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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

FACULDADE DE DIREITO

SAMUEL BATISTA DE CAMARGOS JÚNIOR

“NÓS EXISTIMOS”: O Movimento Homossexual Brasileiro e sua presença na Assembleia


Constituinte de 1987/88

BRASIL
2018

RESUMO
A cristalização de um novo direito é um processo árduo, cercado pela atividade
militante e a luta dos movimentos sociais. Esse foi o objetivo do grupo Triângulo Rosa que,
durante os meses da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, empenhou grandes
esforços para a inclusão de uma proibição explícita à discriminação por orientação sexual no
texto constitucional. O objetivo deste trabalho é responder aos questionamentos relativos à
forma como se deu a presença do Movimento Homossexual Brasileiro nesse momento ímpar
de construção da cidadania e, acima de tudo, compreender a importância desse simples
acontecimento.
Palavas-chave: Movimento Homossexual Brasileiro. Grupo Triângulo Rosa.
Constitucionalismo. O Direito Achado na Rua.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: “ NÃO EXISTE PECADO AO SUL DO EQUADOR”...............3


2. A DITADURA MILITAR: O GOLPE DA “MORAL E DOS BONS
COSTUMES”................................................................................................................4
3. A FLOR QUE NASCE ENTRE OS ESPINHOS: A CONSTRUÇÃO DO
MOVIMENTO HOMOSSEXUAL BRASILEIRO....................................................6
4. O TRIÂNGULO ROSA ENTRE AS REMINISCÊNCIAS DAS VIOLÊNCIAS
PASSADAS E AS POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS DO FUTURO......11
5. À GUISA DE UMA CONCLUSÃO: O DIREITO ACHADO NO ARMÁRIO:...14
6. REFERÊNCIAS..........................................................................................................12
3

1. INTRODUÇÃO: “ NÃO EXISTE PECADO AO SUL DO EQUADOR”

Tibira foi amarrado pela cintura à boca do canhão, enquanto a munição de ferro
atravessava os céus do Forte de São Luiz do Maranhão, seu corpo se despedaçava para, por
fim, perder-se no mar. Era 1614, o missionário francês Yves D’Évreux (1577-1632), da
Ordem dos Capuchinhos, havia chegado há pouco em terras tupinambás e, como um dos
primeiros atos de colonização, ordenou a tortura e morte de um indígena sob o pretexto de
“limpar a terra do abominável pecado da sodomia” (IHU, 2017). Apesar da crença
contemporânea de que “os índios contraem gripe, doença venéreas e homossexualismo no
contato com os brancos” (TREVISAN, 1986, p. 96), os comportamentos vistos hoje sob a
lente da sexualidade desviante eram elementos culturais de muitos povos originários das
terras brasileiras. Essa crença falsa é reproduzida pelo repórter Edilson Martins que, talvez
imbuído das colonialidades presentes nos sentimentos romantizados que veem o indígena
sobre a ótica de diferenciação hierarquizada da totalidade européia, atribuía aos “elementos
civilizados” a transmissão de “todo o manancial de chagas fisiológicas e sociais” (MARTINS,
1978, p. 44-46 apud TREVISAN, 1986, p. 96), o que incluía a homossexualidade, alcoolismo,
tuberculose e prostituição. Contradizê-lo é fácil, basta ler os escritos de vários antropólogos
que afirmam a prática sexual homoafetiva como elemento que desempenhava função especial
de sociabilidade entre várias nações nativas, como constatou “Darcy Ribeiro entre os
Cadiuéu, Thomas Gregor entre os Mehinaku, Levi-Strauss entre os Nhambiquara, Florestan
Fernandes entre os Tupinambá e etc.” (TREVISAN, 1986, p. 96).
Quando a Coroa Portuguesa determinou a distribuição das Capitanias Hereditárias,
D. João III não só concedeu o direito sobre a vida de “escravos e gentios, assim como peões
cristãos e homens livres” aos Capitães Donatários, como também deu-lhes uma série de
recomendações, entre elas a pena de morte no caso de quatro crimes: heresia, traição,
falsificação de moeda e sodomia (TREVISAN, 1986, p.63). A legislação portuguesa da época
também era dotada da mesma rigidez, apontando uma série de delitos puníveis com o degredo
para as colônias, entre eles situavam as relações homoafetivas, rotuladas sob a mesma alcunha
de “sodomia”. A extensão da rigidez dessas normas ao Brasil parece não ter surtido muito
efeito, motivo pelo qual o bispo do Pará, no século XVIII, escreve à corte: “A miséria dos
costumes neste país me faz lembrar o fim das cinco cidades (bíblicas), por me parecer que
moro nos subúrbios de Gomorra e na vizinhança de Sodoma” (FREYRE, 1973, p. 360 apud
TREVISAN, 1986, p. 64).
4

