquitetura teatral.
Vigner criou uma figuração turva e vaga, um lugar ardiloso que t Como a maior parte das pessoas de teatro da atualidade, Jean-
é mais facilmente adivinhado, desejado, fantasmado do que ver- l. neteau
.. concebe
. os mesmos a servico" do ator: "na-o eXlSlste ar-
dadeiramente percebido e identificado. A cenografia e os "corpos í: quítetura ideal. Existem apenas projetos singulares [ ... ]"T'
- Lant o
dos artistas'" são mais fantasmagóricos do que reais e se corres- W de teatros quanto de corpos de atores'",
pondem perfeitamente. A cenografia do palco é máscara e escon- I: A regra de ouro da cenografia - colocar-se à disposição do
derijo destinados a dar a entender uma voz, a fazer imaginar e Jr atar, e não o contrário - verifica-se perfeitamente na . _
lá - d - cnaçao
fantasmar o espectador, ao invés de embebedá-lo com imagens i p stíca e Vigner e na da maior parte de seus colegas, Porém,
e representações mentais, i tudo permanecendo a serviço da ideia cênica, a cenografia en-
Com essa obra de Vigner, a arte da cenografia parece te, ~
chegado ao fim de sua longa trajetória ocidental: à última eta-
pa (que, contudo, já era a da encenação simbolista), a da dis-
I contra n~ teatro contemporâneo um novo lugar, mais provoca-
dor: particularmente em sua relação com o texto: não se trata
mais de ilustrar ou explicar, mas sim de produzir um imagí , .
V1S I - I mano
solução do corpo dos atores na imagem e na virtualidade do ua , meio rea , meio fantasmal, que se transplanta igualmente
fantasmal. Os atores não são, para tanto, transformados em ma-_J para os elementos sonoros e abstratos. São questionadas espe-
ríonetes, conservam o seu corpo feito de carne e sangue, porém I: cialmerite, as hierarquias tradicionais entre texto, interpr~tacão
sua presença é discreta, intemporal, muito mais próxima dª do ator e,:nterpretação geral por meio da encenação. '
ideia do que da matéria, estando "por fora de qualquer épocae; Est~ des-hierarquização" é visível nas criações plásticas e
de qualquer acidente'". Os "corpos dos atares" permanecem. cenog;aficas de Alain Timar, aquela, por exemplo, do Livre de
ma mere (Livro de Minha Mãe).
fi É. Vígner, LArchitecture au théêtre, Actualité de la scénographie, n. 100. p. 56;;::::'!
7 P.Quillard, De l'inutilité absolue de la míse en scêne, Révue dàrt dramatique, p. V,<; 8 Ê. Vígner, op. cit., p. 56.
94 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA TENDENCIAS DA CENOGRAFIA NA FRANÇA 95

4. OS ECOS DO ESPAÇO

A "deshierarquização" de elementos da encenação caminha pa-


ralelamente ao uso original do espaço, o qual se prolonga na
palavra e no som. Na sua adaptação da narrativa autobiográfica
de Albert Cohen, O Livro de Minha Mãe, A1ain Timar propõe
uma montagem sutil da narração filial que evoca a lembrança
da mãe. Ele não reconstituiu uma fábula dramática nem um
diálogo entre filho a mãe, pois mesmo escritas na primeira pes-
soa, as palavras são mais líricas e obsessivas do que dramáticas.
A fim de evitar a monotonia de um longo monólogo, Timar
imaginou novos modos de enunciação, dramatizou a narrativa
ao cindir a voz do narrador em duas instâncias: a do protago-
nista e a do autor, aquela do músico-compositor que comenta a
narração através do contrabaixo, até mesmo pela palavra. Esse .
dispositivo da narração é completado por uma cenografia que Albert Cohen, O Livro de Minha Mãe, encenação de Alain Tímar,
com Paul Camus e Stefano Pogher; Avígnon, 2003.
mobiliza e desloca grandes quadros abstratos de cerca de dois Foto Théãtre des Haíles. © Manuel Pascual.
metros por dois; telas inicialmente viradas e colocadas nos três f
lados de um palco frontal muito profundo. Os quadros vêm ~ tempo para contemplar cada uma das telas descobertas, não
barrar progressivamente o largo horizonte para fechar o espaço, ,. está num museu onde seria o dono do ritmo visual e temporal,
para sugerir pedras a cair ou m~ros indalevassáveis. Timar não .~".~_.., nem durante o espetáculo nem depois. Ele Se acha embarcado
colocou em cena telas como o razern, gumas vezes, os pin- 1, numa ação dramática que utiliza os espaços cênico, musical,
·rr·
tores que trabalham para um espetáculo; suas telas não estão ,·tE, pictórico e gestual, de acordo com as necessidades do discurso
congeladas para uma contemplação museológica, elas se inte- ';1. da encenação. A cenografia, num sentido amplo, é uma assem-
gram à narrativa do jovem e aos dispositivos dela resultantes.sji blage de elementos dispostos no espaço e no tempo, porém es-
Essa manipulação feita pelo protagonista não é, absolutamen- ;~ ses cronotopos não formam entidades sintéticas ou cinestéticas;
te, a única e tem lugar apenas durante algumas interrupções .'f não há entre elas nem fusão nem correspondência. Ao invés de
do diálogo. Esse dispositivo espacial presta-se à enunciação'~ uma obra de arte total ou, inversamente) de um distanciamento
da palavra e para acompanhá-la pelo contrabaixo. Os lamen;'& recíproco das artes, a encenação estabeleceu um jogo de ecos
tos do filho, as evocações lancinantes de suas lembranças sã~~~; entre os significantes sonoros ou visuais, de passarelas entre o
ritmizadas pelas intrusões da música. A composição musica!!! .' espaço e o tempo. O espaço e o tempo, a música e o texto, o
é, igualmente, muito mais do que um acompanhamento Oq'(:; presente e a lembrança, acham-se reunidos e misturados. En-
baixo contínuo, ela se constitui numa obra em si mesma. NãQ~1 i c~nar é procurar o outro do texto, é fazer trabalhar juntas as
se contenta apenas em comentar ou ridicularizar a linguage~!~ sen,:s de signos da representação, de modo tal a produzir uma
exaltada do filho: infiltra a linguagem, cria um espaço musical:!~ . reaçao em cadeia e um efeito no espectador. Esse efeito e essa
dá aos espectadores a oportunidade de perceber as telas no fun;t. reação em cadeia manifestam -se no lamento lírico do filho
do sonoro de uma música mais engraçada do que trágica; faJ.~i prolongam-se e intensificam-se na vibracão do arco do violino'
com que se compreenda o espaço da memória de uma manei'ti mas também na vibração cromática e plástica dos quadros e do
ra ainda inaudita. Entretanto, o espectador-ouvinte tem poucp:\~ espaço. Fazer uma cenografia é prever essas reações em cadeia
Ji
3
A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA TENDf:NCIAS DA CENOGRAFIA NA FRANÇA 97
96

o espaço vaZI'0 , é transformar em tempo . e em narrativa aquilo rapidamente esboçadas, os sainetes de dois ou três personagens
n ém da espacialidade e da música, reconstituíam situações típicas da imigração clandestina, sempre
q u e Com
prov . .
'Tirnar, assim como com os outros artistas a.qUi evo- com a mesma obsessão por esses danados da terra: abandonar
os a cenografia desembocar em uma prática global o seu país, entrar na Inglaterra. Diante do espectador ultrapas-
cados, vem . . . d
maticamente) não se dístingue mais da arte a encena- sado pelos acontecimentos, o mundo recompõe-se sem cessar
q u e, prag . di"
sa forma de proceder, corrente hoje em a, cenogra- segundo uma combinatória dos mesmos elementos miseráveis.
ção N es !' . _
,; é escrever com a cena por meio dos atares e com atençao Nessas mansões oscilantes ao bel prazer dos fluxos migratórios,
far rpo e o espírito do espectador. O corpo vibrante do os corpos ficam espremidos, sobrando então muito espaço no
P ar a oco d
ator toca o esp ectad o r' essa sensível placa vibrante, sob to os os vasto mundo. Cada mansão contém um estranho mundo, confi-
dos os seus aspectos; atinge-o, simultaneamente, em
ventoS e to . _. - . d nando-se numa miserável biboca, numa cabine telefónica, num
íveis ' visão audição, intelecção. A partir esse mo-
to d O'S os n .) .' . posto da alfândega ou da polícia. Porém, tudo se reduzia, igual-
mento) c nog
e r afia
) música e texto não .mais se distinguem. mente, a um mundo em si, a um universo evocado por alguns
gestos e grunhidos. O espaço não era mimético, e, todavia, os
':t- detalhes do figurino ou as atitudes eram justos, o gestus da vio-
A MIGRAÇÃO DOS MICROESPAÇOS y; lência exato. Tais mansões heteróclitas, como que fabricadas às
5.
~;~
pressas, reconstituíam mundos concentrados; distintos universos
Dessa forma, portanto, a cenogra~a amplia o seu.poder a_pon-;1l; culturais instáveis, ilhotas de microssociedades à deriva.
der a sua especificidade. E o sinal de sua mtegraçao no.~.. O quarto muro do palco não significava senão a fronteira
to d e per . [Id. d - , tl ,.
.n n t do espetáculo. Se as maiores fide I a es sao artts icas, ;.l que esses infelizes tentam ultrapassar para chegar a nós. Com-
con J °as entre encenadores e cenógrafos parecem particular-.',•.·
l
asalanÇ . d F ··lé preendemos a sua miséria e a violência que ela veicula. Não
mente duráveis. A de Arian~ ~nouchkine e Guy-Clau e , ran- ;~, sabíamos mais, rapidamente, com quem nos identificarmos
çoís remonta a 1975 para a cnaçao da Idade de Ouro. Nessa epoca ..~ espacialmente: tínhamos que temer a sua invasão ou, ao con-
heroica, a tarefa do cenógrafo consistia, ~ntes de mais nad~, e~;~~ trário, colocarmo-nos ao seu lado na tentativa de ultrapassar
remodelar o espaço arquitetural do mteríor ~a cartouch~rze (fa-I a fronteira e partilhar o nosso espaço? Oscilávamos entre os
brica de cartuchos), transformando as rela~oes espaciais entre N~: dois mundos e a cenografia produzia o mesmo efeito de en-
palco e plateia. Porém, depois das encenaçoes de Shakespeare iri colhimento, angústia, como se começássemos, também nós, a
rios anos de 1980, a posição do públi~o ~ontmuou a m~sma:'*I'; sentir o solo afundar sob nossos pés. Uma vez mais, constata-
banquetas pouco confortáveis, embora convldatl-,., '.
sentad os em . . al' , mos a adequação entre a dramaturgia, a cenografia, a atuação
ra sua incitação à promiscuidade, fazem frente a um p "..}fi;.. dos atares e a sensação física dos espectadores.
vos pa it grande que domina de muito a1to. O pu'bl'iCO a dmíra mlra.',.' .!li
•.~.
CD mUI o " d.'~->:li~
as instrumentos musicais de Jean-Jacques Lemetre, ls~ostos.;~i
em círculo. Para Le Dernier, Caravansérail (odyssées) (O U1tunoi;~'. 6. O SILÊNCIO DO ESPAÇO
B are
êm da Caravana [Odisseias]), Mnouchkine preservou ess~,il.
dí . idí d .'~
mesmo espaço aberto e frontal, porém os rversos eplso lOS e;,:~ Não há, no fundo, nada de espantoso no fato de que a cenogra-
senrolavam-se em pequenas construções sobre :odmhas colo:,"!!! c fia esteja perfeitamente integrada à prática atual do teatro, visto
cadas e retiradas por assistentes de palco que nao paravam d~.;~ que o seu progresso coincide com o aparecimento da encena-
manipulá-las para sugerir que tudo se encontrava em mOVlme.n,.,~ ção. Na atualidade, os cenógrafos a concebem preferencialmen-
to instável, que o mundo (o palco) era vasto, mas que os refugla}~ te como um lugar dedicado à palavra e ao silêncio. Com Daniel
dos estavam nele espremidos. Tanto quanto pequenas vinhetas.,f Ieanneteau, e com muitos outros, a cenografia está no centro do
98 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃ.NEA TENDf:NCIAS DA CENOGRAFIA NA FRANÇA 99

dispositivo da encenação, porém ela deve saber apagar-se, não de Tintagiles (A Morte de Titangiles), de Maeterlinck, ou para
pretender mostrar-se como obra de autor, mas servir ao texto ou Quelqu 'un va venir (Alguém vai chegar) e Melancholia (Me-
exercer a intenção de fazer-se silenciosa: "Para acolher a palavra, lancolia), de Ion Fosse, eles começam por liberar, o máximo
o espaço deve evitar o sentido, incluir uma certa conformação possível, o espaço ao redor dos intérpretes, concentrando sua
de sentido, mas sem chegar a ser o próprio sentido. Não é senão atenção, e a nossa, no corpo falante do atar. Não se trata tan-
depois, sob o efeito do sentido emitido.pela palavra, que o espaço to, para a cenografia, de realizar a ideia visual da peça quanto
pode oferecer a possibilidade de converter-se e preencher-se de de moderar o percurso dos comediantes e de fazer lentamente
significados'". Régy procura, por seu lado, "manter essa massa emergir o sentido para os espectadores. No espaço esvaziado
do inconsciente que emana do texto e que, ao fazê-lo, reencontra por [earineteau, para a apreensão da palavra dos atares de Régy,
com o inconsciente dos espectadores. Para que esse reencon- a encenação provoca no espectador uma moderação motora e
tro possa acontecer, a encenação deve fazer-se muito discreta, psíquica comparável, de resto, àquela dos comediantes que pa-
deixando passar tudo o que quer passar com o objetivo de que recem estar em estado de hibernação. Com estes dois descons-
os espectadores possam deixar-se invadir pela matéria viva da trutores associados, fascinados pelo vazio e pela lentidão, assim
escritura, inventar e reencontrar o próprio autor. O público não como com muitos outros de seus confrades, a cenografia elimi-
terá condições de receber essa palavra e criar sua própria ficção na qualquer decoração supérflua, qualquer figuração notável,
a não ser que esteja muito disponível e que os seus sentidos es- " a fim de criar um espaço abstrato, Esse espaço não está mais
tejam a despertar. Falar muito baixo, mergulhar o espetáculo conectado à ação dramática senão de forma alusiva, porém não
sombra é uma maneira de favorecer essa conscíentização, é metafórica. Com Ieanneteaii, assim como com inúmeros Ou-
vimentar os umbrais da percepção e, quem sabe, fazer entender, tros artistas contemporâneos, assistimos a uma privatização da
de outro modo"!". cenografia: não no sentido da Bolsa de Valores, mas sim no de
Vemos que a cenografia e a encenação estão perfeitamente uma interiorização, pelo espectador, de espaços apresentados,
de acordo quanto aos seus objetivos. Um gosto idêntico pelo si-' de uma desmaterialização. Seu trabalho consiste em
lêncio e pelo vazio guia [eanneteau e Régy nas suas escolhas ce,
nográficas e lúdicas: um espaço aberto, neutro, não marcado, qu guiar o olhar em direção a novos espaços da consciência, em inte-
se supõe facilitar a escuta do texto o mais diretamente possível, riorizar os profundos desafios que pesam sobre os personagens ao
como se tivéssemos querido colocar em contato - velho fantas tecer sutis correspondências entre os seres e o seu meio ambiente.
ma! - o autor e o espectador. "O espaço do teatro se expande em suscitar espaços nos quais a força emocional e a beleza não pree-
na região híbrida que se situa entre a palavra e a escuta"!', po ' x~stam à representação, inadequados talvez quanto ao realismo. po~
rem elaborados segundo uma economia do imaginário que tende a
tanto, não se trata mais, aqui, de questionar o espaço vazio
situar no espírito do espectador o lugar real da aparíçãov.
Brook; um espaço muito real que seria necessário conquista]
ao se desembaraçar dos ouropéis do teatro burguês, mas si ".
Quando cenografa para outros encenadores, Jeanneteau
de um espaço simbólico, o do texto que não se reduz, de iní
',/eencontra uma imagem mais figurativa e simbólica: foi assim
cio, à sua significação. Régy e [eanrieteau preocupam-se men '
"para Pelléas e Mélisande, de Maeterlinck, montada por Alain
com a imagem cênica, concebida como um porta-joias pac
,.pllivier, no Teatro Gérard-Philipe de Saint-Denis, em 2004.
apresentar a atuação dos atares, do que com a visão interior,'
';2,gesto, nessa peça, era ainda ralentado e estilizado, a dicção
sua e a do futuro espectador. Na sua colaboração para La Mo
ixoluntariamente artificial e correta, porém a figuração cênica,
9 D. Ieanneteeu, Quelquer notes sur le vide, disponível em: <www.remue.net> )"~reflexão da água, por exemplo, reencontrava os sortilégios
10 C. Régy, Entre non-désir de vtvre et non-déstr de mourlr, 'Ihéôtre, p. 14.
11 D. Jeanneteau, Entretien avec Geoges Banu, NouvelIe Revue Françoise, p.IS. ~fi:~,? Idem, p. 170.
----
tOO
A ENCENAÇAO CONTEMPORÂNEA
TENDJ:.NCIAS DA CENOGRAFIA NA FRANÇA

de troca entre os componentes outrora separados do espetácu-


101

Strehler OU de um Chéreau, a beleza estetizante e a at- lo (ator, som, texto), O espectador está, doravante, convidado a
de um sfera do teatro d" o mexpnmive,, 1 d e M aeterI'mck . Entretan-
repetir as escolhas plásticas da encenação, para seguir o espaço
j-n O o princípio de uma imagem trabalhada, fantasmagórica,
em ~oldas as s~as ramificações no interior do espetáculo. Em es-
tO'locada à distância e inacessível a qualquer outra coisa a não peCla , os cen~grafos t~?, sabido integrar a dimensão temporal
co ~antasma não impediu a utilização, no primeiro plano, em suas cnaçoes, pOIS a duração do ato teatral é a duração do
ser
d uma ao 1· passarela
'
que atravessa toda a largura do palco onde espaço. O espaço deve ser marcado pelo tempo"!".
e OS conversavam, como num primeiro plano. A cenogra- Não existe mais, pelo menos na França, estandardização da
grup
fia brincava, assim, com a proX1mi , id a d e e o afastamento.
c.
Ao cenografia, e quanto a esta boa nova do começo, ela se enxerta
e, a imagem gerava uma atmosfera graças à obscuridade, , ', ' numa outra: a arquitetura das plateias rejeíta, no prese t
1às g
onsombras, aos re fi exos da
a agua; no primeiro pano
á 1 50 b re a
. ' . I' 1 n e, a
p1atem po i:,a ente que os edis, tão económicos quanto igno-
assarela, as ações foram decupadas e colocadas em epígrafe; ;, rantes, nos impuseram nos anos de 1950 e 60 . Será que ) d epOIS '
~s atores e seus personagens parecendo tangíveis, táteis, fisi- ~. das casas populares dos anos de 1930, das casas de cultura dos
cam
ente
presentes, o espectador ficando convidado a construir r, anos de 1960 e 70, dos espaços polivalentes dos anos de 1980
mentalmente esses subespaços, a combiná-los de acordo com ,.;<',
I; e 90, o teatro
b . vai acabar retornando aos edifícios ' ao ab an d 0-
as necessidades da encenação. f nar os a ngos para reintegrar as plateias à italianat " Tal s '
di 1 ' ena,
I ii
iz-se a gumas vezes, a tendência geral'. o teatro reto rnana,
' nas
(raras) novas construções, a plateias concebidas em princípio e
CONCLUSÕES GERAIS exclUSivamente para ele, pois os artistas e espectadores aceitam
7,
na atualidade,, a ideia de que_ não existe um po nto t iuear
td 1 para'
Dessa forma, os diferentes princípios da cenografia podem per-l ver o espetaculo e que eles nao podem senão "constatar até q
feitamente coexistir, contanto que o espectador torne grande ';~ p on t o a percepçao
- d e um espetáculo é modificada em consue-
arte na sua utilização. O importante persiste no projeto dra- quê?cia da mudança do seu ponto de observação na plateia"~6.
p atúrg e na harmonia do espetáculo com o lugar e com a;',: Porem, malgrado esta continuidade do teatro à italiana, esses
ico
:cenação: 'i\ssim que a cortina se levanta, é o espetáculo que 'I, teatros ~arecem atualmente obsoletos, visto que as sociedades
conta, certamente graças à sua adequação ao lugar e à maneira " que os Viram nascer findaram. A despeito dessa herança muito
como é pro d UZiid o"13 ' pesada, o teatro está incessantemente sendo repensado e deve
encontrar formas e arquiteturas novas.
A conclusão deste sobrevoo era previsível desde o começo: .j; De ma?eira análoga, a cenografia e a encenação relativi-
não há, na França ou outro lugar qualquer, a cenografia, mas ;§ zam' tambem elas, a ideia de um ponto de vista central ótimo
sim os diversos projetos cenográficos. Mesmo que os resulta-r.ê para o espectador e sua análise. Elas encorajam o percurso pes-
doS revelem muitos dos pontos em comum, não se teria condi-;~ soal e a descoberta individual. Se bem que o palco seja frequen-
cões de propor uma tipologia de cenografias. Regozijemo-nos~,;~ temente tornado frontal, até "à italiana'; o público é convidado a
portanto, pela riqueza ,de. criações plásticas e de sua conexãq~t de um lugar ou de uma zona a outra, a localização sendo
incessantemente mais j ntrma com a arte da cena·/,~;t ""u"," vezes livre, o "cliente" livre, também ele, para construir
diferenca
, dos:
anos: de , não
1960,' : se concebe
" , mais
' ofteatro.'i-t\
. Si mesmo o encadeamento temporal, espacial e causal das
À
como uma "máquina de ver" (René Allio), e sim corno um lugêf'"l'.
14 Y. Kokkos, Entretíen, opus, n. 84.
15 J. Chollet:. Marcel Frey d eronc,
c d L es L'teux sceniques
, , en Prance
13 V. pabre, J- Perrottet, La posttíon du spectateur; Actualtté de la scénograpiw- I, Hourbelgt, Le rap pori s ae-scene,
li' . , de la scénographie,
Actualtte . n. 100, p. 14.
n. 100, p. 6. -
fw
102 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA K[
~'­
cenas (ver Odisseias). Afastamo-nos das cxpcrlências cênicas ~
extremas da vanguarda dos anos de 1920 ou 1960, do envi- ~
ronmental theatre (Schechner), do percurso livre do público I
(promenade performance), de lugaresfialterdnativos desvirtua- ~ Quando uma peça acaba de ser escrita, ou caso nunca tenha
~_
dos. Porém, as experiências _cenográ cas o momento, mais
modestas e menos contestadoras, são tão exigentes quanto às
da ex-vanguarda. Não tentam mais impress ionar o público, co-
ª
~.
sido interpretada, como analisá-Ia para sua montagem?

Nenhum precedente se oferece para servir-lhe de modelo,


nem mesmo para nos opormos à tradição de sua interpretação.
locando-lhe a ampla visão de uma vitrine de materiais chiques, ~
Tudo está para ser inventado, como nos demonstra
um decorativismo muito high-tech ou high-class ou monstros I.·'•.·•. o "pôr em jogo" (mise-en-jeu) dessas peças.
tecnológicos dignos da Broadway ou de Hollywood. As novas
experiências cenográficas contam muito mais do que antes com Há o que temer dessa liberdade.
o imaginário do espectador.
A grande maioria dos encenadores, porém, não se intimida.
Se conduzirmos nossa investigação para outros domínios
Já viram outras piores. E mesmo que fiquem divididos entre
afora odo teatro de texto e de pesquisa, como o das artes plás-
a angústia de desgostar o autor (pois muitas vezes é seu amigo)
ticas, do cinema, das instalações e das multimídias, provavel-
e o receio de não conseguir achar um caminho para entender a
mente constataríamos que a diversidade e o dinheiro foram
obra (ou um acesso mais por via banal do que por estrada reai),
deslocados para esses novos lugares. Entretanto, o teatro de
estão dispostos a colocar no palco o texto, sua palavra e até,
texto, de arte e pesquisa, sobre os quais muitas vezes estamos algumas vezes, também a sua honra.
falando aqui, não conservam menos o essencial da pesquisa ce-
nográfica e da radicalidade teórica de um Jeanneteau ou de Contudo, os autores, que sempre querem ter a última paiavra,
Braunschweig, nada têm de excepcional na pesquisa cênica con- dispõem-se a fornecer um texto que resista ao teatro,
temporânea. A custa de estender o seu campo de ação, a ceno- que seja stageproot (á prova do palco), como se costuma
grafia aproximou-se da encenação a ponto de não se poder falar de um impermeável que o mesmo é waterproot (á prova
distingui-las. Talvez resida nisso O sinal de sua maturidade, mas. lI' d'água), um texto que impeça, ou pelo menos modere,
a sua conversão cénica.
também o de seu resultado, de seu acabamento. No m,ollleIlto;"':;11f
portanto, podemos voltar ao teatro de olhos fechados. Sofrimento perdido.
Os encenadores dos anos de 1990 e 2000, filhas e filhos
dos grandes cenocratas da descentralização institucional
e da recentralização hermenêutica, não têm sempre a última
palavra. Porém, eies têm a última ação, o último cartucho:
rirá muito quem rir por último!

.$~rá preciso, neste caso, prever o que esses artistas da


;âtuação tramam contra nós outros, espectadores petrificados
por: tais textos inéditos, por essas imagens indizíveis?
:t'{çonsegUiremos aicançá-Ios?
·"b;
aa---
5. O "Pôr em Jogo"Textos
Contemporâneos*

Dois, senão três detalhamentos impuseram-se, de início, na


formulação deste título. Há, antes de mais nada, os "pôr em
jogo", não uma maneira específica de encenar. Talvez fosse me-
lhor falar de textos ao invés de peças, pois muitas vezes o ponto
de partida da representação não é nem um diálogo, nem mes-
mo uma ação dramática encarnada pelos personagens. E, final-
mente, por contemporâneo queremos designar textos escritos
ao longo dos últimos vinte ou trinta anos, sem prejulgar o seu
caráter inovador ou rotineiro.
O problema é saber se existe uma maneira específica de
encenar os autores contemporâneos, se é possível distinguir
ou vários métodos ou então se, como diria um persona-
,"0-·... de Koltes, "não existem regras; há apenas meios, há ape-
arrnas'".

Este capítulo retoma o texto de uma conferência pronunciada por ocasião do


colóquio: "La Scêne française contemnporaíne. éci-ire, jouer, enseígner'' (A
Cena Francesa Contemporânea: Escrever, Atuar, Ensinar), organizada por
Mary Noonan, em 2-4 de setembro de 2005. University College Cork.1vIeus
agradecimentos a Mary Noonan, Paul Allain e à Fundação Leverhulme.
Koltês, Dans la salítude des diamps de coton, p- 60.
106 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o "PÓR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 107

Questões que também não são retóricas, ao que parece, do trabalho de encenação; não aguarda a representação cênica
visto que se trata de verificar duas coisas: de uma parte, se uma para existir: encontra-se legível como qualquer obra literária.
nova escritura exige um método novo para sua encenação, e Não estamos mais, como nos anos de 1960 e 70, na situação
de outra se, inversamente, as pesquisas da encenação suscitam de uma escritura in progress, trabalhada na oficina, suscetível
novas maneiras de escrever. A estas perguntas responderemos de modificar-se depois dos ensaios com os atores. Tornou-se
de bom grado (para ser breve e ficar .com um ar da moda) que muito raro, pelo menos na França, elaborar coletivamente um
existem tanto métodos de encenação quanto de escrituras, e, texto ou contar com os atares no processo de sua criação. É um
portanto, nenhuma teoria está em condições de dar conta dessa luxo do qual nos distanciamos, fato que é lamentado por um
diversidade. Seria o caso, contudo, de esquecer que a história jovem autor: "O ideal para um autor seria poder trabalhar com
da encenação tem inscrito em seu repertório, após mais de cem t os atares durante o processo de escritura. Colocar em perigo
anos, inúmeras técnicas de atuação e de palco e que não as po- . ~ suas palavras graças à presença do corpo e da voz antes de se
deríamos ignorar completamente, na medida em que encene- 1 chegar a uma versão definitiva do texto de teatro'", A única coi-
mos o repertório contemporâneo. Não se podendo esquecer r sa de que dispõe no momento o encenador - como se dá com
um passado tão re~ente e marcante, nem r~mper totalme~te,}t os clássicos - é, assim, o texto acabado, tendo eventualmente
com ele, a encenaçao de autores contemporaneos acha-se, nao -F~:: a possibilidade de o autor vivo estar pronto para responder a
obstante, confrontada com problemas específicos. Não é fácil"( questões por vezes indiscretas e, no melhor dos casos, contan-
dar conta do antigo e do novo nesse tipo de encenação, pois seil do com atores dispostos a testar hipóteses de interpretação as
conhecemos muito bem os métodos da encenação "clássicà',Hll\ mais variadas e paradoxais.
as dos anos de 1950 a 80 (especialmente a das peças clássicas);%1 Apesar dessa liberdade infinita na leitura de textos con-
estamos, pelo contrário, desarmados, à falta de perspectiva his."ii " temporâneos, constata-se geralmente uma certa contenção na
tórica, perante a diversidade de encenações contemporãneas.jj , "solução" adotada, como se o encenador não ousasse ou não
Se devemos a partir disso, pelo menos no momento, renun{~ desejasse substituir-se ao autor, impondo, para começar e antes
ciar a qualquer tipologia de escrituras, bem como de técnica..·· de mais nada, uma visão e uma apresentação muito pessoais
de encenação, estejamos liberados de analisar quaisquer casos com relação a uma peça que se trata de "publicar" cenicamente,
particulares. Gostaríamos de descrever alguns procedimento ouseja, de torná-Ia pública, fazendo com que, de preferência
do "pôr em jogo" de textos contemporâneos a fim de recons e. sobretudo, se torne conhecida do público. Sem dúvida, isso
tituir pacientemente o puzzle da produção atual, de distingui explica por que a encenação de peças contemporâneas, mesmo
alguns casos de formas exteriores e de projetar, a mais long que "dopadas" devido ao trabalho muito espetacular sobre os
prazo, um panorama e em seguida uma tipologia de prátic . clássicos nos anos de 1950, 60 e 70, adota um perfil baixo, pare-
cênicas. Os exemplos foram escolhidos mais ao acaso dos e cendo rejeitar os excessos e os efeitos de encenação. O começo
contros, dos registres, dos gostos pessoais do que em função ; dos anos de 1980 marcou uma reviravolta: a crise ligada aos
uma teoria de conjunto e de uma visão sistemática. Tais exe '.:j~Jq:essos (visuais e financeiros) da cena beneficiou certo ama-
pios levam a textos já publicados (no decorrer dos três últim ~,~\!recimento dos artistas e um impulso no desenvolvimento
anos), a textos «acabados", ou seja, que não estão mais ao sa :!;:ª~,escrituradramática, encorajada pelo sistema de subvenções
de possíveis mudanças em decorrência de uma oficina de esc . 'l"?:,:Vesidências e pela necessidade de montar produções ligei-
ta ou de interpretação, portanto, julgados "acabados" por s ~.e menos custosas. Essa crise da produção teatral beneficiou
autor, mesmo que este se reserve o direito de proceder a mo ..' ai~utor: "No começo dos anos de 1980, o autor francês é um
ficações posteriores. Um texto dramático desse tipo não é, e
princípio, modificável nem adaptável; constitui a base sóli . 'Théâtre Ouvert, programa da temporada 1999-2000, p. 17.
-----
108
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

, . l'mgua e se u
o "PÔR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 109

, defendendo sua propna a baixeza e a artirnanha lamentáveis. À maneira de um per-


a SI mesmo, , f
ser entregue, 1 mo quando, tal como Koltes, de ron- .sonagem danado de Genet, transmite uma imagem do negro
, 'o smg Ular mes "3 A
imaginar! d s do mundo contemporâneo. en- voluntariamente negativa, projetando em si mesmo todas as
as desor en
taU-se com , das peças de Koltes a partir de 1982 e expectativas, medos e agressões dos brancos. Constrói seu per-
- por Chereau,
cenaçao, aturo deste último em 1989, marcam sonagem com grosseria selvagem, suja, deseducada, Para mos-
cimento prem d
o desapare .d d de ouro da encenação de gran e es- trar o funcionamento do racismo e do poder, ele demonstra a
oentre a 1 a e
-

a translçao . , . d uma nova escritura, Damo-nos conta construção de uma identidade fictícia, distante do essencialismo
, 1 os IUlCIOS e ,
petaCU o e ndo o exemplo de Combat de Negre et: koltesiano, de sua visão "em branco e preto" dos conflitos raciais.
'to bem, toma h'
disso mUI b d Negro e de Cães), criada por C ereau o, Gottschef sugere, assim, que cada um de nós é potencialmente
de Chiens (Com ate de sua reprise por Dimitri Gotscheff em #. racista, e que a identidade racial é apenas uma construção feita
em 1983 ' bem como h dee Berlim Os outros exemplos de nosso"" através do olhar do outro. Do que resulta a inversão de todos
200 4 na Volksbü ne_ de peças. de M.arie Nfziaye,
. Catherine]
erme , os estereótipos: o negro fareja com desgosto o branco, que se
encenaçoes '1' ,
corpus,Nas elle Renau de Eugene Durif Michel Vinaver e GI one ';"0'" veste ridiculamente com uma saia de folhas etc. Gottscheff (que
,' ,
Anne; o t d s entre 2002 e 2005, confirmam essas '-I!: nos anos de 1980 montou essa mesma peça seguindo o realis-
t das apres en a a _ "
Brun, o d as dificuldades de uma encenaçao ver- a mo de Chéreau) faz retornar, desse modo, esta tragédia con-

~:~~;=e~~e';:~e:~orânea. :f temporânea de ideais muito imobilizados para uma mascarada


debochada, sugerindo unicamente que qualquer construção
identitária é construível e desconstruível. Continua, certamen-
T DE NEGRE ET DE CHIENS (COMBATE DE "i te, a denunciar o racismo e a frouxidão dos brancos, porém o

1. ~~~:~ E DECAES)'~,. faz jogando com as identidades e deixando para os atores a


possibilidade de criar e demolir sua própria identidade racial.
ão de Gotscheff de Combate de Negro e de Cãe:~~ . . As noções de identidade fixa, autenticidade, presença, são ridi-
A encenaç to àquela de Chéreau e, sobretudo, pai?; . cularizadas num jogo infinito de desconstruções e diferenças.
opõe-se, ponto a lP'oniC~ com as teses de Koltes. Em Nanterr,.i.·~:, Concebida dessa forma, a encenação de Gottschef coloca em
trar em po e m , . 1 b . ,'; .: questão a apresentação do conflito. Para o encenador búlgaro, o
receen it . 1 uma atmosfera afncana: ca or, rum~l~:t.,::
' reconsti un, d -''I
Ch ereau , tas atores europeus e africanos. Quan9,~ . racismo não se apresenta como um conflito de ideologias, como
lh vestim en " ' - ' uma visão contraditória do mundo, mas sim como um jogo de
baru os:, ação a peça estigmatizava de forma mat,.:.· '.
n m elr a encen , - d " . se -,
d e sua P . d s brancos. Alboury, o irmao a vltlm%,. c' .construção. Alboury é apenas uma construção vazia, uma pro-
. ' ta o raCiSmo o dá d .•.• c.
mquelS , gra que vinha reclamar o ca aver e seW'.' -,:. jeção dos ódios e medos dos racistas, Essa construção, volun-
Antlgone n e . ir}~ "
era uma d Cal o assassmo branco, Em Gotsche.l\\l\- tariamente exagerada e paródica, permite denunciar a maneira
-ao, tendo mata o , ·'ip
irm fi 1 d drama Horn, o engenheiro branco, te\)"·" ,',do racismo projetar no outro aquilo que não pode suportar, e ao
ltdo n a o , ... - •:Aual atribui outras tantas taras. Ao ridicularizar os esquemas hu-
por vo a bra para comprar o silêncio de Albou.,
última mano . ,
ta uma _ tado por um ator branco grosseirame..' "'ll)anistas e liberais, Gottscheffescolheu um nível de ficção total-
Es t e ' ltimo mterpre , .
u, diverte-se em imitar os estereótipos q .')p.1ente diferente e se apoia em convenções de interpretação mais
' f do em negro,
d IS arça ram dele. Entrega-se a uma mascara :;,,~róximas do music-hall ou da stand-up comedy. A Afríca é uma
. tas brancOS espe ..
oSracIS fu dir Horn com o intuito de desmascar ...~~perfíciebranca, vazia, que se cobre de confetes caindo ínínter-
para melhor con n I " , 'J1'ptamente desde a parte superior do palco. Alboury é um aní-
.. théâtrales en Grande-Bretagne (1980-2000), $, W~dor de espetáculo branco que se dirige diretamente ao público
3 J.-N. I Lar1teri , Les .Ecntures
5 Dramaturgies britanniques (1980-20
00) 5 ""-
, p. " : : ;
ScOlltempormnes . ': ,poelo microfone, caracterizando-se na frente dele, deixando-o de
tufe, C bat de Nêgre et de Chiem.
4 P Chereau, om
110 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o "PÔR EM JOGO" TEXTOS CONTH'IPORÂNEOS III

lado, concluindo o espetáculo com piadas racistas sobre os ne- Marie NDiaye é autora de origem africana por parte de
gros e os búlgaros. Gottschef reintroduz Brecht à sua maneira, pai, porém nasceu na França. Não é, portanto, absolutamen-
à de Homem por Homem: o sujeito é fabricado na nossa fren- te uma escritora africana ou vinda da francofonia. Sua peça
te, o teatro é um meio de mostrar a construção de identidades narra a história de Papai, um homem negro que volta para
"naturais" com HIll distanciamento crítico. A encenação não se sua mulher branca depois de uma ausência de dez anos. Com-
contenta, desse modo, com uma inserção no gosto da moda. Ela preende-se rapidamente que ele retornou unicamente com
mudou completamente o sistema de enunciação, reduziu o texto , o objetivo de extorquir-lhe dinheiro. Tudo lhe parece legíti-
a um terço de seu tamanho e, sobretudo, denunciou o funcio- mo, visto que "precisa comer". Descobre-se que está prestes
namento ideológico inicial. Podemos, portanto, nos perguntar K a roubar, trair, mentir, abandonar o bebê que teve com outra
se se trata ainda da mesma peça. Esta, encenada por Gottschef, .~. mulher, viver às expensas de sua filha e retornar uma segun-
não trata mais da exploração neocolonial, mas sim da constru- • f' da vez para sua antiga esposa. O personagem é francamen-
te antipático, porém ele sempre foi vítima do racismo usual
ção identitária. Leva em consideração a mudança de atmosfera, (.
t"
o progresso da mundialização. Sob as aparências provocadoras e ~ de sua família afim. Mamãe dedica-lhe mesmo "um amor
lúdicas, atualiza a peça, adaptando-a à nova situação, fazendo de- .1.:.'.
ínexplicável?". Vai recomeçar outra vez?
boche por meio da maneira mimética e rnoralízante de abordar !. Papai Precisa Comer não tem nada de peça de tese. Não
o racismo, das normas do politicamente correto, este entendido .·•. ·.• .·.I~· dá respostas nem receitas, obriga o encenador a tomar partido
sobre o comportamento do personagem principal e, portanto,
a partir de um palco público. Sua provocação é uma zombaría.vj;
tanto da peça quanto dos anos de 1980 e 90, assim como da ma__ sobre a fábula. Será que a encenação não tem a tarefa, pelo me-
neira de tratar o racismo nos países onde reina de forma parti- > nos era uma de suas missões em seus inícios (por volta do fim
cular o politicamente correto, como na Alemanha e no mundo'. do século xrx), de fazer o público compreender uma história
anglo-americano. Ela anuncia um contra-ataque ao moralismo Cc complic.ada ou delicada, de sugerir-lhe um desafio ideológico
pequeno-burguês e apolítico, ao pensamento dernasiadamentef e psícológíco, de adotar um ponto de vista sobre a realidade e a
correto para ser honesto. .,' ficção? No decorrer dos últimos vinte anos, esquecemo-nos um
:-rli pouco de que a encenação pode ser também um instrumento
para julgar, discriminar, assinalar uma dificuldade ou sugerir
2. PAPA DOIT MANGER (PAPAI PRECISA COMER) uma solução. Quanto ao trabalho do atar, no presente caso
consistiu em influenciar o nosso julgamento sobre as ações e os
A reação de Gottscheff é a reatualização de uma peça já velh~.Nj per~onagen~. Bakary Sangaré, ator de origem malinesa, o pri-
e que remonta curíosamente à criação na Comédie- Française!i:~{ melro pensionísta afncano da Comédie- Française, desenhou
por André Engel, da última peça de Marie NDiaye, Papai Prê~:iit! com firmeza um personagem inicialmente simpático na sua
cisa Comer'. Como trata igualmente do racismo, essa obra~i~~ facúndia e candura, contudo, francamente detestável. O texto e
rica de ensinamentos ao se lê-la em confronto com a peça d~.~ r~presentação colocam o espectador na posição de Zelner,
Koltes. De que maneira essa peça e sua encenação tratam d' amigo de Mamãe, caricatura de professor, mas comedido e
mesmo problema e propõem uma solução cênica próxima, po Este nos fornece um ponto de vista sobre a ação com
rérn diferente, nUIU contexto ideológico que, não obstante,' podemos nos identificar e que tematiza nossa relação
muito delicado? ,com o outro, com o estrangeiro, com o negro:

5 M. NDiaye, Papa âoít manger. Idem, p. 95.


112 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
o "PÓR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 113

A cor da pele dele me enganou. pode ser, afinal de contas, a "mensagem derivada" da peça, o
Eu acreditava não ter o direito de odiá-lo. Qualquer ódio vai de
. mais importante, sem dúvida. Todavia, trata-se do fato de que
encontro ao politicamente condenável. [... ]
Ele comportou-se mal, que seja. Mas um negro, dizia comigo Engel assume, no programa, a defesa de Papai, que teria sido
mesmo, "abandonado por sua mulher e renegado por sua filhà' por ser
não é responsável por seus atos porque um negro é, antes de "muito difícil de lidar, atrapalhado e inútil'". Como bom bre-
mais nada e essencialmente, uma vítima. chtiano, ele interroga o possível sentido político da fábula: vê
Não existe negro. dizia comigo mesmo. que seja condenável nesse abandono uma metáfora da atitude que "alguns dentre
debaixo do nosso sol. [... ] nós introduzimos para nos divertirmos com aquilo que cha-
Tudo é culpa nossa, eu pensava. [... ] mávamos de 'o jovem continente africano": Este parece ser,
E se eu tivesse coragem, colocaria o dedo na sua cara. [... ] antes de mais nada, um aviso pessoal de Engel ao invés de uma
Mas será que a gente pode bater num negro? Ainda não tenho verdade ancorada no texto. É uma concessão feita também à
certeza disso".
instituição teatral preocupada com a ideia de que possamos
Po.deria a autora, Marie NDiaye, fazer seu personagem di- acusá-lo de dar prova de racismo ao condenar um negro, no
zer estas palavras, poderia condená-lo moralmente caso não caso presente mesmo que se acredite acima de qualquer sus-
fosse, ela própria, uma negra? Será que ela também "ainda não peita, visto que acaba por assumir-se como africano ...
tem muita certeza disso"? E toda esta situação depende, evi- Ao fazer uma comparação com o olhar de Gotscheff sobre
dentemente, dos contextos. De resto, será que seria preciso co- o mesmo tema, devemos admitir o "retardamento" ou a "pru-
nhecer a cor do autor, do encenador ou do atol' para saber se dência" dos artistas franceses. É verdade que a peça de Koltes
a sua crítica a um personagem antipático, porém negro, é ou';~ ganhou algumas rugas, que o debate em torno da identidade
não permitida? O público, a partir do momento em que ficae avançou consideravelmente, sobretudo no exterior da França, e
sabendo que um autor é negro, e Caso suponha que O autor não,!; . que estamos muito distanciados da posição "romântica" de um
sucumbe ao próprio ódio e a um racismo antinegro, sentir-se-~_:?} Chéreau ou de um Koltes sobre o "jovem continente africano".
autorizado a julgar objetivamente, e neste caso severamentc.aj] A paródia raivosa de um Gotscheff opõe-se a ironia mais sutil
conduta de Papai. André Engel parece ir nessa direção, e este';~ e ambí~ua de Engel. Se a encenação, da mesma forma que a
é o sentido de sua encenação, de acordo com o texto, parece-i!; iroma, e a arte de dizer sem dizer, estamos, com NDiaye e En-
-nos. Porém, em última análise, fica para os espectadores a ta:~~ gel, em pleno território irânico, racionalista e crítico. O deba-
refa de julgar. E se consultarmos suas notas de encenação nd';~ te .est~ aber,to: mesmo quando a própria denegação a qualquer
programa, descobrimos uma certa contradição com aquilo que"~ cnaçao artística permite não fracioná-Ia e incitar o leitor e o
acabamos de ver na atuação. Engel crê-se obrigado - ou eled,~j espectador a julgar por si mesmos.
é verdadeiramente? - a procurar para o personagem de PapàJí:l!
desculpas que não estão no texto. Zelner, escreve ele, seria obi~
cecado pela cor da pele de Papai. Porém, se Zelner está preq!;j LE BONHEUR DU VENT
cupado com a cor da pele, não o está (achamos nós) de form~~t (A FELICIDADE DO VENTO)
racista. Ou, mais do que isso, dar-se-á que a ausência de crítiS:~J!
a um comportamento moralmente condenável, por medo d{1 por si mesmo, este parece ser um dos objetivos da nova
Ser julgado racista, é também uma forma de racismo, uma co{~1í eSC'r;'''r,' tal é a pressão amigável, a doce violência que o autor
vardia por achar que não é "politicamente correto"? E istª;'i' ao espectador. Porém, o que acontece quando o autor
i~!
7 Idem, p. 65-67. ~-'i.~;;-'
Idem, p. 3.
114 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA o "PÓR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 115

encena, ele próprio, a sua obra? A Felicidade do Vento, peça Jane, nenhuma fábula é inscrita num tempo ou espaço reco-
escrita em 2003 e encenada no Théâtre de I'Est Parisien por nhecíveis.
Catherine Anne, nos dá a oportunidade de estudar a forma
pela qual o texto é transposto, quando o encenador conhece- ,.. Algumas palavras constituem a cenografia, uma cortina fechada
-Ihe teoricamente todos os arcanos. Será que o gesto do escri- cria novamente um lugar, que desaparece no mesmo instante,
tor repercute tal como o do encenador e dos atores? Será bom depois que a cortina se afasta. Algumas réplicas, um elemento do
encenador aquele que conhece os segredos de fabricação do figurino ou um barulho da trilha Sonora e todo o mundo exte-
autor dramático? rior aflora e dá sentido às palavras. "No palco, com o maior des-
Livremente inspirada na vida de Calamity Jane, A Feli- ~ pojamento, procuramos proporcionar os traços exteriores dos
cidade do Vento' conta a história de Jane. Esta teve que entre- t mundos interiores"!', diz Catherine Anne. No espaço vazio do
gar seu bebê para um rico casal, Helen e Iim. Em torno dessas ~. tablado, limitado às vezes unicamente pela cortina de palco, as
três mulheres - a mãe, a mãe adotiva e a filha -, articulam-se os . i.~ .• palavras densas e enigmáticas vêm furtivamente criar uma épo-
três atos da peça. A criança passa de uma mulher a outra sem ~ ca, uma situação, um lugar, um momento da vida. Disso resul-
poder retornar para a mãe verdadeira depois da morte de sua f tam esses efeitos de focalização, de grandes planos, de zooms em
mãe adotiva. Quando descobre o segredo de seu nascimento, [ certos lugares do texto. "Planos" de durações diferentes, como na
sua verdadeira mãe, Jane, já partiu para o,o.utro lado, para a ,.•.i·. montagem de um filme, sucedem-se e dão ritmo à representa-
margem da velhice e da morte. Se tal hístóría ressoa profun-.;~. ção. A atuação sublinha esses grandes planos por meio de uma
damente em nós é porque trata de questões universalmente •.. 1' expressão, um gesto, uma relação COm outra. Assonâncias, repe-
humanas: a maternidade, o apego à criança, o dilaceramento." • tições, formulações lapidares, atalhos na expressão, fórmulas que
da separação, a morte da mãe. Estas emoções primordiais são.~ . resumem a peça ("prefiro a felicidade do vento ao conforto das
suscitadas tanto pelo texto quanto pelo palco, com uma grande-.' .• casas""), tudo isso cria um fenômeno de regularidade, de abstra-
tensão dramática. As diferentes cenas parecem cuidadosarnente.,••. ção que, por assim dizer, "colocá' o texto no palco, estabiliza-o e
preparadas pela construção dramática: o reencontro, o quasçc'± . evita ter que ilustrá-lo pesadamente.
reconhecimento, o momento em que, conhecida a verdade,'';! No imenso tablado do TEP, na superfície de atuação e com-
mãe e filha "talvez se falassem, não obstante os milhares da' posição, o esboço é tanto visual quanto discursivo. A escritura
quilômetros que as separam"!", quando a morte de uma coin-;:;f cultiva a rapidez do esboço e do traço, esses momentos de rup-
'\'
cide com o começo de vida da outra. .,"" turas e silêncios, momentos em que o eco das palavras torna-se
À leveza da escritura - na maior parte constituída por cur{~~ audível. Um exemplo entre muitos outros:
tos versos livres que são igualmente retomadas de fôlego ~,tji
corresponde uma leveza na inscrição cê nica: deslocamentos.,~ JANE: Não preciso de dinheiro.
rápidos e furtivos, cenas que se instalam de relance e desap.a'!~ O dinheiro sempre compra
recem também rapidamente, uma caracterização minimalist~;/~; Eu me viro
uma cortina que afasta o que acabou de ser mostrado. Escritur-~~ Toma tua grana, Iím, obrigada pela visita
Pra fora
e atuação coincidem na mesma rapidez e simplicidade de tral,iI!
Saiam todos
tamento: nenhum Far West escrupulosamente reconstituíd<il~ Preciso ficar só.!"
nenhum interior burguês, nenhuma diligência é atacada pqU;il
.{;J1~
':':;.",h
;r~ 11 Notas de Catherine Anne, dossiê da imprensa, Théâtre de l'Est Parisien, 2004, p. 5.
9 C. Arme, Le Bonheur du vento :~~ 12 C. Anne, Le Bonheur du vent, p. 29.
10 Idem. p. 87. .<:J~ 13 Idem p. 30.

;11
;-----
116
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o "PÔR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 117

A ausência de pontuação não impede as pausas, ao contrá- e revigorarem a interpretação. Um encenador "exterior" fará,
rio, facilita, e as torna indispensáveis. Há alguma ambiguida- então, movimentar aquilo que tende a estabilizar-se no texto
de sintática, e apenas a consciência das unidades respiratórias, para tornar-se um pouco mais seguro de si.
que contribuem para organizar o pensamento. A tipografia da
peça é como uma respiração, ajuda a encontrar a frase e, mais
tarde, o gestual do ator. A atuação de Marie-Arrnelle Deguy. 4. À TOUS CEUX QUI... (A TODOS AQUELES QUE ... )
restitui corporalmente esse fraseado (phrasé) defasada, essa
estrutura tanto respiratória quanto emocional e semântica. A Quer a encenação seja realizada pelo autor ou por outra pes-
estrutura ritmica é facilmente perceptível, mas também é re- k soa, é essencial ficar muito atento à fatura discursiva e retórica
lativa e ligeiramente modificável pela voz e pelo corpo; torna- f do texto. O encenador não pode se dispensar de ler o texto,
-se a base da interpretação e, por acumulação, da encenação ~. analisando sua pontuação e seu ritmo, de acentuar-lhe o tra-
no seu conjunto. A encenação não parte de um esquema ou r ço linguístico e discursivo. Essa atenção dada à textura pare-
de uma imagem preliminares, que a encenadora faria vir do t ce mais importante do que o ap orte de imagens ou impulsões
exterior. Ela é elaborada unidade por unidade, por meio de f exteriores, pelo menos para a encenação de textos criados na
urna sequência e uma acumulação de trocas, como resultado "i atualidade. Como prova suplementar, coloca-se a encenacão
de uma leitura que procura, de início, apoiar-se nas atitudes .'(" da peça de Noélle Renaude, A Todos Aqueles Que ... , apresen-
e deslocamentos da atriz, como também nos seus acentos e . ••.•. :.·.• tada no Festival de Avignon em 2005 por Claude Maurice e
entonações. Ioél Collot.
Considerando-se que a autora é igualmente encenado- • Os encenadores da Companhia Art Mixte, que são também
ra e atriz de formação, a estruturação ritmica e, em seguida, os dois únicos intérpretes dos trinta papéis, tiveram a boa ideia
a colocação no espaço (o blocking) das sequências se fazem de situar esses trechos de palavras, pontuadas por um brinde
quase simultaneamente. Supõe-se que Catherine Arme en- o'. ao redor de uma mesa, por ocasião de um banquete ou de uma
cenadora não tem que procurar o sentido de seu texto, e festa familiar. Os convivas parecem às vezes reagir e o lugar,
que encontre naturalmente a sua base rítmica, seu tempo, ..:l bem como a época, são igualmente reconhecíveis. Esta deci-
sua frase e suas entonações, em resumo) todo o dispositivo :{:' são da encenação está, de todo modo, em conformidade com
psicomotor do qual se deve partir para procurar a mínima ... o conselho de Noêlle Renaude de manter-se o máximo possí-
interpretação c ê n i c a . ' : vel próxima do texto: "É preciso tomar a palavra [senti-la], se
A ritmização dá o seu sentido ao texto. Com mais razão,'.. apoderar do palco. Amar o suspense que a pontuação oferece.
numa obra em que o silêncio tem tal importância. Portanto, nos .; Ter gosto pelo cruzamento, pela hesitação, pelo arrombamen-
é dado, de acordo com as palavras de Michel Corvin, "ver o si-': ." to, pelo risco que a língua assume ao nos contar histórias. Para
Iêricio carnal da encenação influir, aos saltos, na escriturà'14.':.::.V;: quem sabe olhar, tudo está lá indicado. E o personagem, se
Sem dúvida alguma, a encenação confirmou, e também SU""ifá acabará sempre por chegar"!", Este conselho é, no fundo,
perou, aquilo que a escritura propõe. Uma enriqueceu a outra%;;~ de um Copeau procurando encontrar o fôlego ou o silêncio
sem prioridade nem anterioridade. O corpo do autor prolon<':i autor, de um Iouvet à procura do "sentimento" ou da difi-
gou-se no corpo da encenadora, e, em seguida, no de sua in'!C[~ .CU1U<lae respiratória de Molíere, de um Vitez reconstituindo a
térprete (a atriz como espectadora). Resta a possibilidade, para\~' de seu mestre".
aqueles que vierem depois, de lerem o texto de maneira diversa:.\w

14 Mise eu scêne et silence, Revue desthétique, 0.26, p. 126. Dosstê de imprensa do espetéculo.Avígnon, 2005.
118 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o "PÔR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 119

cavar a diferença, quanto mais não seja para brilhar na arte da


metamorfose e da imitação, uma arte em que são excelentes
Maurice e Collot.
Os efeitos de personagem são grande parte daquilo que é
o mais visível a uma primeira leitura, bem como a uma pri-
meira impressão neste "pôr em jogo". Noélle Renaude soube
encontrar os tiques da fala popular dessa época. Sua escritura
não é, portanto, naturalista e fonogramática, pois os testemu-
nhos não são escritos simplesmente a partir da perspectiva e
da competência linguística do personagem, não visam ao ve-
rossímillinguístico ou à exatidão léxica das formulações. Desse
modo, por exemplo, quando Baba (de quatro anos) fala de sua
"irmã Lili morta há cinco anos em pleno caos histórico': não
é somente ele que fala, mas sim uma narradora invisível que
Noiille Renaude, A Todos Aqueles Que ..., encenação
de Claude Maurice e Jael Collot. lhe dita o seu monólogo. Seu testemunho não é histórico ou
Foto Théâtre Jean- Vilar Montpellier: ©]ean-François Guiret. autêntico, não procura enganar sobre a origem da palavra. O
autor é reconhecível em todos os níveis: léxico, sintático, dis-
cursivo, porém a narradora é suficientemente discreta para que
Tais diretivas são muito úteis para se penetrar no universo,,::- o locutor pareça estar ao natural. Sua retórica serve-lhe para
lexicológico e rítmico de um autor, ao invés de se precipitar no:;~ : deslizar no discurso do outro, a fim de trabalhar-lhe o interior,
personagem e fazê-lo o pivô da narração. Por certo, os atares;:!! completá-lo, contradizê-lo ironicamente, reenviá-lo aos outros
sempre estão impacientes para achar o seu personagem, para; testemunhos.
dar-lhe corpo e voz, porém se eles se acalmarem um pouco, se O trabalho de Maurice e Collot consistiu em encontrar o
encenador conseguir contê-los, moderar os seus ardores, s> ',tom e a voz para suas criaturas, sem, no entanto, negligenciar
escutarem os suspenses, os silêncios, as mudanças de ritm a forma e os procedimentos da escritura. Seus deslocamentos
terão uma visão mais estrutural e global da peça e estabelece, foram mínimos e sempre pertinentes. A representação rítmica
rão tanto melhor a construção de conjunto, no interior da qua] do texto foi suficientemente coerente para que se reconhecesse
o seu personagem emergirá com segurança. _ certa dinâmica de um personagem para outro. Reencontrar o
A escritura da peça obedece a este duplo princípio enuncia' "'-'i' espírito de uma época obrigou os atores a apoderar-se de uma
do por Noélle Renaude: uma estrutura de conjunto muito rígo ~A;·;?loração de voz, uma sustentação do corpo, uma pronúncia
rosa, de fortes efeitos miméticos de personagem. O progress ,,'ppular, que transcendessem os particularismos dos atores e
crescente por idade dos monólogos facilita a comparação en ilitassem a leitura de conjunto. A cada tentativa eles inven-
os diferentes pontos de vista, de acordo com a idade, sexo am um corpo dessa época: uma maneira de se movimen-
origem social dos locutores. Graças às descrições de um me Zde se calar, de se esconder da vida alheia, de enervar-se, o
mo acontecimento por diversas vozes, toma-se conhecíment '~acabava por produzir um documentário vivo sobre essa
de um conjunto bastante homogêneo de figuras. Uma rede ,;;~a desaparecida, que vive na memória daqueles nascidos
alusões, tiques verbais, maneiras de falar próprias a cada ép;' ~t_amente depois da guerra. Procurando o habitus'" de seu
ca, de similitudes, é tecida pouco a pouco. Porém, essa galer
de retratos em tinta forte encoraja sobremaneira os ateres' ~:'~P: Bourdieu; L. Wacquant, Réponses.
~-----
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
120
o "PÔR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS
corpo, sua "subjetividade socializada"!", reencontr-aram intituí- 121

tivamente esse movimento, essa corporeidade de uma época


finda. Eram a enciclopédia encarnada. i
Se o desempenho dos atores consistiu em encontrar os ín-0
dices verossínleis de suas figuras, a encenação reconstituiu ai;
puzzle de suas palavras assegurando inteiramente a unídads . ç
dos gestos e dos comportamentos. Claude Maurice e Ioél Collot R
mantiveram a escritura de Noélle Renaude, e sua própria cria-
ção, num equilíbrio instável entre uma composição de con- '1.
junto, sobretudo abstrata, e de abundantes notações realistas.. f
Equilíbrio instável visto que, se a composição é muito rígida,',W
a atuação torna-se formal e arrisca perder todo sabor; se, aoi~
contrário, os achados de atuação foram muito rniméticos e ser-/.;~
,
vilmente imitativas, a impressão de conjunto e o espírito do'\~
.

tempo não aparecem mais. Guiados pelo conselho de Noélle -'I iean-Paul Dias, em Quarenta Ê 1
©Frédéric Maragnani.
d ..
g ogas, e NoelIe Renaude,
Renaude, eles encontraram um equilíbrio inesperado, e seu "
trabalho manteve todas as promessas da escritura.
Parece que a chave de uma encenação "bem-sucedida" do'.
textos de Noélle Renaude reside na arte de achar, para o gest'-·'
e para a encenação, um vocabulário suficientemente simples'
coerente e abstrato, permitindo ao espectador localizar-se se ~S)1).ais de um século, fala-se a ' .
[arn quais forem a complexidade do texto e a abundância ,I' edo diálogo, Será o caso d ' PI roposuo do teatro ocidental de
F!~". '. . '. e se evar essa 1 - '.
personagens. Pudemos convencer-nos disso ao ver [ean-Pau pp?,'n~o está sempre e necessarian'len . ame~taçao a sério? O
Dias, dirigido por Frédéric Maragnani, interpretar as Quarari %_~ta ,suposta -crise di " _ te em críser
'ii:.,.' .- _ lZ respeIto a comuni -
Églogues, Naiures Mortes et Motifs (Quarenta Églogas, Natt ;9,sta~, ao Ptngue-pongue da c . _ caçao em questões-
"'d"1S 'd , onversaçao q tídí
rezas Mortas e Motivos). Para interpretar os diversos papéi _,5 ,_ a palavra. com efeito t UO 1. Iana: essas idas
.. o,"~
··A , ornaram-se raras n d
,~poranea. No estrito senso . a ramaturgia
Dias encontrou um sistema gestual acima de tudo abstrat na
....0 dois loocutores duas e t'ded vida, somente há diálogo
à maneira do mimo corporal de Decroux. Não somente p" -".:. . • n 1 a esps~· . . .
;;,:,;,~,}~'Il1item - trocando bre lqUlCas. dOIS sujeitos rc-
causa daquele macacão com longas guarnições brancas, su 'd al . vemente - palavr N '
l::~,":- Jamais existiu verdadel'r as. o teatro, essa'
nhando o contorno do corpo e das atitudes, como também P . amente' sempre .
.9pg~". d t=.. ~e permutar ~ . d ._ exista a palavra
mimodrama EUstne (A Usina), do qual sobrou um filme" ,~Iançada, perdida: ,:~~~aaoae~::a;,.~o;e sabe onde. A Hn-
sobretudo graças à maestria das atitudes e gestos muito eco,' ;_~2F~so, não para o espectado P I . a para todo mundo;
reta:' t' - dí ~ . . r ou OOUVInte
rnicos. Como em Decroux, qualquer sequência parte e ret " " n o, o Iálogo tem na at Iid .
a um corpo centrado e em equilíbrio, materializado por.. ~,9.~:,':é.identificado com a'd ua 1 .ade. uma perigosa falta
ponto no solo e um centro imaginário no corpo, Felizm fr01l1elhor dos casos comran;aturgla tradicional. até com o
'-' tã : . a ror'rrra dramáti
Jean-Paul Dias evitou o defeito da rítmica de jaques-Dalcj f;~a em crise a partir de Ibsen, M . ca que, segundo
~;t~l1tores·esforçam-se para es aeterhnck ou Tchékhov.
e a correspondência absoluta entre sons e gestos, -. , - <rever contr díál
,,,_,precOnsegui_lo
; ..; '- . ' Qu ant o aos .t ' . a o lOgo,. sem
. ' allás .
f:lXl;0 sem certa má vontade . eoncos, não empre-
17 Idem, p. 101. f()rmas, as de voz partilh ' prefermdo-o para descrever
, . , amento de vozes (Jean-Luc N ancy, )
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
122
o "PÚR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÃNEOS
123
polifonia, coro ou coralidade. Inúmeras formas não verbais, gestuais,
de live art, performance ou instalação, passam -se decididamente
".'_ Par~ onde vai o diálogo? Ele não cessa de se r
"-:cJH pareCIa que estava em vias de extín - L econfigurar, qllan-'
. por diálogo. das relações humanas. cada vez . ~~o.. eva em conta a evolução.
maiS laceIs e colo .d d . .
Para dar conta dessas experiências de novas escrituras, melhor
seria evitar uma tipologia de diálogos como a teatrologia muitas
. .. .
'A-.iP- ..'daquerernos
.... '. ". .
.
viver em coniunto, 1: ,:1
fal armo-nos tr as »p'e autIsl}1o~
"__:fJ.ll~:J)reço? Oqueé que ainda temo di:
f·.

"ocar. orem, a
vezes propôs, visto que a tipologia permanece, neste caso, muito . .respeito, inclUSive à vida alheia? 'T' ~ a _izer a nos mesmos, e isso diz
calcada na comunicação dita "normal': na rnimesis da troca huma-: .. ....•..... . ' . "aIS sao asperg t d
· .ríosfazer, antes mesmo de proe .' un as que evemos
na e, assim, num modelo de comunicação que essa escritura 'deseja urar as novas formas do diálogo.
precisamente ultrapassar. É inútil, igualmente, querer distinguir c,,~
tegoricamente o diálogo do monólogo, como o fazia a drarnaturgi,~
clássica. É preferível opor diálogo conectado (ex.: Racine) e diálog, 5. HIER, C'E5T MON ANNIVER5AlRE
desconectado (ex., Büchner). É ainda mais judicioso inventar novos (ONTEM É MEU ANIVERSÁRIO)
instrumentos para apreender os últimosdesenvolvimentos, Assir
sendo, a "coralidade" indica que o teatro não mais limita o diálog A partir dos primeiros minutos d _
às trocas verbais, e que o coro antigo emudeceu numa assembleia d . , a encenaçao de O t 'M
Aniversário, de Eugene Dur-ifw bl n em e eu
abordar, esse equilíbrio instável e~fr:oa D que ~cabamos de
figuras reunidas num mesmo espaçotempo para falar, mas tambérr em a
para calar-se em conjunto e intervir nos momentos preferentemenf e O sentido da composição acha-se orça rntrnetfcn do jogo
arbitrários (pense-se nos espetáculos de Marthaler). r '
novamente colocado
No seio da encenação, o diálogo assume relevo totalmenf Immy conta como faltou a uma entrevista c
distinto. Com efeito, o diálogo não está mais confinado à troca 4 partir dessa exposição, Dur-íf mistura om experts. A
palavras. A partir do momento em que é colocada em enunciaç . t?S de reali~adde so~iopsicológica c::s:~:r~~~~:u~~~~~~ce~-
e
a interação entre todos os materiais, significados e significar, ..Jll11my expoe, e l11IClO, sua lógica 1 .
torna-se a regra. É ainda um diálogo? No sentido metafórico,' a; tempo é reversivel _ "Ontem e' pess~a : s;ra concepção de
b· lemas são epistemológicos _ "Omeu anlversario"19 S
nas. É antes de mais nada a gênese da encenação; a orquestraç . ' eus pro-
· . que se pode Imag' ?" S
de trocas e a colocação espacial das redes de signos. "Dialoga' rnqUletações são metafísicas _ "Q d _ mar: uas
então, os silêncios, as mudanças de-ritmo, os ecos sonoros evisi(. ..nossos uan o nao temos nada sob
'(L' . pes, pa~a que pode servir um caminho?"
f •

os diferentes componentes da representação. A partir do ffi()i#;'


to em que o texto está encarnado por um corpo, uma músíca.j ,)'( A encenaçao de Olivier Couder e Patricia Zehme t .
ritmo, não mais se pertence, é como que transportado, torna-se . \~culdade de d~stinguir, através da atuação, esses dois ,:mdd I-
juntamente com todos os outros signos da representação, e dé ';'t: ~~~:::=:taçao: a composição abstrata e a imitação co:cr~~
interação nasce a encenação. Esta última, prolongando às ve~, )' . . eu a reconduzír o questionamento filosófi
escritura, casa ou descasa os elementos do diálogo, ímpedeqí - ::;~lcologla, até mesmo a uma doeu . co a uma
quer contato ou, ao contrário, tece ligações entre os eleII1~ft ultiplicado de Um autista, falava :a~e;::l~':::'~
°dcorpo
dialógicos e os outros componentes da cena. A partir desse::·': p10 um iluminado apaixonado or fil n e o que
menta, quando está então localizado na interatividade da' __ :~pa é interpretada de acordo os co~ d~:~~~~st~~rim~ira
o diálogo explode, abre-se à polifonia. A nova escritura nad ~r:n torna-se terra a terra, o ersona os, epois o
senão antecipar essa disseminação, algumas vezes a pontod ,s'cológica, uma dimensão ~ned 'tO gem ganha uma espessura
tar tão pulverizada que a encenação experimenta a necessi "E o ica.
de dar-lhe um jeito e recolher-lhe os pedaços. São, portant9. .'. ntretanto, Durif, no mesmo espírito de Re d
to a prática da cena quanto as mudanças de concepção dasti
humanas - as duas estando, evidentemente, ligadas - que lei
:aiK~~a~
.;
::~:~~~~~::~:;:,~:~n:g::~ra~e~as
" e
co:~o~u~~
o, por meio de li
evoluir o diálogo. . ,Hier, cest mon . .
'Idem, p. 5. anruversairn, Encenação no Lavoir parlsíen, 2005.
3
o "POR EM rOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 125
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
124 contemplar suficientemente "corpo': matéria e efeitos do real.
Dificuldade para encontrar um equilíbrio, ou um compromis-
so, entre estrutura abstrata e personagem concreto, textuali-
dade e mímesis.
A originalidade dessa encenação é utilizar unicamente
comediantes deficientes que, na maior parte, conheceram o
hospital psiquiátrico e estão internados em instituições espe-
cializadas. Sua deficiência é mais ou menos visível: algumas
são percebidas pelo público e outras menos, no quadro da re-
presentação. Isso relativiza as noções de normal e patológico e
indica ao público que sua definição de loucura e normalidade
está também, em parte, culturalmente codificada. Para o ence-
nador, tudo é interpretado sobre um fio. De um lado, a gravidade
das deficiências arrisca-se a ameaçar a representação teatral
o tem é Meu Aniversário, encenação de Olivier baseada na precisão e na repetição de uma série de decisões
if, n
Eugene Dwu. estéticas anteriores. Por outro lado, não haveria condições de
e Patricia Zehmc-
Caud er ,. d Cristal. ©Olivier Cauda. esses comediantes atuarem de acordo com as normas estéticas
Foto Theatre ti
em vigor ou impor-lhes um adestramento e uma imitação con-
. " d '
trários à sua verdadeira natureza. Essa situação delicada é, aliás,
torai ue penetra nas palavras "pessoals os:;!:
uma palavra aEu qtrelaçamento de notações realistas e re-.ii; típica de qualquer encenação: esta deve ser capaz de repetir
en s. sse en eh" <1~ suas escolhas, seus efeitos, suas decisões estéticas e, ao mesmo
persona g
A

, ti s (sob a forma do koan ines, em ";,i


• filosóficas ou poe ica d -co' tempo, continuar aberta, singular, imprevisível e irredutível a
"') tem con dícõ
flexl",es içoes de surpreender. Não é, contu o, senao h"oe a.. . . •',.:. uma norma estética definida e definitiva.
Du, . , t tuto da linguagem no teatro a uns;,",
· ência do novo es a 'A,'t Na peça, assim como no palco, a diferença entre loucura e
mo observa com pertinência Jean-Marc Lanter.l\f~
n
co requ normalidade não é verdadeiramente pertinente, quando muito
trinta anos. Co d amátíco não é mais instrumento de pal-'~
" I'ngua do autor r .' a es';" não seja porque o espectador permanece consciente do trabalho
a 1 t ritico porém se constltUl num :",
• es vetor de um tea ro c , c d'''i. de cada artista, e em particular da dificuldade de se poder fazer
xo ou I a linguagem apareceu sob a torrna e";'.Ii
t" noma ta como I d .,', atares deficientes atuarem prestando atenção naquilo que dizem
fera au o 'b I t os olhos da linguística estrutura ou ~.)~.
udade a so u a a ',,,, suas réplicas no momento certo. Ao não lhes dissimular suas
uma en . " 20 A prática teatral concedeu pouca JUs . . .".'.
· 'lise lacamana, . . t"'" deficiências, estes últimos colocam a representação, e portanto
pSlcana . d lt gua A referida encenação msis 111""
tiça a esta autonomIa. a m muito bem de que forma trata :t,,; o sistema da encenação clássica, em perigo, ou pelo menos em
I to realista e nao soub e . (,,}crise, porém lhe conferem igualmente uma autenticidade suple-
no re ~ fil ófica A mímesis do personagem, mais uma ve,. '/.•.:.··.m.tentar, um caminho autónomo para além da ficção e das con-
a alusao os .' 1 .dade do texto, deixando pau -
ou a poesIa e a comp exi fi' t,i.yenções. Ao invés de uma exposição complacente de doenças,
j-ech a ç . . d a reflexão não atribuindo su cíen ..
c silênclOS
D para
S aju ar . "orna ... stambém através de uma representação muito bem regulada
confiança à forma da elscntu~:~rambem a dificuldade da ence1 ; e entrosada, obtém-se um acontecimento que aceita os riscos de
Todos esses exemp os m . to ã' )~ualquer apresentação ao vivo, pelo seu teor incompleto, pelo
_ ti d de fazer entender a estrutura de conJun.. .
naçao, no sen 1 ° ,,-,}mprevisÍvel. Teatro do acontecimento no qual apenas contam
(,.ps atos reais dos comediantes; teatro da presença humana e não
., res théâtrales en Grande-Bretagne, op. cit., p. 5.
20 Les ÉCri U
T~.. .

A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o "PÔR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 127


126

da representação ficcional e estética. Resultando de uma nego- adaptasse seu texto em funcâo das e Xlgencras
• >" . p )"asticas e musicais
ciação entre a ficção e o acontecimento, a encenação é um ato no Esse Iprocedimento seria a etapa seguinte ' qlle aqUI.nao . ocorreu .
qual não se sabe nunca se é louco ou razoável. Para rnaritê-la, é aque a na qual o autor poderia reescrever, concentrar até anula;
preciso arriscar-se a perdê-la, aceitar os acidentes, erros, incoe- . d em função das descobertas do paI coo E' o que
. seu texto , tenamos
,
rências. Não se regula nada de antemão: nem a perfeita direção deseja o, e esperado, já que haviam sido dada c S as propostas para
de ateres, nem os processos habituais dos atípicos (crianças, doentes que o autor, o coreógrafo (Claude Magne), o iluminador (Olivier
mentais, seres humanos, atores ... ). A encenação é ainda a arte Modol) e o co~positor (~laJ1U Deligne) pudessem ter ido mais
de acomodar os imprevistos no palco, longe na cnacao, de uma opera sonor .
ora e VIsua I.
No fundo, existem dois tipos de encenação: 1. a encenacão
~: um t~xto intangível, que se trata sempre de explicitar' de
LES BAIGNEUSES (AS BANHISTAS) . Ilustrar",
td de confrontar com uma sítuação cenica • . na quaI'esta,
6. msen o; .e .2. a encenacão como o cepOl
' " . em Jogo
• " e integração

A peça de Daniel Lemahieu mostra um grupo de mulheres que e


d. .materiats (nos quais se inclui O t t
ex o, entre outros) mate-
discutem enquanto esperam a chegada do "homem", Frankie.. riais esses tratados em pé de igualdade. '
Discorrem longamente sobre as insuficiências do homem e::
da mulher. Na cenografia e na encenação de Gilone Brun, em::;{ü'Yil1aver e a Encenação
2006, em Paris, a peça encontrou nova identidade com relaçãoj, 1;""""
à criação em 1999 por Jean-Marc Bourg. As réplicas das novei~ 'rv &iiiaver desconfia das e .
mulheres foram repartidas independentemente das locutor ~pens' e as açoe.s.
"'..: . ncenaçoes
Segundo que soterram
ele, a encenação os textos
tornou-se, no sob as
correr
supostas
'd id dde' pronunciá-las,
dívid I d fato
O que anulava
" definitivamente
. I . ~}nos,
. -'. -. uma- . mise-en-trop":
,. . muito de ln
. t erpretaçao
_ cerrrca
•. mui-
1 enti a e ID IV! ua o personagem. eleito cora e a espa:. ,....atuaçao inútil, enquanto "o texto não tem ne .d de -
cialização da palavra achavam-se consideravelmente reforç fi~)"'2i
uma coisa'
o' . d r-se e~tend :r o mais
S ' .' faze . distintamente
cessipossível no
a e senao
das. As palavras, as>~has de frases, e não os personage "~'oCO _er:,~am a preCISO, evidentemente, entendermo-nos sobre
que as pronunciavam eram, ao mesmo tempo, manchas de co ;~\,,~sad azer-se entender". Trata-se de ser percebido auditiva-
e.,~,?.u . e ser.compreendido intelectualmente? Para Vinaveré
e~.yma
res, de materiais que se inserem no espaço do quadro a s
composto e pintado. Entretanto, cada atriz possuía uma . questa? de compreensão auditiva, porém esta não terá
dividualidade marcada pela escolha de figurinos e cores. E {sse se o ouvmte e o espectador não entenderem aquilo a que o

individualização relativa do vestuário não se desbordou, c o · , . ?)~::l.l1ente


€ o autor] querem
pe os meios chegar.
cênícosAé constante.
partir daí, o risco de dizer ex- J

tudo, para uma individualização caracteriológica; não teve p: .o entanto, do que desco fi
objeto esclarecer os conflitos e as açôes. "'pp
',:;'; .. é ela também _,zen
:,;> '., fa a exatamente
d,o soar o e - umaVinaver? Essa
colocação mise-
abusiva
Sendo ao mesmo tempo cenógrafo e encenad or, Gil . one B ~;UltO mais obra de um Misantropo? '
deu um passo a mais rumo à reviravolta da encenação, a qual .~colocação
c(-u:riit ' . em ,dema sia
. quano
d a encenaçao - se considera
precisa mais ilustrar ou explicitar um texto, mas ao invés . :i,,' ropo, isto e, como uma figura de estilo para dizer, de
imaginar um dispositivo cenográfico e plástico que imponh«
texto a sua coloração e, em parte, o seu sentido. Gostaríam .Na impossibilidade de t d '. _.
de vez em quando, que a preparação das cores, formas e corp., ::> é feito no texto, mantev:~seu~~e;~~::~s~o mlse-en.-êr~p e o jogo de palavras que
a111 ,:; , de boas ideias que pod _ gínal, que significa boas ideias ou adição
-textos fosse mais radical, que se aperfeiçoasse verdadeir t -:
,,,:. acréscimo exagerado ou ab .
em ou nao resultar n a queIa expressao.
-
Por aproxímaçâo:
com os corpos inscritos nesse espaço, à la Yves Klein, por~1Í
1 . USIVO na cenog afi .
,
~ ", Vlnaver cit em D" TI ", h
A • •

r a e nos SIgnos cemcos.


não? Isso implicaria, com toda lógica, que o autor modificass~~
,.:. ,. ~ iea re, ors-sérte 15 À b .,
t,Michel Vinaver, p. 10. n. , rúíe-pourpoint. Recontre avec
.-'"
~:-
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA O "PÓ R EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 129
128

maneira decorativa e retórica, aquilo que o texto já disse. Seria; It' 7. CONCLUSÕES
exemplo, uma metáfora visual, cênica, para ilustrar o texto.
Quanto ao Misantropo, o de Moliere, por exemplo, ele dete ;/.i;Apartir desses exemplos isolados, é muito difícil generalizar e
os homens da mesma forma que o encenador, no fundo desp , .<enunciar os grandes princípios da encenação de textos contem-
za os textos e procura substítuí-Ios pelo seu próprio comentA- '>porâneos. Limitar-nos-emos, assim, a algumas grandes tendên-
cénico. ,;'das, mais até a hipóteses do que teses, mais até a impressões
Onde se situa, portanto> Vinaver na história recente da eu do que a conclusões científicas e definitivas.
nação? Segundo ele, a partir dos anos de 1960 o encenador ser
frequentemente, senhor absoluto do empreendimento teatral:ll·
• Não pudemos estabelecer que as encenações dos contem-
lizaria o texto como 'Pretexto para sua própria criação. Ele tenc
tornar-se o criador de uma obra cênica que visa justamente abstet~
\ porãneos inventaram novos métodos, que se diferenciariam
dos autores dramáticos, como já o previa Edward Gordon Craig . 'radicalmente daqueles dos clássicos. E isso tanto mais porque
começo do século xx. Porém, desde o final dos anos de 1980, Vi . desvio, até a própria diferença entre clássicos e modernos,
ver, autor de um estudo sobre a edição teatral", contribui pari tende, na atualidade, a reduzir-se cada vez mais. Os meios são
sinalar um golpe de parada relativo à invasão dos encenadorexj ~,'- _menos espetaculares, há uma tendência a concentrar-se numa
--o

instituição teatral e de reabilitar o autor dramático. Ele partící "co_direção"* do ator, sem o fausto da cenografia e as reflexões
assim> de uma reavaliação das funções da encenação. Com efeit,., ó· por vezes pesadas de uma análise dramatúrgica. Semelhante
encenação perdeu um pouco daquilo que tinha penosamente (' "'<_concentração às vezes leva a uma encenação «conceituar: ba-
quistado: a sua autonomia. Vinaver reintroduz a noção de non' ·:;(~eada numa ideia simples e repetitiva, pouco sensual, inteli-
pois segundo ele há um número indeterminado de "perversõi
;.g~nte, porém rapidamente fastidiosa.
do texto para a encenação> mas igualmente de modos <Cjustos:;~_~'
montar o texto>. No entanto> como julgar se a encenação éju.
• Talvez seria preciso "rc-ousar" a encenação (com o prejuí-
ou pervertida? Normas implícitas parecem impor-se, mas qu,:', cozo de realçá-Ia): não limitá-Ia à leitura dramatizada, à prola-
Vinaver não indica qual seria o p~~. e o aparte do encenaê( :>çãO (mise-en-bouche)** e à leitura pública, que muitas vezes
Pode-se, todavia, arriscar-se a co~~}.àr que uma de suast#t .são encenações com desconto e que dão a entender uma peça
fas essenciais consiste em encontrar uma situação de enuncia ."jioj1ara melhor dispensar-se de encená-Ia a seguir. Não teríamos
inscrita tanto na ficção proposta quanto naquela imaginada p. :'~90ndições de nos contentar com "o atar como leitor': nem con-
espectadores. Há, todavia> por parte de Vinaver autor> uma"," .fundír as propostas de uma oficina, por mais espantosas que
tade deliberada de não escrever tendo em vista uma encenaçã sejam, com a apresentação pública de uma obra.
acontecer. De acordo com a palavra de Vitez, o texto de Vin.à,
• A encenação procura um caminho médio entre as produções
não é solúvel na encenação como o açúcar é solúvel na águg
'. do grande espetáculo (e de grandes recursos) e a simples coloca-
que é insolúvel, em francês, é aquilo que não se justifica oÚ·.,-
não tem solução). Tais textos «insolúveis" são> entretanto> "1l1« ·~,#.;.ção no espaço ou na voz. Isso porque da rnise-en-trop de Vinaver
veis", acessíveis .ao palco. Porém> não existe receita universal p ~;}•.passa-se quase à mise-en-pas-assez (colocação em não-demasia).
encenação: «Então, o que ela deve sei'? Depois de ter visto mui ~.... No lugar da noção de estilo de encenação para os clássicos, acha-
encenadores trabalharem> e os maiores> sou capaz de dízê-lo! 'ikj mos antes a de método para os trabalhos contemporâneos. Método,
que deve ser a vida? Saberia me respondere"> . te 'é verdade, adaptado somente à peça a ser montada ou, a rigor, a
um autor e, portanto, dificilmente reutilizável e indócil a qualquer
teoria. Nunca se fala em estilo de um encenador especializado nos

22 Le Compte-rendu d'Avignon. Jogo de palavras que envolve a ideia de um copiloto (N. da E.).
23 Idem, p. 36. •• A expressão francesa é intraduzível para o português e apresenta um sentido que
24 Du théâtre, n. 15, p. 55. vai da proferíção ao saboreio das palavras, ou mesmo degustação (N. da E.).
130 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o "PÔR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 131

contemporâneos. Cada encenação de um novo texto obriga a ro' '~k,ecida de antemão,'aceita, ela é a coisa a ser achada ou a ser
ventar um espaço, uma ação, um ritmo que não são "pré-visive' ,gvê'ntada graças ao teatro. O que quer dizer Gotscheff com essa
para a leitura do texto. Esse trabalho rítmico sobre a voz e ;;;gcarada do Branco no Preto? O que pensa Engel do ~aClsmo
"perforrnance" cênica importa mais do que o sentido do text"'Wi'úbran co? E Vinaver? Ele permanece neutro, verdadeiramen-
• Em contrapartida, constatamos que alguns autores da a ",jl!', não fazer mais do que citar os discursos dos outros? Suas
lidade foram interpretados segundo um método reconhecid :,;t~!::l1ações têm, em todo caso, o mérito de examinar o pro-
testado. Vitória do método, até do "discurso do método'; de u ,;::ili'ln
a, ao invés de considerá-lo como já resolvido. O teatro
lado, mas também o risco de esclerose na medida em que ele n . 'é urn instrumento hermenêutico para conhecer a política, e não
torna norma, repetindo-se de um espetáculo a outro e sentí irn campo de aplicação da política. .
do o requentamento. Desse modo, o "jogo vinaveriano" atin :'. '-~:':~':É por essa razão que a encenação, após vinte anos) tanto
Françon ou o próprio Vinaver (assistido por Catherine Anne "'ara os clássicos como para os hipermodernos, adota um per-
sua recente produção de À la Renverse [De Costas], e de Gilo ,'ilibaixo. Ela não pretende mais bater de frente ou reconstruir
Brun para a de Iphigénie hôtel [Hotel Ifigêniaj), como umae~p -'o Jl\undo, nem produzir o seu próprio universo capaz de ri-
cie de perfeição formal, porém não parece mais estar sempre e' ",( ~alizar com esse mundo. O encenador não é mais sempre um
condições de empurrar a peça para suas últimas trincheiras. _ ':I:ultural critic", descrevendo e desafiando o mundo. Ele é, antes
• É, portanto, de capital importância evitar qualquer canonj '(dé mais nada, um desconstrutor, um misturador de categorias
zação prematura, ou qualquer fossilização, encorajando outrá;,:genéricas, um "interrnediário":". A única coisa que se pede a
tentativas iconoclastas. Segundo David Bradby, já se trata do caSe; sua encenação é fazer "o teatro desatracar'; colaborando espe-
de Vinaver na Grã-Bretanha. Melhor assim! A entrada no reper tialmente com o cenógrafo: "Trabalhamos para determinar as
tório, ou nas escolas, de autores como Koltes, Vinaver, Minyan temperaturas, as consistências de materiais que nos aparecem
Renaude ou Durif arrisca-se a acelerar o pro'~I{'50 de canoniza 'rio texto. Quero dar-lhe um exemplo: 'Esse texto me faz pen-
ção e precipitar a estandardização da atuaçã';:"l'l'speramos cori sar em alguma coisa que é fina e tensa, ou 'A brancura deve ser
impaciência as propostas da próxima geração de encenadores; lida nesse texto' " 28. Diante da escritura contemporânea, a crí-
• É possível que novos métodos e abordagens da encenação tíca fica muitas vezes desarmada, não tem mais as ferramentas
estejam ainda por ser inventados, mesmo no caso de a escritur'nem a legitimidade para julgá-la, deixando ao espectador a in-
conhecer uma expansão sem precedentes. Provocado pela fre cumbência de dar sua própria opinião e de avaliar a encenação
quente advertência por parte do público, mas igualmente pelo" C, segundo seus próprios critérios subjetivos.
encenadores, segundo a qual não existiriam mais autores, Euge);~", '{ii • Onde é que se dá, então, a encenação? A escritura absorveu-a
ne Durif devolve-lhes a pergunta: "Talvez existam poucos ence;!!~ ',- - em grande parte, como se o autor, desde uma instância superior,
nadores que sejam capazes de incumbir-se, de dar a entender é-V;i;i ê,<:f
já tivesse regulado inúmeros problemas cênicos: ambiguidades
a ver, com alegria. com prazer, esses textos que são inventado~,;~~ não elimináveis) personagens não figuráveis, mudanças constan-
atualmente e para os quais estão por ser inventadas abordagen§}'t~\- cc tes de chaves de jogo, convenções e níveis de realidade. O ence-
teatrais novas, singulares, imaginatívas'?". Não é fácil descreve_r:~~~ '\:'_ nador não é mais dono da atuação, ou pelo menos não o único
essas novas abordagens, exatamente porque o encenador renuncipg; ,t', dono: é apenas um sócio do autor e do ator, um "homem sem
cia a um controle absoluto da escolha de materiais. ;,;; ",'
• Uma dessas novas abordagens diria respeito ao lugar da ideoé:' 26 Ver o número especial da Contemporary 'Iheatre Review, v. 3. n. 3, ago. 2003
logia, do sentido e das teses. A ideologia não é mais pressuposta, - t (lhe Director as Cultural Crttíc).
27 R. Cantarella, La Maín-doeuvre, Revue desthétíque. p- 191.
28 Idem, Mettre eu scêne le théâtre contemporain, Trais píéces contemporaines,
25 Théâtre Ouvert, programa da temporada 1999-2000. p. 147. Leitura acompanhada por Françoise Spíess.
132 A ENCENAÇÂO CONTEMPORÂNEA O "PÔR EM JOGO" TEXTOS CONTEMPORÂNEOS 133

importância". Quase que se tornou impossível separar a escrilli essa revalorização da literatura: "Estou persuadido de
o".
da encenação, mesmo que a antiga divisão de trabalho contid ,T;te,'atura serve para resistir ao teatro, Tal como o teatro
a distinguir as funções de autor, ator, encenador (e espectado cónd.íCILOI1a':lU, apenas um texto impraticável se revela pro-
»29
,;j Representação seria um termo mais justo do que encenação) e interessant e para eI e ..
• Apesar de tudo, nos últimos vinte anos a encenação COl]8
guiu algumas vezes influenciar a escritura.' Não mais no senti' .'A encenação não sobrevive e não se renova a não ser que
de outrora, quando o texto resultava de um trabalho de gat JS,alut()res, tal como Heiner Müller, inventem textos que sejam
nete e havia o rastro de uma prática cénica, mas porque h .ilià.lnnelnte desafiadores para o teatro. E é essa a tarefa a que se
as experiências de atuação questionam, abalam e provoc ,ô~di(;a a escritura, atualmente, com a energia do desespero.
texto a ser interpretado, o qual, no papel, é quase ilegível.
na natureza da encenação esclarecer o texto, porém, neste ca
trata-se mais fundamentalmente de torná-lo legível, de cons
tuí-Io, de literalmente fazê-lo existir, particularmente nas su,
interações com o resto da representação.
• Chega a acontecer, não obstante, o fato de que a encenaç
seja tão ilegível (e, logo, incompreensível) quanto o texto. P
demos nos felicitar em nome da liberdade artística; podem'
igualmente lamentar, pois o público experimenta muitas vez
a necessidade senão de compreender, pelo menos de apreciar'
sua incompreensão, Frequentemente, os autores não acham II]
os seus encenadores e, assim, o seu público; alguma~",es,tam
bém, tendo-o encontrado, deixam os espectadores int~1&J.tos - ~
mesmo tempo mudos e privados do direito de resposta, com
se os artistas lhes dissessem: "Love it or leave it!"*
• Porém, paradoxalmente, quando a encenação persiste n
ilegibilidade para a exegese, é sempre possível referrrmo-nof
ao texto para examinar de que maneira pôde inspirar o traba/fiii
lho do encenador. Exame, contudo, reservado aos profissionais;~
e aos teóricos) os quais têm todas as condições de) a partir dMth1
espetáculo acabado, retornar ao texto. Uma espécie de "logqd:'i}~
centrismo ao r e v e r s o » . ' ' ' ' ' '
.. Paradoxo) ainda: a literatura não é mais, nos meios teatra~s\"
bem informados e bem instalados, o inimigo hereditário e jW/t!1i
rado do teatro, o espantalho que impede o teatro de decolat:~
em direção aos céus do dramático. Ela se tornou aquilo que.~~!
provoca a encenação, aquilo que a força a sair do rori-ron e á!, •.
obriga a encontrar os meios para se defender. Heiner Müller){'i

• 'Arrie-o ou deixei-o!" (N. da T.) . Gesammlte Irrtíimer, p- 156.


