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FACULDADE DE DIREITO
BRASIL
2018
RESUMO
A cristalização de um novo direito é um processo árduo, cercado pela atividade
militante e a luta dos movimentos sociais. Esse foi o objetivo do grupo Triângulo Rosa que,
durante os meses da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, empenhou grandes
esforços para a inclusão de uma proibição explícita à discriminação por orientação sexual no
texto constitucional. O objetivo deste trabalho é responder aos questionamentos relativos à
forma como se deu a presença do Movimento Homossexual Brasileiro nesse momento ímpar
de construção da cidadania e, acima de tudo, compreender a importância desse simples
acontecimento.
Palavas-chave: Movimento Homossexual Brasileiro. Grupo Triângulo Rosa.
Constitucionalismo. O Direito Achado na Rua.
SUMÁRIO
Tibira foi amarrado pela cintura à boca do canhão, enquanto a munição de ferro
atravessava os céus do Forte de São Luiz do Maranhão, seu corpo se despedaçava para, por
fim, perder-se no mar. Era 1614, o missionário francês Yves D’Évreux (1577-1632), da
Ordem dos Capuchinhos, havia chegado há pouco em terras tupinambás e, como um dos
primeiros atos de colonização, ordenou a tortura e morte de um indígena sob o pretexto de
“limpar a terra do abominável pecado da sodomia” (IHU, 2017). Apesar da crença
contemporânea de que “os índios contraem gripe, doença venéreas e homossexualismo no
contato com os brancos” (TREVISAN, 1986, p. 96), os comportamentos vistos hoje sob a
lente da sexualidade desviante eram elementos culturais de muitos povos originários das
terras brasileiras. Essa crença falsa é reproduzida pelo repórter Edilson Martins que, talvez
imbuído das colonialidades presentes nos sentimentos romantizados que veem o indígena
sobre a ótica de diferenciação hierarquizada da totalidade européia, atribuía aos “elementos
civilizados” a transmissão de “todo o manancial de chagas fisiológicas e sociais” (MARTINS,
1978, p. 44-46 apud TREVISAN, 1986, p. 96), o que incluía a homossexualidade, alcoolismo,
tuberculose e prostituição. Contradizê-lo é fácil, basta ler os escritos de vários antropólogos
que afirmam a prática sexual homoafetiva como elemento que desempenhava função especial
de sociabilidade entre várias nações nativas, como constatou “Darcy Ribeiro entre os
Cadiuéu, Thomas Gregor entre os Mehinaku, Levi-Strauss entre os Nhambiquara, Florestan
Fernandes entre os Tupinambá e etc.” (TREVISAN, 1986, p. 96).
Quando a Coroa Portuguesa determinou a distribuição das Capitanias Hereditárias,
D. João III não só concedeu o direito sobre a vida de “escravos e gentios, assim como peões
cristãos e homens livres” aos Capitães Donatários, como também deu-lhes uma série de
recomendações, entre elas a pena de morte no caso de quatro crimes: heresia, traição,
falsificação de moeda e sodomia (TREVISAN, 1986, p.63). A legislação portuguesa da época
também era dotada da mesma rigidez, apontando uma série de delitos puníveis com o degredo
para as colônias, entre eles situavam as relações homoafetivas, rotuladas sob a mesma alcunha
de “sodomia”. A extensão da rigidez dessas normas ao Brasil parece não ter surtido muito
efeito, motivo pelo qual o bispo do Pará, no século XVIII, escreve à corte: “A miséria dos
costumes neste país me faz lembrar o fim das cinco cidades (bíblicas), por me parecer que
moro nos subúrbios de Gomorra e na vizinhança de Sodoma” (FREYRE, 1973, p. 360 apud
TREVISAN, 1986, p. 64).