Já sob o regime de emancipação política da metrópole, o Império brasileiro


sancionou um novo Código Criminal em 1830, fortemente influenciado pelo Código
Napoleão (1810) e Napolitano (1819), atualizando a legislação brasileira de acordo com o que
havia de mais moderno no mundo. Nesse ínterim, à sombra da Revolução Francesa, as
proibições explícitas à “sodomia” desapareceram por completo, em uma clara oposição às
normativas dos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Áustria que ainda mantinham os
instrumentos jurídicos de coibição à prática. Entretanto, isso não significou qualquer mudança
significativa na violência LGBTfóbica 1, perpetuada sob a égide da “ofensa à moral e aos bons
costumes”, da “vadiagem” e do “ato obsceno em lugar público” até a história recente, quiça
mesmo na contemporaneidade.
A discriminação e violência homolesbotransfóbica 2 esteve, nesse sentido, sempre
presente na realidade brasileira sob diferentes signos e formas, numa tal configuração que
permitia certa tolerância ao exercício da sexualidade desviante, deste que circunscrita a
ambientes bem delimitados e distantes do rígido olhar da “família tradicional brasileira” e
seus costumes, pautados fortemente por uma moral cristã conservadora. O gueto gay nasce
então como um ambiente de libertação e de auto-conhecimento da comunidade LGBT, em
que a livre expressão da sexualidade desviante encontra um espaço que possibilita o
desenvolvimento de uma identidade sexual e de gênero verdadeiramente condizente com o ser
e os desejos da individualidade. Seja no rendez-vous ou na casa de saúde, as sexualidades
periféricas se propagam como rizomas no cerne da hipocrisia burguesa, seus afetos, gestos e
discursos clandestinos são trocados na surdina, enquanto o puritanismo moderno, não
contraditoriamente, impõe seu decreto de mutismo, interdição e inexistência: “Se for mesmo
preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar: que incomodem
lá onde possam ser reinscritas, senão nos círculos da produção, pelo menos nos do lucro”
(FOUCAULT, 2010, p. 10).

2. A DITADURA MILITAR: O GOLPE DA “MORAL E DOS BONS


COSTUMES”

Já eram os anos 50 e o mundo passava por mudanças radicais: o fim da segunda


grande guerra expôs os horrores do fascismos e nazismo europeus, de tal forma que corria

1 Porviolência LGBTfóbica compreende todo ato de violação das subjetividades lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transsexuais ou transgêneros, bem como às múltiplas formas de percepção da identidade sexual e de
gênero, não passíveis de serem contidas em qualquer sigla.
2 Homolesbotransfobia, nesse contexto, pode ser considerado sinônimo da violência LGBTfóbica
5

pelo mundo novos ventos que imbuíam as nações com maior sensibilidade para os Direitos
Humanos, cristalizados pelos povos construtores da Organização das Nações Unidas na
Declaração dos Direitos Humanos (1948). Ademais, uma progressiva exploração econômica
dos mercados LGBTs, pautados pelo signo do pink money3, fez surgir nos grandes centros de
concentração humana ambientes de sociabilidade homoafetiva, tal como os populares bares e
boates gays nascidos entre as formas das grandes cidades brasileiras.
Entretanto, logo depois de sancionados os direitos do homem, como símbolos de
uma dada humanidade abstrata, são logo engolidos pelos direitos civis nacionais, relegando a
tais tratados o teor de direitos dos animais, invocados somente enquanto slogans num estado
de exceção (ARENDT, 2006). Nesse mesmo movimento e, sob a ótica da Guerra Fria de um
tencionamento crescente entre blocos divergentes, a América Latina é tomada por regimes
ditatoriais civis-militares, alimentados e sustentados, internacionalmente, pela política
anticomunista yankee e, nacionalmente, por um rígido regime de repressão sob o signo da
“Segurança Nacional”.
No Brasil, o golpe transcorre no ano de 1964, sustentado por uma ideologia
conservadora dotada de contornos não apenas políticos, mas fundamentalmente morais, ao
contrário do que a “narrativa da convivência de uma repressão política dura e um controle
moral brando” (QUINALHA, 2017, p.24) procura afirmar. É fato que a repressão às
sexualidades dissidentes não surgiu nesse período, sendo a história brasileira marcada
essencialmente pelo discurso cristão conservador de uma heterossexualidade compulsória.
Entretanto, a partir de 1964, o Estado é aparelhado pelo autoritarismo de “uma ideologia da
intolerância materializada na perseguição e tentativa de controle de grupos sociais tidos como
uma ameaça ou perigo nacional” (QUINALHA, 2017, p. 25). Nesse sentido, a moralidade
pública e os “bons costumes”, sintetizados na Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
constroem o sustentáculo ideológico do regime, que passa a dispor de dispositivos legais para
a afirmação dos valores conservadores e, consequentemente, a perseguição das
homossexualidades4. Assim, o AI-1 afirmava “a reconstrução econômica, financeira, política
e moral do Brasil”, o AI-2 institucionalizava a intenção de “erradicar uma situação e um
governo que afundaram o país na corrupção e subversão” bem como “preservar a honra