'A 'Armadilha Intercultural:
o debate sobre o choque de culturas, o multiculturalismo, a
identidade e o comunitarismo causa irritação. ',Ritual idade e Encenação
O teatro sobrevive a duras penas. Está desorientado: não ~'l1os Vídeos de Gómez-Pena
praticou sempre "naturalmente" a mistura de linguagens,
tradições? Ele sente-se "duplicado" peia realidade sociocultur
sendo acusado por ela: é suficientemente intercultural? Trata
corretamente as suas minorias? Saiu da dorr inação ocidental
Colonizou os gêneros menores?

O teatro intercultural ocidental registra um movimento de recuei:


rejeitando do mesmo modo a regressão - face a um mundo
que se movimenta e que não o reconhece mais: afastamo-nos:
do otimismo intercultural de Brook ou Mnouchklne dos anos de'.'
1980. Naquele tempo, quando tudo havia se tornado cultural,
acreditava-se no reencontro das civilizações, na fraternidade d
povos, na universalidade da língua teatral. Os artistas abraçava
com prazer, e sem complexos, fontes culturais as mais diversa.
Queríamos substituir a política pelo "tudo cultural':
Essa época heroica já está longe: no momento, muitas outras 'téo começo do século xx, considerou-se como indiscutível
experiências antropológicas mais locais ocupam o terranO,-A "rigem ritual do teatro: é só se pensar no "canto do bode" e
sabotam-no e o des-sabotam ao mesmo tempo. Assim, oSífjde Q ," seu "prolongamento" na tragédia grega. Essas teorias estão,
grafites do mexicano Guillermo Gómez-Pefia tratam e retr,flm." 'momento, sendo rediscutidas.
todos os grandes problemas de antropologia cultural com um ; Caso se examinem as inumeráveis práticas espetaculares -
humor cáustico, com uma aparente desenvoltura, porém com emespecíal aquelas que antigamente chamavam-se tradições
uma acuidade política espantosa. O seu personagem do tronteriz trais -, podem-se distinguir nelas elementos rituais próprios
(fronteiriço), do caso limite, não é apenas o do mexicano em vias, 'cada contexto cultural. Na falta de conhecimentos antropoló-
aculturação anglo-americana, é o de qualquer ser humano dividi @ços e linguísticos suficientes, os pesquisadores têm a tendên-"
entre identidades que lhe escapam, aprisionando-o totalmente. "\ tia de reconduzir tudo a essas cerimônias e formas rituais. Os
A forma leve, transportável e perscrutante dos esquetes, vide',)' érformance studies anglo-americanos tomaram a si a tarefa de
ou televisuais convém às escaramuças da guerrilha urbana. Sísifo de recensear e descrever essas cultural performances.
É pouco representada na Europa, onde a arte é muitas vezes"!: Quase até a atualidade, nos anos de 1960, a representação
imobilizada entre o teatro de arte voluntariamente elitista (?) rocurou integrar, nos motivos representados bem como no
e o entretenimento um pouco vulgar. ípo de atuação, cerímônias, jogos, mitos, ritos emprestados
Graças à arte de Gómez-Pefia, o teatro intercultural reencontra ssas culturas tradicionais. O público foi convidado a "parti-
segundo fõlego. Ele frustra a censura, liberta imaginações e tabi ,'ipar», até mesmo a substituir os atares.
reconecta as identidades. Reencontra os caminhos do mundo Haverá de parecer estranho estudar o papel dos rituais nas
social e político a partir de uma experiência pessoal. roduções teatrais e nas performances contemporâneas, visto
que não se imagina que o ritual possa estar a serviço do tea-
Quem não teria necessidade dessa baforada de oxigênio? , Entretanto, depois de quarenta anos, inúmeros espetáculos
r; 136 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA

inspiram-se em rituais existentes ou, ainda.mais frequente


A ARMADILHA INTERCULTURAL

'Ós quarenta esquetes, com duração média de um a três mi-


137

t'lF'i inventam ou parodiam os seus próprios rituais. Isso é um IJs estão classificados no índice do DVD de maneira muito
no de maturidade? hiá~,teórica) como se o autor utilizasse intencionalmente, e
Em lugar de um sobrevoo sobre essas práticas, propo (~em ironia, as categorias da antropologia e da criticai theory
-nos aqui a examinar os vídeos grafites de Guillermo Góm glo_americana. Encontramos as seguintes rubricas:
-Pefia como um exemplo de esquetes que parodiam ritu'
existentes ou inventados. ':j'.'politics ofLanguage (Política da Linguagem);
Seria preciso, seguramente, retraçar as conexões do rit' .1. Identity Crises (Crises de Identidade);
com o teatro. No entanto, o termo teatro já é um obstácuj': Oj.]V Gone Wrong (A TV Tornou-se Louca);
reflexão, vísto que remete às formas ocidentais da represen ;f.J.i.everse Anthropology (A Antropologia ao Contrário);
ção. Outras línguas, mais felizardas e mais vagas, englobam r J5.EI Guerpo Politico (O Corpo Político);
o mesmo termo - como o de performance - o teatro ocident %.Lo Personal Tambien es Politico (As Coisas Pessoais Tam-
os rituais, cerimônias e todas as cultural performances Í!~agirt .•... hérn São Políticas).
veis. Não nos espantaremos, a partir disso, que elas perceba.
imediatamente a ligação do teatro com o ritual! o•• Essa classificação temática tem a tendência de apagar as
Temendo ser esmagado pela rocha de Sísifo dessas práti~ i'()ndições concretas da produção dos esquetes. Os comentários
espetaculares e performativas, contentar-me-ei em observar "bieyes do DVD não esclarecem a situação política anterior. Para
guns rituais cotidianos ligados à vida de um mexicano ou de ti '~lIla arte ancorada também na atualidade política, essa des-
chicano, como também de qualquer pessoa deslocada, "hum': '.historicização é inoportuna: qualquer interpretação deman-
da e ofendida'; como dizia Dostoiévski. O único risco incorri' '-'Í\fia uma reconstituição da situação sociopolítica do passado
a partir disso, é ser esmagado pelo sombrero de Gómes-Pena .e~o presente.
Ao invés de examinar, em geral, as possibilidades e as fô '.. ' Cada um desses seis conjuntos trata o mesmo problema:
mas atuais de interculturalismo e de nos expormos inutllmen ''t1;:fa ou confirma hipóteses muito complexas:
à ira dos guardiães do templo das culturas estrangeiras tãof:
cilmente "exploráveis'; tomaremos um exemplo em que o co o 1: falar espanhol e inglês é. uma vantagem para os chicanos,
flito de culturas (cultural clash) já é o próprio objeto da obr uma ameaça para os anglófonos. A linguagem é um pas-
que está, ao mesmo tempo, embodied (encarnado) por seu a( saporte e uma arma;
e performer: os Video Grafite de Guillermo Górnez-Peüa, rI' ':2- as pessoas estão perturbadas por suas múltiplas identidades,
centernente editados em DVD pela Pocha Nostra, nos servírã ·'i'3. a televisão não explica a realidade, ela confunde;
de corpus, até mesmo de habeas corpus... r:" '4. a antropologia ao contrário estuda tanto o observador
Tais grafites são esquetes curtos realizados ao longo dos úl"~" quanto o objeto observado;
timos dez ou quinze anos, um verdadeiro tesouro, uma amostri~ .-.\-~
;:5. e 6. nada é pessoal e o corpo é, também ele, moldado pela
representativa da produção de Guillermo Gómez-Pena ed:is!í1i política.
diversas formas que ela assumiu no decorrer do tempo. Tesou?4~~
que nos propomos a abrir para tentar compreender de que má";\4~ Essa classificação e os títulos dos esquetes induzem a uma
neira os rituais são, ao mesmo tempo, assumidos e desvirtuad6~+~ ,;leitura necessariamente reflexiva e teórica. Contudo, em graus
pelos diferentes performers. Esperamos, assim, compreenderQ,-:l~ ;~"diversos: alguns são quase que comentados pelo narrador, en-
uso igualmente eficaz e paródico que a performance e o teatfil'~\! ,c..
;quanto outros conservam uma parte enigmática e obrigam o
contemporâneo fazem dos rituais. :: '" :?.--espectador a arriscar a sua própria interpretação. Diante dessa

~i~
'1~~.
~{i .
r-:

A ARMADILHA INTERCULTURAL 139


138 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

diversidade, não podemos nos limitar, aqui, a algumas q\l" ":"'" u'ltimo s anos, os públicos da arte da performance ex-
.Nestes . -
m um caso extremo de lassidão perante a cornpaixao.
tões ligadas ao ritual; à "antropologia ao contrário"; ao co '
,~enta~ae cada vez mais intolerantes com relação a um trabalho
às identidades variáveis e, ao final de um percurso acidenta' nar aI11 s I' .
{"lectual difícil e a um trabalho abertdament~~o ltlC e, ao ~esn:o
à encenação como teatralização de rituais. I';':":'" o, estão cada vez mais desejosos e participar dO; ~ maneira nao
.~~aos
" ,~WP. eventos de performance, o que lhes permite se compro-
« d· .»?
,:::/ffiéter com o que percebem como comportamentos ra reais -.
1. CONTEXTO ATUAL
'.;'><Nessas condições, as culturas estrangeiras pare.cem não
Antes de analisar os esquetes, seria necessário poder exa \ '. teressar mais a não ser quando se materIalizam nas
; lheS l U ' .
nar o que aconteceu no decorrer dos anos de 1990. A pai 'd'.' tll dades em conflito e se encarnam nas pessoas reais ou a
.;len , - . d .
da queda do Muro de Berlim e do fim do comunismo, a m ., :;..; .. tar como no exemplo de Gomez-Pena, artista e origem
JIlyen , . , . -
dialização (globalização) é visível em todos os lugares. U , . . ana que vive nos Estados Umdos ha 25 anos. Sua sítuaçao
mepc ,
das consequências inesperadas foi, segundo Carolina Ponce ;.. Uidica bem como a arte da performance intercultural destes ul-
León, esposa de Gómes-Peüa, uma recolonização das artes.: ';\no s anos tende a substituir a encenação mtercultural de tipo
mundialização conduziu à recolonização do mundo da arte 'broo kian o, atraindo dessa forma um novo público.
transformou a paisagem multicultural num pano de fundo" •. . Esta paixão pelo jogo de identidades é, ao mesmo tempo,
gosto do dia. O mundo global da arte é um colonizador .\t.um sinal positivo, visto que se abordam tais matérias sem o
vado pelas estratégias da descolonização?'. (·'moralismo dos anos de 1980, e um sinal negativo, tendo em
Desconfiaremos, em consequência, dos discursos pretenâ '\Vista o desinteresse pela política e pela moral.
mente pós-coloniais que algumas vezes nada mais fazem do
restabelecer uma prática neocolonialista das "artes primitiv :~\; Seja qual for o país ou a cidade onde atuamos, os resultados
i'. dessas experiências de representação de fronteira revelam uma nova
Paralelamente a esta ambiguidade em face da colonizaçãi
observa-se paradoxalmente uma tomada de distância dos artist "·;'·.'relação do artista com o público, entre o corpo moreno e o assísten-
:o;te.branco. A maior parte das interações caracteriza-se pela falta de
com relação ao intercultural e um ceticismo crescente dos te4.'
(implicação política ou ética. À diferença de há cerca de dez anos,
cos diante de uma teoria geral das mudanças. O conhecime !::quando os públicos eram muito suscetíveis aos problemas de gê-
local (a local knowledge de Geerts) é considerado como pre nero ou raça, nossos novos públicos estão inteiramente dispostos a
rível a uma teoria geral. O observador, quer seja antropólogr 'manipular nossas identidades, a ver-nos como objetos sexuais e a,
analista da cultura ou simplesmente espectador, é convidado se empenharem nos atas (simbólicos e reais) de transgressão entre
participar do funcionamento da obra de arte, o que aproxin"à'J;1( as culturas e os sexos, e até mesmo na víolência".
os artistas dos usuários, mas atrapalha os papéis, dando ao
blico a ilusão de participar da criação. Ao que se junta uma Conscientes desse novo contexto, os vídeos dos dez últimos
sidão perante as questões sociais e uma falta de compaixão coro'[(1) anos procuram os meios de análise e resistência para dar conta
relação às pessoas e às culturas desfavorecidas. dasevoluções recentes. "O etno" e "o tecnd', duas noções habitual-

2 G. Gómez-Peüa, Dangerous Border Crossers, p. 211. "ln the past years, perfor-
mance art audiences have experienced an acute case of compassion fatigue.
They have grown increasingly more intolerante of intellectually chalenging and
Apud G. Górnez-Peüa, Culturas-In-extrernís: performi:,~g0.~;"~;~~~!i~f.fgt11 politicaIly overt work, and at the sarne time much more willing to participate
tural Backdrop ofthe Mainstream, em H. Bial (ed.), The
Reader, p. 295: "Globalízatíon has lead to the recolonization of the art acriticaly in performance art events wich allow them to engage in what they
and turned the multiculturallandscape into a hip backdrop. The global perceive as 'radical behavíor"
world is a colonizer captivated by the strategies of decolonlzation" 3 Idem, p. 298.
140 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
A ARMADILHA INTERCULTURAL 141

mente consideradas como antítétícas, são reunidas para ObSê


id de extáticá", como se define habitualmente o ritual
o impacto das novas tecnologias na identidade etnográfic
a,p c,..tensO oua místico. O espectador nao - ,e conviid a d o a parttlh 1 ar
desenhar o novo homem na hora das identidades "novent _
N o entanto, como se pode ser persa na era da Internet; ~ g.10 h 'mento sagrado, a participar ativamente de alguma
eon eci if
;:,'"~:,::,,, . mais ou menos secreta. O teatro, de resto) e requen-
Ou mesmo chicana, mexicano, norte-americano?} "'-nrno nla '"
5~ , d e finido em oposição ao ritual:
, Enquanto _ o teatro
Gómez-Pena procura um espaço equidistante d~ pri . jIlente
Ir, ." falar das coisas
.
relacionadas as relaçoes,
,
o ntual
artística, do ativismo político e da teoria antropológica," Jta
"se ." lun. acom elas e o que ele faz e" reforça-as I ou mu dáa-as I "6
vértice desse triângulo equilátero é constituído por uma ·.fiz COisas, ' . I
,.
5!;,:póroutro) lado não obstante
«'.
define-se muitas _
vezes o ntua ,
blemática que interfere em todos os outros, reivindicando,
.:.: ira geral, como um conjunto de açoes humanas que
a prática é feita por significantes abertos, à procura de um si .:dejIlanei , nada num ruve , I SIm ' b o'I'lCO.
"7 E
m antes de mais es t es
mfic~do possível; o ativisrno parte de um significado (de idei
\<,: ,",.
JunClOn a , ) , .
-.. .'', fit ~ nos t mostram
e s ,em sua maioria, as acões , simbólicas das
antenores) para ilustrá-lo com um significante (formas artís"
cas); a teoria - antropologia ou semiologia social _ encontra:'
-&, quais s e pode observar o seu efeito
. na realidade, pelo menos
, _
',- írito daqueles que os realizam. No entanto, quais sao
em equilíbrio entre significado e significante, testa novas idei' ~~
- s então realizadas? Inúmeros personagens estao vesti-
- .
com, os mei,os da performance e se inspira na performance pi!:' as açoe
.··.·d de modo extravagante, pintados de verde, azul, branco e
precisar e situar a sua atualídade. No final das contas, fica par
-, osro ou recobertos por tatuagens. Recitam . .'
rorrnulasas imcom-
os espectadores decidir sobre as fronteiras dessas disciplinas:.; neg , '1'
:';,
preensíveis, parecem obedecer ~ u~ cerrmorna :mutáave)lt ~-
~orna-se necessário abrir um espaço cerimonial sui generis pt: to quanto impenetrável, que se limitaram a seguir, Poder-se-la
'acreditar que esses jogos são igualmente rítuaís secretos. Com
refletír sobre a sua nova relação diante da alteridade cultural. racial
política. Esse espaço único de ambiguidade e contradição aberto Pe efeito, sabe-se bem que "o rito propõe-se a realizar uma tarefa
arte da performance torna-se ideal para esta espécie de pesquisa' e produzir um efeito ao interpretar algum~s práticas a fi';'- de
tropoética4 . capturar o pensamento, levando assim a acreditar nele, em
lugar de analisar-lhe o sentído'". Tal é bem o caso de ,a~ões
o
espetáculo desses vícieos convence-nos facilmente repetitivas e vazias de figuras, sejam elas ntos tecnológicos
uma coisa: devemos, no que nos diz respeito, levar a r";h",' como em Border Interrogation (Interrogação na Fronteira) ou
pesquisa "antropoética" distinguindo a parte de ritual e de 1-"'<••'_. de Chicana Virtual Reality (Realidade Virtual Chicana). Na
sia nesses grafites. Nela, usaremos brevemente uma maneira;"1 realidade, esses rituais são imediatamente parodiados. Cor-
menor e interrogativa. respondem a um anúncio publicitário (Benetton) ou turístico.
Em Cha-cha-manic Dance (Dança Chá-chá-mânica), mistura
de chá-chá-chá e xamanismo, um dançarino lento e depres-
2, RITUAL? sivo executa alguns movimentos desajeitados, um antichá-

5 ("flow in shared experlence of ecstatic otherness"). D. Kennedy (dir.), The Ox-


Esses esquetes engraçados convidam ao ritual? Certamente ford Encyclopedia ofTheatre and Performance, p. 1141.. . .
não, no sentido do " fluxo de uma experiência compartilhada 6 ("While theatre confines ítself to saying thíngs about relatíonshíps, ritual does
things with them, and what it does is to reinforce ar change them"). A. E. Green,
RituaI em Martin Banham (ed.), The Cambridge Guide to World 'Iheatre.
7 ("a íormal set ofhuman actions which functíon prímartlyat a ~ymbolic lev~l").
4 Idem, ibidem, "It becomes necessary to open up a sui generis ceremoníal space
for .t~e audience to reflect on thetr new relationship with cultural, racial, and A. Hozier, em C. Chambers (dir.), The Continuum Companion to Twentíeth
polítícal Otherness. 'lhe unique space of ambiguity and contradíctíon opened Century Theatre, p. 649. .
8 P. Smith, Rite, em P. Bonté e M. Izard (dir.), Dicticnnaíre de Tethnologíe et de
up by performance ar-t becomes ideal for this kind of anthro-poetical ínquíry"
l'anthropologie, p. 630 e s.
142 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ARMADILHA lNTERCULTURAL 143

-chá-chá, diante de uma câmera instável, antes de desfi)'" ;'NTROPOLOGIA INVERTIDA?


longo escrito, genérico e oral, que enumera os :fi.nanciadore~· '--·A
prestação. Lembramo-nos então da observação de Lévi-St , aso de se dizer "antropologia ao revés'; assim como
" . I q sena o c
O ntua tem sempre um lado maníaco e desesperado!"", . . . ".. -." un do ao revés'" Górnez- Pena coloca -se, em todo caso,
''diz m ' ,
turistas ou cidadãos mal informados veem no mexica"; ~r: e' da etnologia clássica, aquela que ainda conheceu
nou "i)contrap ,
selvagem que executa rituais incompreensíveis e inquietan :.f, " s rimitivos" justamente antes de seu desaparecimento.
-"ospovo p "I ,,--
Em Authentic Apocalypse Aztec Dancer (Autêntico Dan '\'" , orn um objetivo crítico: os seus se vagens nao sao
-Forem, e c . 1" ld de"
rino Azteca Apocalíptico), o dançarino parece obedecef 'i;·CC. lvagens à la Rousseau, nem selvagens a a crue a
punições e concordar com alguém no sentido de seu e •bons
";:",:',.. di se a São "selvagens" art iii" ciais, recons tit íd s museolo -
I UI o
•artau lan ' ,_
tis mo, que retoma ao acentuar todos os estereótipos que i•. .' . te sob os traços de Gomez-Pena, Coco Fusco e Roberto
esperam dele" ". -~cfu"w~~S: estes se expõem num diorama como tendo escapado
Essa paródia de rituais revela, igualmente, um método m! ·51 en , ibid '
-do mundo selvagem, como se fossem criaturas exi I as ao pu-
to sofisticado. Poder-se-ia distinguir, assim, diferentes práti -'~blico do mesmo modo que outrora os selvagens o eram nas ex-
rituais, sempre paródicas, por exemplo: -;;;'~:',':posições universais. , _ _ . .
','_> Não somente Gomez-Pena nao pretende estudar cientifi-
• A exposição científica: O Psicolinguista explica, em esp' ente a cultura chicana e os fenômenos de aculturação no
nhol, como declarar a sua atração sexual à outra numa lín ' c"wtato com outra língua e cultura, como também se diverte em
que não conhece e aproveitando, dessa forma, as vantagensi~:virtJJar com irreverência e humor os hábitos e os estereótipos
bJlmgUl~mo. Este belo discurso está legendado com indicaçõ~c:leseus compatriotas e de seus noVOS concidadãos. Persegue as
em inglês para os anglófonos m o n o l í n g u e s . . r mas de expressão ou de saudação, os gestos de afetividade,
A ter d . .«
• exposição escolar: em Geography Lessons (Lições de Ge6 '•• s comportamentos cotidianos, mas igualmente e rítuats no
grafia), Górnez- Pefia, como professor, enumera sabiamente", ~entido de que sua forma e sua significação J\, determín'~9das e
cidades do mundo para onde emigraram os latino-americano herdadas culturalmente, e não geradas espo~"neamente .Ern
os lugares que eles, nesse caso colonizaram " , seguida, exagera essas características, trata-as como tanto.s ou-
• O recurso à língua: em La'nguage, my P~ssport (A Língll~( ~;.!' tros estereótipos e descreve-as por meio das novas tecnologias, O
Meu Passaporte), ele narra o seu cogito pessoal, uma série dJ;~'!~;: chicano virtual, o Mexican Macho (Macho Mexicano), o Designer
certez,;,:s que terminam com um vibrante "I talk, therefore I a"1H~i)~ Warrior (Guerreiro Desenhista), são outras tantas figuras paró-
period (Eu falo, portanto existo. Ponto). A forma literária desih;:' dicas do seu museu imaginário. A cibertecnologia, em Ethnic
sas litanias é a de uma prece, de uma recitação com múltipla;sf~' Profiling (Moldando Etnicamente), vai de par com uma máscara
repetições da mesma fórmula: "Language, My Passport". vê-séfffi ". dexamã adornada com cornos de um animal. O capacete da rea-
um homem amordaçado, mas continuamos a entender o texto.i.il lidade virtual não muda nada: o chícano, com capacete ou não,
• A prática do tabagismo: em Mexercise (Mexicoexerdcio), o{;i i'. mantém-se em vida como um suspeito e delinquente.
grupo de fumantes está em círculo como que para uma sessão.'lti ]', Se os trópicos são tristes, a antropologia invertida não
de IOga de respiração, porém o exercício consiste em avaliar;,;T,' ,- é, ela mesma, desprovida de humor: os falsos rituais fazem
muito bem a fumada do cigarro. , . ':_ perder a consciência do funcionamento de nosso mundo. A
busca de autenticidade não é mais do que um fantasma OCi-
:odas essas ações rituais - ou supostamente tais - são, vê-se, dental para representar as outras pessoas, uma espécie de
desviadas do seu objetivo, parodiadas numa inversão dos tere
9 A. E. Green, op. cít., p. 829: "in the sense that their forrn and m~aning are
mos, executadas segundo uma "antropologia ínvertída" culturally determíned and inherlted, not spontaneously generated .
A ARMADILHA INTERCULTURAL 145
144 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

pornografia etnográfica para turistas à procura de turis .;." b'.., A antropologia invertida duplica-se numa auto-
!J6roso eij o. . '
sexual. O Pornô Etnográfico é o desejo de ver os "selvag' .,' h orística encenada pelas necessIdades da camera.
'rafia um . d
autênticos" fora de tempo, empalhados como animais , ""g it 'ção filma apenas as diversas etapas do ritual a
, ;Rconstl Ul , . ' . . I
vagens. Em EI Designer Warrior (O Guerreiro Desenhis ';i'C'>. ai' '0' espera angustia, momento cnnco, reviravo ta,
'~-'túr lzaça . ) . . .-
(1997), vemos Górriez-Pefia travestido de indiano "autênt{ :!ii) . " Os amantes da autenticidade consolar-se-ao
""/"0 da Vltona ...
enquanto ouvimos uma língua indígena, que, no entant ;1?!,IJ ue na fim desse longo beijo diante da câmera,
aó:observar q , (", I . d
puramente inventada com a ajuda de rosnados que "soa .,_.-'L "." d dois amorosos sorriem realmente) e es nem e sua
\:- _•. ''qaan o os ,. cC

como se fossem o nahuatl, do qual reconhecemos apenas í\~;?,:-~---. d câmera "indiscreta", como se o corpo erótico au-
'!;\VItÓrIa e a . . . . . .
termos "Benetton'; "Nafta"!", "Calvin Klein'. o comentário: '- . . " • se admitIsse Jamais vencido, muito embora suas
,têntlCO nao
inglês, em voz oif feminina, crava o prego: "Caro espectad- ;))I!1\Í1tiplas identidades.
será que você prefere que ele saia de sua presença, de mod
melhor agradar o seu sentido de autenticidade? Você é ama))
de pomo-etnografia>"!'. -, UM CORPO DE IDENTIDADES VARIÁVEIS?
4.
O princípio da inversão de signos é uma das caracteris"
.- cas dessa antropologia ao contrário, dessa ironia romàntica ;" rpo humano, exposto aos acasos da vida social, torna-
. --Sé o co 1 "12
la Tieck. Tomando frequentemente o seu caso pessoal co .-'Se sempre "uma espécie de banco de dados para,a.cu t~ra ,
uma generalidade, e, em todo caso como objeto de observaç "Ílão é de espantar que ele se revista com toda especle de ~den­
o performer entrevistado por uma jornalista anglófona (b '''Údades cambiantes. Nos vídeos grafites, os. corpo~, ~lca,::o
entendido, interpretada também ela, e não autêntica) passa Y'Ollmexicano, assumem todas as identidades rmagmaveis. Nao
pescoço desta o colar com o qual ela o mantém no laço, depo' ,_- se
"trata
_ tanto do corpo físico e individual quanto do corpo . r
pede ao cameraman para Inverter a perspectiva e se põe a faz 'Y"~dciaI. Neste, de nada adianta perguntar se o corpo em SI e
perguntas à jornalista. Este desvio de perspectiva, certarnen \,,'\essencialmente branco, negro, branco e negro, verde ou azul,
encenado, é tão eloquente quanto um longo discurso sobre ':~Ti-:íneio-marciano,meio-smurf*; trata-se antes de determinar o
etnocentrismo ... :t;f"ltlor social e mercantil que adquire na troca alheia. Como
Mesmo na inversão em Dual Citizenship (Dupla Cidad ;'óbserva Mary Douglas, "o corpo social influi na maneira pela
nía), Gómez-Pena reconstitui o processo de seu compare "',itualo corpo físico é percebido"". Gomez-Pena .apenas des-
menta à justiça diante da administração americana para obte "taca, distinta e parodisticamente, as diferenças, divertindo-se
sua naturalização: o vídeo é filmado como documentário ma' - em provocar medo nos cidadãos honestos ao multiplicar os
o texto do DVD indica que a cena foi reconstituída. Nele, vê-se " estigmas dos corpos "estrangeiros". Por exemplo, o esquete da
autor e sua (futura) mulher Carolina esperarem, depois sere Evolución Alienigena (Evolução Alienígena) mostra um cor-
recebidos por uma funcionária asiático-americana. Porém) cô po verde e manchado, mais extraterrestre do que estrangeiro:
mica inversão, a funcionária leu os livros de Gómez-Pena, _ gasto, menosprezado, esse corpo acaba por aprumar-se para
também é uma de suas fãs ... O dossiê é imediatamente aceito' tornar-se fascista ao fazer o cumprimento hitlerista e arrotar
o casal festeja o acontecimento com um longo e aparentemente slogans nazistas. Em Autêntico Dançarino Azteca Apocalíptico,

10 Nafta: North American Pree Trade Agreement (Tratado de


entre os Estados Unidos e o México).
Livre-comérdI·1~:"
"+:~~
12 c. Wulf, Penser les pratiques sociales comme rituel, p. 1 3 . . ..
_" Smurf no original schtroumpf Em português: pequenos anôezinhos a~U1s Cria-
11 "Dear voyeur, do you Iíke it more when he steps outside ofyour present in~1 dos em 1958 pelo cartunísta belga Pierre Cullíford, 1928-1992,. posteriormente
arder ,~o appeal to your desire for authenticity? Are you Into ethnographif?~ transformados em desenho animado pelo cinema norte-americano (N. da T.).
pornt -f - 13 Natural Symboís, p. 69.
147
A ARMADILHA INTERCULTURAL
146 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
escala mais modesta em nossos grafites, notamos
O guerreiro, inspirando terror e derrísã o, d anca nu
D it d
en er a o, com todos os atributos do comb ' , o
'
s~ cesso similar: OS personagens dos esquetes têm identida-
~ariável. Mesmo o charmoso cãozinho de Guillermo, um
representa o folclore . atente tal COUI,
~\
,'\lah , em The Most Famous Mexican (O Mexicano mais
. Em Hoodoo Possession (Possessão Boodoo*)";
rogmo pela câmera de OI'tO mi'1'írnetros' um
.~oso)uase diz cansado de mudar ininterruptamente a identi-
d . filmado de ser'
d
maquia-se' .e preto e branco como os black . t
mlns rels outrp,
;fla ,na Internet. As caricaturas etnográficas expõem no rnu-
. o '
,,'J~\ljdentidades
de
, e rntrsrcoe brancos diIS fiarça d os em negros de ' ,s c~
congeladas, uma série de personagens que
to res
racista memória'' antes de I am b uzar suas luvas bra smlstr " ',"o,ID'terditas de serem tocadas. A identidade é modificável,
cosa -
;;;tdaptável ao contexto e à situação. Em Trimming Ones Identi-
uas cores lambuza ncas con{
d
dade raciaÍ, deixand:00 ~~:~o, e~condendo
as pistas da iden' jy(construindo Sua Identidade), Gómez-Pena, com a cabeça
exercício de hibridação. rva or sonhar com esse estran] )~ureolada como a Estátua da Liberdade, com um par de te-
,;our nas mãos, golpeia tudo que ultrapasse seu corpo: cabe-
As diferentes identidades correspondem c. as
f
de experiências que o indivíduo po dee lazer a uma "los, orelhas, nariz, língua. Seguramente espera, dessa forma,
E numa úniplUralida,
.-
xprírnem-se numa aliança inesp r d ica jornad . fornecer o retrato-robõ do bom americano com a identidade
nova dí . _ e a a entre etno e tecno n ' . ,Il!uito sonhada. A cammodíty culture (cultura mercantil) molda
rvtsao entre o vivo e . tu I O '
laboratório, em Interrogaçã~: : F a . corp~ reconstituído e_, 'cc "desse modo nossa aparência, nosso corpo, nosso pensamento.

nada de novo; conduz os cor os :ont~'r~,


na? .tem, entretant~ .. A. identidade física assemelha-se à noção de habitus de Pierre
fronteiras e às realidad p vtrtuaís a polícía muito real da' Bourdieu: uma maneira de manter o seu corpo de acordo com
es concretas dos chicanos "
certas atitudes, um tipo de comportamento julgado apropriado
N o fundo, ainda está ali" . '
galope! Apesar de toda . persIg~ o natural, ele voltará", a.\lm contexto social, uma interiorização pelo indivíduo dos
dos chicanos continua;' essas novas Identidades, a alienaçãj saberes práticos e corporais que acredita serem "naturais" e que
ls
tidades tradicionais. gual, Contudo, eles perdem suas ide são, de fato, ditados pela sociedade .
Porém, esse habitus, traduzido no teatro frequentemente

:i~::~;:~i:~;ee:S~e~~d~ntidades tradicionai:~~~::a~re
O mesmo ocorre com as identidades assu .
pelo gestus dos personagens, não tem nada de fixo. Cada ele-
mento é, por assim dizer, composto por identidades múltiplas.
o sociólogo " r em sua pertmência. Como o afilrnrra'?\f'Il\: Com Gómez-Pena, distinguem-se quatro componentes prin-
mexicano Roger Bartra:
cipais: "As identidades compostas de nossa etno-cyborg/per-
sonae são fabricadas com a seguinte fórmula: um quarto de
no caso do Méxí

. ..,
[ ]
~eu~~~~:~:7:fÓp:i:~::;i~~:f;~~~;~:~:~;a~:~~:::::d
emos falar da condição p , .
f(a,rnlU!' estereótipo, um quarto de projeção do público, um quarto do
artefato estético e um quarto de comportamento social"!".
mente porque a era do Nafta (North A . os-mexicana, não SO~ Bem entendido: o valor e a importância desses quatro com-
nos mergulhou na chamada «mundial.me:l~~nFree Trade Agreement),
ponentes variam de um caso para outro. Eles permitem es-
crise do sistema político colocou fi rzaçao, mas, sobretudo, porque a-
xícanas'' de legitimação e identida:l~.as formas especificamente
tabelecer uma espécie de tipologia dos esquetes, segundo a
hierarquia e o peso dos quatro componentes.

15 P. Pavís (dír.), The Intercultural Performance geader, p- 3-4.


Hoodoo (também conhecido como con' . 16 G. Gómez-Peúe- citado em H. Bial, op. cít., p. 297: "The composíte identities
que se refere a um ccnju t d
XIX lJure) e um termo originário do século
d o sincretismo
. no
entre as cultu ecrençase
ai . praItircas populares dos EUA fruto of our ethno_cyborg/personae are manufactured with the following formula
sã d . ras ncana indígena . . in rnind: one-fourth stereotype. one-fourth audíence projeetion, one-fourth
14 o pre ommantemente negros (N d E') e europeia, cujos adeptos
aesthetic artifact. and one-fourth social behavíour"
Blood, Ink, and Culture, p. 47. . a "
148 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ARMADILHA INTERCULTURAL 149

Tom em os La Kabuk Clu b Girl (A Garota do Clube Kab4 X,'lÇ,o,re tomada de estilos. .históricos (MTV dos anos. de
* 1
1970,
um d os maiores sucessos p l ásticos desse DVD. Um bom' 'eJcemplo), vídeo exquisite corpse (cadavre ex~Uls~ ,~gu-
e• cons 1"1 Id I c ,
1 UI o pe o arterato estetico, pela beleza dos foto
qua'
' - gra ""li~obras (A
Garota do Clube Kabuki, Dança Chá-chá-mánica
e pelasi l ummaçoes e a perfeita sincronização com a rnú , " ;;~"C',hrísto de Samoa) caracterizam-se pelo uso específico do
. , tiSIca'
parte estereotIpada e menos evidente precisamente
lásti . " POrq4 .}1~eo ligeiro: fluidez, ralentamento, renderização de gráficos,
valor P astíco das Imagens e grande. O componente do co );'tfua sonora remixada.
portamento social é crucial, porém difícil de avaliar- e'
' . . preq
" .H;, VimoS que os rituais representados são expostos sempre
h
con e~e;:b~ ngor da forma ntual do kabuki para ficar choca ;·'d'·o aneira irónica. De um lado, não se trata nunca de rituais
com o a íto entreaberto da dançarina do clube, de acord " ~}':--~m ,
':stentes, no México ou alh ures, porem
êm dee rituais
rí d a VIid a co-
d o~
'~iana, de ações repetitivas e vazias nas quais a rigidez formal
o.
o estereótipo a gueixa. A montagem alternada de planos ii
branco e preto de manequins ocidentais confrontados cOmi .,Í~J1lbra os rituais tradicionais, sua repetição ma~íaca o~ seu
olh~r_dos africanos é mais enigmática: somos colocados,,} "lado lúdico, sem ter a pretensão de efetuar uma açao simbólica,
pos~çao dos afnca~os desco,brindo 'uma cultura exótica bel ;por outro lado, não é excepcional que um ritual ou uma trans-
.
'
porem pouco explícita. O vídeo funciona sob o princípio
representação "fissuradá': faz contraste entre a face e o cor'
(i formação seja "teatralizada"; isto é, mostrada num outro quadro
'oi que não o seu meio de origem e,para _um p?blico a~ante de
da Japonesa, entre as cores vivas do kabuki e o preto e bra . oespetáculos. Neste caso, a sua eficácia nao esta necessariamente
do desfile de moda na África negra. Quanto ao último cor ,'destruída, mas muitas vezes ameaçada. "Falar da teatralização
ponente ~ a projeção do ~spectador -, certamente é impo' 'do ritual não implica nada daquilo que se refere à eficácia,
~ante, p,orem pouco previsível. Para cada clipe, é fácil medir' ;"mesmo que isso possa constituir um problema que a própria
importâncía relativa dos quatro componentes e distinguir eiC teatralidade do ritual ou a evidência da atuação do ator destrói
tre as obras, acima de tudo formais, e os sainetes diretamen " na crença de sua efetívidade"!",
políticos e militantes. Para esses grafites, o objetivo não é absolutamente conser-
, . Ao fazê-lo, entramos no domínio da análise formal e ideo~ili1 'h,' var uma eficácia muito problemática dos rituais parodiados,
10gl~a ~as obras, na i~t.erpretaçãodos vídeos. A noção de ence~a~ '~" mas sim utilizar essas formas para nos fazer tomar consciência
naç~o e,. neste caso, útil se a concebemos como a teatralizaçã,j:Sf ;.' de nossos hábitos culturais e de sua relatividade. Paradoxal-
de rrtuais, como a expressão estética de ações simbólicas. ';:;' mente, o lado lúdico dos rituais parodiados reforça a identidade
;-
'~'i"P~:

da comunidade, que é a finalidade da paródia. Nesse sentido, de-


i,;; :.';:: vemos constatar o sucesso do empreendimento. Resta saber de
5. A ENCENAÇÃO COMO TEATRALIZAÇÃO
qual comunidade se trata e se a mesma não evolui constante-
DE RITUAIS? ,;;; ,o' mente. Para um não chicana, parece que a comunidade excede

Falta espaço para proceder a uma análise detalhada dos vídeos';ii :. Cadaver exquis (cadáver delicado): "jogo [surrealista] do papel dobrado, que
consiste em mandar compor uma frase ou um desenho por várias pessoas, sem
os quais são de uma grande sofisticação estética e política;'): •
que nenhuma delas possa ter conhecimento da colaboração ou colaborações
Cont~~tar-nos-emos em resumir alguns grandes princípios precedentes. O exemplo que deu nome ao jogo está na primeira frase, presumi-
de análise, c' velmente obtida desse modo: 'O cadáver ~ delicado - beberá - o vinho - novo":
-,:--,' ','

i '. Dtctionnaire abrégé du surréalisme, apud J. Guinsburg; S. Leirner (orgs.), O


Surrealismo, São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 778 (N. da E.).
• Seria preciso, antes, distinguir as formas utilizadas: perfor-" .'
mance filmada, vídeo feito especialmente para a televisão ou "
para o cinema, vídeo-poema com um trabalho direto no material .'
r 17 K.-P. Kõppíng, Ritual and theater; em D. Kennedy (dir.), op. cít., p. 1139 e 5.:
"Speakíng of the theatricalization of ritual Implíes nothing about its efficacity
through there may remain a problem if the very theatricality of ritual or the
obviousness of its play acting undermines belief in its effectiveness"
150 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ARMADILHA INTERCULTURAL 151

claramente esse grupo de origem. É por isso, aliás, que, eo" é,' ar este título mais rico. Lembramo-nos desta observação de
o estouro das comunidades, a encenação deve saber adaptar ,,"~einer Müller: "O autor é mais inteligente do que a alegoria; a
obra de arte a públicos menos específicos. '?\rietáfo ra é mais inteligente do que o autor"!", A encenação não
• Em arte, o sucesso também é uma coisa muito relati" ' . deve etiquetar o saber do autor ou do encenador, deve deixar
Nesse tipo de teatralização, o sucesso é da mesma maneira um espaço de liberdade interpretativa para o espectador. Porém,
tropológico: consiste em teatralizar aquilo que a etnologia le que cousiste, exatamente, essa liberdade da encenação?
varia anos ou volumes para demonstrar. O mad mex encont; '. "Encenação" poderá parecer um termo impróprio para
imediatamente os meios do humor para chegar a essa teori esses vídeos, visto que nada é, com efeito, levado à cena. A
zação in situ, com a denegação que o humor implica: ele nãnoção, entretanto, merece que nos detenhamos nela por um
está seguro de que a reflexão de alcance teórico seja exata, ma instante. O performer está presente em toda a linha de can-
o fenômeno é pelo menos "esgaravatado': o ponto é maread junto: autor, at?r, teórico, ativista e, cúmulo do azar, pro-
com ligeireza. Para os espectadores, lá está o essencial (e pouc fessor ... Não há, como no Odin Teatret com Barba, o olhar
importa que os moralistas ou os cientistas não achem diverti'dó' exterior de um encenador julgando e corrigindo o trabalho
serem· dublados por um xamã incompreensível)." dos atares, ou atores "dramaturgos", estando eles mesmos a
Gómez-Pefia retorna frequentemente ao seu "pecado ori4t~ conceber sua partitura. É ao mesmo tempo um inconveniente
ginal": ter trocado sua familia e seu país pelos Estados Unidos. . e uma enorme vantagem. Às vezes falta distância a Górnez-
e fazer de sua vida, após 25 anos, uma perforrnance contímI<l -Peüa, bem como o sentido de repetição ou redundância. Em
e interminável. Se esse "pecado" não poderia, com efeito, sêK 'contrapartida, isso lhe dá a faculdade de desdobrar-se em
remido, não mais que seu sentimento de culpa e a sensaçãp'iumperformer-personagem e em um comentarista, particu-
de estar sempre atrasado na realidade mutável, ao rnenosjf larmente nos esquetes em que está em questão o poder da
sua posição de teórico, de comentarista imediato da históri 'linguagem, em Censurado ou em El Psycho-Linguist (O Psi-
não poderia lhe ser negada. Se ele se lamenta - antífona clái.·l;olinguista), nos quais ele se dá ao luxo de interpelar o espec-
sica - da incompreensão dos críticos, legitima-se, ele própri '. tador do vídeo ("Me captas": "Você manja?"), acrescentando
enquanto teórico muito avançado da análise da sociedade e de. ','ainda em diferentes níveis da enunciação o da metacomple-
suas identidades. Poderia servir de inspiração a outros artistas ';' mentariedade. Esse procedimento do acréscimo é frequente:
em contextos culturais diferentes. ,". . uma fita que passa na tela como relativização permanente do
+ Estaríamos errados em limitar o sucesso dessa legitimação;';;l~ sentido, como modalização última do dito.
à "antropologia Invertida" Pois é justamente no trabalho sobreg~}j • A encenação encarrega-se de construir e de fazer interagir
as formas, sobre o significante lúdico ou cênico, sobre o enigm":;~\i; todos esses níveis de sentido. Quando a cena não é alegoria
de certos esquetes, que a sua teoria pode progredir. Há claraif'i:.,,'·rIP uma situação já conhecida, mas sim uma procura de novo
mente dois métodos na construção dos esquetes: dar a conclu-.{~i sentido, a encenação é como um grafite, isto é, uma "obrá' não
são ou mesmo anunciá-la antes da dramatização (é assim elI\diíli liberdade no traço, fragilidade das formas, esponta-
Binational Boxer [Boxeador Bínacional] ), ou bem recusar-se al4r da expressão. Visto que é provisório, apagável, sujo, o
concluir, deixar o observador adivinhar e continuar a pesquisaii~Jjgrafite dá uma primeira impressão da qual é difícil desfazer-se.
Em White on White (Branco no Branco), ao contrário, a valo-'4"ií Por antífrase, ele adquire uma profundidade e uma gravidade
rização das formas produzidas, sem ideia definitiva ou precon- :),lfi O grafite é uma arte que parece não tocar, mas
cebída, constitui o cerne da encenação. Se Boxeador Binacional que deixa traços.
é uma alegoria transparente da esquizofrenia do autor, Branco
no Branco é um símbolo muito mais dificilmente decifrável, e 18 Rotwelch, p. 141.
152 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ARMADILHA INTERCULTURAL 153

• A encenação consiste numa determinação de sentido, "li '(ídos os complementos possíveis e nem terminada no sen-
momento e num contexto dados. Porém, nada de absoluto n (í"d~ completed.Qualquer grafite é um palimpsesto, apaga os
se ritual. Numa encenação, há sem cessar decisões a tomar, t~'riores para sublinhar o novo estado paroxístico da questão,
colhas a respeitar, ações a serem executadas, hábitos a obser 'ew world (b)order (o novo limite/ordem do mundo).
para que a representação exista. A conjunção desses fenõm- -"'-::Encenar esses rituais) chicanos ou outros, é encontrar sem-
dá sentido ao conjunto. eu.'m. arranjo com a realidade: eu arrumo a vida para que ela
Será que a encenação (desses grafites, por exemplo) é if.. d
:'hfe'ça artística; eu arranjo a arte para que ela toque a vi a. Eu
mesmo tempo teatral, performativa e ritual? É teatral, visto q âi~~pjO o meu sombrero, e continuo.
deve encontrar os meios cénicos, visuais, significa~ivospa ,-.".
realizá-la; é performativa, pois deve realizar todas essas aç . .
e é ritual porque as ações estão à espera de serem realizadas
gundo um roteiro determinado. Devido a estas três dimensõ
teatral, performativa e ritual, a encenação permanece sem.

.. frágil, provisória, revogável.


A encenação é necessária para a dimensão puramente p'
formativa e "ativa" do ritual, pois acresce a dimensão da ficç
da estética, da dramaturgia, numa palavra, da teatralidade. ~.
contra-se, dessa forma, encenado tanto o objeto cêníco, fílmj'
ou videofílmico, quanto o olhar do observador confrontar
ironicamente com esses rituais divertidos ou com essas far
sérias. A ironia é a figura principal da encenação: é uma ma .
ra de dizer cenicamente o contrário daquilo que é dito ve
ou aparentemente, um modo de parodiar qualquer coisa p
explorar-lhe todas as facetas. O ritual não tem humor; assi:
força-nos a seguir um cerimonial que não criamos e que ri
aborrece, mesmo que às vezes nos fascine. A encenação n
desestabiliza sem parar, mantém a nossa atenção em estado.
alerta. Coloca o nosso olhar e o nosso corpo num quadro
museu, vitrina de exposição, máscara, papel de subalternoo
de falso idiota (Schweyk!) -, para sugerir através da ironia e
antífrase a mensagem contrária, ou pelo menos outra.
Furtemo-nos de remeter a encenação a um pensame
ritualizado ou religioso. Ela nos evita de realizar as incriv
performances que o mundo pós-moderno espera de nós!
nada serve, portanto, elaborar a metáfora barroca do arranl~
divino das miseráveis ações humanas. Deste ponto de vist~\t
cada grafite apaga os anteriores, é como um instantâneo, unJ~~~
"fotografia de pobre" (feita sem câmera), uma etapa rumo.~,.-·
uma representação jamais completada, que nunca foi provi.cl~.
w:'
'Teatro em Outra Cultura:
Exemplo da Coreia*
A encenação, invenção francesa, e mesmo parisiense?
Absolutamente não: ela é o resultado de todo um moviment~k
teatral europeu procurando sempre' controiar meihor os sign*
do espetáculo, Desde que o mundo é mundo, ou seja, desdé',
atuamos, portanto, desde sempre, "
E o que acontece com as outras culturas, não europeias?S'úa
tradições não são regidas por leis semelhantes. O peso dasf,;-
tradições de atuação ou da dança é muito forte para autoriz~~
uma releitura, uma reinterpretação e 'uma criação autônom';:~
.'>1
logo, uma encenação.
Com o expansionismo europeu depois do século XVI, a '-~:~f'
aproximação das culturas e o interesse do teatro peias tradi9~
"lonqínquas" surgiu, no mesmo instante - por volta do fim dô;~
século XIX: não é um destino? -, a encenação.
Podemos exportá-Ia? E de que maneira? Ela está à venda
Ji, dilh1lmestrangeira, percebe-se imediatamente o que é estra-
licença? Ela se reinventa nos espetáculos não europeus? .f14 porém será que percebemos aquilo que nos
artistas asiáticos (especiaimente chineses, japoneses, core' ãmiliar; especialmente numa cultura ou numa obra que sa-
reivindicam Stanisiávski ou Brecht, Kantor ou Wilson. ser "outra" e longínqua? É mais fácil discernir aquilo
':nos é comum ou aquilo que é estranho.
Ao invés de exportá-Ia, ou impor a nossa habilidade teórica
'!buando se trata do teatro praticado atualmente na Coreia,
vejamos antes de mais nada de que forma "eles" a importa
io aproximar-se dele? Ela continua para nós sempre estran-
e a adaptam às suas necessidades. O que é que lhes impor,
à? Deveria se examinar se a noção ocidental de encenação
verdadeiramente?'"
cóntra um equivalente nos palcos coreanos contemporâneos..
No entanto, será fácil colocarmo-nos no ponto de vista do o , h,. exemplo coreano nos ajudará a relativizar e a precisar a
Além disso, asiático, a, ainda por cima, coreano! ção europeia de encenação.
l· Caso se conceba a encenação como a colocação em prática
A curiosidade está, no momento, em nosso campo: mas ele#
""bra dramática ou cênica para dado público, de acordo com
como manejarão as ferramentas para ler nossos textos
tética de um encenador, é fácil imaginar que as condiçôes
e os deles, para continuar suas criações? Para que haverãc),
6ricas e culturais de nossos dois países haverão de induzir
de servir-lhes nosss abridores de latas desajeitados e
esultados" muito diferentes. Ora, naquilo que se refere aos
Para chegar ao cerne do sentido?
etáculos teatrais, sejam eles literários ou visuais, os resultados

capítulo retorna os desenvolvimentos de um artigo publicado em Culture


coréenne, n. 70, e do prefácio a Théâtre coréen d'hier et daujourd'hui, de Cathy
Rapin e Im Hye-Gyông, que constitui a melhor introdução ao teatro coreano
moderno e contemporâneo.
156 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO EM OUTRA CULTURA: O EXEMPLO DA COREIA 157

não são francamente diferentes. Visto da Europa, Se pene 6J0dO exatamente viu a obra pela enésirna vez, um aspecto
rá que os artistas coreanos, ávidos por informação, conhec tela escondido que se torna a marca do encenador. Espera-se
bem os espetáculos europeus ou americanos e que Souber' 'plicitamente que a interpretação faça alguma revelação, ou
assimilar sua maneira de proceder. Porém, o teatro europ dlomenos que o encenador não se limite a fornecer uma cópia
não se aproximou das formas asiáticas? No momento da g '~6 original russo, que ele nos diga como imagina esse objeto do
balização, as descobertas artísticas e as trocas inter-artístic ,Hesejo, o cerejal. O que nos arriscamos a perder no momento,
são quase instantâneas. ;~través da metáfora da destruição do cerejal?
A encenação não deveria adaptar a peça ao contexto core a-
·';••no atual, organizar os corpos, as maneiras de falar e moVer-se,
1. UMA TEMPORADA NO PARAÍSO "",de exprimir as emoções? Coisa que parecerá tanto mais confor-
.tivel visto que os atores são coreanos e que sua silhueta e sua
Seja como for, o amante de teatro, o desocupado cultural pr "'expressão são os do momento atual. Em resumo, a transferên-
cura tanto perceber a diferença quanto compreender os prin{ ria cultural e de interpretação exigiriam que Yoon Young-Sun
pios estéticos da vida teatral coreana. Dentre os cerca de trinf '.' tomasse mais decididamente um partido.
espetáculos vistos de setembro a dezembro de 2003 em Seit O que apreciamos no palco, qualquer que seja a forma, é
retomaremos apenas alguns exemplos, aqueles em que a ene.' '. podermos ser, nós espectadores, ao mesmo tempo submergi-
nação pareceu repousar em outros princípios diversos daque! "dos pelo caos e sensíveis a uma ordem invisível que governa a
aos quais está habituado o espectador europeu'. :hepresentação e que tem por nome encenação. Esta experiência,
Parte importante das produções contemporâneas em Sepespectador estrangeiro a tem com os espetáculos de Seul. O
é constituída por peças clássicas europeias, de Shakespearà .'desconhecimento da língua acentua o prazer do caos, sem, en-
Moliêre ou de Ibsen a Tchékhov. É sempre apaixonante v ;"lretanto, fazer esquecer a ordem oculta do palco. Porém, esta
r.:
como esses clássicos mundiais são abordados e muitas ve . mistura de caos e ordem é frequente nas encenações experi-
renovados pelos artistas coreanos. Na encenação de O la, .mentais, que constituem a brilhante vanguarda de batalhões
das Cerejeiras, de Anton Tchékhov, Yoon Young-Sun abord po teatro profissional coreano. Desse modo, na encenação por
uma obra de contexto cultural e temporal muito distinto. Nu {4,'Yoon Ieong-Seop do texto poético de Hwang Gi-Yoo, Material
espaço ingrato e reduzido, recriou um universohomogêneo _ .~lMan (Homem Material), no Teatro Chayou do Seul Art Cen-
estilo de interpretação naturalista. Os figurinos de Kim Hy~:"ter, o maior teatro da cidade, a ordem era perceptível debaixo
-Min, num harmonioso camafeu bege e branco, reforçaram!' do caos. Yoon Ieong-Seop, conhecido como cenógrafo e atual-
unidade desse universo que remeteu à Rússia de cor sépia d·.. mente encenador, realizou uma integração perfeita do espaço,
fim do século XIX e criou um mundo em si mesmo. Entreta~:'k: ;;';" do movimento cêníco, da trilha sonora e da poesia. Mais do
to, a caracterização dos personagens não fez um personageJjti~ i(;que encenação teatral com fábula e diálogos, tratava-se de per-
ressaltar mais que outro, ela não propôs uma leitura inédil~J~ ~;:,formance e instalação. O texto poético de Hwang Gi-Yoo, que
da peça, uma resposta pessoal do encenador sobre o profun(jªq;l; ;fi .conta a história de personagens mortos no desmoronamento
sentido da perda desse cerejal. Pode-se considerar essa timid~~~ ;.de um grande magazine, não tem necessidade de ser encenado,
como uma marca de respeito para com a complexidade da peçá~~l "- interpretado e concretizado por meio da atuação, ele se bas-
porém, de um ponto de vista da encenação ocidental, lamenta;\~ t·· ta para ser escutado, "instalado" num quadro formal e num
remos que essa versão não tenha feito descobrir no espectadot;;~~ .,. espaço modulável, enunciado antes pelos performers do que
:·'i,· pelos atares e personagens dramáticos. Sentia-se a influência
1 Ver nosso dosstê sobre o teatro na Coreia, 'Ihéãtre/Publíc n. 175, p. 35-62. :.'.._
•..:.. •'.'..•. deRobert Wilson na perfeita maestria de espaços e da luz. No
,-<~8 '~.
[58 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO EM OUTRA CULTURA: O EXEMPLO DA COREIA !59

entanto, à diferença de Wilson, Yoon Ieong-Seop valorizO' 'tlpantes japoneses: da,::,as de companhia, mudangs (xamãs
fez entender a poesia de um autor contemporâneo. Sua err 'írtinas). As iluminações produziam delicados camafeus e
nação ou sua cenografia (é impossível estabelecer a difere ;magníficos figurinos de Kim Hyun-Sook observavam um
consistiu em colocar à vista duas pistas paralelas: a sequên utu
s. equilíbrio entre a exatidão histórica e as formas ou tonali-
de imagens e o desenvolvimento do texto. O espaço não era !ia@es contemporâneas. A música, muito melódica e altamente
solutamente mimético, era criado pelas variações da ilum] ;)~eritimental, foi sempre agradável e sem dissonância. Sua com-
ção e pelas indicações da trilha sonora. Contrariamente ao [jgojição muito, neoclássica emprestou do Ocidente a sua base
. 'I
clássico da encenação ocidental, o palco não ilustrava um te .rítiriica e melodrca, produzindo um grande efeito de música
percebido como um material mais plástico e musical doij ~tóreana tradicional colocada em fusão com fontes contempo-
literário e semântico. Esse trabalho foi mais uma performs ?·"eas. Assim como a cenografia e o gestual, ela tinha alguma
ce do que uma representação teatral, não visando a nenbn ..{oisa de elegante e harmonioso, mas também um pouco de
simbolismo, a nenhuma explicação, a nenhuma resolução', [ábricada e artificial. As vozes amplificadas pelos microfones
enigma textuaL Em Seul, assim 'como em Paris, o especta' "perderam sua fragilidade, ficando à mercê do registro musi-
nâo está habituado a ver o texto inscrever-se no espaço in ·cal. Essa grande realização da indústria cultural e do comércio
pendentemente de seus locutores, em ultrapassar as noçõ :déexportação se fez um pouco às custas da pesquisa artística.
fábula e de troca dialogada. Esse gênero de produção contí ~iil.i.Ianto à encenação, cumpriu uma função ideológica não ne-
minoritário, aqui como lá embaixo. O que é comum na Fr "gIigenciável, visto que fez passar, de maneira brilhante e quase
e na Coreia neste começo do século XXI é a procura de técn ;i,\Ibliminal, a seguinte mensagem: a última imperatriz encarna
de atuação, de dispositivos cenográficos, de novas mídias. Di ':desejo de independência da Coreia diante das grandes po-
resulta uma insistência no corpo do ator em movimento e' nelas, das virtudes da aristocracia, da resistência de todo um
certo esfacelamento do texto como origem e fim do teatro', rvo ao imperialismo japonês, do fim do esplendor imperial.
Na maior parte do tempo, os espetáculos são concebi este modo, esse belo objeto cênico deu uma visão passadista,
para um público muito amplo. Alguns espetáculos "de prím dealízada, conformista da história coreana, mas paradoxal-
ra classe'; como La Derniére Imperatrice (A Última Impt ·e.nte concluiu, ao mesmo tempo, pela necessidade de abrir-se,
triz) - um musical que conheceu, a partir de 1996, um sue: tualídade, às influências estrangeiras e de encontrar o seu
mundial -, são casos típicos de uma produção de qualid iii"r no concerto das nações.
numa instituição prestigiosa, com os melhores intérpretesç :·Essa idealização do passado não é a regra geral, mesmo
momento. Evocando os faustos da vida imperial, as intrigas, ra peças que, tal como Wuturi, inspiram-se num conto po-
corte suscitam a admiração do público de classe média. .N ar e são reescritas com palavras da atualidade. Não se tra-
sa representação do passado glorioso, tudo concorreu pa. -portanto, como no caso dos clássicos franceses do século
produção de uma obra harmoniosa e de "bom gosto': O~.' ;r" de olhar o mesmo texto criando completamente uma
lés) entre coreografias e artes marciais) estavam perfeitanu ya-encenação, mas sim de reescrever inteiramente a lenda
regulados: a ocupação do grande palco do Seul Art Cent . . daptá-la à nossa época e segundo nossa compreensão atual.
otimizada. A cenografia leve, discreta, maleável graças a ta-se de criar uma nova peça, e a interpretação cênica irá
gos de luz, respondeu exatamente às necessidades da atua riar, como acontece conosco, de um encenador para outro.
e da encenação. Constituía tanto o quadro desse palácio i. ,\liferença da Europa, a publicação de textos dramáticos, na
quanto a plataforma na qual se inscreviam os movímenté breia, não remonta senão ao começo do século xx.
as figuras dessa história agitada. Nesse palco evoluíam to ;" Wuturi, escrita e encenada por Kim Kwang-Lim, inspira-se
os elementos culturais esperados: soldados da guarda ímpé .~"enda do bebê gigante e da montanha deslocada. O texto
160 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO EM OUTRA CULTURA: O EXEMPLO DA COREIA 161

está perfeitamente integrado à representação, corno se fosse s 'L',,,,,r eV'DIIUIr essa trupe no próprio palco do Théâtre du Soleíl, lá
emanaç~o orgânica, corno se tivesse saído de situações do jogO :5Cimae, nos anos de 1980, Mnouchleine inventou o seu estilo
O espetaculo agrupou harmoniosamente todos os meios cén '"tP,,:ultUlral, e constatar a originalidade do interculturalismo
coso A poesia da escritura não impediu a emergência de uni: ,:oreaJ10, com o plus de humor pós-moderno de Lee Sang-Woo
fábula claramente narrada. Música, dança e deslocamentos rii suas atrizes parodiando os filmes americanos.
mam a palavra, conferem ao conjunto sua vitalidade. O gestu~p; Talvez o teatro coreano tenha passado a ser diretamente um
compõe-se de atitudes, poses, tensões, passos dançados, empres;:i!l "globalizado" e explorável como um bem de consumo,
tados das artes marciais, de urna tradição de atuação que pod~:a~ eSse tipo "McTeatrd' dos musicais. Ao retornar a urna cultura
ríamos comparar à nossa commedia deli arte: gestual codificadót~ tr'idiciem,ll coreana, mesmo que essa cultura esteja a mil milhas
mas também modificável, expansível, tal como essa comédia d6ffl Coreia atual, Kim Kwang-Lim consegue, ao contrário, com
nosso tempo, inspirada pela comédia italiana, porém aberta s()~;m' projeto Wuturi, manter um elo com a história e a cultura de
bre nossa época, que Jacques Copeau ou Aríane MnouchkiIi~~ país. Assim fazendo, ele inventa seu próprio "intracultura-
procuraram estabelecer. Ora os atores faziam passos bem an',,!\) . Ao trabalhar por contraste, entre cenas dançadas e cenas
corados no solo, ora saltitavam de um pé para o outro, o dOtid'$\' "faladas" realistas - seja em Wuturi, Les Coréens ou A Murder
curvo, o tronco inclinado à frente, os ombros subindo e de§!i~ Case ofPresident Lee -, ele distancia e esclarece um pelo outro.
cendo a cada mudança de apoio no solo. Reconhecia-se o pasi:~f aí reside uma diferença radical com o interculturalismo euro-
so tipico da dança tradicional coreana. Porém, esse recursoi&\f;; décadas de 1970 e 80, a referência a urna e outra cultura,
técnicas de jogo tradicionais não era simplesmente uma pro~} mesmo que desaparecida, não se opõe e não exclui urna escritura
cura de identidade como nos anos de 1970; era já a confirma~g;;: dramática puramente contemporânea. Os momentos de dança,
ção de urna identidade ao mesmo tempo cultural e profissioniJ~ Je~:ide)spela coreografiade Prk Iun Mi, não são intermédios de-
do teatro coreano. Vê-se todo um caminho percorrido dess~~~ cOl'ativos, momentos para respirar e se distrair; são ocasiões de
anos. Nos anos de 1960, na Coreia, tratava-se de traduzir eà~!~; contraste, de enfrentamento entre duas épocas: técnica brechtia-
s
iJt1.o;,;;. "..- de distanciação e de conscientização política.
vezes imitar o teatro ocidental, para depois, no curso dos anij,."_.".1;;--
de 1970 e 80, procurar uma identidade mais coreana, especial*JI
mente para o teatro político: a partir de 1990, depois do fim d~~~
ditadura, a encenação retomou as formas tradicionais no qu~{1t
dro geral do teatro mundial intercultural (Brook, Mnouchkinef~~
e encontrou um lugar descomplexado na cena internacional~
Autores e encenadores como Hwang Gi-Yoo, Yoon Jeong-SeoIi1'ti~
Kim Kwang-Lim ou Yoon Young-Sun, dos quais lembramos osiff;
'._,,·"i
trabalhos, encontraram perfeitamente esse lugar..·~~;
Em outra encenação dessa mesma peça (Wuturi), interpre.1i~
tada especialmente na Cartoucherie de Víncennes, em setembiií";,\iii
de 2004, o novo encenador Lee Sang-Woo insistiu no grotesc;'"''
e nos efeitos de modernidade, do que resultou uma nítida mu'.""
dança de tonalidade e a impressão de maior proximidade. prov~·i;;·
suplementar de que o encenador coreano, da mesma forma quêT~';
na Europa, detém a chave da interpretação de conjunto e con j , ' Kwang-Lim, Wuturi, encenação de Lee Sang- Woo.
fere à mesma lenda a sua própria visão. De resto, foi espantoso'}.' Pavis.
162 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA o TEATRO EM OUTRA CULTURA; O EXEMPLO DA COREIA 163

o mesmo Lee Sang-Woo é um autor de pleno direito, do q' "'ricepçãO das artes cênicas e da encenação como mecanis-
as comédias burlescas, como La Chasse au cochon (A Caça ao •. . Ô·regulatório.
tão), são sátiras da vida no campo e da corrupção política. '. 'A dificuldade é, evidentemente, tornar acessíveis ao pú-
peça é habilmente construída no paralelismo de situações: d' lico francês as obras cênicas recentes concebidas no corrtex-
donos de restaurante, dois observadores, um belo vilarejo, mu , ij-coreano, obras sempre mais interessantes do que aquelas
que partilha os seus favores entreos dois partidos. A progre i~Hadas para exportação. O convite da França para espetáculos
mecânica dos efeitos e situações, a rapidez do jogo, as mudan itÍlreanos (além da dança, da música ou do cinema) é, certa-
de ritmo compõem-se tanto desses efeitos da farsa quanto deú' "Mente, uma primeira etapa decisiva, mas necessita um sólido
spot publicitário ou de um esquete cómico na televisão: o mesni 'acompanhamento: subtítulos/legendas, programas pedagógi-
jogo seguro/carregado, um pouco histérico. . ':;'cÍls de familiarização, oficinas e discussões antes e depois dos
~·ifspetácUlos. No que diz respeito à prática, um método ainda
-'rri'ciis custoso, se bem que mais eficaz, consistiria em convidar
2. O TEATRO COREANO VISTO DE LONGE "~n<:enadores coreanos para dirigir atores franceses, para que
.·'todos passem pela experiência de diversas técnicas de atuação,
Para preparar o espectador francês ou europeu para a Corei .demaneiras inéditas de pensar e trabalhar. No sentido inverso,
para ajudá-lo a assimilar semelhante massa de dados, sê '#;graças aos incansáveis mediadores culturais, como Choe [un-
necessário examinar de que maneira as sociedades coreanà 'Ho, tradutor e assistente de encenadores convidados a Seul, ou
francesa sustentam o seu teatro, em qual contexto cultural ...ê~mo Éric Vigner ou Daniel Mesguích, o conhecimento recí-
intercultural este se desenvolve e através de quais tipos de ···"proco dos artistas progredirá mais eficazmente e a mais longo
cenação ele se manifesta, "rti.:to. Muitos intelectuais ou artistas coreanos estudaram nos
.,Stados Unidos, um número não negligenciável na Europa;
i'iíümeros estudantes escolheram a França ou a Alemanha para
2.1 Para Onde Vai a Saciedade? "'fi formarem nas artes.
< - O teatro, muitas vezes, é o veneno chamariz de uma socie-
Mais modestamente: de que maneira a sociedade se com'>: 'ie: ajuda a perceber a evolução, a adivinhar-lhe a direção.
ta frente ao teatro? Depois da capitulação do Japão (1945); ;situação dramática de uma peça ou de uma representação é,
independência e da divisão do país, da guerra civil (1950"f Dr certo, fictícia, microscópica, deformada, porém a relação
da reconstrução, das ditaduras no Norte como também no~ featral, a ligação entre o público e a obra são reveladores da so-
enfim, da democratização do Sul a partir de 1987, a Coreia" )edade do momento. Essa relação não é facilmente transferível
nheceu, como poucos outros países, uma história moviment e uma cultura para outra; é, entretanto, capital para avaliar
da e um desenvolvimento prodigioso. . .vida da encenação. Ao transmitir os textos e as representa-
Desde os processos de democratização, as institui' :~s, fica-se particularmente sensível à relação da língua com
coreanas esforçam-se por divulgar a sua cultura no mu . 'corpo, à sonoridade, ao ritmo e à "gestualídade" da língua,
Os estudantes, artistas, intelectuais têm uma grande sede: som verbo-corpo, o qual é marcado por sua afetividade e
descobrir o mundo, de se inspirar em outras tradições; sociabilidade: os temas manifestam mais ou menos suas
experimentar os métodos de trabalho ocidentais para,. oções e sua vinculação/pertencimento social, o seu gestus
Ihor encontrar o seu próprio caminho. Resta a nós, eui pseu habitus. Ao trabalhar com textos e corpos concretos,
peus, responder a essa demanda insistente, apr-oveitandc ão seremos mais surpreendidos pela passagem de um país a
élari recebido para repensar nossos próprios métodos, no, iitro: seríamos nós primos? Ou "almas irmãs"?
-{o
164 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO EM OUTRA CULTURA: O EXEMPLO DA COREIA 165

Será essa proximidade emocional e espiritual fruto de U" de ouro comparável àquela do teatro popular de Vilar,
identidade profissional que entrega os artistas aos mes"' j:íao se "echa
: 11 ,
por outro lado, numa

vanguarda
_
esotérica. Ê,
afetos, aos mesmos cuidados, às mesmas esperanças? Sen{ ifu'" do, exatamente o oposto da situação atual na França. Na
acontece de os artistas coreanos do setor não comercial dare , s. 'n. a. - se coI oca nesses termos dee " popuIar"
alternativa nao
conta das nossas irregularidades do espetáculo (exceto, ju ~~ . d «
i::~'elitista») mas sim, antes de rnats na a, em comercia ou
'1"
mente, a índenízação por ocasião de períodos de greve) no; 'tlstico", fato que coloca o debate num outro terreno.
desespero de trabalhar num contexto económico precário"
condições de trabalho dos coreanos são mais difíceis do qu
de seus colegas franceses, visto que o seu teatro é muito P.. :iPara Onde Vai a Cultura?
co subvencionado. Deve-se então aos jovens e às organizaç'
de pais de alunos uma coragem e uma energia fora do comu "1sa diferença de atitudes, motivações, reações, é ainda mais
para continuar a acreditar. Contudo, na Coreia, muitos "de :§ensível para aquilo que é a concepção e o papel da cultura na
tem da lutá' numa idade mais precoce do que na França, P
,piática atual da cen~. . . , .
seus colegas franceses sobrevivem graças à ilusão de que ac ;.}.iQue a cultura seja diferente entre os nossos dOISpaises, ISSO
barão por viver decentemente de sua arte. . 'jjãohaverá de espantar ninguém! Porém, o que nos diferencia
Para que serve o teatro? A resposta dos coreanos varia«ii t(~mpletamente, de forma radical, é a concepção que nos fa-
sideravelmente: os partidários do teatro comercial veem nel' .. mos de nossa própria cultura e das culturas estrangeiras, da
vezes um jogo formal, um entretenimento sem consequência,. futura tradicional e da interculturalidade.
jovens, em contrapartida, consideram que a literatura ou o . ">iApós a ocidentalização, entre 1950 e 70, os anos de dita-
tro podem mudar a vida ou explicar a atualidade socíopolíij ura incitaram os artistas a redescobrir, como forma de re-
As pessoas do teatro francês apegam -se à ideia de que o tea . ~:i$têncía, as tradições verdadeiramente coreanas: xamanismo
tem, ou deveria ter, um impacto na sociedade. Ironicamen.·· "kut, dança mascarada, pansori, artes marciais. Encenadores
uma das raras peças recentes de mensagem resolutarnen 'mo Kim Sôk-Man, Kim Kwang-Lím, Son Chin-Ch'aek ou Oh
política, Daewoo, de François Bon, evoca o fechamento dali e-Sok situam-se voluntariamente nessa tradição intercultu-
na coreana em Lorraine e as desastrosas consequências na ~ l:porém reivindicam) além disso, a época contemporânea
dos trabalhadores. Na Coreia, mais ainda do que aqui, o te". Wbltam-se resolutamente rumo ao futuro. Kim Chong-Ok,
de arte é uma resposta minoritária e desiludida frente à míd "'ncófono e formado na França na época do teatro popular,
todo-poderosa. Os jovens de teatro recordam nostalgícameni (fala a seu respeito de um "terceiro teatro'; confrontando-se, ou
muitas vezes, a época difícil dos anos de 1970, quando as Nnelhor, entrando em conflito entre a herança tradicional e as
ças, malgrado a severa censura, abordavam questões política, ·'bras ocidentais. Ao mesmo tempo, na França procura-se em
contribuíam para a luta contra a ditadura. Mesmo que a for nl ."o semelhante retorno às fontes. A partir dos anos de 1920 a
se configurasse, algumas vezes, um pouco frustrada e IDu1f ',a fascinação valeu acima de tudo para as culturas orientais,
direta, o teatro demonstrava a cada noite sua necessidade Y' ',pecialmente a chinesa, a japonesa ou balinesa. A civilização
ta!. Esse período, ao mesmo tempo, já parece muito distante(, oreana ainda continua como a grande esquecida nesta paixão
não ser para aqueles que dele participaram). Os jovens não tê . . . idental pelo Oriente. Razão a mais para se descobrir, enfim,
uma nostalgia comparável àquela que o público de Avignon <)' . maravilhas escondidas desde há muito tempo.
os responsáveís pela política cultural francesa ainda rnanifes ... •. Desde os anos de 1980 e 90, a relação com a cultura e com o
tam pelo teatro popular de Jean Vilar dos anos de 1950 e 60, 'ihtercultural mudou radicalmente. Na Coreia, o interculturalis-
o jovem público coreano não tem sempre a nostalgia de u 'hioalia-se sem complexos à cultura pap, à indústria cultural e à
166 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO EM OUTRA CULTURA: O EXEMPLO DA COREIA 167

mundialização. Na França, em contrapartida" Mnouchkin 'b scala mundial ou em termos individuais, não conseguindo
Brook, por exemplo, glorificam um interculturalismo que reI : ,5 ,'tuar-s e e avaliar-se com relação às outras culturas.
precisamente essas realidades comerciais. Através das cultli . 'Nessascircunstâncias, o teatro joga um papel de "sonda cul-
tradicionais orientais, eles procuram as supostas fontes do tea ';"ao testar em miniatura e de modo lúdico práticas e formas
do que decorre uma concepção mais essencialista do que polit :d~s de longe. Na França, a recepção muito positiva, entusiás-
ou econômica das relações humanas. Muito recentemente, de'" '/'até, do pansori ou de danças e músicas tradicionais coreanas,
o início do século XXI, a questão cultural coloca-se, na Fra" '-;';'~parou muito o terreno para acolher as encenações de textos
de maneira candente. Malgrado o discurso oficial, o teatro" ~"anos ou universais. Pudemos constatá-lo com espetáculos
tercultural não interessa muito mais às pessoas de teatro. & /hó Wuturi, de Kim Kwang-Lim, mistura de atuação tradicio-
últimas desconfiam - a justo titulo - do multiculturalismo' Ode textos reescritos com palavras da atualidade. Na mesma
comunitarismo e do fundamentalismo. Hesitam, atualmente,' , 'Ui:a, Éric Vigner, na sua encenação do Burguês Fidalgo, de Mo-
experimentar em cima de grupos ou culturas, temendo se igre; em 2004, utilizou a dança e a música coreanas. Do ponto
tachadas de racismo, neocolonialismo ou, no melhor dos c '{vista francês, em todo caso, a recepção desses espetáculos em
de paternalismo. Disso advém um recuo de trocas culturais -r'-'pê foi, portanto, muito positiva. Dever-se-ia> contudo> com-
interior da nação francesa:, O abandono de qualquer projeto' :ji.á-lacom aquela desses mesmos espetáculos na Coreia.
tístico multicultural nas cidades, ali onde essas culturas coe' ,," Para Wuturi, vista em Seul em 2003, a surpresa não reside na
tem ou, pelo menos, vestigios dessas culturas, que muitas ve' 'lJl1a da atuação tradicional moderna do texto reescrito na lin-
se ignoram ou se combatem. Cria-se, dessa forma, em cada," "gem atual. Para o mesmo Wuturi visto e "lido" com legendas
de nós ou em cada grupo, um "apartheid interior voluntá 'é'!.J:an Dukwha na Cartoucherie de Víncennes, em setembro de
um gueto cultural, do qual estamos vindo de restabelecer, " "ÔÓ4, a surpresa veio do virtuosismo da atuação, e não da fábula
subúrbios em fogo ou carentes, a triste face. "do estilo contemporâneo da escritura. Mal-entendido clássico
Consequência global da mundialização, a sociedade franc !i,\'d~.transferêcia cultural e da mudança de perspectiva. Quanto
não consegue mais integrar e absorver as populações estrangeí ,:~~i>;;<nosso" Burguês Fidalgo, na França ele pôde passar por uma
ou que se pretendem como tais. A identidade cultural franf ·'.;~Hàtmosa - alguns poderiam dizer irritante - visão orientalista
tornou-se uma noção suspeita, senão colonialista ou racista.' .:~M;um clássico francês. O público de Lorient, que conhecia bem
contrário, num grupo etnicamente homogêneo, historicame' ::1:ª\#eça de Moliere, ficou furioso pelo seu "enriquecimento" gra-
unificado (a despeito da partilha), religiosamente variado, por', 't!i?"~;à música de Lully interpretada por instrumentos tradicionais
tolerante, culturalmente aplicado e disciplinado, como no cas ~Wdqreanos, graças à dança coreana (ou identificada como tal); não
sociedade coreana, a identidade nacional assume ainda todo' ·~l~érperguntouse os empréstimos eram "corretamente" coreanos
sentido, não o fosse pelo fato de opor-se minimante à sua c 'l~tº4japoneses) ou apenas "orientalizantes" Essas características
traparte, a cultura ocidental e àquilo que os coreanos cham fwl~ªó tinham> entretanto) escapado aos seuístas, que por excesso
de "teatro internacional': Não temendo conquistar economi ~~~~zelo antiorientalista arriscaram desviar-se de Moliêre, julgado
mente o mundo exterior, e sentindo-se mesmo constrangi 'iiPJ.uto invasivo, ou da encenação muito inspirada no "Oriente':
sobreviver, essa sociedade coreana mantém um semblante i{~<éjam quais forem os mal-entendidos culturais, essa experiência
unidade às vezes tingida de nacionalista. Enquanto seus artf 11j\\jerculturalfoi indispensável.
se interessam por outras tradições culturais ou artísticas, de "", A etapa seguinte, ainda mais delicada, pois necessitava de
preservando apenas aquilo que lhes é útil, sem culpa nem pecad rtiiffi,temão de mediações) consistiria em acolher e) finalmente)
os franceses, obcecados pelo declínio da grande nação, receand ;;~~#~citar encenações de textos coreanos contemporâneos inter-
pelo seu futuro e suas aposentadorias, sentem-se desclassifica<l~ ~iiretados em tradução francesa. Sem mesmo dar-se conta, e,
168 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO EM OUTRA CULTURA: O EXEMPLO DA COREIA 169

portanto, com toda a inocência, os artistas franceses e core-' e que pôde, por seu turno, pretender o estatuto de texto
descobririam então uma maneira descomplexada de trat "'atico susceptível de receber as mais diversas interpretações
culturas e de tentar outras técnicas de atuação. Desafio f ias. Mais recentemente, desde os anos de 1990, as "novas es-
mais vital na França, visto que a encenação, enquanto ur' ,.ás'; sejam francesas ou coreanas, fazem-se objeto de todas
ção concreta do aparelho teatral, atravessa há quinze anos' • 'f~nções para encontrar uma prática cênica que lhes confira
momento de dúvida e crise. Assim, o confronto dessas tradi~ "01.1 qual sentido possível: não se trata mais, assim, de partir
nos leva infalivelmente a nos interrogarmos sobre essa ene' :'ilin texto canônico, legível e constituido num sentido estabe-
ção à ocidental: de onde vem ela, para que serve, ela eXist ·:iido para ser concretizado numa representação.
prática coreana, e desde quando? Encontra-se ela somente <,' ,·~'.;Vma nova geração de encenadores pratica uma atuação
pada" numa tradição totalmente distinta? E, inversamente /;'iÍicalmente afastada tanto do estilo fusional ou intercultural
que forma a concepção asiática de espetáculos, de artes marc;' ""(lto do teatro político. A encenação de Homem Material, de
da dança, influi na prática europeia da interpretação cênic~. H.;!imgGi-Yoo, por Yoon Ieong-Seop, ou aquela de peças de Phi-
jippe Minyana, por Robert Cantarella, ou de Noêlle Renaude,
,piJr Frédéric Maragnaní, constituem exemplos dessa conver-
2.3 Para Onde Vai a Encenação? 'gência de escrituras, da interpretação do ator e da encenação
'ÍJa prática franco-coreana.
Deixemos aos coreanos o cuidado de nos dizer de quando,
monta a chegada do teatro ocidental em seu país. Propomos:
tinguir apenas a chegada da dramaturgia europeia ou americ·Z.4 Entre a Encenação e a Performance
ao palco coreano e os inícios de uma concepção e de uma prá.. '.,.
propriamente ocidentais da encenação pelos coreanos. Cori"4~spectadoreuropeu, habituado a procurar nos espetáculos as
damos em dizer que a encenação no sentido europeu, ou sej' dlracterÍsticas da encenação ocidental - escolhas cênicas, coe-
interpretação do texto ou da representação por um encena .iência de signos, reinterpretação -, não verá nas manifestações
responsável pelos signos e pelo sentido, foi "importada" pela .ttísticas de Seul encenações no sentido técnico do termo, ou
reia nos anos de 1920 e 30, particularmente por Hong Hae-Saji . §~ja, de reinterpretações de textos clássicos. Ele estará, em con-
que tinha estudado o teatro ocidental no Japão e transmiti 'frapartida, muito sensível à visualidade do teatro, àquilo que, nos
essa prática a uma nova geração de artistas coreanos. Paramos de 1960 e 70, tornou-se na Europa e nos Estados Unidos
encenação, no sentido francês, a defasagem entre a Coreia: ''''aperformance: um espetáculo que não é escravo do texto, mas
Europa é de apenas cinquenta anos e, entretanto, a diferença:.....:q,ue insiste na ação realizada pelos atores e na coerência visual
espírito é considerável. No país de Descartes e Racine, o teatr~(~ ,ie rítmica. Haveria então, na França, a encenação de textos e, na
clássico é assimilado à literatura. A representação e, com mâi~~. ~;;'Çoreia, a performance espetacular? As coisas não são mais resol-
razão, a encenação são consideradas como derivadas do teXtlíí* >i;'Vidas dessa maneira, porém é certo que os espetáculos coreanos
dramático. Deve-se esperar o fim do século XIX para que se'Prª~' :'jJazem mais frequentemente apelo à dança e à música, e que a re-
duza a "grande reviravolta" e que se admita que um encenad\lf'~ ~'Vação com o texto não é tão fetichista quanto na França. Autores
possa dar à peça um sentido inédito e uma nova juventude. }/1'".g"eencenadores como Yoon Ieong-Seop, Lee Sang-Woo ou Kim
"País da calma manhã; as diferentes formas do teatro tradici~.;C, ~'-Kwang-Li, entre muitos outros, passaram diretamente para o
nal (yeonhi) são manifestações espetaculares, e não um texto.~;' -trtrabalho cénico, para a performance. Eles não tiveram, com
espera de representação. Ê somente através das peças clássicas'o"c' j;efeito, de realizar uma enésima interpretação de peças clássí-
f.
modernas ocidentais que o "teatro" coreano enraizou-se nalite"'i: cas escritas das quais não se pode mudar uma palavra. Tiveram
~i
170 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO EM OUTRA CULTURA: O EXEMPLO DA COREIA 171

a liberdade de trabalhar no espaço ou na atuação, de inve


uma situação cenográfica e lúdica que valoriza o conjun('
representação) e não unicamente o texto dramático. ..~
Não sendo, como nós, prisioneiros de tradições de in
pretação e de estilos de atuação, o artista coreano mostre
mais livre, mais eclético também, ou experimenta em fi
direções. algumas até, a priori, incompatíveis. Ele parec
saltado uma etapa obrigatória do trabalho teatral no Oci
te: a análise dramatúrgica à moda brechtiana. De resto
havia saltado a etapa filológica da leitura respeitosa à la',
peau. Desse modo, indene da filologia e da dramaturgia;
se encontra na mesma altura da visão teatral pós-moder
com suas grandezas (a relação direta e descomplcxadx co
obra) e suas servidões (o ecletismo, formalismo, apolitisr,{' ~t:i
·~;FiKi;J Kwang-Lim, Wuturi, encenação de Lee Sang- Woo.
O produtor coreano adapta-se de bom grado à demanda: '~~~6Patrice pavís.
'i,;
mercial, especialmente aos musicals, produz sem remorsos ,#[;;;~>

função do mercado interno e internacional: assim, o gru;: -:-~;fh_as1JO defalo desmesurad~, os camponeses, a dançarina. saída de um sonho, .
;;,;.;~<t~i'éricano, todos dançam Juntos num momento de alegria exuberante,. A musIca
Nanta e suas paródias divertidas, mas rapidamente cansatí ~~~Yii-dança confederam todos os personagens: oS,atores são, a'~tes de maiS nada,
da orquestra de percussões Samulnori. Em contraste, o artis ,:~?pÚformers.passam da palavra ao canto. do mImo gro.t~sco a coreografia. .
francês é mais reservado, mais dilacerado, hesita (como se VI ,-;;.;,:. espetáculo total em que todos os talentos são mobilizados, o alto e o baIXO
COincidem: o riso precede a emoção, o passado junta-se à nossa atualidade.
em Avignon em 2004) a se desembaraçar cornpletamente.jj XnlOntanha desloca-se com leveza, o mundo é salvo ln extremís.
texto e da tradição mimética ou literária em proveito das artti~
plásticas ou de seus espetáculos, pois sabe bem que o públiç~~
arrisca-se a não segui-lo. Ê por isso que o pós-modernisnrí!\J
e a desconstrução são vistos, na França, à diferença do q«~~
ocorre com nossos queridos primos coreanos, como opÇõ~r
aberrantes e suspeitas, inteiramente boas para ocupar apenÁ!,',·
uns dois artistas de vanguarda. Neste sentido, o aparte d~;>
experiências coreanas, como aquelas instalações dramáticaf't
de Yoon Young-Sun, as farsas políticas de Lee Sang-Woo,ai}$
encenações de Im Yông-Ung, de Park Iung-Hee ou de Haà:'i
Tai-Suk, seria uma contribuição preciosa para os artista~"~9*
espectadores franceses. Ver-se-ia nisso outro partílhamentoó.
de papéis entre autor, encenador e ator. Cc:

Ê nisso que Europa e América têm muito que aprend~€S;


dos espetáculos da Ásia, não somente formas tradicionais, maS,.'
também do "teatro" tal como é inventado e praticado atualmens
te na Coreia. Nosso teatro e nossa concepção da encenaçãqX:,
achar-se-iam necessariamente enriquecidos.
.~ Mídias no Palco
Vamos ao teatro para ver atores ao vivo.
Desse modo, ficamos surpresos, e às vezes decepcionad;,:'
até descontentes, quando o palco apresenta muito mais'
audiovisuais do que corpos tangíveis.
As mfdtas nos rodeiam, nos cercam. O que sabemos nós;:
exatamente, de seus efeitos em nossos pensamentos, nos
imaginação, nossa linguagem, nossa arte?
Achamo-Ias úteis para nossa vida quotidiana, porém experime
uma certa desconfiança ao vê-Ias utilizadas na representação'
não irão devorar o pouco de vida que resta ainda nos teatros?:\
Nosso medo inato das máquinas ressurge: não irão elas
aquilo que resta de humano em nós e no palco?
E nisso que pensávamos nos anos de 1960, quando Grotóv,
definiu o teatro como o encontro de um atar e um espectaef
quando Brook estava à procura da ligação humana.
Nesse interim, habituamo-nos com as m/dias no palco. De'.
anos de 1990, as pessoas de teatro aprenderam a domesjf"
,encenação contemporânea, as mídias encontram-se tão
a utilizá-Ias com discernimento, a integrá-Ias à drarnaturqta:
"presentes a ponto de não mais as notarmos. O que é uma
encenação.
e sob quais formas aparece na cena?
Para melhor subjugar nosso medo Irracional das rnfdias, ba
analisar algumas encenações nas quais as mídias audlovlst
são utilizadas, examinar de que maneira o espectador :TEATRO E MÍDIAS
percebe as imagens produzidas pelas mídias. As mesmasl'J'
desconectam e nos reconectam com nosso próprio corpo.'Fr', 'mídia entende-se "todo sistema de comunícação que per-
meio do espetáculo ao vivo, fazemos a experiência físicá da'. ~~a uma sociedade realizar toda ou uma parte das três fun-
mutações do mundo e do nosso corpo. ~~_essenciais da conservação) comunicação à distância de
Nem o corpo nem a linguagem estão ao abrigo de todas ~hsagens e conhecímentos e da reatualizaçâo de práticas
m/dias: eles estão infiltrados, penetrados por elas. turaís e políticas'". A escrítura dramática, assim como a
Abstenhamo-nos, portanto, de fazê-Ias entidades puras e ,enação, assegura essas três funções das mídias: a escrltu-
autênticas às quais se oporiam as mídias impuras e invas9'~~ ierrnite a comunicação e conservação; o palco organiza a
alizaçâo de textos e práticas espetaculares. Nesta acepçâo
A encenação é uma configuração de signos verbais e não
;U do termo midia, o teatro faz muito, portanto, parte das
verbais, de ações físicas e mecânicas. Esses signos e eS88$'",
Jdias. Ele constitui uma mídia por excelência e seus compo-
ações não escapam da influência midiática.
')1(es os mais frequentes são, eles mesmos, constituídos por
Devemos nos contentar em detectar e descrever as mídias ' versas mídias. A encenação, a partir do momento em que
utilizadas na representação? Observemos, antes de mais na:"
de que forma elas contribuem para a construção da encenaç "
f F.Barbíert, C. Lavénlr; Histoires des médias, p. 5.
174 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MÍDIAS NO PALCO 175

põe em prática textos ou propostas de atuação, faz, Com f ··-·;~7-nOS, sem que saibamos dizer em que o seu efeito difere
apelo a inumerá:eis midias. Ela atualiza ou reatualiza pr~'! '--:--ágem fílmica ou mental. Conhecemos pouca coisa sobre
culturais, comunica aos espectadores sensações e sentidos, rtliss ãO cínestésica do atar, somente os dançarinos e seus
serva, senão os textos ou ações, pelo menos suas interpret ~'~e debruçaram sobre a questão. Graças a eles) aprendemos
materiais e espirituais. a -~Y_b impacto do corpo vivo em movírnento, entramos num
;~'corpo sem piedade, numa ínteração fusional, numa rela-
Não obstante, experimentamos um mal-estar ao fal:lé
:·~,.embora protegida pela chancela da ficção. Todo um ramo
teatro como uma mídia, pois persistimos em ver nele um -:
nião de artes (literatura, pintura, música), na medida e~r
-dos teatrais, como o estudo dos "comportamentos huma-
'~':~taculares organizados': ou a etnocenologia de Jean-Marie
não o concebemos como uma arte autônoma ou sintética:: ·~'.r;:interessa-sepela "história inextrincavelrnente atrapalhada
sim, quando se faz referência ao teatro e às mídías ) Sugere~. ':~iáculo ao vivo e das ciências até a orla do encontro com a
implicitamente, não apenas que o teatro não é Uma midr ',)Com efeito, parece fundamental estudar os efeitos do corpo
q~e ele p,recede e domina estas últimas, mas, sobretudo, qu 'nós, na linha de Grotóvski e Barba. Até os anos de 1960 e 70,
rnídias técnicas, as tecnologias novas ou antigas (vídeo, fil'· 'ds '~'naturalmente" artaudianos e fazíamos do corpo do atara
projeção de imagens) "invadem" o espaço inviolável da re]1: ;'a representação teatral. Estabelecíamos implicitamente que o
sentação, ela própria limitada ao desempenho do ator, a >".". "alia mais do que as mídias ou do que o cinema. Esse a priori
~jh()s' às vezes esquecer o meio cultural e midiático no qual ele
escuta do texto. Esse desprezo, essa atitude de defensiva, tes
'àhhava, no qual associava, sem espírito crítico, o corpo com o
munham uma concepção essencialista do teatro, tal como, . :!-;~({a: verdade.
exemplo, a de Grotóvskí, Kantor, Brook ou Mnouchkine. . ontudo, o verdadeiro desafio lançado ao espetáculo ao vivo
rérn, o teatro não tem sempre recorrido às tecnologias de é >'

.das mídias audiovisuais a partir de 1980, em que a presença


espécie? E estas, estão tão afastadas da noção de mídia?! . -Itro do espetáculo ao vivo tem consequências sobre a nossa .
ção.Desse modo, a mudança de escala da imagem, prece-
Espetáculo ao Vivo ?tü:corrente da fotografia e do cinema, conduz; na imagem
~'~'ntada-no palco, a uma desorientação espacial e corporal
o termo, muito .dat~do,de.espetáculo aovrvovmaís útil ao 'péc::,tador. Na concorrência entre a imagem fílmica e ocorpo
tério da Cultura .para repartir: burocraticamente as subvenç? ;"#o.ator, o espectador não escolhe necessariamente o vivo
que para qualificar o estado atual do espetáculo, deixa entend )g9 inanimado, muito ao contrário! O seu olho é atraído por
existe uma separação clara entre. de um lado, o teatro, a da' oque é visível em maior escala, visto que não cessa de evoluir
mimo, todos os acontecimentos cênicos que requerem atar rn a atenção pela mudança constante de planos e escalas. É
vivo': em «carne e osso': e, de outroladoras mídías que reco ;~.ssjm a aposta do espetáculo ao vivo; tal é o desafio coloca- ~
aon~~istro e à reprodução mecânica para toda espécie de técf· cteatro: renovar-se, apesar de toda sua presença viva e sua
audioyisuais. ' .de atração.
:.. :O.',<Cteatro': para utilízar um.termr, genérico e neutro, pelo orém, a aposta não para nisso: seria, de antemão, recolocar
Tl()~: no. Ocidente, é. d~ acordo ,COm aconcepção aristotélica, a,::" estão as oposições tradicionais e decididas entre o vivo e
art:e~,~.u;e utiliza o corpoea vozdo ser .humano para fabricar:, uinal (ou mídíátíco), o presente eo ausente, o humano e o
~5ç.a?: e·~ITli~ar.as ações humanas. O que ~xiste demais vivo~" áno.A presença do ator significa que esse ater seja visíve1?E
~l(1,.~~o~,:~,nossílfrente, que p?,deríamos.~mteoria interrompê, le.está invisível, situado nos bastidores) ou atuando sísternatí-
c:~l*;,gu~ se díríge a nós pelo seu corpo)s,~a viva voz e sua pre~':' ente atrás de um painel servindo de tela - percebido ao vivo
carç.al:? Pelonosso. silêncio ou pelo nosso nervosismo. exerc ~.nas pelo vídeo e projetado numa parte do cenário -; e se ele
~?9re,'ele um efeito tangíveL E, em compensação. esse corpo
p.elo,~ s.~us~ovimentos,:pelasua força de atração física e s
2 T.-M. Pradier, La Scêne et la fabrique des corps.
176 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA AS MfOlAS NO PALCO 177

está ao telefone ou é filmado pela webcam num outro extre ,'C;Ceom o dizia o poeta) e eyborg performático (como dizem
planeta? Nesse ca,so, el.e faz: então, ato de presença, uma p::'.: ~" ance studíes da atualidade).
ça que podemos imagrnar a falta de percebê-la diretam " ~~ormance live, o espetáculo ao vivo são certamente sempre
' " ~ ,!t~-~rd
presença f rsica_e espacial, convém distinguir o presente tem ~aO,
s infiltrados pelas mídias, porém não os reproduzem
. - .. "
~a r:~resentaçao, seu a~pecto live, ao vivo. O live não está ( sDlO t e
mpo É ainda uma atitude essencialista como nos per-
. . .
a mídia: uma retransmissão de TV ou Ulll vídeo podelll u e vem primeiro, o live ou o gravado. Valena mais a
,- bíd se tDlOS o q .
e, sao ~e~e 1 os no n:eslno instante de sua produção, exata ,'b" ervar de que maneira os elementos parecem ora VIVOS, ora
a s , ' d t
C01110 e live a produçao teatral. O atol' pode, assim, muito be ';':"1 .dos; combinando-se 110 espetaculo a partir o momen o em
tal' ausente do espaço cêníco, e estar absolutamente present~' e a eSlno se organiza numa con f rontaçao
,,',' -'slgn1'fi cant e, como o
lugar totalmente distinto, A presença não está mais ligada a .:amente a encenação. Pois esta última constitui, precisamen-
" I Se estou ao telefone, estou presente - live -, mas evid:;
visrver. o .,< mediação entre o imediato e a mídia, o live e o gravado, o
ma c D'
mente ausente no espaço visível (inversamente, ousaríamos d kü inerte, a matéria e o espírito. Ela esforça-se, com e e1to,. e~
- se estou perdido nos meus pensamentos, meu corpo está lá"" ~cÜiar, sempre, o princípio da autenticidade viva e o da repetíçao
- I'
eu nao estou a. meu espírito está alhures, ausente para al ..'
' pp c"ável, parecendo autêntica e única a cada representação, quando
que queira falar comigo), Muitos espetáculos utilizam a lnt~' hricada para ser repetida de forma idêntica, sejam quais forem
como forma de comunicação sem o atar estar presente no p úblieos e os lugares,
porém conectado diretamente. O Wooster Group americano ::,-para além dessas distinções de uma idade entre o vivo e o inerte,
exemplo. passa incessantemente do ator "em carne e osso" p~: :'rrtmidade e a máquina, valeria mais a pena observar o processo
mesmo atar gravado, se bem que não há maior sentido em nos"; ~'ihbodiment) de encarnação que a performance eos performers
guntarmos Se o espetáculo é ao vivo ou midiatizado. Desse rn ~~.~ necessariamente efetuar diante de nós para que haja «teatro".
o performer australiano Stellarc pousa sobre seu corpo "real" ri :'processo de «colocação n? .corpo" ;1istingu:; o «teatro~' ~a s~m':'
terceira mão controlada pelo computador. Seu corpo humano s, ;~s~leitura ou da leitura dramática. Porem, essa encarnaçao Vai de
certamente, presente, parcialmente ao vivo. porém ele não mai"" :{comum disembodiment, uma desencarnação, com a abstração
pertence, está teleguiado pelo computador. O limite entre co~ icessérta em todo processo de significação, de colocação em sig-
natural e corpo protético dirigido pela inteligência artificial nã s::A encenação torna-se a ferramenta e o terreno indispensável
mais claramente traçável. Com mais razão, o distinguo * de épo -~{compreenderaquilo que resulta desse encontro entre o vivo ea,
passadas entre espetáculo ao vivo e espetáculo programado, mid t'6'cltição mecânica, o concreto e o abstrato, a matéria e o espírito;
tico, não se mantém mais, aliás, não se manteve nunca. Na medi
exata em que as mídias penetram - literalmente - em nosso coip H\,'Devemos acreditar que o ser humano não esteja mais no cen-
sob todas as formas: implantes, sondas, pacemaker (marcapasso) ;:ó'da obra, que as mídias nos hajam conduzido ao pós-humano}
e futuramente soulmaker? -, microprocessadores, telefone ceh:t ,"pós-dramático, que o sujeito, tanto criador como receptor,. tenha
nipo-coreano encarnado [implantado no corpo?], na medida exâ ª~saparecido das telas de controle, que tenha se tornado um Simples
em que nossa atenção e nosso imaginário acham-se colonizadÓ ~logramador a serviço dos computadores? Não! Pois a partir do
e. dispersos pelas mídias fortes do momento, as antigas cate~§: iu;omento em que esse sujeito programado e programante se coloca
nas do humano} do vivo} do presente, tornam-se caducas. Nos :<àvaliar as relações de signos e coisas, a diferença entre o vivo e o
percepção está inteiramente determinada pela ínterrnídíalídae ;rierte, a partir do momento em q~e ele se reencarna ficticiarnerrte
Estamos no pós-humano (Hayles'), até no pós-dramático (Le nas suas criaturas, ele se transforma de novo em encenador; trans-
~ann4). Nã~ estamos mais em condições de distinguir presen ,.'Jorma-se novamente em humano visto que comete erros, renegocia
ííve e gravaçao, carne e componente eletrôriico, ser de carne e ~I~;k~m prejulgamento e sem exclusividade os poderes e as ilusões do
;'.lt~;"teatro. Bem entendido, dando-se conta, doravante, do novo dom das
* Termo de antiga argumentação escolástica, que significa: eu distingo (N. da E.).
{W;~'Íriídias e da reconfiguração da teoria pós-brechtiana, pós-semiótica
3 N. K. Hayles, How We Recame Posthuman. ~:t:/que resulta disso, particularmente para aquilo que está na oposição
.. ~,'
4 H. T. Lehmann, Le Théâtre postdramatique.
178 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MIDIAS NO PALCO 179

significante/significado,
. . . materialidade/inforniaça-o
. . . ,'
lmaté"- as- A s novas tecnologias da informação e da comunica-
todo caso,. t~do ISSO permanece, como uma questão a ser-ab: "TIe) estão ligadas ao computador e dizem respeito mais
a ser admInIstrada,. a ser regulada pela encenação5. 'ertheatre do que ao espetáculo ao vivo.