4
pelo mundo novos ventos que imbuíam as nações com maior sensibilidade para os Direitos
Humanos, cristalizados pelos povos construtores da Organização das Nações Unidas na
Declaração dos Direitos Humanos (1948). Ademais, uma progressiva exploração econômica
dos mercados LGBTs, pautados pelo signo do pink money3, fez surgir nos grandes centros de
concentração humana ambientes de sociabilidade homoafetiva, tal como os populares bares e
boates gays nascidos entre as formas das grandes cidades brasileiras.
Entretanto, logo depois de sancionados os direitos do homem, como símbolos de
uma dada humanidade abstrata, são logo engolidos pelos direitos civis nacionais, relegando a
tais tratados o teor de direitos dos animais, invocados somente enquanto slogans num estado
de exceção (ARENDT, 2006). Nesse mesmo movimento e, sob a ótica da Guerra Fria de um
tencionamento crescente entre blocos divergentes, a América Latina é tomada por regimes
ditatoriais civis-militares, alimentados e sustentados, internacionalmente, pela política
anticomunista yankee e, nacionalmente, por um rígido regime de repressão sob o signo da
“Segurança Nacional”.
No Brasil, o golpe transcorre no ano de 1964, sustentado por uma ideologia
conservadora dotada de contornos não apenas políticos, mas fundamentalmente morais, ao
contrário do que a “narrativa da convivência de uma repressão política dura e um controle
moral brando” (QUINALHA, 2017, p.24) procura afirmar. É fato que a repressão às
sexualidades dissidentes não surgiu nesse período, sendo a história brasileira marcada
essencialmente pelo discurso cristão conservador de uma heterossexualidade compulsória.
Entretanto, a partir de 1964, o Estado é aparelhado pelo autoritarismo de “uma ideologia da
intolerância materializada na perseguição e tentativa de controle de grupos sociais tidos como
uma ameaça ou perigo nacional” (QUINALHA, 2017, p. 25). Nesse sentido, a moralidade
pública e os “bons costumes”, sintetizados na Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
constroem o sustentáculo ideológico do regime, que passa a dispor de dispositivos legais para
a afirmação dos valores conservadores e, consequentemente, a perseguição das
homossexualidades4. Assim, o AI-1 afirmava “a reconstrução econômica, financeira, política
e moral do Brasil”, o AI-2 institucionalizava a intenção de “erradicar uma situação e um
governo que afundaram o país na corrupção e subversão” bem como “preservar a honra
3 Símbolo da inclusão das populações desviantes do modelo rígido de sexualidade e gênero, se não nos círculos
de reconhecimento mútuo da comunidade ou do Estado, mas na ordem capitalística do mercado, em sua lógica,
não de dignidade, mas de tolerância proporcional às cifras presente nos bolsos dos sujeitos.
4 Termo compreendido, nesse momento histórico específico, como sintetizador das múltiplas formas de
“Não se fala menos do sexo. Fala-se dele de outra maneira; são outras pessoas que
falam, a partir de outros pontos de vista e para obter outros feitos. O próprio
mutismo, aquilo que se recusa dizer ou se proíbe mencionar, a discrição exigida
entre certos locutores não constitui propriamente o limite do discurso, ou seja, a
outra face de que estaria além de uma fronteira rigorosa, mas, sobretudo, os
elementos que funcionam a lado de (com e em relação à) coisas ditas nas estratégias
de conjunto” (FOUCAULT, 2012, p. 33)
inquietações, processo que, para o ator individual, significa colocar a si mesmo na posição de
objeto da ação, culminando na formulação do “me” 5 . Se a subjetividade só pode ser
apreendida na confluência de múltiplos saberes, sejam filosóficos, sociológicos, jurídicos ou
psicológicos (NOLETO, 1998), eis a a relevância da Teoria Crítica do Reconhecimento de
Axel Honneth que, articulando as categorias do “me” e “eu” 6 , fornece uma narrativa da
evolução moral tanto dos indivíduos quanto da sociedade, o mesmo antes intentado por
Hegel.