3 Símbolo da inclusão das populações desviantes do modelo rígido de sexualidade e gênero, se não nos círculos
de reconhecimento mútuo da comunidade ou do Estado, mas na ordem capitalística do mercado, em sua lógica,
não de dignidade, mas de tolerância proporcional às cifras presente nos bolsos dos sujeitos.
4 Termo compreendido, nesse momento histórico específico, como sintetizador das múltiplas formas de

identidade sexual e de gênero.


6

nacional” e, por fim, o AI-5 ressaltava a necessidade do “combate à subversão e às ideologias


contrarias às tradições de nosso povo”(QUINALHA, 2017, p. 27).
A Doutrina da Segurança Nacional desempenha um importante papel ao selecionar
aqueles indivíduos caracterizados enquanto “cidadãos de bem” e aqueles marcados pelo
estigma de “inimigos da nação”, os quais o aparato repressivo cuidará de tratá-los na mesma
medida de sua “subversão”. Neste ponto, é importante relembrar Foucault, uma vez que o
poder não exerce apenas o caráter negativo e proibitivo da interdição, mas também um caráter
essencialmente positivo, no sentido que age selecionando formas de sexualidade para a
composição de um padrão de normalidade excludente, seja por meio da pastoral cristã, do
direito canônico ou mesmo da lei civil:

“Não se fala menos do sexo. Fala-se dele de outra maneira; são outras pessoas que
falam, a partir de outros pontos de vista e para obter outros feitos. O próprio
mutismo, aquilo que se recusa dizer ou se proíbe mencionar, a discrição exigida
entre certos locutores não constitui propriamente o limite do discurso, ou seja, a
outra face de que estaria além de uma fronteira rigorosa, mas, sobretudo, os
elementos que funcionam a lado de (com e em relação à) coisas ditas nas estratégias
de conjunto” (FOUCAULT, 2012, p. 33)

3. A FLOR QUE NASCE ENTRE OS ESPINHOS: A CONSTRUÇÃO DO


MOVIMENTO HOMOSSEXUAL BRASILEIRO

A grande contribuição da psicologia social de Herbert Mead talvez tenha sido a


possibilidade de conceber uma percepção intersubjetivista da auto consciência humana, a
partir da qual, retomando as formulações iniciais de Hegel, contidas nos Escritos de Jena, é
possível (re)articular a categoria da luta por reconhecimento, enquanto ferramenta essencial
para a compreensão da realidade social e de seu desenvolvimento moral. Axel Honneth,
herdeiro da tradição crítica frankfurtiana, nos fornece a linha teórica que, desmembrada em
núcleos específicos operados por lógicas de reconhecimento também particulares à si, articula
as experiências pessoais de injustiça numa semântica coletiva, onde é possível a interpretação
subcultural que provém o link entre um sentimento individual e sua organização na luta
coletiva.
Num contexto de organização das identidades periféricas em prol da emancipação,
seja no sentido dado pela construção de novas esferas da vida livremente determinadas ou
pelas possibilidades de novos sujeitos autodeterminarem seus projetos de vida (SOBOTTKA,
2015), assim, como faz Mead e Honneth o recupera, é essencial partir do pressuposto de que,
mais do que analisar as ações do sujeito, é necessário compreender a origem de suas
7