2. TECNOLOGIAS/MÍDIAS OUTRAS MÍDIAS NA REPRESENTAÇÃO

O palco sempre fez apelo às tecnologias, às máquinas que ti'


'Wlo de mídias, conviria incluir as tecnologias utilizadas
formam o mundo graças à technê, num ambiente forma' ',;la preparação da representação, tais como o som gravado,
pelo homem: anfiteatro, arquitetura para manipular os b.'
. t . _ o j~ ou as legendas. di
ins rumentos para produzír o som ou a luz. A technê (téc'; rasom, em nossos dias, raramente é produzido diretamen-
artesanato) opõe-se a epistemê (o conhecimento). A difel' .e, nos bastidores, é pré-gravado de acordo com técnicas as
ça com as , mídias
.
será de grau ou de natureza'. As m'd':
I Ias-
a'is avmçadas. A trilha sonora que resulta disso acompanha
semp~e maqumas para comunicar; tecnologias incessantem €spetáculo, às vezes muito presente e redundante com relação
te mais efi,cazes para fazer circular a informação. Ora, si' 'íJnagem, porém sempre em posição de árbitro para o estabe-
;:,?-nos h~,se~,sen~a anos naquilo que Régis Debray chamá cimento do sentido e a produção de sensações. Resulta disso
videosfera', o período aberto pela técnica do audiovisual: tra . - "soundscape n 7 , uma paisagem sonora comparável a uma
missão princi?almente telística de dados, modelos e narraçõ "I)ografia com os relevos e as nuanças do espaço e das cores.
Para o palco, ISSO se traduz por uma utilização crescente de " :"partir do fim dos anos de 1970, os atores dispõem de micro-
v~s rnídías'; essas tecnologias recentes da informática que ini' '!.les pendurados neles, que não apenas aumentam o volume
vem ao mesmo tempo sobre e em volta do palco. ;' €sua voz, mas que também retrabalham, reverberando ou dis-
O teatro multimídia (multimedia performance) não é si"
torcendo, a voz, mixando-a no conjunto da paisagem sonora,
p~esmente um acúmulo de artes (teatro, dança, música, pro 'iEonferindo ao ator outra tonalidade emocional.
çoes etc.), num sentido próprio, é o encontro de tecnolog] • A luz, desde a introdução da iluminação elétrica por volta
sem o espaçotempo da representação. O teatro cibernético (c Voe 1880, conheceu mutações as mais espetaculares. Sua criação
bertheatre), criado com a ajuda de novas mídias e tecnologi Y:'envolve toda a representação, contribui especialmente para sua
da informática, é a utilização de mídias na representação t~ "ãtmosfera. Aí também a informática é indispensável para produ-
tral, se~do também, sobretudo, a utilização da Internet pai :'iir e memorizar as mais ínfimas mudanças luminosas e atmos-
produzir espaços virtuais. ' "f"ricas. Isso resulta num teatro inteiramente informatizado, no
Não saberíamos descrever aqui o conjunto dessas nov~: qual tudo está rigidamente controlado, o que paradoxalmente
tecnologias utilizadas no teatro da atualidade. De resto, o . ". nos remete a uma Gesarntkunstwerk, uma obra de arte total, mes-
portante para a encenação não são as performances mtrínsecâ IIlO quando a encenação faz de tudo para se distanciar dela",
de mídias, mas sim o efeito dessas mídias no palco, especial As legendas - outra técnica da qual avaliamos mal o im-
mente as projeções fílmicas, Ovídeo, a imagem do vídeo digital; pacto no espectador - constituem o exemplo perfeito de uma
as Imagens virtuais tanto quanto as novas tecnologias, presente~;;kf} tecnologia e de uma mídia que mudam nossa percepção quase

5 ~ictionnaire. d'esthétique et de philosophie de Tart, retomada do artigo: Lesmé~i­ 7 Sobre a noção de soundscape (paisagem sonora) ver C. Baugh, Theatre, Per-
l~S au:ont-ils la peau du espetaclea, em}. Morizot; R. Pouívet (eds.) DictÚ~~ formance and Technology.
naire desthétique et de phtlosophíe dart. .,
8 Idem, p. 203-219. G. Híss, Synthetische Visionen. 'Iheater ais Gesamtkunstwerk
6 Introduction à la médiologte, p. 220.
!"rJ. y-
von 1800 bis 2000.
""-;'~~ $:,.
180 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MÍOlAS NO PALCO 181

à n~ssa r~velia. Consultá-Ias é, certamente, opcional, por/ ".jA partir do inicio dos anos de 1970, as projeções fílmicas
difícil resístír-lhes, mesm~ quando se conhece a língua dub t. areceram em proveito da tela de televisão que serve como
~p aos videos. Estas, tend
da. Elas apresentam-se mais ou menos discretas ou integra,(
\;rte o como seu '
propno. testemunh o o
tJ)!l de seus primeiros utilizadores, Hans- Peter Cloos, eram
imagem tal como uma caligrafia. Alguns encenadores, tal'
CO
Dominique Pitoiset", cuidam tanto da tradução quanto d '"
úitas vezes empregadas como um gesto de oposição ao teatro
inserção visual na imagem e no desenvolvimento do esp te!
"'\guês. Muito rapidamente, o vídeo se tornará, nos anos de
. e ac
~t#80, um meio para renovar a narração cêníca, para "substituir"
lo. Acrescentam, assim, outro nível de percepção, reintrod
zindo de maneira às vezes icônica - e irânica - o texto qu~.
·'illrtator ausente (como exemplo, em L5D, do Wooster Group),
pessoas de teatro outrora desprezavam tanto. .-
'.;.. ,a confrontar a atuação dos atores no palco com sua repre-
As mídias audiovisuais continuam sendo as mais vis''-
par
~el1tação na tela (Route 1 et 9 [Rota 1 e 9], Brace up [Coragem!]),
. I IV
nos espetacu os contemporâneos. Retraçar sua emergên .'
" , . c ,~,
êio
1981 e 92, do mesmo grupo americano). O grupo Mabou
sua históría sena tareta muito pesada aqui: alguns marcos m"f"
...·.Mines utilizou o video para Hajj (Haíkaí)". Na Alemanha, o en-
to espaçados bastarão para uma primeira orientação 10. . •••
'&Icenador Hans-Günther Heyme" realizou em 1979 um Hamlet
}:Elftrônico com o videasta WolfVorstell. Até os anos de 1980, a
relação das pessoas de teatro com o vídeo era ainda um pou-
4. MARCOS H I S T 6 R I C O S " u i n h o difícil e desajeitada: os artistas tinham uma tendência

• As primeiras experiências com as mídias audiovisuais rem;g;i~ ~"'~~~~:~e:rd~s~:~v~~~ee~~~~~P;~~e~e';'S~~~~:n::'::~:~~~:~


ta.m àquelas de Meierhold (La Terre cachée [A Terra Caida], 1923)""ços (com a imensa cruz composta de televisores na encenação
Piscator empregou projeções (Drapeaux [Bandeiras], 1924) i)& de Saint François d'Assise [São Francisco de Assis], em 1992).
filmes (Malgré tout [Apesar de Tudo], 1925) em complemento o· ' . A partir dos anos de 1990, artistas de teatro como Robert
em contraste com a representação cêníca, Walter Gropius fez e ';tepage, Peter Sellars, Giorgio Barbero Corseti ou Frank Cas-
1927 o projeto de um teatro total que se abria às mídías audio 'torf inauguraram uma nova etapa no uso do video: este não
suais. Nos Estados Unidos, Thomas Wilfred encenou Guerrie" m ais era utilizado à margem e por pura provocação, mas sim
de Helgeland (Guerreiros de Helgeland), de Ibsen. .·no centro de um dispositivo e de uma nova maneira de narrar
• As criações cenográficas de JosefSvoboda, a partir de 1958,; com os meios do teatro. Neste sentido, ele não se constituia
com a poly-écran e a Lanterna Mágica, marcam uma nova etal;' "f mais num fim em si, porém um novo ponto de partida rumo
pa fundamental acerca do uso do vídeo, que se generalizou no,,__.. a terras desconhecidas.
começo dos anos de 1970. Jacques Polieri, no seu "vídeo-balé-I', • A partir dos anos de 2000, o uso de mídias foi considera-
-espetáculo" de 1964, Game de sept (Jogo de Sete), mostra um. •..• "descomplexado", até banalizado. A encenação, por
vídeo numa tela grande. Seu "eidoforo"; projetar de televisão,' Christian Schiaretti, de Ervart ou les derniers jours de Frédéric
numa tela grande, permitiu-lhe realizar grandes planos". . "..-: Nietzsche (Ervart, ou os últimos Dias de Frederico Nietzsche),
.i.' de Hervé Blusch, é típica de uma tendência para utilizar íroní-
9 Outra relação de escala, em B. Picon-Vallin (dir.), Les Écrans sur la scene p.' camente as projeções do cenário virtual, corno que para substi-
322-324. • fi d h
tuir os antigos cenários de papelão da cenogra a e antan o.
10 Para alguns exemplos, além de Les Écrans sur la scêne, op. cit., consultar-se-á'<v.
alguns números de revistas, especialmente: ThéâtrelPublic, n. 127 (Théâtre et_ ."
technologie), dirigido por F. Maurin. Ver S. Dixon, Digital Performance; M~_",
Causey, Theatre and Performance ín Digital Culture; G. Giannachí, The Politics<;:',:,-
of New Media 'Iheatre. __-_-,
12 Sobre essas experiências, ver o artigo de F. Maurin em Théâtre/public, n. 127.
11 Ver D. Bablet, Svoboda. Ver também J. Políert, Scenography and Technotogy. 13 Ver M. Moninger, Shakespeare ínszeníert.
182 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MfOlAS NO PALCO 183

Em Robert Lepage, as mídias estão sempre ii serviço da Ii EFEITOS DAS MÍDIAS EM NOSSA PERCEPÇÃO
','>1': tória contada, muito mais fácil e diretamente do que em s '
~>C\
colegas europeus. Na sua Projet Andersen (Projeto Anders '~'resença das rnídias audiovisuais no palco tem consequên-
(2005), Lepage, como ator, atuou em todos os papéis manrj '~1[S na nossa percepção a curto e a longo prazo. A mudança
pelas imagens virtuais. As mídias são ao mesmo tempo 111 fiíees cala, proced,mento corrente na fotografia e no cmerna,
eficazes caso estejam integradas a uma função dramatúrgi "conduz especialmente a uma desorientação espacial e corporal
para uma arte de contar, para uma pesquisa de identidade', !dÓ espectador, mais ou menos agradável ou desagradável. As
personagem. Como a música de filme, as mídias são tanto 111 , 'Jucagens procuram às vezes o prazer do maravilhoso, como
lhor utilizadas e integradas quanto menos as notemos. Da m 'no tempo dos filmes de Méiies.
ma maneira que a nossa vida faz apelo, incessantemente e s " . Como já vimos anteriormente, na concorrência entre a
ruptura, a todo tipo de próteses, as mídias da encenação rece "ill1agem e a presença real, entre o vídeo e o ator, o espectador
parecem tê-las assimilado. Está-se longe desses vídeos trash II' ."l1ão escolhe necessariamente o vídeo contra o inanimado, mui-
se espalhavam na tela como imagens descartáveis, realizad . "'io pelo contrário. O espectador escolhe aquilo que é visível em
para, ser imediatamente consumidos e evacuados. ", rilaior escala, aquilo que evolui sem cessar e que retém, assim,
, asua atenção. Tal é, precisamente, a aposta desse conflito entre
''-(,ator vivo e a imagem, o desafio que se coloca para o teatro:
5. POSSIBILIDADES DO VÍDEO NO PALCO :'fazercom que se encontre, para o ator, sua presença e sua força
(leapresentação. Jean-François Peyret observa isso a propósito
Evidentemente, o vídeo é muito mais manejável do que a ao vídeo em seus espetáculos:
magem e a projeção fílmicas. A melhoria da imagem, especi
Coloquem um ator no palco; projetem em seguida uma imagem
mente graças à alta definição, explica igualmente o seu sucess
~:"Aevídeo: o olhar do espectador será imediatamente atraído por ela.
Nada lucraremos em opor vídeo e cinema ao pesquisar s' .::t.~g:Yque é que fará esse olhar voltar-se para o atorê A promessa de qual
respectiva essência, porém é muito útil conhecer algum, '::·,êfticição? Para mim, esta é a única questão que se coloca doravante para
propriedades de cada mfdia, Segundo Frédéric Maurin, "a aJ 6:teatro, pois este não pode mais tirar sua força de sua representação,
ternativa permanece ao opor-se o direto e o diferenciado, e, .nienos ainda de seu poder de ilusão, mas sim, ao contrário, de sua ca-
termos televisivos, ao plano geral e ao plano-fora-de-campo e -pacídade de apresentação, e como corolário, eu diria de sua capacidade
termos cinematográficos, ou ainda, em termos psicanalíticos "':ªeexpulsar o olhar do já visto ou do muito vísto".
os processos de narcisismo (a imagem como duplicação) ao fé:'
tichismo (a imagem como substituto da falta)'?", Desta forma' Junto a Peyret, mas também com Lepage'? ou Braunsch-
portanto, o vídeo remete a um reflexo narcisístico, enquant ;weig18, parece dar-se como aceito que o "problema" da rnídia no
o filme encoraja o fetichismo. Essa comparação se junta à (l' "palconão é a eliminação do humano ou a questão da presença,
Stéphane Braunschweig, que observa o uso muito conceitual ',1lJas o tipo de identificação que o vídeo, o cinema, ou mesmo
pouco ilusionista do vídeo no palco: '1\ televísão, como objet }projeção permitem ao espectador. Trata-se de verificar em
é muito mais conceituai. Ela envia um signo. Na tela, ao con, ,riue medida essa identificação difere daquela da representação
trário, o signo é imediatamente absorvido pela ficção":". iSéatral (se é que esta noção pode ser mantida). No cinema, o

16 'Iexte, scêne et vídéo, em B. Pícon-Vallín (dir.), op. cit., p. 284.


14 Scêne, mensonges et vídéo, 'Ihéãtre/Public, n. 127, p. 41. Ver também o 17 R. Lepage, Du théàtre d'ombres aux technologies contemnporaínes, em B. Pi-
junto desse número consagrado a Théâtre et technologie. con-Vallín (dír.), op. cit., p. 330.
15 L'Enfer d'un monde vírtuel, 'Ihéátre/Public, n. 127, p. 57. Lenfer d'un monde vírtuel, op. cit., p. 57.
184 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MÍDIAS NO PALCO 185

espectador identifica-se com o personagem, enquanto no te FROPOSTAS PARA ANÁLISE.


a identificação é dirigida para o ator e para a comunidad' ',DAS MÍDIAS NA ENCENAÇAO
público. A presença real do ator no palco não é absoluta!l1e ".i

indispensável para o espectador e também não é absoluta!l1~ {colocaremos algumas questões simples:
prova da superioridade "ontológica" do teatro sobre a mídia'
diovisuaL Esse poder fantasmático da imagem cinematográ ~-•. .São as mídias identificáveis) visíveis e expostas, ou são, ao
essa plasticidade do vídeo na tomada da interpretação e lig~ pntrário, escondidas, dissimuladas à vista do público (não es-
ao mundo exterior, são uma dura concorrência para a realíd:i' ;ei;ialista)? Vemos o aparato técnico ou ele está muito sob o
teatral; os corpos estão presentes no imaginário do especJad i feito do maravilhoso?
porém golpeados por sua experiência concreta. Ora, Peyrel() tiii~São as rnídias produtos ao vivo, como, por exemplo, um
serva, de forma muito pertinente, que os corpos :0'4eo live que retransmite a atuação dos atores? Ou foram pre-
;~Ràrados com muita antecedência para serem inseridos, ,,:a re-
no cinema são tanto mais fortes na medida em que estão perdid' Ei)resentaç~o teatral n:lm dado mo;nento, fixo ou ~rbltrano?
fora de alcance, fora da presença real, tanto mais fantasmaticame '" .•, Qual e a proporçao entre as mídias audiovisuais e a perfor-
apresentados quanto estejam ausentes. Porque as ligações entr :ilhance livet É necessária a presença de um ator vivo e visível
visível e o vivo talvez estejam rompidas, o que sem dúvida não
"para que a performance não se torne uma instalação, um filme
desafio que o mundo da imagem (real, de síntese e virtual) cor.
para o palco. A palavra mãe de toda fenomenologia da percepÇ' "interativo ou um cybertheatrei Questão de palavras, talvez? A
era, segundo Merleau-Ponty, que qualquer visão tinha luga{~ 'presença de um ser humano no corpo - visível o'u invisível -
alguma parte no espaço tátil. Ainda estamos certos disso? Ex 'Rolencialmente tangível é necessária para que possamos falar
ainda um espaço tátil?19 âeteatro? E, por outro lado, a apresentação live, isto é, ao vivo,
'verdadeiramente a marca do teatro? Não mais podemos fazer
Essa questão toca o espectador no seu âmago. Será que •m uso live de máquinas? É preciso distinguir, então, o vivo
consegue recentrar em si e nas suas sensações corporais aq~·. do live, aquilo que no uso midiático do termo não quer dizer,
que na mídia visa exatamente descentrar, deslocalizar a p~ .!!órtanto, "ao vivo': mas sim "produzido em tempo real para o
cepção, para não mais remetê-la a um lugar estável e tátili, ,,,,feceptor, aquele do teatro e o das mídias"
cybertheatre elimina a noção de palco e de espectador inscrit ,.. 'c .• Qual é a relação das mídias entre si? Estão elas claramen-
num espaço estável e, em última análise, tátiL O espectador nijq"" d."le separadas? Ou, ao contrário, resvalamos de uma para outra
se encontra mais na representação de uma realidade extedÓY1i!' '~iAem problema?
e existente, mas sim na simulação do teatro virtuaL A parti!;?';. :;E\; • Em que momento histórico da evolução das mídias situa-se
disso, abandonou definitivamente o escrínio seguro do paIC~'%i·j }~"àobra visada? No momento da ocorrência ou da intermidiali-
e da sala pela tela", lugar de projeção (cinema) ou de emiss~R:l~: iSidade? "Na fase de concorrência entre as mídias, o diálogo dizia
(vídeo digital). . . g ~~.,reSpeito à sobrevivência de uma mídia; na fase de experiên-
Para nos mantermos (um termo ainda muito tátill) no'usifW' ~;rias intermediárias diz respeito ao desenvolvimento de novos
do vídeo no palco teatral, propomos observar as mídias audi~,;\M' ·:~9Úbdos de ver'?". Estamos, na maior parte vezes, no segundo
visuais na sua relação com a encenação teatral e colocarmosai'W; ·;;1"caso indicado: as mídias nos fornecem novos modos de ver o
esse respeito algumas questões diretas, porém simples. '. '; i/ mundo.
,'.:""

19 Op. cit., p. 289 e s. ,:-':~~,i1 '.: ,


* Trocadilho com base na semelhança depronúncía de vocábulos, intraduzívelpara~;:.-::;-~: tJ- .20 M. Moriinger, Vom "medía-match" zum "medía-crossíng'; em C. Balme e M.
português: o espectador abandonou o écrin (escrtnío) pelo écran (tela) (N. daT.):,::;:% r Moninger (hgs.), Crossing Media, p. 7 e s.
186 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MImAS NO PALCO 187

Estes problemas simples, mais ainda do que suas respod 'início, a forma midiatizada modela-se na forma live,
conduzem-nos a algumas conclusões teóricas, que são 011' .ern seguida usurpa a posição da forma live na economia
tantas hipóteses de trabalho. -tral"Z4.De acordo com o autor, «historicamente) o live é
'ealidade um efeito da mídíatízação, e não o inverso, Foi o
Úepvolvimento de tecnologias de gravação que torn,ou pos-
8. HIPÚTESES FINAIS "~lperceberrepresentações existentes como live"?". E iriegá-
"'como observa Auslander, que "o teatro grego antigo, por
• Deve-se conhecer e comparar as propriedades específ{'xeITIplo, não era live porque não havia nenhuma possibilidade
das mídias? Certamente que isso não é inútil; em todo d
"g'gravá-Io"26, Essa categoria do live é, portanto, histórica, e
porém, é muitas vezes difícil para o espectador normal ideí' ·'ejontológica. Neste sentido, esse pesquisador tem razão ao
ficar e, em seguida, descrever as mídias em jogo na repre'" at1vizar a noção de live, de não fazê-la a origem absoluta, a
tação, Quando muito, caso isso aconteça, ainda não have ,VQz'J10 sentido que lhe dá Derrida, a qual, segundo a metafí-
de explicar o seu funcionamento, 'e muito menos o efeito .~l~aocidental, haveria de preceder a escritura. Em suma, Aus-
produzido. (Da mesma maneira, descrever "exaustivameH iílilider descobre que o live é uma categoria relativa e que não
um espetáculo também não "prova" nada!)'~ste sem o seu sentido contrário, o gravado. Essa descoberta
Como o mostra Christopher Balme'", as mídias não,~a'dialética(não do branco sem negro, nem do bem sem mal)
nenhuma essência ontológica específica, nada mais sendo '~ãô autoriza, no entanto, que se empurre o paradoxo a ponto
que construções provisórias e mutáveis. Não existe "o ter' !â~se dizer que o live é uma construção e uma consequência
sual", "o teatral", "o fílmíco", contrariamente àquilo que afi "{mídia. Auslander mostra com felicidade que a posição de
Phílip Auslander-". Paradoxalmente, torna-se mais fácil estu ,~ggy Phelan'", segundo a qual o teatro define-se ontologica-
as mudanças entre as rnídias, suas interações. O estudo des' ""ente como aquilo que não pode ser reproduzido, trai uma
mudanças, ou a interrnidíalidade, é a disciplina que, espera;" fiÍl1cepção essencialista do teatro que não dá conta da evolu-
possa encarregar-se disso. O teatro e sua teoria abandona('i,~odasartes e das mídias. Porém, daí a ver o live como uma
o essencialísmo, a exigência de pureza midiática de Grotóvsl ]1todução da mídia há um passo que hesitamos em percorrer.
Brook ou Kantor, na época que culminou nos anos de 19, ", • Não é suficiente constatar que as formas teatrais pretensamen-
Balme não fala de uma "mudança de paradigma que possaiij'f~ ré 'autênticas são, com efeito, influenciadas e deformadas sob
descrita como uma substituição da especificidade da mídl~!, "impacto das mídias?
em direção à Interrnidialidade":", Esta última está ligada àY'!'~l,j' Juntamente com o teórico Matthew Causey, diremos que as'
culdade de o espectador perceber diferentemente cada mídi~,«~.7? i')eses de Phelan e Auslander são igualmente problemáticas:
aceitar receber várias "mensagens': mais ou menos «mixad~i,~-~;~ ~':?:;_'_c . "
• Resta estabelecer a relação entre a representação imedii~R1 ,:\,~helan deixa de lado qu"!quer efelt,oda tecnologia na representação
d as ar t es d o paIco e as rrnIdilas, S egun d o Philí A I d ,;-'L{ ,,-,nraça uma fronteira nao negociável, essencíalista, entre as duas
I Ip us an. er"a.,", "", Idi A ' materíial e 1egaliísta d ineglígencía
'
• I « " 'I\{::l~~ ,~~fl,l las. teona e Aus ander o as-
forma lzve e paradoxalmente moldada pela forma mldla~{"" {'peetomais material do live, ou seja, a morte. [". ] O fato de acrescer
ca que a influencia. Tratar-se-ia de uma reviravolta históriCalf~d ~}.;;~~performancelive tecnologias mídiáticas de representação cria um
."-' .'

21 Theater zwíschen den Medien, em C. Balme, M. Moninger (eds.}, Cros~j~~:1 '~i


Media, p. 13-31.;':};;~; -:1 '.·24 Op. cit., p. 158.
22 Liveness. Performance in a Mediattzed Culture. -:-:~.i 25 Idem, p. 51.
23 Citado em E. Fischer-Lichte et aI. (eds.), Transformationen, Theater der Neuii': ,:':; ~:. \ 26 Idem, Ibídem.
ziger [ahre, p. 135. ;':',' :€~~ 27 Unmarked: The Politics of Performance.
188 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MiDIAS NO PALCO 189

sistema que pode alterar o sistema espaçotemporal ao estar, s1,_ ·to, qual estratégia e qual experiência estética encontram-se
taneamente, presente e ausente-''.: alizadas em e por meio de uma mídia'?".
'No exemplo de Paraíso, a experiência estética é a de uma
Seguindo a lógica de Causey, propomos o seguinte cei diatização do corpo, tanto o dos artistas quanto o dos es-
promisso: a representação live sempre está em relação co:' ~tadores, mediação entre os princípios normalmente anti-
mídias e, assim, é influenciada. por elas, porém, não as rep' "'cos: o verdadeiro e o falso, o live e o filmado, o clássico e o
duz mecanicamente e, portanto, não as precede. A encena' '''Pular. Essa mediação é, ao mesmo tempo, uma re-mediação
(tal como a definimos) constitui precisamente uma media' ,e; remédio para os corpos fatigados dos espectadores, um
entre o live e a mídia, A encenação tenta, com efeito, concj( édio social para fazer dançar e coexistir em conjunto esti-
e às vezes confrontar, um princípio de autenticidade com' íbs;culturas, corporalidades diferentes. Esse "remédio social"
princípio de repetição do mesmo: esforça-se por parecer' ldrisiste em suprimir, pelo movimento e pela beleza, as dife-
têntica e única a cada representação, mas ao mesmo ternp ~J)ças, as culturas, as corporalidades divergentes. Subitamente
"fabricada" para ser repetida de maneira idêntica, sejam q~" téi:eptivo às mudanças de convenções perceptivas, o especta-
forem os públicos necessariamente d i f e r e n t e s . " dÓf, esse dançarino imóvel, segue o movimento, identifica-se
• A rernidiatízação, ou a representação de uma mídia ' :hun ele; como se esse movimento assumisse uma dimensão
outra"; retraça a modificação de uma mídia por meio da, ~(,lítica, ele cimenta os gêneros e as classes, as mídias e as ar-
tomada de convenções de outra mídia. No caso da encena{ s, é transportado por eles.
do século xx, seria fácil mostrar que o palco adotou coi .. Essa re- mediação não é, portanto, abstrata, mas encarnada:
tantemente os procedimentos emprestados das outras míd tua-se segundo uma sequência de movimentos e ações físi-
tecnológicas, como o cinema e, mais recentemente, o ví4 as, manifestando-se nos efeitos produzidos nos espectadores.
e que os adaptou às necessidades concretas do momento. 'prtanto, há basicamente uma sequência de imagens, efeitos
grande plano, a montagem, a montagem alternada, são ex 'suais,possuindo uma grande "força de ações afetívas'?', mas
pIos de técnicas fílmicas perfeitamente adaptáveis ao palc , s imagens são sempre encarnadas pelos corpos (reais ou
~~o. " ados) dos intérpretes. Elas se desenvolvem no tempo não
Ao invés de opor, portanto, num uso de mídias como", mo ações isoladas, mas como uma sequência vectorizada de
Paradis (Paraíso), a teatralidade, a coreografia, a música, a y;' 'omentos de intensidades diferentes.
o teatro de sombras etc.; ao invés de enumerar as trucag~ lii/" Neste sentido, a análise de mídias e imagens deve ser reali-
do cinema, do computador, das projeções, seria melhor te~, ,1,Nda estando-se atentos àquilo que Marie-José Mondzain chama
entender a estratégia de sua interação: "A reflexão intermi~ jl'de"sociabilidade política das ernoções't". Essa análise conduz
não consiste em cimentar a maneira errática de critérios' liempre, então, em última instância, ao julgamento, à avaliação
pecíficos das mídias, ela demanda saber, antes de mais na Wruma comunidade.
qual funcionamento de uso, qual convenção de percepção, q, ):t Munido desse frágil instrumental teórico, deveríamos nos
,.~i\llçar à conquista do mundo, à descrição de espetáculos nos
28 M. Causey, Media and Performance, em D. Kennedy (dir.), The Oxford E~}~t~f~ !~,~Uai~ int~rvenham as mídias audiovis~ais, o. que igualmente
clopeâia ofTheatre and Performance, p. 825. -",<~n-_ ~~Ignrficana nos lançarmos numa pesquisa quixotesca.
29 ''A medium is that which remedíates" It is that which appropriates the teC~}'~t .'-",:
niques, forms, and social significance of other media and attempts to riva1~r:.~;' :if;/.
refashíon them in the name ofthe real" (Uma mídia é aquilo que reme4~1~:{/~ i'"
Ê aquilo que se apropria das técnicas, formas e import~c~a social de outr~~~;~i '-~;r M. Monínger; op...cit., p. 10. . .
mídias e aquilo que tenta rivalizar com elas ou reorganizá-Ias em nome~.<,~~ 06:;,·1 B. Wadenfels, Phãnomenologíe der Aufrnerksamkeít, p. 206.
real).J. Bolter: R. Grusín, Remediation: Understanding New Media, p. 65.,: ,-,,-~~ ';'~1;32 Le Commerce des regards, p. 180.

~N~ ::i?
190 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA AS MiDIAS NO PALCO 191

9< TRÊS EXEMPLOS 0111 imagem fílmica quanto como pessoa real. Essa sequência
0
,icampanhada, na sua dinâmica e no seu ritmo de desfile, pela
9<1 Paradis (Paraíso), de Dominique Hervieu e José Montai <*ÍJsica de Vivaldi, e especialmente pela voz humana. Rapidez
:~:kVirtuosis.t:J10 gestuais, voz depurada e música barroca são os
Analisamos uma breve sequência de Paraiso"; desde o rn ««Vetares da emoção e fazem o espectador "decolar".
menta em que a dançarina antilhana repete "bene sikine". i'ii, Dois dançarinos, um homem e uma mulher, colocam-se
a chegada à tela da velha dama, que fecha o extrato da ópe <iliartte da tela, esforçando-se, a seguir, para evitar uma imen-
de Vivaldi. \'asambra, desdobrada, que ameaça esmagá-los; sombra essa
No fundo azul claro, dirigindo-se ao público com aque«'!jilrhada, que poderia ser a do homem calçado com botas pe-
palavras de sentido obscuro e lançando a música com essa < \~âdas. Esses dois dançarinos correm em seguida para o pros-
comendação "com elegância" a dançarina efetua um breve s'cénio, pondo em sua frente uma espécie de luz que projeta sua
que termina com uma proeza física: mover espetacularmeIl,< </k61I1bra, muito parecida com a precedente, e também ela está
o quadril e contrair os músculos das nádegas, cuja evident~. "!decididaa esmagar todos os "verdadeiros" dançarinos que vie-
mobilidade espanta. Tudo isso em contraponto irânico C011l*C<ram lutar com ela. A música é coberta pelos gritos de pavor dos
música "celeste" da ópera, a seguir, com a voz depurada, "a#tc: «dançarinos até o apaziguamento final, quando da chegada de
gélíca" da cantora. «F: :i,ul11a velha mulher, imagem fílmica que se imobiliza nos últi-
Começa então um jogo de trompe-loeil: quatro dançarín <jhOS níveis da sequência musical.
parecem erguer um painel e nele mostrar uma cena, porén Graças à música de Vivaldi, Paraíso encontra todos os po-
esta nada mais é, em si mesma, senão uma tela na qual danç <i'deres da ópera nascente. O maravilhoso e o sublime triunfam
dois grupos idênticos de três dançarinos, também eles visíve] ida matéria, escondem a maquinaria, transportam-nos a um
graças a uma projeção fílmica. Cada um dos três dançaríni mundo maravilhoso onde tudo é possível. A sequência é estru-
exprime-se num estilo diferente: hip-hop, clássico, africano.". ';t'.tllrada de acordo com uma progressão dramática clássica: in-
As mídias (projetares) estão escondidas à vista do públi~é?~:;! f:,\,#oduçãO e aviso da dançarina antilhana; abertura com a dança
a ilusão é quase perfeita, as ações parecem desenrolar-se ma~7~" <S~desmultiplicadae rnultimídia, peripécia dos animais ameaça-
camente, sem que saibamos como nem por quê. Não consegtliW!KI.",.ôores, intensificação do perigo, mas fracasso dos "maldosos";
mos distinguir bem os verdadeiros dançarinos dos dançarino,~;lii <jii;:pacificação final e parada conjunta da música e do movimento.
filmados. :.~%M ~i'<Esta narração clássica procura provocar no espectador uma ex-
Atravessando em seguida o palco, do jardim para o páti?i1"c.\ "$\periência cinestésica completa. As mídias estão perfeitamente
aparecem projeções animadas de animais: cão, asno, serpe~s:ijj }'i)ntegradas no corpo da representação, todo o palco torna-se
te, elefante, tigre, crocodilo, os quais no seu caminho cruzam'.M ,W,UJn corpo cantante e dançante. O movimento, o gestual são in-
com dançarinos verdadeiros que os perseguem ou procuraíil;'i;i,! !.,:.dexados na temporalidade, assim como o ritmo e toda espécie
evitá-los. A escala dos animais é variável entre a serpente muitg~ ":,de percepções inconscientes, ligados à voz e ao invisível.
grande, o cão imenso, ou o elefante de tamanho normal. l\%lW&; .;y, O tema constante da sequência e do balé na sua inteireza
dançarinos verdadeiros misturam-se os dançarinos filmado~Nib }'configurou a luta incessante dos dançarinos reais contra as ima-
tentando também eles não se chocarem com os animais, reeW:\i iigens virtuais, as suas em particular. A imagem fflmica foi utilizada
trando às vezes no interior da tela, saindo dela em seguida tanlf:,j it'.para "esmagar", na sua estatura e na sua mudança constante de
:. !~escala, as frágeis silhuetas "reais" dos dançarinos. Assistiu-se à
·:, · <'iduta entre as imagens virtuais maravilhosas e a realidade dos
33 Coreografia de José Montalvo e Dominique Hervteu, Paris, Falais eh aill
. ()!~'._c_,

1997. Existe um vídeo realizado pela Arte em 2004. -,::~! ;i;:.,dançarinos «em carne e osso': ora virtuoses, ora assustados ou
"W; '~'~
,.,;j -;"'-
192 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MIDIAS NO PALCO \93

gritadores. Porém, essa luta era falseada, pois o modo de r '"da, o vídeo live, não era absolutamente indispensável e
sentação dos animais evitava qualquer realismo e qualquer e 'rtdado pela temática. O vídeo foi uma maneira de contar
de medo. O conflito era tão ingénuo quanto a coexisténc' história, uma decisão formal. Não foi o pretexto de um
estilos e grupos sociais que os representam. Ecumenismo e '. irandelliano entre realidade e ficção, entre palco e tela.
tico, étnico e sociocultural. Porém, quem ousaria se queix cei'ch parecia zombar da mania autorreferencial do teatro,
As vezes, o uso de midias é claramente mais critico e c .: ando a autorreferencialidade ao magazine de acessórios da
bativo. Como se a mídia abandonasse sua função ilustral\~ ·:~~rnidade. O vídeo não era tampouco dominante a ponto
sedativa para confrontar-se com a realidade ambiente e'f :~Üminar a atuação cénica a descoberto (mesmo que pare-
vocal' o espectador no seu conforto midiático. Dois exem Pi 'se muito frágil e pouco "presente" depois da longa introdu-
os de René Pollesch e de Frank Castorf. R', Jiílmica dos primeiros quinze minutos). O dispositivo de
.tenação de Pollesch manteve um equilíbrio entre a imagem
. vídeo e a atuação no proscénio: a longa fachada do bangalô
9.2 Cappuccetto rosso (Chopeuzinho Vermelho), ófn sua porta, suas janelas e sua varanda, a seguir perto do
. de René Pollesch "WÍll, quando da fuga do palco e do arrombamento, sem sucesso,
.,.àÚepresentação e da quarta parede, com o espaço da técnica
Criado em 2005 em Viena e em Berlim (Vo!ksbühne), CIP:' i~i>público, os mesmos eram espaços teatrais suficientemente
cenografia de Bert Neumann, Chapeuzinho Vermelho contã /tôáes para contrabalançar a tela. Sophie Rois invadia o espaço
história de três atrizes que preparam, sob a direção de um en ..' 'técnica como se procurasse neutralizá-lo, colocando um fim,
nador, um filme pornográfico sobre duas lésbicas nazistas, ':~~sim, ao domínio das mídias. Ela era, evidentemente, afastada
lhor dizendo, um filme mais comercial do que artístico! Poré :~/remetida para dentro do bangalô enquanto Caroline Peters,
o trabalho fica emperrado porque a atriz principal, interpreta' ",l'rival, também era condenada a reaparecer em cena para co-
por,:ophie Rois, está em crise, suas contracenantes acham 'J.~. jmer o seu bolo, "separada" dela mesma e separada da grande
ela perdeu o seu charme': ..,>literatura, devorada por um "cogumelo" que a obrigava a rodar
Desde o início, e durante um bom quarto de hora, não"': itilines comerciais.
percebia senão as intérpretes filmadas no interior do guardilj; . O vídeo foi essencialmente um instrumento para mostrar
-roupa, em plano médio ou plano geral, quando se dirigiárli\ .de perto as emoções e reações desse grupo de artistas. As atri-
para a câmera. Na maior parte do tempo pareciam atuar senÍ\::,zes estavam conscientes da cãmera, que não parava de filmá-las
,i":
estar conscientes da câmera, a qual perseguia suas interaçõe'ijji,) enquanto estavam no interior; elas necessitavam dessa presença
dramáticas dentro do bangalô. De tempos em tempos, conttÍj*~~ ji'.insistente para existir e, quando tinham uma "confidência" a fa-
do, dirigiam-se a ela em tom confidencial. Através das janelas(~~\ :;,te.er, dirigiam-se imediatamente a ela, cochichando ou berrando
observávamos bem a sua presença: suas vozes eram amplifica!";'t ~;~segundo o humor do momento. A câmera nos fazia penetrar
das por um microfone suspenso num suporte. Além da came,::)~ 'jüna intimidade das stars, ela nos tornava voyeurs de sua crise
rawoman, uma souffleuse: seguia-os de perto. A imagem'ef~F~:~ ;!':!de identidade, de seus problemas sentimentais. Nós as víamos
clara, o enquadramento cuidadoso, a imagem numa tela amplâ::;:t"jatravés dos olhos de seu encenador (interpretado por Vo!ker
ao lado do jardim permitia seguir corretamente todas as eVQ;'''~ ;')Spengler), o qual era tanto um artista quanto um proxeneta e
luções, pois sua imagem possuía a qualidade de uma imageInf{·i; ~. produtor de filmes pornôs. A enunciação fílmica reconstituiu,
fílmica. Mesmo que o tema fosse o de uma filmagem, a mídiaj',: ·Siassim, as relações de força e poder entre o patrão, o mestre do
...... ;; olhar e seus empregados. A câmera serviu também para espio-
g\
* Souffíeuse: feminino de soulfleur, que equivale ao nosso ponto no teatro (N. daT.). \~!, fiar as atrizes, não tanto como no caso de Castorf, para revelar
:~,~~ 'j(:-
194 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MÍDIAS NO PALCO 195

as falhas, os defeitos ou as incongruências das intérpretes: A necessidade de interpretar todos os papéis, e de re-
rém mais para controlar o nível de presença ou de "char tar personagens os mais diversos) é vivenciada como uma
em suma, para tematizar a questão principal da peça: o q 'ssessão do eu individual. As transposições daquilo que é
to vale comercialmente o corpo da atriz? Nada de sequêxi 'sentado para significações que o público acredita observar
trash. emprestadas da publicidade audiovisual, que escoari' usórias. Experimentamos um magro consolo ao ler as me-
rante todo o espetáculo como ocorre muitas vezes no ca .' as transferências, as representações figuradas.
Pollesch. A única exceção ao video live foi uma sequênci
ilustrava o momento da peça em que a atriz devia atrav
um caminho em plena circulação, Como que por azar, o
desse perigoso teste era um negro tentando atravessar .'
autoestrada americana,
A referência a Paula Tura remete, sem dizê-lo, ao filni
Lubitsch: To Be ar Not to Be (Ser ou Não Ser), rodado em 1
nos Estados Unidos. Nele, vemos duas vedetes de teatro, JQ
e Maria Tura, ensaiar uma peça na Polónia, Gestapo, ante
cair sob o domínio dos nazistas. Essa intertextualidade pe
centrar a peça nas infelicidades artísticas de Sophie, ligando'
com outro topos hollywoodiano, o envelhecimento da atriz
substituição por uma rival mais jovem (que também acontec ,
All about Eve [A Malvada], de Mankiewicz, filme de 1951)
Essa história é contada igualmente pelos diálogos, m " 1>;;-~'uzinho Vermelho, escrita e encenada por Rene Pollesch. ©Patrice Pavis.
vezes explícitos, como se o autor dissesse diretamente as coi
ao invés de fazê-las dizer pela boca dos personagens e pelo: ;':'lsso quer dizer que Pollesch tentou um teatro da não-
deo, que percebe o exagero e a violência das reações. A mL 'presentação, que ele escapou àquilo que Derrida chamava
do vídeo é frequentemente mais forte do que a atuação visí ~b "destino da representação"? Longe disso! Ele contou com
e sem microfone à frentedo bangaló. Fica-se de tal modo h ,- .oÜmor e ironia uma história) a de pessoas de cinema e de tea-
tuado à imagem superdimensionada e ao som amplificado, \;em face da concorrência "desleal" do cinema comercial do
se experimenta como que uma decepção ao ver os atores,r_,,~':t:N bó de Der Untergang (A Queda), o filme de sucesso de Oliver
carne e osso" entrar no espaço cênico visível. A "verdadeif~j(G­ [irschbiegel sobre os últimos dias de Hitler, essa dramaturgia
representação, a da atriz no palco, parece decepcionanteja~i~ 'identificação que vem preencher uma lacuna e joga na onda
falsa. Mas não se pode, já o dizia Derrtda'", sair da represen.t~~(; ~ nostalgia e fascinação pelo III Reich. O encenador de sua
_ -.'<'o'_~."r.'-i_
ção, não permanecemos muito tempo na apresentaçao ou: ' bula não tem outra escolha a não ser rodar, ele próprio, um
acontecimento único. Pollesch, por meio de queixas repeti, e porriô sobre o mesmo período. E Pollesch seguiu-lhe os
dos personagens, reclama do "teatro da representação': <, ássos, certamente de forma paródica, servindo-se do vídeo
nos separa de nós mesmos': Cada atriz gostaria de escapar" orno instrumento para desvendar os mecanismos da repre-
representação estereotipada que o filme ou o teatro lhe im,põerlj,x 'Mação, da identificação, da inspiração, em resumo, de todo
gostaria de evitar que o seu caso particular se tornasse tlp,icÇiih ·'teatro burguês. Dito de outra forma: o único meio de des-
34 Le Théâtre de la cruauté e la clôture de la représentatíon, Écriture et la onstruír o "teatro da representação" consiste em parodiá-lo,
rence, p. 341-368. ,evitar a armadilha do pirandellismo e da autorreferencialidade
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MImAS NO PALCO 197
196

para contentar-se com as farpas mais eficazes contra esse teatrJ]!! :'j)ispositivo certamente irônico, já que tirou proveito do sistema
e de alusões à prática cultural do momento'i~"" 'neoliberal ao comentar essas formas as mais abjetas.
Esta peça é, com efeito, urna rápida resposta à atualidadi1'!jlt O uso do vídeo retransmitido live expandiu-se a partir do
(o filme sobre Hitler), no espírito dos living newspapers ameri '. , final dos anos de 1980, por vezes tendo-se tornado, para alguns
canos, que comentam, através da atuação, a quente atualidad"' artistas, uma marca de fábrica, como para Castorf. Convém des-
política. Por trás de fórmulas provocantes, vemos os célebre)..., i crevé-Io de maneira diferenciada, pois se a técnica foi a mesma,
ataques contra o neoliberalismo, as fórmulas da peça-portátU'!:~ Pi' a função dramatúrgica variou consideravelmente de um caso
.
de personagens em fúria. Pollesch transmite um discurso radf~~ ~r' para outro. No exemplo de Chapeuzinho Vermelho, a utilização
cal contra a maneira de ganhar dinheiro ao se explorar um pa~~,~\~\:, do vídeo esteve ligada à fábula, visto que o espectador foi quase
sado pouco recomendável. Sophie aconselhou, finalmente, q';~'t'W, ",r. '.convidado a julgar se as atrizes perderam ou não o seu charme
se deixe de lado a moral para consagrar-se ao direito: "Como,"';;:> e de que maneira a captação através do vídeo augura o futuro da
podemos salvar o mundo? Somente interpretando nazistas".'W:(~I~>rodagem fílmica. O vídeo corno mídia foi tomado diretamente
A técnica de Pollesch foi a da guerrilha: ataques fulg~f;:i... "', ' como testemunha para ilustrar o tema central da peça. Este caso
rantes seguidos de urna réplica estratégica e urna recusa ei:!!,'}':, "( defigura não foi, evidentemente, a regra. Tomaremos, portanto,
atacar massivamente ou fundar um sistema. O poder está tã'd';ii ~:i o exemplo de Frank Castorf para examinar o uso não temático
bem organizado e pronto para tudo que somente os atos d~i.lt ~., do vídeo e as possibilidades que oferece.
tipo terrorista podem ainda inquietá-lo. Neste caso, o terrqfAt; i'N
rismo foi puramente verbal, foi o de fórmulas perscrutantes/et/;i~ .Ir'f
provocantes que eram ao mesmo tempo intuições e reflexõ~~~',l 'ii 9.3 Crime et châtiment (Crime e Castigo), de Frank Castor!
para o espectador. Essas fórmulas substituíram os slogans p<ii":,!~ :~,i'
líticos dos "artistas progressistas de esquerda" Da mesma forf';?)' 'Ern inúmeros espetáculos, e particularmente em Crime e Casti-
ma, a luta contra o poder e o dinheiro não foi mais precedid~:~ '"!go, Castorf filma os atares continuamente. Sua imagem aparece
de um discurso político em regra: "No combate confrontad(t:ici; .muito pouco nítida numa tela ou nos elementos da cenografia de
com os dispositivos do poder não estamos mais subitament~1,~ ·.~'ertNeurnann.Os semblantes são muitas vezes apreendidos em
munidos de fórmulas mágicas". Essas fórmulas mágicas eran;íl,;' 'planos gerais e nada escapa, então, à objetividade: nem as rugas,
segundo Pollesch, tanto os slogans políticos ocos dos anos d~~.. " nem a pornografia, nem os detalhes sórdidos. O vídeo é uma in-
1968, quanto as fórmulas que pretendiam proteger-nos da re%;".,/ 4')rusão planejada na intimidade cénica, ali onde normalmente se
lidade. Na atualidade, quando o charme não mais opera, eis-nqs,';i'\";';'pode olhar, mas nunca de tão perto. O vídeo "trespassá' o atol';
à mercê do poder que nos destrói, na mesma medida em qu~·:;Z:; /"como se ele fosse invisível, denuncia junto ao público qualquer
a indústria fílmica pornô destrói as atrizes, sua identidade~''''.:i~"dnfração às regras ou aos bons costumes, tal como uma boa velha
seus sentimentos. ,:;;:,: ''';'videofiscalização. O atol' não se supõe estar interpretando para
O discurso político de Pollesch não era, portanto, tão cínb!:,~itacâmera: trata-se, então, de uma captação feita à sua revelia. O
co quanto parece! Ele apenas foi tomado por uma denegação,'!)';');' ';/cameraman surpreende algumas imagens sem pretensão à exaus-
um double bind: de um lado, desmontou o processo da filma~52:,. l.tividade, tal como um repórter esportivo que quer testemunhar
gem, da representação, da procura de charme; de outro, graças;·'·/i )i§nos fazer apreciar as explosões dos artistas. Ele nos entrega de-
ao charme das atrizes e ao prazer de contar uma história dentroJ';~.~\talhesinvisíveis a olho nu ou considerados como privados ou ta-
da boa velha tradição do "teatro da representação", esteve eI1lo':""t 'f;bus. É evidente, contudo, que o atol' está consciente da captação.
condições de fabricar um espetáculo crítico e engraçado. E esse, ,i.~ "tEle deve fazer como se ignorasse e, ao mesmo tempo, prestar-se
espetáculo permitiu-lhe, finalmente, representar nossa época-: ";, ..;'.~s exigências técnicas da câmera.
AS MIDIAS NO PALCO 199
198 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

A captação ao vivo não é, em todo caso, necessaria 'rio trabalho? As velhas questões da estética teatral nun-
te um distanciamento crítico de tipo brechtiano. Ê mais:' 'ba ffi de ressurgir com nova acuidade, elas obrigam os
desconstrução, até uma demolição, do que um distancia~ tadores a decidir imediatamente pela resposta. A per-
estético e político. Esta "vivissecção pelo vídeo u.e»,
isenf ,ão é desmontada sem cessar em profundidade e duravel-
má consciência ideológica e da pose pedagógica, parece'dizer; ílt'ê enquanto em Paraíso ela era favorecida e confirmada
1

"Vejam o que consegui mostrar a vocês do ator, todos esse~ ~; suas certezas. Ao ilusionismo depurado, expurgado,

quenos segredos do palco que esse cabotino gostaria de rev intiliz ad o, idealista e um pouco simplório do Paraíso,
e ao mesmo tempo esconder de vocês!" O ator não esca'::< ';'se o deslocamento de identidades, a fratura aberta nas
,
camera. P '
orem, - tam béem os personagens de Dostoi';
sao P ações sociais e interpessoais no inferno de Dostoiévski e de
que são sondados, perseguidos, submetidos ao soro da verd 'storf. O Paraíso apazigua o tema, centra novamente suas
da objetiva: Raskolnikof interrogado pelo policial sabe q" ~tcepções dispersas, enquanto o inferno de Castorf nutre-se

outro sabe? E o policial faz uma cara de não suspeitar OUê '~iinpressões contraditórias e chocantes. As projeções e tru-
na verdade a pique de torturá-Io psicologicamente? A câ " tagens em trompe-Toeil de Paraíso intensificam a embriaguez
adiciona uma dimensão de análise, de suspense e de autem] 'do movimento rápido e virtuoso graças à música eufórica da
dade aos diálogos do romance, ''pera barroca, propõem uma cinesterapia, certamente ilusó-
Seja qual for a confissão, voluntária ou involuntária, o '.~, das relações sociais. Ao contrário, as imagens chocantes de

deo oferece ao espectador uma espécie de segundo olhar so .time e Castigo mduzem a uma percepção fragmentada do
o palco e sobre o acontecimento teatral. iNtpO, colocando em questão qualquer harmonização volun-
j~Ústa das relações humanas.
Ê nossa percepção que produz o mundo - é o que nos Iern
o segundo olhar do vídeo live no palco, Potencialmente, o seu o
alternativo dá-nos a possibilidade de tornar visivel aquilo que' ~;jIQ. CONCLUSÕES GERAIS
capa ao controle quando, como sempre no teatro, exercemos
:-(t~::,::
controle. O olhar do cameraman que aflora as coisas a partir dÓ,-",' "f\(QUSO das mídias não é uma simples questão de técnica e for-
objetivo garante a possibilidade de participar, pela sua presença': .'....,.
. . ->lim,-'a. Abrange o sentido global da encenação. Não consideremos,
asststír a um acontecimento autêntico. Também a utilização live:: "--," .
íd ,.i.,tp':·:,o,rtanto, essa questão como acessória e não fiquemos mais nas
VI eo traz a possibilidade especial de conduzir a encenação ru - ..
um «agora" intensificado: nessa simultaneidade integrada abrem) '.-' c,?nsiderações de princípio no uso da técnica no teatro!
à percepção degraus de verdade e descobertas que, de outra forrifàHi}~i ~j
jamais poderíamos ilnaginay36.:.Y.\~~,,_, • O exemplo contrastado de Paraíso e Chapeuzinho Vermelho
'c'.::;; '~'(9U de Crime e Castigo) prova suficientemente que há meios
Em Castorf, o olhar do vídeo segue e intensifica o frenesL;-! -'jopostos para se recorrer às mídias. O seu uso deve ser anali-
da interpretação) colocando o atar em crise e a representaçãoe~f;I}~ ~K:sado no quadro de uma encenação em que estas assumem o
pane: técnica épica) mas não necessariamente brechtiana na,su~Cj.~-~t~~seusentido. Para avaliar este uso) a hermenêutica revela-se um
dimensão política. Disso resulta uma relação nova e reforç~i(~~Yl!l;J!neio adequado para avaliar o impacto e a integração das mí-
entre o ator e seu personagem: é o personagem que está suj o o\l;}.'l ,-dias sobre e na representação.
o atar que está emporcalhado? Qual dos dois mente? Com9'::'; • Temos necessidade, para a análise do espetáculo, de uma
saber a verdade? O que é que sinaliza essa reportagem sobre','; :),teoria da imagem? Esta questão fica para ser demonstrada e
,. ''''depende evidentemente da teoria! O acontecimento cênico,
35 T. Oberender, Mehr jetzt auf der Bühne, 'Iheater heute, n. 4, p. 23.
36 Idem, ibidem.
i'"~
_'-,'i·
isto é, a sequência de ações físicas e cênicas (na qual as mídias
200 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA AS MImAS NO PALCO aoi
,--.
podem intervir) é muito mais do que uma séríe de irn 'ii-armas) é sermos constantemente levados ao raso da rea-
visíveis. Evitemos centrar tudo na visualidade e na visibil <;órdida revelada pela câmera que persegue o culpado.
de. Interessemo-nos também pelo invisível, pelo tempo,' ({mídias desconectam e reconectam o espectador com
som e pela voz, indo, neste aspecto, ao encontro da posiçã ióprio corpo,e com sua situa~ã~ no mundo. Longe de ser
Marie-José Mondzain: as indústrias de entretenimento.;, ,,' ida pelas mídías, a encenaçao e reformada, recnada, re-
â~'por elas. No fundo, ela própria se situa à igual distância
situam-se na hipótese do tudo visível, do mostrar tudo. En~ "o espetáculo - vivo, maS não codificável - e a tecnolo-
tramo-nos no totalitarismo da visão. Só existe aquilo que ve';
'reprodutível, mas inerte.
durante o tempo em que o vemos. Fato que dá um poder exorbit
aos proprietários das visibilidades, que geram a noção de espeé'
em lermos de pura visibilidade e não em termos de invisibn{
que é a essência do espetáculo. A essência do espetáculo nã9c.
visível, porque esta é o tempo'". .. ".

.. Em lugar de estabelecer uma teoria geral das mídias (i


preendimento, aliás, tão problemático quanto titânico), pn'{,
mos antes de mais nada uma teoria provisória da encenaçâ.
do papel variável das mídias na sua constituição. Para dar cti
disso, proporemos algumas questões simples: como funcf
um acontecimento cênico, fílmico, auditivo, para um dado ,
peetador? De que maneira as novas mídias audiovisuais'
conduzem a uma percepção renovada, a uma reviravolta,
olhar? Por exemplo, em que o vídeo ou as projeções nos o '
gam a repensar e a "ré-sentir" nossas impressões teatrais:
bituais? No caso de Paraíso, constatamos que as projeções
trucagens intensificam a embriaguez do movimento vir
acompanhado de uma música euforizante. Simples intensi
ção, portanto. E ainda a função cinesterapêutica e anestesia,
aliviar a dor, e não suprimir-lhe a causa. As mídias contribue
para reconstituir a identidade e a unidade corporal. Com reli(
ção a Crime e Castigo, o vídeo live possui às vezes uma fun
brechtiana de distanciamento, controla nossa percepção p
mente teatral, tornada muito imprecisa e pouco confiável,
frenesi de mostrar tudo (como nos reality shows) implica.'
certo sadismo da atenção e engendra um corpo fragmentá
Graças às mídias, nossa relação com o mundo é reconfigura
é como se nós o habitássemos de outra maneira. No Par~í"
(perdido!), nós "planamos"; no Crime, nosso castigo é 'n,

37 Le Temps et la visibilité, Frictions, n. 8, p. 19.


IA Desconstrução
Concebe-se espontaneamente o trabalho da encenação co~~ ~aa Encenação Pós-moderna
uma paciente construção da representação. A encenaçãôttê
objeto aberto e polimorfo, torna-se um objeto estético parâ:o
público ao fim de várias regulações. É também, simultanEl~in
uma desconstrução de nossa maneira habitual de ver e I,il":'-
uma colocação à distância da representação, aquilo que';
chamava distanciamento, ou antes, efeito de estranhameil
que se lhe diferencia? ....
A desconstrução é muito mais que um efeito de distanciam~'
Brecht ainda se situa na representação mimética do reai, erf;
estilizada num realismo crítico. Porém, a partir do momento
que se questione, com Derrlda, essa' representação logocêil
partir do momento em que se interrogue o texto ou o espetá'
si mesmo, para aiém de sua metalinguagem e de sua língua
dramática ou cênica, entra-se na desconstrução.
A desconstrução contesta a autoridade da linguagem e cid'
para interpretar o objeto analisado, tenta quebrar o "fecha"
da representação" (Derrida). \:\úvida, dever-se-Ia começar por desconstruir este título e
biguidade que ele veicula! Trata-se não só de examinar de
Há multo de representação no teatro, e mais ainda fecham'
.rnaneira a encenação pós-moderna pode ser desconstruída,
A encenação presta-se a esses jogos de construção/ .ígualmente como efetua, ela própria, uma desconstrução.
desconstrução, visto que ela se elabora no próprio rnomsni urnindo: em princípio, brincaremos em cima do prefixo
que é recebida, e posto que dispõe de meios para comenta 'tanto no seu sentido passivo quanto ativo. Como os três
manipular e desmistificar in situ o processo de produção El',· .os
do título nada têm de unívoco) a errância, a "destiner-
recepção de seu objeto pelas atenções do atar/espectador). çià' (Derrida 1 ) é programada. Entretanto, esta reflexão não
crítico/hermeneuta. -,
":outra ambição senão utilizar a noção derridiana de des-
Derrida ama as palavras em O: diferença. destlnerrânota.r] "~trução como ferramenta para analisar o funcionamento
destruição, descentramento, mas também: disseminação,." alguns espetáculos, de Vitez a Castorf.
dissociação (termo emprestado de Freud). Essas ferrarnen /Não obstante, qual é esse objeto desconstruído ou a des-
do "O-fazer" afastam-nos e preservam-nos da destruição,.}' struír? Pode ser um texto a ser interpretado no palco, mas
se tornar, para tanto, ferramentas pragmáticas, metodolóq] . almente a própria encenação, a maneira pela qual é elabo-
ou regulamentares. . -.,' ~S'a ou se desfaz diante de nossos olhos. A encenação, porém,
Para cornpreendar Derrida, sem Des-afiá-Io e para "Der-rid' 'i .
sentido clássico e primitivo do termo, é uma obra total,
de sua seriedade filosófica, partiremos de alguns espetácul ~itária, harmoniosa e orientada, a sua desconstrução (no
concretos.
Sur Parole. Instantanés philosophiques, p. 53. "Creio que, como a morte, a in-
Esperamos, assim, juntar o útil ao agradável. decldíbíhdade, aquilo que chamo também de 'destinerrãncíe; é a possibilidade
para um gesto não chegar ao destino, é a condição do movimento do desejo
que, de outra forma, morreria antecipadamente:'
A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO PÚS-MODERNA 205
204 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA

, ue ela se enuncia) com a ajuda do mesmo material que se


sentido de Derrida) consiste em refazer e induzir suap,:' . ue se faz movimentar para fins de reconstruções movediças.
vel fragmentação, suas contradições, suas dissonâncias' 1, q
,'''..',
» "'1 - b
çâo é "aquilo que acontece) aquI o que nao sa emos se
bns tru
desorientação. rá ao seu destino etc
"3

Emprestado da arquitetura, até da maçonaria, o term6


construção designa, no seu sentido "próprio'; a desmont~g ."..1'.sta bela e completa definição - feita na prese,:ça de Der-
a abdicação de uma estrutura. Derrida utiliza-o desde 196: 'Cii' ão refutada ou desconstruída por ele! -, nao se aplica
De lagrammatologie (Gramatologia*), inspirado na Destruk
ae na . ,
ii' • filosofia e à literatura; mutatis mutandis, ela se adapta
e no Abbau, de Heidegger, o qual não procura fazer crítiC nas a , . ,.,
; tro . Deve-se , porem, necessanamente limitá-Ia ao teatro
ea
logocentrismo. Perguntado frequentemente sobre o sentid ",-,'."pós-mo
. derno"
erno . , ,. .
origem da noção, Derrida não a definiu de boa vontade, a ;'A categoria do pós-moderno e prática, mas pouco pertí-
das pressões amigáveis: ;'t' .Estamos de acordo, certamente, com certo número de
n~ .
'\terísticas do pós-moderno nas artes e na literatura, mas
o que nós deduzíamos, no começo, era a alusão à estrutu~a;\' ~~-se tomar cuidado para não assimilá-las ou reduzi-las à des-
que no momento em que me servi dessa palavra, era o mornen
'\trução! Na literatura, o pós-moderno caracteriza-se por uma
que o estruturalismo estava dominante; pensou-se na desconst
ao mesmo tempo como um gesto estruturalista e antiestruturall fura de registras, gêneros, níveis de estilo, por uma hibridez
O que, de certa forma, o era. A desconstrução não é simplesrneh' '~rmas, uma intertextualidade muito poderosa. De boa von-
decomposição de uma estrutura arquitetural, é também uma qu, ~. ele é paródico, lúdico, irredutível a um sentido definitivo.
sobre o fundamento. sobre a relação fundamento/fundado; sobre: ('moderno rompeu claramente com a tradição clássica, de
chamento da estrutura, sobre toda uma arquitetura da filosofia. "'delaire a Kafka, por exemplo, o pós-modernismo reintro-
apenas sobre talou qual construção. mas sobre o motivo arquitetô zíu a representação e o gosto da narração, não sem colocar
do sistema", "crise essa faculdade de representar o real, especialmente nas
randes narrativas" inspiradas no marxismo, no freudismo ou
Esse gesto pró e antiestruturalista não estará no fundo'" todos os outros modelos canónicos. No teatro, a encenação
quele da encenação que forma um sistema mais ou menos ':i~moderna (termo utilizado mais nas Américas do Norte e
chado ou aberto, orientado ou desorientado? A encenaç '''Sul do que na Europa) não se apresenta sob um estilo ho-
descrita ora como sistema coerente de signos) ora como açq, gêneo ou sob um gênero definido, nem mesmo numa dada
tecimento sem limites. Com efeito, a encenação é muito aqll.iIo ?:~ca, mas sim) no melhor dos casos, como uma certa atitude,
que acontece sem que nunca se saiba onde nem por quê. CJ' "h!lt certo olhar': Diante de tal imprecisão artística, não seria
eis aí uma característica do trabalho inconsciente da descei T~lhor recorrer a esse instrumento mais confiável que é a des-
trução. É, de resto, o que sobressai de uma conversação en "'llstrução derridiana? Não que ela disponha de uma bateria de
Jacques Derrida e Elisabeth Roudinesco. Esta última propô gras e propriedades estáveis, mas porque fez análises sólidas
seguinte definição: . d,tema e, sobretudo, porque podemos verificar-lhe a utilidade
<J{:o ,()!lt exemplos concretos de encenações. Além disso, a descons-
Um trabalho do pensamento inconsciente ("este desconstrói-O ,
e que consiste em desfazer) sem jamais o destruir, um sistema de P;~
ção, assim como o pós-estruturalismo) define-se muitas vezes
sarnento hegemónico ou dominante. Desconstruir é, de algum mo bmo uma resposta teórica e crítica ao pós-modernismo. Com
resistir à tirania do Um, do logos) da metafísica (ocidental) na próp~;i feito, graças à desconstrução, a encenação regula problemas
,de fabricação do sentido e, ao mesmo tempo, o espectador ou o
Trad. bras.: 2. ed., São Paulo: Perspectiva, 2008.
:·:.3 J. Derrtda: E. Roudínesco, De quoi demain ... Dialogue, p. 12.
2 Il n'y a pas le narcíssísme (1986), Poínts de suspension. Bntretiens, p. 225.
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
206 A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO POS~MODERNA 207

teórico testa métodos de análise desse gênero de espetácul '-Ie eelida , na


c
prática ) para alguns casos de figura em nú-
exemplos foram escolhidos em função tanto de sua divers·'
ij1l1ütado.
quanto pelas propriedades de desconstrução que colocá 1,"m homem de teatro como Antoine Vitez via suas ence-
evidência. De Vitez a Castorf, passando por Régy, ChÚ . d ma mesma obra ) apesar de tudo muito diferentes
~s_el1
Marthaler, tomaremos alguns exemplos de encenações c6 das outras, como variações, talvez pelo fato de que elas
bidas como desconstrução. unham na sua memória. Desejava ele, exatamente,
perp ,. "O
.: ou mostrar? São os rastros dessa memoria: que en-
tar . . h ' . "5 E
-'-está no palco) é exatamente ISSO, mm a memona . ssa
1. A IMPOSSÍVEL ANULAÇÃO DO PALIMPSESTQ'. .ária é também a daquilo que sabemos das obras, de sua
",.
ona, de sua interpretação. Os clássicos não são os contem- .
O rastro é, para Derrida, o lugar onde a presença de um elem fãneos dos quais fingimos ignorar, t~do. Não se deve cair
está condicionada por uma série de ausências. O que a li ',.; 'se gênero de intimidação pelos clássicos, nem naquela ~e
gem representa jamais está ali. Ela brilha por sua ausência; f falava Brecht a propósito do público pequeno-burguês,
rastro daquilo que não é nem visível nem tangível. Em psic i'ressionado pelo passado; ao contrário, essa intimidação
se, o rastro memoriaI. carrega a marca inconsciente de íncíd, f'elllPurraria a acreditar em sua contemporaneidade, na sua
inscritos na memória. Esse rastro, presente e ausente, per (na [uventude".
compreender de que maneira as encenações não se elabor . i Desse modo, não apenas qualquer nova versão de uma obra
vazio, mas são interconectadas por toda uma rede de citai anula totalmente as precedentes, como também, de acordo
alusões, polêmicas ou, simplesmente, de rastros involunt*' Daniel Mesguich, todas as interpretações fazem doravante
Com mais razão, para as encenações da mesma peça, u ~ ":; te dela, inscrevem-se na série infinita de versões sucessivas
pécie de ardósia mágica semelhante ao Wunderblock freu f(suas encenações de Hamlet, 1977; de Romeu e Julieta, 1985
conserva rastros de trabalhos ou experiências anteriores. lide Lorerizaccio, 1986). Certas criações teatrais, como as de
raro que um artista monte uma obra em diferentes moment -"~melo Bene, de início consistem em variações de uma mes-
sua carreira", Os rastros não são puras citações, rerniniscênj simples ação e não mais, como no caso do teatro popular
uma "ínterludícídade" São substituições de seu lugar de orig, brechtiano, em representações de conflitos'.
de sua identidade, de sua presença.
A encenação ou a escritura não são repetíveis. Mesril--;!
nova encenação de uma obra substitui o que pareceu a saIu': DESCONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO
adotada e nada faz senão remeter a outras leituras anteríof DA TRADIÇÃO
e provisórias.
A figura de Vitez impõe-se como a de um dos primei esconstruir a tradição não significa absolutamente destrui-Ia,
"desconstrutores" da cena, especialmente a clássica. Se a p.' 'as sim realçar-lhe os princípios ao confrontá-los com os da
tir do acontecimento da encenação a relatividade e, port,%! tualidade, Observar a tradição na interpretação do ator consis-
a desconstrução potencial da obra são moeda corrente; con eem restituir a gestualidade ou o fraseado (phrasé), a pronúcia
pós-estruturalismo dos anos de 1970 a desconstrução
-se uma técnica testada para se interpretar a peça conn~,~
Écrits sur le théãtre, Tome III - La Scéne, 1975-1983, p. 29.
mesma, para abrir a série infinita de leituras possíveis, 6 Idem, P: 30: 'i\. intimidação pelos nossos clássicos tem como estranha conse-
quência que rejeitemos a qualidade de clássicos para crê-los modernos, sempre
jovens, como nós, finalmente"
4 Ver M. Carlson, The Haunted Stage. The 'Iheatre as Memory Machine.
C. Bene: G. Deleuze, Superpositions, p. 120 e s.
208 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO PÓS-MODERNA 20'

do passado, como o fazem, muito precisamente, por exe diálogo. Uma mistura tão explosiva obriga o espectador
mp'
encenadores como Eugêne Green ou Iean-Denís Monor" ~econsiderar suas categorias do sublime e do vulgar, do fi-
"- b Y,co 50fico e do comercial. Não estamos mais na alternativa do
suas reconstituições arrocas de Racine. Porém, isso não é ü:'"
rec~nstrução c~mo a praticava Antoine Vitez. Na SUa errt 'rdadeiro e do falso, na resolução de conflitos, mas no jogo
naçao de Andromaca, em 1971, Vitez reforçou a retóricad )diferença: a conclusão, a solução e o encontro são repelidos
alexandrinos, respeitou-a escrupulosamente; obedeceu às? ". cessantemente. O prazer e a perversidade da atuação residem
gras da eufonia. O objetivo não era imitar nem se aproxim' ihàigualdade de argumentos e na impossibilidade de concluir:
, .
maxrmo , ld a trad ição de atuação, mas fazer compre;,'
posslve ar. "eI autor, em seguida os intérpretes, mantêm o leitor e o espec-
der o F~pel d~sses princípios na constituição do personagem ;t~dor em treinamento, dando-lhes a ilusão de que acabarão
do tragíco. Vitez perm~~ou os papéis, os atores anunciavam! p'or descobrir o enigma desse deal e desse conflito sem tema.
nome do personagem: Os atores interpretavam diversos'. Ghéreau e seus atores evitam especificar-lhe a natureza. Por
.. d
peis, que eram esempenhados por vários atores'", À manei'
P i'~erto, a interpretação cênica não pode deixar de dar indícios,
de Derrida, Vitez afirma que a peça não tem um sentid~ t ",porém sua tática é retomar imediatamente aquilo que acaba de
conhecido que bastaria traduzi -lo cenicamente: "Não se pai! 'sugerir. Qualquer nova pista fornecida pela atuação revela-se,
representar Andrômaca como Se o seu sentido existisse poP" ,portanto, falsa. Espacialmente, qualquer ganho de terreno é se-
e que se tratasse apenas de traduzi-lo'". Representar a peça: jjÍIido, da mesma forma, por uma perda e více-versa. Os atores
portanto, começar por desconstruir-lhe a imagem tradicioIl '(Pascal Grégory e Patrice Chéreau) diferenciam-se ao máximo
nisso reconstruindo já uma possível leitura. Para fazê-lo, subs'ti~. , na explicação, dando a total ilusão de que a procuram apai-
tui-se o lugar do discurso e do comentário: ele não está mais~ª 'onadamente. Essa diferença manifesta -se num "espaçamento
centro da peça, e sim à margem, ao lado. Trata-se de mostrar,'" ·"':elo qual os elementos relacionam-se uns com os outros": mais
invés de in~luir: Este descentramento é fundamental, visto q',,,,, '.oncretamente, relacionam-se tanto nessa distância física que
a encenaçao nao pretende mais, doravante, investir contra?\f~K1ª : locam no espaço, quanto no tempo para continuar a aborda-
centro da peça, estar em posição de desaprumo, de explicaçâ~f~!{& ";gero e manter o conflito, sem nunca trair-lhe a motivação. Não
o d,SCurSO da encenação continua à margem do espetácuI6g,~ ;'$etrata, nesse caso, de diferenciar os personagens cujos dis-
-::X~~ ',iêursos parecem às vezes intercambiáveis, embora designados
,ipelos marcadores antitéticos Cliente/Dealer, de achar-lhes as
3. A INDECIDIBILIDADE DO SENTIDO Cdiferenças, mas sim de diferenciar seu verdadeiro encontro, ao
:~'ilfi_t ",mesmo tempo em que se dá o momento de nossa compreensão
Com a obra de Bernard-Marie Koltes, no começo dos anosd~'i7j .do dispositivo, que colocaria fim à nossa espera e ao suspense.
1980, esse princípio do descentramento da escritura, em seguif,?;;l Ação, espaço e tempo coincidem nessa procura desnorteada
da da atuação, encontrou um magnífico campo de aplicaçã({i:i~l; ida alteridade, em. conformidade com a diferença: "a diferença
Na Solidão dos Campos de Algodão, que se dá COmo um diálii~$Rif,! 'I1ão é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um
go mais filosófico do que dramático, é um pastiche de disput~J'~ movimento de espaçamento, um 'tornar-se espaço' do tempo,
filosóficas clássicas e do estilo herói-cómico da alta literattitâ,'WJ,; .um 'tornar-se espaço' do espaço, uma referência à alteridade,
dos séculos XVII e XVIIL A ironia pós-moderna consiste enü':rr;"a'uma heterogeneidade que, de antemão, não tem caracterís-
;tiea de oposíção"!".
por na boca de dois marginais as grandes leis da dialétic";éÍ~,§í

8 Écríts SUr le théàtre Tome II - La Scene, 1954-1975, p. 273.


9 Idem, p. 265. 10 J. Derrtda, E. Roudínesco, op. cit., p. 43.
210 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO PÓS-MODERNA 211

Essa diferença de qualquer solução, e de qualquer sentido;: CRISE DA REPRESENTAÇÃO E CORALIDADE


então, a encenação quem a confirma. Para a estratégica textij
a representação de Chéreau é como um suplemento que, Có "-i,'S' ; a desconstrução não chega sempre aos seus fins, é porque o
trariamente ao habitual, não acrescenta nem explica nada, , :''objeto a desconstruir, e especialmente a representação teatral,
oferece qualquer posição de desaprumo para clarear o texto.' > continua fortemente ligada à mímesis. Em particular, aquela
desconstrução de Koltês, e despois a de Chéreau, que lhe Se ',"rre emana de um texto pré-existente dado a entender e a ilus-
o passo, arruina a dialética hegeliana, seu Aufhebung (ou s )i'~ar pelo palco. Entre as tentativas de rejeitar a ilustração, o
sua resolução) de modo a tornar impossível qualquer sínt ' 1héâtre du Radeau, de François Tanguy, impõe-se como norma
das duas posições. Ao fazê-lo, texto e encenação introduz "rtada ilustrar; não dar a entender um texto ou um roteiro pré-
uma alteridade radical ao remeter qualquer proposta ao seu ')Jcistentes. Mais do que encenações, propõe-nos performances,
pio, ao impedír o acesso ao outro e qualquer vitória de um ." ~s quaís instalam o espectador num estado de sonho acordado,
bre o outro, qualquer dom ou troca humana. Chéreau aplica~i~~ ."",,\10 qual, contudo, não percebe senão migalhas, com atores cer-
"senhas derridianas" ao pé da letra, não trai o segredo, maniéAj,~ ,t' t"mente "de carne e osso", mas frequentemente reduzidos a
portanto, a dialética hegeliana em xeque. Finalmente, introdJi~f;;; ,.' sombras, silhuetas, figuras de existência incerta. Qualquer figu-
como princípio a alteridade radical no interior do mesmo.';}E!'I;, J',::iação é decepcionante, a desses atores escapa particularmente
É sabido que a desconstrução de textos literários colod~~~~ ~iiqualquer representação congelada.
em dúvida a possibilidade de uma coerência do texto, gj~~ ",',' Coda, um dos últimos espetáculos do Radeau, repousa
rantida pelo autor da mesma forma que pelo leitor; que e1:il'll'i,iJum efeito decepcionante de profundidade: percebe-se indis-
procura o pequeno detalhe, o grão de areia que emperr~i'ã,t~s'tintamenteno fundo do palco, cada vez mais claramente e na
máquina explicativa. Ora, nesta peça, assim como na encen'" ,jnedida exata, que figuras anónimas se aproximam do público,
ção, os grãos de areia são legião: o menor gesto discordan.,)çom roupão e chapéu de outra época, murmurando algumas
o menor efeito cênico, a imperceptível interrupção do fi' "::~alavras endereçadas não se sabe a quem, enquanto suas vo-
de ações ou de imagens é suscetível de contradizer, de "co '~es são muitas vezes convertidas em barulhos de fundo ou de
trainterpretar" a bela harmonia do texto, de arruinar qualq '·Jnúsica provenientes de uma peça no alto que permanece ina-
explicação de conjunto. A diferença está, portanto, igualme :·tessível. Pedacinhos de texto são perceptíveis, sem que se pos-
encarregada de retardar, até de invalidar qualquer convergêsa reconhecer qualquer história ou fábula. A figuração cénica,
cia de linhas de força, de redes de vetores de signos, de rei:" .feria aqui e ali, não se presta a nenhuma totalização: painéis
sar-se a qualquer visão de conjunto. Está inscrita em muito de madeira compensada retalhados em serraria, a menos que
espetáculos contemporâneos, tornando-se quase uma mar. já não estejamos nessa serraria, ritmam o espaço e os desloca-
pós-moderna. O atar, que nesse caso rejeita qualquer ide·:I11entos. A diferença de qualquer sentido é perseguida na rede
tíficação psicológica ou social, recusa-se no mesmo senti ))lmito fechada de diferentes sistemas de signos ou, antes, de
a tornar-se o suporte legível e estável de signos. Fugindo ::Significantes que passam de um material a outro sem jamais se
qualquer situação dramática concreta, prefere continuar nu '"deterem num sentido final, mas que produzem um espaçamen-
dispositivo abstrato. De onde decorre a receita de Chérea t,to muito marcado e visível não somente no arranjo de figuras,
apesar dos efeitos do real (figurinos, entonações de marginai )mas também temporalmente à medida que saltamos de um
look "destroy"), os dois atores deslocam-se segundo trajetq:motivo a outro. No entanto, esse percurso acha seu lugar gra-
rias quase geométricas, de acordo com abstrações de direito' 'ças a um circuito muito canalizado de efeitos, isto é, de efeitos
ou parábolas. Porém, destino da representação, não chega ':produzidos no espectador: para além do terror e da piedade
nunca ao destino... .própríos da tragédia, o espectador é constantemente assaltado
213
212 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO POS-MODERNA

por novos efeitos ligados à procura de indícios que se rev . d ·crnificante, seu caráter suplementar, mantém assim
la e 51 0 I d »14
rapidamente ilusórios e que nada mais fazem do que pa{ jj.nitude, isto é, uma falta que deve ser sup ementa a .
imagem e ao motivo musical seguintes) num movimento-- . . . '.' plementação da falta conduz a um suplemento pelo
"Essa su . ' , 1
tínuo de aprofundamento digno de uma "arqueologia dd' r : na tradição metafísica ocidental, o signo e sup ementar
valo" (Derrida). "'," '/d'da em que procura compensar a perda da origem, a
'me 1 vazio. A presença do signo e d a a b un dâancia. do
Encenação? Não, em todo caso, no sentido habitual da ni' i,'C'
sen , o Cla 1 '
sentação de um texto ou de um material pré-existentes. Me "<iJicante, do qual temos com o Radeau um be o rastro, e
seria falar de uma instalação visível à distância (e, assim, nãó B
slm a co
nsequência da perda do sentido. Disso decorre uma
sitável a qualquer momento e nem visível sob todos os ânguf .: cênica abundante e sem fim que tenta preencher essa
ntura . _,.
Essa instalação insere-se num espaçotempo comum no qual' 'ida. porém, de acordo com Derrida, a escntura nao e aqm-
netramos tanto pela percepção à distância quanto pela ímaoi .... . bstitui a palavra: como um suplemento degradado
~em , l'
ção. Livre, desse modo, ao observador a fim de distinguir ne "'do n o lugar da presença e da voz, ela esta sempre .a 1 como , .
espaçotempo formas e movimentos, pois "os ritmos e movhn" "bem suplementar, para não dizer supérfluo, ou seja, estétí-
tos respiratórios formam) constroem, desconstroem) relan 'No caso de Cada, a escritura cênica possui essa qualIdade
elementos concretos através dos quais as percepções comp ,i' ;'um significante em constante cresciment~: esse sign~ficante
linhas de sentido"!'. Na prática, o observador distingue ní .-, mete a um significado anterior e estavel, ele se inventa
~re .. .
diferentes de elementos amontoados, superpostos, sucessro.' "iis suas perpétuas mutações. Contudo, o que slgmfica ISSO
deslocados, dados num imbricamento ou dispersos. . {;. uma escritura cênica como aquela de Régy, que visa exa-
Cada é "a derivação da figura musical retomada do moti rente esvaziar o palco e o atar de qualquer expressividade,
no final de um trecho, estendido aqui pelo movimento teal'" }qualquer significação já entendida? Podemos reconstruir
acolher, reunir, renovar) deslígar'">, O espectador é constran 'tes de desconstruir?
do incessantemente a triar e a religar suas próprias percepçõ
sem saber se as partilha com os outros. Sua tarefa consíste.s
sencialmente em aceitar sensações visuais e auditivas no:-"-;' ELOGIO DO VAZIO E DA LENTIDÃO
colocadas em comum por uma comunidade frágil e efême]
No lugar do único olhar do encenador vetorízandov, encoi ara a encenação de Comme un psaume de David (Como um
tram-se esses materiais, um conjunto de imagens e sons dad'; 'álmo de Davi), Claude Régy começa por fazer o vazio. Inventa
como uma coralidade, àquelas de todos os elementos da rep 'para sua intérprete, Valérie Dréville, um imenso quadrado em
sentação considerados sem hierarquia pré-estabelecida. Esi . .torno do qual o público está sentado em duas fileiras, numa
coralidade não partilha uma palavra: religa acontecimento .·óbscuridade totaL Uma luz muito fraca, cujo foco é invisível,
cênicos e inaugura uma nova maneira de estar no mundo e " Içai"p or um teta falso, deixando pouco a pouco distinguira ar
recebê-lo em conjunto. Os materiais, textos, sonoridades, luz"{ "de atuação, especialmente os quatro lados. A atnz caminha
silhuetas, são desdobrados, estendidos diante de nós, rnantidr em passos muito lentos, porém regulares nas linhas exteriores
à distância, único índice que ainda distingue a visão teatral do quadrado, utilizando às vezes uma diagonal para colocar-
visita da instalação. Somos confrontados com um "excesso d' ;[se na centro sob o foco luminoso e musicaL Ela diz trechos
significação'; com um "significante voador'; e esta "superabun i;ae treze Salmos de Davi nos quais o mesmo confessa a Deus
'i{;ás suas "faltas".
11 F. Tanguy; Le Théâtre comme expérience, La Terrasse, p. I!.
12 Idem, ibidem.
13 Sobre a noção de vetor, ver P. Pavís, I:A.nalyse des spectacles. 14 J. Derrida, La Structure, le signe et le [eu, EÉcriture et la Différence, p. 424.
214 A ENCENAÇAO CONTEMPORÂNEA A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO PÓS-MODERNA 215

o que o espectador percebe, de início e antes de mais na religião"Hl,não sendo, portanto) "invertida': mas quan-
é a extrema lentidão dos deslocamentos e da enunciação v uito utilizada de maneira decorativa, como uma música
bal, "duas sintaxes viradas pelo avesso, a da gramática e a' ' "~feitamente executada, porém vazia de sentido. Fragmenta-
teatro"". Ao dilatar o tempo, ao desacelerar o tempo da pala' "ao extremo, emitida numa no rnans land isolada do mundo
tanto quanto o dos passos, Régy visa modificar a percepção ' 111 e de qualquer dimensão mimética relacionável com a si-
espectador, a fazê-lo perder o equilíbrio e muitas vezes tamo" "\ição atual (salvo no programa), esses salmos não atingiram
os riervos ... A perda, aliás, talvez vá para além de suas espe~á _}~ouvinte) enquanto a encenação deveria fazer-nos acessá-los
ças: Valérie Dréville controla os seus deslocamentos físicos, cu{ -"'tfetamente - sem discurso visual, político, filosófico ou reli-
da concentração necessária para figurar perfeitamente os traç' gioso - à Bíblia, concebida como poesia pura.
geométricos. No entanto, a voz humana não pode ser trata" ::-'rEm contrapartida, não poderiamos negar - se superarmos a
como uma fita magnética ou um video que passou para odes" i~ritação para entender as palavras sem apreender-lhes o senti-
celeramento e a deformação da articulação. A enunciação verb bglobal- uma certa "hipnose poética" Essa hipnose se pro-
não é regular, conhece constantesmudanças de velocidade';" :Çluz desde que o ouvinte renuncie a querer ir mais rápido do
atriz não pode articular as frases ao espaçar as palavras, tornam i~tiéa música do texto e a detectar uma intenção qualquer de
cuidado para que se dê uma vazão constante; porém a lentid', ?êl1êenação, Ao receber os salmos como poesia quase pura, e
constante não é possível de ser mantida, as acelerações para ir ' - úsica tendo parcialmente uma dimensão semântica, o es-
objetivo da frase e garantir sua compreensão semântica são' tador chegou, por outro viés, ao espírito da desconstrução,
vitáveis, A escuta torna-se muitas vezes dolorosa para o ou ' (fe visa, em oposição à metafísica ocidental, superar as oposí-
te, sem falar de sua frustração por não poder seguir a semânti 'es do inteligível e do sensível, dentro e fora, sujeito e objeto,
da frase e dos versículos. Claude Régy e Henri Meschonnícf , írito e matéria, razão e paixão, palavra e escritura, filosofia
tradutor, tentam inutilmente justificar essa descontinuidade-r oesia, No seu "dispositivo ilimitado'; Régy esforçou-se por
enunciação pelas necessárias paradas, os apelos, as ínterrupçõ '". gar "ao fato de que a luz e a sombra sejam tratadas, não
próprias do discurso profético; essa derrota da língua "pertur gIllO duas noções opostas, mas como matéria uníficada'v".
muito as pessoas [... ] que aceitam mal não compreender e n : -j'aças à luz, a arquitetura cênica (essencialmente o quadrado
captar o sentido. Perguntamo-nos sempre 'do que é que isso fala os céus que sugere) pôs-se a cantar, a saber, em termos mais
O que isso quer dizer?"16 "tosaicos, fez com que participasse da construção do universo
Contrariamente aos exemplos anteriores e a despeito d' 'Ósentido. A voz e a luz, o silêncio e a obscuridade, o pleno
expectativas, essa encenação não atingiu uma desconstruçã ~Q 'vazio, o abstrato e o concreto) tornaram-se essa «matéria
do texto ou da cena, Com efeito, o "espaçamento'; o "tornar-s s íficada'; o desenho geométrico materializando o plano di-
espaço do tempo" do qual fala Derrida a propósito da diferença' (ou poético?).
não produziu nenhuma "inversão estratégica'"? para interroga' O problema é, evidentemente, saber se a percepção subli-
e nem mesmo para descobrir o sentido dos Salmos. Esse text ar da luz, da poesia verbal e de todas essas uniões místicas
foi certamente concebido como "uma experiência espiritual: dou realmente a visão do espectador, se essa experiência
uma "espiritualidade sem pertencimento, ou seja, não afastadi :nsorial continuou verdadeiramente isolada de qualquer pre-
.ehsão religiosa, metafísica, e se alcançou a crítica derridiana
15 C. Régy, Programa do espetéculo no Théâtre de la Collíne, 2006.
'c logocentrismo, da palavra sussurrada, da presença e da re-
16 V. Drévtlle, Intervíew, Bulletín du. Centre Natíonal de Norrnandíe de Caen. ,;
17 Termo de Der-r-ida a propósito da desconstrução. Sobre a "diferença" (escrita <,esentação, especialmente aquela mimética da tradição teatral
com um a, em francês différance, em contraposição a di.fférence. N. da T.), ve~:,~,
La Différance, Bulletin de la Société française de phílosophie, set. 1968; e 1héori~:, -;!8 C. Régy, Programa do Théâtre de la Collíne, 2006.
densembíe. . 19 Idem.
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A DESCONSTRUçAo DA ENCENAÇÃO PÓS-MODERNA 217
216

ocidental. Dito de outro modo, é preciso saber se a desc' ire de orquestra'; pensamos poder escapar ao "fechamento
trução f u n c i o n a ! , '~ptesentação" que,
de acordo com Derrida ao reler Artaud,
Pode-se duvidar disso. Faltou, para essa ironia, a autorf' "o teatro e a metafísica ocidental subtraindo-os de qualquer
xão. Régy permaneceu na crença de que o sentido, o texto, a . ência exterior. Deve-se ainda entender o sentido dessa ex-
sia, haveriam de manifestar-se se o cerimonial da lentidão, da" 'iativaritual: é sempre a ocasião de executar ações repetitivas
da concentração tivesse sido respeitado. Ficou-se na essência' 'orrecidas, mas também de viver momentos poéticos, líricos,
essencialismo, corno se a lentidão, a obscuridade tivessem '~\Jblimes. A repetição, o ritornello e o refrão veem-se também
valor por si, corno se se abrissem sobre o desvelamento dos' "àdos ao ápice da arte teatral e musical.
tido. Fato que nos remete a urna metafísica da presença, a . :i:Seemannslieder (Cantos de Marinheiros), criada em 2005, é
pureza da presença em si da palavra, a uma nostalgia da pala \hblemática da postura pós-moderna, trivial e sublime ao mes-
plena, poética, universal, ingenuamente humanista.! "0 tempo, a de um ritual degradado, mas também magnificado
_Existem, achava Derrida, "duas interpretações da inte&' ~là repetição. Num bar de marinheiros, um grupo de homens
taçao, da estrutura, do signo e da atuação. Uma procura decift '!Í1ulheres de marujos reuniu-se para escutar e cantar canções
sonha em decifrar urna verdade ou urna origem que escapa, 'bpulares. Forma-se um coro involuntário de ausência, enjoas,
atuação e à ordem do signo, e vive corno um exilado a necessid,{ , '~gens, mas, sobretudo, de afeição e comunidade humana. Mes-
da interpretação. A outra, que não se dirige mais à origem, afie, ,,'o se algum personagem não se sobressaia no lote, entretanto,
a atuação e tenta ir para além do homem e do humanismo,X .daum interpreta) no momento requerido, o seu número com
Régy situou-se na primeira interpretação: desconfia do signo,lf' "Iriaiorseriedade e a mais sutil precisão. A evocação do mar por
o desconstrói; procura, no fundo, urna origem anterior à pala:: uelesque ficaram em terra, a nostalgia das mulheres, a estra-
e à história, fica na metafísica ocidental. Outros, corno ViteziÓ! arollquidão das vozes neerlandesas produzem um belo efei-
corno veremos adiante, Marthaler ou Castorf, trabalham de md' !Jcoral. Como em O Navio Fantasma wagneriano, os membros
contrário o jogo da repetição, da citação e da ironia. ,'o coro parecem condenados a repetir as mesmas ações, não
"'pstante sem esperança de redenção. Apenas incidentes muitas
ezes burlescos - quedas, reações repentinas, pequenas revoltas
6. RITUAL DEGRADADO DA REPETIÇÃO arotina quotidiana - vêm perturbar esses rituais, sem a menor
}~;",.' perspectiva de sucesso ou de melhoria de sua situação.
Em Marthaler, desde Murx den Europãer (Atirem no Europe'Í!j7~ i'·' Sem sabê-lo, esses bravos marinheiros são, portanto, vitimas
(1993), os espetáculos evitam a representação linear de uma f~i'im "dofechamento e da crise da representação. De um lado, com efeí-
bula, ilustrando um texto anterior; não são encenações con&fJf(. ,to, estão presos ao visgo dos seus hábitos quotidianos, seus lugares
bidas corno síntese e simultaneidade de signos, corno "polifoiii!il;~~ iFcomuns, sua ausência de perspectiva; por outro, tentam, apesar
informacional" (Barthes), ou representação hierarquizada e ced{i?~ ~;,~~ tudo, sair das velhas rotinas, libertando-se ao se entregar a
trada nas diretivas do encenador. São antes performances se$i~í '~,.~m grande esforço, vocal ou gestual. Seu desafio é igualmente o
começo nem fim (para não dizer sem pé nem cabeça), acóht!j'f;f!i ~,{~aenCenação confrontada com a performance. Os personagens
cimentos arrastando-se em duração, entrecortados de ruptllrai;~!i ,!{são rapidamente recolocados no seu lugar, não chegam a sair do
surpresas ou efeitos inopinados. A partir disso, com esses acon,",,},;);l0te e a propor um número individual, retornam ao anonimato.
tecimentos igualmente intermináveis e sincopados, sempre pe"D;,\. l'])e maneira similar, a encenação esforça-se por quebrar a rotina
feitamente dominados pelos intérpretes, tanto quanto pelo se~<i @,darepresentação mimética e congelada, tenta emancipar-se" do
. ~~_."