O processo de socialização, indica Honneth, passa necessariamente pela construção de
um “outro generalizado”, resultado de um movimento de progressiva interiorização das
expectativas de comportamento de todos numa sociedade, o que permite ao indivíduo a
capacidade abstrata de participar das ações normativamente reguladas, uma vez que
compreende as expectativas passíveis de serem dirigidas aos outros e os deveres a ele
imputados. A partir desse momento, a percepção de si mesmo enquanto sujeito de direitos
nasce justamente da adequação da identidade individual àquela do “outro generalizado”,
significando não apenas a absorção das expectativas postas, mas a consciência dos direitos
que lhe cabem, como também “estar seguro do valor social de sua identidade” (HONNETH,
2003, p. 139), a essência da dignidade. Assim, a esfera de reconhecimento do direito tona-se
fundamental, não somente por delinear a orientação moral das ações, mas, essencialmente,
por conferir ao sujeito as propriedades do autorrespeito, i.e. o reconhecimento de atributos
que compartilha com todos os membro de uma comunidade, de tal modo que o grau de
autorrespeito somente pode ser dado pelo nível de individualização de tais capacidades que
encontram confirmação nos parceiros de interação.
A problemática, útil para a compreensão da articulação do movimento homossexual,
surge exatamente no momento em que o “eu” enquanto “reservatório de energias psíquicas
que dotam o sujeito de um grande número de possibilidades inesgotáveis de identidade”
(HONNET, 2003, p. 141), colide inevitavelmente com as expectativa de um “me” externo,
surgindo uma tensão latente entre os designos da individualidade e a vontade global
internalizada. A partir do conflito moral entre sujeito e ambiente social, surge uma luta por
reconhecimento, dada pela impossibilidade de conciliar as exigências que afluem do íntimo
com a necessidade do assentamento de todos, critério controlador da própria ação
5 “imagem cognititiva que o sujeito recebe de si mesmo, tão logo aprenda a perceber-se da perspectiva de uma
segunda pessoa” (HONNETH, Luta por reconhecimento, p. 33)
6 “Designa a experiência repentina de um afluxo de impulsos internos, dos quais não se pode mais divisar se
nascem da natureza pulsional pré-social, da imaginação criadora ou da sensibilidade moral” (HONNETH, 2003,
p. 140).
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e sexual vigente. Não se deve incorrer, entretanto, no sério erro de tomar o autoritarismo
como a principal condição para a articulação do movimento homossexual brasileiro,
atribuindo à opressão uma visão por demais romantizada e um papel que não lhe coube. As
transformações sociais transcorridas no Brasil e no mundo durante as décadas de 50 e 60 são
fundamentais para construção de um discurso liberalizante, mesmo em meio ao estigma e à
marginalização impostas por um regime e sua moral cristã (QUINALHA, 2017). Nesse
sentido, James Green aponta a importância da fundação de espaços de sociabilidade LGBT
para a criação de “um tipo de comunidade em formação, em que as pessoas se identificam,
compartilham códigos, comportamentos e costumes, ainda dentro de uma semiclandestinidade
imposta graças à marginalização social da homossexualidade” (GREEN, 2014, p. 184).
Entretanto, pode-se atribuir à ditadura, sem grandes problemas, a culpa pelo atraso
do surgimento de movimentos sociais que defendessem os direitos dessa população
marginalizada, uma vez que eles somente lograram o florescimento num contexto de abertura
tímida, de grandes movimentações sociais dos novos sujeitos políticos e da derrota da
esquerda armada. Rafael de Souza ainda atribui grande protagonismo à criação de uma
imprensa alternativa e à formação de um circuito de arte “marginal”, ferramentas para a
interpretação da realidade nacional e construção de uma retórica de “libertação sexual”
(SOUZA, 2013), papel desempenhado fundamentalmente pelo jornal insurgente Lampião da
Esquina.