inquietações, processo que, para o ator individual, significa colocar a si mesmo na posição de
objeto da ação, culminando na formulação do “me” 5 . Se a subjetividade só pode ser
apreendida na confluência de múltiplos saberes, sejam filosóficos, sociológicos, jurídicos ou
psicológicos (NOLETO, 1998), eis a a relevância da Teoria Crítica do Reconhecimento de
Axel Honneth que, articulando as categorias do “me” e “eu” 6 , fornece uma narrativa da
evolução moral tanto dos indivíduos quanto da sociedade, o mesmo antes intentado por
Hegel.
O processo de socialização, indica Honneth, passa necessariamente pela construção de
um “outro generalizado”, resultado de um movimento de progressiva interiorização das
expectativas de comportamento de todos numa sociedade, o que permite ao indivíduo a
capacidade abstrata de participar das ações normativamente reguladas, uma vez que
compreende as expectativas passíveis de serem dirigidas aos outros e os deveres a ele
imputados. A partir desse momento, a percepção de si mesmo enquanto sujeito de direitos
nasce justamente da adequação da identidade individual àquela do “outro generalizado”,
significando não apenas a absorção das expectativas postas, mas a consciência dos direitos
que lhe cabem, como também “estar seguro do valor social de sua identidade” (HONNETH,
2003, p. 139), a essência da dignidade. Assim, a esfera de reconhecimento do direito tona-se
fundamental, não somente por delinear a orientação moral das ações, mas, essencialmente,
por conferir ao sujeito as propriedades do autorrespeito, i.e. o reconhecimento de atributos
que compartilha com todos os membro de uma comunidade, de tal modo que o grau de
autorrespeito somente pode ser dado pelo nível de individualização de tais capacidades que
encontram confirmação nos parceiros de interação.
A problemática, útil para a compreensão da articulação do movimento homossexual,
surge exatamente no momento em que o “eu” enquanto “reservatório de energias psíquicas
que dotam o sujeito de um grande número de possibilidades inesgotáveis de identidade”
(HONNET, 2003, p. 141), colide inevitavelmente com as expectativa de um “me” externo,
surgindo uma tensão latente entre os designos da individualidade e a vontade global
internalizada. A partir do conflito moral entre sujeito e ambiente social, surge uma luta por
reconhecimento, dada pela impossibilidade de conciliar as exigências que afluem do íntimo
com a necessidade do assentamento de todos, critério controlador da própria ação


5 “imagem cognititiva que o sujeito recebe de si mesmo, tão logo aprenda a perceber-se da perspectiva de uma
segunda pessoa” (HONNETH, Luta por reconhecimento, p. 33)
6 “Designa a experiência repentina de um afluxo de impulsos internos, dos quais não se pode mais divisar se

nascem da natureza pulsional pré-social, da imaginação criadora ou da sensibilidade moral” (HONNETH, 2003,
p. 140).
8

normativamente interiorizada. Nesse sentindo, o reconhecimento é possível somente através


de um intenso processo de lutas que, inflamadas pela privação de diretos e o ataque a
integridade social que lhe segue, confluem para a Justiça enquanto manifestação concreta da
Liberdade, i.e., “promessas consagradas historicamente através de lutas sociais e estabilizadas
em instituições da sociedade” (SOBOTTKA, 2015, p. 39) tal como quis Honneth, ou, como
melhor formulou, Roberto Lyra Filho:

justiça histórica e concreta (como estalão avaliativo das séries concorrentes de


normas, produzidas pelos grupos, classes e povos desnivelados) não se determina
senão pelo estabelecimento gradual de porções crescentes de liberdade
conscientizada, na luta dessas classes, grupos e povos, refletindo a dialética de
opressores e oprimidos, espoliadores e espoliados; em síntese: dominadores e
dominados, no interior dos Estados e nações e na comunidade internacional e
interestatal. (LYRA FILHO, 1984, p. 17)

A violação das relações de reconhecimento demonstram o quanto “o indivíduo só pode


ser considerado como tal se é considerada a existência anterior de uma sociedade que lhe dá
sentido” (SOBOTTKA, 2015, p. 30), ou seja, enquanto emerso numa teia de relações
intersubjetivas simultaneamente impostas e determinadas por ele. Assim, o mero desrespeito e
o sentimento de injustiça individual são incapazes de gerar a real emancipação, possível
somente através da articulação do movimento social que lhe dá real relevância e sentido
políticos 7. Esse background teórico possibilita concatenar os sentidos dos novos sujeitos
coletivos de direitos, tal como articulados por Marilena Chauí que lhes dá três características
essenciais: são novos, pois nenhuma teoria prévia os constituiu, coletivos, pois são
descentralizados e despojados da individualidade solopsista burguesa e, por fim, não são
portadores de novos carácteres universais e centralizadores das ações sócio-políticas (CHAUÍ,
1995)
A realidade brasileira de conformação desses novos sujeitos coletivos e,
especificamente do movimento homossexual, nos remete à Foucault e suas ferramentas de
análise da repressão sexual, pela percepção das múltiplas formas de interação recíproca das
categorias poder, saber e sexualidade, a partir de onde é possível afirmar que: “onde há poder,
há resistência” (FOUCAULT, 2012, p. 91), e assim abstrair que a repressão foi um dos
principais fatores para a construção de um movimento social que questionasse a ordem moral