20 La structure.Je sígne et le jeu, op. cit., p. 427. ~ j - 21 Ver B. Dort, La Représentation emancipée.
:: #i.~j;
;.:;~
218 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO PÓS-MODERNA 219

controle do encenador ao deixar o campo livre para os a "(jade aos protagonistas, Com meios de ação direta so-
acolhendo suas rupturas, seus incidentes, tudo aquilo qu 'sso tempo (rapidez, tempo real, eficácia), o vídeo live faz
constrói ou que pelo menos quebra a representação clás Ir a representação frontal do teatro tradicional, delega o
encenação não chega, entretanto, a transformar-se num' ia de análise objetiva inserindo-a de alguma forma no
formance, pois recai numa representação congelada e co -teatral, o qual perde sua anterioridade, sua aura, sua pre-
da pelo encenador, que domina e finalmente fecha a encen --"'imediata em proveito da imagem do vídeo ao vivo, cer-
vítima, assim como o espectador, do "destino da representa te "sujo" e aproximativo, porém imediato e perscrutante,
"Pensar o fechamento da representação é pensar o trágic~. '() o corte "cirúrgico" de um míssil. A mídia transforma,
mais como representação do destino, mas como destino d' - - ífica. mas também parodia e distancia a performance dos
presentação. Sua necessidade gratuita e sem base. E isso pÓ O olhar provoca o olhado, mas este não está jamais à dis-
no seu fechamento é fatal que a representação contínue">." a, de um ponto de vista exterior ao objeto, que o descreve-
Em Marthaler, a representação também continua, mi' ()exporia definitivamente. Não sobressaem senão verdades
que a viagem por mar reserve sempre as mais belas surp~e:' dais, embora desagradáveis, sobre a realidade. Esse olhar
:ca é totalizador e profundo: não faz senão roçar a superfí-
€das aparências, arruinando tudo que se tornou definitivo,
7. SAÍDA DA REPRESENTAÇÃO :ábado e tocado "muito de leve'; talvez também com toda a
':~tensão de conhecer os fins últimos das coisas.
Se em Marthaler a representação não chega a fissurar-sej ':Essa falta de intimidade dos atores, sua impotência para
chegar a uma performance aberta à manipulação pelos at< vaguardar a forma teatral clássica, é também o tema dessa
em Frank Castorf ela tenta uma última manobra, mais r ória policialesca. O ator encontra-se na posição do inspe-
cal ainda, para "sair de si própria": as câmeras/vídeos live ':, na perseguição ao culpado, Raskolnikov, sem jamais querer
montam e desconstroem irremediavelmente a representa i~ndê-lo: posição sádica que atormenta o criminoso mais do
teatral clássica. . y~ uma prisão imediata e que também é uma posição meta-
Na sua adaptação de Crime e Castigo, o diretor da V -'fica de nossa relação com as mídias. A intrusão da câmera
bühne segue de perto a história do romance de Doestoie' jesfera privada do ator, longe de sua faculdade de imitar um
mesmo que a recoloque num contexto alemão conternporâ acter, revela (ou produz?) nele uma atuação ora bloqueada
Durante quase todo o espetáculo, a câmera/vídeo persegue _ ::p,atética, ora destacada e desencarnada. O campo da câmera
folga as ações cénicas, invisíveis desde a plateia, retrans ,ma-se um espaço limitado, mas protegido no quadro do qual
imagens sobre grandes telas exteriores ou sobre elementos 1~:Ator pode inventar sua própria partitura, atê improvísar, utílí-
nos do cenário. Ela desvela, desse modo, a face oculta das c . ~~{;i#~uas características psicológicas ou físicas, sua imagem, sem
da qual dá uma perspectiva invertida que o espectador de t _. 9íffiara tanto solicitar a identificação do espectador, sem nunca
deve recolocar no lugar e na perspectiva da escala adequa4i~ lí~:,entregar inteiramente à figuração dele exigida. O frenesi da
espectador percebe o que habitualmente não teve tempo de .. ~-,,-
~Íjit~rpretação, sua rapidez, sua desmedida digna da hybris gre-
servar: o ator no trabalho, seus tiques, suas imperfeições,s~Ri. ,g~ié menos a marca de uma identificação psicodramática nos
grau de implicação na fábula, também o seu virtuosismo. T " .Eapéis do que indício de um à vontade, de um hístrlonísmo,
formado em câmera indiscreta, seu olhar não deixa nenhun ~~ de uma cabotinagem destinada a colocá-la à vísta total do
;R?blico, o qual não é otárío da performance esportiva desse
,fi, ,mJ.p.o de interpretação. Essa desmedida, esse frenesi da revela-
22 J. Derrtda, Le théâtre de la cruauté et La clôture de la représentatíon, I:Écrjtll~~d~.
'b..

et la Différence, p. 368. -,<,-,';_, iSap lembra o trabalho de "perlaboração" isto é, o trabalho de


<:j,~~ ~~-'
".}c'd''; ::-
220 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO PÓS-MODERNA 22]

simbolização e encaminhamento de si mesmo, que o indivíd


em análise, ou mesmo o personagem à procura de si rnesl'
e por seu lado o espectador "implicado" nessa ação, deve
efetuar sobre eles próprios, "a fim de chegar de alguma fol
ao objetivo das trevas ínsustentáveis que o habitam'<s Des~~<\
modo, esse processo que se oferece ao espectador está, evide~t
temente, ligado ao da c a t a r s e · , · T h l ' f
--4f§~

8. DESCONSTRUIR A REPRESENTAÇÃO
:,.>.
'"".-
Quem diz desconstrução diz também, implicitamente, recohij',j
trução. A encenação não tem somente que desfazer e criticãr",',
um texto ou uma representação, deve também reconstituir{ ,
comentar aquilo que se dá como um texto desde logo COI\\'":,
sideravelmente desconstruído. Tal é o caso de uma escritur~':
dramática como a de Sarah Kane, especialmente toda sua últí;
ma peça, 4.48 Psychosis (Psicose 4h48)24. Tal parece ter sido,' ',~t
delicada e necessária tarefa de Park Jung-Hee para sua recente " ~' puramente autobiográfico, uma última carta na qual o drama-
e notável criação da peça na Coreia por ocasião do Festival dê '. turgo justificaria seu suicídio. É um texto de enorme sofistica-
Outono de 2006 no Teatro Arko de Seul. -: :' ção estilística, um poema muito trabalhado formalmente que
. ·j'não se pode imaginar saído da pena de uma pessoa que esteja
cc, aponto de suprimir-se.

8.1 Escolha Dramatúrgica c;_~ ~f~ A encenadora respeitou perfeitamente essa última vonta-
-~

".: de formal ao propor um poema visual de um grande domínio


A peça é um longo monólogo, subdividido em sequências se- r., naquilo que diz respeito à atuação, à cenografia e ao acornpa-
paradas umas das outras por pontílhismos, às vezes articulado,' • ~inhamento musical. Neste sentido, a encenação soube evitar o
numa sucessão de perguntas-respostas sem que o nome do lo' ,'/documento bruto, o aspecto psicodramático, documentário e
cutor seja indicado. O monólogo pode parecer autobiográfico pclínico desse episódio fatal. O absoluto controle dos signos,
na medida em que anuncía um suicídio que o próprio autor Vespecialmente os do comportamento da suicida, dá à represen-
não pôde evitar. Não é, portanto, um documento autêntiCO;,":;',;tação um lado sublime, essencial, quase místico e cerimonial.
;;'Essa escolha respeita perfeitamente a estratégia e o espírito da
23 A. Prançon, La Iceprésentaúon, p. 8S. Neste notável volume, Marie-Josê'~t~r .i ~'peça, sua tentativa de ir até o fim da análise, de "tocar o seu ego
dzain e Myriam Revault d'Allones propõem traduzir por "perlaboraçao:o-t !1~ssencial»25> de nomear sem moderação as razões do desespero.
termo de Aristóteles Perainein, palavra que "designa ao mesmo tempo o ~~ .", '-.""
de limitar aquilo que não tem limite e o ato de conduzir a seu termo um IJl?~
. . \'."ao
- _manter de maneira completa uma forma perfeitamente do-
vírnento que conduz à sua conclusão. É exatamente isso que está em quesla~ 1,g:.~inada. A procura das causas da psicose) a análise impiedosa
no movimento de simbolização que Freud quer conduzir no seu trabalho de ~ ~,I::".·(lQ ego, a fragmentação do texto) a incerteza sobre a identidade
análise. Perlaborar foi o termo que escolheram os tradutores de Freud para
dar o sentido de durchurbeíten" (p. 75).
24 4.48 Psychosis, em Complete Plays. 25 Idem, P: 229.
A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO PÓS-MODERNA 223
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
222
'Onagens. A figura do médico, encarregado de zelar pela saú-
'ental dos outros, quase se impôs nos "diálogos" marcados
~pas. A do "outro eu'; interpretado pela segunda atriz, não
vidente: ela "duplicou'; é o caso de dizer, é aquela do eu
ípal. que está precisamente à procura de si mesmo. A esco-
';'amatúrgica desses três actantes certamente tornou a peça
':'legível ao dramatizá-Ia, porém teve o grave inconvenien-
" confundir a procura do eu. Sugeria que se pode dialogar,
\Jar-se, re~onciliar-se com o outro em si mesmo, enquanto
"'adora não chega, justamente, a acertar suas contas consigo
" a e com todos aqueles que, com as melhores intenções do
'~o, querem curá-Ia. As cenas em que o doutor intervinha
vam-se rapidamente anedóticas ou banais, de acordo com
'laque se faz de um psiquiatra destacado ou de um psica-
ta de escuta instável. Felizmente, a atuação esforçou-se por
Sarah Kane, Psicose 4h48, encenação de Park Iung-Hee.
'l1aros efeitos do real, deixando aberta a possibilidade de que
©Park tung-Hee.
papéis suplementares não fossem senão projeções mentais
arradora, como, de resto, o texto sugere. O problema para
do ou dos interlocutores, tudo isso contribui para a descons terpretação cênica de um texto tão evanescente é que ele
ção extrema da peça. Entretanto, a coerência formal, aI;. 'i'é ser muito dominante e engolir as palavras, que suportam
implacável do raciocínio conferem a essa experiência.pê,,; a menor ilustração cênica. A peça parece confirmar a ideia
valor universal, permitindo aos leitores reconhecer-se, Ide:, -dramática de que um texto não precisa de encenação: "[ust
car-se e, finalmente, reconstruir-se. Essa reconstrução do o; rd on a page and there is the drama">. Para que haja não
através da autodestruição da narradora não é o menor par ' nente drama, mas também teatro, apresentação num palco
xo da peça. A encenação de Park [ung-Hee soube encont,' "iium público, é preciso passar-se para, e quase sobre, o corpo
meios cênicos e formais para permitir ao espectador essac~ i,·~tor. O de Kim Ho-Ieong, a atriz que encarnou o eu princi-
nhada em direção à reconstrução, até da reconciliação. . não estava absolutamente marcada pela doença, era jovem,
e descontraída. Estando seus cabelos arrumados com cal ~
'e elegância em rabo-de-cavalo, a narradora estava longe da
8.2 Reconstrução gem convencional da doente mental. O outro eu, o dublê da
, ente, por definição tinha dificuldade em encontrar sua iden-
A reconstrução do outro passa pelo trabalho estético desta.fi de. Ora imitava o eu principal em espelho - mesmas calças,
nação e por uma reconstrução do texto fragmentado e P~} "smo caminhar, mesma recusa do doutor; ora destacava-se:
de destinatário identificável. Tomando partido da orige"" ;~da na mão, atacava seu modelo, como que para tocá-lo e
palavras, Park Jung-Hee fez apelo a três atores encarreged' tificá-Io, por fim. A reconstrução do texto, na sua dimensão
encarnar três personagens) ou ao menos três vozes ou t~~: .cativa e drarnatúrgica, ajudou o espectador a localizar-se
diferentes. Ao eu principal da narradora respondem 0',_.' a luta contra a psicose. A encenadora escolheu a intervenção
médico e o eu do outro, aquele que, tal como a pequena v
nós, responde à narradora. A peça não indica absolut. Idem, p. 213: "Uma palavra, apenas, na página e o drama acontece':
a origem das palavras e, portanto, o nome e a identidag
224 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA 225
A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO PÓS-MODERNA

dramatúrgica radical: acréscimo de personagens e identi o". rafia abstrata ao redor do trio de atores. A palavra,
de forças psíquicas em ação. Felizmente, foi contrabaJ' teog . . .
",i musical se encontravam, antes de díssociar-se no-
pelos outros fatores clássicos da reconstrução, como a di '~ra sugerir a perseguição à conquista da identidade.
nação e o descentramento, a abstração e o vazio.
ç a do poema dramático que se desenrolava em nos-
nç,as, a representação devia manifestar, ilustrar, explicitar
Úe era sutil e imaterial. Assim, a passagem ao ato ape-
8.3 Disseminação e Descentramento oo'"do pudicamente pelo "please open the curtains" ("por
"'bram as cortinas"):", provável reminiscência do "Mehr
o cenógrafo Chung Hyung-Woo, a dramaturga Lim Yoo;' (Mais luz!), de Goethe, se traduzia no palco pelo avan-
minador Jo Sunghan e a encenadora Park Jung-Hee disse' "'-Ilher em direção à luz cegante dos projetores, que, por
ram em todo espaço cênico e no bloco temporal de uma h 'tante, cegava, também, os espectadores. Disso decorria
diferentes fragmentos de fala desse monólogo de três voz 'to um pouco melodramático, dificilmente evitável: uma
seguiram cuidadosamente o desenvolvimento do texto, 'carregada que geralmente mais apoia do que sublinha e
por alguns cortes de passagens poéticas quase musicais ;, a saída final.
cilmente traduzíveis, porém distinguiram claramente as i.
correspondentes aos momentos da confissão. Do fundo d,i
co vinha a sombra, o duplo do eu. Da fossa em forma de ca rYGrito do Silêncio, o Vazio do Coração
mortuário ou de divã psicanalítico surgia o médico sentado
de sua paciente. Um compasso imenso confirmava a impress, ;~posiÇão musical de Choi Jung-Woo, interpretada dire-
um mundo geométrico e quadrilhado, frio e implacável, de. ~'nte por seu grupo Renata Suicide, deu uma imagem do
ciando qualquer desvio e qualquer curva. Essa disseminar 'de do silêncio da morte. Atribuindo-se à "impessoalidade
palavra no espaço correspondeu bem ao descentramenro , •stração" de Maurice Blanchot, essa composição contem-
critura: não há nenhuma resposta às perguntas dessa 111 ea feita de percussões minimalistas ao estilo da música
abandonada a si mesma. Num ato de diferença, no senti o 'slajamais foi ilustrativa. Não sublinhava o texto por talou
Derrida, o enigma do eu, o "semblante colado no subterrâne
espírito"?", não era jamais atingível; sua compreensão foi
santemente empurrada para mais tarde. Graças a uma sequê
*" liremoção ou leitmotiv. Criava, antes, quadros vazios e silen-
V{js para o ouvinte. Tratava-se, para essa música discreta -
'i~elmente audível durante as cenas -, de dar a impressão
de confissões, mas também de desapossamentos, o momento ~azio, à maneira do monge budista que utiliza a percussão
suicídio foi recuado, deferido, mas igualmente preparado ei "'ocórdica e obsessiva de um sino de madeira. Essa pureza
níficado, A pulsação rítmica do espetáculo restituiu essas d som, essa simplicidade (aparente) da melodia fizeram sentir
possessões, ao construir cada sequência entre os negros e br orrna vazia, o puro significante, que o personagem acredita
intermédios musicais, segundo o esquema esperançaIdecep . lamente não mais dominar: "How can I return to[orm/Now
A iluminação muito precisa, quase cirúrgica, recortava a s0ÍÚ;, 'formal thought has gonei"?" O poema se reduzia, muitas
e a luz de acordo com as formas geométricas, isolando uma R' zes, a um puro jogo sobre o significante, que, não obstante,
do semblante, um quarto do palco, um eu do personagem inte #a sentido. Dessa forma, para "still ill'~o, às vezes era "ainda
Passando da "palavra na página" para a presença no palco, P,
Jung-Hee transpôs a arquitetura verbal e a tipografia poét :28 Idem, p. 245.
'29'Idem, p. 213 ("Como poderei retornar à forma I agora [que} meu pensamento
formal se fott'').
27 Idem, p. 245.
o Idem, p. 223.
226 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA A DESCONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO POS-MODERNA 227

e "a calma, a imobilidade doentia". A ausência de som


\,unento - a morte, portanto - produzia, através do jogo
llicante, uma fórmula que, por sua sonoridade, sua eli-
'deixava nada mais do que o "ill", a doença e antes de
arte. O mérito da música foi igual ao da encenação:
Ó"duplicou o outro, mas valorizou-o. Via-se essa música,
k-se esse vazio da morte. Restou a beleza cintilante da
, quela do drama e da encenação...

rf'ós-modernismo, aliás, Nada

:'a da interpretação, da cenografia ou da música, apagou


'er indicação cultural, coreana ou outra. A temática, po-
ln como a maneira de figurar a psicose e a morte vo-
a, a depressão e a falta de amor, eram eminentemente
'~ais: sua figuração artistica atual estava, no entanto, antes
's nada ligada ao pós-modernismo ocidental, que reivin-
a identidade internacional, asséptica às vezes, porém
de tentações identitárias. De Londres a Seul, de Paris
ngaí, ídenttficar-nos-emos com essa psicose que nos faz
""r numa psicologia excessiva e numa cor muito local. É
, no entanto, todo o domínio formal de Park Iung-Hee
'~as excelentes colaboradoras para transmitir ao público
"o a universalidade dessa miséria humana. A beleza for-
e Psicose e de sua encenação coreana, o sentido da au-
'fidade e da lucidez são as armas últimas contra o luto, o
,~pero e os eternos queixumes.

Sarah Kane, Psicose 4h48, encenação de Park Iung-Hee. . CONCLUSÕES:


@ParkJung-Hee.
"'PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS"
;'(ARTAUD) E COM A DESCONSTRUÇÃO?

icOs exemplos contemporàneos aqui evocados revelam um


:nstante vaivém entre desconstrução e reconstrução. É preci-
.no entanto, dispor desde logo de uma construção, em suma,
;.uma escritura no sentido de Derrida, uma escritura que não
a o rastro de uma palavra pré-existente.
228 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A DESCONSTRUÇAO DA ENCENAÇÃO PÓS-MODERNA 229

• Disso resulta um descentramento do encenador: eSk" '$"as solicitações e convenções: é sua tarefa ornar, corrigir,
está mais no centro de tudo, especialmente do sentido, J: [ar o espetáculo que ele dá a si próprio.
mais o dono de uma subjetividade absoluta que se tradu' s exemplos desse corpus reduzido provam, pelo menos,
em todas as decisões e escolhas da encenação. Vitez, uni' ,coisa: a desconstrução não é um estilo de encenação, no
primeiros, nos anos de 1970, marcou claramente a rnud pós-moderno de trabalho e de crítica da representação.
epistemológica da prática do teatro: o encenador não é ' Úmunha talvez a melhor maneira do retorno à represen-
o ponto de origem, e sim o ponto de chegada para os at 'O, depois da apresentação. A "apresentação" de si mesmo
"Não considero mais que uma obra teatral realizada no p undc a fórmula de Goffman) conviria à arte da perfor-
seja a ilustração, pelos atores, de um desenho concebido,' "ce, que visaria apresentar diretamente, sem o falseamento
encenador. Não, o desenho pode variar segundo os ateres , itaçãO mimética, o ator falando de sua vida "verdadeira",
partir de Vítez, essa ideia fez o seu caminho. A antiga poso "'#esempenhando nenhum personagem, apresentando seus
do "díretor" demiurgo é criticada doravante sem cessar c{ rios problemas. Os exemplos do corpus restabelecem a re-
absolutista e autoritária: trata-se; declara Alain Françon,!' entação teatral nos seus direitos ancestrais. Castorf narra
uma visão 'visionária', vidente, 'fantasrnátíca, intuitiva, qu~:­ toma os procedimentos do enigma policial do romance
confedera um 'nós' a não ser pela sua única autoridade e ", ostoiévski; Marthaler reencontra para além das canções
não concede nenhuma mudança para a escuta, para o pt jsórias uma autêntica experíência vivida: Chéreau finge
mento alargado?", Uma escuta amplificadora, um pensa , r a história sem fim de dois marginais; Tanguy evoca
alargado, eis o que almeja, se é que se pode dizer, a encen gens conhecidas da Europa Central, de seus mitos literá-
descentrada, "descerrada', "descenocratízada" (desernbara 'e de suas tradições plásticas; Vitez restitui a seus atores
do diretor autocrata), em resumo: como nos anos de 1960 ntido do francês e da dicção do século XVII e faz teatro
o controle da visão de um sujeito absoluto. O controle fo '],b do teatro, contando com o conhecimento das formas
muito tempo, transferido para o ator, até para o espectador, '" chegar à história; Régy faz dos Salmos um texto poético
é posto a dar uma contribuição real. O pós-moderno coin'" "ersal,
com o relativismo dos anos de 1950 e 60, que foram també esses exemplos, certamente a desconstrução está em pau-
do apogeu da arte da performance. A desconstrução, aquilo çmuitas maneiras, porém desemboca sempre na reconstru-
o mundo anglo-americano intitula de pós-estruturalismo, 0; naquilo que Derrida chama o "destino da representação":
rida à frente e em seguida, nos anos de 1970 e 80, reconqui ,gonstrução de uma ficção, de um limite, de um signo, de
o terreno deixado como lavoura em descanso pelo aband 'fechamento. Para o teatro, isso implica que a desconstru- '
do estruturalismo puro e duro de um Lévi-Strauss ou d~" 'não eliminou o encenador, porém deu-lhe simplesmen-
Benveniste; foi a resposta universitária, pelo mesmo golpe ,ovas tarefas para fundar uma "representação emancipada"
impressionismo pós-moderno. O recentramento no espe ; ,rt). Tarefas múltiplas, para não dizer infinitas, como estes
dor, depois da necessária etapa estruturalista e semióti sexemplos provam muito bem. Vitez utiliza o desempenho
teatrologia, arremata essa evolução em direção a uma descei :,atOr, o exercício ou o esboço como margem para desmontar
trução, na filosofia e nas artes. ,', ';etórica e o desejo inscrito na violência da língua. Chéreau,
• Esse espectador, sobre o qual recentra-se tanto a teoriaj guíndo Koltes, inventa um mecanismo homeostático para
nomenológica) quanto a prática (performativa), é a aposta 2 decidir nunca sobre o sentido e a saída do conflito. Tanguy
~ga-se mais à desconstrução do que à construção, citando e
smontando todas as referências culturais nas quais os espec-
31 A. Vitez, Écríts sur te theãtre, Tome III - La Scêne, 1975-1983, v. 3, p. 273i'
32 Ver em M.-f.1vlondzain (ed.), I:Assemhlée théâtrale, p. 76.
ares mergulham, porém tem dificuldade em reconstruí-las
230 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

num discurso que tenha sua própria lógica. Régy dispe


de desconstruir a escritura, continuando numa probl e
ca essenciali~ta do texto que supõe ~alar de si mesmo, g .
a um dISpOSItIVO muito especial (silêncio, obscuridade, f
dão). Marthaler desconstrói a permuta teatral por méio de.
coralidade que acaba por restaurar uma conexão entre
divíduos isolados e melancólicos. Castorf desconstrói are
sentação clássica à distância para melhor restabelecer o ser;
da culpa (significação e direção) e restituir a fábula do rom'
graças ao desempenho frenético e à vigilância pelas câm~ '6;sonh o do ator: abster-se do encenador.
Neste sentido, à exceção de Régy, movido por intenções"
'~dsonho do encenador: transformar os atares em marionetes.
tintas, sua desconstrução é derridiana na medida em que;,'
se situa no depois, no "pós" moderno ou no pós-dramat iim ente , tais sonhos nunca se realizam. É dificil, e pouco
na morte da filosofia ou no fim da história. O fechamento" Hm-endável, apresentar-se ao público sem antes ter sido
seu espetáculo, tanto quanto o da metafísica segundo D .6.do por uma pessoa exterior a serviço. E o ser humano não é
da, não é absolutamente o fim e a destruição do teatro (ou' ·'tiintoche: ele respira e pensa.
metafísica), é o começo de outra maneira de fazer teatro" {'h'ãO impede na maioria das vezes o atar de querer trabalhar,
filosofia). in'ho em seu estúdio, o seu monólogo ou seu mimodrama,
No fundo, e finalmente, nosso melhor teatro, contr~' "Uerer controlar tudo na cadeia de produção, desde a ideia
mente a um sentimento frequentemente expresso, não des h~l até a entrega final da obra em diversos lugares.
nada: ele desconstrói e muitas vezes reconstrói. Poderían
'atro do gesto (o "teatro físico"), baseado na habilidade do
aplicar-lhe literalmente aquilo que Jacques Derrida, num,
seus últimos textos, escreveu sobre a desconstrução: "A .
'°'6; tornou-se um gênero em si, que entra em concorrência e
'-,:z~s eclipsa a "máquina encenação':
construção não procura desacreditar a crítica: lhe relegiti
sem cessar a legitimidade e a herança, porém não renunciá érh. - e aqui está o paradoxo do teatro gestual -, essa
mais à genealogia da ideia crítica, não mais do que à históri 'bfildade do corpo vista como atributo específico do atar nos
questão e do suposto privilégio do pensamento interrogativo i~riªúz às exigências da encenação. E até a performance, ao
A encenação que desconstrói seu objeto interrogando seu hi ~~I\êcer um uso não ficcional do corpo, volta frequentemente
danamento) da mesma forma que sua proveniência) não '15\"o é ocaso de Marina Abramovic) à teatralização e ao
cia à virtude crítica da representação teatral, à sua racumane ;q~~role da encenação, a um corpo estritamente vigiado.
interrogar e contestar o real.

33 Voyous, p. 207.
Teatro do Gesto
oramaturgia do Atar

:.fnundo teatral anglófono, fala-se de physical theatre (teatro


;iJ)para designar um tipo de espetáculo fundado mais no
,pdo ator do que em seu texto e seu espírito", Teatro do
lo; o título do livro organizado por Jacques Lecoq-, seria
'à;tradução possível, embora aproximativa, dessa fórmula,
é'in refere-se, sobretudo, como nesta obra, ao mimo e seus
ivados. "Teatro do corpo" estaria mais próximo dessa práti-
,JIlaS a expressão soa mal aos ouvidos franceses. Seja qual for
'~signação, o teatro físico é um gênero que encontramos sob
"tas formas experimentais ocidentais, O mimo e aluno de
~troux, Thomas Leabhardt, define-o como "um teatro hfbri-
"não tradicional, que insiste na virtuosidade física, mas que
'(l'é exclusivamente da dança e, se bem que utilizando muitas
zes as palavras) não começa com um texto escrito'",

Sobre o physical theatre (teatro físico), ver D. Callery, Through the Body.
Le Théâtre du geste. Mimes et ectezo-s. No capítulo "Olhar de um Ator sobre o Tea-
tro que se Move': Alam Gautré inclui, especialmente no teatro do gesto, artistas
como os do Pootsbam Theatre, do Théâtre de Complicité, do Théâtre du Mou-
vernent, do teatro de Kantor, de Iérôme Deschamps e os do Mummenschantz.
Physical Theatre, em D Kennedy (dír.), The Oxford Encyclopedia ofTheatre
and PerJormance, p. 1031.
234 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATOR 235

Esta prática do teatro do gesto encontra naturalment;' o, os espectadores devem ler esses corpos para compreen-
lugar em uma obra consagrada à encenação contemporâne~ 'que revelam de seu inconsciente e do nosso.
to que o teatro gestual constitui parte importante da prodh beMayB. (Maio B) (1981) à última criação do Théâtredu
atual, dirigindo basicamente um desafio à ordem imposta' il,Les Éphérneres (Os Efêmeros) (2007), o teatro do corpo
encenador. Com efeito, o "teatro do gesto" abstém-se mUita~' a com muitas identidades. Afasta-se cada vez mais dessa
zes do encenador, delegando ao atar o poder de construir a alta dos corpos" de que falava Bernard Dort nos anos de
titura do conjunto, de constituir aquilo que Barba chamo 60. A ideia de que o corpo seria a resposta à alienação do
dramaturgia do atar. O teatro do gesto está nas mãos de ato ',"írito venceu. A oposição do corpo e do texto perdeu sua
que inventam de um só golpe uma nova maneira de trab WiOência. Essa revolta não foi, aliás, do gosto de todos, pare
Desde os anos de 1960, o teatro do gesto já tinha uma lo '{uarmen te de mimos como Decroux ou Lecoq, mais ligados
história: nessa época, a noção remetia quase sempre a Ant :';i:rigor do gesto. Este último zombava dessa "revolta de es-
Artaud e à sua crítica do teatro burguês e psicológico. E, não" ~6Íioses" e desconfiava do purismo grotovskian0 4 • A polêmica
tante, Julian Beck, Peter Brook, Charles Marowítz ou Jerzyd' 2\)re a expressão corporal dos anos de 1960 e 70 não está, em
tóvski não tinham lido o autor do Teatro e seu Duplo no com '&<10 caso, completamente apaziguada. Será preciso aguardar
de suas carreiras, porém, tal como ele, postulavam intensamê ;"fim do século xx para que o teatro do corpo ganhe novas lu-
que se lessem os textos de teatro de forma radicalmente dívei "se um lugar doravante incontestado no seio da encenação
Grotóvski pedia aos atores para estarem conscientes das aç' ntemporânea.
por trás das palavras, para nelas sentir a trajetória da lingual "c. Antes de abordar os novos dados do teatro do corpo a par-
Brook sempre pensou que uma palavra não começa pela pal{ dos anos de 1990, autorizar-nos-emos uma rápida incursão
mas sim que é um produto final que começa por uma impu)·' â-território da dança-teatro de Maguy Marin, já que percebe-
Ao montar Dionysus in 69, Schechner interessou-se em priori bs em suas obras, como May B., os germes do teatro gestual dos
a respiração e as crises dos intérpretes. Ao comentar Le Re' tímos anos do século xx. O percurso terá como fio condutor a
du Sourd (O Olhar do Surdo), de Robert Wilson, Louis Ara . estão do corpo, sua concepção implícita, o sentido do tocar
numa carta aberta a André Breton, falou desses "nem dançar" o barómetro da proximidade entre as pessoas.
nem atores: experimentadores de uma ciência ainda sem no
A do corpo e sua iiberdade': Segundo Barba, a palavra nãos;,
entendida verdadeiramente caso não provenha de um "co" MAIO B., DE MAGUY MARIN:
decidido". Todos esses artistas estão, portanto, persuadidos ESSE OUTRO QUE ME TOCA
base física do teatro. '.'
Não teríamos condições de escrever, aqui, a história essa coreografia, uma das mais interpretadas no mundo,
teatro do gesto, visto que nos concentramos nos anos de 19', :'M"gUY Marin celebra um dos raros encontros felizes entre a
Desde os anos de 1960, esse gênero evoluiu muito, não fie,ti
J. Lecoq: "O retorno à expressão física do comediante, trazida pelo grande psi-
restrito ao teatro antropológico de Grotóvski ou de Brook: m codrama de 1968, fez surgir gestos do interior que estavam ocultos até então.
tas outras formas apareceram, das quais daremos apenas al corpo liberou na superfície visível uma géstica 'imprecisa' mais do que ex-
pressiva. e essa foi a revolta das escolíoses, o 'por que não eu?' Os Irnostráveís
exemplos isolados, porém típicos. Examinaremos a concep mostraram-se nus no palco pela primeira vez. Grotóvski ritualizou o corpo em
do corpo que cada tentativa subentende: de que maneira, n cerimônias semíprívadas, num semivoyerismo elitista. Colocou o corpo no len-
experiências mais recentes, esse corpo é moldado? Qual a reI, çol branco, mortalha da pureza. A partir de uma espécie de ascese física. o atar
procurou ultrapassar os limites de seu poder, à força da vontade. arriscando-se
ção que ele mantém com o outro, especialmente quando enn mesmo a fazer-se mal" (Le théãtre du geste et de l'ímage, Le Théâtre du geste;
em contato físico com ele? Se o inconsciente fala através 4 mimes et acteurs, p. 138).
236 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATaR 237

dança e o teatros. Um grupo de zumbis com o semblari o que social e coletiva. Ainda que vestidos ridiculamen-
corpo emplastrados, congelado em atitude hierática ' •'um focinho, com urna silhueta e uma caminhada de
move senão ao sinal de apito ou da fanfarra popular d J~sses personagens desfigurados continuam sendo nossos
lhaços de Binche. "Fim, acabou, isto vai acabar, isto ta!V' porâneos, nOSSOS semelhantes, nossos irmãos: figuram
acabar": as únicas palavras que saem de sua boca defor' \ desordens e errâncias, fazem parte integrante de nossa
são emprestadas de Fim de Jogo, de Samuel Beckett. EsS' '~de social, de nossa experiência quotidiana. Mas quem
é menos o fim do espetáculo do que o da humanidade les, exatamente? Excluídos, novos pobres, abandonados
gar pelo lamentável estado de decrepitude em que ve~' :t6nta da mundialização? Por muito tempo voltado para
Seu corpo é tratado corno um material esbranquiçado, li ':~Ilrdo existencial, especialmente beckettiano, ou para a
corno gesso, à maneira dessas criaturas moldadas pelo â i~ção pós-moderna, o palco reconquista urna dimensão
plástico Georges Segal, que apreende os gestos quotidi :~tica, para além da coreografia do puro movimento. Ma-
de seus concidadãos comuns. Cada urna dessas dez sííhu J'4arin permanece na tradição de Béjart, que foi seu pro-
sem qualidades fundem-se ao grupo, bloco homogê~é 61': tudo aquilo que se movimenta é colocado à disposição
desolação, carcassa coletiva que vive seus últimos sobrl uma situação a ser desenvolvida, de urna história a contar.
tos. O grupo desloca-se em bloco. Os indivíduos exec '~orpo coletivo desse coro exprime a desumanização, o gre-
os mesmos pobres gestos mecânicos e repetitivos. Os co f;smo e a mecanização dos comportamentos e das ideias.
são sujos, repelentes, vulgares, privados de individualidâ ,cm frequentes paradas, silêncios ou intervenções musicais, a
humanidade. Porém, sabem também ajudar-se mutua >,' , grafia passa constantemente dos indivíduos para os gru-
te, olhar-se, seduzir-se, mesmo que não cheguem à iso A intervalos regulares, um movimento de conjunto, urna
da massa pastosa do clã ou de sua gangue corporal. A ça que se apoia num ar de fanfarra ou numa música sinfô-
do movimento alia-se à plástica viva - se assim podemo' a fazem-no deslocar-se do grupo, tirando-o de sua apatia,
zer! - para figurar ou desfigurar o ser humano na sua sol' :çl!J1do-o numa figura muito bem regulada que transporta o
petrificada e na sua embriaguez, O grupo de zumbis tam] .ectador para fora da ficção teatral em direção ao domínio
dança mais sob a música da fanfarra do que sob a música .rtuosidade coreográfica. A partitura gestual e coreográ-
sica: marca o compasso de modo simples, mas justo. Mdi " propõe atitudes, posturas, deslocamentos e movimentos
repousa no contraste irónico entre o refinamento da mús 'extrema precisão. Disso resulta, urna vez esse dispositivo
de Schubert e a vulgaridade de gestos que marcam o c6" reográfico assimilado, um conjunto de personagens final-
passo. Esses estropiados da vida não são mais capazes d' ente teatrais, surgidos do nosso universo social - um exér-
movimentar senão coletívamente, em resposta a stimuli ; lo de velhinhos deslocados, mas apesar de tudo ainda vivos
noros: batida de tambor, barulhos de passos deslizados 'çontentes de assim estarem.
fragmentados. Fiel, nisto, a Beckett, cujas peças recusam • ' Se os corpos são O barómetro e a metáfora do estado do
obstinadamente a "significar alguma coisa", Maguy Marín "undo, May B. é o inverso tragicómico da libertação dos cor-
a entender intelectualmente, mas também "cinesteslcamen 'os, dos quais tanto se fala nos anos de 1960. O contato entre
o seu vazio e sua desumanização. A alienação do grupo é 'corpos se tornara problemático, paródico e repulsivo.
nos metafísica e individual (corno no caso de Beckett 011J:l' Para ficar na problemática da expressão corporal tal como
desenvolveu a partir dos anos de 1960, abordaremos o es-
5 Regularmente retomado ao longo de mais de vinte e cinco anos, May B: ietáculo de urna atriz do Odin Teatret, Itsi Bitsi, espetáculo
disponível em vídeo. Gravado em 22 de dezembro de 1983 na Casa das A
de Créteil pelo Office culturel pour la communication audíovlsuelle p Troll: do folclore escandinavo, criatura sobrenatural, anão ou gigante, que se
Ballet Théâtre de l'Arche de Maguy Marin. supõe viver em cavernas ou nas montanhas (N. da T.).
238 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATüR 139

auto biográfico concebido e interpretado pela atriz din"


quesa Iben Nagel Rasmussen.

2. ITSI BITSI: A DRAMATURGIA DA ATRIZ

Este espetáculos, interpretado com os músicos [an F I . "',


. ers ev(
tarra) e Km Bredoldt (acordeão), situa-se exatamente nos"
de 1960. I~en Nagel Rasmussen evoca episódio de Sua vi'
lado de Eik Skale, poeta e cantor, o Bob Dylan dinam "
que: se suicid~u na índia em 1968. Ela recorda mom:d'
visoes .dessa epoca por .meio dos personagens de seus p
no Odín Teatret, a partIr. de 1966: A narrativa autobiogr
-io;4;~l Rasmussen, Itsi Bttsí, encenação de Eugenio Barba.
nutre-se constamente, assun, de partituras gestuais e vocais F0stergaard.
ela elaborou para seus espetáculos anteriores. •.'"
Duas cenas esclarecem particularmente bem o seu m"
de trabalhar: Le Voyage et la Vieille Femme (A Viagem e a Vi
Mulher) e Kattrin la Muette (Kattrin, a Muda). Convém':i
cialmente, familiarizarmo-nos com o método de trainin ' " ié.ideia do espetáculo'", Ela conserva assim, pelo menos num
ensaio. A pesquisa é feita a partir do gesto, da voz, de pa~ 'itijeiro momento, o domínio de suas propostas.
e sons, com o intuito de "achar o personagem»: "É como:'
pe.rsonagem fosse um espaço que descubro pouco a pouco :.',,;Consideremos, no momento, a cena de viagem com a velha
mim no decorrer da composição e no qual há de tudo: aç1' \1Jher. Iben Nagel Rasmussen é mantida no laço por uma fita
sentimentos, palavras, sons ... Reconheço esse espaço no "Í)lelha como um cavalo, espécie de rastro de sangue que não
corpo'", Antes de mais nada, linguagem e gesto não são se aba nunca de se esticar. O dealer, dublê de cafetão e vadio,
ráveis. A tarefa da atriz é elaborar seu personagem em tem) ""têm as rédeas e o controle de seus movimentos, olha-a em
ditos "pré-expressivos'; antes de conferir-lhe um sentido" IMo de drogado. Ele não afrouxa as rédeas a não ser para
monta~em ulterior: "O personagem estava pronto antes fé' Ihor aprisioná-Ia inextricavelmente por meio de sábias ma-
começassemos o trabalho da montagem. Todos esses mod pulações. Vestida com um traje de noite negro, falando COm
de andar, sentar, de utilizar seus braços, de utilizar sons eran OZ doce e sorriso de felicidade máxima em contraste com o
ações físicas muito precisas, sem significados específicos e qu iorror das palavras que descrevem sua descida aos infernos,
podiam, portanto) ser utilizados em diversos contextos'". N )3en Nagel conta suas lembranças de viagem e de dependência
s~mente a atriz encontra seus próprios materiais, como ta/; '.adroga. Essa voz suave, estilizada, teatralizada, artificial, in-
bem tem a possibilidade de elaborá-los, "de tal modo que siste na materialidade e na sonoridade das palavras. Crer-se-ia
encenador não tenha que dar suas diretrizes de acordo . 'que pertence a uma velha e codificada tradição de interpreta-
\"ção, enquanto não é senão pura invenção da atriz. Se o corpo
6 Vídeo a parti~ do filme para a televisão dinamarquesa. do dealer é facilmente identificável, legível semiologicamente
7 La d~ama~urgle du personnage, Degrés, n. 97-98-99; P. Pavís (dír.), La
turgie de lactrice, p. 19.
8 r. N. Rasmussen, Intervíew; em E. E. Christoffersen, The Actors Way, p. 9 Idem, La dramaturgie du personnage, op. cit., p. 22.
o TEATRO DO GESTO E A DRAMATVRGIA DO ATOR 241

'de sua atitude e do seugestus social, a voz de Iben Nagel


"ssen significa menos do que produz em termos de viva
;ão. É o resultado de uma impulsão, de um movimento,
ritmO e de um fraseado (phrasé) que pertencem apenas a
essa voz e desse corpo, avançando inexoravelmente para
} para a morte, o espectador rece be uma impulsão física
" ésica. O corpo mudo dessa mulher, dessocializado, des-
·'ido, cortado da história, transmite, entretanto poderosas
'6es às quais o espectador reage antes mesmo de decifrar
"65. "A reação cinestésica é produzida antes da reação se-
ti; observa Simon Shepherd e Mick Wallís", fazendo eco
exões de Bernard Beckerman sobre a experiência teatral:
os corpos reagem de antemão à estrutura da ação, antes
is darmos conta de que assim procedem"".
:mKattrin, a Muda (sequência XI), Iben Nagel Rasmussen
hstítut um episódio do espetáculo de Eugenio Barba inti-
o Cendres de Brecht (Cinzas de Brecht). Ela cria a figura
, lha de Mãe Coragem, que salva a cidade de Halle graças ao
\flcio de sua vida. Kattrin é muda, porém não é surda aos
"5 do mundo. Seus gritos inarticulados e o som do toque
no dão o alerta. Permanecendo em cantata com o mundo,
oube preservar em si a criança e não tem consciência da
êricia que a cerca, "ela é como essa geração de crianças do
erpower (paz e amor) dos anos de 1960 que depuseram as
às e então foram assassinadas, desaparecendo antes de poder
raquilo que representavam't". Seu corpo é aquele, incomple-
de uma aparência simplória, de uma jovem com elefantíase,
funa deficiente vítima da violência da guerra, "levada pelos
dados, violentada, colocada contra o muro para ser morta"!",
tentação da bondade custa-lhe a vida. Seu corpo, assim como
'aidade, ficará congelado na lembrança, o que ela exprime
pm poema testamentário emprestado de Brecht:

Quando você me deixa alegre,


Então penso muitas vezes penso: agora eu posso morrer.

10 Drama/Theatre/Performance, p. 205-210.
~b~n
© Nadft,~ITRasrnussen, Itsi Bitsi, encenação de Eugenio Barba 11 Dynamics o/Drama, p- 151.
1.ony vrso. . 12 Notas de Iben Nagel Rasmussen, programa de Itsi Bitsi. 1992.
13 Idem.
EST O E A DRAMATURGIA DO ATOR 243
242 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA OTEATRO DO G
"" .
ii::',:,:" . " im como o é também a consciência de que
Então eu fico feliz até o meu fim "'xpbCita, assr , " I
Quando você fica velho e pensar em mim /é _ ~. r'lficada devido ao seu Idealismo com re a-
'. çaD 101 sac
ta .' . I
que lhe trairam os ideais, ínevttave mente
Eu me pareço como hoje 'liel es mesmos . '
E você tem uma bem -amada que ainda é jovem. 14 .,. _ t'lnuaram tal como Eik ou Kattnn, eterna-
"pOIS nao con , '
'.:', -:
·'joven s.
o corpo congelado na eternidade e a lembrança ~~'" d Kattrin - e por seu intermédio, Iben - procura
··ontu
o, . .. d e, sua materníd
o,. h . procura sua femmilJda erru a d e,
mente idealizada, essencializada, É um corpo abstrato, 'ô",/cam m o. . d
renciado, subtraído ao tempo que passa, corpo "oferecid' '; " do masculino perigoso dos violadores e os
rado o mun . "1
sacrifício", porém assexuado, de gênero (gender) incerto, n~ ,ino P rocur a desfazer-se de um treinamento
s.. . _muito vm ,
no seu desejo de amor e maternidade, um corpo humíj .• ' 'fi'o muito exigente e de uma mtegraçao forçada,
m sacn lCl f , . -

heroísmo e que não tem outra escolha a não ser fazer-s: :à'omun do
" ' dos homens
) seja - o que tambem e quase , . tao
timo anteparo contra a violência e a destruição. Esse cori " mundo dos anjos assexuadas, sem voz própria, ou '
e - aO I b .• .
feminino, porém ele parece virilizado incessantementep. .••• ma voz imposta pelos homens, pe asa revlvenCla
ocom u -
tratamentos que sofreu: a voz rouca, grave, é forçada, Ç' "éla ameaça, com uma voz unicamente corporal e que nao
a de um homem - esse homem privado de feminilidade' ge o simbolismo da linguagem.
"ensinou-lhe" quem foi Mãe Coragem a fim de que não se"
os homens, que representam um perigo permanente de vi
ção, castração e assassínio. "LE CHANT PERDU DES PETITS RIENS
Em Grotóvski, o do período das encenações (até 1968/ '(O CANTO PERDIDO DAS NINHARIAS),
cisamente), O corpo dos atares possuía O mesmo gênero DE CLAIRE HEGGEN E YVES MARC:
der) neutralizado. O corpo incandescente de Cieslak emj A DELICADA ARTE DO CaNTATa
Prince Constant (O Príncipe Constante) revelava o sofrim'x,
e o sacrifício crístico, porém habitava um corpo sexualrne l) . d tradição Decroux, levado ao mundo inteiro por nu-
. mimo a id ' I
indiferenciado, essencializado. Apesar de sua exposição t' 'ii~rosos e brilhantes alunos, constitui um pedaço consi erave
de sua autopenetração sacrificial, segundo os termos de 'iH~atro do gesto. Com efeito, com o pai do mimo corporal o
tóvski, faltava a esse corpo órfão e místico a alteridade se': " prpo sempre tem a abstração geométrica de ~m gesto ~erfeJto,
na forma do desejo do outro. Kattrin/Iben herdou diretam ~'üeum belo gesto. É, como o observa sua discípula Claire Heg-
desse corpo indiferenciado de origem grotovskiana um coo :' n: um "corpo sem disfarce/sem artifício/face e sexo velados/
empurrado para o objetivo por um treino esgotante, mais v: ge , c. h "15 P , H ggen
igrpo/sem sexo/na extensão do desfec o . orem, . e . '
do que feminino. No entanto, através de seu comentário so ":a 'sua criação atual especialmente com Yves Marc, vai muito
a época desde a perspectiva de 1991, ela toma suas distând • em dessa concepção muito desnudada do corpo. .
frente à herança incômoda dos anos de 1960, estabelecend ..•. Numa sequência de O Canto Perdido das Ninharias, C!aue
ligação com os anos de 1980 e 90, constatando a Iíquidaçã :&"eggen e Claude Bokhbza são dois mimos que falam: recítam
das utopias, do pensamento de 1968 e das ilusões indivídu ii6aJ.fabeto. A cada letra corresponde um autocantata do mimo.
listas (droga, amor livre, anarquismo). Sua crítica à utopiar fiO dedo na boca, por exemplo, quer dizer, entre outras coisas:
. silêncio. Na vida quotidiana, os autocantatas situam-se ali onde
14 B. Brecht, Lied einer Leíbenden, Gesmmmelte Werk, n. !O, p. 994. (No or('"
naI alemão: "wenn Du mtch Iustíg mascht / Dann denk ich manchmal zJ , - 1S Médttatlon Poême à partir de photos d'Etíenne Weill, em P. Pezin (dír.),
kõnnte ich sterban I Dann blíeb ich glücklích / Bis an mein End I 'wenn D:
Bttenne Decronx mime corporel, p. 36. Ver igualmente o artigo de C. Heggen,
dann alt blst / Und du an mich denkst / Seh ích wie heute aus / Und hast < Sujet-objet: entr~tiens et pourpar1ers, Altematives théâtrales, n. 80.
Líebchen I Das ist noch jung" ..
245
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATOR
244

repetimos uma parte de nós mesmos. A imitação dos noss


ques gestuais é perfeita: reconhecemos imediatamente ess
tos frequentes e codificados, essas atitudes. A partir de Le B"
de seus estudos gestuais, indo desde as emoções até as po
Decroux, os artistas plásticos ou gestuais sempre tiveram C
objetivo caracterizar, codificar, congelar a expressão corpoi
A oposição entre a pele e os ossos não é a do corpo;'
alma, da matéria e do espírito, do visível e do invisível, d"
perfície e da profundidade. É, antes de mais nada, daquil6'!
me toca ou daquilo que me fala, da sensação ou do cone'
da pele doce ou dos ossos rígidos. Essa oposição torna-se
nária a partir do momento em que se lhe inclua a carne,'
constitui a ligação entre os ossos e a pele. Segundo Zeall/
modelo da percepção é ternário, e não binário e hegelia .<__ -.-' -- O Canto Perdido das Ninharias, de Claire Heggen e Yves Marc.
ãfieBeggen, . .
pele está ligada à vida, a carne à audição; os ossos ao espí ': 1héâtre du Mouvement- ©Françols Flglarz.
Esse modelo "progressivo", o teatro e a filosofia ocidentaU
ram a infelicidade de adotar, pois não escolheram senão 1Í
única dimensão - a carne ou os ossos -, ou marcadame' ;. t ador. A produção teatral deixa-se
'espec . abraçar
. como um
uma oposição muito estéril, e assim fecham-se à medita :Miicb e mesmo corpo, como uma contiguidade e um~ con-
da carne. Ora, a carne é também a escuta sensível, da vii' "'huidade entre as obras, entre os colaboradores. Delxa-~e
da palavra. Delicada, porém necessária, é a sugestão feitl HâÍisar em função das relações entre ossos, carne: pele, nao
espectador para abordar o objeto teatral com sua pele, . 'penas na maneira pela qual privilegia um desses tres elcmen-
carne, seus ossos. O que é uma experiência estética senãi '"os, como também pela qual se dirigem ao espectador na sua
confronto entre a obra e o espectador através da sua pele, ,
iffiensão óssea, carnaI e cutâanea 17 .
sua carne, de seus ossos? Não é sempre uma questão de c
tato, de tato, de experiência sensível? Não se trata de anal'
friamente o palco, mas de colocar em contato duas pel LES ÉTOURDIS (OS ATURDIDOS), LA COUR
do objeto estético com a epiderme sempre sensível, e aqu DES GRANDS (O TRIBUNAL DOS GRANDES),
do espectador, a qual se esfrega na obra e se coloca em peri DE MACHA MAKEIEFF E JÉRÔME DESCHAMPS:
de sensação. Haveria, portanto, dois modos de percepção.ú O CORPO DESLOCADO
visual, isto é, à distância, e outro tátíl, até "háptíco" (Barth ','
ligado à apreensão pela mão, e portanto pela pele, esse poi 'bs aturdidos, os grandes: esses personagens privados de pala-
avançado do corpo. Assim sendo, abertos um ao outro, os :'vr<1 vêm de um mundo onde alegremente fracassamos em tudo
contra osso, o que é pior, ou pele contra pele, que é o melhi {~(ihilo que empreendemos. São os "Pensionistas": "Estão cer-
a obra e seu receptor vivem numa continuidade, mesmo nu' ?~ados e se esquecem!"18 Esses personagens desengonçados ou
continuurn, num contato permanente. Há também uma co"
tinuidade sensível e tátil entre o autor, o encenador, o ater. b;-,;~7 -Sobre o aperte de Decroux, ver P. Pavís, Decroux et la traditíon du théâtre
gestuel, em P. Pezln (dir.), op. cit., p_291-305. ..
M. Makeieff Inventaire d'un spectacie, p. 11. Macha Makelefffala de seu tra-
16 La Tradition secrête du nó. balho como de uma "poética do desastre':
O TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATOR 247
246 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

rechonchudos parecem-se conosco, invejamos sua inocên' ..•.. 'orl'dade social e intelectual do espectador, são segura-
efl . . .
perdoando-os, absolvemo-nos a nós mesmos. Percebemos" ,,' te mais eficazes e, sobretudo, mais engraçadas. O ntmo
diatamente seus corpos, muitas vezes disformes ou volunt enante dos espetacu
\; . Ios "deschienos?"
renas correspon d e melh ar
mente deformados, por causa de uma propriedade física e d eglsação do tempo. O público recebe uma variação dessas
comportamento que se afasta da norma, Privado de qual l<íturas "diminuídas", muito estúpidas para que façamos pou-
linguagem articulada, seu corpo dispõe de muitos outros rn /cas O delas, mas muito frágeis para que as desprezemos se-
para exprimir-se. Sempre indisposto, martirizado pela híd' ·'ramente. No fundo, ocorre uma total compreensão pelo seu
quia e pela tolice, é também um instrumento virtuoso a se' arranjOo face às novas condições de trabalho: a partir do mo-
s d .
de malabaristas, acrobatas, cantores de ópera, capazes de gir' .:,'. ehto em que reconhece sua angústia, seu modo e resistência
proezas espantosos, de façanhas físicas involuntárias.'" N,ssiva, o público "ri amarelo" e aceita sem condescendência
Os aturdidos são os simples de espírito que não sabei" ":fllascrenças, seus caprichos, seus tiques e seus pequenos pra-
que fazem. Obedecem às ordens idiotas de um patrão colér;' "'aes. O sentimento de superioridade e desprezo dá lugar à
e imprevisível, provocam as piores catástrofes com a inocêrl" jimpatia e à ternura.
e a poesia dos ingênuos. Eles não têm consciência de estar(( ,s;, O problema do corpo, vê-se, é colocado no interior do dis-
no mundo, em todo caso não no mundo social, seguem 's~' ,positivo global da identifica?ão e do sujeito no vir-a-ser. Um
caminho tranquilamente. Os grandes, esses para eles são .hórpo é carregado e constituído por uma pessoa e por um su-
outros, as autoridades, os chefinhos, todos os obstáculosê \to. Sua exposição está ligada a uma narração, a uma maneira
guidos no seu caminho. 'ii~narrar o futuro dos seres humanos e, finalmente, a uma vi-
Um corpo defeituoso impede-os de levar a cabo o rneno 'iãó do mundo. O corpo continua, apesar da exposição de suas
projeto. O espetáculo também não apresenta nenhuma aç~' ... perfeições e dos efeitos freak, no quadro da representação.
geral, nenhuma fábula, nenhuma tese. Consiste numa série" cindaé o corpo de um personagem e um instrumento do atar,
gags, de combates dos pequenos contra os grandes. Cada epi{ "ha significação continua simbólica, mimética e não literal".
dia de folhetim é soldado ao outro por novo desafio ou proez 'Precisamente para ultrapassar essa limitação da expressão física
gestual inesperada. Do que decorre esta impressão, muitíssimã ~través da convenção dramática é que formas como a perfor-
vezes confirmada, de que a encenação não consegue contar Jri{ {ilJance e a body art decidiram, a partir dos anos de 1960, utilizar
história, contentando-se em repetir a mesma situação. Porém... ,:'hscorpos dos atares "pra valer'; direta e literalmente.
inversamente, é, com certeza, a corpo dos atares que está ti~g
origem de todos os desenvolvimentos. Não se trata, como n'>:",.
caso de Iben Nagel Rasrnussen, de contar os anos de formaçãg;W" Referência a Deschíens, série cómica da televisão francesa de grande sucesso
(1996-2002), dirigida por JéromeDeschamps e Macha Makeíeff (N. da T.).
de um indivíduo; nem, como no do Théâtre du Mouvement, de-1;1i. Há no teatro, como na realidade, duas maneiras de entender o corpo: como
explorar sistematicamente as possibilidades do gesto. A ideiJ~;.;t coisa ou como consciência. Porém, como bem o mostra a fenomenologia de
é fazer encarnar pelo ator-performer o mal-estar indefinível e%l'i,~" Merleau-Ponty, o corpo não é nem objeto, nem pensamento. "Quer se trate
do corpo do outro ou do meu próprio corpo, não tenho outro meio de co-
não verbalizável de qualquer época. Hoje parece mais fácil exq;Jf~ nhecer o corpo humano a não ser ao vivê-lo, ou seja, ao retomar por minha
primir esse mal-estar de maneira grotesca e clownesca, ao invé~~*~~~ conta o drama que o atravessa e confundir-me com ele. Eu sou, assim, o meu
corpo, pelo menos em toda medida em que eu tenha uma experiência e, re-
de propor-lhe uma análise global, especialmente a brechtiana. .
ciprocamente, que meu corpo seja como um sujeito natural, como um rascu-
que coloque em evidência, pelo gestus e pelo distanciamento in-, nho provisório do meu ser total. Desse modo, a experiência do corpo próprio
terpostos, as contradições do mundo do trabalho, e que sempre""" opõe-se ao movimento reflexivo que libera o objeto do sujeito e o sujeito do
objeto, e que não nos dá senão o pensamento do corpo ou o corpo em ideia,
possa transmitir um pouco a lição ao espectador. Escaramuças·'I;lR.. e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade" (M. Merleau-Ponty,
burlescas e maliciosas, até gozações "de classe", inspiradas pe1a;~~! Phénoménologie de Ia perception, p. 221),
248 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATOR

5. DA BODY ART DE ANTIGAMENTE ÀS 'organismo, pois se limita ~ suspend,ê~lo como um quarto de


IDENTIDADES MÚLTIPLAS DO PRESENTE orém repartindo seus pes sobre vanos ganchos. O cantata
fi
,P . I ., 'fi-
'>, a matéria parece estar no seu nrve rnaximo: cruel caçao,

A body art conheceu sua hora de glória na esteira da pet:nchamento, cirurgias plásticas em ensaios transformam
mance, ao longo dos anos de 1960 e 70. Os performers quebt' dicalrn ente o semblante de Orlan>'. Quem diz melhor? Os
a ilusão teatral ao utilizar seus corpos diretamente, e não cO' ites foram atingidos, o divórcio com a ficção teatral é con-
suporte para uma ficção. Procuram ultrapassar os limites '(briado. _ .
seu corpo inflingindo-Ihe tratamentos provocantes, até do ;;(por volta do início dos anos de 1990, as açoes violentas e
rosos e perigosos. "rigo sas parecem ter passado de moda. O corpo como sim-
A arte da fotografia testemunha experiências anterior~". es pedaço de carne perdeu sua atração. O revezamento com
partir dos anos de 1920. Por volta de 1927, a fotógrafa e co,fJl1áquina parecia evidente. Stellarc, ao considerar o corpo
diante Claude Cahen posou como uma halterofilista de bigo. hrtrn
an o um objeto obsoleto e residual pouco perforrnático,
jogando sobre a ambiguidade sexual, ridicularizando a di" 'r~curou substituí-lo por uma prótese mais segura. Aparelhou
são tradicional de sexos", Quarenta anos mais tarde, Caro i limo terceiro braço biotecnológico, que respondia aos impulsos
Schneemann realizou performances provocadoras. No decair "arnáquina (The Third Hand [A Terceira Mão])25.
de uma conferência pública, não parou de desvestir-se e vesti'- ,: A partir do último decênio do século xx, a body art pura e
-se, perguntando ao público "qual crédito teria uma estoriad ;'.pesadados anos de 1960 e 70 foi deslocada: quase desapareceu
(sem h) nua quando fala"?'. Em 1979, ela realizou com Inten i'completamente sob a forma primitiva e aliou-se com O proble-
Scroll (Rolo Interno) sua provocação mais acabada: desenrol 6JiIa das identidades (sexual, racial, social etc.). Na perspectiva
va de sua vagina um longo filamento de papel. Na mesma veí ,;áérridiana da desconstrução, ou de modo preponderante se-
porém num espírito (ainda) mais feminista e militante, a a r t i . 'N~ndo um enfoque francamente pós-moderno, examinamos
saída da militância vienense Valie Export realizou, com Pani ,t),com o o atar combina, na sua criação, diversas identidades. Seu
générale (Pânico Geral)" (1969), uma intervenção num cine ';lr)'tQrpo torna-se um laboratório de misturas, hibridismos, rela-
pornô. Uma metralhadora nas mãos, o sexo à mostra, anuncie -~~~?:es inconscientes entre esses territórios identitários em cons-
que o "sexo" estava disponível, basicamente ameaçando com S. 'fe'ltilrite evolução. Esse corpo é a aposta de todas as cobiças, não
arma fálica os potenciais compradores. O "verdadeiro" sexo prÓ. ;.::'i~penas eróticas, mas, sobretudo, epistemológicas. É o marcador
duz nos homens um efeito diferente daquele do sexo filmadÚ:~'âascontradições identitárias que ainda não chegamos a pensar
tal é a conclusão da experiência, de resto previsível. ·i:;f···.;ém conjunto e em conciliar. Cada tipo de identidade apresenta
No que se refere ao sofrimento autoinfringido, a palma;. ""'s~rios problemas. Assim, a noção de raça, habitual nos Esta-
sem contestação, deve ser dada a Chris Burden, contumaz eriiii?4 ~'., .'dos Unidos, é tabu na Europa continental, pois essa noção foi
ações violentas dirigidas contra si. Em 1974, quando por oc;,\\'I te·
utilizada muitas vezes de maneira "racista': A noção de sexo
sião de uma ação chamada Trans-fixed, não hesitou em se fazef~i! i;"~ foi substituída por aquela de gender, o que facilita a reflexão
crucificar no teta de um automóvel, uma "baratinha" Volkswa'k~~ ·,·férninista, ainda mal aplicada ao pensamento teórico no tea-
gen". Stellarc, performer australiano, é muito mais doce conit~;~ j§c troo Quanto à noção de pertencimento social, não se reduz, ou
20 Para este exemplo e o, seguintes referlr-nos-emos ao livro de W. A. ErWing,"t f;; ~i~ não apenas, às contradições sociais e à ilustração muitas vezes
Le sua« du corps (para este exemplo. ver p. 72-73). ·--:~~;t:!, ~;:-,~,_
21 Idem, p. 130. (Em Naked Action Lecture, em 1968. no Instítute of Contempo);;!~;;-;- t''-:'' - 24 P. Allain; J. Harvie, Orlan, The Routledge Companion to 'Iheatre and Perfor-
rary Art de London.) ,-';>.- ::~ - mance, p. 58-59.
22 Idem, p. 141. :.<{' ~F' 25 Foto em J.-J. Courtíne (dir.), Histoire du corps. Les mutations du regará. pran~
23 Idem, p. 156-157. '~.>S_;, ~i- cha n. 14, p. 415.
250 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATOR 251

simplista de determinações sociais na escolha' de gestus': ,> a situação: superego de Orestes, o guia mais do que dá
pretendem encarnar as diferenças de classe. ,fntede si próprio para melhor reconduzi-lo à realidade.
A geração de performers e de "criadores coletivos" rn onta
:;;Esse quadro e a encenaçao - d e M'1Ch e I L'lard no seu conjun
. to
que tenha começado seu trabalho nos anos de 1960, afastou-s~; :,. ciliam os ossos (a dramaturgia clássica, sua sólida coerên-
n
um uso puramente literal do corpo. A partir dos dez últimos aJ 'eCO
() e a pele (a de um teatro artaudianoiano oue
que " nos d espert a, ner-
do século xx, sua pesquisa reorientou-se para um retorno p' ~:.ea. oração" para "dirigir-se não somente ao espírito, mas aos
v-O-s'e c '
cial do simbólico, às expensas do somático e do acontecime'" " 'tidos"27). Os membros do coro e Orestes sustentam-se uns
Essa pesquisa não exclui, de início, o uso do texto ou o recursO:~ ,s~ns outros. Aos seus apoios gestuais (mãos, olhares, posturas)
personagem. Inventa muitas vezes uma nova maneira de nad'o '::f,~O spondem os apoios vocais, retóricos, rítmicos do alexan-
,corre
Distanciou-se da literalidade direta da body art para dirill \irino. Uns não se confundem com os outros, o :orpo não t~m as
-se a textos, modernos ou clássicos, que trata de forma físicJ ,inesmas necessidades que a lmguagem e um nao duplica rrtmi-
carnal, permanecendo atenta ao seu sentido e às sensações q 'éamente o outro. Não obstante, eles "ombreiam-se": o trabalho
emanam. Tomaremos como exemplo a encenação de uma pê ·:físico> seus apoios posturais e seus cantatas, servem de anco-
clássica como Andrôrnaca, de Racine, dirigida por Michel i'iag em à linguagem da paixão e, inversamente, a express,ão ~as
Pode-se imaginar interpretação mais física? ,'HjaixõeS e a dicção dos versos encontram pontos de referenc~a e
"conformações rítmicas nas paradas posturais, Atuando muitas
" no chão (de joelhos, alongados, acocorados), exploram fi-
6. ANDRÔMACA À FLOR DA PELE: O OLHAR siC1lll1enlte os apoios, tensões, impulsões, os saltos, as rejeições de
E A ESCUTA DE MICHEL LIARD corpo e daquele imaginário do grupo; fazem a experiência
_n>,rrpto das pulsões do corpo inteiro: não apenas o esqueleto

No centro, Orestes, crânio rapado, corpo encurvado, olh posturas contráteis ou liberadas, mas também a pele e a carne
voltado para si mesmo, braços cruzados, confunde-se aon ' brilham nos jogos da linguagem e da sedução.
ter ninguém para abraçar>, É sustentado gestual e verbalmenn
pelos outros três atares, interpretando os personagens prinCi
pais e formando aqui um coro encarregado do papel e do texf
de seu confidente, Pílades.
Todo o universo trágico está concentrado nesse quad{
vivo, nesses autocantatas e nessa maneira pela qual cada um
toca o outro literal ou emocionalmente) com uma tensão cád;i~?{
poral específica. Orestes, de joelhos, mas sentado nos calca.'Ml;i;
nhares, está prestes a saltar para outras esperanças ou outrds,':i1§,?
crimes; Hermíone, à direita, aguarda as novidades, como se não
lhe dissessem respeito; Andrômaca, á esquerda, está estendida
no seu doloroso esforço para "escapar-lhe"; Pirro domina rear;;i",
, .... ,.::.,'~

26 Encenação de M. Liard no FoI ordinário, Avígnon, julho de 2000. Teatro de';\.,;:': Racine, Andrômaca, encenação de Michel Líard. © Vincent Jacques.
sótão de chão. Com Plorence Dannhofer, Karin Madrid, Yves Arcaíx, Domini-/,.i·:
que Delavígne. Para melhor conhecimento da poética de Míchel Líard, ver seu ..:;."";
livro póstumo: Parole écrite, parole scénique, com prefácio de Patrice Pavis.':· ' 27 A. Artaud, Le Théãtre et son double, p. 3.
252 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATOR 253

A aliança da rigidez óssea e da pele reluzente, do rigoris . "'. A sensação (c), essa "composição de afetos e percepções"
corporal e do murmúrio da língua, transforma a própria car "(pe1euze), que aqui se exprime numa espécie de orgulho da
do verbo raciniano na regularidade alexandrina e nas surpr i ': " ele em se expor, é contida por uma lógica da comparação, pelo
rítmicas. Constitui o coração palpitante desse universo físicJ ;';S~so de conceitos (d) muito "ciosos" de suas prerrogativas.
vocal, o lugar da paixão e da pulsão. . i", Na sua intersecção, os quatro elementos em contraste pro-
Quem, da pele ou dos ossos.. controla a carne? Impos*~*~ \Juzem uma forma vazia, inconsciente e ignorante de si mesma,
vel decidir. A carne está ali, luminosa e murmurante. As peleirj;;i' .forma da tragédia, do universo trágico. Essa forma é o lugar
queimam, os corações abraçam-se. Roçando-se, as mãos trans~)}j~ .>1:10 equilíbrio miraculoso entre todas as instâncias, particular-
mitem ordens imperceptíveis, conscientes ou inconsciente:ili"lt ,<emente os ossos e a pele, ou seja: a dramaturgia regulada per-
Não se teria condições, doravante, de distinguir o interiord~H~l!: ~;'feit.mente e a textualidade respirada à perfeição.
exterior. .j. , . Esta Andrômaca montada por Michel Liard exige dos ato-
Os atores de Michel Liard dizem os alexandrinos de fOr!':;;';; .":,. res(bem como dos espectadores) situar-se ao mesmo tempo no
ma impecável, encontrando sempre apoios gestuais necessárioi;~;; ,'. meio das coisas e fora, do lado da pele e do lado dos ossos. Ul-
paraa boa articulação do texto. Seus corpos são estritamentiM;"1 ir . tr.passa o dualismo ocidental da expressividade que, antes do
contemporâneos dos nossos: não são os corpos alongados o~~~i;;' :;';,' "Dire Racine" (Dizer Racine), de Roland Barthes", e de encena-
superexcitados dos anos de 1960 e 70, nem o look clean, coov.i)i ~:,' dores "barthesianos" como Vitez, Villégier ou Mesguich, ainda
(aparência limpa, fresca) ou da moda dos anos de 1980 e 9Q%\~% :,.:: empoeirou a interpretação raciniana por meio de numerosos
mas, antes, os corpos em equilíbrio e em intensidade variávemi~j;;. ,'> : efeitos expressivos. A dicção não é mais concebida como uma
recolocando o verso na sua camisa de força. Às vezes, em cer'" 'i'decoração chapada no sentido evidente e estável, porém como
tos momentos de crise, essa camisa estoura sob influência di·,;:", aquela que constitui o sentido. O sentido e a expressividade
paixão e da linguagem por um instante perturbada.;"'''; ."são inseparáveis. A encenação de Liard transporta os atores (e
Realiza-se, assim, a Mandala" de Racine: um mundo em qll~·:i:.:: i.i mais tarde os espectadores) através dos alexandrinos e dos cor-
reinam forças em oposição ora positivas, ora negativas, um mUIjf7i:fc' ;'t;pqs, mobilizando tanto seu sentido de estrutura óssea e sólida
do que essa encenação ilustra sem o saber: as paixões (a) (ne~~ \:quanto suas sensações fugidias e cutâneas. Marca um equilí-
caso: amor, ciúme, cólera) são impulsões (emocionais e musc~~0,,,prio entre profundidade e superfície, osso e pele, um equilíbrio
lares), os «querer apreeder" elas são imediatamente contidas peldX' .. que as obras contemporâneas raramente realizam, arrebatadas
intelecto (b), a consciência analítica à procura do saber.·.-~i:~:.\{. que são pela ardente interioridade ou, ao contrário, bloqueadas
Conceito ( c i ú m e ) , ; , , , . : , . , , pelo seu frio formalismo. Quando Racine é tão magnificamen-
:~.: ,.C' ri, te dito e dado a ver, é como se a ossatura espiritual de nosso
•.,. . , /i':': inconsciente estivesse diretamente articulada na pele delicada
:., ••·ie;,. dos alexandrinos e dos corpos; como se osso e pele se encon-
·--:\~::.-Ú~:l~': .trassem num lugar indeterminado, sempre um pouco secreto,
Impulso Consciência
(paixão) (agressão) :..d.;i;.'1: .0 qual se trata, para os atares, de achar pela prática, e para os
i,
.••i.;.·.:·•.:...
•.•• ; espectadores de adivinhar na superfície das coisas. Inversa-
\-,,~,.;;,- Z: ~:f; .mente, uma voz bem colocada) um apoio exato, uma atitude
/- '., 'i,: corretamente mantida, uma tactibilidade assumida jorram na
···.Ai Pi. inteligência do texto. É como se todo o universo de Racine - a
Sensação (orgulho)

28 Ver especialmente C. Trungpa, Mandala: Un Chaos ordonne, p. 41-52. 29 SUrRacine, p. 883-1103.


254 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATOR 255

inextricável interdependência dos apoios, a proximidade ~·ro. O corpo desnudo apenas até a metade encontra um uso
carícias e dos golpes, as pulsões e as palavras - parecesse est '{~s teatral, mais irónico e menos agressivo. Ele não narra díre-
ponto de levantar-se de um único sustentáculo, como se daí" {'ente, é um suporte de escritura e de discurso implícitos .
diante fosse desnecessário distinguir os três estágios do corp" . ,,~ Na sua obra videográfica, Gómez-Peüa zomba da alta tec-
não mais do que os diversos degraus do sentido. " \ólogia informática da qual os chicanos são excluídos: estes
B"bituados com os costumes de ciborgues com gadgets fan-
'tªsis tas continuam, porém, a ser perseguidos pela polícia de
7. WHITE ON WHITE (BRANCO NO BRANCO), ·fronteiras. Seu corpo "primitivo" não é senão um amontoado
DE GUILLERMO GÓMEZ- PENA: de
próteses tecnológicas inúteis ou de roupas exóticas deliran-
ESCREVER AS IDENTIDADES les. Os primitivos falam uma língua inventada, pretensamente
','!iré-colombiana, n~ qual se reconhecem .apena~ alguns nomes
Este performer mexicano, que vive nos Estados Unidos, nos for;;f,~ , "demarcas publicitárias (Benetton, Calvin Klein). Ao mesmo
nece um bom exemplo de uso do corpo mais simbólico do que ,. : ·tempo, enquanto performer, Gómez-Pefia domina perfeitamen-
literal. No seu DVD - Ethnotechno: los Video Graffiti (Etnotecno: '. te todas as tecnologias de mídias existentes. É capaz de mani-
Os Vídeo-grafites) (2004) - ele retomou um certo númerodê,I:J~t~l; pular os objetos ao redor de si e, além disso, as mídias ajudam
esquetes de seu grupo La Pocha Nostra. Estes clipes curtosdif;,!* :~, ii transformar o ambiente cénico virtuaL
dois a três minutos estão centrados na representação do co;rt~~ w'
A maior parte dos esquetes críticos utiliza, certamente, um
po, na identidade chicana no meio anglo-americano, na cris;êi\j~~; corpo nu, sempre excessivo e teatral, decorado e deformado,
identitária, na política da cultura e da l í n g u a . ...;;•., "parodiando os gadgets e as fantasias da modernidade. O im-
Numa das sequências, Branco no Branco, um atar "bran~\~jt ,;is portante não é sua exposição direta, mas o uso narrativo e po-
co"(?) com o torso nu azulado devido à iluminação e à maqui~~'l;i.:; ;W .Iítíco feito deles.
gem escreve sucessivamente com marcador em seu corpo untai' A noção de "teatro físico'; por mais radical que tenha sido,
série de palavras: para começar, no braço direito white, depoí s,>deslocou-se, há uns trinta anos, rumo a territórios que lhe te-
no busto de alto a baixo: race, suprematist, wash, power, trash ' iriam parecido outrora inimigos, tais como a encenação de clás-
Sobre o braço esquerdo, acaba por escrever lie, "mentira". ,_ sicos ou o teatro político. Ela retorna a um de seus pontos de
expressão white lie significa "mentira piedosa'; que denllnci~r:Ji0' "'c partida: a criação coletiva, não tanto a que conhecemos nos
ironicamente o credo dos artistas brancos. ' _,.'anos de 1960, especialmente na França, mas aquela mais pró-
Seja qual for a intenção ou a mensagem política, a inscriçãq,O:,; ii; xíma da noção inglesa de devised theatre, isto é, de um teatro
no corpo não é dolorosa, não é nem tatuagem, nem piercing;, 'O.: : que cria o conjunto de seus materiais, numa lógica de constru-
nem enxerto cirúrgico, não é o caso, como em Chris Burden oú ',>;1 ~,;ção progressiva do significante. A esta guinada para a antiga
Orlan?", de entalhar as carnes. É suficiente provocar o sorriso ::'.'j" criação coletiva e para o teatro do gesto correspondem predo-
dos espectadores ao assistir a essa fabricação artesanal de sIQ!',:'~ ;;!,minantemente as pesquisas atuaís do Théâtre du Soleil, a partir
gans demasiado primitivos numa pele utilizada como qlladrq;a',J: :f; de O Último Caravançará (Odyssées) (2004) até o espetáculo de
';c"[ 2007: Les Éphémeres (Os Efémeros).
* Literalmente: branco, raça. suprematísta, lavado, poder, llxo. No entanto, qu~~,'-~~ -_r
do em relação, tais termos adquirem uma conotação racista; assim, white tr~h-i,; ~; ~".
é a forma pejorativa de se referir aos brancos pobres de periferia, e white-washE' ~ 'Y'
usado, também pejorativamente, para se referir a quem não sendo "branco" :; ';-::':,
age "como': ou "parece" com, um "branco" (N. da E.).
30 Por exemplo, em The Reíncarnation of Satnt Orlan (1990-1993). Ver cn-rom' .:'
Orlan, editado por Iérfko, 2000.
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256 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGrA DO ATOR 257