Contrariando as tendências contemporâneas, a antiga esquerda não acolheu esses
movimentos, uma vez pautada por um ethos de “masculinidade revolucionária”, fruto de um
estalinismo de moral conservadora, da ideologia católica sexualmente rígida e do velho
machismo latino-americano (QUINALHA, 2017). Os militantes, nesse sentido, não viam
lugar para a homossexualidade em sua percepção idealizadora da classe trabalhadora,
representando-a enquanto um “desvio pequeno-burguês” ou manifestação da “decadência
burguesa”. Ironicamente, os órgãos governamentais de repressão oficial percebiam a
homossexualidade como parte de uma “ideologia comunista”, cujo principal objetivo seria
desestruturar as famílias brasileiras, deturpando seus valores mais essenciais. Os novos
movimentos situavam-se então numa situação complexa, marcada simultaneamente pelo
duplo receio de “virar uma organização de esquerda tradicional, quanto de ser confundidos
com uma delas aos olhos da repressão” (QUINALHA, 2017, p. 241). Essa situação moldaria
essencialmente o movimento, dotando-lhe de um caráter sensivelmente anárquico e de
oposição a qualquer forma de organização institucionalizada, seja pela esquerda ou pela
direita.
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edição, lançada em abril de 1978, representa o princípio de uma ferramenta congregadora do universo particular
do gueto, traduzido numa linguagem própria que proporciona a concatenação dos anseios num clamor por
articulação e organização desse novo movimento social.
10 Por erótica entende-se, junto com Foucault, a narrativa da sexualidade, ou seja, de sua problematização moral
construída por toda sociedade como forma de delimitação das práticas de afeto, seja sua iniciação, as formas que
se desenvolvem ou mesmo o julgamento moral imposto aos modos desviantes do modelo homogenizador.
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11 Representaas obras ou atos de Afrodite, uma vez que, novamente junto a Foucault, não seria possível falar em
uma formulação igual à noção moderna de sexualidade na Grécia Antiga, especialmente no que diz respeito aos
usos dos prazeres, sensações e instintos sexuais.
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por limites sócio-históricos que constroem a narrativa constitucional por meio das ferramentas
da negação, metáfora e metonímia, ao mesmo passo que esses mesmos limites fornecem o
“material que deve ser reconformado mediante a negação da metáfora e da metonímia; ambos
os vínculos com e em oposição ao “eu” pre-constitucional e extra-constitucional”
(ROSENFELD, 2003, p. 91). Assim, o Constitucionalismo, enquanto parte do Direito também
é limitador e alienante, mas, uma vez que se sobrepõe às demais normativas
democraticamente promulgadas, ele é dotado de elevado potencial libertador:
Se “não se pode afirmar um novo direito em favor de uma categoria de pessoas sem
suprimir algum velho direito, que beneficiava outras categorias de pessoas” (BOBBIO, 2004,
p. 20), o velho preceito que teria de morrer seria o de uma igualdade por demais simplificada,
naturalmente homogenificadora, incapaz de compreender a diversidade nas múltiplas matizes
que existem e subsistem, possibilitando sob sua guarda o preconceito e a discriminação,
enquanto viola brutalmente o corpo e a felicidade de outrem. Apesar de todos os pesares, esse
não foi um direito reconhecido na Constituição de 1988, construída por parlamentares que
trataram dessa temática com a violência da chacota ou do discurso de ódio:
Assim, se “todos os movimentos sociais [...] fundaram-se num direito que exprimia
sua posição e reivindicações” (BOURJOL, 1978, p. 124 apud LYRA FILHO, 1980b, p.18), o
Triângulo Rosa construiu a si mesmo na sólida base do direito de amar livremente. Os
desafios, dados por uma dogmática jurídica, restrita àquilo cristalizado pelo Estado ou pelo
ordenamento (costumes, usos, folkways e mores) da classe dominante, barram
momentaneamente um movimento que pautaria a conquista de quotas progressivas de
emancipação, cerne da sua luta por dignidade e essência de um regime verdadeiramente
atrelado à cidadania e à sua capacidade perpétua de reivindicar por novos direitos. Disso tudo,
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REFERÊNCIAS
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