7 Honnethacrescenta o efeito acolhedor e empoderador de tais espaços para as individualidades, uma vez que,
no movimento social, o sujeito experiencia uma forma de reconhecimento antecipada de uma sociedade onde
suas reivindicações seriam plenamente identificadas enquanto legítimas. (SABOTTKA, 2015)
9

e sexual vigente. Não se deve incorrer, entretanto, no sério erro de tomar o autoritarismo
como a principal condição para a articulação do movimento homossexual brasileiro,
atribuindo à opressão uma visão por demais romantizada e um papel que não lhe coube. As
transformações sociais transcorridas no Brasil e no mundo durante as décadas de 50 e 60 são
fundamentais para construção de um discurso liberalizante, mesmo em meio ao estigma e à
marginalização impostas por um regime e sua moral cristã (QUINALHA, 2017). Nesse
sentido, James Green aponta a importância da fundação de espaços de sociabilidade LGBT
para a criação de “um tipo de comunidade em formação, em que as pessoas se identificam,
compartilham códigos, comportamentos e costumes, ainda dentro de uma semiclandestinidade
imposta graças à marginalização social da homossexualidade” (GREEN, 2014, p. 184).
Entretanto, pode-se atribuir à ditadura, sem grandes problemas, a culpa pelo atraso
do surgimento de movimentos sociais que defendessem os direitos dessa população
marginalizada, uma vez que eles somente lograram o florescimento num contexto de abertura
tímida, de grandes movimentações sociais dos novos sujeitos políticos e da derrota da
esquerda armada. Rafael de Souza ainda atribui grande protagonismo à criação de uma
imprensa alternativa e à formação de um circuito de arte “marginal”, ferramentas para a
interpretação da realidade nacional e construção de uma retórica de “libertação sexual”
(SOUZA, 2013), papel desempenhado fundamentalmente pelo jornal insurgente Lampião da
Esquina.
Contrariando as tendências contemporâneas, a antiga esquerda não acolheu esses
movimentos, uma vez pautada por um ethos de “masculinidade revolucionária”, fruto de um
estalinismo de moral conservadora, da ideologia católica sexualmente rígida e do velho
machismo latino-americano (QUINALHA, 2017). Os militantes, nesse sentido, não viam
lugar para a homossexualidade em sua percepção idealizadora da classe trabalhadora,
representando-a enquanto um “desvio pequeno-burguês” ou manifestação da “decadência
burguesa”. Ironicamente, os órgãos governamentais de repressão oficial percebiam a
homossexualidade como parte de uma “ideologia comunista”, cujo principal objetivo seria
desestruturar as famílias brasileiras, deturpando seus valores mais essenciais. Os novos
movimentos situavam-se então numa situação complexa, marcada simultaneamente pelo
duplo receio de “virar uma organização de esquerda tradicional, quanto de ser confundidos
com uma delas aos olhos da repressão” (QUINALHA, 2017, p. 241). Essa situação moldaria
essencialmente o movimento, dotando-lhe de um caráter sensivelmente anárquico e de
oposição a qualquer forma de organização institucionalizada, seja pela esquerda ou pela
direita.
10

As contradições internas ao movimento intensificam-se com a criação da Facção Gay


dentro da Convergência Socialista, corrente teórico-partidária construtora de parte do projeto
do Partido dos Trabalhadores e, mais tarde, transplantada para o PSTU 8 . A crença na
possibilidade de se interpretar a problemática LGBT à luz do marxismo e, mais
especificamente, do trotskismo foi fundante desse grupo que redefiniu a perspectiva tanto da
esquerda quanto do movimento homossexual, a partir de uma ótica de interseccionalidade. Os
receios e tencionamentos entre grupos que acreditavam na via político-partidária e aqueles
que a acusavam de cooptar e instrumentalizar o movimento homossexual encontrou seu pico
máximo no fracionamento do principal grupo LGBT brasileiro, o SOMOS/SP, polarizado em
torno das figuras de João Silvério Trevisan, dotado de visão anárquica oposta a qualquer
institucionalização e fundada na subjetividade dos indivíduos, e James Green, defensor de
uma perspectiva socialista pautada na indissociabilidade da luta coletiva LGBT das demais
lutas minoritárias, tal como a dos trabalhadores, negros e mulheres. De modo semelhante, as
mulheres lésbicas, postas numa situação brutal de dupla marginalização, uma vez que não
eram compreendias na totalidade de sua identidade por um movimento feminista ainda liberal,
incapaz de afirmar os direitos sexuais femininos, mas também não encontravam lugar no meio
hegemonicamente masculino do movimento homossexual tradicional, optaram por criar sua
própria via de lutas lésbicas e feministas. A partir de então, iniciou-se um período de declínio
do movimento homossexual brasileiro, imerso em grandes indeterminações e fragmentação,
intensificadas pelo fim do Jornal Lampião da Esquina9.
Apesar das diferenças de abordagem e de compreensão do que seria a “afirmação
homossexual”, e, nesse ponto, é importante ressaltar que este trabalho não se propõe a discutir
ou problematizar as formulações contemporâneas de identidade sexual e de gênero ou mesmo
sua desconstrução, todos os movimentos sociais pautados pela temática LGBT+, de certo
modo, confrontaram-se e ainda enfrentam a erótica10 vigente no ocidente contemporâneo.
Assim, atuar para combater as formas de hierarquização diferencial pelo gênero ou
comportamento sexual é necessariamente desconstruir uma erótica moldada, de um modo um
tanto paradoxal, pelas heranças gregas e hebraicas que, postas em horizontes completamente