8. OS EFÊMEROS, DO SOLEIL:
A INVENÇÃO COLETIVA

A noção de devised theatre (literalmente: o teatro invent


subentendido, inventado coletivamente) não se impôs na"
-Bretanha senão nos anos de 1990, com referência a exp~r'
cias pós-modernas. Inventar é "um método para fabricar
petáculo, o qual não repousa num texto pré-existente e im
a participação e a colaboração de toda parte criativa da co
nhia, em todos os estágios e sob todos os aspectos da fabri
do espetáculo, a partir da concepção cenográfica até à elâ'
ração do texto, à criação das luzes e do som, até ao espetát
propriamente díto"". Essa definição aplicar-se-ia ao mÚ'
atual do Théâtre du Soleil para Os Efêmeros. Com efeito, ' 'i;e du Soleíl, Les Ephémeres, pelo Théátre du Solei e Ariane Mnouchkine.
não foi elaborado coletívamente pelo grupo de atores, cô; !tartes-Henri Bradier:
para 1789, sem encenador supervisionando o empreendim'
to. A criação é parte de microprojetos, concebidos e desenç
vidas em termos locais, enquadrados e montados (no sen"
fílmico) por Ariane Mnouchkine.
Não nos aventuraremos a uma delicada análise gené
de diferentes sainetes, deixando aos estudiosos de primeíri ilterp,~jado por essas cenas intimistas. O menor detalhe faz
nha ou aos sábios privilegiados e reatraídos, que são os úni,' _ntído, A lenta velocidade de rotação varia ligeiramente de
a terem tempo para assistir a toda a evolução do projeto, "a sequência para outra. Ela depende da atmosfera cênica, à
tarefa titânica e essa causa perdida. Em contrapartida, coi riaI a música de Jean-Iacques Lemêtre contribui grandemen-
nuaremos a interrogar o modelo corporal subjacente aé 'na sua fabricação. O movimento das carruagens torna-se
empreendimento. ,'uase um balé em si, um teatro de objetos: no fim do "ato';
O corpo do ator chega-nos literalmente numa band~{ il'Fcarruagens atravessam o palco para "cumprimentar", sob
Dois atores-rnaquinistas empurram em cena uma peque ps aplausos do público. Esse balé muito bem regulado serve,
carruagem, muitas vezes circular. Dois ou três personagensf '~'videntemente,para a dramaturgia de cada fragmento e, em
estão empenhados numa ação, num diálogo ou numa situar "ihenormedida, para a dramaturgia geral dessas "efemérides".
muda que identificamos rapidamente. A carruagem atrave yrante essas lentas rotações, o espectador experimenta um
sa o espaço cênico longilíneo entre os dois lados das galei .razer de voyeur ao descobrir os personagens sob todas as
onde o público tomou lugar, inclinado, como num anfiteat úas facetas, ao acompanhar o caminhar de sua consciência
de anatomia. A carruagem volta-se continuamente sobre'« li de seu pensamento) um pensamento movente) uma vida,
eixo e desloca-se longitudinalmente com a mesma velocid{ ue se formam sob nossos olhos. O efêmero é, por definição,
Graças a este travelling permanente, cada espectador obt ,ecurta duração, dificilmente apreensível, momentâneo. Con-
acesso pessoal à intimidade do palco. Ele se sente díretamen cretíza-se num breve momento de parada do tempo ou numa
f,\!são encadeada cinematográfica, até num grande plano sobre
31 P. Allain; J. Harvie, op. cít., p. 145 (trad. do autor).
um aspecto oculto da existência. Coincide com momentos de
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iluminação, de satori'", com ocasiões inesperadas de enç~:: ;'será cuidada por ele nesta noite. Respondendo ao telefone,
tros, de aceitação do e para o outro. Como para a cronoE ersonagem revela que viveu dolorosamente o fato de ter
grafia de Marey ou Muybridge, todo movimento é como' ; 'do homem e que prefere, no momento, ser considerado
sei
reconstituído numa sequência de planos, etapas intermêci ;'ê~tar vestido como mulher. As pessoas à sua volta não fica-
rias, impressões e f ê n i e r a s . < ~ 'encantadas com essa mudança de identidade. Somente a
No espaço voluntariamente apertado, recheado de obj~" ~nininha o compreende e o defende contra seus camaradas e
saturado desses estrados, os movimentos dos atores são uii ,~ pai. Este, particularmente agressivo, tendo vindo procurar
mos e tanto mais significativos. Estamos longe do corpo es . ha. subitamente prorrompe em soluços, desabando num
tacular, expressivo, visível, expansivo, teatralizado do Soleli '·"apé. Ele precisaria desse tipo de consolo, desse amparo fi-
outrora; O das encenações de Shakespeare e das tragédias'" '.0 que o travesti não ousa dar-lhe, a não ser de forma calada
gas dos anos de 1980. Num efeito de miniaturização, cone ·~,;tompassiva. Ficamos sabendo que o pai perdeu a mulher e o
tração, o personagem é apresentado no seu meio quotidi ' fueiüno num acidente de carro. Porém, serão o luto e a dor a
minimalista, típico. Para certos atores, isto assemelha-se a "i\iüca causa de seu aniquilamento? Seria a frustração de consta-
reconstituição obsessiva do passado, necessária para a erri~ it~tque sua filha preferiria continuar com a baby sitter, pois que
.. '
gência das lembranças e das palavras, uma espécie de detonad' !"ma presença feminina e maternal falta-lhe cruelmente? Essas
de tipo stanislavskiano. Esse procedimento de reconstituiçã<l; Jâgrimas súbitas e públicas também querem dizer alguma coisa
concentração não se dá sem perigo, podendo degenerar rapíd ~,,"JIlulher" que cuida da criança: a aceitação de sua mudança
mente numa produção estandardizada de esquetes televisua '\:lesexo, de sua diferença, a consciência de que o sofrimento é a
que visa um efeito de reconhecimento imediato, para situaç 'ióisa, no mundo, melhor partilhável. A contensão embaraçosa
muito conhecidas, causando prazer ao público um pouco p'" ê~'Sandrà', sua hesitação em tocar e consolar o pai, a maneira
guiçoso. Felizmente, esses atores "solares" aprenderam a resis #la qual o travesti olha a televisão com a menina adormecida
à tentação e raramente sucumbem. O sistema de retomadas, >. ~ín seus joelhos: são comportamentos não verbais que o espec-
segunda parte, de histórias esboçadas como a da ecografia, p:" \ãdor é instado a ler. O prazer da representação teatral reside,
exemplo, conduz, às vezes, a extensões, repetições, facilidad: sobretudo, na interpretação de comportamentos não verbais
Porém, no conjunto, o afresco desses deslizamentos da vida;' (dos personagens, mas igualmente nos índices involuntários que
espaço cênico é impressionante pela justeza. Trata-se do retor 'bator "deixa arrastar" sobre seu corpo, à maneira de uma body
de um teatro de situações? Nunca, em todo caso, no sentido Rftque se ignora.
um espetáculo realista e homogêneo. A fragmentação, que é9JI~~ O palco e o corpo do ator são sempre o lugar de uma ex-
destino desse tipo de montagem, é compensada por uma unidade4~'i; 'posição pública. Por definição, o corpo travestido se dá em es-
tom e tema, pela colocação em rede desses sainetes sob a batu\~it'~; ,i'petáculo, no teatro, duplamente. O camp é a pessoa cabotina,
mágica e a palmatória de Mnouchkine, e completada a seguti;~l!C ''c.fetada, efeminada, fazendo alarde do mal gosto e do kitsch nas
por seu filho A r i a n e . ~ i ~ ) ~ i ;!,sllas maneiras. O camp parodia o comportamento heterosse-
Tomaremos um exemplo dessa síntese muito bem sucedi,(it{'1}; 'leuaI para denunciar-lhe o aspecto construído e performático.
de palavra pessoal, de dramaturgia do ator, de body art "à fran,\IM;; , Nada disso ocorre na atuação de Iererny James. Ele não é ab-
cesa" e de representação tradicional. Em "O Aniversário dç~;:; :)olutamente paródico e, provavelmente, visa antes construir a
Sandrà', Ieremy James interpreta o papel de um travesti que fe~'-­ imagem e o gestual de uma mulher com as banalidades habi-
teja seu aniversário em companhia da menina (Galatea BellugiJ, "tuais: apuro no vestir e no interior, preparação do bolo segun-
'do a receita familiar. Nesse travestirnento, os caracteres sexuais
32 O saton, palavra Japonesa, é um despertar espiritual e uma iluminação do
discípulo no budismo zen. ;ecundários são o objeto de nossa observação: estamos em face
260 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATOR 26]

da body art, pois somos confrontados com a corporaliJ .'{â,'6. Esta observação geral ajuda a avaliar o que se entrevê
real e construída do atar. Este faz um trabalho de apres" ~íla de James, consagrada à nova identidade de Sandra: o
ção literal de sua aparência, decidindo sobre a maneira. 'õfaz um visível retorno à ordem simbólica da linguagem
qual os traços ditos masculinos serão mostrados ou nei 'narração. O que conta para Sandra não é tanto o corpo
lizados no travestimento. Os traços físicos (porte grande' :~itl e biológico, mas sim a identidade, o gender que o sujeito
muito grave) não são mascarados ou adaptados aos pad'. ~'ante experimenta. Sandra aceita o olhar negativo do outro
femininos. O corpo não é provocado, forçado nUma dir' ·.··kenina no começo, dos meninos zombeteiros, dos pais de-
inabitual. Nenhuma violência de um corpo explícito33, exi'iovadores), porém subverte-o sem que o outro se dê conta.
com desafio, provocando um debate sobre a pornografia' ransgressão de papéis e identidades sexuais há muito tem-
política sexual. Estamos longe da exposição provocador';' "iaceita pelo interessado e os outros chegam a isso pouco a
Caroline Schneemann ou de Cindy Sherman, e muito mal' ·'Ueo. Seu pai recusa-se, certamente, a falar-lhe, mas o pai da
um desnudamento sistemático de atributos sexuais da mú' 'ehininha deixa cair suas defesas, de um só golpe, tornando-se
tal como a pratica a fotógrafa japonesa Nobuyoshi ArakP{, . ~.próprio o objeto digno de comiseração. Sandra é cuidadosa
da paródia da representação elegante da gueixa pelo perfor":ser ela mesma, não em agradar os outros. Ela sabe que estes
,. Gómez-Pefia.". . garão a uma verdadeira aceitação quando forem capazes
Na body art à francesa, tal como a pratica Iererny [a "'fitlar de outra coisa. O problema agora é: como fazer para
o corpo não é explicitamente mostrado e exibido. De i n í c i e o outro, aquele que aceita, não fique mal, como consolá-lo,
colocado em narração, a serviço de uma ideia dramatúrgt- ~anquilizá-lo, mantê-lo nos seus braços. Reviravolta irônica da
Sandra não tem outra ambição senão a de se fazer aceitaIf ijiuação e do estatuto do corpo: a velha transgressão deve ago-
todos, tanto adultos como crianças, entrar na normalidade'p: Ihranquilizar a norma bem pensante de outrora, uma norma
queno-burguesa, no caso. ':~~edoravante duvida de si própria, tendo perdido seus pontos
Esse episódio, ostensivamente dominado por ele, é ca c1e'referência e suas certezas.
terístico da recente evolução da body art e da dramaturgía: ---:.A arte da narração, aqui como alhures, é a arte de não dizer
atar. O fim da radicalidade do pensamento do corpo estám" do, de deixar pairar a dúvida e uma boa parte do implícito.
nifesto, mas seu sentido permanece impreciso. Trata-se deu"lllaioria desses dramatículos "efêmeros" restabelece o teatro
restauração da antiga ordem ou de uma subversão mais sutil? o.silêncio'", tanto quanto o "teatro do quotidiano" dos anos de
como a observam com grande perspicácia Shepherd e WalliilJ1'f :970. Objetos reais, palavras verdadeiramente entendidas ou
"um modo plausível de contar toda essa história consistiria edi];::, "pronunciadas inserem-se num dispositivo narrativo inventado
dizer que, enquanto, na contracultura dos anos de 1960, o cóf\%Ii~ 'pelos próprios atares, depois pelo encenador. A diferença do
po era ingenuamente considerado como fonte de humanidaagJ'f .teatro do quotidiano, os sainetes falam de experiências auto-
não alienada, o retorno ao corpo nos anos de 1990 era baseadd\f'" .biográficas. São as dramatizações de acontecimentos vividos e
na comprensão desconstrucionista do 'corpo no discurso', i~.'·i~I criados pelos atares do Soleil.
como foi elaborada no decorrer do decênio teórico dos anQ,I);'i( " Comparativamente com a arte de narrar de Robert Lepage,
'.-~~_' .·acharemos talvez trabalhosas e clássicas as maneiras narrativas
33 Ver, ~obre o ~ema, o livro de R. Schnei~er, The Bxplicít Body ín Pelfornla1Jc~~f:~i{ tJ~:,'do Soleil, ainda que cada fragmento obedeça a suas próprias leis
34 Ensaio colorído de 1991, em W. A. Brwíng, Le Siécle du Corps.ss. 199.Afor~·>-'~ ;t\Ó-' , . . di .. . d f
e a ambiguidade da< 1< resr em no o IIlar para a o bijettva
fotografiaa resid . e na impos-v.. .'. *,.
. .... :.. :.'..:.';:-.j·.::;. .::.e encontre as
~~t:<
vezes meIOS ln íretos e origmais e azer passar
síbílídade de saber se a provocação é um COnvite erótico ou uma críticadi~/;{:1i~'--~~:~
representação clássica da gueixa j a p o n e s a . . , ' ;: 1?:· 36 S. Shepherd; M. 'wallís, Dramal7heatreIPerformance, p. 145-146.
35 La Kabuki Club Gírl, Bthno-Techno: Los Video Graffiti, v. 1, La Pocha Nostra, ',:;~;~;j{ ,37 Especialmente de Jean-Jacques Bernard (1888-1972): "Há sob o diálogo enten-
2004, DVO-PAL. . . ::::::;:"", ~~~;. dido um tipo de diálogo em representação que se trata de tornar sensível':
262 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATOR 263

a mensagem. A música parcialmente gravadade Lemêtre .' THE BIOGRAPHY REMIX (A BIOGRAFIA
mais hábil e virtuosa que sej a, abusa frequentemente de 's' REMIXADA), DE MARINA ABRAMOVIC:
facilidades, envolvendo o trabalho com urna sentimentalid O CORPO ENTRE A PERFORMANCE
adocicada ao recorrer sistemática e pesadamente ao leitrn E A ENCENAÇÃO
musical, com as velhas receitas da música de cinema. Esse,u
não razoável do leitmotiv sublinha muito aquilo que deve " , últimO exemplo, A Biografia Remixada, ainda que urna re-
ficar simplesmente sugerido no desempenho do ator. ."ospectiva da vida e das performances de Marina Abrarnovic,
A arte da narração é igualmente a arte da montagem. Mo ' 'encenada por seu colega e amigo de sempre Michael Laub.
tagem em superfície, em primeiro lugar, visto que cada sequr' já, portanto, urna ambiguidade na apresentação desse evento.
cia decide sobre aquilo que se mostra ou se diz, escondeu ' ão se trata de uma performance para o grande público, mas
ou calando. Como em qualquer escritura, escolhe-se revelar' "e uma exposição, de resto extremamente clara e bem conce-
mascarar as motivações dos personagens, concluir ou mantef.~;;; .. 'ida, sobre um gênero mal conhecido em Avignon, a partir de
ambiguidade. O procedimento dotravelling e da relatividad~~l ;'exemplos, doravante históricos, de performances passadas.
da reversibilidade do ponto de vista introduzem uma relati'" . Ora, essa biografia remixada, que é uma espécie de work
.' dade e urna fineza que correspondem muito ao efêmero d~si'jn progress de Marina Abramovic e uma recapitulação de sua
coisas. Assim, é também a arte da montagem global, a da orgái")á longa carreira, é provavelmente a chave para compreender
nização dramatúrgica do conjunto total. Torna-se manifesto,';os outros espetáculos, para avaliar, sem a priori, as relações
segunda parte, quando se começa a estabelecer a rede de todo {cambiantes da encenação e da performance. Talvez seja, igual-
essas figuras. Esta conexão é ao mesmo tempo mais anedótic:i:' ii, mente, o momento de esclarecer a noção de calamidade, por
do que dramatúrgica. Nenhuma fábula, nenhuma imagem ceric'fi' J,;. oposição àquelas de risco e perigo à qual se sujeita o perfor-
traI, nenhum ponto de vista global resulta dela. A fugacidadl~! ...... mero No fundo, este último (ou esta, pois se trata, sobretudo, de
das coisas convence-nos facilmente de que todo ponto deVisl~~t. ~j; mulheres) interpreta o papel de uma calamidade, no segundo
é apenas provisório. Mais do que um descentramento, do q~.;i\1;i '~:';s'entido da palavra: não o flagelo natural, mas aquele que é cau-
uma desconstrução, Os Efémeros propõem urna descentrali~;t;;i'" ;sa de aborrecimentos constantes, ao mesmo tempo que é vítima
zação da perspectiva, urna delegação do poder diretorial adfr~T ;~<le aborrecimentos autoprovocados. O performer não é, com
atores, que trabalham no efêmero da lembrança. Esse retonj§'" t~feito, uma calamidade para si mesmo, alguém que, sem parar,
de urna preocupação ao mesmo tempo descentralizada e cb; .''inventa para si aborrecimentos e infelicidades? Porém, se ele
letiva é urna boa novidade. A criação coletiva é, no moment .. ,'/possui a arte de fazer sua própria infelicidade, possui também a
muito mais a do devised theatre, ou seja, um teatro imagina<l~~': ,,;defrustrar-se com brio, e às vezes com humor, e sair vencedor das
por um agente coletivo, um sujeito não díretívo, que trabalha . ;ú }'provas que se autoinfringe. Sua infelicidade não tem, portanto,
a partir daquilo que encontra no grupo e não numa ideia pte;';".. ; nada de uma calamidade natural, que por definição instala-se
concebida. Ora, é forçoso constatar que não existe história M. ',:no tempo mais longo possível e deixa pouca chance para que
criações elaboradas coletivamente pelas companhias de teatr~;," ' 'os humanos possam evitá-la ou neutralizá-la.
A observação da encenação e das decisões do encenador de;1' Sente-se que este espetáculo encontrou seu equilíbrio e sua
verá, portanto, ser respaldada - completada e reforçada - pelo, força pedagógica positiva. Michael Laub concebeu essa evo-
conhecimento do trabalho coletivo. Retorno à genética? ati cação como urna cronologia, exibindo, sobre duas faixas pas-
ponto de partida da genética? 'antes, em francês e em inglês, as datas marcantes da vida de
Marina Abramovic e as de suas principais obras. O olhar ex-
:2i terior de Laub não é crítico - esse não é seu papel -, porém
264 A BNCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA
Ji-"-"'<
ele gosta de dar _pontos de referência ~umorísticos. Opta por;!'
uma apresentaçao dupla: trechos de vídeo numa tela que coE
bre toda a abertura do palco e dos eventos live, que começan\~
a partir do momento em que a tela sobe lentamente, dando ~\\
impressão de que a realidade cêriica sai da tela. Ele organiza'!.
então, ações simultâneas, serializa a mesma ação, conferindo{;r
-lhe uma dimensão estética incontestável. A célebre prática do\~
duelo de bofetadas, retomado por cinco grupos, torna-se um;'
belo momento rítmico, perdendo sua violência original eni'L
proveito de um efeito de conjunto: acreditamos ouvir várias',!
partidas de pingue-pongue num vasto h a l l . ...
Na primeira sequência, Marina Abramovic, suspensa nai['
parede, acolhe o público mantendo nas mãos duas serpentes,'
enquanto dois plácidos cães molossos entram em cena e roem;;
um osso, embaixo das serpentes. Os alto-falantes dão a enten_"
der inquietantes grunhidos, uma cantora italiana exprime-se , ' Abramovic A Btozrafia Remlxada, encenação de Michael Laub.
lVlarlll"
ri
'o
no microfone, aliás, no amplificador. O terror é rapidamente ©Patríce Pal'is.
substituído pela admiração pelo sentido da composição, pelo Rosto mascarado, corpo expondo suas imperfeições (de acordo com as normas eHl
humor e pela beleza plástica. . ) e guiada no palco, depois apreciada por seu professor e mentor; pode ela
vIgor 1"';>N~
O conjunto do espetáculo é dessa qualidade: a de uma en- {linda tornar-se objeto estético colocado em cena para nos COlltar üstorías . . ao
tamente! Pois niio podemos esquecer o ser humano, e, portanto, seu sofrimento.
cenação bem ajustada que, sem excluir os riscos e incidentes ~.~~ conseeuimos ver o mundo unicamente pelos traços da beleza e da ficção. Por
n{lO o
trás do teatro, ' Aper
discernimos unta pessoa tão real quanto nos. j iormance testa
de uma performance, pelo menos coloca-os à distância, re-
/lossa faculdade de reagir e protestar enquanto ser humano, contudo, não ousamOs
lativiza-os, dando-nos uma amostra, uma versão conceituaI,
fazê-lo. Nós nos abrigamos por trás do teatro.
tudo de maneira muito pedagógica. O remix retoma o risco,
ou pelo menos o minimiza, diminuindo-lhe o impacto. Prote-
gido pela distância em suspenso, o público semiotiza e estetiza
aquilo que percebe. Porém, pelo menos respira ao encarar fron-
tal e bravamente esses eventos, não estando verdadeiramente"
colocado à beira de um ataque de nervos, observando as de-
monstrações um pouco como no circo ou no ginásio. Lenta-
mente toma conhecimento de Marina Abramovic, simpatiza
com ela, toma consciência de seu percurso de dor, deixando de
i;.
lado seus a priori sobre o delírio da arte, a frivolidade do tea-'i,'.
tro, descobríndo a presença e o silêncio. Quando, finalmente, .;~
Marina Abramovic vem sentar-se, com um figurino cinzento
muito clássico, diante dele, olhando-o diretamente nos olhos,
usufruindo um momento de silêncio e imobilidade, há alguns
segundos de apaziguamento universal, de anagnorisis generali-
zada, de profunda simpatia, de encontro. Depois, subitamente,
o TEATRO DO GESTO E A DRAMATURGIA DO ATüR 267

~usos estouram como fogo caloroso que não se esperava


,bessa programação antes de mais nada sombria do Fes-
e 2005.
, o obstante, apesar dessa mistura de modos de (re)pre-
,i~~o, a diferença encenação/performance continua. Não se
i/.'§iInplesmente de compreender a sua indefectível aliança.
aitestá em jogo na questão da presença e da representação
}$~ntido). Segundo Badiou, "o teatro seria a percepção do
f~te como um instante de pensamento"". Não é a perfor-
"(oe, neste caso, a percepção do teatro como pensamento
'stante?
o público, evidentemente, não se coloca o problema de sa-
'e está assistindo a uma encenação ou se embarcou numa
rmance. O espectador fica em dúvida, a partir do mo-
O em que põe os pés em Avígnon, sobre se a sua posição
erá confortável, se não pode mais esperar receber repre-
,t~ções miméticas do mundo, se deve "to go with the flow",
, ar-se ir ao sabor da corrente. Nada mais o surpreende nem
.'Qca: o que é um corpo desnudo, uma serpente embaixo de
·;'cão bem adestrado, comparado a um kamikaze que mata
"nas de pessoas ao seu redor?
<O exemplo desta performance "teatralizada" constitui o en-
tro do teatro do gesto com a dramaturgia do ator no interior
"e daperformance - a qual tende a voltar a uma encenação, a
,ir. de-monstração de ações controladas. Este exemplo, como
os Efêmeros, confirma a impressão de que o teatro do gesto
.,dou de identidade a partir dos anos de 1960, que se travestiu
·'>algo diferente. A partir do último decênio do século prece-
'~iite, ele inventou novas formas, nas quais a dramaturgia do
tor não é senão uma possibilidade entre muitas outras. A noção
~teatro do gesto talvez esteja superada: útil nos anos de 1960,
.'Pino reação ao imperialismo da literatura dramática, perde Sua
Marin~ Abra~ovic, A Biografia Remixada; encenação de Michael Laub. 'rêrtinência e sua eficácia desde o instante em que alguém re-
©Patnce Pavis.
,1çonheceu, de boa vontade, a presença do corpo em qualquer
AIS serp~ntes se movem. São perigosas? Sim, pois não ousaríamos tocá-las! E li!ll1anifestação espetacular. Se a body art e a performance pare-
e as.arnscam-se
. a cair sobre os caes.
- E'Óen t·ao, uma perjormance
-c não repetíveí 1itcem-nos, a nós crianças da era pós-moderna e pós-dramática,
alrns~ada~ lmprevisível, irritante. Porém, a pose crítica, o halo de luz a belez;
I wnmaçoes ou da voz da ca t · . óni I ~ , ~:çomo gêneros históricos, quase peças de museu (pelo menos
ícoruân t n 01 a, a Ir nica re açao de elementos trazidos para
e pa co, tudo ISSO flO.S conduz aos prazeres indizíveis da relação teatral.
scolher entre a perjormance ou a mlse-en-scene> Míse-en-perf ou performíset
38 Op. cito p. 115.
268 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

no sentido literal do termo), é porque um novornod-j., dÓ'


po tomou, justamente, corpo. Não é mais o corpo "selva'
e "descontrolado" dos anos de 1960, nem mesmo o ex
to, caro a Rebecca Schneider ou a Caroline Schneemann
sim um corpo imaginário, híbrido, fantasmático, que rnis
linguagem e discurso, à cata de múltiplas identidades e doe"
sujeito multipolar. Esse sujeito encarnado não precisa ui'
para se afirmar, opor-se ao espírito, ao texto ou à tecnoló'
De forma análoga, o teatro não se sente mais na obrigaçã
nos convencer que é físico, ligado ao atar, e que consistO"
"eventos encarnados'; Integrou de tal modo (e encarnou) e
"corporalidade" que o "teatro físico'; estrito senso, para de, '
uma categoria pertinente e que se oferece como convidad' ~'parte da programação dos teatros compõe-se de peças do
outros géneros. A representação de um clássico é, às vez' "értório clássico.
mais sensual e física do que um mimodrama fossilizado. ' '.wtas
. ve zes por meio dela que os espectadores tomam
escritura contemporânea tem muitas vezes a necessidade imp ,. ,
'hecimento do teatro. Nossa relação com o repertono e
ríosa, para ser compreensível, de desdobrar-se em suas frases
'bivalente: intimidação ou rejeição às vezes, Incerteza quase
em sua retórica, nas suas asas como se se tratasse de partcsd
corpo humano ou modulações da voz. Artistas como Ro ' 'i;TJpra.
Lepage ou Simon McBurney provaram que o uso de mtdla :tarnos nos despedindo do passado? Mesmo que os
pode enxertar-se na presença humana, na arte da narraçãó:' .••• adores não mais acreditem muito no seu poder. Nem
~
F:~amente num método de interpretação que avena
hdeH
no uso literal do corpo humano.
A esta extensão infinita do teatro "encarnado" - chame-s I~~r. É como se tivéssemos, todos nós, perdido o sentido de
a ele físico ou gestual -, acrescenta-se o fato de que é recat ntaçâo.
turado pelo debate teórico pós-moderno sobre as mútlíplâs para interpretar o passado está no "presentismo"? Ou
identidades, debate este que nos faz, de algum modo, passar ,Ullu"au d ático?
,nfl',IiJlro, pós-moderno e pós- rama ico
diretamente da idade da pedra para a condição esquizofrênicâ
pós-moderna, para um corpo protético que mistura a carne,
animal e os componentes do computador, um corpo que se
supõe fazer de todos nós felizes ciborgues.
Esplendores e Misérias
da Interpretação
dos Clássicos

está em questão negar que a problemática da encena-


[o dos clássicos, enquanto tal, desapareceu, No entanto, esses
eXtos continuam presentes nos palcos. Não existe nada mais
$I'ecífico para sua abordagem?"l, observa Arme-Françoise Be-
.chamou na sua introdução a um notável "Diálogo com os Clás-
lcos" da revista Outre Scéne. Essas constatações e esta questão
,,ctolócam perfeitamente o problema, resumem bem a situação
'i'atual, porém nos obrigam igualmente a emitir algumas hipó-
';téses sobre a abordagem cénica de peças clássicas no decorrer
(dos últimos vinte anos.
" O que é um clássico? Um clássico, dizia Hemingway, é um
'UVro do qual todo mundo fala, mas que ninguém leu! Acres-
'tentaríamos com prazer: uma peça clássíca é uma obra que
todo mundo leu na escola, mas da qual ninguém quer falar,
'!àtal ponto a lembrança das matinês escolares pesa-lhe ainda,
Nossas lembranças são clássicas por natureza: será que não re-
metem à infância da arte, a esse momento privilegiado em que
um acontecimento único e fundante assume subitamente um
valor exemplar e marca nossa vida? Um exemplo dado rapi-

1 Outre scene, revista do Teatro Nacional de Strassburgo, n. 5, p. 4.


272 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISERIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLAsSICOS 273

damente, pois cada vez é preciso menos tempo para que efeito, é o momento em que os encenadores sentiram-se autori-
obra seja declarada clássica: "Curiosamente, bastam vinte zados a dar sua própria versão das peças do repertório. É sobre
para que um texto se torne tão velho quanto a Eneida. lOrnDOr, esses textos seculares que a encenação assestou sua estratégia
tendo tomado alguma precaução para sobreviver (fotos, de reconquista da literatura universal. Não se compreende esse
magnéticas, notas), o próprio Brecht tornou-se velho, não desenvolvimento, como bem o mostra Didier Plassard, senão
menos difícil para decifrar do que Moliere'". no quadro da evolução da educação e do "alicerce social'" do
Cada época, cada cultura, tem sua própria concepção público. A idade de ouro dos clássicos não aconteceu senão
clássicos. Na França, essa categoria formou-se no século XIX nos anos do pós-guerra, de 1945 a 1965 mais ou menos, na
oposição ao romantismo. O classicismo é uma categoria ) vaga do teatro popular, quando o teatro se beneficiou de um
mas também uma época. "o século de Luís XIV", de acordo prejulgamento favorável que visava educar a população e con-
a expressão de Voltaire. Ele se refere à antiguidade, aos seus tribuir para a mudança política, quando "a sociedade francesa
lares considerados indiscutíveis e universais. De um ponto empreendeu a tarefa de diminuir o seu atraso em matéria de
vista estético, o classicismo reivindica a ordem) a hannonia duração dos estudos médios por habitante'", Esse período é
coerência. Ao visar um equilíbrio entre razão e emoções, obe" seguido "por uma fase de contestação (1965-1975), quando o
dece a regras como a conveniência e a verossimilhança>, ciclo escolar começou a se democratizar, depois por uma fase
Tomaremos o termo clássico menos no sentido histórico de culturalização (1975-1990), quando as portas da universi-
século XVII), do que no sentido em que o empregam os enCeIGa_)), dade se abriram numa proporção grandiosa para aqueles que
dores desde há cem anos atrás: um texto para ser rôdesooberl:o, constituiriam doravante o principal público dos teatros'". Esta
um texto que foi montado inúmeras vezes, no sentido em fase - que teve uma recaída por volta de 1981, com a chegada
o define Halo Calvino: "Os clássicos são esses livros dos qu,ais.:'ji da esquerda ao poder na França - é a do "tudo cultural'; das
sempre ouvimos dizer: 'Eu estou ocupado em relê-lo ...; experiências de teatro intercultural, do "teatro elitista para to-
jamais: 'Eu estou ocupado em lê-lo .. .'''' dos'; segundo a fórmula de Vitez, e coincide com o apogeu do
Poder-se-ia tentar uma história da interpretação de "teatro dos encenadores'; os quais assentam seu poder comu-
clássicas no decorrer dos séculos até hoje. Ver-se-ia que mente no recurso aos clássicos. Depois de 1989 e da queda do
interpretava Racine e Moliére nos séculos XVIII e XIX Muro de Berlim, entrou-se numa fase de instabilidade, de crí-
diferentemente do que no século de Luís XlV. No teatro, tica da mundialização, mas também da colocação em causa do
clássicos têm, assim, uma longa história de condições da relativismo cultural e do teatro antropológico dos anos de 1980
pretação. Fato esse ao qual se adiciona a reputação de se trans-> (Grotóvski, Brook, Barba, Mnouchkine). A palavra de ordem
formar numa nova categoria, com o aparecimento prozressívo implícita pareceu ter-se tornado a de um "teatro igualitário
da encenação ao longo de todo o século XIX, essa encenaçao para mim'; um teatro que enaltece a igualdade de oportuni-
que, por volta do fim do século XIX, toma consciência de dades, na medida única em que me seja favorável, de uma
força e de seu poder de (re)leitura de textos muitíssimas "arte de decepção massíva" cujas armas são inencontráveis.
interpretados ou, ao contrário, caídos no esquecimento. lAlm 'C'ci' Essa crise do pensamento clássico e de sua análise não se

2 A. Vítez, Notes pour Le Précepteur, de Lenz, Écrits surle théâtre, Tome II 5 D. Plassard, Esquisse d'une typologie de la mise en scêne des classíques, Lit-
Scêne, 1954~1975, p. 243. tératures classiques, n. 48.
3 Estas reflexões são feitas a partir do artigo: Classícísme, de F. Dumora-Ma- 6 Idem, p. 252. Ver sobre esta questão: P. Pavls, Quelques raísons sociologiques
bílle, em Paul Aron, Denís Saint-Jacques e Alain Viala (eds.), Le Dictionnaire du succês des classiques au théâtre en France aprês 1945 (1986), Le Théãtre
du íittéraire, p. 96. au croisement des cultures, p. 51-54. (Trad. bras.: O Teatro no Cruzamento de
4 I. Calvino, Pourquoi Iire les classtques. p. 7. (Trad. bras.: Por Que Ler os Clássi- Culturas, São Paulo: Perspectiva, 2008.)
cos, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.) 7 D. Plassard, op. cit., p- 252.
274 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA . ESPLENDORES E MISÉRIAS DA INTERPRETAÇÂO DOS CLAsSICOS 275

coloca, rio entanto) sem futuro nem sem grandeza. Resta.:.>~" ~_ TIPOLOGIA DIFÍCIL
descobrir as potencial~d~des comumente escondidas no
curso pessrmrsta ou CIllICO, resta-nos adivinhar o futu':~:
J
;' rtir dos anos de 1990, temos dificuldade para distinguir di-
uma ilusão teatral. ro:
pantes tipos de encenação dos clássicos. A distância histórica
. :re
- alvez, ainda muito pequena, mas) so b Tetli
do) os "métodos"
meto os)
f~tIl1aneiras de interpretar os clássicos não têm mais nada
1. O "EFEITO CLÁSSICO" .,Je universal e sistemático. Examinando as representações de
'i'Üssicos até por volta de 1980, distinguimos ao mesmo tempo
Desde o descobrimento dos grandes textos, a partir de 18 <~ casa das seguintes figuras lO: .
e mais ainda de 1950 e até os anos de 1960, o famoso "efl' .
clássico" induziu a um efeito de intimidação devido ao p ~) .• "''1. a reconstituição arqueológica;
. dos clá d ." restI:
glO os c aSSICOS e . e sua VIrtude integradora" para quem-'B" , -2.. a historicização;
frequentava e respeitava. Porém, esse efeito não atua mais' 3. a recuperação;
,n
momento, no mesmo sentido: o espectador pensa, acimad' , .4. a prática significante;
u- t~do, que vai encontrar-se no mesmo nível deles e compree~,. ';5. o despedaçamento;
de-los ImedIatamente e sem esforço. Esta intimidação ao coti' .6. o retorno ao mito;
trário dá-nos a ilusão de que os clássicos estão agora no nos" '-.7. a denegação.
nível e que basta considerá-los como nossos contemporâne'"
para que eles o sejam'. Sua assiduidade não é mais sinôni . Esta tipologia fundamentava-se na concepção específica de
de promoção cultural, de ascensão social, de integração à cla~ que cada tipo de trabalho cênico se fazia a partir do texto dr~­
se média. Está até em questão expurgá-los, a fim de colocá-Ió' 'lIlático (até os anos de 1970). Nos perguntamos: essa concepçao
nas normas do politically correct (este já é o caso dos trecho &;,§ê liga 1. à letra do texto; 2. à fabula contada; 3. aos materiais
escolhidos de colégios e liceus). Certas peças, certas cenas, cei ,,';titilizados; 4. aos múltiplos sentidos; 5. à desconstrução da re-
tos achados cênicos são descartados com medo de chocar '.f6rica; 6. ao mito no qual ele finca raízes; 7. à relação direta que
de não passarem pela censura dos islâmicos. Outros são ano ;:;,,~e supõe manter com o espectador?
xados para talou qual comunidade que lhes denega qualquej - Talvez não seja inútil revisitar estas velhas categorias, não
valor universal. Um festival como o de Avignon afasta-se somente para observar o quanto a prática dos anos de 1990
suas origens populares e certos jornalistas inquietam-se de afastou-se delas, mas o quanto, também) às vezes toma em-
os artistas tenham se tornado escondidos e egocêntricos. prestado delas sem o saber.
que leva um observador distante como Régis Debray a se
guntar: "O que seria melhor: o povo privado da arte, cuja
tanto arrepiava Vilar, ou então a arte sem povo) autista e 2.1 A Reconstituição Arqueológica do espetáculo tal como se
de o ser? Os dois estão casados'", Os clássicos sofrem tanto apresentava na sua criação sempre foi uma ilusão, sendo
desaparecimento da arte popular quanto do hermetismo da colocada, às vezes, como o próprio ideal da representação
contemporânea.
dos clássicos. Ela renunciou rapidamente, por pura dificuldade
8 A. Vitez, I:intimidation par nos classiques a pour étrange eonséquenee que 10 P. Pavis, Du texte à la míse en scêne: I'hístoíre traversée, Kodikas/Code, v. 7, n.
leur refusons la qualíté d: classiques pour les croíre modernes, toujours jeunes.. 1-2, p. 24-41. Estas reflexões foram formuladas à margem de uma tese con-
comme nous finalement, Ecrits sur le théâtres, Tome III - La Scéne, 1975-1983, p. sagrada à interpretação de Manvaux no palco dos anos de 1970: Marivaux à
9 Sur le pont davignon, p. 37.
lépreuve de la scêne.
ESPLENDORES E MISÊRIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÁSSICOS 277
276 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

técnica, a reconstruir O passado e a reconstituir o jogo :i· flitos são mostrados na sua relatividade histórica. O en-
n
ator. Longe de ser perfeita, a reconstituição reduzia -se ;.", deam ent o dos eventos d a fáb
·co a u Ia e' ta I que reencontra-
a
;8 , ma história que ainda nos diz respeito hoje em dia.
a um exercício de estilo, a uma distração inútil, a um
delo de representação que "afastava, dessa forma, o ~"b~:d~ os anos de 1960, em plena I~a de mel brechtiana do
co do texto e O seduzia não pela fábula ou pela lirlgtla~!en1; 'teatro de então, vozes como a de Vitez levantavam-se para
mas pelo exotismo da representação"!'. A recons:tit:ui,cà,\; manifestar-se contra essa tendência de querer explicar de-
tornou-se rapidamente uma impostura, um trabalho 'masiado o presente ao fazer dizer, nas peças, aquilo que
ramente formal que se preocupava com detalhes 'nos convém atualmente. Vitez desconfiava e zombava da
lógicos e não o suficiente com a nova relação da obra COim';;'!;' "tualização (de esquerda, com certeza) e da reconstitui-
o público contemporâneo e, portanto, com a ~o pseudomarxista". "A atualização de e.squerda: associa-
induzida pela mudança da recepção. Paradoxalmente, o explícitas entre a peça e os aconteCImentos de nossa
blico achava-se afastado da obra, desviado dela, <11<troi,cl« i'1J()ca (Creonte usa uma braçadeira de cruz gamada... )".
por uma visão do passado. . reconstituição pseudomarxista: evidenciação da luta de
Dessa reconstituição um pouco ingênua, convém cla.SS'" tal como se pode imaginá-Ia (com riscos de erros
,.
guir as representações com declamacão barroca de EULgene consideráveis) em 1399"12.
Green ou de Jean-Denis Monory. Na sua reconstituição Esses procedimentos de reconstituição atualizantes, empres-
Mithridate (Mitrídates), Green trabalhou antes de tudo a tados do Berlíner Ensemble, frequentes em Joan Little,:ood ou
clamação e a gestualidade, cuidando em dizer e fazer em Reger Planchon nOS anos de 1960, tornaram-se mu~to rar~s
o texto, de acordo com aquilo que avalia ter sido a dicção na prática contemporânea. Quando são empregados: na? ~ :ao
versos pelos atores de Racine. As sonoridades de época, o mais do que por gosto do anacronismo e sem pretensao didática.
tema muito codificado dos gestos e das atitudes Falta todo um sistema coerente (porém pesado) de alusões que
I um conjunto que reencontra a sensação da poesia racíniana.. estabeleceriam as passarelas históricas entre as duas épocas.
O trabalho foi admirável no seu espírito e tornou-nos atentos
II' para a fatura técnica da obra. No entanto, habituados a
,
manifestação da situação dramática e da opção 2.3 A Recuperação do Texto como material foi o método mais
escolhida, ficamos "deficitários", privados do prazer da relei- radical para tratar o texto dramático como material sonoro
tura. Ou, dizendo de outra forma, é preciso possuir a arte ou como elementos polissémicos suscetíveis de se combrna-
imaginar a cena, como o faríamos na simples leitura. Pr-n-ém rem para produzir múltiplas interpretações. Com exceção das
essa leitura foi apenas uma "leitura em relevo": a interpretação composições musicais, nas quais o texto reduziu-se, com efeito)
da obra, o sentido, o imaginário cêrrico, faltaram-nos cruel- a uma colagem de sonoridades nas quais a adição não mais faz
mente. Todavia, não é isso o essencial? sentido _ sentido semântico, entenda-se -, o texto não é, no fun-
do, jamais redutível a um "material" (termo fetiche nos anos de
1960 e 1970). Brecht teria adorado utilizar o texto clássico como
2.2 A Historicização é exatamente o contrário da reconstitui- material, porém ele sabia que isso não era possível, tão forte per-
ção arqueológica. Consiste em representar a peça do ponto manecia a noção de propriedade: "essa raiva da possessão impe-
de vista que é o nosso atualmente: situações, personagens, diu que se descobrisse o valor de material bruto dos clássicos, o

12 Idem, À propos de Richard II, Écríts sur le théâtre, Tome II - La Scêne, 1954-
11 A. Vitez, A propos d'Électre, Les Lettres françaíses, n. 1125. 1975, p. 130.
278 A ENCENAÇAO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISÊRIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÃSSICOS 279

que no entanto teria permitido torná-los novamente utilizávei{ ";"cação global final". A pluralidade é mantida graças à multipli-
e a crença de destruí-los reduziu a nada todos os esforços feit'; ,~çãO de enunciadores cênicos (ator, música, ritmo: iluminação
nesse sentido?". Esta crença com o recuo do tempo, poderíamôi' ~fc.), com a recusa de hierarquizar os sistemas de signos e, por-
dizer, era infundada: foi o que se produziu nos anos de 1960". e, ,J,u;to, de interpretar. Peter Brooklouvava a forma shakespearia-
1970, quando encenadores como Robert Wilson utilizaram tis <.0'
,n, a como aberta a "interpretações infinitas", "forma também tão
textos, tanto clássicos quanto contemporâneos, como simplo' )Y:'gaquanto possível, expressa para não dar ínterpretação'">,
"cenografia verbal'; para melhor concentrarem-se na produÇãÓ~ ,di;se elogio da abertura é um grande clássico de nossa época.
de imagens. a resultado valeu, certamente, o sacrifício do te)[~; ':iv!arca a crítica da semiologia dos anos de 1970 ao se haver com
to, pois os espetáculos visuais ultrapassaram em beleza aquiló' ""S;princípio de coerência e fechamento da obra. Com resultados
que se poderia imaginar no palco. Não obstante, isso não foi' osmais diversos, como o da encenação do Anfitrião, de Molié-
uma releitura dos clássicos. a abandono da concepção do t"x~', ';te,por Anatoli Vassiliev na Cornédíe-Française em 2002: quan-
to como material recuperável, que se poderia datar do começó' ;dó,
por exemplo, numa cena interminável os atores manipula-
dos anos de 1980, e do pensamento moralizante do politi~ally vamlongos bastões e panos que depois giravam no espaço. Sua
correct, não conduziu, para tanto) ao desaparecimento do teatro dicção interrompia-se em momentos arbitrários, não previstos
de imagens, muito pelo contrário! ; pela sintaxe. a ritmo global da representação mudava sem pa-
Quando Wilson "montou" as Fábulas, de La Fontaine, na .'rar. Esta fragmentação não tinha nenhum sentido dramatúrgico
Cornédie-Française em 2004, o texto certamente era audível' l._._._._.·,
daro, parecendo, portanto, gratuita e arbitrária. Esse exercício
corretamente pronunciado pelos comediantes, porém a imac'Fi' 'de estilo nos desviava de qualquer leitura da fábula, de qual-
gem e sua beleza subjugante borravam, por assim dizer, a letra quer interpretação. Da mesma maneira, em Thérêse philosophe
do texto, modificavam qualquer perspectiva de (re)leitura das (Teresa Filósofa), nos Ateliers Berthier, do Odéon, em 2007, os
Fábulas: abandonávamos o reino literário clássico, estávamos dois atores fragmentaram o texto do romance dizendo o papel
no domínio das artes plásticas. Mesmo o Dramaturgo de orí-. com fragmentos recortados em plena frase, sem que a operação
gem alemã Hellen Hamrner concordou: ';adquirisse um sentido para a compreensão da frase, muito pelo
contrário. A máquina cénica funcionava muito visualmente, po-
o fio diretivo e os temas rememorados são o fruto de um tr~-~::_:}:r ,tem aplicada à dicção tornava-se uma explicitação muito pesada
balho arquitetural e musical. Joga nos contrastes de situação: gravi'ci;; '~o corpo-máquina.
dade/leveza, burlesco/sério, comédia/tragédia, pessimism%timis<: -
mo, duração/brevidade, bobagem/sabedoria. Joga nos contrastes
de tamanho (leão/mosquito) ou de número (um, dois, três ou uma
muitidão de animais).
;"~ l:': ::e ~1~:~~:~a~:':'r:::O( i;~:r::~:a:t~ut~u~~d~~:x~~:~:~l~l~
A imagem sonorisada substituiu a dramaturgia da palavra. ," 'ii ~,~ é uma prática tornada corrente, uma desconstrução ao pé da
',5[;i 1~Cletra da dramaturgia clássica, uma fragmentação do texto, tão
-:.-", "'cc
:-;"'; ,,;,,,-
14 A prática significante é uma noção da semiótica dos anos del970, aquela de
2.4 A Prática Significante é uma sequela da técnica de recupe- . Roland Barthes, por exemplo: "interpretar um texto é não dar-lhe um sentido
ração. Implica que o texto se abre ao maior número possível deiij'1 (mais ou menos baseado, mais ou menos livre), é, ao contrário, apreciar de
Significações, à pluralidade de sentidos que se contradizem, s.e'" qual plural ele é feito", 5/Z, p. 11.
15 P. Brook, Travail théâtral, n. 18, p. 87.
complementam, se respondem e não se reduzem a uma signi"i 16 A contestação e o despedaçamento da mais ilustre das tragédias francesas, O
Cid, de Pierre Corneílle, seguida de uma "cruel" colocação em morte do autor
13 B. Brecht, Entretien sur les classíques, Écrits sur le théãtre. dramático e de uma distribuição gratuita de diversas conservas culturais.
280 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISÊRIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÁSSICOS 281

"Esse topos, dos anos de 1960, soa totalmente estranho no


~sente. Ninguém sonha) doravante, em conduzir a escritura
'" representação para um substrato mítico. Na maior parte
..tempo, a encenação mostra o detalhe da escritura, perrna-
ce atenta às formas e não simplesmente aos temas universais.
aro que a tragédia, grega, por exemplo, seja reduzida a uma
:;~tração, a um mitos universal.

k'
7',A Denegação da encenação constitui, no fundo, sua situação
'..tural: a encenação está sempre presente, porém quer fazer-se
'""ssar por invisível. Face às peças clássicas muitas vezes "dífí-
'is'; até parcialmente ilegíveis, cujas condições de representação
Sade, Filósofa Teresa, encenação de Anatoli Vassiliev, Odeon, 2007.
,ijermanecem mal conhecidas, a encenação fica tentada a apos-
©Patríce Pavis. iartodas as suas fichas: de confiar somente aos atores a tarefa de
"dizer os textos "sem filtro cultural'; sem o metadiscurso de uma
Às vezes a prática cénica, a maneira de enunciar o texto (neste caso, soletrando-o
sem razão aparente) não produzia nenhum resultado e, assim, não dava o texto
reflexão de conjunto sobre a peça e sua época. Contudo, não há
a reler, nem mesmo a ler. Sob o pretexto de não congelar o texto literário, de nã(j~ ':leitura neutra, universal e imediata: o público entenderá certa-
fetichizá-lo, de não venerá-lo como alguma coisa intocável, Vassiliev foi levado . _'~. mente a letra do texto, mas o sentido nunca, evidentemente.
a triturá-lo, a desritmá-lo a ponto de desfigurá-lo, de tornar a remessa ao sentidd'~
senão impossível, pelo menos comparável ao de um frágil pássaro lastrado .:,:::'~'
de chumbo. Ao invés de vestir o texto, essa atuação picada nos afastou, impedindo
sua fíccionalização, sua metajorízação, a emergência de um sentido possível. _c/-
FIM DA RADICALIDADE, FASCINAÇÃO
frequente no decorrer dos últimos quarenta anos. Desde o Ir' DO PRESENTE
dos anos de 1970, quis-se reconstruir a representação em ped~'­
ços. Pressentiu-se muito que a colagem, tão fácil no papel ou' '."~$ta
tentativa de tipologia para as representações clássicas dos
atuação de trechos escolhidos de cenas, não produzia automà :'ànos de 1950, 60 e 70 é desde logo muito problemática. Ê ain-
ticamente resultados satisfatórios, nem para os sentidos, ne (da mais problemática para a produção "estourada" nos anos de
para a inteligência do texto. /1980 e 90. A época mudou. A abordagem de textos do passado
perdeu sua radicalidade, sua combatividade. Por duas razões,
',segundo Anne-Prançoíse Benhamou:
2.6 O Retorno ao Mito foi, para inúmeros encenadores dqs . . Os clássicos continuam presentes> porém é um pouco como se
anos de 1960 e 70, um meio de ir diretamente ao núcleoes- .asproblernáticas - e as polêmicas -ligadas à sua encenação estives-
sencial de qualquer história, ao mito que a habita e a nutr'é!,;i:' c: sem dissolvidas: seja porque as questões históricas não nos falam

Mito foi tornado no sentido metafórico de fonte, raiz oude'F'; ",,!.; jrlais dessa época de "presentismo", seja porque os guardiões do tem-

ressonância que o texto sugere. Desse modo, em encenaçÕ':-_' 'po e os tenentes da fidelidade à obra tenham desaparecido sob os
,,"~aques da modernidade ou, quelTI sabe, da pós-rnodernídade'".
dos clássicos poloneses, Grotóvski procurou a arqueolog "
e a atualização; procurou nos clássicos o mito esquecidoe,
a lembrança escondida no ser humano. '
Outre scêne, Revue do TNS, n. 5, p. 31.
282 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISERIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÁSSICOS 283

~,
t.. Por que teríamos nós c~ngelado nosso passado? Por 4',ttabalha, também ele, com essa presença temp.oral e espacial do
essa desconfiança com relaçao ao passado e esse culto do p: \';:' Não é mais questão de entregar uma nova leitura da peça, nem
, 'alOr.
sente? Bastaria evocar a aceleração das mudanças, SUa cÓ' G';esmo, de resto, uma leitura muito breve!'? Certamente, seguimos
comitância com a escala global do planeta, a fuga adiante é ';história, porém inúmeras citações de outros textos e, sobretudo,
direção a mais progresso tecnológico e mais lucro, o desd uma constante mudança de diferentes papéis da peça tornam di-
nhecimento das experiências passadas e sua desvalorização, fici!, até impossível, uma leitura linear. O que conta para os três
declínio, a impossibilidade até da análise dramatúrgica, a (' erformers é manter a distância, manter o contato com o público
sência de perspectiva futura? """" ,,', Pusteo que custar, apesar das palavras húngaras, as legendas mui-
Viver no presente não é tão fácil, mesmo que seja aq\ÍiÍWt~i): '>~F ~o longas e literárias. Eles se esforçam para nos fazer viver na sua
a que aspiram, na atualídade, o ator, o espectador e, às veZ~$1~~ J~j,,;, enunciação) na sua performance de atar) na sua presença e na sua
mesmo o a u t o r · ; " : j f ' : . it 'arte do contato. Renunciaram à elaboração de papéis, a colocar-se
,,:h';; ;L'a serviço do autor e de suas intenções. Pretendem transformar-se
'::;;'b,%;: 1/'
em coautores do espetáculo e dirigir-se a nós enquanto cornpa-
3.1 O Atorvive no presente: incumbe-lhe a tarefa de trazertod.lli·~i ';:"nheiros de jogo. Fazem-nos ler algumas passagens da brochura e
a ficção para um ato real, o de um ser humano no hic et nuri~\' 'nos mantêm alertas por facécias incessantemente renovadas. Esse
da interpretação. Porém, essa evidência verifica-se, na maidâ,' exercíciode virtuosidade, essa explosão do ator sempre em sinto-
parte dos casos, com muitos atores e encenadores que tombit ma com seus companheiros, sensível ao público, é extraordinário,
ram sob o charme da performance e da concepção performátiê~l'orém- se a questão for permitida -, será que é ainda uma en-
do teatro. São numerosos, tal como Jean-François Sivadier, quê .cenação da peça de Shakespeare? É Ham-let ou "Let (it be) hum/
constata a importància do partilhamento no teatro: '~. ,.:,,'um" (Não interfira, hum/hum)? Um exercício de ham-acting,
.,}'~g!" .de cabotinismo, um humming, um zumbido permanente e agra-
O partilhamento é essencial no teatro. O partilhamento do tel1)g"'n,,, dável sobre os ternas quase musicais longinquamente inspirados
po e do espaço. E isso nunca é evidente. Sempre tento interrogar,""'" :;. por Ham-Iet? A hipertrofia da função enunciativa às expensas dos
natureza do partilhamento entre os atares e os espectadores. Efetivãt,
mente, isso trabalha muito sob a ideia de se estar no mesmo tempo dóf
,"." r,
euunciados não interdita qualquer releitura da peça? Neste caso es-
público. Se eu estou na plateia e tenho a impressão de que o ator nãg . 'pecífico,não é provavelmente o objetivo. O fato de nos "dizer" que
está em condições de responder a uma imagem de ficção, mas simd~ • se interpreta Hamlet, sem dá-lo a compreender, é suficiente para
confrontar-se diante de mim e comigo com relação a um texto ou .(1. nossa felicidade atual? Esse exercício de virtuosismo e de presença
espaço, vou ter a impressão de estar ao lado dele no tablado". ' será apreciado por quem já conhece a peça ou por quem não tem
nenhuma intenção de tomar conhecimento dela, nem mesmo de
Em A Morte de Danton, de Büch ner, Sivadier começava pof< ler um entendimento mais amplo sobre ela. No tocante à releitura,
colocar o conjunto dos atores de frente para o público, como se:;' "Tlão seria o problema neste caso: a função performativa, por muito
quisesse partir de sua realidade de ator e cidadão para interpelá'r'(' ,tempo dominante, ocupa no momento todas as praias.
-Ios e inscrevê-los pouco a pouco e sem ruptura na ficção Mi!'
Büchner. Os atores cuidavam a seguir dessa presença pessoàl::
como se fossem performers, atores concretos e cidadãos ante§,~, " 32 O Espectador está diretamente relacionado a essa presença
de estarem a serviço da f i c ç ã o . . , invasiva do performer. Ele haverá de sentir-se lisonjeado ou,
Esse procedimento é doravante frequente. Na encenação d.~j;} ao contrário, irritado por tal solicitude. Ao conceder-lhe um
Hamlet, com apenas três atores masculinos, Árpád Schilling
·;:f.'--;~
18 I'Acteur au rendez-vous de l'instant et du passé, Revue do TNS, p. 35. 19 Encenação em Avígnon, julho de 2005.
284 A ENCENAÇÂO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISÉRIAS DA [NTERPRETAÇAO DOS CLÂSSICOS 285

acesso direto, espontâneo, ao texto, e, portanto; limitando{ i"" esquisa: "Trabalhar o texto como texto é pressupor que há
voluntariamente toda e qualquer explicação por meio das a~ racoerência - com todas as suas contradições. E dizer que
cênicas, toda e qualquer concepção que se aventurasse a eu "acoisa foi pensada, desejada, compreendida inconsciente-
brir esse acesso) o encenador não estaria depositand-, esper':· ente e que forma um todo: o todo de um autor"". Em seu
ça demasiada nas faculdades do espectador? Se o seu inter€-' 'santropo, Braunschweig reconstitui um Alceste "inteiro", não
está na enunciação ,e na performance, na fruição do momeri '-'mente no sentido caracteriológico do termo. O "todo do au-
o espectador corre O risco, também, de renunciar bem depr.;" ':"r" é a concepção global, estruturalmente ambígua, de Molie-
àquilo que a peça poderia lhe trazer no dia de hoje, inclusive'· .seu Alceste é sincero, mas também fanático e, portanto, pe-
termos de sua compreensão da obra e do mundo. Não obsta' W~6S0. É deplorável, infantil, atraente, mas igualmente imaturo,
às vezes, O milagre se produz. O espectador é interpelado foi'dt'culo
.,p, e egocêntrico. O problema não é saber se parece com
mesmo tempo no mais profundo de si mesmo e amplias'- '}e'll criador, mas sim se é legível no conjunto do pensamento da
campo de conhecimento. Quando, em A Morte de Dantd , ",'esquisa sobre Moliere. E é consideravelmente este o caso, pois
o atar Ernst Stôtzner-", no papel de Robespierre, coloca,t ;~diamaturgiado espetáculo soube reconstituir a perspectiva de
frente ao público e dirige-se a ele como o faria um ator fraii "\~ónjunto. Muito seguramente, essa dramaturgia não é sensível
cês, falando aos espectadores sobre o problema dos inter senão ao ator: ele é a interface, por meio do seu imaginário e de
~lla aparência física, entre o mundo exterior e o texto ancorado
tentes" do espetáculo, nós o escutamos com aguda atençãd'
-rtluna época, atual ou passada. Corpo condutor intermediário,
sua apologia do terror parece ilustrar a nossa atualidadsf
Xbator faz a ligação entre o texto e o mundo exterior no qual
alcance político desse discurso, por mais fortuito que s' 'Fd'encenador "se abastece". De que maneira, a partir disso, não
não é menos evidente. Todos os endereçamentos ao púbIl'
';sêrfiel e infiel, representante autêntico do autor e passageiro
brechtianos ou não, nada têm dessa força, porém obrígi
.clandestino enviado pelo encenador?
ao menos a sugerir a ilusão referencial em proveito de
,. Ora, essa coerência, que no caso provém da leitura global
despertar vigoroso da consciência crítica, até política. ·."rigorosa, nem sempre é suficiente, admitindo-se que a ence-
:I)açãO seja coerente e bem administrada. É o que ocorre com a
rsão de Hedda Gabler, de Ibsen, proposta por Thomas Oster-
3.3 O Autor é o terceiro e indispensável termo desta nova eq,_- :-.•meíer", na Schaubühne. A peça é habilmente atualizada. Ela é
ção. Anne-Françoise Benhamou observa que "nos anos de l'Ji 'j.eJctraída de seu meio naturalista norueguês, deslocado que foi
sob a influência do estruturalismo e da suposta 'morte do sujeiê 'para nossa época e para um interior burguês alemão e bobo"
a figura do autor tinha quase desaparecido da teoria literári ,.-lleoeuropeu. Acreditando-se no programa (não assinado), a
e, por ricochete, da encenação de clássicos. Hoje, ela faz o s.: Dleroína teria se suicidado porque achava que os seus projetos
retorno">'. Esse retorno é sensível não apenas nas declarações el- .;de futuro seriam aniquilados pela volta inopinada de Lovborg,
encenadores, mas, sobretudo, na maneira pela qual a nos -"que arriscaria retomar o cargo de professor de seu marido. É
de autor permite ultrapassar a fragmentação de materiais, e_ }uanifestamente um contrassenso quando se lê a peça: Hedda
contrando uma coerência para além dos pedacinhos de text . -iIiata-se para escapar à chantagem do juiz Brack, por decepção
Stéphane Braunschweig observa, a propósito de seu métodç, .";Írnorosa, por desgosto pela mediocridade dos que a rodeiam,
20 Na encenação de Thomas Thíeme, no Stadttheater de Bochum, 2006.
* Intermitentes do espetáculo: na cena francesa, artistas sem vínculos tral)alh,iS':; . :"22 Idem, p. 57, e em Petites portes, grande paysages, p. 289.
tas e sem continuidade de trabalho (N. da T.). - 23 Vista no teatro dos Gémeaux, Sceaux, janeiro de 2007.
21 A.-E Benhamou op. clt., p. 58. Retomado em S. Braunschweig, '* Contração de bourgeoís-bohême, no sentido de "esquerda-caviar" ou "esquerda
grands paysages, p- 290. festiva" (N. da E.).
286 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA .ESPLENDORES E MIS~RIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÂSSICOS 287

e não absolutamente por medo da decadência social, o Ões cênicas de Racine nas quais o corpo desempenha papel
supostamente parece ser a imagem de "nosso drama coletiv 'iraI. Alguns exemplos:
A bem dizer, a interpretação cênica diz coisa distinta, não é
errónea quanto sugere o programa: as motivações de He ~:'iPara Berenice, o coreógrafo Bernard Montet e o encenador
permanecem ambíguas, ligadas mais a um desespero exist ;gdéric Fisbach utilizaram ao mesmo tempo atares e dança-
cial do que a considerações econômicas (porém, como sabe' '(Js". Segundo eles, o corpo é mais rápido do que a palavra:
Seja qual for essa leitura (que se supõe ser a do dramat\1 "br momentos, o corpo, o movimento, o espaço podem di-
Marius von Mayenburg, mencionado como tal no progranJ' 'i/melhor do que as palavras'?". A presença do corpo chega,
ela não faz justiça à "totalidade do autor'; revestindo a peç~/ ião, através do texto, que se prolonga nesse corpo. Dança e
preocupações ou obsessões atuais estranhas às de Ibsen. A i' tro coexistem sem que um engula o outro. A dança com o
lo que, há trinta anos, teria passado por uma leitura "prod 'te){t0 ouvido pelo alto-falante instaura uma atmosfera, famí-
tiva", por uma "releitura", por uma descoberta que haveria'd ;ttárizada com a fábula, antes do verdadeiro começo da palavra
renovar o nosso conhecimento sobre o texto (como se dizi" 'tê'tral. As palavras são trocadas, os corpos são afastados uns
atualmente nos choca como um abuso de poder e como u 'iiós outros ou separados por um vidro; Tito e Berenice não se
insuficiência de leitura, de uma leitura "presunçosa" até.! jhI1tam senão num curto instante, exatamente antes da sepa-
Contudo, essa leitura presunçosa não se tornou a regra. Sef ir~ção definitiva.
antes de mais nada) exatamente o contrário: a encenação he;: "'" Na encenação de Ifigênia, Ophélia Teillaud domina perfei-
muitas vezes em formular uma tese muito ousada) muito contê ','Iamente a dicção ao impor um desempenho totalmente físico
porànea, muito específica apenas para o encenador. O teatro n }'i:oI1duzido pela linguagem. Longe de procurar uma chave de
acalenta mais a ilusão de nos fazer compreender melhor o mun ' 'Ova leitura, inspirada em Barthes, Goldmann ou qualquer
e menos ainda de transformá-lo graças aos poderes da arte. ,": ,outro estruturalista que tenha sobrevivido aos anos de 1960,
Vivendo mais ancorados no presente, o ator, o espectad_ este trabalho coloca lado a lado e em seguida integra duas li-
e o autor mudaram as regras do jogo: os clássicos não são ma :rthas de pesquisa: de uma parte, uma dicção que não seja "ar-
uma coisa do passado, que teríamos de uma vez por todas el, :queológica" - como em Eugêne Green -, mas que respeite as
sificado e enfileirado como casos separados. Ousamos, Iéís do alexandrino, sem limitá-lo a uma música abstrata, e que
tanto, esboçar algumas das novas formas de encenação ;pottanto, deixe passar as emoções do personagem em situa-
últimos vinte anos. ",ção; de outra parte, uma expressão cênica e corporal que dá a
ver e a sentir novamente os deslocamentos, os entrechoques,
os bloqueamentos, os conflitos de corpos em revolta. Esse
4. NOVAS FORMAS PARA VELHOS PROBLEMAS ",confronto é tanto nuançado quanto mitigado. Com efeito,
'.declamação não é interceptada pelo corpo, está sempre
4.1 A Reemergência do Corpo ':'tãprisionada pela expressão corporal, a qual não é mais, como
;..I)OS anos de 1960 e 70, uma forma individual, "expressionista"
Na peça clássica, supõe-se que o corpo desapareça por 'desencadeada e desarticulada. As pulsões do corpo e das pai-
sentido e das palavras. Porém, a partir do momento em que )i[ões, por exemplo, a cólera de Aquiles, o desejo, a obediência
últimas são pronunciadas no palco e conduzidas pelo ator, o cO'1'cí1f: ':,juvenil de lfigênia, a opacidade surda e massiva de Agamêm-
retoma seus direitos. Que se pense nas inumeráveis interpr,e-;,'" r'J.;Lon são imediatamente sensíveis e comunicadas ao espectador.
(: 25 Representação no Théâtre de la Cité uníversítaíre, fevereiro de 2001.
24 Programa, Sceaux, Théâtre des Gémeaux, 2007. '. 26 Prédérlc Fisbach, notas no dossiê de imprensa.
288 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISÊRIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÁSSICOS 289

A peça de Racine vê-se revivificada, habitada gestual e p~


nalmente, tratada como origem e arena de pulsões corp"
pela ordem militar patriarcal. A crueldade, no sentido d
taud, encontra sua origem na violência das situações (sacri
assassinato, desejo de poder) que se encarnam nos constr
mentos do alexandrino, da etiqueta e da fábula. Devido a
de a distribuição das mulheres ser cambíável (os homen'
mais estáveis), o corpo feminino é variável e global: repro
do na mesma idade e na mesma aparência é ao mesmo te'
vibrante, liberado, estético e martirizado, exposto e consu "
no altar de sacrificio "naturalmente" feminino, entregue à
versidade dos jogos de poder. Aquíles, o colérico, e Uliss'<f
ambíguo, são impotentes nesta história de sacrificio fem;,\
que os ultrapassa; a experiência acaba bem, tudo termina' --;;~, jjigênía, encenação de Ophélía Teillaud.
Esta realização integra e reconcilia um conhecimento ínti ,,_uy Dêfahaye.
do texto com um trabalho físico individual dos atores.
• Ao comparar os espetáculos de Luc Bondy e Patrice Chér
sobre a Pedra, de Racine, interpretados respectivamente '
2002 e 2004, tomamos consciência da utilização diferend~
dos corpos. A intérprete de Bondy, Valérie Dréville, usaur
0' A Reapropriação da Língua Clássica
roupa revestida com correntes de ouro, prisão dourada de ' "'iingua formal do alexandrino, tanto na tragédia como na co-
corpo supliciado. Sua aparência sugere uma origem arca, 'édia, representa um desafio simbólico capitaL Na maior parte
selvagem, mítica, que de resto é a da filha de Minos e Pasi .tempo, os atores respeitam-lhe a forma, especialmente o nú-
A dicção ressente-se desse jogo muito visceral, "artaudíanot "1'0 de pés e as diereses. O apuro aplicado na dicção correta
dicção de Valérie Dréville respeita demasiado bem a forma' " O impede, aliás, uma modernização e uma atualização do
alexandrino, porém a dos demais intérpretes, especialmente ,tontexto da peça. Constata-se isso em Stéphane Braunschweig,
do atol' que interpreta Hipólito, é muito "psicológica", mtiL "'\'oino também em Benoit Lambert na sua apresentação do Mi-
distante e frouxa. Em contrapartida, a intérprete de Chéreài ',antropo. A alternativa não é mais modernizar ou conservar.
Dominique Blanc, é muito mais contida nas suas emoções !fAdicção impecável dos versos torna os anacronismos cênicos
síveis e dobra-se à coleira de ferro do alexandrino. Sua atuaçãí Hro leitmotiv pronunciado por todos em momentos diferentes
e mais ainda a de Éric Ruf e de Michel Duchaussoy, atores'd[, ~("ficai, eu vos peço ...") ainda mais engraçados. O respeito à le-
Comédie-Française, é muito dirigida, atenta à retórica da fra "l:l',tra não impede as reviravoltas inesperadas: "Do seu modo de
e, se ousamos dizer, mais viteaíana'" do que chereaudiana. S "'Sagir, eu não gosto", declara Alceste a Celimêne no começo do
mente Patrice Chéreau conseguiu fazer compreender e sen ,~segundo ato, ao se arrumar, o que dá a essa observação uma
a íntima ligação do alexandrino, reforçando a lingua e o cort i):onotação totalmente distinta. As excentricidades de Oronte,
submetido à lei da linguagem. roqueiro e dançarino, as roupas contemporâneas, as canções
"dos admiradores de Celiméne ao microfone, todas estas gags
eljlUito bem-sucedidas, não fazem perder de vista as problemá-
27 Lembramos que Dominique Blanc sustentava o papel de Céllmêne na
nação do Misantropo por Vítez, em 1988. em Chaillot. ticas da peça; elas a recolocam num contexto atual, sem, no
A ENCEN.À_ÇAOCONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISÉRIAS DA INTERPRETAÇAO DOS CLÁSSICOS 291
290

entanto, banalizar a fábula original. Trata-se de mostrar'; -á A declamação de poemas é mais ~o que um recital: a
Lambert, "de que maneira a língua de Moliere continuai c a e a organização de poemas e cançoes constituem urna
vel a partir do momento em que atravessa os corpos d~' -turgia de relações entre os sexos e do desejo feminino,
E trata-se, nesse caso, de perseguir o confronto entre a c' 'broo os encaramos, outrora e atualmente. Tudo está na
sábia que herdamos e a cultura de contrabando qual nó a do homem, no seu livro, enquanto a mulher, apesar
forjamos'?". O equilíbrio é milagrosamente mantido e o P. hgimentos codificados, gua:da o sentido das realidades.
co, especialmente o jovem, parece que faz a ligação entr' .JI)purra o homem para suas últírnas tnnc~elras: esgotado
mundo e aquele de Moliêre, esforços repetidos, o pobre homem e constrangido a
Ri?:er--Se Disso decorre um constrangimento feminino ines-
é preciso trair, abandonar o amante para partir não se
4.3 A Reconstituição em Declamação Barroca onde, lá onde o desejo chamar:

Além de Eugénc Green, encenadores corno Jean-Denis Devo preparar-me para esse dia funesto
Em que, apesar do meu ardor fiei,
nory e Bénédicte Lavocat esforçam-se para reconstituir a
O destino me constrange, fazendo corar o amor,
clamação barroca. '. A trair meu amante, abandoná-lo simplesmente?
La Ruelle des plaisirs (A Viela dos Prazeres) é uma md Oh dor! Tal não posso aceitar,
tagem de poemas eróticos de Ronsard a Saínt-Amant, de Be E na entanto é preciso partir.
leau a Louise Labbé*, ditos e "interpretados" em declamaç[ (Saínt-Amant.)
barroca por Bastien Ossart e Bénédicte Lavocat, sob a dire"
desta última. É um percurso muito agradável e refinado atrav declamação barroca funciona perfeitamente neste caso,
da poesia erótica desconhecida dos séculos XVI e XVII. Peí '6is a gestualidade, que nos parece, e que já parecia na época,
com delicadeza, o espetáculo jamais cai na vulgaridade gra/íilil pouco artificial e especiosa, serve muito bem ao propósito.
à elegante distância constantemente mantida entre a pala" Àódiminuir a velocidade do impacto das palavras cruas e das
e a coisa, entre a linguagem muitas vezes crua, embora po 'álidades sexuais, ela é corno um filtro, ajudando a estiliza-
ca, e a coisa poética, embora profundamente crua. A irônii;W: :'[ioea alusão, embelezando e distanciando a palavra liberada.
distância entre a palavra e o ato também é a de um traves\i~' sa desaceleração não prejudica a dinâmica da encenação, à
mento literário corno o praticavam os séculos XVI! e XVIII. SO. . , iferença da declamação de uma tragédia ou, muito mais ain-
urna forma deslumbrante e espiritual, falam-se de realidad~\::~: 'da, de uma comédia.
sexuais ousadas, submetidas a tabus e por vezes derrisória~ig.;l Desse modo, este desempenho através da declamação é
Este pequeno espetáculo é, sob este ponto de vista, uma grand~.'{ ifi)uito problemático para a encenação de uma comédia, corno
conquista, uma pérola rara: os dois atores conseguem sugerit:i~"}o.casode Médico à Força, de Molíere, realizada por Jean-Denis
"a coisa" com poses e atitudes perfeitamente dominadas, Se#í;("Monory. Para a comédia, na verdade, a interpretação produz
contato físico. A mulher retoma os estereótipos esperados:~~J:\~:ómefeito contrário: freia e às vezes aniquila os efeitos cómicos,
repressão feminina, cuja pessoa não é tola, enquanto o hom~JI):::':' -'~~pecialmente os verbais, impede-nos de reagir "ao quarto de
consome-se de amor, mas a passos contados e medindo seu~:t"humor'; provoca urna espécie de "retardamento da ignição';
-_. . instiga-nos ao "gosto pelo imaginário", como dizia Roxane a
28 Note Iímínaíre sur les classlques. Dossíê de imprensa. Théâtre de Malak(J~t~;~":.:~ ._ .:êhristian em Cyrano de Bergerac.
janeiro de 2007. .; .... " 1 d
* Pierre Ronsard, 1524-1585; Marc-Antoíne de Gírard Saint-Amant, lS94-16ti~) ),~k "\:.. Tais são) talvez, os limites da declamação barroca ap ica a
Rérni Belleau, 1528-1577; e Louíse Lebbé, 1526-1565 (N. da T.).
,i,.
i~,'){ ;:t.Aindistintamente
't?"':
a todos os gêneros. Para uma tragédia como
.~,
292 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA '- ESPLENDORES E MISÉRIAS DA INTERPRETAÇAo DOSCLÃSSICOS 293

',"Recontextualização" da Encenação

no caso de Benoit Lambert e Stéphane Braunschweig, a


'ação se esforça mais para aproximar o passado do presen-
':·_'que o inverso. A «recontextualização", essa "transposição
~ão dramática para novos referentes espaçotemporais"?",
"á~se, portanto, num meio familiar ao público atua!. Para
is"ntropo de Lambert, nossa época é figurada pelo gru-
o redor de Alceste, constantemente presente no palco,
iferente àquilo que acontece no primeiro plano. Fuma,
'la;diverte-se, longe da imagem negativa que Alceste gos-
i~de dar-lhe. No mesmo espírito, o Misantropo de Brauns-
"eig não é deslocado para seu contexto histórico, remete
, .
' Coletívo, A Viela dos Prazeres, encenação de Bénédícte Lovocat, 'Ihéãtre âu
Ranelagh, junho de 2007.
etalmente nosso reflexo a um imenso espelho. Gestualidade,
"ji1portamento, figurinos, ajudam-nos a nos encontrarmos,
Foto 7héâtre de la Fabrica. ©Pierre Hajek. ','ijilanto a dicção nos faz alguma concessão na frouxa lingua-
ÍIlcontemporânea: como tudo que fazem Lassalle e Brauns-
weig, ela é hipercorreta sem ser arcaizante, e contribui para
Andrômaca, encenada por Iean-Denis Monory, a interpretáC <i:ompreensão dos mecanismos da peça. A precisão vocal
barroca dava acesso à língua poética ao concentrar-se na expi 'iídé, assim, unicamente formal, porém ajuda a compreen-
são das paixões. A desaceleração, os efeitos do francês "carne '\rde que forma se articula o pensamento do personagem
nês" ou quebequense nos divertiam e nos distraíam um pouc 'do autor.
nós os colocávamos à conta da verdade histórica e acabáva
por aceitá-los. Esta ascese e esta concentração aguda faziam,
apreciar o poema dramático raciniano. As emoções eram m 4,:5 Recontextualização Radical ou Pertinente?
tidas por um momento nas poses dos ateres, as paixões inscí
viam-se nas suas atitudes, o pathos vibrava até a ponta de s~ .Se'a recontextualização da fábula parece evidente, particular-
dedos, as posições dos membros e dos dedos correspondiam :r~;')jú~nte para a comédia, ela é, entretanto) mais ou menos "feliz":
pensamentos e emoções muito precisos. No entanto, para ue, 2~';,;aJfecontextualização mais radical não é necessariamente a mais
~-<;>-,
comédia, e com mais razão para uma farsa de Moliere, a op~f ~(,,'usta. Quando Ostermeier situa o Woyzeck, de Büchner, na boca
ção barroca justifica-se menos, permanece como uma curiosídi de esgoto de uma grande metrópole da Europa Oriental, en-
de literária: a peça se desvitaliza porque o movimento animá ntra certamente uma metáfora poderosa da situação atual de
e o corpo liberado da coleira de ferro da declamação e da ge" ·'~el1 antí-heróí, porém isso modifica o sistema de personagens.
tualidade codificada tornam-na cruelmente falha. Em oposição .woyzeck não é tanto a vítima da bestialidade do exército e da
a poesia, com mais razão a de uma montagem dramatúrgi~~* . medicina quanto o bode expiatório de mafiosos e traficantes de
eficaz como a citada anteriormente, presta-se admiravelmente. todos os níveis. Perguntamo-nos por que ele viola Maria depois
a essa fantasia antiquizante que é a declamação barroca, a parti! tê-la assassinado. A violência dos quadros, sua coerência
do momento em que encoraja o espectador a concentrar-se n~;;"
linguagem das paixões ou nas alusões da poesia erótica. ,-, 29 D. Plassard, op. cit., p. 248.
294 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA ESPLENDORES E MIS~RIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÂSSICOS 295

visual, seu esteticismo, a hábil montagem dos.trecho s mu ;NOVA RELAÇÃO COM A TRADIÇÃO
(sequência de rap ao vivo e como bónus), tudo isso não'
fazer esquecer a indigência da análise dramatúrgica. Pod "terpretação de peças clássicas depende da relação que o teatro
mos fazer a mesma observação para os espetáculos de .' tém com a tradição. Essa relação não para de evoluir, pois o
Castorf: a coerência estilística e a provocação são, certam . ado torna-se objeto de reavaliação permanente e o leitor e o
adequadas, porém obscurecem mais do que esclarecem a . "nador dispõem de ferramentas que, também elas, evoluem
Ou seria o caso de dizer que a análise dramatúrgica pJf 'função do tempo transcorrido e dos métodos de análise do
todo interesse e toda pertínêncíat> .... i mento. Estamos longe da visão um pouco ingênua dos anos de
Nem sempre e não necessariamente! As frias provoct 50 e 60, que pretendia renovar as obras do passado ao "rnoder-
irónicas de Christoph Marthaler, esse lento furacão vind' :á~las': ao «desempoeirá-las". Vitez zombava dessa «faxina":
Suíça, provam-nos o contrário. Na encenação na Ópera d'
ris de Bodas de Fígaro, ele cria, com sua fiel cenógrafa, Á . ,Nada me parece mais tolo do que essa ideia: desempoeirar os
Viebrock, todo um universo da banalidade quotidiana: estÍl' ssicos. Como se, sob a poeira, o sentido pudesse aparecer nu, puro,
no hall de entrada impessoal de um cartório de registrO", iiÍhante, dourado. Não, não é assim que as coisas acontecem. Existem
suíço. O conde é um porteiro de uniforme, Susana uma serve ê?'b'dos, tradições, escolas, o estilo sempre esconde outra coisa, outro
ésano, geralmente político, e não necessariamente ligado às ideias
de avental branco. Na jaula envidraçada da loja, emprega'
:;i;llticas das obras em si mesmas: às formas, antes de mais nada".
afobam-se. Um gago não consegue cantar senão quando ..,
desferido um violento tapa nas costas. O recitativo é asse'
Esse desafio é político - Vitez tem muita razão - e é preciso
rado por um indivíduo lunático (Iôrg Kienberger), espécie
'rocurá-Io nas formas utilizadas, nas formas de atuação e de
Groucho Marx que faz vibrar e cantar garrafas num tabl .
llcenação. O encenador pode escolher aproximar-se o mais
um número musical diversamente apreciado por melómallri'
if6ssível do seu objeto e da maneira pela qual a peça foi inter-
Por uma espécie de "efeito Deschamps" (do nome dos prim
R~etada na sua criação, ou, muito ao contrário, virar as costas
ros atores de [érôrne Deschamps e Macha Makeíef), Marth .
ara essas circunstâncias e inventar um modo de interpretação
cria um mundo visual do tédio quotidiano, com criaturas o:
í!sligado do seu modelo de origem.
nárias acentuando a imbecilidade, porém "esboçadas" aov
. Na encenação de Mitrídates, de Racine, em declamação
com humor e ternura. Põe em destaque, em cães de faia;
,atroca, Eugene Green recitou "uma arte teatral esquecida há
dois universos antitétícos: a mediocridade pequeno-bur .
dois séculos":
e a sublime música mozartiana. Essa dessacralização não
ao gosto de todos os endinheirados e volta rapidamente ,'. Redescobrimos que qualquer texto lido ou recitado em público exi-
procedimento fácil. No entanto, esta piscada cúmplice nul).~~; '!,giá outrorauma "palavra eloquente': o que envolvia uma dicção e uma
se reduz a uma pura provocação ou a uma franca paródia...·'··,·· .pronúncía totalmente diferentes da dicção e da pronúncia que tinham
que zombamos, em suma? Não tanto dos pequenos home 3._ç.urso na mesma época na conversação corrente. A declamação aproxima-
quanto de nós, espectadores supostamente cultivados, que p.' }::ya-se do canto, e Lully, o criador da ópera francesa, convidava seus can-
curamos a beleza nas obras sublimes e que somos incapazes. "tores a irem escutar os atares de Racine. A própria interpretação teatral
descobri-las no quotidiano. .'estava a serviço dessa palavra eloquente, gestos e expressões do semblante,
.':.Visando sublinhar as palavras e a valorização dos conflitos e paíxões".

30 Para uma análise mais completa da representação, ver P. Pavis, Wovzeck 31 Brítannícus (1981), Écrits SUT Ie théâtre, Tome III - La Scêne 1975-1983, p. 216.
cour d'honneur, 'Iheãtre/Publíc; ver mais adiante a análise de Dans '" J""K""· 32 Georges Porestíer; Quelques mots sur le spectacle, programa de Mithridate,
. des vílles (Na Selva das Cidades), dirigida por Castorf. Théâtre de la Sapience, maio de 1999.
297
296 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA RES E MISÊRIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÁSSICOS
ESp~ENDO

o espectador de hoje não deixará de ficar surpreso' a r a os encenadores a tradição é muitas vezes,
o entan t o, P . -
vir essa declamação, que lhe parecerá arcaica. Porém, Se~, , . mente a tradição de papal, a da geraçao ante-
.s prOSaica ' . . d
Georges Forestier, o público do século XVII não estava g " C storf Ostermeler ou Thalheimer, trata-se e
-,;para os a
{' '
, ' I
Regietheater" de um Peter Stein, de um C aus
afastado dessa "palavra eloquente">', que sentia como u' 'rw~rno . .
digo artístico e artificial. A partir disso, o público do s; g', de um Peter Zadek. Na França, os paIS parecem
tmanü ou . , ' .
xxr deve concentrar-se na performance vocal e plástica, " d s do que infamados. Nmguem sonha em rejer-
ora o
renunciar a descobnr uma nova leitura da peça e a ler as" "slgn d mente Copeau ou Vilar, nem mesmo Ch'ereau ou
norneê
.: a
O ue os encenadores quadragenanos .' f ranceses re-
ções dos personagens fora das codificações da expressão f n. q
ncho
,< 'antes de tudo a tradicão do teatro d e arte, "b em
e das atitudes codificadas e mantidas pelos "declamador' es; taID sena" ). > • - b
traços do semblante e as atitudes são magnificados pela iI'" • do" rínco e coerente. MUltOS se consIderam, nao o Sr-
-arrao,c . d-
nação a vela, são igualmente legíveis "à luz" da pintura da ' J< ' t o título nessa mesma linha de um teatro e qua
teeajUS ' -
ca. Esta forma reconstituída, mesmo que não tenha sidoÍ< (ide, Não se trata, como no caso de seus primos alemaes,
de maneira historicamente exata, está pelo menos próxim eb ' os a qualquer autoridade, de revoltar-se contra a cor-
S)1 rruss , ísb h
sdua origem. Tem o mérito de nos obrigar a reler essa "po~~ 'ão OU a pretensão crítica e política dos paIS. Os FIS ac ,
ramática" ao imaginar sua performance vocal e visual. <c: ,'i 'd' Lacascade ou Braunschweig concordam pelo menos
va ler, , id d d
Na maior parte do tempo, a interpretação não tem maisW tobre a necessidade de inscrever-se na contmui a e a ence-
nhuma relação com a tradição. Chega a acontecer, às vezes,:"" ~ção de textos do repertório. _
a peça tenha sido escolhida justamente para fazer um acerto" ,o que resta para esses encenadores, france~es o.u alemães,
contas com a interpretação. É comum o caso nas montage' , ' o , é manifestar uma desconfiança nao dissimulada
"o_mlll1m cc •
-ensacadas de Frank Castorf, que conhece bem a inclina'; ','t geração precedente. Não mais acreditam num SIstema
n ra a '1' ' t
pequeno-burguesa de assistir com deleite moroso à destrui( 't' tativo, globalizante (por exemplo, a ana ise marxis a,
erpre h' .'
sem rodeios de uma obra prima de sua infância. Com Mei 'psicanálise, o feminismo)"". Não são ost:s a priOri e por
tersinger (Mestre Cantor), "a partir de Wagner 'e Ernst Toul .- , ia às análises teóricas ínspíradas nas CIenCIas humanas,
nncip I' -
Castorf escolheu a ópera que "não se constituiu impunemei 'snão pretendem atribuir à obra montada uma exp icaçao
te no ponto máximo da obra de arte total nacional-socíalísi globalou definitiva. Aquilo que, trinta anos antes deles: parecIa
de 1933"34. Ele a monta numa cenograrfia trash, "degenerada ;evidente: a universalidade da imagem, do rranshnguísmc- da
como se dizia outrora tanto entre os nazistas quanto entre '-;;~ "g~stualidadeexpressiva, da festa, não está mais c~mpletamente
stalinistas, e o contraste com a música e a cenografia de orige", (~vidente, nem para eles nem para as teorras atuais, O teatro,da
wagneriana é no mínimo surpreendente e provocador. Graça' 'lmagem, que deve tanto a Robert Wilson, perdeu sua eVlden-
a um cavalo de Troía, os artistas entram literalmente no m -;' ciaestética. O teatro intercultural criou para os atores culturas
numento wagneriano. As gags cénicas se repetem, as citaçõe ';elínguas diferentes, especialmente em Brook, transf?rmou-se
revolucionárias de Toller perdem qualquer sentido, tornamos ",'no objeto das criticas, muitas vezes injusta~,e demagógíces ~,or
involuntariamente paródicas devido ao seu excesso, A ideia 'parte de intelectuais, não obstante rnutto o~'dentahzados, e
Godard ou de Mesguich nos anos de 1960 ou 1970, de incorpé- " não progride mais. A expressão corporal, salda da contracul-
rar citações estranhas à obra, perdeu sua força de provocação tura dos anos de 1960, da festa celebrada pelo Théâtre du Soletl
e qualquer justificação crítica. nos seus inícios, são sentidas no presente corno muito apro-

35 O Regietheater, teatro da encenação, é na Alemanha o teatro que carrega a


33 Ver o livro de E. Green, La Parole baroque: Essaí. marca e a assinatura de um encenador.
34 Nota de Frank Castorf no programa, 2007. 36 D. Plassard, op. cit., p. 252.
298 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA 299
ESPLENDORES E MISÊRIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÁSSICOS

ximativas e mal dominadas pelos jovens artistas" S . ,'c' "i:,':"se se tratasse de achar escusas médicas para sua neurose.
supostos ideológicos, a liberação dos corpos e dos '" de~s, ,\~. tido mais por seus excessos do que pelo ridículo das si-
11 lví
por exemplo, são retomados em q u e s t ã o . . 1i.e:'s. Há pouco lugar para o puro jogo e para a teatralida~e
A tradição, sabe-se) não é mais como era: não se P d::": ".dram a sombrio. Sentimo-nos sempre mal ao debochar e
imaginá-la e ela é suspeita. Porém cada artista > que r oo qu
_ • _ ) L
e; doente, mesmo que seja imaginári? A célebre voz de rvr.' chel
ou nao, reexamma sua relaçao corn essa tradição P , ,>quet, tão forte nesse corpo doentio, reforça a Impressao de
. ara'~ .'
crever essas mudanças recentes na interpretacão dos I ' ; \i:ivosofrimento ínteríor do personagem. Esse avarento, que
. . c aSsr
exammaremos alguns componentes da representa - , 'atiza a doença a tal ponto, inspira-nos alguma piedade, po-
çao. Q'
mudanças opera, e em quais níveis? :';. ''isso se dá às expensas de um riso liberador.
"A noitada é agradável, mas de modo algum reparadora.
'sente-se de leveza. E em seguida, percebe-se muito nela um
6. OPERAÇÕES NOS CLÁSSICOS "'üco de todos os "em torno" do empreendimento teatral: os
.a1hadores terceirizados reclamam sua dívida, o programa
6.1 Mudança de Tempo e de Lugar \lOS0 de papel prateado e, acima de tudo, a estética sem sur-
esa da representação sem falha, compacta e coerente, o ator
Semelhante mudança tem se tornado quase a regra: o qut r.que todos viemos ver encarnar a avareza.
da. peça
.
é então o nosso, seja se os locutores usam nossos ('rn ;:< Que contraste com esse outro Avarento proposto por An-
e rrmtam nossos modos de falar, seja se adotam uma atíti 'ieiSerban": a abstração da cenografia e a ausência de refe-
quanto à ação que nos parece familiar. Paradoxalmente, so 'iIela definida oferecem-nos uma percepção mais universal
quase surpreendidos ao ver evoluir o personagem do Avaf' essencial da avareza e das relações violentas entre possuido-
encenado por Georges Werler e interpretado por Michel . ~e possuídos. A ausência de marcas unívocas obriga-nos a
quet, num interíor que imita uma casa burguesa do século XVI 'agínar a situação. As mãos que saem da divisória para apal-
O efeito mimético, a ilusão da representação de objetos eco' iro avarento, as divisórias monocromáticas que se deslocam
portamentos remetem-nos a um mundo imaginário onde o 'i\: ,. '() instrumentos visíveis da representação e da teatralidade.
rento da época" entrega-se à exposição "natural" de sua avai" "partir disso, o espectador, constrangido a construir seu pró-
tanto em palavras como em ações. O efeito mimético estendo ,;iitio «cenário", concentra -se nas paixões humanas para inter-
a toda a representação: nenhum detalhe, nenhum anacronísn 'pretar essas ações lúdicas. A tarefa dos atores consiste em fazer
vem perturbar nossa impressão. O naturalismo da cenogra'j' :ii'espectador compreender que a fábula e as paixões da peça
a habilidade mimética e vocal dos atares proporcionam o pfâi:! são universais, que é preciso começar por ler a organização de
zer do naturalismo, deixando os espectadores totalmente livt~gl~' '#ignos, sem passar unicamente pela representação mimética,
para admirar a composição do ator vedete. Míchel Bouquet fI( .. '<e que se trata de elucidar as opções da encenação.
do seu Harpagão um personagem mais doentio do que cômicé

37 M~s em 1976, Antoin~e Vitez já desconfiava da expressão corporal mal \6.2 Mudança da Fábula
minada e,da festa: "L'Age dor. Théâtre du Solell. Desigualdade do espetéc
[...J. Porem, se o espetéculo fosse no circo, faria aparecer suas Imperfeíçõ
Enquanto aqui, várias vezes o arrebatamento do público dá a sensação â.f~r <A. questão (brechtiana) da fábula, estabelecida em função da-
urna festa sem cerimónia e mascara a fraqueza do texto dos atares. É a feg"" quilo que o espetáculo faz a peça dizer, raramente se coloca
então não se é exigente" (Bcríts SUT le théâtre, Tome Ill- La Se/me 1975-1983
p.32). ' ,
36 Encenação no Théâtre de la porte Saint-Martin, fevereiro de 2007. . 39 Na Comédte-Prançaíse, em 2000.
300
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISe:RIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÁSSICOS 301

hoje em dia, pois a encenação não procura mais impor~ Mudança da Intriga
leitura, preferindo, entretanto, abrir a peça a diversas irÍ
pretações. A análise dramatúrgica, tão frequente nos ano' . :>'-.'. i a e, rmpossrve
. ' I de ser modificada. A maior parte das .
1960 e 70 na Alemanha e na França, não tem mais nenhll IOtr _ d e-cI"
' .' -- ag oes aSSICOS, pelo menos na França, conserva. a dm-
pertinência. A dificuldade em contar, até de dar coerência a . ce~d~de do texto: a intriga varia então um pouco. O~ erra 0-
texto numa época de desconstrução, conduz muito os mes! ,.,'ralí turam-se raram ente a mudar a ordem das sequencias, a
da interpretação a abandonar qualquer tentativa de Contar u ' aven
'.~' - outra manelfa. d e c ontar. O que muda frequentemente _
história pela crença de simplificar a realidade. Somente aqudt [Opor
,'JI1 tida
contrapar, sua atualizacão,
, o universo onde a açao
t:;j,.e
que ainda se perguntam - ou mais uma vez - qual foi o Sentid'
r desenrola. ld - tre os
que o autor se esforçou por construir, serão capazes de coli' se C mumente, a m . trínga não é interrornpí a senao en
tar uma história e de construir o espetáculo sobre a estrutllt do sse mo d o, na versaão de Benoit Lambert do Misantropo,
narrativa que dela resulta. É o caso de Stéphane Braunschwei" ~tos: .eOS de Alceste cantam, dançam, se divertem. Nesses mo-
seu Misantmpo não pretende absohitamente achar a verdade d@ . as aJUlg
ntos d e t empo OET
'.1J' a intriga linear recebe um complemento
, h
história de Alceste, mas possui uma coerência suficiente Pat~D me . que nao
. 'mco _ a feta a lógica da narração. Para nos, . erme-
estabelecer as contradições dos personagens". Iro .
neutas mr: fatigáveis , é a ocasião inesperada para respIrar.
Não é, infelizmente, o caso que sempre ocorre nas adapf.
tações de obras clássicas. Parece que o jogo consiste mesmô!,
frequentemente, em embaralhar as pistas. Para Na Selva d"-_., 6.4 Mudança da Textualidade
Cidades, de Brecht, Castorf faz as coisas se arrastarem em dUf
raçãov. Os atores inventam gag sobre gag para chamar a aten\;' "A textualidade varia, sobretudo, nas traduções, aos se ~uais
ção a qualquer preço. Um guitarrista toca ao vivo, enquanf -ada tam à lingua contemporânea. Às vezes, a traduçao e acom-
um ator desenha no chão. Cada ator tem seu momento de mI' '. an~ada de uma verdadeira adaptação. O teatro, melhor dlo 'b-e
mero pessoal. Ao invés do cuidado em contar uma história,j'
;~~~d~ ~ramáticO arc~ico retorn~
P uer outro ênero, joga com a materialidade e a ma ea 1-.
muito embaralhada em Brecht, uma sequência de efeitos,d.,. do texto e do palco. O texto
minichoques insistem na atualidade do desempenho, como s'~i~~ " ;llbitamente legível e atual graças à sua nova tr~duçao. O tradu
a percepção atual primasse sobre a vontade de contar e signifit~~f' "'~'
" tor tem a pOSSIibilidade
1 de adaptá-lo às necessídades
c . da futura
caro Sem a orientação de uma dramaturgia bem estruturada,a'''" ",
,·encenaçao. - Na-o se contam mais as traduções reteítas para um
encenação torna-se uma sequência de efeitos fáceis, uma mú~_;,:n~\ projeto cênico específico. ,
sica de fundo repetitiva, um trampolim para atores virtuosesC Y ' Na encenacão de Andrômaca, a fim de tornar a Iín!S"a aces-
COm tiques e truques. Porém, a quem queremos nós exatameni., , I t d L;"k Perceval "anulou todas as formas clássicas de
te impressionar? Não apenas a fábula não mudou, porém est~'üt srve a o os, I"
Shakespeare até Racine, sem esquecer .os c aSSlCOS a,;,
fi engos
.
mal estabelecida. '\.
Foi reescrito, verdadeiramente foi reescnto. E ISSO agorae n?r:~
, ninguém entende mais que se monte Racine c s
entre nos) e _ landesa sim-
-::;--- . I " ) »42 Esta reescritura numa versao neer
.; SICO-C aSSlCO . ibili d d do texto de
· ..""r.' :.l;" plificada destrói infelizmente qualquer sensi 1 a e Iiberdade
40 Reportar-nos-emos à magnífica análise da peça feita por S. Braunschweíg J/_;~::~~ ~i
'ii ?;;. origem. No entanto, dela não resulta, para tanto, uma 1
Que1ques mots Sue Le Misanthrope, à mi-chémín des répétitions, op. cit., p;", .:,'.~,:i ;",:r
145-150. Existe um DVD do espetáculo produzido pelo Théãtre Nattonal de c', ,_
Strassbourg. ;~\;,~ ~_,__ 42 L. Perceval, La Contradíctlon, cest la poésie de la vie, Outre scêne, n. 5. p. 66.
41 Visto na Me 93 de Bobigny, fevereiro de 2007.
Encenação vista em Avtgnon, em 2004.
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA ESPLENDORES E MISERJAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÃSSICOS 303
302

de expressão verbal ou corporal: os atares estão agrupados ","


estreito altar de onde se arriscam a cair a todo momento e a s~·c
rirem nos cacos de vidro no chão abaixo deles. A coleira de fe
da língua e a etiqueta da corte do século XVII transforman{;'
desse modo, num jogo cruel, num teatro do risco e da crueld,{
no qual os corpos estão em perigo de morte. As palavras rnata
não mais "indiretamente" como na dramaturgía clássica de an
nho, mas por meio da linguagem do corpo e do desejo. .;"
Racine sofre um tratamento de rejuvenescimento obrigar"
rio a partir do momento em que foi retranscrito numa lin .
contemporãnea - neste caso, o neerlandês -, língua certam?
te "aplainada" com relação aos alexandrinos franceses, poré
recolocada no nível semântico dos .leítores e espectadores'
hoje..Esse processo de tradução e adaptação é, no fundo, cara
_""~:- I B ht Na Selva das Cidades> encenação de Frank Castorf
,',Berto t rec ,
· .
terístico da encenação em geral como maneira de recolocar e' '~-@Patrice Pavis.
execução (em via, em circulação) uma língua e uma história
Às vezes, o desempenho e a encenação bastam; às vezes, é pre
ciso talhar nas carnes da escritura para melhor salvar o grand,
corpo doente e regenerá-lo por um momento. . .i,Ltrocas de papéis ou a anúncios do tipo: "eu interpreto
. d
x ou y".
.,
É, evidentemente, mais delicado modificar os textos na s{ 'R1esguich, aluno de Vitez nos anos ~e 1970, e um os um-
versão original. Acontece o caso de passagens obscuras sere 'dós que ainda praticam, com moderação, o desdobramen:o de
omitidas, até ligeiramente reescritas. O regisseur alemão Micha,' ';tertos personagens, como na sua Andrômaca pela Comédie-
Thalheimer reduz as peças clássicas ao condensá-las e ao reduzi-I ·'hançaise. A patroa e a serva funcio~am às vezes como o dupl~
ao essencial: sua Emilia Galotti (de Lessing) é reconduzida a UIi)' .,"illa da outra. Mais raro ainda, porem mais ImpreSSIonante, e
partitura quase musical, que os atares executam de acordo co:" iI'desdobramento do intérprete em atar e dançarino, como na
uma nova rítmica, em geral ao dizer as réplicas a toda velocidade Berenice de Montet e Písbach?".
A condensação não hesita em fazer inúmeros cortes e a mudar), ,.. Um ~ersonagem pode multiplicar-se numa infinidade de
fim! Esse procedimento permite-lhe "evitar no palco tudo que sej~ )iguras, tornar-se simples element~ d~ um cor~, perdendo as-
supérfluo": "assim, dirijo a atenção (do público) para um núcleo: 'sim sua dimensão individual e psicológica. A opera presta-se
da peça essencial para mím"<, admite. As concepções de "fided:};', "~articularmente a estes efeitos de coralidade. Marthaler, n:s
lidade" variam, vê-se, de um lado para outro do Reno... .' ,." -Bodas de Fígaro, de Mozart, ou Barry Kosky, no Vmsseau[antõ-
rne
;t. (Navio Fantasma), de Wagner, divertem-se em dar ao coro
tiJm anonimato quotidiano. Nos dois casos, o efeito é multi-
6.5 Mudança do Sistema de Personagens .fplicado graças à entrada em fila dos membros do coro. Todos
{estão vestidos com a mesma roupa impessoaL
A grande época de exercícios de atares de Vitez ou Brook nos,':
anos de 1970 voltou com rapidez. É raro assistir a constantes';
43 M. Thalheímer, Sans passé, nous sommes incapables de vívre I'ící et maínte-
nanta, Outre Scéne, n. 5, p. 25. 44 Ver supra, p_287.
304 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MIS.t.RIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÂSSICOS 305

6.6 Mudança das Convenções e da Figuração' ::le. Arte de desenhar no espaço, de clarificar as relações dos
"'ônagens por efeitos de paralelismo e de alusões ao presente
A encenação não hesita mais em mixar e em opor ''rino s) que não pretendem, no entanto, transpor ou histori-
,. ~ . conve
propnas a generos diferentes: naturalismo e sirnb o I'lS1110" a fábula como o faria uma encenação "continental': Tal cor-
.
Iísmo e teatralidade. A técnica de interpretação do t .\ }iuidade alivia a intriga sinuosa, põe o texto em movimento,
. . a af)!
rnurtas vezes consIderavelmente com relacão àquel d " "i.joniza a palavra e o deslocamento. As motivações e emoções
" I ' a a cn
ongma . Em Brand, de Ibsen, dirigida por Braunschweig, o ri'assinaladas, e não espalhadas e retidas, sem psicologismo e
sonagem vestido de montanhês passeia num plano'Inelíln !ndidatismo. A impressão de movimento perpétuo e de ener-
abstrato,, branco e bem afastado da montanha meno E : "hdos atores no tablado provém de ritmos e ímpulsões da língua
, , L s~ lo
mos rapidamente esse hiatus, essa incompatibilidade ,para," "e Shakespeare que o corpo reveza, canaliza e organiza. Torna-se
concentrarmos melhor no texto e na caracterização. cWicil separar as impulsões corporais da energia verbal. O ator
A figuração do mundo cênico procede comument ltá em condições - graças à percepção de seu objetivo, de sua
, . d e
jIl<liidade interior - de dirigir tudo: suas emoções, seus desejos,
por rnetonímía o que por metáfora, como se fosse maisf
e mais provocante significar uma realidade por um detalh~" 'seusmovimentos, a dinâmica do texto que pronuncia.
-;-/ .
cena ao invés de figurá -la mimética ou simbolicament e,

;6;8 Mudança do Contexto Cultural


6.7 Mudança de Paradigma: Da Performance
para a Encenação 'qualquer representação clássica implica uma transposição cul-
'iWal, quando muito não seja devido à defasagem temporal ou
A mudança de convenções de atuação vai por vezes até à mud: ,'gehgráfica, É nos clássicos do teatro universal que se jogou,
ça de prioridade: a rapidez e a virtuosidade da performmce ass "i"ili grande parte, a questão da interculturalidade no teatro",
mem preferência sobre a precisão e a profundidade da encenaç' ,:'"specialmente em Brook e Mnouchkine nos anos de 1970 e 80.
O exemplo de espetáculos de Declan Donnellan impõe-se. E ·.!tpartir da queda do Muro de Berlim em 1989, o debate do
Cymbeline (Cimbelíno), de Shalcespeare, Donnellan consegue' a'_. '" ",)l1IJ!ticulturalismo ass~miu ;rma coloração Norte-Sul mais mar-
proeza de tornar a peça e a intriga compreensíveis. Graças à ra:": 's : /;ada. O multiculturaltsrno e, comumente, relegado ou falseado
pidez do jogo, às mudanças imediatas de personagens e de sima'D\,i~'t,pela questão do fundamentalismo religioso, que desencoraja as
ções por simples convenção, à coordenação da palavra e do gest<:l;-D(,:l ~i;?rtlelhores vontades artísticas. A reviravolta do século não sou-
a_intriga progride sem dificuldade, os códigos da representaçãQ':~~.:,:i,-:,;bemuito de que maneira dar conta da virada intercultural. Os
sao exibidos, a ironia e o humor frente às inverossimillianças d6"":::~ ~h,; espetáculos de pesquisa - deixemos de lado o show-business ín-
script shakespeariano não coalham numa paródia pesada ou num:>:,': ~3\,ternacional- desprezaram as misturas de culturas, com medo
discurso profur:-do que pretenda nos explicar as contradições(::5~J;cde c~ocar não mais a b~rguesia, mas sim o fundamentalismo de
como o tena feito uma encenação brechtiana ou "contínental'v.'," ~' serviço ou a proposta a la politicai correctness.
dos mos de 1960. É ao desempenho dos atores que devemos essaX':~;'.. Felizmente, ainda ocorrem milagres, espetáculos que con-
per~ormance,em todos os sentidos do termo. A beleza plástícae: ..... ~, tornam ou sobrevoam essas baixezas político-culturais. A Fe-
clanficante dos reagrupamentos, os deslocamentos harmoniosos! ' :", ( dra, de Philippe Adrierr", é um desses casos, Ela inventa uma
dos grupos e de seu blocking (localização), o domínio da língua e ,i';\
a,leveza da enunciação, a vivacidade das trocas, tudo isso é mé-:»: i :í 45 Ver, por exemplo, D. Kennedy (ed.), Poreígn Shakespeare.
nto dos atores dirigidos sem que o pareçam e tanto mais eficaz..' _, 46 No Théâtre de la 'Iempête, setembro de 2006, com Aurélie Dalmat no papel-título.
307
O RES E MISf:RIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÂSSICOS
306 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPl.E ND

ãínterpretação baseiam-se, portanto, numa análise dra-


nova maneira de conciliar diversas exigênci.as cult":
co1oca- ico daa imterpretação da obra. Não éural
' 1as a serviço ,; 'gica muito coerente. ,
_. 1 al ' CO '"!'Jã há nenhum pedantismo tentador em reler a peça a la
d 0, uma encenaçao íntercu tur DO sentido dos anos de":" o
pois mesm,? sendo negros (rnartíniquianos, na maior p~'
./ Barthes ou Goldmann, provavelmente porque, muito
uro n, - e e1 -evi-
'
. .~:,... nte já assimilamos suas conclusoes as sao
os at~res n~o procuravam sugerir não se sabe qual técni; ples m e ,
..... Renunciando a uma leitura nova ou desaprumada, com
atuaçao africana. De fato, não se pode situar a peça numd
ti:~ões hermenêuticas invertidas, Philippe Adrien e seus
contexto geográfico: a Pedra, de Aurélie Dalmat, parece (
africana quanto
_ asiática:
_ ,~,
os atares antilhanos » brancos mestI
"b radares encontraram o essencial: mostrar e dar a provar
~,<: Sente-se prazer ao ouvir uma história trágica levada
e negros nao estao, neste caso, ligados a um contexto geo i , alXao. . , .
"tCOrpos de hoje, para além das diferenç~s culturais. De súbi-
co determinado, O espetáculo não é exatamente colour-b~'
para tanto: é bom que o espectador seja agarrado e maravir
"navolta de um verso, tomamos consciencia de que o teatro
do por ;s.sa beleza e p~r essa estranheza de corpos e pele~i: ~rcultural ainda está por vir ou por voltar.
unagmario de Racine, ao mesmo tempo fantástico e arcaít
acomoda-se bem à "mistura complexa de influências e cai'
teres - africanos, caríbenhos, indígenas - específica das Ali
lhas", mis~ra talvez estranha para a Grécía clássica ou par'
corte de LUlS XlV, mas absolutamente não para a antiguida
do seu conjunto e do seu imaginário "labiríntico'; "amazónic'
"netuniano", "creto-mínotauríno"
A força dessa representação vem dos atares, especialm~'
te de sua dicção impecável dos alexandrinos. Essa dicção 1
forma necessária para que a fábula conserve sua apresentaçg
e os personagens sua identidade, Nenhuma falha, nerihum
hesitação na maneira de dizer de Fedra. Esta aparece pente"
da com chapéus espantosos, cada mudança de chapéu corres,
p,ondendo a uma nova fase na evolução do personagem e a~k
fabula! A sensualidade de Fedra é, enfim, sensível: é uma mti;;},''';
lher fechada, e não infantil como a Fedra de Dominique A) ; Blane;,
Aquela Pedra tinha "vivido>: quando o pequeno Hipólito ainda 'AJ t:J:;:',- Racine, Pedra, encenação de Philippe Adríen. ©Antonia Bozzi.
era verde, sua pequena bengala à guisa de espada dissimulando ,'. 'i~;'
uma arma pouco dissuasiva. Com seus chifres de cervo ad hoc<" :;{.'
Teseu tem alguma coisa de primitivo, de xamânico tambén\' ',;;;. '''- 7. ALGUNS SIGNOS DO TEMPO
lamentável: o patriarcado dirige mal, é francament~ ridículo,";'1J

~;~:~:en~~~~~~~at:~~e::::~:l~c::;~~~':n~~s:~'::i~~~~~~~:~'2~:. ' ~~~:s::~:~~:;~~:~,::~~:~;:.ec~~i:r::~:c~~~:,:s~~:~~~~


me espírito encarnar-se num banal retrato-robô da interpretação
;/
clássica atual, formularemos algumas rápidas observações:
47 "Indiferente à;' cor"; empregamos esta expressão nos meios teatrais anglófonos
pa.ra des,ignar urna distribuição que não leva em conta, para suas escolhas, a Os casos de desconstrução são muito raros, pelo menos na
origem étnica dos atares. França onde o peso do passado continua sensível. Quem, salvo
48 Notas de Philippe Adrien no programa, Théâtre de la 'Iempête, setembro de 2006.
308 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ES?LENDORES E MISÊRIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÂSSICOS 309

o Théâtre du Radeau, desconstrói em Paris? Alguns elenc()i outroS momentos, o dispêndio físico é não apenas pa-
gularmente convidados, como a Volksbühne de Castorfo"~ 'd mas literal, tal como um potlatch'" e uma performance
la o, , do si I
Pollesch, o Wooster Group de Nova Iorque, o teatro de Áf }'
atores rios oferecem: como e o caso o smgu ar com-
Schilling e o teatro de Iürgen G o s c h " e fi: I entre Macbeth e Macduff, A diferença dos shows de
Seria preciso ainda distinguir desconstrução e provoca'" .' ·.t..e.. nfaCosch nos "'fornece as chaves e os pontos de referência
"'
ç stO r , " id d
Castorf ou Gosch entregam-se mais a uma desmistificaça-o··..•· • ir uma fábula que ele respeita na sua continuí a ee
e a s e gu , , ' .
uma dessacralização do que a uma verdadeira desconstruç~<f~ plexidade. O fio - o file? - condutor, a dlfel.e~ça da~ obras
inspiração derrtdíanav. Seus espetáculos e suas "performant'" e.Castorf, é legível, embora cuidadoso, repetItIvo e Iíquido.
reconectam-se ao acíonismo vienense dos anos de 1960 (O.•.•' 'i., (b)analização da obra, pOIS tudo acontece no mesmo
Müh I, Hermann Nitsch ... ),
.
'Li
a uma . I
'tUa destroy, na mesma atmosfera vio enta e Sal' I a. u oe
' did T d '
A dessacralização do texto é frequente. A de Jürgen G Ó s ' n a l , visto que tudo se vale do horror concebIdo como eVI-
é tão banal quanto anal. Na encenação de Macbethw G O " u t e ; tudo é anal também, pois a fábula se encammh~ para
conseguiu chocar até a juventude teatral alemã, o que dê" hí
problema sádico-anal. Segun~o Freud, a an,:'hdade e u~a
muito sobre a força de sua provocação! A peça é interprei ''- 'dade sexual escorada na funçao da defecaçao. Na fase sa-
numa excelente e fiel tradução alemã de Angela Schanelet, ~~-anal, o sujeito é submetido a uma tendência destrutiva
atores do Stadttheater de Düsseldorf sete homens para t,;egressiva, especialmente com relaçã? ao pensa,:,ento, Os
os papéis, têm uma técnica vocal impecável, um senso imp" dltOres deste Macbeth têm um prazer visível e mfantU em lam-
sionante do espaço e do timing. Sabem criar e murmunli;' '!íuz
ar-se de líquido vermelho, em defecar em grupo, depois a
mesmo tempo, investir-se no seu papel e tomar as suas dis!' /.
gIrar nos seus excrementos, a desafiar o olhar reprovador do _
cias, seguir a partitura gestual e improvisar. Graças a eles, a i( 'úblico e da boa sociedade. Ao mesmo tempo, essa provocaçao
conserva uma frescura, .. úmida, Tendo chegado com v~$1 'o' g;puram ente lúdica e teatral: assistimos os atares despejando
modernas, não tardam, uma vez apoiados em suas mes"s'}*" 'matéria líquida e fecal e todos se divertem como bons bebe-
desnudar-se, depois a debater-se numa maré de sangue faf~; '5es desobedientes.
excrementos, generosamente despejados de garrafas de plá~·.' ,;'; Ousaremos esta hipótese final: haveria duas tradições e duas
nos corpos e no chão. O mal gosto, a crueza que chega à cni" 'formas de representação: molhada e seca, No teatro molhado, o
dade, mas também o cómico, a leveza e a teatralidade estão.hÓ~M'.. JJtor molha-se, na sentido próprio e no figurado, assume riscos,
próprio centro desse ato de violência. Deixam o especta<!§1it(;';'molha sua camisa", exterior e interiormente, ao produzir um
senão sonhador, pelo menos espantado por essa aliança in~W1,;h ;0ccedente de energia que se traduz por um deboche de líquidos
dita entre o horrível e o lúdico, Essa nudeza mais excrementill"ff '·.corporais, resíduos, detritos e sujeiras produzidos no palco. Esse
do que artística, parodiada e "enfeitada" por meios puramente"':éstilo é muito frequente nOS palcos alemães contemporâneos,
teatrais, é antes de mais nada sadia. Conduz a uma desopres-i(:i'.'seja lá o que se possa interpretar, clássico ou moderno. E~ c~n-
são coletiva tanto dos atares quanto dos espectadores. Mostr~;'" ':traste, o teatro seco (por exemplo, a tragédia francesa clássica
assim toda a diferença com a verdadeira violência da fábula..~:; tal como "representada" e não performed ou acted out na maior
dos personagens de Macbeth, com a violência dos Ias de futebóf " . 'parte dos palcos da França ou de Navarra) continua seco, ligado
ou de patriotas cantando o hino a m e r i c a n o . / @ r i~.unicamenteà palavra, à pura linguagem: o simbólico substitui o
"",;;;;'cUteral o cerebral neutraliza o visceral, a convenção seca impõe-
;~f.sen~ lugar das realidades. Os atares deste Macbeth "molham-se"
49 Ver supra, cap. 9.
50 Encenação no Stadttheater de Düsseldorf maio de 2006. Espetáculo convidado,'; .;c; _~f,;: 51 o potlatch é um presente ou uma destruição dirigidos ao donatário, obrigando-o
à Me 93 de Bobigny, março de 2007. . :i':: -..:X a responder com uma oferenda equivalente.
. ;':',-f ~-fi,;,

,!,,-,cj:: ~""
310 A ENCENAÇÃO (:(lt'.'TI',\1 P{ lRANJ-:,\ ESPLENDORES I'.I\'lJSI~RIAS D ...... INTERPRETAÇÃO DOS CLAsSICOS 311

i~;~~~:""'" .-:-'
Tm-- =,-~ _
Shakespeare, Macbeth, encenação de ]ürgen Gosch. Shakespeare, Macbeth, o episódio do hino americano. ©Patrice Pavís.

em todos os sentidos do termo: sujam suas poucas roupas, SUa Dessacralização (b )anal de grandes textos: nada mais está
pele exposta à vista. Assumem grandes riscos físicos sem parar, ao abrigo do desgaste das águas, do prazer da regressão anal,
correm o perigo de escorregar no palco ou no obsceno, de trope- da necessidade imperiosa de friccionar-se com tudo o que é
çar num texto ou subtexto pouco legivel ou no olhar espantado úmido e sujo, da fase anal, banal porém normal.
e desaprovador do público, desviado do essencial. Não obstante, O sincretismo das interpretações acompanha os melhores êxi-
existe um sentido) um sentido "essencial"? tos. Dois exemplos em meio a uma infinidade: Le [eu de Tamour
Essas duas tradições e essas duas práticas cênicas apresen- JI etdu hasard (O Jogo do Amor e do Azar) de Marivaux, dirigido
tam-se raramente sob uma forma "pura"! Ao "secar': uma re- por Jacques Kraemer, e o Tartufo de Ariane Mnouchkine.
presentação perde sua radicalidade, porém ganha em clareza e Em O Jogo do Amor e do Azar, Kraemer mantém a ilusão de
racionalidade, torna-se mais legível. Desse modo, este Macbeth um clássico por meio do figurino, com a elegância gestual e ver-
"seca" a partir do momento em que adquire um fio de abstra- bal de suas atrizes, produzindo de forma abrangente um forte
çâo, a partir do momento em que se lhe atribui a menor inter- efeito de contemporaneidade. Porém, a primeira cena permite-
pretação. Torna-se quase que exangue, ressecado, a partir do -lhe imaginar Sílvia e sua criada dormindo sob o mesmo lençol,
momento em que compreendemos, a partir do momento em que debatendo-se nele de igual para igual, discutindo amplamente
procuramos destrinçar os mecanismos de poder. Inversamente.. , asvirtudes do casamento. Os corpos, a gestualidade, a liberda-
uma explicação muito seca, muito intelectual e cerebral cansa de da palavra são contemporâneos; identificamo-nos imedia-
rapidamente o espectador) necessita de uma figuração concre- tamente, entramos empática e completamente nesse charmoso
ta, apela para um grão de loucura, uma dose de desordem, universo imaginário. Depois, enquanto Lisette termina de ves-
um filete de água que dissolva o palco e que incite os atares a tir sua patroa, o tom muda segundo o princípio bem conhecido
nela chafurdarem com delícia e provocação, e os espectadores de que o hábito faz o monge: descobrimos as relações sociais
acompanham-nos em pensamento. da época, a peça não precisa mais de atualização e a distância
312 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISf:RIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÂSSICOS 313

social e histórica reassume todos os seus direitos. Ao lonlf 'rença real de objetos espetaculares, os quais necessitam de
todo o espetáculo, Kraemer desenvolve todas as possibili' ;"tratamento teórico específico e distinto".
da interpretação cêrrica, multiplicando todas as maneir . para a encenação de clássicos, definidos precisamente por
tocar o espectador. .' texto dramático considerado como intangível, sagrado até,
No seu Tartufo, Ariane Mnouchkine combinou várioL .. ~utor-idade" da peça, a referência implícita a um autor e ao
todos de interpretação. Recontextualizou a peça situan texto continuam sendo a posição mais frequente. As úní-
num país muçulmano, num país onde o integralismo am' s'experiências extremas (e, aliás, apaixonantes), como as de
os lares e a sociedade. Isto a conduziu a uma análise poW:'bert Wilson, Romeo Castellucci, François Tanguy ou Frank
do islamismo,
.
do empreendimento religioso e e c o n lC
ô m ' s t o r f , consideraram o texto como puro material sonoro e
fenômeno. Ao confrontar, como em Moliére, a família corii . se impuseram como missão "encená-lo". Com efeito, não
lada por Tartufo com a sociedade invadida pelos falsos dê "~tamos em condições de reconhecer uma totalidade, nem de
tos, 'pelo privado e pelo político, ela fornece uma explicaçã6nstruir uma ficção ou uma fábula a partir dos materiais es-
conjunto, ennquecendo os níveis de leitura. A interpreta rsos. É evidente, contudo, que não há regras, não há limites
muda constantemente de registro e de gênero: farsa, peça> F'ros entre um texto transmitido em cena e um material uti-
lítica, peça histórica, comédia psicológica. Mnouchkine ab6' 'ado musicalmente, sem recurso ao sentido. Seja qual for a
necessariamente o problema intercultural através da temát] . . culdade real, teórica e prática, para distinguir entre texto e
ampliada da peça e do confronto de atores vindos de horizo~;i .àterial, continuamos em condições de avaliar se uma instân-
tes os mais diversos, ao qual acrescentou um método e uÓ 'ia- encenador, ator, cenógrafo etc. - presidiu à passagem do
toque propriamente "solares": o endereçamento ao público 'exto para o palco numa perspectiva da elucidação de um (ou
a frontalidade da atuação, a expressão física de todas as elTl [aquele) para outro. A questão é saber como se faz a interpre-
ções veiculadas pelo texto e trazidas pelos atores. A encenaç tação da obra, escrita e depois levada ao palco. A experiência
conciliou, assim, diferentes olhares sobre a peça. Esse sinc.qas ciências humanas a partir dos anos de 1960 permanece à
tismo e perspectivas na realidade conduziram a uma sínte'nossa disposição, quando muito não seja para que não acre-
natural de debates conhecidos a partir dos anos de 1960, n" dítemos mais nem na possibilidade nem no interesse em es-
sem arriscar-se às vezes a nos devolver ao famoso debate só], 'otar o texto e assim dar-lhe a solução definitiva. A recusa de
a fidelidade ao texto, prova de que o debate filológico ocupo .ualquer explicação, a rejeição de qualquer teoria não é abso-
ainda os pós-modernos e até os pós-dramáticos. utamente uma marca de maturidade; a discussão continua,
O debate sobre a fidelidade tem ressurgido periodicamente', . '';portanto, em aberto.
sob outros nomes certamente, por exemplo, com a distinção" . " ..•... Quanto à distinção entre restituição e projeção, não vemos
feita por Didier Plassard entre "encenações com intuito restítúu.•·.• t~<sobre quais critérios ela se daria: como saber o que o texto con-
tivo" e "encenações com intuito projetívo?". Essa distinção nã(r\;..'·~ ;;:'Wffi,
e que, portanto, "restitui" através da encenação, e aquilo
se confunde com a "fratura entre os encenadores que encarapi;g.~~· ',;\,'que é "projetado" do exterior, por um artista encarregado de
o texto como texto e aqueles que o encaram como materiar$,~~~:~Vt~~ôyontaro texto? É possível comunicar tão facilmente as coi-
Esta última distinção, devida a Braunschweig, parece, com efeh:.~·-r ;;;;i,~as? Isso pressuporia que pudéssemos saber o que é restituí-
to, caracterizar dois tipos de práticas e corresponder a um:t'Li[ ;~.':;vel a partir do texto e aquilo, portanto, que lhe constitui parte
;\>.1
~,.' integrante e essencial. Contudo, quem ousaria pronunciar-se?
. • ·:·;c!,· ,~.:.Isso faria pressupor também, inversamente, que não temos o
:~ ~·F~~~:h~~~~~~~::::~r:~::ps.8B;:~~~~~~~~;~ g:~;;Ss~~~i::~~~. p. S7.\~ :~f;~~;: .
Retomado por S. Braunschweig, Petites portes, grands paysages, p. 289. .<:<:~ :i;~ 54 Idem, p. 57.
:-"::;,~~~
314 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ESPLENDORES E MISfoRIAS DA INTERPRETAÇÃO DOS CLÁSSICOS 315

direito de olhar o texto a ser montado, especialmente dá


de um ponto de vista exterior, «imprevisível". Ora, que~'-'
clássica ou contemporânea, seja montada por um enci"
ou seja simplesmente interpretada por um leitor, sempre
rá necessariamente um olhar exterior que o atualiza, que:;:-
existir, um olhar no qual são absorvidas projeções de toi
ordens. Portanto, parece que é necessário considerar que!'
tuição e projeção caminham lado a lado. Resta, eVidentem'
mostrar de que maneira isso se dá: T.!1as essa não é exatari{
a arte da encenação? .

8. CONCLUSÕES GERAIS

·.
316 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ",' '. DORES E MISÉRIAS DA INTERPRETAÇAO DOS CLÁSSICOS 317
c._: ESPLEN

não ilustra o texto: dá-lhe sua urgência, a faz. viver ao df ;'"


rama e do teatro ) roçaremos talvez o encantamento dessa
sua voz, seus músculos":". -:;:., <, ' s" nesse eterno presente, nessa falsa eterna juven-
• A desconfiança pelos grandes meios cénicos aument' ;foe ~~s' fascina, mas que também nos aprisiona. O pre-
máximo de metáfora ou imagem significam globalmenf :Íqu t [vez não dure eternamente! O pós-dramático não é,
t!smo a
lugar ou urna paisagem mental, o rnáxirno de dispositivO"" ;-,",ram ente ) senão um mau momento a ser enfrentado.
_ ,
perlTIitam um distanciamento político de conjunto, o rnã 'jn quais forem os rótulos, o importa~te nao sera perceber
de uso puramente retórico do palco. am mais ou menos voluntanamente, o que reco-
e es boç , . _
• O desafio é totalmente distinto: atingir um conhecim ]11 debaixO das palavras muito rápidas de desconstruçao ou
melhor da prática cênica do passado. Não para descobrirá' "
'provocaçao. ~ ?
.
solução para a representação atual, mas para compreender' .'. Bemelhantes termos participam do debate sobre as formas
lhor de que maneira essa "flor textual'; o único traço que' :2ultura no mundo pós-moderno. A partir dos anos de 1980,
resta, eclodiu no terreno de urna prática teatral desaparecÍ -2oIlcepção culturalista domi~ou es~a. discussão. Tratava:se,
Procuramos, portanto, ler essa obra na sua época e segun~o' . ~ de reabilitar culturas mínorrtartas, textos margma!s e
seu estilo, sabendo bem que devemos em grande parte "inV' ~ desprezadas, estilos pouco academicos.
rálicas . ' O Impacto d o
tar'; visto que não vivemos mais neles. E, paralelamente, im Ulturalismo no teatro foi sensível. Alcançou o nivelamento de
narmos UlTIa nova prática cênica a fim de lançar uma nova \turas, a intercambialidade de interpretações e, finalmente, o
sobre a peça. '~saparecimento de teses originais ou provocadoras. A p~~­
• Esse trabalho histórico obriga a retornar, testar e desenv' dessa democratização culturalista, tornou-se muito difícil
ver os métodos de análise de textos, levando-se em conta tU rra os jovens encenadores superar as facilidades, superar o
aquilo que foi adquirido no decorrer dos últimos trinta an '.;minho progressivo, a degradação do artistico em cultural,
Tal trabalho conduz, por si mesmo, a voltar às questões me' '6 cultural em saciocultural. P01'ém, os achados da encenação
dológicas que o pós-modernismo e o pós-dramático pretê~ ·t~arte dos clássicos não obrigam a que se procurem as facili-
dern ter superado. É o caso também de dizer que não se pod '~des? Bem maldoso quelTI disser que a vida a partir do ápice
queimar nem as etapas, nem nossos próprios navios, mas si' ;'~ia valido o esforço da ascensão.
rever pacientemente a análise e o conhecimento dos texto
Esta sombria e ingrata tarefa exige esforços aos quais pouco
estão dispostos. A teoria literária ou teatral não deveria fie
na defensiva frente aos perforrnance studies (estudo das maru
festações espetaculares), até mesmo complexada diante dess~':f'"
domínio imperialista, mas antes de tudo estar consciente d~.';;;
sua necessidade e de seu papel-chave. .::
• Não seria preciso, desde então, restabelecer o desafio d&';'
pós-moderno, como também do pós-dramático, ínterrogand<j:f"(; .~
-nos sobre aquilo que esses rótulos escondem, mas que tambélll'0;.' ~
revelam? Este desafio consistiria em observar e descrever a des-." '},
construção do texto ou do espetáculo. Ao procurar aquilo que lú
"
concretamente nos chega a partir do pós-moderno ou a partir' ''jC?~
":i~'
.. e:
~

57 D. Bradby: A Poíncheval, Le 7héâtre en Prance de 1968 a 2000, p. 600.


~A Encenação nas Suas
[Jltimas Trincheiras'

A diversidade de espetáculos, de perspectivas, de artisia';


sobretudo, de espectadores, torna difícil, impossivel rnes
O estabelecimento de categorias distintas e coerentes da
encenação.

Mesmo. reduzido a sete espetácuios vistos em 2006, amA"


escoihidos quase ao azar, em função de expectativas e~'Q
inexprimíveis, ou injustificáveis, um corpus revela uma inf{":
de propriedades, funções, facetas, que desencorajariam ó"
bizantino dos analistas.
Conseguimos extrair dessa temporada simplesmente sete""
princípios, sete funções da encenação em meio a tantasó'!;
harmonia, recontextualização, decantação, conjunto, trajee
enquadramento, silêncio. Sete maneiras de mostrar e dizér
, ,,)

Sete, como as sete maravilhas do mundo, ou como oSS:e.fe~?;. ~lê,mi(;a sobre a programação do Festival de Avignon de 2005
da semana.
ará sido em vão. Ela nos fez descobrir outras práticas espe-
Porém, no sétimo dia uma dúvida nos invadiu e o silênciÓ§' ;'''''es, recolocou o "teatro" no interior daquilo que o mun-
e se nós não pudermos elaborar a teoria da encenaçãO?;:~;' Q'i!\rtglófono chama de cultural performances. Obrigou-nos a
caso, não foi senão um acúmulo de exemplos específicos;:"~ "'liar nosso horizonte para além do teatro de texto, até mes-
tentativas isoladas, sem ligação, sem lógica, sem amanha}' .ilara além do teatro, simplesmente. Encorajou-nos, embora
pé nem cabeça? Se não foi senão uma representação disfq "~timidamente,a observar outros ares e outras práticas nas
um objeto empírico Indescritível, uma experiência indizível; 's a cultura se acha performed, ou seja, colocada em ação, à
arte fosca que recusa qualquer refiexão teórica? ;'em espetáculo. No entanto, o "teatro': a "encenação': mes-
E se tudo isso que dissemos não for senão pura ficção, ao" 'quetenham aparecido como relativos e não universais, não
mesmo título que o teatro ou a vida? Se o teatro nos empurra . eram, entretanto, sua pertinência ou seu valor. Muito ao
para as nossas últimas trincheiras? itrário, a encenação teatral viu-se ao mesmo tempo revigora-
'redefinida num contexto artístico e cultural em que se sente
Como para o teatro ou como para a vida, isto seria, mesmo':';" ,~os pobre. A noção histórica e teórica de "encenação" parece
assim, um risco a se correr.
I
1';
, is do que nunca indispensável para o estudo das práticas cê-
ias atuais, essas práticas que acham seu caminho do lado da
! lade dos Papas ou aquelas que povoam nosso mundo globali-
,I
I Ao. Para chegar a Avignon 2006: a partir de sete exemplos do
! 'stival in, propomo-nos a observar as funções, antigas e novas,
I
Ir: Artigo publicado anteriormente em Théãtre/Public n. 183,2006, p_ 65-74.

L
320 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 321

da encenação, na esperança de descobrir os novos territórios


~,,:Quer se trate da comédia ou da tragédia, de gregos ou france-
ela se propõe a explorar. Esta escolha é, como sempre, 'UIOJelliva;;d
;{dopúblico do século XVII ou do século XXI, o teatro produz no
arbitrária, tendenciosa até, tendo como única ambição ""'lOl)r,'"
blico um efeito distinto daquele do das outras artes. A represen-
cercar o apetite, a arte e a maneira de encenar no presente
.ão é necessariamente «ao vivo", faz coincidir, mesmo que seja
servando que efeito o teatro ainda produz em nós (ver em' -[.um curto instante, o conjunto que está no palco (atar, texto
taque, a seguir: "Efeito Produzido"). 'óhunciado, «efeitos cénicos") e o espectador num acontecimento
fi}co e não repetível. No decorrer desse acontecimento, há mes-
Efeito Produzido ':ôuma comunhão e um movimento de vai e vem entre o palco e
.·lateia, e o efeito produzido é também sensível por um feedback
A noção de efeito produzido (Wirkung, em alemão) foi j,-erformance dos atares. .
zada pela teoria do teatro e, não obstante, é muito útil para exa"· <':A "boa" ou a "má" recepção/reação recai na representação, fa-
nar de que maneira o teatro age sobre a sociedade, sobre o p~bÜ: ta-a ou a freia. Uma história da influência de públicos e socie-
ou sobre o espectador individua1. É recomendável associá-Ia"~· .esnos textos dramáticos, nas representações ou nas encenações
oposição, à de recepção, isto é, à maneira pela' qual a sociedadé apara ser escrita. E o que é a encenação senão um mecanismo
público ou o espectador reagem ao texto dramático ou à repret- rnado índispensável no fim do século XIX) para adaptar a re-
tação. Essas duas noções de efeito produzido e de recepção (q :}entação ao público específico que se supõe deva recebê-la, e,
uso corrente nem sempre distingue) fazem-nos compreender c''- j'tanto, o de levar-se em conta o receptor para a criação da re-
o teatro influi sobre nós e como nós mesmos Influímos sobre ~ ',sentação cênica?
Nos anos de 1960 e 1970, a teoria estética alemã opunha \í ;?Para imaginar essa história de efeitos produzidos (do teatro no
Wirkungsasthetík (uma estética do efeito produzido) a uma R-i.. :~1ico, assim como do público no teatro), seria preciso começar
tionsiisthetik: (estética da recepção), e a questão era saber se fal!··' ~r:~specificar o que exatamente faz efeito no espectador: o teatro
para a análise de textos, levar em conta os mecanismos de pq:r :·geral? A peça lida? A representação? O estilo da encenação?
ção ou então ocupar-se, antes de mais nada, do ato de leitura: finvém igualmente distinguir o efeito produzido de acordo com
recepção. A estética da recepção vinha preencher uma lact1~~ Upa de receptor, tanto quanto o modo de recepção e, dé modo
desconhecimento dos públicos e de seus horizontes de expecta] rtícular, sua duração.
que o estudo de autores e de suas técnicas. de escritura tinha-m ,.'Seja qual for o nivel em que se aborde o texto ou a representa-
tas vezes ocultado. Atualmente.admite-se que é preciso abordaf 9jyê~se bem que o efeito por eles produzido no leitor ou no espec-
mesmo tempo a produção e a recepção da obra literária ou teatr :ó! depende tanto do próprio objeto (sua configuração) quanto
que não deveríamos separar a produção de efeitos e a rnaneírap .receptor (de sua identidade). A noção de efeito produzido serve
qual são recebidos pelo leitor ou pelo espectador..·, _!11ediação entre produção e recepção. Determinar esse efeito por
A.noção de efeito tem uma longa tradição clássica atrás qe::;'. } representação obriga tanto a estabelecer a maneira pela qual
O efeito produzido se observa mais facilmente no espectadoríç foi produzida quanto a imaginar segundo quais expectativas é
que no leitor) e é nesse domínio que o teatro clássico Interessou' ,_::~bida e compreendida. Para não tomar apenas o exemplo da en-
por essa noção, como ,que para verificar se o teatro é eficaz:{~~" nação, há duas maneiras de abordá-lo: descrevendo as tarefas e os
consultemos numa comédia senão 'o" efeito que exerce sobren ccdimentos de trabalho do encenador ou reconstituindo o papel
recomendava, por exemplo, Moliere (A Crítica da Escola de Mu.··. ~_:espectador segundo suas expectativas e sua situação concreta.
res; cena 6)..E Racine 'sublinhava,. por seu. lado" que o efeito d~-''­ ',odução e recepção estão intimamente ligadas e solidárias: a pro-
teatro é universal 'e durável: "Reconheci comprazer, pelo efeito, ,. .:São antecipa seus efeitos no espectador e imagina o que ele vai
produziu sobre nosso teatro, tudo aquilo que imitei de Homer:q~ -:-/npreender do objeto recebido, reconstitui o projeto e até mesmo
de Eurípides, que o bom senso e a razão eram os mesmos em t0'4, , intenções da encenação. Desse modo, formatar uma encenação
os séculos" (Prefácío de Ifigênia). _anta a operacionalização de uma matéria e sua elaboração pe-
,satares e todos os outros artistas, quanto dar-se conta do olhar
322 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 323

mutável dos espectadores segundo seus hábitos, suas eXpecta ;>"t~. de uma sensação, um prazer estético, uma figura ou urna
sua nova situação. Estar atento ao efeito produzido imped Úlra de conjunto. Esse efeito produzido no espectador lhe traz
dessa forma, de não privilegiar senão uma única das duas f: '~za de que tudo é organizado para ele, sem que seja totalmente
do fenômeno teatral, produção ou recepção, de reintrodui icável ou comunicável.
modelo dualista ao ernplacar o esquema da comunicação (e ~()'encenadorpergunta-se sempre: como é que devo lidar com
receptor) na obra teatral. :.,para que emerja alguma coisa para o espectador, "meu seme-
A partir disso, vê-se perfeitamente que encenar é sUscí 'ti, meu irmão" (Baudelaire), para que a minha arte lhe produ-
manter o interesse do espectador, fazer nascer nele o desejo_gi' :in.- efeito?
e compreender sem que, contudo, seja possível consegui-lo. Na
no entanto, teoria universal de efeitos, nem receitas infalíveis:::
tocar o espectador. Isso porque o importante não é o valorirt
seco dos signos e dos efeitos de cada "linguagem cênica" (ni~
espaço, plástica, linguagem etc.) , mas. a combinatória, própria,{
encenação (e até a cada «cena" do espetáculo), do conjunto de
riais. Apenas uma estética "militante" e política, COIllO a de Bt'
por exemplo, que se divertia em calcular os respectivos cfei
cada linguagem. Dessa forma, Brecht recomendava ao trabalh,
encarregado da execução do cenário (Bühnenbauer) que esta,
cesse uma "tabela de efeitos possíveis", e sugeria-lhe indicar,}
cada cena de cada peça, os quanta de efeito (Wirkungsquante",);,:
exemplo, «os marcos sociais, os marcos históricos, os efeitos d~'-"
tanciarnento, os efeitos estéticos, os efeitos poéticos, as inova
técnicas, os efeitos da tradição, a destruição da ilusão, os val
da exposição'". Esta check-list do construtor do palco parece ri!
mecânica e dificilmente verificável, porém tem o mérito de ' fJf(~'benet, Les Bonnes, encenaçâo de Alain Tímar:
a força dos efeitos e de distinguir sua variedade. ;€ZEoto 'Ihéãtre des Halles.estdanuel Pàscual.
C-:'

Os efeitos do teatro são, portanto, numerosos. Porémvmé


esses efeitos produzidos no espectador não é evidente, pois ne
ma tipologia de efeitos produzidos se impõe. Seria melhor ai.
não sem gosto pela metáfora, imaginar qual «encenação ínterioi
espectador realiza a partir do momento em que é "afetado pel~_~:
cenação": de que maneira esta se aninha, se escava, se esculpeii.>,,,";,<b.~;
A psicologia cognitiva talvez nos ajudasse a dizer como a conJig«~4lJ
ração cénica se inscreve em «vácuo" no imaginário e no corpoIª~~ ;,;'-
espectador, tal como urna "figura em negativo" da figura perc~b_i_~;~~~ ·f-i.:
HARMONIA: LES BONNES (AS CRIADAS)
ou alucinada a partir do palco. O espectador percebe-a e sen{~~i**i. :';:_. 1.
como um re-desempenho, como um mimo interior, especialme~t~;~~ ;~_:
dos movimentos cénicos dos atores. O espectador tem a faculdaª,~~:11 fc.Antes deste sobrevoo sobre os territórios cheios de zelo e ele-
de apreender um conjunto, uma rede imaginária que a encenaç~'9~:(;~ ~;?-vados do in, uma breve parada nos HaIles: o teatro de Alain
esforçou-se por estabelecer. Tem consciência, uma consciência ~n~r~:::j ~"-- rimar impõe-se, quando muito não seja, pelo domínio de sua
carnada que a representação, graças à encenação, deixa nele, qu~t;,l~;~l r;- criação de As Criadas e como exemplo de seu método e de seu
estilo clássicos.
B. Brecht, Gesammelte Werke, v. 7, p_ 467.
A ENCENAÇÂO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 325
324 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

A peça de Genet foi montada pelos mais Célebres ",:, 'restritos, faz compreender imediatamente a evolução da
dare_s. T~mar inscreve-se, sem dúvida alguma, nessa lin~: 'a, distingue entre jogo e realidade. As mudanças de sono-
versao nao pretende dar uma nova leitura da obra, Esse ci e, conforme se fale atrás dos vidros ou não, são ao mesmo
da modernidade não suportaria a menor subtração ou â' "o indicações sobre a situação; os planos sonoros forne-
de texto, e qualquer nova interpretação exigiria estar s' \preciosas, embora discretas, indicações sobre o nível de
mente amarrada. Aliás, a partir do começo dos anos d e9 'Id idade do momento. Graças a essa armadilha translúcida,
os encenadores raramente tiveram a pretensão de fazer uniU "ipulada freneticamente pelas duas mulheres, distingue-se
a pre os níveis de realidade, desenham -se os territórios do
leitura radical de clássicos que viesse a refutar as precedenf
abordagem de Timar oferece-nos uma retomada e uma s( "ginário, segue-se a dinâmica dos desejos sem que seja pre-
da tradição clássica, aquela de Copeau ou de Jouvet (que't ';:marcar as mudanças por rupturas claras do jogo ou pelo
a peça em 1947). A encenação, neste caso, é concebida C ite de objetos novos. Graças à precisão e à abstração desta
arte autónoma, se bem que inspirada na leitura de umire '(}grafia, distanciada da decoração sobrecarregada do quar-
ela deseja a expressão de um universo imaginário coerê de vestir e dos móveis estilo Luís xv de Madame, as criadas
recortado do real, apreendido na sua lógica interna, poré e~am-se perfeitamente nos seus jogos vertiginosos, não re-

metendo metaforicamente ao real. Genet esclarece que sé' .ham nunca de sua infernal trajetória, que parece traçada
de um conto e que é preciso que o encenador, com "uma:;; 'o num papel milimetrado; sua energia é refreada por esse
bonomia" atente para a "unidade da narração (que) nag' positivo abstrato e exigente. A força e a rapidez de seu de-
não da monotonia do jogo, mas sim de uma harrnonías' "penha veem-se decuplicados. A curva ininterrupta de in-
as partes muito diversas, muito diversamente interpretad 'sidades é sustentada por curtos intermédios musicais que
Timar aplica este programa ao pé da letra: apesar das coru ,'Unham a atmosfera fúnebre, piano e crescendo no finaL Na
tes mudanças de papel, o conjunto é de uma grande coerê cede do fundo aparecem, fugitivamente, algumas imagens
dramatúrgica e estilística. As atrizes" interpretam sem ided'; 'ográficas, que se revelam ser animadas; imagens em preto e
cação psicológica realista num primeiro grau, mostrandÓ'" pco das irmãs, xícara, mão e olho em grande plano. A agi-
atuam com ligeiro exagero: jogo rápido, virtuosístico, pó" ~ofebril das criadas é como que vigiada em inclinação por

sem histeria; encarnado, mas sem profundeza insondável.',.• a possante instalação midiática mal identificada (foto, vídeo,
Sobre o tablado, uma gaiola de vidro está colocada: ela ograma, pintura?), que dá uma outra claridade à armadilha
abre em dois imensos batentes transparentes, tanto no ful1' ,,'vidro e de palavras. Admiramos ao mesmo tempo tanto a
como na frente. A abertura e o fechamento das cortinas g'' fftácia quanto a discrição dessas mídias (avaliamos o quanto,
criadas ajudam-nas a isolar-se para entregar-se aos seus jó estes últimos cinco anos, sua utilização tornou-se sofisticada,
sobre o papel ou para abrir a gaiola para o mundo exterf 'serviço do dispositivo de conjunto, como apoio da atmosfera),
seja no fundo, seja sobre o público imaginário no proscên 'Jim como a manipulação das cortinas, essa pontuação mi-
De cada lado desse cubo translúcido, dois corredores late) âtíca escande a narração desse jogo funesto, indica sutilmente
formam uma peneira entre o mundo real e o dispositivo" , etapas do adoecimento das irmãs na armadilha que armaram
atuação: no pátio, o reduto onde as criadas guardam seus ac , a si mesmas. Essa é uma das funções clássicas da encenacão:
sórios; no jardim, a alameda florida pela qual Madame faz f ' stabeíecer e esclarecer a fábula, ajustar texto e desempenho, 'pa-
aparições. A geometria evolutiva da gaiola de vidro cria luga avras e movimentos> harmonizar os materiais empregados.
" Semelhante encenação clássica é, no mínimo, uma interpre-
2 J. Geneti M. Corvln (ed.), Commentjouer Les Bonnes. em J. Genet, :;:lção em meio às outras> não tem nada de um «grau zero da en-
p, II.
3 Marcelle Basso (Madame), Odile Grosset-Grange (Claire) e Lisa Pajon (solan!:eVjzlll)iti~:enação':de uma leitura literal e neutra da obra: contribuem para
~{y':
i;-',f::·
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 327
326

isso o manejo das portas de Plexiglas, a maneira de / adurecer e rodar antes de ser confrontado com o público
acompanhamento musical, da consciência fotográfica n ,a,!"nono Contudo, o festival põde descobrir um espetáculo
do palco. Jogo furtivo, conforme a indicação de Genet", m '~t~para uma aud~ência americana) sem que sai~am~s exata-
bérn rápido, enérgico, sustentado, sem qualquer mom~ '~ cornO ele evoluIU no decorrer de suas peregnnaçoes.
dúvida. Timar permanece nesse registro clássico que esc'
cada uma das atrizes, na mesma ~ógica caracteriológica)
totalmente a progressão da loucura do jogo empurrado' ('fl,econtextualização/Concretização
últimas consequências. Nada há, portanto, de iconoclasta.
leitura: a encenação mantém uma coerência estrita de sig::; \precisamente o observador de Avignon é surpreendido na
visa a harmonia da representação. Qualquer saída do si$' áda pelo deslocamento linguístico, geográfico e cultural da
deve ser devidamente justificada e integrar-se à estrutura d~! " já clássica de Koltês. Sobretudo caso ele tenha na mernó-
junto. Nestas Criadas, a única saída possível seria no mOrh' acriação da peça por Patrice Chéreau em 1983, em Nanter-
em que diz Genet: "Solange se dirige para a janela, abre-a (,', !(lU a recente adaptação iconoclasta de Dirniter Gotscheff na
na sacada. Ela dirá, de costas para o público, diante da no 'lksbühne de Berlim, em 2003. Apresentado em Atlanta, cida-
tirada'". Timar escolheu) ao invés de situar a atriz diante d8 ',75% negra, será que a peça nos traz de volta essa África em
blico, fazê-la dirigir-se diretamente aos espectadores ao pari f-:e-está situada) ou melhor) a crer-se no seu autor) uma África
com eles o cheiro da fumaça de seu cigarro. Esta exceção à i ~tafórica, corno esses "lugares que são espécies de metáforas
contradiz por um instante o sistema adotado, porém não o vida ou de um aspecto da vidá'?' O peso da questão racial é
ça absolutamente: unicamente se as rupturas forem frequeni oJorte, nos Estados Unidos, e atualmente na França, que tra-
que a representação deixaria de ser c l á s s i c a . , htore encenador julgaram necessário mudar, no título francês,
Nestes seis exemplos do in, a encenação afasta-se COfiS termo négre (negro, nigger), que foi julgado ofensivo. Porém, o
ravelmente desse modelo canônico, aventura-se cada vez--W nteúdo da peça apresentou também, em sua totalidade, rei-
numa direção surpreendente que renova suas funções e ai'. .rados problemas de adaptação ao contexto norte-americano.
as possibilidades da arte teatral. Resta então descrever as,~ "O tanto a relação de negros e brancos - pois Koltes mostra
mas dessa renovação e dessa extensão. '; ambiguidade o neocolonialismo e a frouxidão dos bran-
.cos-, quanto pela cena final em que Alboury cospe no rosto de
;feone'. O que reteve a atenção de Nauziciel não foi a questão
2. RECONSTRUÇÁO: BLACK BATTLES WITH DOGS ,'docolonialismo francês na África; foi, antes de tudo a relação e
(COMBATE DE NEGRO E DE CÁES) y~ coexistência entre as raças) tais como o público americano do
Sul profundo as vive quotidianamente. No entanto, não escolheu
Arthur Nauziciel montou a peça de Koltes, Combat de NêgreJt:}j"t c;<transpor a África, um pouco abstrata de Koltês, para o contexto
de chiens (Combate de Negro e de Cães), na tradução de M~i~i;Yt ~;'He uma cidade americana ao localizar no cenário, por exemplo,
Delgado e David Bradby", para o 7Stages de Atlanta (EstadosU~:Y;/,~'},objetos americanos. Sua cenografia produz uma atmosfera visual
dos), em abril de 2001. Ele montou sua encenação em 2002,eIÍ!,i;;'i. ~:e auditiva misteriosa, perturbada, angustiante, entre cão e lobo.
Lorient e em Créteil, depois em Chicago, no Art Institute ofl'"efé' f ~, No palco pouco figurativo, atrás de urna cortina de tule, urna
forming Arts, em 2004. Este trabalho, portanto, teve todo o tempo ,~ ~> mesa com guarnição branca imaculada e um candelabro. Entre

4 J. Genet, op. cít., p. 9.


5 Idem. p. 107. 7 Programa de Avígnon, 2006.
6 B.-M. Koltês, Plays I, Black Battles with Dogs. 8 R-M. Koltês, op. cit., p. 53.
328 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 329

as cenas, ouve-se uma música barroca, o cúmulo, neste caso;: ang u es de ruas downtown", diz-nos a imprensa), sugeria
refinamento ocidental. Tudo isso em contraste com uma Áf' .~ força irreprimível. Sua dicção não era, entretanto, absolu-
selvagem e abandonada, mais fantasmagórica do que real. Bâ' -.: ente "negra americana'; clara e rebuscada, perfeitamente
lhos inquietantes cercam esse lugar de encontro de branco~;j ~inada, como o impõe a literalidade do texto koltesiano.
chão é composto por uma mistura de terra batida ocre e cimeh ,3 [el Petrow (Cal), de talhe muito mais modesto, é um jovem
griso Estruturas metálicas, bancos, ladeiam esse canteiro preÜ ,. an oso agitado atormentad o, ao est il o "act
ac ors s t u di10 " num
,;-;nerv, '
a ser retomado pela natureza, por algumas fitas de plástico / ;Uco mambembe californiano. Ele disse seu te~to estalando e
uma floresta tropical emporcalhada. .... açando suas palavras ao invés de pronuriciá-las com toda
Ao passar por Atlanta, a encenação concretizou aspeef' :.esp
.' 'dez conseguindo tam béem um diistancramen . t o e evrtan-
.
'rapl , .
implícitos, mas muito presentes na peça: a violência racial, as' o uma psicologia invasiva. TIm McDonough deu a Horn um
xualidade à flor da pele, as relações de desejo, ódio e amor en~e' :'éfinamento na palavra e nas maneiras como um gentleman
os protagonistas. Ao ilustrá-Ias através de carícias e abraços, c6~ :lll1glo-saxão, esteta em fim de carreira, cuidadoso para evit,:'r
locou no centro da representação o desejo, a perturbação sexu'ái}i!l:; .6 escândalo e para dar ao colonialismo de antanho uma visao
a proximidade depois da recusa do outro: Horn afaga Albotiry;fJ,i "::mais amena. Ianice Akers, espécie de WASP (white anglo-saxon
Leone faz o mesmo, Cal e Leone permanecem longamenten' . 'protestant), loira e evanescente, emprestou a Leone a fragilidade
braços um do outro. Aquilo que na tragédia clássica koltesiaií.,.. j uase degenerada de um personagem de E o Vento Levou, ou a

é da ordem do discurso e do desejo não assumido, encarna'~a~ij; Bonfusão


.c
mental da Blanche de Um Bonde Chamado Desejo, de
aqui no palco. A representação ganhou em intensidade e prov&,'it "Tenness ee Williams: o contrário absoluto da criadinha france-
cação aquilo que faz a peça perder em sutileza e ambiguida ,.' '~a, popular, gorducha e zombeteira interpretada por Myriam
Porém, essa violência feita ao texto dá também a sentir o desêfÔ\ 'i',Boyer quando da criação do papel. Nauziciel encontrou um
para além das proibições de raça ou sexo: as peles se tocam,J:W ;tompromisso inesperado entre a organicidade impulsiva dos
corpos se enlaçam. O medo do outro por causa da cor de·sd' )tores americanos e a retórica textual e vocal que esse texto lhe
pele, de seu sexo ou de sua origem social é por um instante s. ','impõe e que eles assumiram perfeitamente. Nos corpos pul-
perado: nem tudo é negro, ou negro e branco, nas suas relaçõe \isionais opunham -se a coreografia minuciosa e dominadora de
Para o espectador de Atlanta ou de Avignon, eis aí um mornen-j ;;'seus deslocamentos e de suas entonações, especialmente para
to precioso em que ele se interroga a respeito de suas próprías "::osmais "viscerais" como Cal e Leone. Esse contraste obteve
angústias e terrores. O desempenho oferece-lhe esta prova M; os meios para fazer o espectador desestabilizar-se, habituado
verdade, muito apesar de a peça significar, para ele, que o outriJ'(: ..a julgar em bloco, acreditando numa unidade de textos, porém
continua inacessível, seja qual for a força do desejo. . ajudou também a uma tomada de consciência, não apenas com
referência à escritura de Koltes, mas também com relação ao
aprisionamento pela língua, pela raça e pelas identidades ima-
2.2 Diferença de Estilos de Jogo de Atuação ginárias. Nesses breves momentos de imobilização, de parada
dos mecanismos de controle, quando os personagens estavam
A interpretação adotou códigos de atuação diferentes uns dos!"'" enlaçados ou simplesmente na escuta um do outro, os especta-
outros, o que acentuou a distância e a incompatibilidade entré." . tomavam consciência de que esses constrangimentos são
os personagens. Esses códigos estão ligados à identidade cor"'? culturais e, portanto, desmontáveis. A transposição norte-ame-
poral dos atores, à imagem que projetam. Ismail Ibn Conner (AI,>; ricana, tanto para a distribuição quanto para o estilo de inter-
boury), afro-americano de alta estatura, o torso e as pernas nus,;. pretação, foi perfeitamente coerente. Essa reviravolta para outra
ombros poderosos, escaríficados ("resultado de ritos iniciáticos cultura e para um contexto racial diverso teve consequências
330 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 331

inesperadas:
. reconfigurou
_ a acão
' e a fábula·. Encont raVa
.i
com efeito, reunidas e religadas nesta interpretação as'""
do gênero (gender), da raça, da etnicidade e da identidad~~: ;'.rnais de um espectador de passagem pe!o Cl~ustro dos
modo, para o personagem de Leone: ela não foi envolvid ". :'. s não há dúvida de que muitas emoçoes agitadas nele
stI.IlO
l

o assassinato do operário africano, tendo tido o efeito d:Ci rn ter sido decantadas, nessa noite. Vermelho Decantado é
heroína de.ill:lodrama, inocente e generosa, mas seu eSf1 .a••.'.ad ap tação da narração autobiogràfica do autor
_ neerlandês
de reconciliação, seu humanismo ingênuo chocavam-se co sen Brouwers. Este relata a morte de sua mae e suas recor-
situação neocolonialista e criminal dos homens. Ela aferrav -:: ;., s de infância, dos três aos seis anos, junto com ela, sua
às suas falsas identidades, que a colocavam numa situa - 'ii ~ee sua avó, no campo de concentração japonês de Tjideng,
táave1 em t o d a a. li111h a. Sua "1oucura," a, maneira da Blanch':
çaOl 'Indonésia, entre 1943 e 1945. Na adaptação _de ~orie~ Baart,
Tennessee Williams, pareceu a única saída para escapar da~>' 'Cassiers e Dirk Roofthooft, o narrador nao e identtficado
possibilidade de ser ela mesma e da violência masculina .d .,X inalmente como sendo o autor Brouwers, um célebre es-
_ ~esse clássico contemporãneo, a fábula e sua interpr;la orn ao qual o romance faz alusao.
;"tór - Esta,, a1"las, antes dee mais
mai
çao. sao aInda,suficIentemente móveis) instáveis e abertas,'~r da, de acordo com o subtítulo "romance'; um personagem
prestar-se ~ leituras deslocad~s(sit~,adas lá onde não as esp~' €lício que se dirige a não se sabe quem: hesitamos falar em
mos) e enriquecidas (no sentido de mineral enriquecido"); "6nólogo interior, e é bom que a pesquisa do destinatário per-
represe.ntação ~onsiste, então, num questionamento de qú 'neça o motor dessa palavra.
quer leitura untversal, chave mestra ou definitiva. Antecip~ .•.'0 texto do monólogo é uma retomada verbatim da narra-
leva em conta o novo público, reconfigura o universo ficcio;f i~O' exceto por algumas expressões retraduzidas para facilitar a
segundo suas interrogações e Suas angústias. Neste sentid' "Iolação (mise-en-bouche). Não é nunca alterado ou edulcora-
Nauziciel deu a este Combate que se tornou Batalhas Negra}'"' OCo)As passagens do romance em que o autor faz suas próprias
nova impulsão de que a obra precisava, vinte anos depoís.d tO"nc!usôes e reflexões foram sistematicamente descartadas.
sua criação. Soube adaptar-se aos dados atuais do racismo': e6m isso, o romance ganhou em mistério, rapidez e presença
da busca identitária. Essa recontextualização ousou tratar-c .1tnediata, como se o processo de decantação não estivesse ain-
questões muito delicadas, muito pouco politically correct, 'dâacabado e nós fôssemos convidados a assisti-lo ao vivo. A
os meios da astúcia e da denegação teatrais, lá onde a psiCo,c:, 'C0l1a ,m"açao necessária, tanto do livro quanto da vida contada,
logia e a sociologia teriam dificuldades e que, talvez, fo,;seiuf'~('~! empobreceu muito a narrativa; comprimindo-o ela vai ao
impotentes. .tessencial: a vontade de saber, contudo a recusa em apiedar-se,
suposta insensibilidade da criança e do autor adulto. É sin-
tomático que a adaptação tenha terminado nesse leitmotiv da
3. DECANTAÇÃO: ínsensíbilidade ("o que é que devo sentir?"), frase pronunciada
ROUGE DÉCANTÉ (VERMELHO DECANTADO) página antes do fim, quando o romance retoma todos os
_ o vento, o barulho, o encarceramento, a teia de ara-
A encenação nem sempre implica uma tal transposição nha, a cisão do ego -, acabando na imagem mais forte e mais
O mais comum é contentar-se em fornecer alguns índices, '~M: centra! da obra: o olhar sobre si mesmo, a sensação de que
circunstâncias da história, sobre as escolhas dramatúrgicas e dei- rosto "pinga", provavelmente porque o vermelho da mor-
xar o todo decantar-se, no palco e na cabeça do espectador. cor de sangue ainda não está decantado: "Um motivo de
encarceramento que evoca uma teia de aranha teceu-se entre
mim e outro eu, e eu vi na neblina meu rosto decompor-se,
332 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 333

Iíquefazcr-se'". A dissociação do eu acabou: o eu '~1ra do que a uma tela. Essas paliçadas, uma muito grande
reafirmado, porém ele constata a deliquescência do eu ndo, a outra com a dimensão de uma veneziana em pri-
de decantação. Continua o sentimento de culpa - e o plano, não esburacam a cenografia como o fariam uma
.
men t e" d e ImpaSSI íbilid
ureia d e - I'19ad o ao trauma dos cam::"-'-
,para
. - c de pos;, e de vidro ou uma tela branca gigante. Tais imagens não
a cnança .nao rez a Iterença entre o bem e a n10rte' s ,,)
' . .
,arn a vida dos campos: dão a sentir, mais do que a ver,
sobreviver, tena que achar normais, . ate . ' eqm,e:
divertidas , aS-at plano muito grande, o ator em atuação e em sofrimento.
dades cometidas com SUa mãe. A carapaça de insensibilf 'as à prisão e à coloração em vermelho, azulou verde, as
dISSO resultante assemelha-se a esse corno, a essas calosi,f:'t' !/ens participam ativamente do esclarecimento emocional
que aparecem nos pes ª
. e que o ator I'ixa o b sessivamente. A!- ' g
'';,~situações. So b re e Ias, as
' vezes, superpoem-se
- a somb ra ou
lavra e a escritura são comparáveis a essa lixadura para eri~: . ueta do ator, As temporalidades, as lembranças, as atrnos-
trar a doçura da carne, para perceber os segredos do pass"" ás misturam-se, as tonalidades e as nuanças do psiquismo
e ser capaz de sentir alguma coisa. "Não existe coisa ai' recem-se aos olhos do espectador sem, no entanto, impedi-lo
que deixe de tocar outra, mas o que posso fazer? - O qU~!.' ':perceber o corpo vivo e a voz monocórdica d~ ator, O palco
tem a ver comigo? O que devo sentir?"lO; esta divisa, coloc . sua totalidade torna-se um Imenso banho de tmtura, verme-
no começo e no fim da narração, resume perfeitamente Sllh, ';i; ria mais das vezes graças à iluminação, em que as lembran-
tuação e seu sofrimento. o', os traumas, as imagens podem decantar-se pouco a pouco,
Todo esse dispositivo narrativo, os motivos e a dispe? r'lio da dupla narração. O vermelho, diz o narrador, é esta úl-
do eu são magnificamente transpostos para o palco atravê~ 'C, a coisa "que deixarei decantar-se nas minhas retinas", é essa
uma série de filtros: os dos adaptadores, do dramaturgo (Er' da morte, que aparece na bandeira japonesa sob a forma de
Ians), do encenador (Guy Cassiers) e, sobretudo, do ator (I:f a mancha de sangué'"; é também, para a mãe, "o sangue que
Roofthoft). Este último fala, em tom de confidência e comóq ~iliu gota a gota"!", e para a criança "o vermelho que (lhe) vinha
a contragosto, por meio de um microfone que parece ampll o, rás dos olhos"!'. "Édipo chorá; esclarece o romance!'. O pesar
car seus pensamentos. Como atua numa língua que não ê;s' cá liberado, a impassibilidade cala-se em lágrimas de sangue:
língua materna, seu leve acento, seu "efeito de retardament ';uelas dos olhos encovados de Édipo.
introduz um meio-segundo de hesitação, fato que redobra a' Caso nos seja permitido fazer uso da mesma metáfora,
da mais sua dificuldade em entregar-se aos seus pensamentÓÚ'!(' .Iremos que a encenação é decididamente uma decantação:
Porém, é, sobretudo, a impassividade misturada à extremalã~}fi 7decantam-se as contradições, as séries de motivos, os remorsos
sidão que surpreende o ouvinte. ~:eo luto, o caminhar doloroso rumo à anagnorisis, ao requiem
e ao perdão. No líquido cénico, espécie de líquido amníótí-
"\:0, as matérias em suspensão, que tornam o meio ambiente
3.2 Mídias Decantadas : tão sombrio, desprendem-se, depositam-se como elementos
:\ritais, essenciais e que, não obstante, é necessário esquecer.
Sete cârneras automáticas, discretamente dispostas na área",!" " Essas matérias são ao mesmo tempo os resíduos, os dejetos
atuação e em sua periferia, estão à disposição do ator. Este e~j:tl, . 'do passado e os elementos, os mais pesados de sentido: tanto
colhe ou não colocar-se diante delas e acíonar a projeção de Sl1itP:;~ de signos ou de temas obsessivos quanto princípios de
imagem numa superfície que se assemelha mais a uma gelosia dê';"
11 Idem, p. 103.
12 Idem, p. 146.
9 J. Browers, Rouge décanté, p. 167.
13 Idem, p. 69.
10 Idem, p_ 152.
14 Idem, ibidem.
334
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 335
jogo e de significantes irredutíveis ao l' id
. . "fi Iqul (') ou
na a signr cação. Isto é verd d . ao gás iferentes, temática e estilisticamente. O único tema co-
. a erro para qual
mas partIcularmente para Vermelh D qUer enc ria o amor impossível: incestuoso ou adúltero, A Von-
de" o ecantado S b
e assrers, na encarnação vocal e f" d . o a aproximar os dois textos, a ponto de representá-los em
di . " ISlca e Ro fth "
o ISpOSItIVO narrativo toda a tem a'tOlea, to d a a lUo. 00 hidade (mesmo se com intérpretes distintos), pode sur-
• A )

pa e Illocencia estão submeti d Istura ,aer. A explicação biográfica vale o que vale: Duras havia
miraculoso da decantação ~sOtS ao processo alquímico '~do a maneira pela qual Vigner tinha encenado Chuva de
b . " raUmatlsmos d
o sessoes do presente, a carapaça da pele e d e Outro r 'no Conservatório Nacional, em 1994 e tinha lhe ofereci-
que mascara a vista, a casa protetora a . o ego, a ne seguida, os direitos de Hiroshima, Meu Amor. Porém,
aramado dos campos e d ' escrtturn salvad hzão dramatúrgica há para reunir essas duas obras?
e nossos pensament
encontra e se esvazia lá onde d d "os, tudo is 'Se Vigner julgou bom aproximar e confrontar esses dois
importante. Quando 'até o corpnoa da e .ex:enor e visível é ""s sob o mesmo teto, não será porque concebeu a ence-
t orna d a h ornem, escritor e fi a mae e cremado, a cri ;~o tanto como uma reunião de elementos heterogéneos e
tário de t d . ' por rn, filho, torna-se o d
o as as emoçoes recalcadas 1 epo éSt'abricados, quanto como uma fusão no interior de uma
dos espectadores. Nem cura nem subíi ne a~ compreendidas' &hia? Sua tarefa consistiria em reunir, ou, antes, juntar,
sempre, porém uma decantação m~:ao, Impossíveis pa ementos textuais, lidos, interpretados, gravados em voz off,
mo por ocasião de um requiem p'~rma per. aOddflrigido a si m" , mesma maneira que ele juntou cortinas de Plexiglas, inicial-
À amae e unta
s vezes, encenar é simplesmente a . . i'~nte abraçadas aos pilares do claustro, depois deslizando no
soma das matérias das ideias d gttar o frasco, sacud' ':spaço cénico. Encenar não é criar ex nihilo em continuação a

isso aquilo que nos turvava a .


q
tz:»
rando que tudo se decante e ueos temas, das sensações, esp'
:er através de til
VIS a e o espírtto,
"", a leitura pessoal de um texto dramático. É unir materiais:
.,iálogos, narração, cenário e decupagem fílmica, placas me-
'fálicas e vitrais, sem esquecer os corpos humanos. A integra-
'Cção faz-se aos poucos e não a priori. A encenação coloca em
4. ASSEMBLAGE' PLUIE D'E'TE' A" H '"icontato uma escritura (a dizer), atores (a lançar), um espaço
(CH' IROSHIMA (a preencher ou a constituir). A representação constrói-se ao
UVA DE VERÃO EM HIROSHIMA)
fazer, de algum modo, deslizar esses componentes uns contra
Agitar o bocal não tem no entant . outros. Formalmente, a soldadura entre as duas partes do
ingredientes da encena~ão tenhamo, .:;,ntIdo a não ser que espetáculo juntados diante de nós realiza-se através da dupla
sados antes da d . SI o cUIdadosamente linha de fogo do eixo longitudinal da área de atuação,
ecantaçao E não é id
método! Pod " " ' eVI entemente, o A assemblage material coloca, contudo, inúmeros proble-
c ' em-se tambem juntar elementos pl'é-exist:enltes
orno o fana um arquiteto ou um rnecân lco mas, pois o quadrado estrito do Claustro dos Carmelitas, uma
vez a cena frontal eliminada, obriga a adaptar o recorte das
cortinas de sol a um plano muito restrito. As chanfraduras na
4.1 Assemblage superfície de atuação aproximam consideravelmente os espec-
tadores dos comediantes, porém a forte declividade das arqui-
Nop . t d . bancadas dão-lhes perspectivas muito diferentes: em mergulho
rOje o e Eric Vigner a monta do rr
tação parecem ad . d ' gem o título e a represen- (de longe) ou em contramergulho (de perto). O formato qua-
Chuva de Verão) v~: 1e9s9s0eprHocesso de junção. La Pluie d'été (A drado do claustro teria facilmente acolhido um público nos
, ,e iroshimn mo (H"
ma, Meu Amor), de 1960 de Mar .' n amour íroshí- quatro lados, mas isso não foi possíveL A bifrontalidade daí
, guente Duras, são duas obras resultante teria sído mais eficaz com um palco retangular mais
337
A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS
336 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

":as (Ah! Ernesto, 1971), depois um filme (As Crianças,


~rpor fim uma narração (La Pluie d'été, 1990)15. Vigner o
:kAil 6 (1993), faz dele um filme (1996), antes de retornar ao
"n para adaptá-lo ao contexto dos Carmelitas.
ce
""htr Hiroshima e A Chuva, a escritura de Duras passa da
e
h'ção do nouveau roman e do cinema de vanguarda dos
tie 1960 para um retorno à figuração mimética dos anos

90,
,Chuva de Verão conta a história de uma família marginal.
es o filho, distingue-se por seus dons extraordinários,
to,
~'ref]exões paradoxais e suas réplicas espirituosas, Para sua
~\ espantada com sua descendência, não irá ele declarar:
'ão voltarei para a escola porque, na escola, eles me ensí-
"coisas que eu não sei"?17 Esta frase enigmática, todos - a
Marguerite DUras, Chuva de Verão em Hiroshima,
© Patrice Pavis. - . encenação de Bnc vignÚ,' 'ola, a imprensa, a família e o próprio Ernesto - procuram

~ ~ d~'
:.i-
realiza-se através
Forr:zalmente, da dupla n
a soldadura h as
entre d duas artes
, do spetâculo
e ' .Juntados diante ", -'-"'- porém, a mo d o de um koan chinês, escapa à com-
rpretá-Ia,
n a e go o eixo longitudinal da área de atuaçãO: ,ensão racional, confirma uma aporia, impensável pelas leis
longo, a fim de que fosse t d , ) ' 'lógica, Esta curta narração é um romance de educação, de
passagem de todo o disp itiacen ua o o efeito
, de pa I '"
ssare a e . . . . ucaçao - ,'
ImposslVel. ,
O romance transforma-se muitas vezes
d essas dificuldades técnicas,
OSI IVO rafia e esp , I A '.., -
narratívo
aceno ac~a" p~)}
,:fií diálogos falsalllente lllocentes,
' rupturas de tom, uma c~m
as propostas textuais, O recorte das
e as aberturas e fossas que ult d'
~Iacascon~:ru1U
~e mtegf
rcas no chã1
'Jl1istura de SImplICIdade e sofistIcaçao,
" Ernesto aprende a ler, portanto, completamente so, rem-
, ,

dtICO para a família mal instalada


res am d ISSO sao um su!'orte 'I"" , ,Ytn ta a [citura:
, " Desse modo, ele compreendeu que a leitura
'
e dA Chuva de Verao'' todc ~p'auma " ' , de d I' vimento conti , ,
~~go, es~onde~esconde,
aparecem e desaparecem num ' especte esenvo o contmuo, no seu propno
Hiroshima, a mesma ceno rafia e E, 'corpo, de uma história inventada por si própria" 18, Maravilhosa
de uma paisagem de desolg ç ã ,qUIrbe a dimensão metafóric~3;:{r.:. definição, quase barthesiana, da leitura como escritura! Para o
a ao apos
transformam-se em monstruosas molécula' a omba as bola s diíf"'"
e met.,,:~,&. ~:?,.personagem, ' mas tambem ' para oator, o encenador e o espe~ta-
contraste entre a memória Id s carbonizadas..Q.,l:ir r' dor, a leitura conSIste em constrUIr e fazer avançar uma histórta
dernidade do Plexiglas colo:~c:~t::rp~e~:::~~,e a pós-mo-'})J," i~:invlentada,
'\.!i,}'! 1,\;'co que ~areceverda~eira,Esse ~rocedimen:o,Vigner o
oca em eVIdencIa e em pratica na prtmerra sequenCIa: todos
;'~S~)9 ;\(' os atores instalam-se para ler o começo do romance, cada qual
',',,/,,\H\ lendo uma frase e com voz neutra de inicio, Rapidamente, um
""i,.',~! tom, uma atitude, um esboço de personagem, tomam corpo
4,2 A Encenação da Escritura
Resta observar de que maneira a escrít d D • "'.",,·,:H-,
•. ',', em cada um, A passagem para a atuação encarnada, segundo

:~~OS1tl;O cemco. Seria melhor falar, de resto,)",i:


se junta nesse' , , " ura e uras se insere é ' ',' 15 M. Duras, La Píuie d'été. ner,
16 Encontrar-se-á na Revue d'esthétique, n. 26, três artigos sobre Éric Vig
das escrituras
~~~:~çaai~ces~antemente ,'{~y
bem como uma foto da encenação, na qual se vê o mesmo princípio de fossas
a:
ro a outro, utilizan:o de um gêne· cavadas no palco, p. 111-113.
reescritura. O material de A Ch
,
~ gen~r? como ~rocesso de
uva e, de micro, um album para
~
·:ne. 'r 17 M. Duras, op. cit., p. 22.
18 Idem, P' 16.
>~i~L
-,:.. ~
338 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHElRAS 339

os dife~entes papéis, efetua-se a partir de então com d .c;


Graças a leitura, a escritura passa no corpo dos atores A'
assim, confirmado o teorema da leitura segundo .o,ç,
. . , u~
D 'uas partes, o espetáculo leva bastante tempo para "insta-
mesma maneira que a frase ilegível do koan gera sentid " S atores no espaço, e com eles os espectadores. Coloca uns
cita interpretações, no caso da escritura trata-se dessa h:::; tros numa postura de expectativa, numa atitude de atenção,
inventada que acaba por fazer sentido. Compreendemd' o'a tensão corporal que varia com aquela, global, tanto do
Vigner queira precisamente encenar essa escritura, fazê:1 '6'ó comO do corpo cênico. A Chuva de Verão começa por um
tender, ao invés de contar histórias: "Meu trabalho [ ] 'I" '(ciciO de descontração e aquecimento: os atores instalam-se
'" e 1
mais à vontade de fazer entender uma escritura d ,', "seu espaço e leem de maneira detida, como se estivessem
o que'
contar h i s t ó r i a s » 1 9 . ' ; cobrindo o romance, restituindo muito a displicência li-
Entender e encenar a escritura? À primeira vista, a "amente irânica da escritura; depois, identificam-se pouco
posta parece absurda! De que maneira figurar uma escn "óuco com seu papel, e adotam uma entonação, uma atitude
se~ saber a que se refere, a qual espaço, a qual tempo e / 'Pi'poral, um "gesto psicológico" (Michael Chekhov). Ernesto
açao? Como apreender esse "jorro da escritura" antes li htão se destaca do grupo por uma diferença de acentuação
encarne em um sentido) uma história, em corpos? Esta exi '\ensão física. Sua diferença nos é contada desde logo como
cia de certos encenadores contemporâneos-" é formulada câ "; a experiência sensível. Graças a essa experiência cinestési-
um meio para evitar jogar-se logo de início na psicologhtd ;'ae sensorial, os espectadores percebem as grandes linhas da
personagens e na representação do mundo, a fim de apreti . ~ncenação e dos textos, assistem à sua junção, visualizam-nos.
melhor a fatura textual, seus ritmos, Sua música. Vigner HIil 'iem dúvida, esta é uma experiência comparável à encenação da
ao máxin;o os efeit~s ~o real e do personagem; em contràj:>' dicritura, porém isto não é senão uma miragem, ou pelo menos
tida, sublinha a retonca do texto, especialmente uma locá ,'c ma primeira etapa antes da reafirmação da fábula, dos perso-
zação (um blockíng), uma coreografia sistemática dos atol" agens e das ações cênicas. Não se poderia reprimir o desejo
Em A Chuva de Verão, calcula cuidadosamente os efeitos' e narração, as associações de ideias, a busca da rnimesis e da
distância e projeção verbal entre os locutores deste polílÓ" ,grganicidade. A história retorna, os personagems retomam a
joga com três níveis - subterrâneo, superficial e elevado _, "çarne, o espaço dramático reconfigura um lugar, a junção aca-
claustro para variar e diferenciar as palavras. Em Híroshím'&! Ú>a por ganhar corpo. Não apenas no caso de Duras, Vigner ou
as trocas se fazem na horizontal, para sugerir não os embate~ f;Ernesto, mas na evolução atual do teatro.
eróticos dos amantes como no filme, mas sim a cidade reduiili
da a nada: a figura principal é a dos deslocamentos simétric
em espelho, e de contradanças com relação ao eixo longitu A. TRAVESSIA DAS APARÊNCIAS:
nal do dispositivo. Os deslocamentos são também movimentó GENS DE SÉOUL (GENTE DE SEUL)
de união: traçam, segundo a fórmula de Vitez, os trajetos
inconSciente no espaço. ;Se a junção de materiais heteróclitos colocados num palco aca-
" ba, de todo modo, por ganhar corpo, pode-se esperar que a
"aproximação de culturas e tradições diferentes acabe igualmen-
19 Les Enfants de Duras, Les Inrockuptibles, n. 552, p. 27. "tepor encontrar uma certa organicidade, quase uma unidade
20 1\ ~ropósito. Stéphane Braunschweig fala da "encenação da escritura (n'nO"''''; estética. É, indubitavelmente, o caso da realização de Frédéric
diálogo e do~ personagens), dito de outro modo, do arranjo e do choque viq'i',"
lento de sentidos e situações, o fato de que nada, num texto de teatro,
"Fisbach, Gente de Seul, a peça do japonês üriza Hirata, mon-
ou fruto do acaso ..." (Revue d'esthétíque, n. 26, p. 63). tada em Tóquio e depois em Avignon. Não sabemos como o
A ENCENAÇAo CONTEMPORÃNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 341
340

Todas as sutilezas da peça, na medida em que atravessam


;0 obstáculo da tradução, aliás, excelentemente transmí-
,'. elas legendas, são um desafio para a direção de atores
p eS pelo encenador francês. Se alcançam seu objetívo
nes .
'ental, é porque os intérpretes e a encenação as tornam
rais" e acessíveis ao público. No Japão, esclarece Fisbach,
.'. se faz diferença entre autor e encenador. Todos os au-
},~ contemporâneos são encenadores de seus próprios
; "21 Tendo preparado esse espetáculo no Japão, mas
toS . .
o perspectiva para Avignon, Fisbach soube a.crescentar
muita delicadeza a perspectiva da encenaçao ocí den-
. Damo-nos conta disso principalmente pela cenografia e
ía atuação à margem da ação principal. Antes do início
Oriza Hirata, Gente de Seul, encenação de Prédéríc Fisbach. 'bespetáculo, ajudantes de palco, mascarados com um tule
©Patrice Pavís.
e , tais como os koken do nô, conduzem os atores, um. a
i.>gro
A cenógrafa, Aiko Haríma. não procurou reproduzir um espaço teatralfrontal .. numa carreta que atravessa o palco, erguida num estreito
japonês, inspirou-se livremente nele. ~ I d o

'drredor invisível a partir de enfileiramentos e eva os acima


"0 público. A estreita área de atuação parece-se com uma co-
público japonês recebeu esse objeto intercultural, mas pare" a, quase com um túmulo; tem, a um olhar francês, a forma
que o público francês apreciou enormemente a possíbílída; .deum bunker; faz lembrar a ilha em que os japoneses expan-
de ter acesso a uma dramaturgia e a um universo que não( Liionistas acham-se encurralados. A cenógrafa, Aiko Harima,
nheciam necessariamente bem. %~o procurou reproduzir um espaço teatral frontal japonês,
A peça é situada em Seul em 1909, um ano antes da anexaçã 'hspirou-se livremente nele. O espaço de baixo não é, para
da Coreia pelo Japão. Uma família de comerciantes japoneses:-!; começar, um lugar tradicional de atuação e, além disso, não é
pai, a mãe, o tio e as três crianças - discute com seus doméstío t)tigido pela peça. Talvez represente o lugar visível do díscur-
e seus vizinhos coreanos e japoneses. A maneira tchekhovianá .~o crítico, o oposto inquietante e ainda pouco decifrável da
as conversas dessa família ampliada para O recinto familiar dão-sê ,7.;esistência coreana. Os personagens mascarados, libertos da
sobre coisas triviais e não desbordam para nenhuma ação. 04\~;% ;'empresa familiar, entregam-se a estranhos rituais: caligrafia,
únicos acontecimentos são a chegada e o desaparecimento de u ....•.• ." confecção de bandeiras políticas. A cenografia e a encenação
misterioso mágico, os planos secretos do tio visando reencontrare '\fazem desbordar, assim, os diálogos "etéreos" para uma pan-
uma dama na Rússia, a fuga do filho mais velho com uma do;"t';;;· )tomima visual que nos inquieta na medida em que não deci-
méstica coreana. Tantos desaparecimentos levam a pensar qú~';!'RtJ: framos o subtexto político. Os deslocamentos e as maneiras
as maneiras fúteis e policiadas, afetadas e amáveis, talvez n~~-if:P .'de se movimentar são as do nô e do kabuki. As atitudes cor-
sejam mais do que uma aparência que pede para ser percebid~»;ili·i o,,;, porais e a posição sentada sugerem um meio japonês tradi-
no dia a dia. Tanto mais que nessa amável família vinda apenas\WM"; ·:~Cional. Fisbach inspirou-se nessas convenções para inventar
para realizar negócios, não seria o caso de se questionar o colo::-:)Í#} i ,novas atitudes, num espírito similar. Exemplo disso é a lenta
níalismo, a violência e a exploração. Ela é muito convincente emJ:",,-' ..... escalada dos degraus ou a descida, mais difícil, no declive
sua superioridade cultural para não ver nos coreanos outra coisam?
senão uma perspectiva para seus objetos de papelaria. 21 Voyage à Séoul, Les Inrockuptibles, n. 552, p. 39.
A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 343
342 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA

sem degraus, com o risco de escorregar, mas com o';] ."0 Teatro em Marcha
domfnio
omirno do rnovi
o movimento, .
Esse Sistema mes
de novas CDn--':"
•.. venç
estabelece coerencia, regularidade, A seguir, ele introdu 4'-
. .' ...Il).seus cúmplices do "Rimini
.. ,
ProtokolI",
.,
Helgard Hauge Da-, .
fimas variações._Fisbach .edita então suas próprias regrast' iWetzel, Stefan Kaegi já gozou, e a Justo título, de uma sóli-
venta sua tradição, depois as questiona a partir do mo .,': eL tação na Alemanha. Não há um Theaterwíssenschaftler*
. me repu
em CI.ue o d;scurso da encenação. foi apreendido, em qü,L nuano-helvético que não lhe tenha consagrado ao menos al-
aparenclas toram atravessadas. Inventa também outro ll1' ""m artigo. Um colóquio sob~e sua obra teve lugar :m Essen,
de trabalho: não é absolutamente a maneira ocidental y; /'2006. Nessa capital europeia da cultura, o caminhão de dOIS
pelo menos francesa), que consiste em interpretar subjet( 'garo s já rodava rumo a no s e,;, junho, cdo~ su~<carga de uns
mente um texto dramático, em clarificar a fábula e produ'bijriquenta espectadores, atad'os as suas ca eiras como carxas
uma atmosfera; esta não é mais uma regulação imutável/ ." ae.melão'; segundo a palavra de um dos choferes. Os especta-
procedimentos de representação e atuação como nas for>:)'<: 'ii
es descobriam, através das grandes baias de vidro sem reflexo
codificadas japonesas. A encenação de Fisbach é tão disc~i4"1 "g.~ lado do caminhão, os sites industriais de Ruhr, O princípio
quanto a escritura de Hirata. Não constitui um discurso crij~; Kcou o mesmo: duas vezes por dia, o peso pesado búlgaro leva a
tico surpreendente, um metatexto seguro de si. Não se trat"'r; 'fassear os festivaleiros, que pensam escapar do turismo, durante
por outro lado, de uma volta às origens da encenação eurBe,' duashoras, longe das muralhas da velha cidade, longe dos tristes
peia, quando esta negava suas intervenções. Autor e realiza!." ':arejos, da realidade dos transportes internacionais e circuitos
dor ajudam-nos a apreender o real em mutação, para aléfi,'... t. ,~"merciais, para os recantos vazios do mundo.
das aparências e das convenções socíais e artísticas.:-,,:,..;' Excelente ideia é esse convite para uma viagem de cami-
Maturidade do teatro íntercultural, por fim? Sem tambdi"; , hão a fim de testar a faculdade do público em descobrir o
nem trompetes, distanciado tanto dos universos culturais d~·j\eatropor todos os lugares onde passe! Os dois guias, não fran-
um Brook ou de um Barba quanto do cultural clash de uni! 'tófonos, devem passar por uma tradutora búlgara, o que de-
Górriez-Pefia, Fisbach inventou, com Hirata, uma forma mi ', j \acelera muito o seu veiculo! Eles nos pedem para imaginar
gínal, sutil e soft de interculturalidade. Por meio de leves d e J i u e os acompanhamos durante cinco dias, de Sofia a Avignon.
locamentos de uma posição cultural a outra, essa associação e tempos em tempos, as persianas e as imagens das regiões
de benfeitores concilia formas e funções dramatúrgicas de die" itravessadas são projetadas, corno se olhássemos peIa janela.
versas procedências, sem fusão nem entrechoque, ao término ';;'iAo longo de todo o percurso, os dois choferes explicam-nos a
de uma travessia de aparências que nos abre os olhos para o' i/i; t vida do guia longe da familia, as longas esperas nas fronteiras,
ontem e para o h o j e . ' a vida nos estacionamentos na entrada das cidades. Legendas
•. '.' nos narram a edificante história do empreendimento de Will
.,. ,i
',,:'
Betz,que fez fortuna ao obter o monopólio dos transportes nas
regiões do Leste e ao instituir um sistema de gorjetas. O trajeto
6. ENQUADRAMENTO: CARGO SOFIA-AVIGNON
<, ;, i/ avignonense leva do correio ao entreposto de mercadorias, do .
(CARGUEIRO SOFIA-AVIGNON)
~. mercado de varejo de Château-Renard ao parque de exposi-
O teatro nem sempre é tão facilmente identificável, quer isso ções. Testemunhos, gravados ou ao vivo, de sindicalistas, ca-
esteja no interior das aparências ou para além. Acontece mes- minhoneiros, de especialistas em transporte, apresentam uma
mo de termos que procurar extraí-lo da ganga do real. Em Car- quadro exato da situação local. Nunca antes deste périplo em
gueiro Sofia-Avignon, o jogo consiste em circular nas rotas da
Provença e em descobrir as marcas de um teatro invisível. * Teatrólogo (N. da T.).
344 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

caminhão a função referencial do teatro apareceu Com ta"


eviidêe. nCla..." 1)

6.2 Os Limites do Teatro

Nesse dia, em Avignon, poucos elementos do real deixaram(


teatralizar. Será que o real não é manipulado, infiltrado p~
ficção e pelo humor, empanzinado de poesia? Através do vidibl;
o olhar que nele recai não encontra senão objetos quotidiands;,'!
os quais não foram arrumados para aparecer como estéticos.dir
som que retransmite os testemunhos de diferentes atares sdi", "
ciais não é retrabalhado; as entrevistas ao vivo ou gravadas d
especialistas são interessantes, porém de forma alguma teatr.
e, portanto, muito triviais. A necessidade de determinar o trã
jeto deixa pouco lugar para a improvisação, se porventnra u'
incidente, um passante, uma pane real invadirem subitaménf
a realidade enquadrada para o espectador. Tudo é serio corri
um papa (suíço). O caminhão parece-se mais com um ônibú'
de turismo, com projeções integradas, comentários e bebida
frescas, do que com um teatro ambulante ou uma carreta '
Téspis. A tradutora búlgara, que comenta e enfeita o díscuf
dos choferes, tranca o veículo e arrasta a expedição ainda u "
pouco mais para a visita turística guiada. Como o díspositívi
da encenação muitas vezes não se enquadra - exceto nos rn:-~
mentos em que percebemos a cantora búlgara diante do mi
crofone, numa rotatória - nos elementos ficcionais e estético"
renunciamos a procurar o teatro na realidade. Os únicos efein
de teatralidade são produzidos pelos guias "verdadeiros", qU.
repetem a cada dia as mesmas fórmulas e brincadeiras. Eh'
quanto atores amadores, não conseguem interpretar o seu pape
de guia de maneira convincente e o cabotinismo espreita-os
como se ameaçassem a todos nós! Desse modo, a teatralidade
Deus seja louvado, acaba sempre por reaparecer... .
No entanto, temos condições de desaninhar essa teatralida-;
Kaegi, Cargo Sofia-Bssen, encenação de Stephan Kaegi. © Patríce Pavis.
de? Eis que o caminhão para não longe de um painel publicitá-,
rio, o da exposição "Mérnoire en scene" (Memória em Cena). Opeso pesado búlgaro passeia com o público durante duas horas, ''do correio
eoentreposto de mercadorias, do mercado de varejo de Cháteau-Renard ao parque
Hesitamos: é necessário ver aí uma alusão à arte dramática? deexposições". Kaegt "enquadra a realidade segundo o itinerário do caminhão
O painel, descentrado, está suficientemente bem enquadrado? ede acordo COm o recorte do real através dos vidros".
346 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 347

Isso depende do ângulo de visão, do meu lugar no cami' 'tos de teatralidade. Para fazê-lo, enquadra a realidade se-
da maneira como o meu aparelho fotográfico inclui o ca ;;.; \do o itinerário do c,:minhão e de acordo com o recorte do
visão? Esse painel será um signo do destino ou, então, un 'através dos vidros. E uma encenação? Num certo sentido,
de manobra dos caminhoneiros que falharam, no mOme6 visto que esse dispositivo propõe a matéria segundo suas
inclui-lo em nosso campo visual, de fazer alusão a ele i~stritas e para o olhar do público. Libera, em seguida, este
teatro? Assinala alguma coisa ou é o caso de estarmos pa .• imc para dar ou não um sentido àquilo que percebe. A en-
camente obcecados pelas alusões à ficção e ao espetáculo'.' rlação não seria, assim, senão o olhar do espectador sobre
Seja o que for, esse caminhão lançado rotas afora ;'uiloque desfila diante dele? Porém, neste caso, a noção de
filé jogado no real: nosso olhar através dos vidros traz se' o::;: êenação não estara em vias d e se diISSO Iver, d e re duzí
q í
uzir-se a,
elementos que nos surpreendem, quer o chamemos poe~r 'ples organização de um evento, de um circuito, sem vontade
existência, encenação da vida quotidiana ou teatralidad i'-contar, de imitar, sem o dispositivo habitual do teatro?
pesca é, evidentemente, mais ou menos boa de acordo co Tais foram algumas das questões que certos elementos in-
saídas do "barco-pesqueiro" Em Essen, a sorte colocou pa~; tlietos do carregamento de melões não deixaram de colocar.
tes entre o policial-comparsa e o caminhão, do que resulto";-
quíprocó sobre a legitimidade desse policial e sobre a reu~'
j
de passageiros- espectadores. Em Avígnon, a pesca do diâ,'; SILÊNCIO:
teve nada de milagrosa. LES MARCHANDS (OS NEGOCIANTES)
No decorrer de toda essa odisseia, nós outros espectads
estamos em busca do insólito, do fictício, do espetacular.' teatro interroga sempre sua relação com o real, não pode
percebemos pouco disso e retornamos rapidamente ao';" 'ln principio eludir a relação do texto e da imagem, tanto mais
Porém, estamos mais habituados a apreciar o valor referep'. ue essa relação não se estabelece mais simplesmente em ter-
e documentário do teatro. Pois estamos desconfiados do t"li' os de transferência do primeiro verso ao segundo, Com Os
documentário. Com efeito, na medida em que o filme docunj egociantes, Ioél Pommerat prova isso e abre um novo cami-
tário talvez se repita indefinidamente sem perder sua for. )10 à encenação. Autor e encenador de suas próprias peças,
teatro documentário perde seu valor e sua força a partir do •. .z bem mais do que encampar as funções e poderes; inventa
mento em que é repetido: vê-se bem que é fabricado, arrlI.n( 'um método de trabalho e de intervenção que o coloca no cen-
por atares mais ou menos convincentes. É uma nova forma' tro de uma saia justa permanente entre texto e imagem, um
teatro político? Kaegi parece desconfiar do teatro políticop '.'çentro que em seguida se transforma no lugar e no momento
menos o dos anos de 1960, diretamente militante. Ele não ren em que o espectador deve, ele próprio, situar-se, um centro
ciou, contudo, a descrever o real e a denunciá-lo eventualme "o chamado silêncio.
pelo menos na escala dos caminhoneiros: sabemos tudo sobre A primeira coisa, entretanto, que se ouve é a voz off da
gorjetas nas fronteiras dos Balcãs, mas o que existe sobre o Pt narradora, que conta sua história e a de sua amiga. Todo o es-
da máfia nos transportes internacionais? .. .petáculo repousa nesse testemunho e o palco figura as ações
Dessa forma, portanto, o cargueiro de Kaegi consegue fi' "':evocadas. Essa amiga é uma desempregada, vive reclusa no
desestabilizar: estamos ainda na realidade? A mesma foi ar" seu apartamento vazio) se diz em cantata com os espíritos e os
mada, encenada por Kaegi e seus colaboradores invisíveis? mortos, mata seu filho para protestar contra o fechamento da
tudo vai depender do nosso olhar? usina. Ao relatar os acontecimentos do seu ponto de vista, ne-
Ao invés de partir da encenação para chegar ao real, K"e.zi"i<illi les compreendidos os fenômenos parapsicológicos dos quais
parte, ao contrário, do real e nele procura, cava e acrescleIlI'''';,\.!ll participou) a narradora, mulher simples, senão simplória) não
348 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 349

sabe muito daquilo que diz, Não cessa de elogiar os méritêls a proximidade e numa intimidade tais como as conhecem
trabalho e se diz chocada com o fechamento da usina de aP ~dío ou o cinema. A voz, nas entonações lancinantes, nos
rnento, fonte de riqueza para toda a região. Ao fazê-lo ) noos ;ítos de suspense, parece falar ao nosso inconsciente, apesar
involuntariamente indicações para avaliar a questão do trá ":,"observações ou das conclusões muitas vezes ingênuas ou
lho. Basta prestar atenção às relações de causa e efeito qu,(' bOca críveis.
não é capaz de estabelecer: "Dez, dias depois do ato de mü; " A imagem também é trabalhada à maneira da de um filme.
amiga e um pouco antes desse anúncio da mobilização deli' :'~bertura do palco tem as dimensões ele uma tela. O palco,
so exército .. ."" Não é absolutamente preciso ser uma graJi '"se vazio, acolhe imagens despojadas, estilizadas: planos ci-
sumidade para adivinhar que a reabertura da usina devs. 'mato gráficos tratados como pintura abstrata. Vagas silhue-
mais à mobilização das tropas do que à "gigantesca emó'\i ~desenham configurações imediatamente perceptíveis, quase
SUSClit a d a por esse ato»'3
-. \ > ; ç,. óveis, quadros vivos, que não adquirem sentido senão com
Em quarenta curtas cenas alusivas, em que ressoams"" trilha sonora. Massas de sombras, os atores evitam qualquer
bentendidos, humor involuntário e constatações inquietani~' "itação, qualquer gesto inconsiderado, qualquer detalhe realís-
a representação nos faz penetrar num universo meio realist . A iluminação de fundo de cena transforma muitas vezes os
. '
meio fantástico. Tudo gira em torno da questão do empreg _ 'orpos reais em sombras chinesas: eles se destacam na cortina
e do desemprego, porém não há tese subjacente, nem por part(:;$ ';' fundo com franjas brancas atrás das quais outras formas ain-
dos personagens, nem por parte do autor. Não podemos senã."" a mais fluidas podem se deslocar. Evitando qualquer mímesis,
elaborar hipóteses: o sistema capitalista baseia-se numa mísÚ~i "imagem possui qualquer coisa de onírico e de fantasmático,
ca do trabalho e no sacrifício dos empregados, o que permit~, deinatingível: não constituindo um objeto puramente formal e
controlar e regular o mercado. A única chance de tentar um,;'?:.' ~stético, que não teria nenhuma outra finalidade senão a beleza,
resposta a essas perguntas é compreender de que maneira§ef( ~la se determina e se modifica ao contato com a trilha sonora.
organiza o espetáculo, particularmente quais ligações se est,;"t,', Graças à música e aos ruídos, embebe-se de uma atmosfera de
belecem entre sons e imagens. ' o"~uspense, de fantástico social. Porém, não adquire seu valor se-
ão com as palavras simples e tocantes da narradora: no mais
::das vezes "verificáveis» na imagem) estas apelam a uma figuração,
7.1 O Som e a Imagem "",i! ~,,'um gesto esboçado, uma reação. Inversamente, o texto ouvido
<ttoécomparável ao de um livro de imagens para crianças: está ali
Permitem-se usar estas categorias do cinema porque a trilha '-N ii(para apresentar, explicar, comentar as imagens; para assegurar)
sonora, assim como a banda de imagem, são montadas sep",~,' 'c; tIlão sem malícia, que a criança compreendeu bem a situação.
radamente antes de serem reunidas e coordenadas.
Com exceção de algumas raras réplicas pronunciadas ao o,,'
;~.
vivo e através de microfones HF, ou ditas sem ajuda técnica;"'·"~~{. 7.2 A Encenação de Autor
toda a narração, composta de frases curtas, foi pré-gravadae/v.r t'.
chega até nós através de alto-falantes. Palavras, barulhos, mú- oo; ,-, A dissociação do som e da imagem, a possibilidade para o mes-
sicas fizeram-se objeto de urna composição muito cuidadosa; . -;~,; <:",-
J": mo artista de trabalhar separadamente um e outro com o maior
comparável a uma peça radiofónica. A trilha sonora coloca-nos -,. cuidado, de reescrever o texto em função da imagem ou de mo-
:~ .~; dificar a imagem se o texto mudar, induzem um modo de pro-
, ~- ~:::. dução e criação muito raro na paisagem francesa ou europeia.
22 Les Marchands, p. 47.
23 Idem, p. 48. Certamente, Molíêre ou Shakespeare foram autores, atores e
350 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS 351

chefes de trupes, porém - para o melhor e para o pior . ica não é, portanto, aquela, central, controlada, objetiva, de
nhum encenador vinha interpor-se entre eles e sua obr 'rlimerat encenador. Pommerat tenta unicamente, com um
partir do momento, entretanto, em que o encenador estáú ,cesso estrondoso, fabricar uma cena a partir da perspectiva
p~ra interpretar à sua maneira o texto a repres entar, o sei; 'iuniga, ou do grupo que a cerca. Tudo está no conflito entre o
aquele de qualquer outro, devemos ater-nos àquilo que o au rn e a imagem, na impossibilidadede reduzir, ou de traduzir,
não reconhece (que ele acha estranho ou repudia). Como i para o outro. O encenador não mais está lá, como aquele
acontece com um autor como Pornmerat, encenador deSll '\te possui o saber e procura simplesmente exprimi-lo com os
próprias peças? Ele não pode ignorar o desvio produtivo 4'- "eios do palco, Transformou-se em estrategista, o montador
,constitue a encenação: para ele, é grande a tentação de e ' apanda sonora e da banda imagética: ele se outorga o tempo e
rimentar por meio dos recursos do palco a fim de examina' possibilidade de bricolar as duas bandas, ao preservar-lhes sua
mais exteriormente possível de que maneira seu texto pare'e,.- ~tonomia e) assim, não dando nunca a receita de sua aproxi-
claro. E grande é, então, a tentação de modificar o referido tê~j~ 'ação. Esta recusa é também a recusa total às respostas feitas
to de maneira a que o impacto do mesmo na imagem cêrÍiê~'\ :'~:questão do trabalho. Pommerat utiliza estas alternativas en-
seja transformado em retorno. Neste sentido, Pommerat é bérii- -ire a palavra e a imagem como esforço para verbalizar, refle-
mais do que um autor ou do que um encenador: pratica lIiri~ úr, explicar através das palavras aquilo que vê nas ações, mais
"encenação de autor" no sentido em que se fala, às vezei/if6- -iatamente o que os personagens se figuram.
cinema de autor, quando o mesmo indivíduo é responsável P~r'~t, Seja o que for que advenha desta montagem das duas ban-
toda a cadeia, a partir da concepção, do roteiro, da filmagelTlf~-:~: o espectador, que não sabe mais em que acreditar, se em
da montagem. Se o cinema de autor tornou-se raro) a enceh-ã~>/:. orelhas ou em seus olhos, percebe pelo menos o desvio,
ção de autor é ainda mais excepcional. Na Europa continelltãÚ" igeiro afastamento entre o visto e o ouvido. Essa defasagem
parece, em todo caso, que o autor interiorizou a necessidàd~~í, ncretiza-se nos momentos de silêncio. O silêncio é, então,
de fazer apelo a um olhar exterior para montar o seu texto:-~';;' ,~sse pequeno tempo de retardamento, esse relance do olho à
"encenação de autor" encoraja que se trabalhe paralelamente'.':)-' hrelha do espectador.
a "trilha sonora" e a "filmagem" de imagens, para em segllia~;::
confrontar os dois. Neste contexto, a ligação entre som e ilTlà<'?
gem é muito instável. O espectador é forçado a mudar cons-. 'C:; ;~;73 A Tentação do Silêncio
tantemente o sentido do movimento de um verso a outro. Or!,'t"" í?'
é o som que precede a imagem, que ilustra, sóbria ou parodiY.'.' ~ ;0\;0 silêncio é, antes de tudo, o dos ateres: nenhuma palavra é
camente, o texto dito. Ora é a imagem que vem primeiro, ese,S ili'ttocada. Com dificuldade ouvimos os passos no tablado, alguns
nos impõe como aquilo em que nos faz crer, por contraste com'-,;j,~:'borborigmas,enquanto a voz of! debulha uma palavra vinda
aquilo que diz o texto e, assim, passa a ser então uma mentirã.,:"',: t de não se sabe onde. A disposição do texto em versos livres
A arte consiste em desestabilizar o espectador: ele deve ieda'X) :::aeentua o efeito de breve suspensão da palavra a cada retoma-
palavra para a imagem ou o contrário? No caso de Pommera\~-{;,'~1:fda de fôlego. O silêncio é percebido em contraste com a voz
essa hesitação provém da pequena defasagem entre o visto eo. 'I'; ~':offmuito sonora, como o som no cinema. Porém, essa voz dá
ouvido, ali onde se coloca a ironia. Sabemos quem fala: a amí- '-;'i;' ;\!aentender bem os não ditos, as frases em suspenso, das quais a
ii:
ga, mas quem organiza o que se passa no palçor A imagem -t; última é repetida três vezes: "É então o trabalho que nos liga tão
parece "vista" com a mesma ingenuidade, em "câmera subjeti- ."; f'"fortemente?/Eu não saberia dizer. .."24 A ausência de resposta,
vã: como se estivéssemos diante de nossa imagem mental da'-~_>' ::i;,
':1
amiga, da sua maneira simplista de ver as coisas. Essa imagem' ~ 24 Idem, p. 53.
352 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA A ENCENAÇÃO NAS SUAS ÚLTIMAS TRINCHEIRAS
353

o jogo de palavras involuntário do personagem sobre o , Seja qual for sua diversidade, estes sete exemplos empurram
do de "ligá' (aproxima ou entrava?), a ambiguidade do di ~'-encenação clássica para suas últimas trincheiras. É COmo se a
("Eu não saberia": incapacidade ou recusa de falar?), tudo is; . ~áda vez, um contrato específico devesse ser estabelecido entre o
advoga em favor de uma conclusão impossível, de um silêntió ;'Público e a representação. Harmonia, reconstrução, decantação,
final, de uma vontade de não fazer a lição. reunião. travessia, enquadramento, silêncio: tais são as princi-
A imagem possui vários graus de silêncio. Quanto mai$ó~5i'" -pais funções desses sete trabalhos de Avignon, Sete princípios
atores são apreendidos, "filmados" em sorr.bras chinesa$, ma(s:g -'~-:éin meio a muitos outros, mas que) a cada vez, correspondem
suas atitudes parecem abstratas e estilizadas. São esboçadoi7i:!" .' a meios de dizer, mais do que mostrar, o real. Não há jamais ir-
portanto, em branco e preto, numa situação existencial imutã~(> \upção do real no teatro, como o reivindica às vezes um teatro
vel, nimbados de um silêncio metafísico. Quando esboçam UJÍi'!\., militante apressado para transformar esse real". A encenação
diálogo, sinalizado apenas pela voz off, ganham, aproximando-slé!;',; . sempre, e por definição, uma obra de arte, um sistema que
da rampa, algumas cores, como se se aproximassem também dei";;' separa o teatro da realidade. A arte e a vida permancem bem
nós. Não existirão tanto nuanças de silêncio quanto nuanças!';·" W:li$tintas, e mesmo o Cargueiro Sofia-Avignon não confunde os
de cores? "melões e os espectadores. Tudo leva a pensar que, se quisermos,
O silêncio, tanto do espetáculo quanto do espectador, está/. . através do teatro, conhecer melhor nosso mundo e nossa vida,
ligado ao momento de compreensão, de reconhecimento sú,,'r': pelo lado da encenação que se deverá procurar...
bito, especialmente da ligação entre imagem e palavra. Em Os;' ... .
Negociantes, o silêncio coincide com esse "instante criado pelâ'\\:i.;
superposição de diferentes instantes"", esse momento e esse.
ponto de integração no qual os temas, os fios condutoresse:
encontram, depois superpõem-se no espírito do espectador,
Silêncio efêmero, porém intenso. Esse silêncio verbal entre.as.
cenas, esse silêncio retórico e irônico entre som e imagem, es'~:-:':,~::}",
ses silêncios do texto rejeitam qualquer conclusão bem $UC~'9;;!F
dida no espectador com vistas a um silêncio íntimo: cada ulllâ·t.ii.
é convidado a escutar em si mesmo a ressonância de todos
esses ecos. "Havia um grande silêncio revelador":", constat~
ingenuamente a narradora. É também o nosso; é o silêncio dO.·. j
teatro como "lugar possível de interrogação e de experiência.. (\
do humano, não um lugar onde vamos procurar a confirmação .ii
daquilo que já sabemos, mas um lugar de possíveis e de reto- . {
madas em questão daquilo que nos parece adquirido"". ASS4ni,;
o silêncio não desborda necessariamente em melancolia e em
apraxia. Se for ouvido pelo receptor, torna-se imediatamente'
um incitamento a pensar por si mesmo.

25 Ioêl Pommerat, Notes de travaíl, dossíê pa~a a imprensa, 2006.


26 Idem. Les Marchands, p. 17. 28 Ver o livro de M. Saíson, Les Théâtres du réeI: Pratiques de la représentatian
27 Idem, Notes de travaíl. dans Ie théâtre contemporain,
-.~~
Conclusões:
Para Onde Vai a Encenação?

Onde está a encenação?


E nós, espectadores, onde estamos?
Nós a imaginamos como uma regulagem da representação
pelos artistas em nosso favor. É também uma negociação""
eles e nós. Os artistas querem muito dar-nos alguma cais,,;,
porém com a condição de que lhes apresentemos algo no,;','
,'.;

De nosso, dar-Ihes-emos alguma coisa, portanto, mas até"


ponto. Porque não basta, da maneira como a atual moda te"
nos encoraja nesse sentido, fazer tudo repousar sobre no-ág
frágeis ombros, nossos cérebros agitados, nossos coraçõe'
perturbados. É preciso também partir da obra analisada, a
e descrever o objeto espetacular, descobrir-lhe as formas-a.
forças, não nos instaurarmos como criadores de pleno direi'
Certamente, criadores gostaríamos de o ser. Porém, será
que somos peio menos uma assembleia teatral, uma comuQ: :.que é a encenação? É o teatro recolocado no seu lugar, no
de reflexão e emoção ainda disposta a receber, apreciar lugar exato, o teatro tornado acessível a um público e a um
e compreender o teatro? : menta dados. Resta saber o que o torna acessível!
O percurso deste livro foi, em si, a encenação de algumas
Isso depende igualmente da forma pela qual serão regulada, uezas espetaculares pinçadas ao acaso dos encontros, bons
questões muito espinhosas, desfeitas dos nós muito apertad maior parte. Conduziu-nos através de experiências extre-
As doenças da encenação. que não são incuráveis, mas 'mente variadas para regiões muito contrastadas. Este não
unicamente infantis, enfraquecem-na consideravelmente. FalI ',contudo, senão um caminho para atravessar a produção
dinheiro, o interesse murcha, o desejo se esvai, a comunldadê rica destes últimos anos, um caminho que cedo desapareceu
abandona o jogo, nós voltamos às nossas províncias. :''floresta, um Holzweg heideggeriano, um caminho que não
O encenador, tanto perturbado quanto perturbador, nunca va a parte alguma.
termina de dialogar com seus duplos: atar, autor, drarnaturqós' , Contudo, não haverá nesse bosque bússola alguma que nos
coreógrafo ... Também aí se renegociam os acordos passados eixe jamais sair. Até as migalhas de pão do Pequeno Polegar
'iam mais seguras para nos conduzir à entrada. Tentamos
A velha questão do casal - ou a questão do velho casal - ..' uiito fazer breves paradas nos altos lugares da produção espe-
texto/representação coloca-se novamente. O eterno debate.,};' ,'ular destes últimos anos, mas sabemos que a regra do jogo
sobre a fidelidade do encenador à peça retorna como a volt" •.,' ,::nos escaparia, que a encenação tomaria formas e identida-
do renegado. s inéditas, e a paz dos bravos - a classificação definitiva dos
gócios teatrais - se afastaria para sempre.
O que foi que, apesar de tudo, restabelecemos neste périplo
rigoso? A intuição de que a encenação foi uma boa artimanha
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÜES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 357
356

para falar do teatro e que o termo também Hão estava de';? lberada de resistir à rejeição pós-moderna e pós-dramática
diçado e ultrapassado como às vezes se diz. A encenaçf' t()da teoria sistemática? Qual foi, portanto, nosso percurso,
é apenas o lugar apropriado para a pesquisa de formas e iór que foi também sinuoso?
rimentações cênicas; é igualmente, ou_ao menos poderiaá
um lugar reparador da ligação social. E a última utopia deU'
experiência e de uma entrega coletivas, pois o teatro, avaIÍ , UM PERCURSO SINUOSO
atual diretor do Berliner Ensemble, Claus Peymann, .\
Nas fronteiras da encenação, mas no interior das mesmas,
arrasta os espectadores e os faz viver uma experiência comum-::"'::"' '(eatro da voz, o teatro de colocação em jogo e a leitura dra-
em alguns casos é uma entrega comum) uma catarse transfof';- ~tizada apareceram-nos como «encenações apesar de tudo")
dora, no espaço de um segundo utópico quando todas as pesC' e,no entanto, ganhariam ao serem descritas como ações per-
olham-se como seres fundamentalmente bons [... ] [Essas pes{' f()rmativas. Esta descoberta abriu caminho para um confronto
todas aspiram a esse segundo sagrado, durante o qual um «silê~
a~encenação e da performance (capítulo 1).
de morte" reina na plateia. [... ] A cada vez, o teatro ofereceÜ'
imagem do homem muito para além dos clichês'. Esse confronto foi aprofundado, sistematizado (capítulo 3),
tado por análises e ampliado metodologicamente na oposí-
Não nos permite, este segundo de compartilhamento fi complementar da semiologia da encenação e da fenomeno-
mano, mudar o desespero para utopia, retornar à constataçã~' ia da performance.
Jean-Claude Lallias? Para este, "à utopia de unificar os públi' A cenografia ofereceu-nos a oportunidade de comparar os
numa assembleia de compartilhamento responde a pulveriz~" ,éritos de uma descrição funcionalista e a de uma fenómeno-
em microlaboratórios praticada por uma sociedade fragti-i.. ia da percepção, tanto a do cenógrafo quanto a do especta-
tada, com perda de identidade e, talvez, de destino comuIri.'i .r'Ccapítulo 4).
Dupla utopia, portanto: a de unificar o público e a de respofl4'·'·!" Mesmo o pôr em jogo de textos contemporâneos, não obs-
desse modo à fragmentação alienadora do teatro e do mundc inte cética frente à análise, apresentou-se como desafio à teo-
Ninguém mais conta com a arte ou o teatro para salv~rà,que teve que afinar e estender seus métodos a práticas em
humanidade. Porém, quem, neste começo de milênio, não tt· 'as de inventar-se (capítulo 5).
necessidade deste "segundo sagrado"? Desde a época, hoje.1.lm•. ··. • O espetáculo não europeu, neste caso O coreano, foi para a
pouco idealizada, do "teatro a serviço (do) público" do pós-gué&.t··, ••, cenação, noção originariamente europeia, a principal pedra
ra, desde o sonho viteziano de um "teatro elitista para todcíki,t: "qe toque intercultural, mesmo que os artistas coreanos frequen-
dos anos de 1980 um pouco demagógicos, será que estamos.no '}" ll'temente tenham usado "métodos" de interpretação e díreção
momento, na cínica e debochada era do "teatro igualitário p.ir~,-A'! ~jf:cidentais (capítulos 6 e 7). A ausência de grandes encenações
mim"? Uma razão a mais para esperar um pouco de oxigênlóW,i.j4~!;.\Uterculturais na Europa é sintomática da crise do teatro inter
Ê isso que tentamos aqui, ao nos embebermos de algUln~...<;; ~,.?umulticultural, e isso no mesmo momento em que os polítí-
,I, fontes vivas da vida teatral de nosso tempo. A cada paràda;;~.. jf; ~.ços e os trabalhadores sociais gostariam de convencer os artís-
cada capítulo, tivemos que modificar o método de análise, não..··}! ~'tas dos benefícios da sociedade multicultural e das mudanças
pelo gosto do ecletismo, mas a fim de adaptar a teoria à díver- ...• fY;ulturais. Um desafio cultural lançado aos artistas, que talvez
sidade do objeto. Isso não foi senão um meio, uma vontade- ;:,Aão tenham nem os meios, nem o desejo de observá-lo.
T. ~'.'" A entrada de midias audiovisuais em cena impeliu o teatro
1 De Groene Amsterdamer. ",. 'jpara suas últimas trincheiras, obrigando o teatro e o público a
2 }.-c. Lallías, Les Tensions fécondes entre le texte et la scêne, Théâtre aujourd'hui,
n. 10, p. S.
; t.1l1aior tolerância e flexibilidade, ao invés de ficar na defensiva.
358 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSOES, PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 359

Nesse campo, com efeito, o teatro arrisca-se certamente a pet' -, As peças clássicas são o terreno em que esses parâmetros e
sua alma, mas também a regenerar-se) diversificar-se, atualr' ses métodos de análise podem ser melhor testados, Sua en-
-se, ao invés de desfalecer, de essencíalizar-se, de se "grotov' 'nação revela sua verdadeira novidade, sua finalidade e SUa
zar": de reduzir-se a uma essência cada vez mais pura e etét laneira de proceder. A encenação oscila entre legibilidade e
O desafio metodológico parece estar, neste caso, no seu áp ~gibilidade, a ilegibilidade estando comumente a serviço da
ce, considerando-se a diversidade das mídias, Um cruzam~I{ pDs_modernidade ou do pós-dramático (capítulo 11).
to de tipos de análise, de métodos vindos das artes plástic~lc-, 'Y:•. Todas estas hipóteses foram testadas uma última vez em
da tecnologia não pode ser senão benéfico. Todos os olhar~~?" !~guns espetáculos do Festival de Avignon de 2006 (capítulo
convergem para a noção de intermidialidade, a encenação áR~,;i~:i '1\2). Ao se separar, por comodidade de exposição, todos esses
rece cada vez mais como uma "regulação': Porém, regulaçã~k tipos de espetáculo, sugerimos, no entanto, examinar os "cru-
não quer dizer regulamento, e ainda menos regulamento~~'j~: ~.imentos" de todos esses tipos, a maneira pela qual cada um
contas (capítulo 8 ) . : , ; i : influi nos outros. As análises de espetáculos concretos mostra-
• Esta regulação", seja semiológica ou performativa, i:ol<ié~';­ riam isso facilmente.
em jogo, em crise, em desconstrução, os saberes oriundos-:,-a~i{:,:,~
dramaturgía, da teoria das mídias e da fenomenologia (capítúl\f;'
9). A desconstrução é também a das fronteiras entre os tipos1~""'!- ;~Y2. UM BALANÇO CONTRASTADO:
práticas teatrais: teatro de texto, escritura pela cenografia, t~.g.'Y:)Y'~i' OS ANOS DE 1990
tro dos clássicos, teatro de imagens, performance multimídt~iY,i:~'~;.
Esta distinção, adotada no presente estudo, é mais pedag6gigKi"-}$ -Yibada a diversidade de práticas cêriicas, das quais nos demos
do que característica do provável futuro dos espetáculos·i;alj,y·,,';~\tontaamplamente nestas páginas, as observações que se se-
• Todos esses efeitos midiáticos e díscursivos repercutemnQ,,), ~Yguem serão necessariamente rápidas e gerais, úteis talvez tam-
corpo da atríz, o que convém abordar com o maior tato·A?..-(,g 'ijpém para tomar consciência da evolução da arte da encenação
modelo expressionista e semiológico dos anos de 1960, subsf'.~..;;; i,~m seu conjunto. Esta evolução explica-se por duas séries de
tuíu-se um modelo de identidades distintas, modelo empr~§'::)É~.j; l}fatores, extrateatrais (sociológicos) e teatrais (estéticos), fato-
tado especialmente da gender theory (a teoria das "relaçií!l§·,y:j-~ttes de resto estreitamente ligados entre si e que não podemos
sociais do eexo' ou "gênero sexuado") (capítulo 10)4. 'i" ê>diStinguir a não ser por pura comodidade de exposição.

3 Nunca falaremos o suficiente da importância desta "regulação" da represenjà-c:


ção. O encenador Alain Françon concebe-a como a função da representasã,O;
"Asregulações me parecem ser aquilo que define a representação, mais do qu~:
;,J
o próprio espaço ou não importa qual signo. Elas precisam de uma série;:;~~e:, ~?:Estes fatores são decisivos porque tocam no conjunto da vida
escolhas precisas. Estas escolhas temos que praticá-las a cada instante, p~n:l~~ . ,~' ~,:s.ocial, sem que os artistas possam substrair-se a eles. Os efei-
.'
a regulação é forçosamente contínua. Encenar seria compreender o des.'-,;~?,:'..
constituído pela representação e que esse desvio não é um ponto fixo, màS'·uqi~.': :i"f ~\tos da mundialização e da privatização da economia fazem-se
regulação contínua" (La Représentanon, p. 74). Para a filósofa do visível, Ma0:~;;:;.;:,~ ~rsentir na criação. Grande quantidade de artistas independen-
-Iosé Mondzain, "se a ciência dos fenômenos é urna regulação ininterruPt~4,g:{"" ~,':,:,-,',t,es OU de grupos desaparece à falta de poder efetuar a monta-
dizer sobre o ver e do ver sobre o dizer para controlar seus desbordament"9f:· -"
recíprocos, então a arte. a arte poética e a teatral consistiriam, ao contrário,~:' ~:gem financeira ou de receber a subvenção que tornaria viável
em tornar sensível essa desregulação do visível e do dizível ao dar sua for{'1~ ',~, ,~)eu projeto artístico. Estima-se que, por causa dos atrasos no
regulada ao próprio desregulamento" (idem, i b i d e m ) . , ',,:' ',': -,',:b.pagamento das subvenções) cerca de quinze por cento das so-
4 De acordo com a tradução proposta por M. Delvaux; M. Pourníer, Rappot!S, ..
soclaux de sexe, Le Dictionnaíre du Littéraire, p. 489. ':, ~·.mas é revertida aos bancos sob a forma de ágios. No plano das
360 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 361

grandes instituições, a obrigação de coproduções n ' •.' \ O privado, a reabilitação e a promoção do bulevar fazem-
. . ' aClOn'
cada vez mais frequentemente internacionais, conduz a. i- .-
c .;'companhar
e~tandardização de procedimentos estéticos, a uma simplifi
çao dos problemas abordados. A encenação e o dl'nhe'" :'·"ma bulevarização de certas encenações - em nome, seguramen-
. Iro co-
guram aquilo que a teoria e a crítica dramática deixam mu' 1~o prazer do espectador: realizações "s~rfantes" sobre o texto
veze~ de lado, por falta de conhecimentos e de informal' . ' 'o menor cuidado com um ponto de VIsta: emplacamenro em
suficientes, mas igualmente pelo cuidado legítimo de nãoltí" importa qual peça de gags e gracejos anedóticos; cabotinismo
turar as escolhas estéticas e as questões de varejo, que não :í1iJreio de ateres-vedetes".
o menor impacto evidente no resultado final", Mencionanl
somente alguns aspectos para registro e como sugestão' ,e A constatação de Heymann é desanimadora, não apenas
o:,tras pesquisas, remetendo à excelente explicação de Pi~i '"ara as finanças da arte teatral, como também para a estética
-Etierine Heymann. > '~"sua encenação:
O fim do Welfare State, do Estado-Providência, do Estâd-
"caixa-registradorá; o quase desaparecimento nos ex-paísesd .",:':':',' Arte suntuosa, arte anedótica e arte conceitual são as caras mais
Leste ou a sua forte redução na Europa Ocidental de subvençilJs (,;,·parentes do teatro públic? ~:olibera.l: a ~ace neoconfor~ista, to-
., ente voltada para a exibição do dínheíro: a face populista, far-
do ~stado e das coletividades têm funestas repercUSsões na pr4 da de solicitude caritativa; e a face modernista, com seu discreto
duçao teatral. Com esse desaparecimento, é de se acreditar qti rfurne de sofrimento, que valoriza a espiritualidade do "criador"
o teatro de arte, tal como o concebia Paul Fort no fim do sécill ia 'autossatisfação do consumidor iniciado nos arcanos da arte de
XIX e tal como era ~raticado nos teatros nacionais da Euroit N~nguarda8.
oriental e central ate o fim dos anos de 1980, tenha também'
desaparecido para sempre. Com efeito, fazem-lhe falta tatíl6 O financiamento do empreendimento teatral é, ao mesmo
os meios econôrnicos quanto a determinação de uma vonts: .. ,'"mpo, o que o salva do desaparecimento e o que lhe infringe
política e nacional h e g e m Ó n i c a . , "Jil mal de que nem mesmo se repõe, pelo menos no plano
Heymann mostra bem de que maneira o teatro público,i ~'Stético. De mais a mais, o teatro depende de leis do mercado
França, mas também alhures, recorre cada vez mais ao SPO~i:M"" .Jde condições econôrnicas do momento. As instituições tea-
soring, privatização de inúmeros serviços, abrindo-se ao mel'i"'!?l -"t~ais, das quais os artistas não teriam condições de escapar,
cado por meio de ambiciosas coproduçõas. A mundializaçã~:'- , constituem uma enorme bolsa de talentos com cotação e quan-
atrai "o dinheiro multinacional investido para produzir eventos ,·tificação de seu valor mercantil. Fazem projeções sobre as pers-
luxuosos, montados por encenadores transformados em vede;":' 'pectivas de carreira, entregam -se a uma espionagem industrial
tes (como Robert Wilson, Peter Sellars, Robert Lepage, Lucl;;IVI..:, : para descobrir os jovens talentos, a nomeá-los para onde terão
Ronconi, Luc Bondy). A pesquisa artística é pré-financiadá>\:it,\~i:a maior visibilidade.
p~o?ramada, calibrada com a intenção de públicos de meiat:~J;'rt',~.. Esses fatores sociológicos da mudança são acentuados tam-
dúzia de manifestações internacionais de presrígio'". A priwh~)~,;{ ii bém pela evolução das formas teatrais, à qual consagramos o
ttzação do teatro público, a reviravolta de subvenções públicas ?::f:~ 'ê;essencial da nossa pesquisa. Um breve aderido, a propósito da
; ,-',,e_,.',', <,'t, escritura e da cenografia, confirmará sua importância.
s As~:cto negligenciado por pelo menos quase três exceções: R. Abirached,Ú,...

;~:Z:~?~tE;Z~:n~::::1~i~r~~;:E:;:~t;'~~€::5~~:~::;;~;}/~
Public, assrm COmoseu livro. ··":i
1t ~~:':
7 Idem. p. 14l.
6 P.-É. Heymann, op. cit., p. 130. .'.~ ~:, 8 Idem, p. 146.

, '·0' :{
362 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÔES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 363

2.2 Fatores Teatrais


ades espaciais não foi testada e, às vezes, esgotada. A ceno-
. a melhora muitas vezes a relação frontal de antigamente,
No decorrer dos dez ou quinze últimos anos do sécul : "em se tratando do bom e velho palco italiano.
escritura.dramática renovou-se profundamente. A enc~n~ Em homenagem ao célebre artigo de Barthes sobre "Les
teve que Inventar novas fórmulas. de interpretacão ao :h 'àladies du costume de théâtre" (As Doenças do Figurino Tea-
• • > m~,

tempo . mais simples


_ e das mais sofisticadas.
. A muda11ç d
a acej fil), vamos observar a extensão dessas doenças a toda a ence-
e da mterpretacao sob o efeito de um transtorno da e ..,: 'a,ção, sem pretender conhecer nem propor os remédios. Essas
- , ' sent"
nao e, de todo modo, uma novidade. Vitez elaborou uma I':, '-oenças" são antes sintomas de recentes mutações artísticas
evo Iuçao
- d o teatro a partir de Claudel e Tchél<hov: el·
que males incuráveis e funestos.

~h'I-L
Ninguém sabia interpretar Claudel ou, no seu corneç
. -
.-'\-;~:.'
O,ne
rc e 1J.1~V> porem e ter de interpretar o impossível que transfoi~'-â As Doenças da Encenação
T<
cena e a Interpretação do ator; assim, o poeta dramático estanaon
gem das mudanças formais do teatro; sua solidão, sua inexperiên .\
.J," a tée sua uma d e são-nos preciosas. O que podelnos_fai~'
sua lrrespon.sabílíd
í q. . _ Quando a encenação nada mais é do que um estilo, uma
com autores tanmbados que preveem os efeitos da iluminaçã :'?,f )iliarca de fábrica, uma etiqueta, que reapareceriam sejam quais
inclinação dos tablados? O poeta não sabe nada; não prevê ~;d~;!0". "fórem os autores ou espetáculos, muito cedo começa a se de-
resta aos artistas a interpretação9 • ... ",__ I gradar num exercício de estilo, num sinal de reconhecimento.
Áimitação se faz também de colega para colega: na Alemanha,
A multiplicação de experiências de escritura renovou a niáÂ.~·];aurent Chétouane retoma a célebre lentidão e imobilidade de
neira de interpretar. A encenação, assim, não é mais fragmeni:(s';iClaude Régy ao aplicá-Ias a todos os autores interpretados. A
ria, mas mlniaturizada: contém potencialmente o conjunto, es'i~0 'lentidão e a imobilidade, uma vez passada a surpresa, condu-
centrada no ator, que ela dirige com rigor, não repousa nÚm; .zem a um oratório fatigante.
esboço cenográfico ou decorativo, Encontra um meio coerentê\.1''i· ." Os jovens encenadores, em vias de serem reconhecidos pela
de "executar» o texto) ao seguir escrupulosamente sua partiili.si;lf~~ -.Instituição) sentem-se, às vezes) constrangidos a impor uma par-
ra. Desse modo, foi preciso inventar uma atuação para interi·'i.·< . ticularidade, de fazer-se notar por tal detalhe ou tal maneira de
pretar Koltés ou Vinaver e todos esses autores que não exige';;" proceder que a instituição tacitamente reivindicará deles. Essa
um tipo de desempenho determinado, o mais frequentemetiii: ,iii particularidade ora lhe é reclamada, ora reprovada. Uma crise
te psicológico, A atuação dispõe, de Stanislávski a Grotóvskí.', di
;!;', aguda de "juvenismo" afeta a paisagem atual, especialmente na
de uma ampla gama de possibilidades. Para um desempenh~'~:';'.;;{ Alemanha. Os Intendanten (diretores de teatro) procuram avi-
que não imita um comportamento psicológico, deve-se mail .;{~' darnente as pessoas jovens, sobretudo se são do sexo feminino,
ainda encontrar uma maneira inédita de "abrir" o texto oU'a';ii'i~;:; para confiar-lhes alguns pequenos trabalhos cênicos, na espe-

~~:1~~~:~~;::::a~:::::~~:~~o:~:e::::~~á~l::::ç:o;'ifi~'~~ f
,ii' 'i.
p~lco-!,lateia não parecem ter conhecido, depois das revolu-
;::~p:~;;~:~:~:~:;o~~~:i;~~~~~:~~::~~~i~~:~~~~~~~
tação como um meio para explicar a peça. Esclarecer, tornar
.e

çoes cenicas da vanguarda histórica até a vanguarda dos anos " ; i' sensível o sentido da peça não é uma tarefa desprezível nem
de 1960, novos desenvolvimentos. A maior parte das possibí- -..~ -::":~"~.
it mesmo inútil, mas, no entanto, não é a finalidade do trabalho
9 A. Vitez, Editorial, I:Art du théãtre, n. 1 p_ S.
10 Ver o número especial de Theater der Zeit, n. 25, Radikal jung. Regísseure.
364 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÓES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 365

teatral!', Assegurar a legibilidade não é, evidentemente


- . ..
a nao ser num fundo de ilegilidade. Uma não cessa d
) pOSSl'\f
,< J1le,w'v defeito, denuncia muito essa obsessão de nossa época
e couve desmontagem de conceitos e representações.
ter-se na outra, e reciprocamente! Ousaríamos o compfIelnli",çj • A festivalização dos espetáculos se traduz por uma certa es-
Não ser totalmente legível, nem totalmente ilegível: não é tafld'lrOLlLdl-'dU, um medo da experimentação. Esses espetáculos
o objetivo da arte? Aplicado à encenação, diremos: ela -""'o.,,,, concebidos na perspectiva de um festival, Avignon in, ou
visível, porém discretamenu-, corno convém ao "charme off,esI,ec:lallmente, onde serão rodados, comprados e, eventual-
creto da boa díreção"! Não tem que se esconder, assume distribuídos. Maneira concentrada e eficaz, económica
escolhas ou suas hipóteses, porém não ganha nada ao proveitosa, de produzir espetáculos estandardizados, tão ra-
muito diretamente sua estratégia, pois o espectador os;telntall'? pidamente esquecidos quanto apresentados e tendo que deixar
sa-se rápido daquilo que já compreendeu. Adorno observe», para os próximos festivais, tudo como esses filmes que
nas obras de arte: "A posteridade das obras, sua recepção não duram senão alguns dias, esses livros que desaparecem das
quanto aspecto de sua própria história, situa-se entre a reCUsa pnlteleíra, ao cabo de um mês, esses beijos retomados assim
de deixar-se compreender e a vontade de ser cc)rr'plcee:nclid.a; que são dados ...
esta tensão é o ambiente da arte"!", • Uma nova divisão de trabalho deriva da mutação do con-
+ A tentação decorativista provém do desejo de conseguir texto polítlco-sociocultural, pelo menos para os centros dramá-
destaque pelo luxo dos materiais (cenografia e figurinos). ticos nacionais. Com efeito, a criação teatral reivindica novas
artista obriga-Se a prestar contas às autoridades de tutela do especializações: engenheiro de som, especialista da luz con-
serviço público e, tentado a proporcionar prazer ao grande pú- troada por computadores ou da imagem em vídeo, ao vivo ou
blico na mesma ocasião, tem tendência a "encher-lhe os olhos" gravada etc. Essas especializações altamente técnicas impõem-
A cenografia, as mídias no palco ou a publicidade em torno do -se ao encenador. Sem dominá-las quase sempre, este considera
espetáculo são os suportes dessa perversão visual, dessa busca essencial integrá-las à sua criação.
de uma estética carregada na cenografia: "São na maioria • A partir daí, novas identidades profissionais não cessam de
novos ricos que produziram o desenvolvimento da cultura: o aparecer. Colaboradores pontuais são contratados para tare-
aumento das subvenções públicas não socorreu, em princípio, fas precisas) comumente muito complexas) para a luz) o som)
os atores e os escritores, ele decuplicou os meios cenográficos a coreografia. Essas intervenções apõem no espetáculo a mar-
e técnicos'"". .
ca de cada colaborador: tem-se um espaço x, uma luz y, uma
+ A arte conceituai tem a tentação inversa: esta última con- gestualidade z. Essas assinaturas valorizadas no momento são
siste em reduzir ao máximo a sensualidade do teatro, sua per- semelhantes a um Post-it, nem sempre se integram à estética
cepção ecumênica, como dizia Barthes, para apelar à reflexão do conjunto do espetáculo. Inversamente, a invenção de tarefas
abstrata do espectador e às convenções cénicas. A encenação novas e experimentais para a encenação, como, por exemplo) a
,i atual de textos contemporâneos é, frequentemente, coriceitual, reavaliação do papel do dramaturgo ou a técnica da direção de
.1 e não apenas por razões de economia, em todos os sentidos do atores, é muitas vezes freada pelos hábitos lentos da produção
terrnow, mas por uma espécie de terrorismo do pós-mo der- ·.\1 ou pelas severas leis da produtividade.
i no ou do pós-dramático. A desconstrução, quando não cai no • Disso resulta, para os grandes modelos da encenação, uma
I
'. 11 ~~ra retomar uma polêmíca amigável com J.-P. Han, Théátre daujourd'hui,
estandardização, que ainda é acentuada por um double bind,
~.Ere de la rnise eu scêne, n. 10, p. 165. uma dupla pressão: de um lado, uma exigência de originalidade
12 Asthetische 7heorie, p. 448. (Trad. port.: Teoria Estética Lisboa: Edições 70
2008.) "
artística a qualquer prova e a qualquer preço, que impõe uma
13 B. Tackels em B. Picon- Valleín, Les Écrans sur la scéae, p. 126. obra inédita e impactante; de outro lado, uma formatação da
i 14 Ver supra, cap. 5. demanda que emana de grupos sempre mais especializados, de
:1:
366
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 367

aficcionados com expectativas bem definidas O pu'bl' ." ; zeck de Büchner montado por Ostermeier para o Festival
. . rco drvi ~.ISSO, os c I"aSSlCOS sao
-se num conjunto de grupos formados com a caracte ' ," Q)'
;.,C/ vigno n em 2004 16 . P ara razer - a VItima
..
. rIsbca
se interessarem cada qual apenas por um único tipo d < ~.u: a problemática é simplificada, modernizada superficial-
culo, O espectador torna-se rapidamente homem de u e es~,~ "eIl te , adaptada ao gosto do público de jovens, transmitida
, .
so: trtste m o n o g a m i a ! - ,
m~ .
:retamente para as autoridades locais, do produtor ao consu-
• A esta guetização de públicos, a esta autonomiza _' ,'idor, do decisor ao decodificador. Os teatros e os artistas não
práticas cênicas, a este recuo do teatro para as mil f~:q· "ãü mais, então, do que correias de transmissão. Desembara-
mdependentes acresce-se um certo esfriamento pe
. .
outras artes. A drferença dos anos de 1970 quand
' b '
a a ertura
)
rante'
o,graç
.
do .Festival de Outono de Paris no meio art't".
",;-
i. "(lIllo-nos, por fim, dos encenadores, reduzimo-los a anões de
~rdim dos quais se servem os proprictártos da República para
. IS 1
'quadrilhar o mundo e computar as suas saladas.
amencano, misturamos alegremente pintura, artes plástic~?
dança, performance e teatro, os últimos vinte anos do ' "1"
- . secu·
xx nao aboliram (contrariamente às declarações) as fronteir~- O QUESTIONAMENTO DA ENCENAÇÃO
entr~ as artes. HaVIa, no entanto, uma tradição de mistur~'_:::: E DE SUAS NOVAS FUNÇÕES
partrr da dança-teatro (Pina Bausch ou Maguy Marin),d~
, da rua e do circo novo, tanto quanto experiências abe-,
artes e~.
,', ,', • Esta crise do encenador haverá de marcar o seu fim pró-
tas a arte contemporânea, à diferença da encenação estreita' "frimo? Nada menos seguro! Há muito tempo que o "diretor de
mente teatral. <:,'tI' ;'ceuà' (como se diz em espanhol) não é mais o mestre incon-
• Felizmente, apesar do purismo, alguns artistas não hesti '"" testável do reinado. Ele tornou-se uma LTDA., uma sociedade
taram: nest:s últimos anos, em "passar dos limites': Jacqlle~,4~, de responsabilidade limitada, um sujeito pós-moderno inter-
Rebotíer, musico e poeta, compõe espetáculos em que mistui~;0 'mitente que perde e dispersa voluntariamente seus poderes
os pnncípios de diferentes artes: "Apreender uma arte comaS)':.'F . (continuando totalmente a receber-lhes os dividendos),
ferramentas de outra estimula a invenção. Cada arte é fractál':;'}}) ,,' A encenação como sistema semiológico de signos contro-
e remete às outras"!", Valere Novarina confronta sua pintura":',' "i lados a partir de um único olhar durou muito. A clássica am-
Sua criação poética no seio do acontecimento cêníco. Prançoíso, bição de um Copeau, um Craig ou ainda de um Strehler, que
Lázaro fabrica marionetes de talhe humano que faz rnanípular. sonhavam substituir o autor dramático por um autor cêníco

~!~I~:~;r~~~:I~~~~:r~is~~,~:2~~:~~;Z~:~?t,·i''.)'[1'
que lhe permanecesse fiel até o fim, fracassou contra a realidade
pós-moderna da cena e do mundo, e isso a partir da reviravol-
ta dos anos de 1970. É o momento em que a desconstrução,
curva-se às sutilezas da manipulação de superfícies, objetos e UL inspirada em Derrida, "desmonta" tanto a semiologia quanto
do corpo do ator-narrador. .-: ;: a encenação) reprovando-lhe) não sem razão) ser um sistema
• A r~núncia praticada pelo serviço público e pelo teatro"-" ,ir
fechado, que mascara a dinâmica do desempenho do ator e da
subvenCIOnado, o desinteresse do Estado, tomam na França o C,.;}, ' " representação: o momento em que, por exemplo, Barthes passa
aspecto de uma política demagógica. A tentação é grande, com "'i~; do "sistema (da mo d a ) " ao " prazer (d o text o )"17 .
efeito, de não mais subvencionar a não ser as encenações de
grande espetáculo, que com muita força introduzem as mídias
audiovisuais, raios laser, hip hop no seio da peça, como no 16 Ver P. Pavis, Woyzeck à la cour d'honneur, ThéâtrelPublíc, n. 175.
17 Para retomar o título de dois dos seus livros, aparecidos respectivamente em
1967 e 1973 (Trad. bras.: O Prazer do Texto, 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008,
15 f. Rebotier, Cocasseries et consonances, Mouvement, n. 21, p. 71. ., _'c:,
e O Sistema da Moda, São Paulo: Martins Fontes, 2009) .
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 369
368

Ninguém melhor do que Bernard Dort denunciou ; ; " e r e n ç a , que conduzem às vezes ao comunitarismo sectário. A
. OS,TI 11,
cos deuma te?na e d~ uma represen:ação fechados!'. Dortll ;Hse do intercultural, sua incapacidade de situar as culturas ao
pode~Ja ter SIdo mais claro. Sua cntica leva à concepção'" 'esmo tempo na sua especificidade local e na sua humanidade
espetaculo como uma Gesamtlcunstwerk wagneriana ou c :c., 'n':iversal, não facilita a tarefa dos artistas multiculturais.
escr:tura c~nica de Craig: "U~a crítica de Wagner e de ~r~~ O neossujeito pós-moderno não consegue coisa melhor,
impoe-se. E uma nova definição da representação teatralh ? l e modo algum, no domínio do teatro político, pois o públi-
ao invés de fazer dela uma união estática de signos ou um ~ti "ia admite mal que se lhe dê lições. O teatro épico brechtiano
tatexto, aí ve~ia un:' procedimento dinâmico que tem l u g a r ' e s ua ponta afiada têm a intenção de tocar o público no cora-
t~mpo e que e, efetivamente, produzido pelo ator"!". À maneif:l 'kão de seus interesses, ao assinalar-lhe as :contradições e ao
víteziana, ele descreve a encenação como uma produção autô~;j1iÍpontar-lheos gestus dos personagens. Porem, pela crença de
noma de sentido e não como uma tradução ou uma ilustraçãó'ih'" 'ser muito direto e muito doloroso, os neoencenadores enfra-
do texto 'pré-existente: "Constatamos hoje uma emancipação,~'jJ; /"quecern sua análise dramatúrgica, acabam ficando no geral ou
progressrva dos elementos da representação, e nela vemos umaj,,(·,. "no ambíguo.
mudança da própria estrutura: a renúncia a uma unidade ai;:" ' . ~:'. O questionamento dos poderes do teatro deixa a represen-
gânica prescrita a priori e o reconhecimento do fato teatral' :. tação sem perspectiva clara, à imagem do mundo em que vi-
enquanto polifonia significante, aberta sobre o espectador"'o 'vemOs. Esta última tem dificuldade de encontrar seu caminho,
Vinte anos depois desta colocação, verificamos a justeza d~'.,. ,\pois numa paisagem sombria tem, antes de mais nada, muito
diagnóstico de Dort, O encenador, esse novo e mau neossuj;.'jj ;'para corrigir, muito para preparar também, para um futuro que
jeito pós-moderno, deve admitir que perdeu sua posiçãod~;:D. 'se anuncia não exatamente róseo.
apogeu e sua soberba. A principal coisa a corrigir, por outro lado, não é atacada,
• Porém, esta perda não é tanto um desafio pessoal quantO';z,Ç:;i'; funciona até que muito bem: é a comunicação, aquela das mass
um sinal dos tempos. O desafio, caso esta noção tenha algUJ:n)-;;[' 'media e das mensagens prontas. O teatro coloca justamente em
sentido em arte, é antes o de algumas tentativas teatrais par~,!i;/"'dúvidaa pretensão de comunicar tudo, a tirania da informação
fazer escola e fundar um sistema./;ijj~j:i i.e da vigilância. Tal como a concebemos atualmente, a encena-
Desse modo, a pesquisa de Brook para fundar uma língu~:';:ft:,'t )~J!ção não tem que ser clara, legível, explicativa. Seu papel não é
universal do teatro, uma arte acessível a todos, não desborda ..;:r iJ.;: servir de mediadora entre emissor e receptor, autor e público,
numa produção e numa leitura universal de signos, mas, no,'~·';i de "arredondar os ângulos". Ao invés de simplificar e explici-
melhor dos casos, como o observa Vitez, na leitura por meiot· . .••.]~.?. ,C_~.~ .: tar, continua voluntariamente opaca. Depois das iluminações
de uma "translínguístlca'?', um esperanto sonoro, visual e ges- ".' "'L' lfi' do brechtianismo, reivindica ambiguidade e fluido artístico. Pu-
tual que dá a ilusão de compreensão geral para além de línguas, "i~ 't demos constatá-lo nos espetáculos pouco ortodoxos e bastante

criticado), seja, ao contrário, por um elogio indiferenciado da,"


. .,
~i:~~::~€~l~:~::~~~:~~;~~:~;~~:~:~~::::::l~!;,:'/:.~ ~f ~~~~7;:~~~~::~:J~:1:,c~;:~~~::~:~::~~:~~:~~T~:
personagens uma ambiguidade tão grande quanto suas motiva-
:l~. ções, Para seu Círculo de Giz Caucasiano, Beno Besson, como
passagem de La Représentation émancípée. Bernard Dort cita meu livro
18
dNesta
1976 P h Z · ) " · W em todos os seus trabalhos brechtianos, insistia nas matérias
e : 1'0 emnes de sémiologie théãtrale, Montreal: Presses de l'uníversíté iS; V
du Ouébec, p. 177. O recuo do tempo não pode senão dar-lhe razão... brutas) poéticas e sexuais de objetos e figurinos, na humanida-
19 Idem. p. I 7 7 ' I 7 8 . :jI., l5 de e na bondade irredutíveis da figura principal. Em A Exceção
20 Idem, p. 178.
21 A. Vitez, Écrits sur le théétre, Tome II _ La Scêne, 1954-1975, p. 428. e a Regra, interpretada por Antoine Caubet (2006), em Homem
370 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 371

por Homem, re::isto po: E~ma~uel Demarcy-Mota (2007),' o ENCENADOR E SEUS DUPLOS
servamos tcndêncía Idêntica: nao reduzir as pecas a pai ".:
. , avras:"
ordem, reintroduzir uma dimensão poética não seria s enao:':·... ' ~;";~' . · encenação contemporânea, como foi visto, tem muito que
provocar-lhe
. - um curto-circuito
, . ou ao desregulá-la ' uma enor" :o'r'rig ir. Aquilo que já foi a sua função original tornou-se cada
cornurncaçao polítíca, assegurando tuna materialidade int ·····d·~·,': ',~z mais necessária ao mesmo tempo e na mesma medida em
zível em significados unívocos. ra,\ ue o ser humano afasta-se de um mundo muito regulado, do
Qualquer encenação, já o vimos, oscila entre construção;: ual é preciso corrigir o desregulamento de sentido. Porém,
desconstrução. Quando a estrutura das peças, outrora fech«d,{hrrig ir não será uma atividade muito normativa? E estaremos
coerente, narratívn, se rompe, abre-se e se torna aquilo que c aJnda corrigindo? Não se daria o caso de jogarmos fora tudo
mam?s, a partir dos anos de 1970, de um "texto" (no sentid .aquilo que não está conforme às ~ormas? .
serruótíco, e por oposição a uma "obra"), torna-se difícillê;F~.,> :, Há uma tendência, e sem duvida uma real necessidade,
e interpretá-lo "num só bloco'; de forma unívoca. A encena'~;~Ín considerar que a encenação não se aplica mais a não ser
t . -.
em por rrnssao, precIsamente, ach ar um compromisso entre essá ç a o .:aos clássicos, ou pe Io menos ao teatro d e texto, d e repert'0-
abertura do "texto" semiótico e sua tendência natural de explicar,;'Y,"rio, ao teatro de arte, e que "não se pode ser encenador senão
justificar, mterpretar de maneira unívoca e conclusiva a obrairí.;~i",.'.dos clássicos"". Não temos nós, igualmente, julgado melhor
terpretada.1nversamente, para uma peça coerente com estrutu;'W;: 'completar (e não substituir) a noção de encenação por aquela,
ras previsíveis, com linguagem dramática clássica, COma fábula.,",;; . anglo-americana, de performance? A noção de perforrnance,
explícita, o ator e o diretor reintroduzem "texto'; ou seja, "intet;'3.;f!' '. '.ou ainda a de production (pronunciada à inglesa!), concebe a
pretação" nas estruturas. Criam uma ambiguidade semântica.ej.:·.% >representação teatral como a efetivação de uma ação, e não
reenco~~ram o prazer do enigma e da complexidade, o "prazet"é' :(como uma "escritura cênica' (Planchon) que transporia, ilus-
do texto (Barthes). Quando as obras dramáticas transformam'sé' '. traria, redobraria o texto.
em textos abertos e sem fábula clara, ou quando os encenadoreJ ". A partir do momento em que a encenação se concebe como
"nos seus espetáculos [não dão] nunca a impressão de ver afá- . uma performance que implica atividades e tarefas vivas e efê-
bula tratada por aquilo que é"22, a encenação fixa-se a si mesmâ";"meras, ela se diversifica e se enriquece. Tem que resolver sua
por tarefa, comumente, "corrigir" essa fábula ou, pelo menos; ';:;t .•,.'contradição constitutiva: de uma parte, nasceu e se nutre de

sUbs~t~~~~:~ãa:~o~::;:~i~~:::~:~~~:~~:~~raçasà represen-)}l ~:. ~::ad;:~:~n~~~::~~~t~~:en~~:;o:~=~~~:~;:::~;:~d~~


tação, a ausência de referências culturais. Aí está uma das princi-., ~> globalmente o espírito da representação segundo uma certa
pais funções da encenação, especialmente quando a peça estiver coerência. O encenador é assolado por uma tensão desconfor-
contida noutro ar cultural que não o do público, e quando se-lhe tável: deve multiplicar-se em diversos papéis continuando a ser
tiver que fornecer, o mais discretamente possível, as referências integralmente ele mesmo. Seus colaboradores, ou ele próprio,
faltantes, as chaves de leitura indispensáveis. Essa ajuda ao espec-";:Ii caso trabalhe só, adquirem novas funções. Pudemos constatá-lo
tador é concedida sem que a encenação esteja sempre conscíen->. ;i ~C nos exemplos escolhidos para este trabalho e, neste sentido,
te disso e, às vezes, contra sua vontade. Esse espectador é, dessa·i 'f vamos esboçar um retrato-robô de diferentes duplos, reais ou
forma, CUidadosamente manipulado. Semelhante manipulação;; ; virtuais, do encenador.
é a obra da ideologia e do inconsciente. A encenação é sempre',( ii
uma colmatagem ideológica inconsciente. ";; ~/

23 De acordo com palavras de R. Planchon, Lecture des classlques, Pratiques, ll.


22 B. Tackels, Le "jeune théâtre" de demain, Revue d'estltétique, n. 26, p- 90. 15-16, p. 53.

f,
372 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 373

4.1 OAtor
i"mática nos anos de 1990, o autor doravante tem necessi-
,·ae do encenador e, mais ainda, do atol', não tanto para ser
Nenhum duplo manifesta tal duplicidade quanto o at .... a .c
, A . orno 'terpretado quanto para testar e mamtestar, graças ao atol', os
petaculo contemporaneo, quer se trate de encenação ou' 'l1tidos possíveis de seu texto. A relação "aproveita" às duas
formance. O atol', que seria melhor chamar muitas rtes. Desse modo> o autor não se vê constrangido, para evitar
. .) wzes
performer, Intervém em todas essas práticas. Ele não é ape':'" "ualquer traição na enunciação do ponto de vista "justo", a en-
um duplo mimético do personagem realista ou natura)' t . ii
bé IS a, .~. nar ele próprio sua peça (arriscando-se assim a permanecer
tam em, frequentemente, uma figura aberta e vazia _ fe uito tímido e muito prisioneiro de seu próprio texto). Ele a
cológica e, portanto, não mirnética, um "portador d~ao p rn , d ·c, I
~:bnfia com prazer a um ator que sera capaz e maruresta- a,
(como teria dito Marivaux), que, na estrutura cont,errlp()rârr~irl 'desdobrá-Ia, para melhor revelá-Ia ao autor e ao espectador.
serve de suporte ao discurso sem para tanto representar
real. Quando o atol' é o dramaturgo de si mesmo, faz com
corpo, evidentemente, aquilo que diz ou mostra, lUrnan(\O_s<~ii
organicamente presente tanto com Suas palavras Como cum/.;;o
,.
suas ações e com seu encenador, caso este persista em m,",,"'''. )~O dramaturgo, no sentido alemão de Dramaturg (conselheiro
rer guiá-lo e controlá-lo. Quando desconstrói uma man,eIf;a')'P' 'literário), quase não é mais empregado pelo encenador. Se, na
de representar (como Régy), uma identidade imposta (C()nló"):;" "Alemanha e na Escandinávia, ele continua sendo peça funda-
Gómez-Pena) ou, no caso de Marina Abramovic, quando es~!,H;');i(( i\inental da máquina teatral, jamais fincou pé na França e nos
atol' encontra outra distância, ele se afasta um pouco mais ""'';O ;o,i, "países latinos. Talvez porque sua função, fundamental e indis-
da de seu destino de personagem. Seu encenador estará ei1L<LO',.Y,;' 1pensável, tenha sido absorvida pela encenação. A partir dos
em condições de descentrá-lo, de "trabalhar Com o ,
.anos de releitura dos clássicos, a dramaturgia transformou-se
não ficar pré-ocupado"24. Sua relação com o texto mudou: :c:numa ciência muito pesada, impedindo a relação direta com o
não tem mais, portanto, de "se pré-ocupar em saber o itexto, mascarando, sob o lastro de referências culturais e aná-
por baixo">.
'i:lises políticas, as finas nervuras textuais, aniquilando o traba-
Em todos estes casos de figura, o atol' tornou-se p'Lrceir:o:'.c "'lho sutil e frágil do atar do teatro contemporâneo. A partir da
de parte inteira do encenador: Um duplo "pré-ocupado'; 'vaga brechtiana na Europa Ocidental, a instituição francesa
mais consigo mesmo, mas com seu lugar na representação 'e 'não a manteve, pois não viu mais a necessidade e o interesse
no funcionamento global da encenação. de uma análise crítica, seja ela brechtiana ou marxista. "O que
eu poderia fazer com um dramaturgo?': perguntava outrora,
não sem provocação, Antoine Vitez. Muitos artistas atuais, de
4.2 O Autor
Braunschweig a Cantarella, rejeitam um trabalho de mesa mui-
to longo e uma análise que decida a priori as escolhas cênicas
A relação do encenador com o autor tem sido muitas vezes-» da futura encenação.
conflituosa, o segundo sentindo-se explorado pelo primeiro. Inversamente, a análise dramatúrgica, efetuada ou não por
No entanto, depois dos anos de 1980, depois dos anos "fric' um dramaturgo, muitas vezes faz falta na representação. Não
Ou «sociedade do espetáculo'; COm a renovação da escritura apenas para esclarecer as apostas ideológicas, como também
para contar bem a fábula e desenhar-lhe os conflitos. Como
24 R. Cantarella. em M.-J. Mondzaín (ed.), L'Assemblée théãtrale, p. 63. exemplo dessa falta de análise dramatúrgica, pode-se dizer que
25 Idem, P. 65.
Sua ausência prejudicou o trabalho de Alain Ollivier sobre a
-·~,~,,~ji':'~}-;:-Mti
'fC.-- ~-.

374 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇAO? 375

peça pedagógica de Brecht, A Exceção e a Regra'.'. De que 'ótempo, felizmente, tudo caminha numa boa direção: a dirc-
neira transpor para nossa época esse clássico da expl'Of:1Ç;ioê '";:"() de ateres, durante os ensaios ou no interior do espetáculo,
homem pelo homem, essa violência exercida pelo ne'goci'l~ "tabeIece-se em contraste e por diferença com a encenação. Esta
sobre o coolie? Não levando em conta suficientemente ,IDítm a é, assim, concebida como o visível, o visual, o supérfluo) a
peetador atual e as novas formas de exploração, menos "~lllocação no espaço, a escolha de figurinos e objetos. A direção
e mais eficazes, não tentando um trabalho formal mais ilé atares tem a intenção de fundar a relação teatral, reproduzir
original, Olivier perdeu a oportunidade de atualizar a '"ligaçãO humana entre o intérprete e o organizador, a criatura e
de realçar-lhe a atual pertinácia. Na ausência de uma ;peus, o pai. Conhece-se a expressão de Cocteau a propósito dos
dramatúrgica, assegurada por um profissional chamado '""cenadores: "Parteiros que se tomam por pai!"
maturgo ou por um encenador que ponha no seu tnü',alho,:(§!!Uf:! A critica distingue, às vezes (raramente), as duas funções de
pingos nos is, a representação parecia em retirada com relaç;lô:'''C;:'; 'ilireção e encenação. Acontece que se reprova a tal encenador
às interpretações políticas e históricas da obra. A tarefa não conceber uma cenografia que aprisione o ator no dispositivo
fácil para o antigo ator de Vitez: pois como escapar aos cênico, sem permitir-lhe "respirar". Os cenógrafos transforma-
didáticos do brechtianismo sem cair numa dramaturgia "ín,ví,.(;· 'iios em encenadores ou vindos das artes plásticas incorrem
ver; rapidamente insípida e anêmica? De que maneira tra1nspor:, frequentemente nesta censura".
uma fábula que é, ela própria, a transposição de um eS'Iu<'m.''''':i': . A atenção particular que atualmente dirigimos, a justo título,
teórico que mal dá conta da complexidade do mundo? 'Ii direção de atores não deveria, no entanto, eliminar a função de
"encenação e tudo o que ela implica historica e presentemente.
''O diretor desempenha, certamente, um papel fundamental na
4.4 O Diretor de Atares descoberta e na interpretação do texto e das ações cênicas, po-
rém não elimina a função mais global da encenação, pela simples
O aparecimento de uma escritura dramática voltada ao \~i,\azão de que a direção faz parte da produção final. Se a direção
cíal, a desconfiança para com os faustos da cenografia e do ',4e atores inerva, irriga, ilumina a encenação, o desempenho,
petáculo, a intimidação pela tecnicidade aguda do manuseio 0;',;'::',:>\." .tão sutil e central quanto seja, não assume seu sentido senão na
palco, tudo isso induz, no caso do encenador, a um desejo realização cênica toda inteira. Desse modo, o encenador não se
simplicidade, a um retorno à base: ao desempenho do atar. , ,reduz ao papel de diretor de atores, e ainda menos ao de diretor
redução da encenação à direção de atores-? é imposta por um. ~Yde casting, de marketing ou de comunicação.
;.;!.-
modo de produção muito pobre, Como que para fazer da ne-
cessidade uma virtude, o diretor de atores não se interessa
senão pela atuação, com essa ideia simples de que o ator deve ser. 4.5 O Esteta das Formas
parido por ele, e para começar, no decorrer dos ensaios, provo,'
cado, caído na armadilha, maltratado, martirizado, e mais g:Temendo ver sua arte derivar para o casting e para o rnanage-
afinidades, .. Do que decorrem frequentemente derivações ment, temendo perder todo o controle estético, dramatúrgico,
direção de atares para uma relação patológica. Na maior " ideológico e político, alguns encenadores às vezes reivindicam
., o teatro de arte e a herança viteziana. Reforçam tudo aquilo
26 Encenação no Théâtre Gérard-Phílípe de Salnt-Denis, 2002. " que dá à representação seu caráter estético, artístico, artificial:
27 Sobre esta questão, ver S. Proust, La Direction d'acteurs dans la míse en scene
contemporaíne. Para o trabalho do encenador com jovens atares ínterpretan-
do numa língua estrangeira, ver Les Bssíf The Prench Play. Exploríng 'Iheatre 28 Ver as entrevistas de Stéphane Braunschweíg no livro de S. Proust, op. ctt., e
"Re-creatively" wíth Foreign Languoge Students. de J. Pérat, Mise en scéne et jeu de l'acteur, Entretiens, t. II.
376 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSOES; PARA ONDE VAI A ENCENAÇÂO? 377

a teatralidade, o respeito às convenções e às formas. Seu$,~ ea concebamos minimamente como um mecanismo de regu-
res traçam belas e claras figuras coreográficas em movimell' . 'em e de autorregulação, não apenas para o palco, mas sobre-
trabalhados e precisos; sua maneira de falar é prazerosame' '~o para o mundo e para a relação do palco no mundo.
retórica, musical, estilizada e formalizada (pensamos em à
dores como Jean -Marie Villégier, Daniel Mesguich, Rob'~t:
Cantarella). A "interpretação exagerada" que resulta disso Il~&j{ o Coreógrafo do Silêncio
é necessariamente uma marca de cabotinismo, é o ultrapa$s~~,,'
mento da interpretação simples para uma interpretação core&2~; Essa regulagem, ninguém melhor do que um coreógrafo, real
grafada, heightened (intensificada), como dizem os ingles,,';';};!j" 611metafórico, está em condições de efetuá-la. O teatro torna-se
Todos estes duplos do encenador representam, para a cri~i:l.; ':dança a partir do momento em que um jogo se instaura entre
ção teatral, o equivalente a estímulos, que permaneceriam, cori!;,H; /65 elementos da representação sem que seja preciso passar pela
tudo, letra morta caso não passassem pela interpretação,aifr)':;i; :li;:(Iinguagem. Significa que o coreógrafo está sempre presente,
espectador. No entanto, o que é um espectador? Não é simplesi'i '::;W' ~~;'sobretudo quando o esquecemos. A música colocada em rit-
mente um indivíduo isolado, perdido num edifício teatraL~;" .:~ \tI"lilO põe-se a dançar. No sentido poético que lhe dá Corvin: "O
também o membro de um público que se identifica como ad" ,~~{jteatro dissolve-se ou, antes, metamorfoseia-se: torna-se dança
sembleia, como comunidade teatral. Convém, neste caso, re/r .~:':_[ ...] Dança não quer dizer coreografia, mas sim tempo espe-
definir essa assembleia. :,;' cífico que, não dependendo mais da necessidade da troca e da
':':j~: It!réplica, insere a interpretação nos sonhos. Interpretação, isto
n:.é,
uma pulsação rítmica pela qual o encenador [ ... ] faz respi-
4.6 O Músico Silencioso 0,:
fi rar seu texto"?", Tornando-se dança e interpretação rítmica, a

A palavra e a noção de encenação (no sentido moderno: fif)l-~IA~~~~a~~it~ab~~a~i:~~~e~~:l~;:r:~~~~~~r:::::ai::i::~~


do século XIX) foram inventadas por uma prática teatral baseada ';;:i. mudas e silenciosas, ou seja, à do significante recusando-se o
no texto, mais precisamente no texto literário preexistente à ....• ;~ 'ii mais longo tempo possível à interpretação e aos signos. Esta en-
representação. Será que a encenação ainda é uma noção leg;:' ••:;: i~"cenação considerada como dança pura nos conduz ao silêncio
tima para um teatro que não trabalha com outra coisa senãoi":" ~;é ao espectador. Torna-se a arte de fazer emergir o não dito, o
com um texto (e )mitido em cena, especialmente com imagens ' indizivel até, como uma das vozes do silêncio. É, portanto (ou
sem texto, isto é, com esses "grandes espaços de silêncio, que se' . t· mais), a arte de exprimir alguma coisa, de perceber a mensa-
configuram em imagens virtuais?"29 Não se deveria procurar " ': cc' gem e o barulho ao passar do textual para o visual. É a arte de
outra palavra e, desse modo, outra teoria para uma encenação ". fazer emergir o silêncio para um espectador à espera de senti-
que não representa um texto já escrito, mas que trabalha com do. A encenação é a colocação à vista do silêncio.
o silêncio e signos não verbais, visuais ou musicais? Podemos;".'
temos que continuar a falar da encenação em geral como se
seus princípios não tivessem sido sistematizados no decorrer do 4.8 Nem Deus, nem Mestre, nem Medidor de Palco
século XIX? Cremos que todos estes exemplos terão mostrado o
quanto a noção é elástica, mas também insubstituível, mesmo Brincando um pouco com as palavras, poderíamos esboçar
a. identidades do encenador no decorrer do século xx: este se
29 Enzo Corrnan, citado por M. Corvín, Mise en scêne et sílence, Revue desthé-
tique, n. 26, P' 126. 30 M. Corvín, op. cit., p. 125 e s.
378 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSOES= PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 379

afastou progressivamente do mestre de palco (maftre en s DO ESPECTADOR À ASSEMBLEIA TEATRAL


(Craig, Copeau, Iouvet), às vezes a ponto de não ser rnaí
que um medidor de palco (métreur en scéney", um conse ;'i' O Esgotamento da Teoria e do Espectador
dor e muitas vezes um coitado pouco inspirado, que prodJ.'
jogo cênico a metro, até em quilómetro, empurrando os peô Irl- se constatado frequentemente: a crítica e a teoria atuais
no tabuleiro de xadrez ao respeitar as regras, mas sem íns ri, a tendência de dirigir-se unicamente à percepção, à sensa-
ração; tendo perdido o sentido da medida e, mais ainda, o" .-;Co, à avaliação subjetiva do espectador único, Tudo foi transfe-
desmedida. Este medidor, este agrimensor do infinito, dedbij;êW o milagrosamente da produção para a recepção. Ao invés de
atrás de si muitas outras tarefas antigas: a do chefe de P~lg aminar, como anteriormente, a constituição do espetáculo, a
(meneur en scéne) (para o agit-prop), a do intermediário (ent" trutura narrativa da fábula, os conflitos entre os personagens
metteur) e a do mentiroso do palco (menteur en scéne) (a soli1" !ÕÚ as relações de força entre os constituintes da representa-
dos parapsicólogos stanislavskianos ou strasberguianos), a d"
'~ão, a perspectiva deslocou-se para o campo de tensões entre
domador (montreur) (de urso), mas igualmente a de todos~s\;( Í)'pal co e seu espectador, Do que decorre o atual interesse pela
emissores do palco (émetteurs en scêne), aqueles que entreg~l~;i~;', t~nomenologia,Não há uma teoria ou uma reflexão crítica, em
sua mensagem do alto da tribuna com o único objetivo de sei.'''.' , ànça ou performance, que não a invoque e não a utilize, sendo
bem recebidos (Cinq sur Cinq**), 'muitas vezes fortemente judiciosa,
Todos esses duplos do encenador - ator, autor, dramaturg~i~riW Como explicar, então, esse súbito interesse unilateral pelo
diretor de atores, coreógrafo e músico -, longe de relativizat'~;,'\"'(jloda recepção e pela fenomenologia? Algumas razões são
importância da encenação, reforçam-na ainda mais, fazenÍjq;(' 1i1nples: o espectador tem dificuldade em apreender a estrutura
dela uma noção indispensável para a organização teatral, N~q"!ênquantoprodução, A produção não emana mais de uma co-
teríamos condições, portanto, de renunciar a esta noção e a est~,f!;'lÍlunidade unificada e identificável. O espectador está um pou-
método, mesmo que, sob outros aspectos, a concepção dotr~,,'h'~&fatigadoda teoria, ou muito intimidado pela desconstrução,
balho teatral como performance e production - pronunciado.às'', s artistas encorajam a "divagação" do espectador". Os velhos
inglesa - estivesse mais em condições de fazer-nos compreerij!:C ,: míólogos tiveram a sorte de explicar-lhe que o circuito pro-
der a relação imprevisível da arte com o real, o efeito produzído'c' '" 'dlJção/recepção é muito axiado numa semiologia mecanicista
no espectador, a importância, às vezes, mais de desregular <:!Ji"F, -': ~:"iJacomunicação32, Tornou-se muito difícil traçar uma fronteira
que regular a representação, de respeitar a abertura do teatro' .: ~~'dara entre o teatro e o mundo, entre a produção e a recepção
no mundo, Regulagem e desregulagem, regulamento e desregu-: : /~~'das obras, O furioso desenvolvimento do individualismo en-
lamento, regulação e desregulação: entre os dois nosso coraçãp"; j',corajou, para não dizer que forçou, o indivíduo a interpretar e
balança, e o da encenação também. As identidades mudam at~"/.'i~;'afruir sozinho, cada qual no seu canto, a propor o seu próprio
nos provocarem v e r t i g e m . ' . > } ~percurso hermenêutico, a tentar sua desconstrução, longe do
",] I(i::ircuito da produção/recepção própria à Mukarovsky'".
'>'",,!"
Não manda mais o simples bom senso que, igualmente, se
":"eve em conta a organização semiótica dos produtores do
Há nesta passagem um jogo de palavras intraduzível para o português, po.is 31 Por exemplo, Claude Régy: "Há coisas comuns, certamente, mas há também divaga-
contrapõe o metteur en scêne (encenador, colocador no palco, em sentído Ií- ções pessoais. Aliás, chego a pensar que o essencial de uma obra é a divagação do
teral) ao meteur en scêne (medidor de palco) (N. da T.). leitor ou do espectador" (em M.-]. Mondzaín (ed.), EAssembléethéâlrale, p. 123 e 5.).
Cinq sur Cinq (Cansei! et formation paur la presse): Agência de aconselhamento 32 Como por exemplo, E. Fischer- Lichte, Asthetik des Performativen, especial-
e de formação para a imprensa, mídías e jornalistas. Ver: <www.cínqsurcínq- mente p. 29.
net> (N. da T.). 0.' 33 Ver P. Pavís, Vers une théorie de la pratique théôüraie, p. 337-430.
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,

380 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA CONCLUSÓES; PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO?


38)

espetáculo, a confrontá-los com as percepções·e as experii 5.3 A Comunidade Desamparada e a Assembleia


cias do espectador? Há já muito tempo, Bert States>' nos ~U)lV1';" Desassembleiada
dou a não separar semiologia e fenomenologia, a enapan,lhá"],~iii
para melhor apreender o funcionamento da re]pn's"nt:ação, 'iA resposta a estas perguntas existenciais demora a nos chegar.
equilíbrio entre produção e recepção, entre semiologia e .l'1enhum sentido a partir da comunidade haverá de nos vir em
menologia, não seria indispensável?
-_'U".'" iócorro. O grupo "sem objetivo" consagrou longa reflexão à as-
sembleia teatral. É evidente que essa assembleia não tem gran-
',de coisa mais a ver com a dos gregos, junto aos quais o "viver
5.2 A Reemergência do Público Afastado %!.~ín conjunto" com a comunidade ajudava no sentido de que
;;i"asviolências sejam dominadas pela razão e pelo discurso'v".
Esse equilíbrio impõe-se tanto mais que o espectador se ~iQuais violências, reais ou simbólicas, o público fragmentado e
desamparado em meio a um público no mínimo perplexo. ~iparticular do teatro de hoje poderia dominar? Desamparado,
adoraria agregar-se a um todo coletivo, que não mais .V'àtomizado, frustrado, o público sente-se mal ao julgar essas
tranquilizá-lo. O "nós" tornou-se culpável: "Eu deveria, de r)'bbras complexas e abertas, não dispondo mais de critérios de
modo, compreender alguma coisa"; suspeitoso: "Esse ~i'julgamento.Esse sujeito livre, porém disperso e disseminado, tem
está debochando de mim"; exigente: "Ele não resolve ~(diliculdade na escolha. Não se refecha nem se reforma em torno
tolerante: "Eles não entendem nadá'; desconfiado: "Eu, que Pr:,·.;.:,"'j;~de qualquer valor comum. Ora, pergunta Marie-José Mondzain,
um sujeito soberano, não acabo me transformando em irtromo "manter-se na partilha do mundo"? Segundo ela, "nin-
midor?"; nervoso: "Estão tentando me eliminar"; agressivo: !\\guémpoderá nunca vangloriar-se de saber aquilo que o outro vê
não posso deixar barato"; inquieto: "E se eu deixar barato?" ~:.pu sente diante do espetáculo do mundo, e, no entanto, uma co-
Todo o mundo abismado ao nosso redor gostaria de ~'lI1unidade não pode manter-se no compartilhamento do mundo
mar-nos a todos nós: olhar-nos e devorar-nos, Y'senão ao possuirem os meios de constituí-lo nas redes de signos
fugíssemos. "Qualquer homem é um abismo'; nos diz j\'iJue circulam entre os corpos e que produzem uma sociabilidade
pela boca de Woyzeck. E, no entanto, visamos ainda e ~política das emoções?", Para reconstituir estas "redes de signos"
o cume. Observadores pós-modernos, não continuamos .iféiltre os corpos, é preciso descrever tanto o palco onde evoluem
assim, entre o baixo e o alto, o sério e o derrisório, o Wesses corpos quanto os espectadores que os recebem, O que nos
e o sentido, o yin e o yang?35 Não cessamos de nos itióbriga, muito oportunamente, a não negligenciar a descricão
tilt* ou satoritê" Bingo ou Tao?" "Canoaria" ou koan?" V'do espetáculo ao remeter tudo ao único feeling do espectador.
f'Não negligenciaremos, portanto, o trabalho sombrio e secreto
34 Great Reckonings in Little Rooms.
35 O yin, no pensamento chinês do Tao, manifesta-se através do princípio
:!do encenador. Mesmo um medidor consciencioso acha às vezes
vidade. O yang, indissociável do yín, é o princípio do movimento. "O que i~p caminho e o coração do espectador) causando nele, então) o
o pensamento chinês é que esses sítios (yín e yang) opostos. não fundíveis, ~,;:~feito de um "terremoto silencioso": "Ocorre com alguns espe-
tíveis um ao outro, não entram em relação senão porque existe o vazio. Ou
o sopro. o vazio. a palavra, aquilo que se chama Tao, que quer dizer caminho ~;Jáculos algo parecido com uma bomba de efeito retardado: eles
caminhar, se deslocá' (M.-J. Mondzain (ed.), L'Assemblée théâtrale, p. 94). l1:esper am para explodir-se a si mesmos assim que tenhamos pa-
Tílt: luta de lanças entre cavaleiros (N. da T.). (,rado para deles desconfiar'<.
36 O satorí é a iluminação e o despertar súbito que o discípulo procura no bu-
dismo zen.
37 O Tao, no pensamento chinês. é o caminho. a via, aquilo que leva ao principio , 39 M. R. d'Allones, emL'Assemblée théâtrale, p. 10. Ver também M.-M. Mervent-
de unidade do cosmos. ~< Roux, L:Assise du théâtre, e Píguratíons du spectateur, 2006.
38 O koan é a impossibilidade lógica de pensar uma proposta ou de Df<,dclzit 40 M.~ J. Mondzaín, Le Commerce des regards, p. 180.
uma imagem. Por exemplo: o som de uma mão que aplaude. 41 S. Dupuís, A qui sert le théâtre? p. 8 e 22.
382 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 383

6. DA FIDELIDADE: OU O DIFíCIL CAMINHO ao contrário, tratada como material musical, mais au-
ê,
DA DUPLA TEXTO/REPRESENTAÇÃO 'el do que compreensível? Contudo, o próprio encenador
, o tem que se pronunciar de maneira definitiva e unívoca.
Não deixamos de considerar a encenação como categOria~' 'e fato, muitas vezes ele permite que a dúvida continue: seus
si, herdeira de uma longa tradição ocidental saida da Iiter{' 'tores transmitem o texto, o pronunciam, porém muitas ve-
ra e do teatro de texto, porém aberta a muitas outras práti()~~~';i, 'es fazem-no como se não o compreendessem, e de maneira
Teríamos podido abordá-Ia como uma subcategoria dasóbt·), ite isso não seja mais problema seu. E, inversamente, os es-
tural performances, esse quarteto do século xx que se torrrdif.;t' "~ctadores são às vezes obsidiados pela decifração do texto,
segundo Richard Schechner, a vanguarda teatral. Porém,!!~Ii':l "ando o essencial, para aqueles que assumem a encenação
nos descentramos suficientemente da posição europeia e te'ffi/.mo arte autónoma, está em outro lugar, na imagem, por
tocentrista e olhamos para o grande mundo? Seja qual foedr;j"'êJ:emplo. Nenhuma lei saberia impor-nos aquilo que dese-
sistema de classificação, tomamos cuidado em ampliar ao mi!;;;':":. ,J~mos perceber"-. . . "
ximo o leque de manifestações espetaculares, sem prejulg';i:.' ii, i!ii'l;'.• Stéphane Braunschweig faz outro distinguo entre o teatro
seus limites e ainda menos seu valor ou originalidade.>;ç'/i~.;'~rtquantotexto" e o "teatro enquanto material". No primeiro
iÇ' c(;\ %(:2aso, o encenador pressupõe que esse texto possui uma coe-
"E!;iência que se trata de reencontrar ou estabelecer, pois "aquilo
·Ci"

6.1 A Dupla Texto/Representação .....;;: ,ilkíâ foi pensado, desejado, compreendido inconscientemente, e
..•.•!! ?!'~rma um todo: o todo do autor"?", Esse "todo do autor" per-
Uma obsessão ocidental não deixa, no entanto, de nos atormen~iS}!-;1~J;;irüte encontrar o autor "na fonte): ou seja, como a instância
taro o que aconteceu com a relação entre texto e representaçãÔf~·';Ji~B.~ue nos ajuda a reconstituir a peça no seu conjunto. É possí-
o que houve com a "fidelidade" de uma encenação ao seu text6::,,",~~;te1 então partir da totalidade do texto para fazer-lhe a análise.
do teatro ao seu duplo? Qual é a hierarquia que se estabeleêé'!'.~'~"')\!Osegundo caso, não nos preocupamos em ler os pedaços do
entre eles? Como faz a prática teatral para manobrar essa dUI'I>l,i;;.~~fit~to num conjunto, mas reunimos, montamos, relemos esses
infernal e tendo ainda necessidade dela? Esta oposição é periW";i";'r IDt;~agmentos verbais e extraverbais no interior de um espetáculo.
nente nos outros contextos culturais que não sejam os do teaii6'/' ',*iNa chegada, apreendemos a lógica do encenador, a síntese que
ocidental? E em que varia ela no curso da história?').;: fiefetuou a partir de seus materiais heterogéneos".
O debate parece ainda aberto, e esperamos não aumentar' tiic>
Esse distinguo texto/material encontra outra oposição, que
a c o n f u s ã o ! 4 2 " . , "'"se estabeleceu nos anos de 1960 e que se impôs nos anos de
• O velho debate para saber se o teatro é literatura ou arte' '(,')970, especialmente no domínio anglo-americano: distingue-se
autõnoma não mais se coloca há já muito tempo. No decorrer'
da história, sempre houve ora uma. ora outra. Continuamos-a. ,;~ ~-'~ ; 43 Como exemplo. a encenação de Robert Wilson das Fábulas, de La Fontatne:
escrever peças, obras literárias, dramas. Inversamente, o espei":'.> ,C'I não acharemos uma releitura das Fábulas, menos ainda da fábula dramatúr-
.. . -- gica de cada fábula. A imagem cêníca, sua lógica e sua evolução visual são
táculo não precisa. para existir, de uma origem) de um suportê-,.. '~,.' unicamente o que importa, tanto mais que o detalhe do texto, sua textualí-
ou de um rastro textual. O importante é identificar antes o es- dade não são mais sempre acessíveis. E isso por duas razões: acústica (não
tatuto do texto na representação considerada: é recebida corno." '" '," ouvimos tudo) e hermenêutica (o ouvinte contemporâneo às vezes sofre para
. compreender certas passagens das Fábulas, a língua tendo evoluído consíde-
fonte de sentido a ser considerado pelo espectador-ouvinte, ravelmente).
44 S. Braunscwelg, Petites portes, grands paysages, p. 290.
42 Estas reflexões são umpost-scriptum ao nosso estudo: Du texte à la scêne: un 45 O Misantropo montado por Lassale, Braunschweig ou Lambert é legível como
enfantemenr dlfficile, Théãtre/Pubtic, n. 79. Retomado em P. Pavis, Le Théâtre_ um sistema certamente aberto e enigmático, mas que propõe a cada vez uma
au croisement des cultures. maneira de conceber globalmente as motivações e o "destino" do personagem.
'f:'htpt;??*t~
!
384 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 385

nesse caso" entre directing a play (encenar, "dirig~r" uma peçâJ.. 'Fidelidade Funesta?
making a performance (fabncar uma representaçaol, Seja o c';;'
de empurrarmos o texto existente para uma certa direção e cli ' ;Quanto ao estatuto do texto, esteja ele na fonte da encenação,
sua própria lógica, seja criar-se um evento cênico ao fabricar~\" 5ÍJ seja o resultado final do trabalho cênico, importa muito
novo objeto, nada ficando este a dever a qualquer fonte te>:tti1il1k,." distinguir duas maneiras radicalmente diferentes de tratar a
que seja'", ',o eçá', Tudo depende do acento colocado ora no texto lite-
Essa fabricação do evento pode até conduzir a uma prod&;,~;:,.,;. 'rio, na arte dramática, ora no evento cênico, na atuação e
ção textual, A partir das senhas do jogo, os performers impr8Ô·(Ji.o palco, considerados em si mesmos. Há, observa Stephen
visam palavras que serão em seguida retranscritas. É isso qll~0j,.: atioms, "uma divisão primária nos estudos orientados para
Chris Balme chama, no processo criativo de Robert Lepa~~p"';,6teatro- a divisão entre aqueles que abordam a representação
"ein szenisches Schreiben", "uma escritura cênica": <~quilo q\je,i', 'concentrando-se na linguagem e nas literaturas em que muitas
se constitui no decorrer dos ensaios são acontecimentos cê,,;)." 'vezes está baseada, e aqueles que consideram o evento da re-
cos e textos. Esses textos são fixados no processo dos ensai'os;". 'presentação como sua principal preocupação e o texto como

.
'
Frequentemente, os movimentos ou as imagens precedema§'" '",c.'simples suporte para esse evento'v".
escolhas textuais. Nesse contexto, poderiamos falar de escritUt"~',:: >; ~ As coisas foram esclarecidas, portanto, no decorrer destes
cênica, na qual o objetivo não é realizar sem sutura um textr!."'; ~;últimos anos, e o statu quo parece corrente entre textocentris-
pré-fabricado, nem desconstruí-lo como um corpo estran1)<,li,' SiM~las e cenocentristas. Ninguém tenta provar que o outro está
O texto é um produto necessário no trabalho da encenaçãos', T"ii i~errado, e os amadores de teatro apreciam muitas vezes os dois
é continuamente modificado?". O palco está, neste caso, ppr,; ",ti tYJipOS de espetáculo e as duas espécies de operação (montar
tanto, na origem da produção textual. Esse texto é uma verb';,f.'i~·itiúma peça/fabricar um espetáculo l. Há, portanto, uma clareza
lização de ações cênicas, varia de acordo com as improvisaçõe$);'"~'~'4e possibilidades e posições. Não obstante, as teorias de in-
cênicas e não está fixo senão num dado momento, arbitráriQ;,' .·"fi
~(çrpretação e de encenação retornam algumas vezes à velha
Não é a fonte da situação dramática, mas sim a consequêncíaj-. .(!:t. tese da fidelidade. "Fidelidade": tal é a ilusão no sentido de
o traço lábil dessa situação. A encenação não é uma execução.,"". ~que temos que ler, interpretar e desempenhar a peça em con-
do texto, mas sua descoberta49.·.,,;,;i,1~JQrmidade com as intenções do autor, como se houvesse uma
. ····j'il.koaleitura, uma leitura que não traísse uma verdade verificá-
46 Como exemplo: C. Baugh, 'Iheatre, Performance, and Technology, p. 217;"1J1~,," :~~'f:Bvel na peça ou na obra interpretada. Parece que, se)'am quais
'makíng of a performance' has become a sígníficantly dífferent activityfto-fí{'-' " , .
that of'directing a play' and has required new practices, new technologíes and. '.:;.-:~ ~]Fforem os momentos históricos, sejam quais forem as culturas,
a new stagecraft" ("A 'fabricação de uma representação' tornou-se uma a~iVi:. :~?'l ~?'osenso comum agarra-se - bem como a sociedade - à ideia
dade sensivelmente diferente daquela de 'montar uma peca: e tem requerido _ ~,,?; jEâe uma verdade do texto, inscrita nele, indiscutível e inaliená-
novas práticas, novas tecnologias e uma nova técnica de palco"). ".:
47 "Dirigir uma peça" é, portanto, escolher uma díreção, uma orlentação.umaj .:;: 1"~'~et e assim à ideia de uma necessária e possível fidelidade da
ínterpretação, reduzir o leque de possibilidades. :Ê, sobretudo, partir dos d~4n', - <:~ iMnterpretação. Esta tese da fidelidade foi discutida em todos
do texto inalterável na sua letra. É isso que faz Iürgen Gosch para seu Macbeth:; c,: <. l.~~.;os tempos, foi tida por verdadeira e indiscutível, pelo menos
ele segue a ordem das cenas e, apesar da escatologia, procura uma coerênci~'(:~' ", -",
da leitura da violência. -. .~l' fi~"áté O momento em que, com a invenção concomitante da
48 C. Balme, Robert Lepage und die Zukunft des Theaters irn Medienzeitalter, ~crp!\ :j~ ~tr:
E. Eischer-Lichte et alo (eds.), Transformationen. 'Iheater der Neunziger Jahrc,::'· ;.,
p. 142.
49 A propósito do texto do nô, Antoine Vitez escreve: "O texto é lacunar, íncom- o, ~-
pleto, incompreensível: um livro de mágicos a ser decifrado. Mostrar que um
t
c" ~-.-

.
que se sabe, mas aquílo que se procura. Dito de outra forma, a pesquisa não é
(não será) precedente à encenação. A própria encenação é a pesquisa: parte-se
da descoberta" (Écríts sur le théãtre, Tome I - I:Ecole, P: 196).
texto não é nunca outra coisa senão isso: incompleto, obscuro, endereçado e.; _ c} t:,: 50 Texto de apresentação de Stephen Bottoms para a conferência "Performíng
alguém. A encenação (e a interpretação) não aponta como execução aquilo .;i~ Líteratures"; Uníversity of Leeds, jun. 2007.
'-.' ,\'(
386 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 387

encenação e da psicanálise (num mesmo momento, no fim<,\~ o momento'; caso percamos de vista a visão de antanho, as
século XIX, e de acordo com uma mesma ruptura epistemolÓ-liGi, formas históricas? Será que não nos arriscamos a criar um ob-
cal, chegamos a questionar a própria possiblidade de ser fiel~~·~·'. jJio certamente atual, porém não tendo grande coisa a ver com
um texto, a uma palavra, a uma pessoa). Os encenadores, Perti';' '0 original? Estaremos ainda encenando essa obra antiga? Será
menos, puseram-se a duvidar da.leítura fiel e conceberam s~Ji'" ';'",. •".!que estamos em condições de directing a play ou de making
trabalho como uma traição, inevitável e produtiva, Com rêl~" r.'2
,F~#performance (dirigir uma peça ou fabricar um espetáculo)?
ção a uma pretensa verdade do texto que, segundo eles, nUn~a-'" ;{j ~iHaveremos de convir, seguramente, que a arte da encenação
existiu e que não tem nem sentido nem interesse. No entantó', q;
~f'ejustamente a arte do compromisso entre esses dois tipos de
o dogma da fidelidade à pele subsiste: reaparece regularmenti- <} ~Hinalidade, entre a análise estrutural imanente e a relação her-
na teoria, mesmo lá onde a teoria pensava ter acabado coma~ 'Ci~;?menêuticaexterior ao novo público. As noções de "restituição"
normas da leitura f i e l . . ! . ! Í':e
de "projeção" não teriam que ser, portanto, categoricamente
>:"1. ft:':;"Õpostas, elas reivindicariam um compromisso e uma transa-
'/. t",'ção, e esta seria a tarefa do director, de dirigir as negociações.
6.3 Três Exemplos de Ressurgimento da Fidelidade :, IrA dupla restituttvo/projetivo arrisca-se muito a transformar-se
eÓ:
ii-:
na dupla fidelidade/infidelidade, das quais conhecemos as difi-
• Didier Plassard, na sua famosa "tipologia da encenação dos ··.Y.culdades epistemológicas e conjugais. Ou, sendo positivo: para
clássicos'; propõe distinguir -:t ~"restituir é preciso projetar, para projetar é preciso restituir. Para
., l i
ser fiel, é preciso ser infiel!
dois grandes tipos de escolha, as encenações com finalidade restitu- .'. ,i' • Um debate análogo parece agitar a teoria recente da ence-
tiva e aquelas com finalidade projetiva. Por encenações de finalidade i~;-:hação) sob outros nomes certamente, mas segundo os mesmos
restitutiva designam(se) aquelas que estão centradas numa '-"u,u W'esquemas de pensamento. A questão sempre volta em torno da
imanente do texto: é wn esforço de compreensão da obra, apreen- l!.tontribuição "exterior" do encenador ou da maneira de "resti-
dida na maioria das vezes na sua emergência histórica [ ... J. As eri,~; '(,'tuir" aquilo que o texto conteria, antes que viéssemos a procu-
cenações com finalidade projetiva, em contrapartida, designariam"
jW"rá-lo, por assim dizer. Bruno Tackels retoma esta alternativa,
aquelas que mobilizam a obra para produzir um comentário que ê*~'
ceda seus limites, levando principalmente aos objetivos mais gerais; ','que acabamos de criticar: "Restam duas posturas distintas de
quer se tratem de questões históricas (a sociedade contemporânea,' (encenação face ao texto escolhido. Seja o encenador dizendo:
a de Luís XIV), filosóficas, psicanalíticas ou outras'". ; eu tentei dizer-lhes aquilo que o texto quis dizer. Seja ele res-
pondendo: vou tentar dizer-lhes aquilo que quero lhes dizer,
Os exemplos de Dider Plassard são bastante convincentes e re- ..ao explorar melhor aquilo que ele próprio quis dizer. Há neste
conhecemos muito estes dois "grandes tipos de escolha". Nossa 'caso duas políticas radicalmente divergentes"".
objeção é antes teórica e de princípio: será que podemos ler um __ Para dizer a verdade, a primeira postura tornou-se rara:
clássico de maneira imanente, e, portanto, sem projetar tudo -quem ainda pretende dizer aquilo que o texto quis dizer? A
aquilo que sabemos hoje, graças à filosofia, à psicologia, à SO":', ;segunda postura continua, apesar do seu aspecto de compro-
ciologia etc.? Não o lemos, de todo modo, através de todos esses misso que acabamos de elogiar, uma solução bastarda e dupla-
filtros dos quais não podemos nos desfazer? E, inversamente, mente problemática: sabe o encenador, logo no início, aquilo
a quem serviria ler um clássico segundo nossas "preocupações que quer dizer, e sabe verdadeiramente aquilo que o texto quer
dizer? Podemos duvidar, pelo menos na prática contemporânea.
51 Bsqulsse d'une typologíe de la míse en scêne des classíques, Littératures das-
siques, n. 48, p. 251. 52 B. Tackels, Fragments d'un théâtre amoureux, p_ 119 e s.
388 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÕES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇAO?
389

Vimos, com efeito, que muitas experiências consistem exati,.{.. \'a10r"55. Insiste igualmente nas potencialidades do texto que a
mente em não partir de uma certeza, mas de imaginar 1:,drarnaturgia teria por missão realçar: "Talvez seja preciso antes
positivo de enunciação, uma regulagem que irá fazer p'aprender a descrever aquilo que o texto carrega de potencia-
texto soluções insuspeitadas e que unicamente a atuação fe.lidades através de uma leitura aberta, paciente e informada.
encenação estarão em condições de imaginar. Os artistas (;.]Í o papel da drarnaturgía">'. A tipologia implícita das tarefas
se perguntam aquilo que o texto ou eles próprios 'lU"CTall1 ('da encenação retoma a oposição, corrente no discurso crítí-
dizer. Por que, aliás, teriam que levar isso em conta, visto que' 0";"co, entre o encenador tirano e o encenador servidor do texto:
consideram, muitas vezes, trabalhar materiais e fazer obra de éVessa forma, na hierarquia do teatro a imagem do encenador
criação original como autores do espetáculo, como cenocen' "'onipresente faz contraste com o "federador" pedagógico de
tristas mais ou menos conscientes de o ser? '{uma aventura coletiva (que vai muito além do objeto cênico)
• A tese dafidelidade necessária (ou, o que vem a dar no mesmo, :"ou com o servidor modesto que se anularia diante da obra"?".
a da infidelidade inevitável) não está nunca muito distante. Ca- c.Não sabemos como o autor avalia esta hierarquia, nem se pro-
minha a par com uma concepção implícita de encenação corno ··duz os desvios extremos desta tipologia para lamentar-se ou
uma ajuda supérflua e perigosa, como um suplemento do inútil. .;felicitar-se dela. Seja como for, essa polaridade não deixa de
O ressurgimento da concepção filológica e logocêntrica nunca ::.inquietar, pois repousa numa avaliação normativa do traba-
está longe. Assim, na introdução a Théâtre aujourd'hui"; de Jean' ~lho do encenador, oscilante entre a criação todo-poderosa e
-Claude Lallias, encontramos fórmulas - ora citadas, ora re- ;a humildade pedagógica. Essa visão normativa e pedagógica
tomadas pelo autor: a distinção não é sempre fácil- que reve- ii·da encenação é muito difundida e encontra -se noutra pola-
lam esse possível deslize da concepção da encenação para uma Yridade totalmente discutível, a de que "da mesma forma que
teoria que reivindica a justificação pedagógica e a fidelidade. i'com os textos, opor-se-à o trabalho que opacifica, densifica,
Segundo ele, a encenação seria uma "tradução" contingente e ~:que multiplica as referências - intertextuais e intercênicas _
pessoal: "Mesmo que existam tradições no Ocidente, o teatro lao ideal de transparência, legibilidade e homogeneidade dos
de arte se define antes pela inovação cénica, ou seja, pela cria' ;;signos"58. Ainda outra vez faz-se luz na doxa teórica dessa fu-
ção de uma obra angular e de um trabalho de tradução k.qesta oposição entre "grau zero da encenação" e pletora redun-
que se sabe contingente e pessoal. Do que decorre o papel es- fNante devido às inúmeras referências extratextuaís e cênicas.
sencial do encenador">'. Jean-Claude Lallias insiste, com ra- i.Essa oposição é tão problemática quanto a que distingue as
zão, na emergência do encenador num contexto ocidental, . .encenaçôcs plásticas e "aquelas que rarefazem os signos, ten-
porém talvez "essencialize" muito sua função ao limitar-se a idendo à nudez e a privilegiar a escuta, o sonoro e o corpo vi-
uma "tradução cêníca" (termo muito impróprio). Por "tradu- .brante da palavra">. Esta falsa oposição entre o visual pletórico
ção" ele subentende provavelmente a tradução de um texto ou e a escuta imaterial é o ressurgimento da concepção dualista
de uma ideia pessoal, pelo menos para "qualquer encenação de ,.,ocidental entre a visão exterior, ligada ao corpo representado,
;e a palavra interior, que estaria ligada à voz nua. Desse modo,
53 Esta publicação, intitulada L'Êre de la míse en scéne, coordenada por [ean-
-Claude Lallias, com um prefácio de Pascal Charvet, "Inspecteur général.Iet- assupostas grandes oposições não são senão construções me-
tres-théâtres" (p. 3), foi editada pelo Ministério da Educação Nacional e o da )afísicas dualistas, que se baseiam, implicitamente, no dogma
Cultura, Paris, Centre National de Documentation Pédagogíque, 200S. O Iívro,
ricamente ilustrado, concentra-se no acontecimento e na transmissão da ence- 55 Idem, Ibídem. Mas quem decide do valor e da diferença com as encenações
nação. Compara nove encenações históricas de Tartufo e coloca para dezoito "sem valor"?
encenadores as mesmas e pertinentes quatro perguntas sobre seu percurso, 56 Idem, Ibídem.
sua concepção e sua prática cênica. 57 Idem, p. 5.
54 J.-c. Lallias, Les tensions fécondes entre le texte et la scêne, 'Ihéãtre aujourd'hui, 58 Idem, ibidem.
n. 10, p. 4. 59 Idem, ibidem.
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÕES; PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 391
390

de uma palavra fiel em contraste com uma visualidade corL,- '"c ,., enunciação, em sua performance, numa representação (mental
poral i n c o n t r o l á v e l . , , ; ' e · É ~:ou cênica) na qual ganhe sentido, ,
Não basta dizer, com Lallias, que a verdade reside ent!'~'_· ";':?T Como, a partrr desse ponto, contínuar a pensar, até mes-
os extremos dessas polaridades, é preciso tentar uma teori";;; l:Y mo a despensar e a ultrapassar esse dualismo texto/cena,page/
que descreva os casos particulares e que explique o funcio' ,'?' stage, legívellilegível, legívellvisível? A situação está ao mes-
namento dos espetáculos existentes a partir de outros crité{ "'J t mo tempo esclarecida e bloqueada: deixamos de lado o debate
rios e outras duplas para além das tradicionalmente usadas' ",. normativo dos anos de 1950 sobre os pares malditos texto el
como poder/modéstia, opacidade/transparência, atualidadeZ" : ~" OU representação, fidelidade e/ou tradição. Cessamos, igual-
arqueologia, escritura/arquitetura, natural/teatralidade, visão t· mente, de ver a representação como uma semiótica vinda do
barroca/palavra a voz nua, arcaísmo/mídia. É isso que temo~ texto, Porém, será que fomos longe demais, inclusive na teori-
tentado fazer ao procurar ultrapassar essas falsas oposições' ."i' f' zação do teatro "pós": pós-moderno, pós-dramático, pós-pós?
através de alguns apanhados sobre diversas experiências re} '. i. Não estamos sendo como Caribde e Sila, quando recusamos,
centes da prática teatraL As experiências plásticas, midiáticas, ';.> em bloco, a explicação teórica, ou quando empurramos para o
interculturais, desconstrucionistas, gestuais da atividade td" "pós" aquilo que poderíamos ter feito no mesmo dia?
traI contemporânea são desafios indispensáveis para o teatro i,- Uma medida simples e salutar consistiria em historiei-
e para sua teorização. Têm em comum desI ocar as supostas zar e localizar esse debate do texto e da representação, a não
polaridades da realização cênica'", obrigam-nos a repensar o: mais tratá-lo como um problema lógico atemporal. A ruptu-
mecanismo de regulagem que preside a criação desse objeto ; ra da ligação filológica para o pessoal no teatro interveio em
estético chamado "encenação". • meados dos anos de 1960: as estruturas autoritárias foram
.: r questionadas, o corpo foi colocado no centro da atenção, a
~~-- psicanálise, a economia, a teoria literária estiveram a passo de
6.4 Relatividade Histórica do Dualismo ;:.inverter o sujeito. Isso bastaria para inverter o sentido da re-
t1ação texto/cena, para valorizar os grandes espetáculos, para
Não obstante, a coisa não é tão fácil: o espectador, assim CO,n1(j,;? ~";marginalizar a literatura dramática. Variantes contextuais e
o leitor, continua submetido às premissas logocêntricas i{geográficas relativizaram ou inflexionaram essas mudan-
regulam as relações da dupla infernal e muito ocidental texto/ roças, A Alemanha dos anos de 1960 rejeitou-as brutalmente
representação (texto/performance). Temos dificuldade em esc Fao descobrir, através de sua juventude em revolta, as des-
capar ao logocentrismo, a imaginar que o texto não está sem', y,confianças da obediência cega, o Regietheater de Papai, e eis
pre, e necessariamente, na origem do sentido, que não é sempre, - que passou pelo molinete seus grandes clássicos, a tal pon-
ilustrado e encarnado pela interpretação do ator ou pelo palco. \to que teria assustado até Brecht. O Reino Unido da Grã-
É a razão pela qual a posição desconstrucionista de Derrida "" -Bretanha e da Irlanda do Norte, mais sóbrio, resistiu ao culto
revela-se salutar para pensar essas relações delicadas. Da mes- :'cda personalidade ditatorial e corroborou sua extrema atenção
ma forma que o é, igualmente, o confronto com os espetáculp,s . à interpretação do ator. Delegou aos atores e aos participan-
não verbais ou não verbocentrados, como o teatro íntercultural. . tes do espetáculoa tarefa de devising, de criar coletivamen-
midiático ou gestual. Bastaria, aliás, nos lembrarmos de uma «te o espetáculo passo a passo, a partir da pesquisa de temas
coisa: não posso ler um texto sem pensar em sua situação de até o estabelecimento da partitura, sem passar pelo olhar de
um director autenticado e "validado". Nos anos de 1990, na
França, a relação texto/palco ainda evoluiu: a separação des-
60 Ver anteriormente, no primeiro subtítulo deste capítulo: "Um Percurso Sinuosd:
crita por Braunschweig entre texto a ser montado e material a
392 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
CONCLUSOES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇAO? 393

ser preparado foi, no entanto, aceita, tanto mais que o antH,..ó' Ilha ou Quase-Ilha?
"directator?" adotou um perfil baixo, renunciando aos
fáceis da grande encenação, cedendo às delícias da direção .··.COIl.lU bem o mostrou Michel Vinaver, no século xx o teatro
atares, inspirando-se na performance ou na site specific i);"constit'Ull1-,;e em ilha":". Separou-se da literatura e até da cul-
formance.
para realizar a profecia de Craig:
No entanto) na prática contemporânea não é at,sc,lutalnE'Il_
te fácil distinguir entre a encenação de um texto e a er,cE'n"ção Quando ele (o encenador) interpreta as obras do dramaturgo
como espetáculo, como arte autónoma. Comumente, o urnsr ,tr.,cv'" a ajuda
de seus atores, cenógrafos e outros artesãos, ele próprio
não decidiu conscientemente se é um ou outro e, COIU mais o mestre-artesão. Quando, por seu turno, ele souber combinar a
zão, o espectador hesitará entre as duas maneiras de ver, Não' a cor, o movimento e o ritmo, ele se tornará artista. Nesse
há, evidentemente, regras para distinguir um do outro, Da rnes-. não teremos mais necessidade de dramaturgos. Nossa arte será
ma forma, o Macbeth de Gosch, que poderia chocar e parecer
recortado da peça, no fundo resultou ser uma leitura do texto,
E, inversamente, os clássicos "montados" por Castorf são mais A encenação tornada independente e rejeitando a literatura
,. dramática: tal seria, de acordo com Vinaver, o sentido dessa for-
eventos cênicos do que leituras da obra literária, pois parece
muito difícil fazer uma ligação com os textos de partida (ver mação de ilha, o que teria arrastado consigo a supressão da duali-
os exemplos e fotos do capítulo 11). dade do texto e do palco e a promoção de espetáculos, "forçando
geralmente a admiração pela harmonia que os marca'?",
Esta sua posição radical remonta a 1988. Deve ser nuança-
6.5 Confusão de Papéis da devido à extraordinária evolução da escritura dramática nos
. anos de 1990, na França e na Europa, impulso que se deveu, em
Consequência imprevista: reina grande confusão de gêneros. parte, ao próprio Vínaver". Sua ilha tornou-se uma quase-ilha.
Antigamente, desde os encorajamentos de Craig para a eman- 'Até os anos de 1980, o teatro foi, com efeito, de preferência cê-
cipação do encenador até o exemplo de Artaud e da geração nico e recortado da literatura. Os textos viam-se afogados nos
"díretadores', o encenador acabava por tomar-se por autor do espetáculos ou reduzidos ao estatuto de script, de libreto ou de
espetáculo, a ponto de despedir o autor verdadeiro. Depois, nos
anos de 1960 e 1970, por delicadeza com a literatura dramática, 62 M. Vinaver, I'Ile, Théâtre en Europe; n. 18, set. 1988.
63 De l'art du théâtre.
o autor passou a ver-se como um encenador, montando seus 64 Idem, p. 21. Vtnaver nos dá uma excelente descrição dessas performances cê-
próprios textos, concebendo-os como um simples script para nicas que não derivam nem dependem de um texto: "A dualidade do texto e
a representação, convertida de um só golpe em valor supremo; do palco sendo suprimida, com tudo aquilo que poderia trazer de confusão,
formatam-se espetâculos que provocam geralmente a admiração pela har-
A partir dos anos de 1990, o inverso produziu-se: o autor deu monia que os marca (todos os componentes do espetáculo tendo sido conce-
livre curso ao encenador para permitir-lhe explorar as possi- bidos ou ordenados pelo encenador em função de uma visão unitária), pela
bilidades de seu texto. O texto dramático não era "incomple- <r , sua originalidade (cada encenador consagrando-se a criar, de espetáculo para
espetáculo, uma obra, a sua), pelo esplendor e fulguração da imagem (a serviço
to" porquanto órfão do palco, porém "pleno" porque aberto à da qual a técnica, desafiada, progrediu de maneira estupenda), pelo espírito
manipulação tanto dos atares quanto dos espectadores, de aventura e pelo gosto de explorar (a ideologia subjacente colocando acen-
to na passagem ao limite, a aposta extrema, a ponte do risco, a colocação em
perigo) e pela dispensa, enfim, do sentido o mais extenso. Joga-se nele todos
os recursos e até um pouco mais, esgota-se e consome-se na embriaguez que
.
61 Permitir-se-á esta palavra-valise para designar essa mistura de ditador e di- proporciona o sentimento exaltante e doloroso do efêmero"
" retor. Poderia também se escrever "díretor torto": quem comete o erro de ir 65 Ver seu relatório para o Ministério da Cultura: M. Vinaver, Le Compte-Rend
rápido demais ao objetivo.
d'Avignon.
394 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSÚES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇAO?
395

montagem de materi~isYnguísticos.Consequêneía benvinda: o . ",,,'"H_--' na interpretação, na linguagem, na representação cênica


trabalho nas peças clássicas beneficiou-se de um interesse parti' palavra? E podemos nós, deveríamos nós escapar ao desejo
cular, tomando-se a cargo a energia interpretativa dos ence:na,:lo_ dereconstituir o "total do autor" por meio da coerência garantida
res, submetendo os clássicos a uma "operação cataIítici': um autor e por uma estrutura textual? Esse desejo de coe-
rêrlcl'a, verificação, validação e fidelidade é profundo.
Há o grande repertório universal, os clássicos, por me' d Da mesma forma, é muito profundo o desejo de fazer outro
. d . 10 ~
quais o encena ar . pode exprimir-se intimamente ) fazer o bra pes~ de teatro, menos logocêntrico e mais excêntrico. Às vezes,
soaI e_atual, medrando uma operação catalítica que consiste na co,
l ocaçao em reação de elementos do presente por meio de sub tâ
com efeito, o texto simplesmente não está totalmente no ponto
. . s an- certo ou não possui nada de audível, legivel, pertinente. Transfor-
elas antl~as) ou a reatívação do passado por meio de Uma injeçã ':
da maneira de hoje", o mou-se em material sonoro, no seu sem sentido, no significante
sem significado. E, nesse caso, apenas o evento cêníco, a ação
_ Não te.ríamos c~ndições de d~screver melhor a opera- física, a performance têm vez. Aprecia-se estes últimos como
çao nos clássicos. Fica para a teoria e para os artistas deci- trabalho plástico ou musical, como uma tentativa de escapar da
dir aquilo que desejam reativar do passado e graças a qual palavra, e, às vezes, também do sentido. E - milagre do sentido -,
olhar para seu presente. A imbricação no ,eativamento do acontece que essa materialização da situação de enunciação, de
passado e do olhar encadeia uma interpretação a cada vez materiais no espaçotempo-ação do palco consegue provocar o
original e única, uma expressão íntima do encenador. texto, o dogma, o congelado, consegue fazê-lo perder as estribei-
Esta convicção íntima permanece no centro do ato criador ras, suscitar vibrações inesperadas, conotações imprevisíveis.
um ato _que :ende a escapar a qualquer controle e a qualque; Não é, em todo caso, tão fácil assim preparar e fixar o texto:
pretensao teonca. Essa conclusão seria muito inquietante como um tecido vivo, uma hidra, uma alga, ele se regenera ao
um livro sobre o teatro contemporâneo. Porém, é preciso ad- . menor indício, à menor escuta atenta. Contrariamente ao que se
mitir: o teórico e o historiador não existem para elucidar as acredita, ele não é um material como qualquer outro. Podemos,
escolhas íntimas e inconscientes dos artistas. certamente, apreciá-lo como matéria, textura, chiado sonoro,
•".V".... potencialmente permanece como um sistema simbólico,
uma hidra textual cujos tentáculos repele à vista do olhar.
6.7 Reconsideração da Dupla Texto/Representação a par texto/representação continua sendo um excelente
barõmetro para julgar a encenação. Não seria preciso, contudo,
que o barômetro prescrevesse o tempo. Melhor valeria ainda
A velha questão da dupla texto/representação coloca-se nova-
que se desregulasse sem cessar, ou que fosse submetido a regu-
mente. O eterno debate sobre a fidelidade do encenador à peça.
Iagens permanentes: verificações, esclarecimentos, mas igual-
volta como o retorno do proscrito. Outros pares, outras arti-
manhas, mais modernas, interpõem-se para camuflar a velha mente desregulamento sistemático e anárquico de sentidos.
cantilena da necessária fidelidade ao texto interpretado. Fide- Encenação: deliciosa ambiguidade do oximoro. Se insistir-
mos na colocação', na transferência, na passagem de um material,
lidade ilusória, fidelidade bem pensante muitas vezes. Porém,
escapamos do pensamento normativo? Não estaremos nós, es- textual ou não, para o palco, ficaremos na lógica da representa-
pectadores, atares, encenadores, sempre no aprés-couptle)", na ção, seja o que for que façamos para escapar ao "destino da repre-
sentação" (Derrida). Se insistirmos no palco', lhe conferiremos
~6 M. Vinaver, op. cit., p. 22.
~~o de pal,avr~s intraduzível para o português: a expressão aprês-coup (olhan- Em francês, a expressão mise en scéne (encenação) é composta por mise (colo-
para tras) _e acrescida do sufixo (le) (=: couple: dupla, casal), remetendo à cação) + en scéne (no palco), cuja decomposição de sentido é vista pelo autor
nova expressao que significaria algo como "olhando para a dupla" (N. da T.). como oxímoro (N. da T.).
396 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSOES; PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 397

um peso, uma existência) uma autonomia que nada mais encenadores/autores não fazem mais diferença entre as duas
dianteira, quer seja ela textual, narrativa ou temática. "práticas, como François Tanguy e o Théâtre du Radeau ou Ioél
Felizmente, não sabemos nunca exatamente em qual é pommerat, segundo o qual "encenação e escritura haverão de
de figura nos encontramos. No fundo, não queremos fundir-se cada vez mais":".
Podemos apenas observar esse 'deslizamento, Hoje, paradoxalmente, a aproximação entre texto e pal-
mente atestado, da colocação (mise)no palco (en scénej; da eu' co verifica-se às vezes também no caso dos clássicos. Há, com
cenação para a p e r f o r m a n c e . e f e i t o , uma tendência a tratar o texto, mesmo o texto clássico,
Uma nova figura - mise-en-perf ou performise _ "mostrando-o'; citando-o e ostentando-o como uma espécie de
para o horizonte. ''c/instalação sonora e gráfica. Não se trata mais, então, de inter-
Talvez, não seja senão urna miragem. Caso ela não se .~':pretá-lo, de ilustrá-lo, mas sim de expô-lo como um material
terialize, encoraja-nos pelo menos a avançar, a não ficar ii/.sonoro, portanto de encontrar um dispositivo que deixe o pú-
dois pés no mesmo tamanco regulado ad vitam aeternam. cHi blico circular ao redor. Que se pense em nosso Hamlet húngaro
mais repetiremos, assim, as mesmas simplificações, a ~t' (foto a seguir): sabia-se bem que, em Paris, não se compreende-
fiel filologia filantrópica. .ria a língua: não se pronunciava o texto como as palavras de um
Chegaremos até a conceber e a esperar essa personagem, mas como uma citação comentada e exposta de
performise como uma nova espécie híbrida no fragmentos textuais emprestados de outros autores. Os três per-
inesgotável das cultural performances. Uma espécie vivaz e _..formers o dizem sem "ter o ar de tocá-lo'; ou seja, colocando-o à
raz como essa hidra textual tentacular de antanho. Ines!sOI:ávê\; ,i i1il);?distância e sem mostrar aquilo que pensam dele, sem interpre-
porque fictícia. ~:t',tá-lo, tal como uma palavra destacada de seu locutor. Porque -
Já é tempo, de resto, de nos encontrarmos, desse ~'ipensam eles - não é o caso absolutamente de dizer as palavras,
na dimensão fictícia, lúdica, artística, poética do teatro, ;1:" é preciso ainda ver como elas se instalam e se expõem.
quais forem as identidades do momento. ~;i'
Já é tempo, também, de voltar, in extremis, para essa i&
dupla texto/representação que a prática tanto textual -r "",
cênica não cessa de recolocar em questão. O estado atual dessa-;
prática, neste começo de milênio, desloca, com efeito, as
zas e desfaz as alianças de antanho. Graças a tal prática,
haver-se abandonado a procura essencialista da específicídadej'
do texto dramático ou da teatralidade. Quanto à clara dístín-v'
ção entre texto e representação, ela se manterá muito peme'd;'cifra
a não ser para a encenação dos clássicos: nestes, com e":lLV';'
o encenador não pode ignorar a existência de uma peça,
somente publicada e reconhecida, como também possuindo-i,
uma tradição de leitura. Mesmo para a publicação de te>j:O'i~':
contemporâneos, acontece muitas vezes que o texto pU.DIlLca''f'ff';'
o seja levando em conta representações precedentes e que Shakespeare, Hamlet, encenação de Árpád Schilitng, Bobigny, 2007.
como uma transcrição. Torna-se, portanto, cada vez mais ©Patrice Pavís.
distinguir o texto da representação. A evolução tanto da
tura dramática quanto da encenação tende a convergir. A1guns;1j\:;': 67 [. Pommerat, Vers l'autre Iangue, Théãtre/Publíc, n. 184. 2007.
398 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSOES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 399

Este exemplo hamletiano e húngaro ajuda-nos a comj:,re"fl_ ,;§~?i,' urna prova no sentido vestimentar da palavra, quanto de des-
der as tentativas recentes para desconstruir a separação o palco por meio da adequação de uma textua-
performance, especialmente graças à teoria do performático de uma discursividade implícitas.
à crítica genética do texto e da cena. Como o observam Jean- Nos exemplos de clássicos colocados e recolocados por
-Marie Thomasseau e Almuth Grésillon, "a análise genética, se belas equipes inventivas, vimos que texto e performance não
quiser apreender os processos da criação teatral, pode manter funcionam mais como antíteses, mas sim como uma dupla que
por comodidade e cuidado de clareza o partilhamento entre sofre de perda de identidade, uma não aspirando senão a tor-
texto e palco. Ao mesmo tempo, ela deve lembrar-se que a ver- nar-se a outra (situação clássica do par amoroso!). Não seria,
dade do teatro não está no funcionamento autônomo de duas contudo, o caso de se ter aqui um problema de fusão. Q exem-
mecânicas separadas, mas sim no movimento que as religa e plo do Hamlet à la húngara mostrou-nos que se trata, antes, de
dá vida à obra a fazer. Tudo é jogado, na realidade, neste entre' ' uma instalação, de uma justaposição de pedacinhos textuais e
meio do texto e do palco, nessa passagem complexa e delicada de ações cênicas.
entre o espaço da página e aquele do palco, num contínuo e Este princípio de instalação, justaposição, essa vontade de
reversível vai e vem entre o legível, o dizível e o visível"68. Para não explicar, mas apenas de citar, de acrescentar sem dizer pa-
mostrar essa passagem, esse vai e vem, faremos apelo a uma lavra, explica certamente a fortuna de noções do pós-moder-
teoria performática do texto. Pois não somente a performance nismo e do pós-dramático. Essas noções contentam-se em fazer
(a representação) é uma ação performática, como também o alusão àquilo que vem depois, sem dizer o que nem por quê.
texto é uma performance, uma produção através de um ato de Como se a história estivesse congelada e como se não fôsse-
leitura. O texto dramático, com efeito, como, aliás, qualquer mos capazes de integrar em uma teoria geral a produção tea-
texto ficcional e qualquer texto "real", ao aceitar as ambigui- tral da atualidade, como se, depois da dialética do marxismo
dades continua aparentemente o mesmo, porém sua leitura e do brechtianismo, não mais estivéssemos em condições de
muda a cada vez, tanto indívidual quanto coletivamente. Não compreender o "progresso", nem mesmo a progressão de nosso
nos banhamos jamais duas vezes no mesmo rio, nem no mes- entendimento do mundo, como se não houvesse mais dialéti-
mo texto. O texto dramático, como qualquer performance, não somente o «suplemento", o «pós", já que não conseguimos
se constitui senão por uma ação performática: a leitura e, com mais pensar na sequência, na evolução, e ainda menos no pro-
mais razão, uma nova encenação. gresso. Entramos na sociedade do Post-it: anotamos num aviso
Observaremos que não apenas o texto é tratado como uma colante aquilo que ter(ia) que ser feito amanhã, mais tarde, na
ação performática e uma performance, mas que, inversamente, perspectiva preguiçosa do pós-moderno. Quanto à noção de
também o palco, a performance, sob o controle do encenador, pós-dramático, ela confunde o textual- mais nada existe depois
pode se tornar centrada e legível como um texto, "autor-izado" do dramático (tanto quanto depois do épico brechtiano) - e o
por um "mestre de palco': Do que decorre essa contradança: O cênico - nada existe de encenação "centrada'; que esteja centra-
texto se "perforrníza" a performance se "textualiza" da num texto ou numa significação privilegiada. Essa categoria
A encenação, tal como a definimos, é essa instância de re~;:, I do pós-dramático está desse modo longe de aplicar-se a qual-
gulagem-desregulagem, esse compromisso 'e essa negociação quer produção textual e cênica atual. Aliás, quando uma autora
entre instâncias opostas. Trata-se tanto de regular-desregular como Sarah Kane proclama: "Iust a word on a page and there is
o texto por meio de uma colocação em enunciação cênica, de the drama"!", coloca em questão essa categoria tapa-buracos e

68 J.-M. Thomasseau; A. Gréslllon, Scênes de geneses théâtrales, Genests, 11. 26/05, 69 S. Kane, 4.48 Psychosis, Complete Plays, p. 213 (''Apenas uma palavra na página
p.21. e existe o drama").
400 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA CONCLUSOES: PARA ONDE VAI A ENCENAÇÃO? 401

nos recoloca; antes, no neo ou no pré-dramático, mais do aumentar, assim como a resistência de confirmar-se entre
no pós-dramático. OS theatre studies, os performance studies e os cultural studies.
Porém, neste caso, estamos de acordo, e, sobretudo, mesmo tempo, essa rivalidade epistemológica apresenta-se
estamos nós? como uma oportunidade para o teatro, caso este seja capaz de
assimilar esses métodos de outras práticas culturais e igualmen-
te ser assimilado por elas. Portanto, os canteiros nas mídias, no
7. PARA ONDE VAMOS? intercultural ou nas novas escrituras, longe de enfraquecer ou
abastardar a representação, provocam-na, obrigando o espec-
A saber: para onde vai a encenação? Eis aí uma questão tador a reconsiderar seus modos de percepção.
em dia um pouco fora de moda ou que perdeu sua pertinência Eis porque a encenação comporta-se antes bem, apesar
como se saber "para que o teatro?') fosse uma sobra idealista ) da rivalidade de noções que pretendem dobrá-la, como as de
pensamento das Luzes. Outrossim, não perguntaremos: teatralidade, de espetáculo, de performance ou, mais recente-
onde vai o teatro, porém mais modestamente: no que a ferra- mente, de coralidade. A encenação comporta-se tão bem que
menta da encenação nos ajuda a compreender essa arte per- às vezes faz escola, não como uma tradição congelada, mas
,. sim como tradição em vias de consolidação. A história da en-
petuamente em trabalho, em movimento, em fusão? 'A obra'
dramática é um enigma que o teatro deve resolver. Isso às vezes cenação ocidental oferece-nos um rico sortimento de métodos
leva muito tempo'?", Não estamos dizendo outra coisa: o texto de jogo, alguns grandes casos de escola, algumas assinaturas
dramático é um problema que a encenação deve regular. ou alguns estilos reconhecíveis. Artistas de grande experiên-
Chegada a uma certa perfeição, a uma diversidade e a uma. da, como Peter Brook, Eugenio Barba ou Ariane Mnouchkine,
complexidade, a encenação conhece ao mesmo tempo uma séria estabeleceram uma arte que poderia fazer escola se eles não
crise de identidade. Tem dificuldade em continuar uma quisessem, constantemente, recolocá-la em questão. A manei-
estética, pois as metáforas de todos os lados a empurram para ra dos mestres de nó ou de pansori, esses mestres ocidentais
outros domínios que não os do palco ou da ficção, para aptícar-r.; poderiam quase deixar seus atores regularem os detalhes, ocu-
-se indistintamente às artes plásticas, às artes da cena, à realída-."; pancio-se da intendência, desenhando os lineamentos de um
de social, ao mundo considerado como um show business, que não pertence senão a eles.
business do que show. Ela é sem cessar intimada a declinar sua Malgrado estes esboços de tradição, a encenação, essa tra-
identidade em meio a cultural performances, que pretendem dição anti-tradicional do Ocidente, não se tornou um conser-
o mesmo estatuto que ela, em meio às práticas espetaculares vatório de formas e métodos. Não se limitou ao teatro de arte,
que tocam as culturas do mundo inteiro. Ao invés de sentir-se mesmo que este continue o mais belo florão. O teatro de arte
apenas tolerada e em sursis em muitos departamentos de es- não é mais, há muito tempo, a única aspiração dos encenado-
petáculos ou de cultural performances ou studies, ela tem que res; é às vezes sua besta negra, muitas vezes também seu de-
reconquistar seu lugar estético e ficcional no interior de sejo e seu jardim secreto, seu fruto proibido. Porém, sem este
essas práticas culturais. Muitos artistas da cena sentem jardim secreto, para além do primeiro círculo de iniciados, de
sua arte se degrada em cultural, depois em sociocultural e, por incondicionais, reencontrarão eles ainda um público para va-
fim, em social. Depois de examinar com a lupa, ou seja, tendo lidar suas hipóteses? Ou, ao contrário, não encontrarão senão
como ponto de partida a universidade encarregada de estudar uma assembleia dissolvida? Como saber?
a louca matéria teatral, constataremos que o buraco não para Seja qual for o círculo endiabrado de metáforas e defi-
nições, a encenação atravessou bravamente o século xx: sej a
70 A. Vitez, I'Art du théâtre, I..:Art du théâtre, n. 1, p. 8. representação, teatralidade, performance, comunicação inter-
402 A ENCENAÇAo CONTEMPORÂNEA
ibliografia
cultural, prática espetacular, desconstrução ou performise,
se mantém, na medida em que soube adaptar-se e efetuar a
gulagem indispensável para sua transmissão desde o mundo
da arte para o da assembleia pública.
Talvez' ela se mantenha porque nós outros, espe'ctadones
fortuitos de uma noite ou tenazes artistas de toda uma
aceitamos ser transformados por ela, à imagem da metamor"
fose que deve tomar conta do encenador, da qual falava Co-
peau: "Quando o encenador se acha na presença de uma obra
dramática, seu papel não é dizer: 'O que é que vou fazer?',
papel é dizer: 'O que ela vai fazer de mim?'''71
A obra nos transforma, e nós transformamos a obra ao nos
deixarmos atravessar por ela, ao nos colocarmos em perigo' e
nos arriscarmos nela e nas nossas anamorfoses da incerteza, da
perda de identidade, da sensação antiga e do novo caminho, .
Quem não se sentiria perdido e órfão na partida ou na che-
gada de tal viagem? Contudo arrisquemo-nos, nessa vrazern:
sem retorno, arrisquemo-nos até a fazer uma aposta no futuro,
um ato de fé e de amor! Apesar do fanatismo, do presentismo,
do catastrofismo e dos pós-ismos, as esperanças não estão
didas: o spleen se dissipará, a dor se acalmará, a arte reflorirá, ABl:RACHED, Robert. Le Théãtre et teprince: Un Systéme[atígué, 1993-2004. Arles:
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Glossário de Noções

,.

Mais do que os termos de dramaturgia clássica, comumente


definidos (por exemplo, em Pavis, Dicionário de Teatro, 2002),
este glossário reagrupa as noções contemporâneas que "tra-
balham" os espetáculos na virada do milênio. Alguns termos
definidos explicitamente no corpo do texto não foram reto-
rnados no glossário. O leitor encontrará facilmente sua defi-
nição graças ao índice de Noções.

APRESENTAÇÃO E REPRESENTAÇÃO: o teatro, a partir de Aris-


tóteles, é tradicionalmente considerado como a represen-
tação mimética de uma ação. Em contraste, a partir da
performance dos anos de 1950, o ator faz antes de mais
nada urna apresentação de si mesmo como pessoa privada
e não como personagem: exibe a persona, sua pessoa e sua
máscara) vê-se como um performer e não como um atar
representando um personagem.
ARTE (TEATRO DE): conforme o nome do teatro simbolista de
Paul Fort, fundado em 1890, o termo designa um estilo e
uma concepção de encenação que rejeitam a exploração
comercial para consagrar-se a uma arte elaborada e exi-
gente.
..
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,
414 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA l: GLOSSÁRIO DE NOÇÕES
415

ARTES DA RUA: espetáculos criados nas ruas ou em lugares pú- COLOCAÇÃO EM VOZ: leitura em voz alta da peça pelos atares,
blicos, sem se limitar ao teatro, porém abertos à dança, à sob a direção do encenador, não somente para encontrar
performance e às artes plásticas. as entonações, mas para inventar os gestos vocais, sua es-
ARTES VISUAIS (VISUAL ARTS): as artes plásticas, as instalações tilização e seus efeitos no espectador.
as projeções e as rnídías, a performance num museu, en~ COLOCAÇÃO NO ESPAÇO: escolha de opções espaciais para a lei-
contram muitas vezes o «teatro" propriamente dito na ca- tura da peça e tentativas de traduzi-las nas posições e des-
i.' .
tegoria das artes visuais. locamentos dos atares.
ATUAÇÃO (ESTILOS DE JOGO DE ATUAÇÃO): maneira pela qual o COLOCAÇÃO NO LUGAR: a localização de personagens, o esta-
desempenho do ator se inscreve numa estética definida por belecimento de suas posições respectivas no espaço, o es-
sua relação com o real, por exemplo: realista, naturalista quema de entradas e saidas dos atores.
impressionista, expressionista, épica, pós-moderna. ) CORALIDADE: a possibilidade, para o espetáculo, de tratar o pal-
AUTODIREÇÃO: maneira pela qual o atar, sem o olhar e a ajuda co de maneira coral, como um conjunto de elementos uni-
. de um encenador, toma decisões sobre sua atuação e sua' dos e distintos, ao fazer atuar em conjunto ou uns contra os
estratégia. Para Michael Chekhov, o gesto psicológico pode outros todos os componentes da encenação. Os coros não
desempenhar seu papel, pois "guia você, dirige você, como são unicamente vocais e musicais, eles reagrupam todos os
o faria um amigo, um encenador invisível, que não recusa materiais da representação. Não se trata de encontrar um
a você, nunca, um conselho quando precisar dele" (Être ritual esquecido ou uma comunidade desaparecida, mas de
acteur, Paris: Pygmalion, 1989, p. 11 - Trad. bras.: Para o dirigir e expor a comunidade de espectadores.
Ator, São Paulo: Martins Fontes, 2003). CORPORALIDADE: a soma das qualidades físicas do corpo do
AUTOR-IDADE: aquilo que o autor do texto ou da encenação, ator, especiahnente sua aparência, a materialidade de seu
como senhor do sentido, está em condições de controlar corpo fisiológico e a ação "perforrnátíca" que realiza.
e dirigir, por exemplo, numa encenação muito "dirigistá', CRIAÇÃO COLETIVA: trabalho que não está sob a direção exclusiva
centrada em suas escolhas cênicas. de um encenador, mas que deixa aos artistas, especialmente
BODY-ART (ARTE CORPORAL): arte que toma por objeto o corpo aos atores, uma grande parte de decisão. Quando se insiste
humano, interrogado e provocado nos seus limites e nas na concepção coletiva e progressiva para a elaboração do
suas possibilidades expressivas extremas. conjunto do projeto, fala-se, em inglês, de devised theatre.
CINESTESIA: percepção, pelo espectador, do movimento, espe- CRONOTOPIA: termo de Mikhail Bakhtin para a "fusão dos ín-
cialmente o do dançarino ou do ator. A encenação e o de- dices espaciais e temporais num todo inteligível e concre-
sempenho do atar dão conta das reações dos espectadores, to" A encenação procura muitas vezes essa fusão, a fim
e estes percebem e também transmitem involuntariamente de produzir um efeito de integração e metaforização dos
suas reações. materiais cênicos.
COLOCAÇÃO EM PISTA: organização do espetáculo de circo em DESCENTRAMENTQ: a encenação está descentrada quando não
função de artistas e suas ações no espaçotempo. é mais construída em função de uma significação estável
COLOCAÇÃO EM VISÃO: expressão de Eugenio Barba (em Fé- e identificável. O encenador ou os sentidos não são mais
ral, v. II, 1998, p. 103). Após ter-se feito a compreensão da os elementos estáveis e centrais, perderam sua hegemo-
história, e de tê-la posto no lugar e no tempo (decididos os nia, assim como qualquer autoridade filosófica, política,
deslocamentos e o ritmo), a colocação em visão consiste artística.
em «ressaltar aquilo que não é necessário, ou seja, simples- DESCONSTRUÇÃO: termo de Jacques Derrida. Processo que con-
mente recortar'; como para a montagem de um filme. siste em desfazer um sistema hegemônico, ao mostrar suas
r
I 416 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

,
GLOSSÂRIO DE NOÇÓES 417

contradições, suas leituras múltiplas, suas interpretações pela qual o espetáculo, no seu conjunto, dirige-se para a pla-
!I
ii moventes. teia, como se não houvesse separação nem quarta parede.
ii
" DEVISED THEATRE: termo inglês, dificilmente traduzível, para ESCRITURA CÊNICA: termo empregado sobretudo nos anos de
ii
um método de trabalho que constrói o espetáculo passo 1960 e 1970. A utilização, por um encenador, de meios cê-
a passo, sem esquema precedente impulsionado por um nicas para criar uma obra autônoma não depende, ou não
encenador autoritário. Todas as tarefas, escritura, escolhas mais, de um texto ou da "escritura dramática".
de espaço e lugar de representação, atuação, trilha sonora ETNOCENOLOGIA: "estudo, nas diferentes culturas, de práticas
etc., são abordados simultaneamente e sem hierarquia de e comportamentos humanos espetaculares organizados"
valores. (Pradier, 1997). Amplia o estudo do teatro ocidental com
DIFERENÇA: termo de Jacques Derrida. O fato de diferir o sen- relação às práticas espetaculares do mundo inteiro, parti-
tido, de remetê-lo para mais tarde, até que se torne claro cularmente aquelas que procedem do rito, do cerimonial,
que não se pode atingi-lo. de cultural performances, evitando projetar nelas uma vi-
DIREÇÃO: organização material da encenação pelo régisseur ou são eurocêntrica.
diretor do palco. Não confundir com a encenação, organi- EXPECTATIVA: aquilo que o público está pronto para receber, o
zação artística do espetáculo. horizonte que reconstitui em função de seus conhecimen-
DIREÇÃO DE ATORES: trabalho que se realiza durante os ensaios tos e experiências anteriores.
e que conduz sua relação, harmoniosa ou conflituosa entre FENOMENOLOGIA: método filosófico, literalmente "ciência dos
o encenador e os atores, ao objetivo de descobrir seu perso- fenômenos': que através da descrição das coisas procura
nagem ou suas tarefas. Forma o centro da encenação. descobrir as estruturas da consciência. Da mesma forma
DISSEMINAÇÃO: termo de Jacques Derrida. A impossibilidade que a encenação é a parte abstrata do espetáculo (que não
de localizar e reificar o sentido no texto ou na obra de arte, vemos, mas que organiza todo o espetáculo), a fenome-
para além de nosso desejo de coerência e de centralização nologia constitui o sentido do fenômeno e relaciona esse
da significação. Esta última não reside no texto, mas na sua fenômeno com o ato de consciência que o visa.
performance, na sua dispersão e construção/desconstrução FIGURA: termo empregado para evitar o de personagem, jul-
por meio de contextos os mais diversos. gado muito psicológico e mimético. A figura é a entidade
DISTANCIAMENTO: ou mais exatamente "efeito de estranhamen- estrutural que concentra ou dispersa elementos figurativos
to': Termo de Brecht para o processo que consiste em tor- e abstratos ao mesmo tempo. O ator traça, no palco, figu-
nar estranho e, portanto, criticável o que era muito familiar, ras, quase coreográficas, que são a primeira e, comumente,
com a ajuda de processos artísticos que denunciam a ma- a mais pertinente estrutura que dá a ver e a acompanhar
neira habitual de representar um objeto depois de percebê- o sentido.
-lo. Outras formas de distanciamento, menos políticas do FORMA BREVE: leitura de alguns minutos, representação teatral
que as de Brecht, como a desconstrução ou a disseminação, ou curto pedaço musical ou fílmico, vídeo. Essas formas
são o quinhão corrente de espetáculos contemporâneos. breves, tal como um haíkai, um flash de luz, são criados
EFEITO PRODUZIDO: aquilo que o espetáculo induz no especta- como reação contra a obra completa ou explícita.
dor, como emoções e reações, a maneira pela qual o afeta. GENÉTICA: a crítica genética examina a gênese de uma peça, ne-
Hoje, às vezes parece mais fácil descrever esses efeitos do cessariamente móvel e inacabada, até sua representação. In-
que interpretar a obra que os suscita. teressa-se pelo trabalho da encenação, especialmente pela
ENDEREÇAMENTO: não apenas a maneira pela qual um persona- maneira com relação a qual as escolhas cênicas reavaliam
gem dirige-se às vezes diretamente ao público, mas a maneira a leitura do texto dramático.
418 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÃNEA GLossARIO DE NOÇOES 419

GESTO (TEATRO DO): O equivalente da expressão inglesa phy- atuação produzida diante do público ou retransmitida ao
sical theatre. Forma de atuação baseada essencialmente vivo por meios audiovisuais.
no cor~o do a,tor, às expensas do texto, da psicologia, do MVDANG: xamã coreana, geralmente uma mulher, realizando
repertór ío, ate mesmo da noção global e central da en- um ritual denominado kut.
cenação. MULTIMÍDIA (TEATRO): espetáculo que utiliza uma ou várias
GESTUS:. termo empregado por Brecht para designar a qualidade mídias à sua disposição, por exemplo, o cinema, o vídeo,
socla~ dos gestos de personagens, naquilo que revelam das as projeções, o computador.
relaçoes de força ou de classe. PAISAGEM SONORA (soundscape, termo forjado sobre landscape):
HER~;~mÊUTICA:método de interpretação de textos e imagens; organização de sons, músicas, gravações, aquilo que for-
e o conjunto de conhecimentos e técnicas que permitem ma um conjunto, uma composição que se acha inscrita no
fazer falar os signos e descobrir seu sentido" (M. Foucault espaço graças à possibilidade de produzir fontes sonoras
Les Mots eles choses, p. 44 [Trad. bras.: As Palavras e a; na paisagem do palco e da plateia.
:ois~s, São Paulo: Martins Fontes, 1987]). As encenações PANSORI: poema narrativo cantado e falado por um único in-
unpoem uma hermenêutica de textos e práticas cênicas na térprete acompanhado de um percussionista.
perspectiva de sua produção (genética), de sua recepção PERFORMATIVO E PERFORMATIVIDADE: o verbo performativo
nos quadros mais ou menos amplos, perspectivas do autor, realiza a ação na sua própria enunciação. Exemplo: "Eu
da obra e, finalmente, do espectador. A encenação é, desse te ordeno que ..." Da mesma forma que o gênero (gender)
modo, uma regulagem hermenêutica do sentido, negocia- constitui-se pela repetição normativa de comportamentos
do entre a obra que é dada, o encenador e os atores que a quase impostos pela sociedade, o espetáculo é uma repe-
lllterpretam e o público específico que a recebe. . tição e uma realização de ações previstas pela encenação
INSTALAÇÃO: exposição de objetos, imagens animadas, obras por uma série de convenções.
plásticas. O visitante circula ao seu redor no seu ritmo e PERFORMER: o artista que, ao invés de interpretar um persona-
segundo seu próprio percurso. O teatro "se instala" às vezes gem como o faz o atar, revela-se como uma pessoa privada)
também, tornando-se arte cinética, site specific performan- realiza uma performance virtuosa e não repetível.
ce, land art, dando a ver o texto, "pendurando-o" no espaço POLIFONIA: "Uma concepção unitária do teatro, quer esteja ela
ao invés de tentar explicá-lo e encarná-lo. baseada no texto, quer no palco, está em vias de se esface-
INTERCULTURAL (TEATRO): teatro que, tanto na sua temática lar. Progressivamente, dá lugar à ideia de uma polifonia,
quanto na sua forma de interpretação e encenação, apela até de uma competição entre as artes irmãs, mais do que
para elementos que pertencem, pelo menos em sua origem, contribuir para o fato teatro" (B. Dort, Le Texte et la sce-
a culturas diferentes. ne: pour une nouvelle alliance, Encyclopoedia universalis,
KOAN: palavra japonesa para um problema destinado a fazer Symposium, p. 241).
refletir. No pensamento zen, um problema colocado pelo POLÍTICO (TEATRO): se ele parece ter desaparecido a partir dos
mestre ao aluno, problema que não pode receber resposta anos de 1980 e 1990, é porque está menos visível e menos
na lógica tradicional, mas que provoca) no entanto, uma militante frontalmente, porque visa mais a resistência do
tomada de consciência súbita, uma iluminação (ou satori). que a revolução, mais a performatividade do que a mensa-
Exemplo: o som de uma única mão aplaudindo. gem ideológica.
KUT: cerimônia xamânica na Coreia conduzida pela mudang "PÔR EM JOGO': O: primeira etapa do trabalho com os atores,
(~amã feminina), à qual uma comunidade assiste e parti- consiste em fazer dizer, interpretar e deslocar-se os atores
Cipa e que compreende elementos espetaculares. no começo do processo de ensaios.
'If
420

PáS-DRAMÁTICO:
A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

termo de R. Schechner, depois de H. Th. Leh-


ft índice de Nomes
man (2001). Esse teatro não é um gênero novo e unificado
uma noção de conjunto, mas, para além do drama e do tea~
tro, u~a tend~ncia da prática de colocar em questão a ação
mtrnética, a fabula, o personagem, o conflito dramático
IiI
atuação psicológica de tradição stanislavskiana. 'a
SILÊNCIO: ausência de palavra ou ruído, mas também de movi-
mento ou de sentido. O silêncio é... [sem complemento... ]

I
,

i
I
I
I
I Abirached, Robert 3600
:Abramovic, Marina 231,263-268,372
Balme, Christopher 185n, 186,384
Banham, Martin 141n
t': - Adorno, Theodor 364 Banu, Georges 33, 34, 36n, 98n

I'
t- - Adríen, Philippe 305, 306n, 307
àhn, Chi-Won 71
Akers, Ianice 329
Barba, Eugenio 61,67,151,175,234,239-
241,273,342,401,414
Barbero Corseti, Giorgio 181
i.-~ 'Allaín,Paul XXI, ioso, 2490, 2560
;.- Barker; Clive 56
.I} Allio, René 100
c' Barrault, Jean-Louis 20,47
!< Anne, Catherine 108,114,115,116,130 Barthes, Roland 20,40,50,216,244,
Antohle,llndré 2,40,10-13,15,16,41 253, 279n,287, 307,363, 364, 367, 370
F" Appía, Adolphe 16
;,
Bartra, Roger 146
Aragon, Louis 26. 234 Basso, Marcelle 324n
;.-_ Araki, Nobuyoshi 260 Baty, Gaston 17
Arcaix, Yves 2500 Baudelaire, Charles 205, 323
f ' Aristóteles 3,2200,413 Baugh, Christopher 179n, 384n
h ~. Aron, Paul 272n Bausch, Pina 366
[:"r Aronson, Arnold 860 Beck, Julian 20, 234
!~- Artaud, Antonin 17,18,46,47,51,217, Beckerman, Bernard 241
". i', 227,234,251,288,392 Beckett, Samuel 236
W;:::Auslander, Philip 186, 187 Béjart, Maurice 237
rW:Austin, John L. 41 Belleau, Rémi290
Bellugí, Galatea 258
i~(- Baart, Corien 331 Bene, Carmelo 207
~~i:,,; Bablet, Denis 84, 180n Benhamou, Arme-Françoise 271,281,284,
l~?>Badiou, Alain 267 312n
;~!;Bakhtin, Mikhail 415 Benveniste, Émile 228

~::
422 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA íNDICE DE NOMES

Bernard, Jean-Jacques 261n Calvino, ltalo 272<!.>~~beguy, Maríe-Armelle 116 Port, Paul 13,15,360,413
Berthier; Patrick ln. 90, 279 Cantarella, Philippe 373 ':?'''f~~Q'eJavigne, Domínique 250n Fosse. Ion 29. 99
Besson, Benno 369 Cantarella, Robert 131n" 169, 372n. 37ft~ ~~i:[':DéJcuvenerie,Jacques 369 Foucault, Míchel 20,50,54,418
Betz, WiIl 343 Carlson, Marvln 206n -,;,.>. 'rrip,éJeuze. Gilles 20711, 253 Pournier; Michel 358n
Bial, Henry 138n, 147n Cassíers, Guy 331,332, 334 .~~~::pelgado, Maria 326 Fax, John 52
Binche, Gilles de' 236 Castellucci, Romeo 313 ,:.{5i~;riéligne, Manu 127 Prüchtl, Joseph 22n
Blanc, Dominique 90, 288. 306 Castorf Prank 181, 192, 193, 197-199 ':N;velvaux, Martine 358n François, Guy-Claude 87, 96
Blanchot, Maurice 225 203,206,216,218,229,230,294,29'6 ·'t;.pemarcy, Richard 89 Françon, Alain 130, 220n, 228, 358n
Blusch, Hervé 181 297, 300, 303, 308, 309, 313, 315. 392' ~~;'·.:)J.emarcy-Mota, Emmanuel 87,88,370 Freud, Sigmund. 202, 220n, 309
Boireau, Nicole 48n. 50n, 51n Caubet, Antoine 369 ~!;;Perrida, Jacques 51,54,57,187,194, Preydefond, Marcel 101n
Bokhbza, Claude 243 Causey, Matthew 180n, 187, 188 1,>195,202,203,204,205,206,208, 209n, Fusco, Coco 143
Bolter, [ay 188n Chaikín, Joseph 50 ·212,213,214,216,217, 218n, 224, 227,
Bon, François 164 Chambers, Colin 141n t
. ·228,229,230,367,390,395 Gautré, Alain 233n
Bondy, Luc 288,360 Charvet, Pascal XXIV, 388n '.:·':~;:be5cartes> René 168 Geerts, Clifford 138
Bonnaffé, Jacques 27. Chekhov, Michael 17,339, 414 i~HD'e5champs, Iérôme 233n, 245, 247n, Gémíer, Firmin 15
Bonté, Pierre 141n Chéreau, Patrice 54,56,57,59,87,89, 1,' '294 Genet, Jean, 64, 109, 323,324,326
Bottoms, Stephen 385 90,100,108,109,113,206,209. 210, ~~':~escola, Philippe 68,69n Giannachi, Gabriella 63n, 180n
Boucris, Luc 85 229,288,297,327 ;'[!;)JJias, Jean-Paul 120,121 Gírault, Alain XXI
"Bouquet, Michel 298,299 Chétouane, Laurent 363 '~"~:;lJiot, André 90n Glass, Phillp 20
Bourdieu, Pierre 119n, 147 Choe, Jun-Ho 163 1~:Donnellan, Declan 60,63-65,304 Godard, Iean- Luc 296
Bourg, Iean-Marc 126 Choí, Jung-Woo 225 ; :~b9rt, Bernard 33,50, 217n, 22, 235, 638, Goethe, Wolfgang von 89, 225