8 Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado fundado em 1994 por militantes que reivindicavam uma
corrente teórico-revolucionária trotskista.
9 Primeiro periódico centrado na temática da diversidade sexual a ser distribuído nacionalmente, sua primeira

edição, lançada em abril de 1978, representa o princípio de uma ferramenta congregadora do universo particular
do gueto, traduzido numa linguagem própria que proporciona a concatenação dos anseios num clamor por
articulação e organização desse novo movimento social.
10 Por erótica entende-se, junto com Foucault, a narrativa da sexualidade, ou seja, de sua problematização moral

construída por toda sociedade como forma de delimitação das práticas de afeto, seja sua iniciação, as formas que
se desenvolvem ou mesmo o julgamento moral imposto aos modos desviantes do modelo homogenizador.
11

distintos de percepção do sexo, do prazer, da ideia de divino e mesmo das construções da


feminilidade e masculinidade, transforma a todos um tanto esquizofrênicos quanto à
apreensão da sexualidade (SPENCER, 1996). Vigora uma notável oscilação entre uma dada ta
aphrodisia11 grega, construída a partir do isomorfismo entre as relações sociais e sexuais,
polarizadas na dicotomia das noções de atividade/passividade, e uma formulação moral
hebraica pautada profundamente pela ética religiosa e sua percepção dos pecados da carne que
se traduzem num código moral rígido e universal. Essas narrativas alteram-se e se
transformam com o fluxo do tempo, de tal modo que somente a partir da compreensão dos
significados do protestantismo acético e o ódio aos pecadores que ele implica que se pode
explicar a gênese do Estado Homofóbico moderno e a forma como que, alimentado pela
moralidade religiosa e pela ciência com sua lógica de biologização, disciplina os corpos por
meio de sua lei civil, complementada pelo direito canônico e a pastoral cristã (CARNEIRO,
2015)

4. O TRIÂNGULO ROSA ENTRE AS REMINISCÊNCIAS DAS VIOLÊNCIAS


PASSADAS E AS POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS DO FUTURO

Os tempos são outros, já é 1985 e a ditadura já se aproxima de seu fim iminente, o


vírus HIV dissemina-se rapidamente, fazendo suas vítimas especialmente entre a comunidade
LGBT, de tal forma significativa que líderes religiosos e conservadores já falam em “peste
gay”, enquanto marcam essa população com o estigma da doença, mácula essa bem diferente
daquele que o Deus hebraico, principal fonte da religiosidade desses homens, marcou Caim
“para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse” (Gênesis 4:15). O renomado
professor da Faculdade de Medicina da USP, Dr. Ricardo Veronesi já fala que “em termos de
saúde pública, o direito deles (os homossexuais) vai até o ponto de não interferir no direito
dos outros” (O ESTADO DE SÃO PAULO, 1985, p.22 apud TREVISAN, 1986) e, assim, a
velha política higienista volta à tona, destruindo os poucos espaços de socialização LGBT.
Ao mesmo passo, o país se aproxima da Assembleia Nacional Constituinte (ANC),
momento único em que a nação é chamada para reavaliar suas legislações e atualizar suas
normativas segundo as novas necessidades, representando assim, uma legítima oportunidade
de manifestação da intenção fundamental da redemocratização: a fundação de um espaço


11 Representaas obras ou atos de Afrodite, uma vez que, novamente junto a Foucault, não seria possível falar em
uma formulação igual à noção moderna de sexualidade na Grécia Antiga, especialmente no que diz respeito aos
usos dos prazeres, sensações e instintos sexuais.
12

público colorido pelos tons da participação política e, consequentemente, pautado pelos


princípios da cidadania. Assim, a ANC de 1987/1988 foi a primeira a ostentar uma pretensão
essencialmente democrática de atenção e reprodução da polifonia inerente ao regime
democrático de direitos, garantindo a participação de diferentes grupos por meio das emendas
populares e de audiências públicas. A leitura contemporânea desse momento histórico, a partir
de sua posição de observador privilegiado, permite concluir que, em certos aspectos, ela de
fato representou um “momento de fusão” das múltiplas identidades em vínculos
interseccionais para uma unidade de ação dos novos sujeitos, ensejando, nesse sentido, a
possibilidade de se pensar o poder popular enquanto motor das transformações para uma
sociedade radicalmente diferente e emancipatória (SOUSA JUNIOR, 2002, p.64).
A partir de uma perspectiva histórica do movimento homossexual brasileiro, pode-se
identificar nesse momento um do vários marcos da transição de um período de latência,
protagonizado por pequenos grupos atuantes na realidade cotidiana em prol de objetivos
específicos, mas fundador de um “circuito de indivíduos e mensagens”, para uma realidade de
visibilidade, onde os atores sociais reclamam sua autoridade política e desconstroem o véu de
hipocrisia para fazer a sociedade ouvir suas demandas e, consequentemente, exigir políticas
públicas do poder estatal (SOUSA JUNIOR, 2008, p. 253). Somente nesse ínterim que se
pode compreender o nascimento de um novo ator coletivo que, construído pela luta da
diversidade sexual, embutido nas necessidades do momento e voltado para objetivos
específicos e destoantes de tudo que já havia sido pautado em outros movimentos, propõem
mais do que a batalha pela liberalização sexual, mas uma organização de caráter
particularmente interessado na esfera jurídico-política. De certa forma, essa tendência ao
político esteve presente desde a fundação do grupo, fato explicitado pela própria escolha do
nome: Triângulo Rosa, símbolo utilizado pelos nazistas nos campos de concentração para
marcar os prisioneiros LGBTIs. De marca e insígnia inspiradora de vergonha, preconceito e
holocausto no passado, o grupo ressignifica o símbolo para torná-lo emblema ostentado com
orgulho e elemento identitários de uma população, reafirmando a posição teórica de
Boaventura de Sousa Santos de que: “todos nós, cada um de nós, é uma rede de sujeitos em
que se combinam várias subjectividades correspondentes às várias formas básicas de poder
que circulam na sociedade” ( SANTOS, 2008, p. 107)
O grupo constitui-se enquanto duas frentes distintas: a reivindicação e luta pelos
direitos civis da população homossexual e o combate a AIDS e seu caráter estigmatizante.
Nesse percurso de lutas por reconhecimento da múltiplas gramáticas de vida, o coletivo
tomou posições contraditórias com os princípios que hoje norteiam os movimentos LGBTs
13

contemporâneos, como a preocupação latente dentro do Triângulo Rosa de rechaçar o gueto,


o que dava ao grupo uma perspectiva marcadamente elitista, confirmada pela posição social
de seus membros. Nesse ponto, também é importante ressaltar a forma como o grupo
reproduzia construções patriarcais e falocêntricas provindas de uma mesma masculinidade
tóxica que almejavam combater, de tal modo que suprimiam as subjetividades transsexuais e
travestis de suas pautas, transferindo os estigmas de criminalidade e doença para esses grupos
já tão marginalizado e, assim, contribuindo para ótica hierarquizante do masculino e
feminino: “Há o homossexual comum e há o travesti, que em muitos casos são prostitutos se
envolvendo com pequenos furtos e droga” (ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE,
1987, p.166).
Entender a atuação do Triângulo Rosa é compreender sua contribuição para a
desconstrução do sujeito universal e individualista, cerne da construção subjetiva da
modernidade, que, por meio dos processos de diferenciação hierarquizada, justifica as
múltiplas formas de negação das subjetividades dissidentes daquele mesmo ideal do indivíduo
masculino, branco, cisgênero, heterossexual e proprietário. Assim, somente aliada às
dicotomias fundantes do Estado Liberal, tal como público/privado ou Estado/Sociedade Civil,
operando num mesmo nível de abstração e idealização que subtrai as subjetividades políticas
e jurídicas de suas reais condições de produção e reprodução da vida social, é que se pode
conciliar a liberdade e igualdade formais e essencialmente restritas ao círculo do público com
a opressão e espoliação que se desenvolvem na realidade crua do âmbito privado. Nesse
ponto, o positivismo jurídico exerce um papel essencial para justificar uma ordem jurídica
ausente de qualquer teor ético, uma vez que percebe “o Direito como mero instrumental
demitido de qualquer conteúdo e, ao mesmo tempo, compatível com qualquer um”
(NOLETO, 19998, p. 59). Decorre dessa opção pelo dogma metodológico e epistemológico,
que trata o fato social como coisa e, assim, retira o protagonismo dos sujeitos sobre sua
própria história e realidade social, apenas “o silêncio e subserviência a qualquer poder
estabelecido” (ibid, p. 87).
A partir da contestação, o sujeito coletivo promove a recontextualização de sua
identidade, identificando nas carências do cotidiano, não mais o resultado natural de uma
sociedade hierarquizada, mas as consequências de uma injustiça institucionalizada que os
aflige, decorrendo daí a luta como práxis social da emancipação a ser realizada, não num
futuro longíquo, mas no presente. Nesse sentido, a atividade do Triângulo Rosa, a partir do
horizonte teórico feminista e marxista, nada mais é do que a politização das múltiplas esferas
de produção e reprodução da vida social, ou seja, da identificação das numerosas relações de
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poder e das formas de transformá-las em relações de autoridade compartilhada, ampliando as