~~~;~;~J:~:n~~~~<Exe 238n~:vo;::iéVSk1,Fiodor Mikhailovitch


Boyer, Myriam 329 Goffrnan, Erving 229
Bradby, David 16n. 22n, 130, 316n, 326 Goldmann, Lucien 287, 307
Braun, Edward 22n Chung, Hyung-Woo 224 fi 136, 198, 199,229,218 Gomez-Pena, Guillermo 134,135-153,
Braunschweig,Stéphane 58,65,102,182, Claudel, Paul 362 [;pouglas, Mary 145 254,255,260,342,372
183,284,285,289,293,297,300,304, Cloos, Hans-Peter 181 ~bréville. Valérie 213,214,288 Gosch, jürgen 308,309,310,315, 384n,
312, 315, 338n,373, 375n, 383, 391 Cocteau, Jean 375 ::Ôuchaussoy, Michel 288 392
Brecht.Bertolt 17-19,47,78.110,202, Cohen.Albert 94,95 jIÓ.ullin, Charles 15,17 Gotscheff, Dimitri 108, 113, 131,327
207, 241, 242n, 272, 277, 278n Collet.Yves 87,88,89 H'OUmora-Mabille, Florence 272n Green, Eugêne 208,276,287,290,295,
3000,322,374,391,416,418 Collot, Ioêl 117, 118, 119. 120 .s fº~pUis, Sylviane 381n 296n
Bredoldt, Kai 238 Copeau, Jacques 12,17,21,29,41,46, Wuras, Marguerite 29,91,93,334,335, Grégory, Pascal 209
Breton, André 234 48,117,160,170,297,324,367,378, t')36,337,338,339 Grésillon, Almuth 398
Brook,Pet~r 7,51,53,60,62,63,67,98, 402 'Vurif, Eugêne 108,123,124,130 Gropius, Walter 180
134,160,166,172,174,186,234,273, Corman, Enzo 376n :pylan,Bob 238 Grosset-Grange, Odile 323, 324n
279,297,302,305,342,368,401 Corneille, Pierre 279 Grotóvskí, Jerzy 172,174,175,186,234,
Brouwers, Ieroen 331 Corvin, Michel ln, 116, 324n, 376n, 377 'wiffi, Keir 50 235,242,273,280,362
Bruguiêre, Dominique 90 Couder. Olivier 123, 124 gngel, André 51, 110. 112, 113, 131 Grusín, Richard I88n
Brun, Gilone 108, 126, 130 Courtine, Jean-Jacques 249n Esquilo 58, 320
Büchner; Georg 122,282,293,367,380 Craíg, Edward Gordon 13, 16, 128,367,- ~rípides 58. 320 Habermas, Iürgen 146
Burden, Chris 248,254 368,378,392,393 ~~rêinov, Nfkolaí 21,47 Hastrup, Krlsten 59
Bush, George W 58 Csikszentmíhalyi, Mihaly 56 Hammer; Hellen 278
Butler; Judith 64 Cunningham, Merce 20 fabre, Valentin 100 Han, Dukwha 167
Buyn, Jung- Ioo 60, 70, 72 ·Féral, Iosette 55, 375n. 414 Han, Jean-Pierre 364n
Byun, Jung-Ioo 72, 75, 78, 80 Dalmat, Aurélie 305n, 306 ~islev, Ian 238 Han, Tai-Suk 170
Danan, Joseph 29 fisbach, Prédéric 287.297,303,339, Hargreaves, Alec G. 53n
Cage, John 20 Dannhofer, Florence 250n '340,341,342 Harima, Aik.o 340, 341
Cahen, Claude 248 Debray; Régts 178,274 ,fischer-Lichte,Erika 212n, 379n, 3840 Hartmann, Iürgen 315n
Cailleux, Iérôme xx Decroux, Étienne 61, 120,233,235,243. fõreman, Richard 20.21 Harvie, Ien 249n, 256n
Callery, Dymphna 233n 244, 245n ~restier, Georges 295n, 296 Haug, Helgard 343
424 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA íNDICE DE NOMES

Hayles, N. Katherine 176 Kim, Ho- Jeong 223 :'yon, René 315 134,160,161, 166, 174,256, 257:2ia,·
Heggen, Claire 243, 245 Kim, Hye-Min 156 "bitseh, Ernst 194 273,305,311,312,401
Heidegger, Martin 204 Kim, Hyun-Sook 159 ckhurst, Mary 63n Modol,Olivier 127
Hemingway; Ernest 271 Kim, Kwang-Lim 72, 76, 79, 159, 160" gné-poe, Aurélien 13, 15 Moliere 2,117,128,156,167,272,279,285,
Henry, Philippe 360n 161,165,167,169,171 ' lly,Jean~Baptiste 167,295 290,291,292,312,320,349
Hergenrôder, Uwe 315 Kim, Sôk-Man 165 . tard, Jean-François 50 Mondzaln, Marie-José 189,200, 220n,
Hervieu, Dominique 190 Klein, Yves 126 ·'!-'.:'·:·;i 228n, 358n, 372n, 379n, 380n, 381
Heymann, Pierre-Étienne 360,361 Knípper, Olga 62 '<:-,·:".'·-~I~~'M~drid,Kartn 250n Moninger; Markus 181n, 185n,186n,
Heyme, Hans-Günther 181 Kokkos, Yannis 91, 101n ~o' > "'-'.. , aeterlinek, Maurice 13,29,99,100, 121 189n
Hirata, Oriza 339, 340, 342 Kolesch, Doris 186n .',:';:,::,- giani, Sergei 30,31 Monory; Iean-Denís 208,276,290,291,
Hirschbiegel, Oliver 195 Koltês, Bernard-Marie 105, 108, llO,'Ih;.;)~::·" e, Claude 127 292
Hiss, Guida 15, 179n 130,208,210,229,326,327,329,362'''' ..eff Macha 245, 247n, 294 Montalvo, José 190
Homero 320 Kosky, Barry 303 .' armé, Stéphane 13 Montet, Bernard 287,303
Hong, Hae-Sang 168 Kraemer; Jacques 311,312 kiewicz, Joseph Leo 194 Mota, lleresa 89
Hourbeígt, Ioêl 101 Krísteva, Julia 49 nteheva, Dina xx Mozart 303
Hozier, Anthony 141n Kõpping-Klaus-Peter I49ng~;'Maragnani,Frédéric 120,121, 169 Mühl, Otto 308
Hwang, or. Yoo 157, 160, 169 ~f~'Marc, Yves 243,245 Müller, Heiner 132, 133, 151
",.Hyun,-Sook Shin 85n Labbé, Louise 290 <~};;Marey, Étíenne- Jules 258 Mukarovsky, Ian 379
Lacan, Jacques 20,50, 59 >~\;M~rin, Maguy 235-237,366 Muybrtdge, Eadward 258
Ibn Conner, Ismail 328 Lacascade, Éric 297 ~~~Marivaux, Pierre Carlet 59.76, 275n, 311, Nagel Rasmussen, Iben 238, 239, 240,
Ibsen,lfenrik 121,156,180,285,286,304 Lagarce, Jean-Luc 55 >;":.: l~\~::é:)72 241,246
1m, Hye-Gyõng 155n Lallias, Jean-Claude XXIvn, 356, 388, 39Ó';:'·~~1M~rowitz, Charles 234 Nancy, Jean-Luc 121
Im, Yông-Ung 170 Lambert, Benolt 289,290,293,315, 38jri<-';': [~~t);.Iarthaler, Chrtstoph 122,206,216,218, Nauziciel, Arthur 326,327,329,330
Irvin, PolIy 5 Lambert-wild, Jean 65-69 ->;o:'..:;,;.·1"Ué':229, 230, 294, 303 NDiaye, Marie 108, 1l0, 111, 112, 113
,.:.i1?j-;i,.
Izard, Michel 141n Lanterl, [ean-Marc 108n, 124,~~ártin,Roxane 2,4 Neumann, Bert 192,197
Lassalle, Jacques 293,315, 383n ;';' g1{4i;:lUrice, Claude 117,118,119,120 Nitsch, Hermann 308
James. Ieremy 258.259,260,261 Laub, Michael 263,265, 2 6 6 , ; :;.'.:J~;).{aurin,Frédéric 180n, ta in, 182 Noonan, Mary 105n
[ans, Erwin 332 Lavender, Andy 44 ' ::'~~Mauron, Charles 307 Nordey, Stanislas 55, 57
Janvier, Ludovic 40 Lavocat, Bénédicte 290, 292::t~~Mayenburg,Marius von 286 Novartna, Valere 366
Iaques-Dalcroze, Émile 120 Lazaro, François 366 .::~:.;' -;"ii!4~MeBurney, Simon 57,60,61,65,268
Iarrety; Michel ln Le Brun 244 WftMcDonough, Tim 329 Oberender, Thomas 198n
Jeanneteau, Daniel 86,87,91,93,97,98, Le Chevrel, Hugues 323 ~K~.McKenzie, John 54 Oh, Tae-Sok 165
99, 102 Leabhardt, Thomas 233 '8;lMcKinney, Mark 53n Ollivier, Alain 87,99,373
Jo, Sunghan 224 Lecoq, Jacques 60,61, 233, 235 l1fifkLuhan, Marshall 26 Ossart, Bastien 290
Iomaron, Iacquelíne de l3n Lecuq, Alain 366 cj:':)"'M'élies, Georges 183 Ostermeier.Thomas 285, 293, 297, 367
[ouvet, Louis 17,64,85,117,324,378 Lee, Sang-Woo 160,161,162, 169, 170,17~.i ~-f<\~::,Merleau-Ponty, Maurice 53,184, 247n
)ung- )00, Buyn 60, 70, 72, 80 Lehmann, Hans Thies 176, 419 ~~~Mervant-Roux,Marie-Madeleine Paik, Nam [une 181
Lemahieu, Daniel 126, 366 :~~J~?;38In Pajon, Lisa 323, 324n
Kacimi, Mohammed 366 Lemêtre, Jean-Jacques 96,257,262 - ~i~:Meschonnic, Henri 214 Park, Iun-Mí 70n, 71, 73
Kaegí, Stefan 343, 345, 346 Léonardinl, Jean-Pierre 35n ~):,I.esguich, Daniel 21,54, 163,207,253, Park, Iung-Hee 170,220,221,222,224,
Kafka, Franz 205 Lepage, Robert 57, 181, 182, 183, . ~'t, 296,303,376 226,227
Kane, Sarah 51,220,221,222,226,399 268,360, 384 ~1~~Meyer-Plantureux,Chantal 33n,36n Parry, Nataeha 62
Kantor, Tadeusz 28,154,174,186,233, Lesslng, Gotthold Ephraim 302 ':.~{\~eierhold,Vsevolod 14,17,21, 39, 41, Pasquier, Marie-Claire 28n
377 Lévi-Strauss, Claude 69,142, 228 ~:l~~,47, 180 Pavis, Marie-Chrlstírie xx
Kennedy, Denls ôn, 141n, 188n, 233n, Liard, Michel 250-253 '~~-~chaud, Yves 35 Pavís, Patrice 59n, 147n, 212n, 238n,
305n Lim,Yoo 224 ~cMinyana, Philippe 123, 130, 169 245n, 250n, 273n, 275n, 294n. 367n,
Kíenberger, Iôrg 294 Lipszyc, Serge 315n ~:!~~tter, Shomit 36 379n, 382n,4l3
Kim, Chong-Ok 165 Littlewood, Joan 56,277 . ti~Mitterrand, François 21 Pearson, Mike 52
Kim, Dong-Guen 70n, 71 Lord, James 91 : ~~tMnouchkine, Artane 20,52,67,87.96, Peduzzí, Richard 87,89,90

,I~.
426 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA ÍNDICE DE NOMES

Perceval, Luk 301 Riviêre, Joan 64 ótzner, Ernst 284 Vinaver; Michel 160,70,72,
Perrottet, Jean lOOn Roach, Joseph 5311 'lobada, Josef 180 82, 108, 127, 128, 129, 130, ",','0<"
Peters, Caroline 193 Rocamora, Carol 62 ,.,~~g;5;Z"Jndl1,Peter XXVI,121 393, 394n
Petrow, Daniel 329 Rois, Sophie 192, 193 Vitez, Antoine 21, 26, 37, 41, 50, 52~53,
Peymann, Claus 297,356 Ronconi, Luca 360 \,(c.,.~"",,<>,Bruno 364n, 370n, 387 54,117,128,203,206,207,208,216,
Peyret, Jean-François 183, 184 Ronsard, Pierre 290 François 211, 212n, 229, 313, 397 228,229, 253,272n, 273,274n,276n,
Pezin, Patrick 243n, 245n Roofthooft, Dirk 331, 332, 334 'iii' talrov, Alexandre 17 277,288n, 295, 298n, 302,303, 338,
Phelan, Peggy 187 Roudinesco, Elisabeth 204, 2050, 209n- : tchéktlOV, Anton Pavlovitch 14,62, 121, 362,368,373,374,384n,400n
Piccolt, Michel 62 Rousseau, Jean-Jacques 143 156,362 Vivaldi 190,191
Picon-Vallin, Béatrice 180n, 183n Ruf, Ér-Ic 288 ~F'reillau<j,Ophélia 287,289 Voltaire 272
Vorstell, Wolf 191
Pirandello, Luigi 88
Píscator, Erwin 180 Sabbattini, Niccoló 86
l'~i~~~:::~~~Michael
~
297,302
Jean-Luc 66,67
Pitoêff Georges 17 Saint-Amant, Marc-Antoine Girard Wacquant, Lofc 119n
Pítoíset, Dorninique 180 de 290,291 )iÚl,&~::;;~::~;A~lb~::ert284n
-.: 33 Wadenfels, Bernhard 189n
Planchon, Roger 20, 51, 52, 760, 277, Saint-Jacques, Denis 272n ("~i!homassea'", Jean-Marie xx, ln, 4, 398 Wagner, Richard 13,296,303,368
279,297,371 Saison, Maryvone 353n g wallís, Mick 50n, 241, 260, 261 n
Plassard, Didier 2.73, 293n, 297n, 312, 386 Sangaré, Bakary 111 }]!f;:::::;LUdWi 144 Weiler, Christel 186n
", Alain 87,9], 93, 94, 95, 96, 323,
Podalydês, Denis 26, 28n Sarrazac, Jean-Pierre 13n 326 Werler; Georges 298
Poincheval, Annabel 22n,316n Schanelec, Angela 308 c,',XIou<er, Ernst 296 Wetzel, Daniel 343
. Poliert, Jacques 180 Schechner, Richard 3,7,9,50,73,75,80, ,t",djm<an, Charles 30 Wilfred, Thomas 180
Pollesch,René 192,193,194,195,196,308 81,102,234,382,419 Paula 94 Williams, David 16n
Pommerat, Jiiel 347,350,351,3520,397 Schíaretti, Christian 181 Williams, Tennessee 329, 330
Ponce de Leon, Carolina 138 Schílling, Arpád 282,308,315,397 !i:~jUbersf"ld, Anne 49n Wilson, Robert 14,20,21,51, 154, 157,
Postlewaít, Thomas 6n Schneemann, Caroline 260,248,268 158, 234,278,297,313, 360,377, 383n
Pradier, Jean-Marie 86,175,417 Schneider, Rebecca 260n, 268 1i;\;;Yakhtânf~ov, Evgueni 17 Wulf, Christian 145n
Proust, Marcel 3D, 31 Schoevaert, Marion 60, 70, 72, 75, Waltrau Lehner, dito 248
Proust, Sophie xx, 4n, 374n, 375n Schubert, Franz 236 ",i,..o";'" Anatoli279, 280 Yoon, Ieong-Seop 157, 158, 160
Searle, John 41 Alain 272n Yoon, Young-Sun 156, 157, 160, 170
Quillard, Pierre 13,14,22, 92n Sega!' Georges 236 .,liJl,Yi,bre,ek, Anna 294
Sellars, Peter 57,58,181,360 Éric 87,91,92,93, 163, 167,334, Zadek, Peter 297
Racine 90, 112, 168,208,250,251,252, Serban, Andre'i 299 336,337,338,339 Zarrilli, Phillip 30
253,272,276,287,288,289,295,301, Shakespeare, William 63, 65, 96, Jean 12,20,47,48, 118, 164, 165, Zeami 244
302,306,307,320 283,301,304,305,310,311,349,397 i,'"
"/4. 297 Zehme, Patricia 123, 124
Rapln, Cathy xx, 155n Shepherd, Simon soe, 241, 260, 26ln 'Mi,Vill"gi,er, Jean-Marie 64,253,376 Zola, Émíle 2, 9, 10
Ravenhill, Mark 51 Sherman, Cindy 260
Razgonnikoff Iacquelíne 4n Shevstova, Maria 36
Rebotier, Jacques 366 Shogoc Ota 30
Régy, Claude 14, 28, 29, 30, 98, 99, 206, Sifuentes, Roberto 143
213,214,215,216,229,230,363,372, Sivadier; Jean-François 282,297
379n Ska10, Eü< 238
Reinelt, Ianelle 53n Smith, Pierre 141n
Renaude, Noêlle 108,117,118,119,120, Son, Chtn-Ch'aek 165
121, 123, 130, 169 Spengler; Volker 193
Revault d'Allones, Myriam 220n, 381n Spiess, Françoise 131n
Rírnbaud, Arthur 37,38,39 Stanislávski, Constantin 17,154,362
Rinpoché, Chogyam Trungpa 252 States, Bert 53n, 380
Ríschbieter, Henning 34 Stein, Peter 297, 363
Rist, Christian 37,38 Stellarc 176,248
Rivlêre, Iean-Loup 5n Strehler, Giorgio 89, 100,367
\

~!eridade 57,85,210 camp 259


'ànagnorisis 264, 333 capocomico 2
análise de espetáculos XXIV; 32, 33, 83 captação 197, 198
iJlálise 8,32,33,35, 148, 149, 185,219, cenografia 84
c \220,221,295,297,320,373,398 cerimônia 6,7,8,40,67,75
'antropologia, antropológico 6.7,48,68,69, cinema 102,175,182,183.184.188,195,
.'72,86,134,137,138,140,143,234,273 348,349
jpresentação 3, 125, 129,183, 194,223, cinestésico 95,175,191,241,339
';229,260,413 clássicos 107.129,156,207,217,272,358,
~ronjo 5,152.153,211 394
ete conceitual 361, 364 cada 211,212
fSSemhlage 95,151, 334-336 colocação no corpo 59,177
, ksembleta teatral 379-381 composição 71,94, 120, 123, 238
ültude 17,31,68,73,82,160,177,276, comunicação 72,85,121,122,173,174,
337,339 322,323,369,370,379
udiovlsual 32,174,175,178,180,183, concretização 36, 276, 327
184, 185, 200, 357 contemporâneo 106,107,129,237,274,
~mr 2,9,10, II, 16,20,22,28,44,45, 341,357,364,396
'·'1 ,; :98, 103, lOS, 106, 107, 113, 114, 127, contextualização,
;132,170,284,349,350,372,373,392 recontextualização 293,327-328
utor-Idad e 46,55,77,313 convenções 9,14,109,125,131, 188,
189,304,315,341,342
~.ografia 61,63,263 coreografia 7,71,74,75,76,77,78,82,
~<iy ar'
247,248,249,250,258,259, 158,188,225,235,237,329,338,377
260,267,414 corpo XXIII, 6, 7, 12,14,31,32,36,50,
ulevar (teatro de) 62,121,361 51,55,59,73,74,76,86,89,90,91,92,
430 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA fNDICE DE NOÇOES

93, i is, 145-148, 174, 175, 176, 177, efeito produzido 35, 53, 80, 186,320_ ,,:'\:%~i~5P'etáculo ao vivo 7, 172, 174-178, 179 historícízação 275,276
194,200,201,233,234,235,236,237, 323,378,416 '_;1",,,,,_:,,,, , I 3
'.''':,~'io';.~,':t ',sp' etaCU o
238,239,241,242,243,244,245,246, embodíment 59 "~H - - 67,109,166,
":r~~~_~'~encialismo, essencíalista identidade 12,37,38,56,64,65,67;69,
247,248,249,250,251,252,253,254, embricamento 56,212 i'r 174,177,186,187,216,230,242,368,396 88,109, lIO, ll3, 126,134,137,138,
255,256,258,259,260,261,286-288 encantamento 56 i :",e,eótipO 108,109,142,143,147,148,290 139,140,145-148,149,150,160,164,
criação teatral XXIV, 84, 86. 365, 376, 398 encarnação, incorporação 55,59,177,334 }; ::~stéticas 6,7, 12, 13,20,32,72, 125, 156; 166,182,193,196,199,200,206,221,
crítica dramática 32,33,36,37,360 encenação (rnise-en-scéneí 8,44,46 - 322,344,360,361 222,223,225,227,235,248-250,254,
crítical theory 51,65,80, 137 ensaio' 4, 43, 88, 90, 38 11 r'etriicidade 330 255,259,261,267,268,306,321,328,
cultura 67,71,72,78,79,81, 82, 147, entretenimento 47,164,200 '-, 'eWocenologia 86, 175 329,330,355,356,358,365,372,377,
148,155,290,317 enunciação 26,28,31,41,55,71,73,94, j~_, etnOlogia 68, 143, 150 378,396,399,400,402
cultural performance 3,40,52.67,75.81, 1l0, 122, 128, 151, 193,214,283,284, t·, :'i~ento, acontecimento XXIII, XXIV, 7, 17, identificação 89,183,184,195,210,219,
135,136,319,382,396,400,417 304,388,391,395,398,419 , 20,32,34,56,71,395 118, 125,194,198, 224,247,325
cultural studies 51,52,401 environmental theatre 102 '-' 200,204,272,321,347,366,384,385 imagem XXIII, XXIV, 19.21, 29, 34, 47,
cybertheatre 178,179,184.185 epistemológico 3,4, 15,55,73,80,123, ;~"e~pressionismo 19, 46 51,58,61,82,87-92,98,99,100,103,
228,249,386,387,401 109, 116 ,ll7, 127, 148, 158, 172, 174,
dança 16,20,71,74,75,81,160,161,169, erótico -145, 249, 260n, 290, 292 fábula ll, 19,51,61,75,76,78,91,94, 175,178,179,180,182,183,184,189,
174,233,235,236,287,366,377,379 escolhas dramatúrgicas 26, 220-222 1"0, 111, 113, 115, 157, 158, 160, 167,195, 191,192,193,194,197,199,200,208,
declamação 64,276. 287, 290~292, 295, 296 escritura cênica 20,49,213,368,371, 197,211,216,218,230,246,262,275, 210,212,218,219,223,225,229,259,
;,:,.;
-deficiência 125 384,417 276,277,279,287,288,290,293,299, 262,278,282,286,293,297,316,323,
descentralização 20, 103,262 escritura dramática 107,173,220,362, 300,305,306,308,309,313,325,330, 325,328,331,332,333,343,347-352,
descentramento 202,208,224,228,262,415 374,393,396,417 339,342, 370, 373, 374, 379, 383n,419 356, 358, 365, 369, 376, 377, 380n, 383,
desconstrução xxv, 8, 21. 53-55, 63, 77, escritura XXIV; 29,106,107,113,114,116, 'fci:hamenlo 202,204,217,218,229,230,279 384, 389, 393n,402, 418
89,170,198,202,203-230,279,300, 122,123,130,131,132,133,169,187, ,'/-feilOmenologia, fenomenológico 53, 60, improvisação 38, 39, 60, 344, 384
307,308,316,317,358,364,367,379, 215,227,255,262,268,281,315,332, " 83, 184, 228, 247n, 357, 358, 379, 380 indeterminação 57
402,416 335,336,337,358,361,362,372,390 festival 65, 117, 220, 274, 319, 327, 359, instalação 51, 65, 77. 122, 157, 185,212,
;:"
despedaçamento 275,279 escuta 31,98.174,228,244,250 ;', <365, 366, 367 397,399
dessacralização 294,308,311 espectador xxru.v, 8,14, 16,22,27,282,29; i ,;fidelidade 281,302,312,354,382,385, intercultural, interculturalismo,
destinerrãncla 8,57,83,202,203 30, 32, 33, 34, 35, 36, 40, 52, 53, 56,57,58, I,: 386,388,391,394 interculturalidade XXV, 65, 67, 71, 72,
destino 195,210,218,229,395 59,64,66,67,75,81,83,86,87,88,89,90; .f;"ji:guração 92,99,211,219,227,304,310, 73,77, 134, 135, 136, 138, 139, 160,
devísed theatre 255,256,262,415,416 91,92,94,95,96,97,98,99,100,101,102, ::315,337,349 161,162,165,166,169,273,297,305,
diálogo 11,48,62,105,121-123,185, 103, UI, U2, U3 ,120, 121, 125, 127,128, ,>fiuxo 29,56,92,97, 140,210 306,307,340,342,369,390,401
208,209 131,132,137,138,140,141,148,150,151, formação 17,54,61, 116,246,393 interrnidíalldade 176,185,186,358
dicção 29,38,64,71,99,229,251,276, 156,157,158,162,169,170,172,174,175, i'ft"eado (phrasé) 31, l Lõ, 207, 241 interpretação XXIV; 2, 11, 12, 16, 17,26,
279,287,288,289,293,295,329 179,183,184,186,189,191,192,196,197, 27,38,43,45,57,59,64,70,71,72,
diferença 202,209,210,211,214,224,225 198, 199,200,201,202,205,209,2U,212, 'gags 246,289,296,361 75,766,77,78,82,93,103,106,107,
direção de atares 4, 11,62,63,79,365, 214,215,218,219,220,222,223,225,228, i· gênero (gender) 64,242,249,261,330, ll6, 117, 127, 137, 148, 156, 157, 159,
374,375,392 229,235,237,241,244,245,246,247,253, i' 358,419 160,168,169,170,207,209,216,223,
diretor de teatro 11,363 254,256,257,259,267,269,274,275,282, I genética 7,256,262,398.418 250,253, 259,269,272, 275n, 276,
dispositivo 12,31,38,46,65,67,69,73,75, 283,284, 286, 287, 292, 294, 296, 298,299, l"gesamtkunstwerk 14,179,368 277,279,282,286,295,296,298,306,
88,91,94,116,181,193,209,210,215, 302,306,308,310,312,318,320,321,322, h:-gestus 59,97, 147, 163,241,246,250,369 310,311,312,313,314,324,325,328,
230,237,247,261,316,324,325,332, 323,326,328, 329, 330, 331, 333, 334,335,_, Igrafile 134, 136, 140, 141, 145, 147, 149, 329, 330, 375, 377, 384n, 385, 394,

Iha::t~s1::~~::7'
334,336,338,344,347,375,388,397 337,339,343,346,347,350,351,352,353, 395,416
disseminação 13, 122,202,224,416 354,356,357,361,364,366,368,370,373, intriga 61,301.304,305,325
dramaticidade 39 374,376,377,378,379,380,381,382,383, 163 ironia 113, 137, 144, 152, 195,208,216,
dramaturgia xxv; 8, 19,21,33,34,39,49, 390,392,394,401,402,414,415,416,418 happening 20, 47 304,350
58,61,71,80,81,86,91,97,121,122,152, espetacular XXIII, XXIV; XXV; 6, 9, 29, 35, 36, :háptlco 244
168,170,172,195,234,238,251,253, 39,74,84,87,107,129,135,136,168,169, h~rnonia 13,210,272,318,323-326,393 julgamentos 37
257,258,260,267,278,279,285,291, 173,175,179,258,267,313,316,319, -hermenêutica 46,52,76, 103, 131, 199,
300,302,340,358,373,374,389,413 346,354,355,382,400,402,417,418 276,379, 383n, 387, 418 koan 124,337,338,380
432 A ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA
iNDICE DE NOÇÓES

legibilidade 359, 364, 389 nâo~encenação 23,25,28,29,30,31,


sintético 15,174
leis subjetivas xx 37,62
leitura xxv, 17, 19.23,25,26,30, site .specif!c performance 51, 52,39-2,
XXIV; naturalismo XXVI, 12, 13, 14, 19,45,
31,39,40,52,62,64,75,76,79,107, 298,304 sociologia, sociológico I, 69, 80,330
359,361 '
116,119,129,130,137,156,170,177,
stage director (díretor de palco) 16
208,276,278,279,281,283,285,286, ópera 71,73,74,75,76,80,82, 127, 190,
stand-up comedy 51,60, 109
287,296,300,307,312,315,320,324, 191,199,246,295,296,303
sublime 191,209,217,221,294,307
325,326,330,335,337,338,357,368,
370,385,386,389,392,395,396,398 pansori 165,167,401
teatralidade 39
leitura-espetáculo xxv pele 112,244,245,250-254,3íO,328,334
teatro de arte 15,20,47, 134, 164,297,
leitura cénica 7,25,26,30 percepção 56,89,98,101,175,176,179, 360,371,375,388,401
leitura pública 27, 129 180,183,184,188,198,199,200,212,
teatro do gesto xxv; 231, 233, 234, 243,
lentidão 29,99,213,214,216,230,363 214,215,244,267,299,300,305,357, 255,267
linguagem cénica 46, 322 364,379,401,414
teatro físico 50,61,233
literatura XXIV, XXVI, 16, 18, 29, 49, 132, performance 3, 4, 44
teatro popular 15,20,164,165,207,273
133,164,168,174,177,193,205,208, performance studies 6,21, 22n, 79, SO,
teatrologia 33, 122,228
267,273,382,391,392,393 81,135,177,316,401
técnica corporal 73
live xxv; 7, 122, 176, 177, 185, 186, 187, performance theory 21,54,60
tecnologias XXV, 67, 139-140, i43, 174,
, 188,189,193,194,197,198,200,218, performatividade 39,81
178-179, 183, 187, 255, 384n
219,264 perfarmer 6,51,78, 136, 151, 157, 171,
televisão 33,137, 148, 162, 180, 181,
logocentrismo 64,132,204,215,390 176, 177, 246, 248, 250, 254, 255, 260, 238n,259
263,282,283,372,384,397,413 theatre studies 79,80,401
maítre de jeu 2 perfarmise 39,41,60,61,63,369,402
trabalho teatral 19,170,378,363-364
maravilhoso 183,185,191 poema, poesia 16,26,27,28,39,40,67,
tradição 207-2083,295-298
mediação 37,177,188,189,321 69,124,148,157,158,160,215,216, tradução 302, 388
metafísico 18,64,89,187,204,213,215, 221,225,241,246,276,290,291,292,
travestímento 64, 79, 259, 260, 290
216,217,230,236,352 296,344,346,419
metatexto 50,57,64,342,68 polifonia 40, 122,216,368
valor 68, 145,216,222,272,274,322,
mídia 8,32,34,158,164,172,173-201, política 3, 19,20,47,58,68,70,79,81,
346,349,361,382,392
219,255,268,325,357,358,364,366, 112,131,134,137,139,140,146,148,
vanguarda 8,17,46,102,337,361,362,
390,401,414,419 161,162,164,166,170,189,196,198, 382
mimo corporal 120.243 215,254,255,260,273,284,295,297,
vetor 124,191,210,212
míse-en-perj 41, 60, 83, 266, 396 312,314,316,322,341,346,360,366, videosfera 178
míse-en-trop 127, 129 369,370,375,381,415
visível XXIII, 23, 84,175,176,184,185,
mito 65,67,69, 135,229,275,280,281 political correctness 36,67,110,305
244,375,398
modelo corporal 74,256 ponto de vista 19,62,77, 101,262,276,
voz aff 144,335,347,351,352
montagem 30,73,74,94, 115, 148, 188, 314,373
voz 12,14,16,17,23,26,27,29,31,32,
238,258,262,290,292,294,350,351, "pôr em jogo" trníse-en-jeur XXIV, 7, 71,
55, 56, 65, 66, 67, 68, 69, 76, 82, 92, 94,
359,394,415 103, 105, 106 119, 127,315,357
107, 116, 117, 118, 119, 121, 129, 130,
movimento xxv, 8, 11, 12, 16, 27, 29, pós-estrutural, pós-estruturalismo 21,
159,174,179,187,188,190,191,192,
32,36,37,39,44,49, 56,57n, 64, 68, 34,49,50,51,205,206,228,.,
200,211,213,214,215,217,222,224,
71,73,74,78,82,96,120,134,154, pós-moderno, pós-modernismo XXV, . :-~emiologia, semiológico 8, 14,32,33,35,
21,51,62,67,77,82,85,152,161,170, 238,239,241,242,243,244,253,260,
157,158,174,175,189,191,199,200, . 48,49,53,55,59,60,83,140,279,357,
203,205,208,210,217,227,228,229, 266,268,277,299,316,333,337,349,
203n, 209, 212, 220n, 227,236, 237, 358,367,379,380 357,377,389,390,415
239,241, 247n, 257, 258, 287,292, 237,249,256,267,268,269,312,316, 'silêncio 14,29,97,116-118,215,225,
305, 321,325,342,350, 380n, 393, 317,357,364,367,368,369,380,391, 261,347,377,420 xamã 143, ISO, 159
398,400,414 399,414 -~imbolismo XXVI, 2, 12, 13, 19,45, 158,
multiculturalismo 134, 166,305 prática cênica XXVI, 16, 18,47,54,132, 243,304 yín e yang 380
musical 158, 170 169, 280, 388n

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