formas de cidadania para outras esferas da vida social (SANTOS, 2008). Desse modo, o
coletivo ostentava uma visão particular do jurídico: “o ordenamento jurídico deveria ser a
expressão mais fidedigna possível da vida social” (CÂMARA, 2002, p. 83), ou seja, a
construção de normativas seria um artifício fundamental para a consolidação das mudanças
sociais, uma vez que, na visão do grupo, as normativas contemporâneas a eles eram incapazes
de retratar a verdadeira multiplicidade de relações existentes, gerando um descompasso entre
norma e realidade que afetava diretamente a eficácia da primeira, dotando-a de um sentimento
de descrédito e desesperança.
A atuação política do Triângulo Rosa dentro desse contexto rendeu-lhe o convite para
representar o movimento homossexual na Assembleia Constituinte, quando em audiência
pública nas Subcomissões dos Direitos e Garantias Individuais e na dos Negros, Populações
Indígena, Pessoas Deficientes e Minorias, nos dias 20 de maio e 24 de junho de 1987, João
Antônio de Souza Mascarenhas proferiu um discurso denominado “O homossexual e a
Constituição” em defesa dos direitos à liberdade sexual. Compreendendo que a mera
existência do movimento homossexual configura essencialmente um ato de resistência, fazer
com que constasse no artigo 153, paragrafo primeiro, da Constituição de então, uma explícita
vedação à discriminação por orientação sexual, a principal reivindicação do grupo,
representaria finalmente sair “do armário” e afirmar orgulhosamente a existência de uma
miríade de diversidade sexual. A própria escolha do termo “orientação sexual” foi um
trabalho cuidadoso por parte do movimento que procurava concomitantemente distanciar-se
da aura de escolha presente no termo “opção sexual” e utilizar a nomenclatura predominante
nos trabalhos científicos de então, utilizando de um termo essencialmente neutro e que
inspirava o teor de um simples direcionamento. A precaução do movimento estendeu-se no
sentido de evitar também os problemas contidos na terminologia “comportamento sexual” que
compreende uma diversidade de práticas tanto homossexuais quanto heterossexuais, mesmo
aquelas mais antissociais, excluindo qualquer percepção de identidade sexual, ou seja, a forma
como o indivíduo percebe a si mesmo e reage a outrem (CÂMARA, 2002).

5. À GUISA DE UMA CONCLUSÃO: O DIREITO ACHADO NO ARMÁRIO

A forma de atuação do Triangulo Rosa e suas principais pautas revelam um claro


repúdio a qualquer afirmação do ordenamento estatal enquanto forma hegemônica de
manifestação do jurídico, uma vez que seus membros retratam um claro descompasso entre
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essas normativas e as reais necessidades que pautavam a comunidade. Nesse sentido, a


pluralidade de ordenamentos jurídicos, reflexo da multiplicidade de formas de organização
social em classe e grupos, num constante movimento dialético de luta pela hegemonia, em
que o Estado é apenas mais um elemento inserido nesse processo (LYRA FILHO, 1980a), é
uma realidade gritante na percepção dessa militância homossexual brasileira específica. Isso
não significa que o ordenamento jurídico estatal esteja completamente errado em todas suas
posições e estatutos, apenas que está incompleto, representando unicamente o “topo do
iceberg” (LYRA FILHO, 1980a, p. 09), no sentido de que qualquer tentativa de isolar o
direito num único processo o mutila, tornando-o incapaz de compreender a forma como os
direitos se relacionam entre si.
Nessa percepção que se fundamenta o Constitucionalismo Achado na Rua, corrente
teórica que desconstrói percepções anacrônicas com a realidade de um Estado Democrático de
Direito, onde o poder constituinte só pode ser profundamente democrático em todos seus
aspectos, o que significa que qualquer concepção conservadora de um poder ilimitado,
autônomo e incondicionado configura a perpetuação das múltipla formas que sustentam e
compreendem o autoritarismo, como bem define Alexandre Bernardino Costa: “Poder
Constituinte só pode ser assim chamado se for direito achado na rua, caso contrário, é arbítrio
e ditadura ou delírio de constituição teórica idealizaste, que por fim também resulta em
autoritarismo” (COSTA, 2006, p. 44). Portanto, a atuação do Triângulo Rosa é de
essencialmente desconstruir a identidade nacional homogeneizadora, construída sob o
pressuposto de uma nação mestiça que naturaliza as diferenças como forma de dominação,
para então afirmar uma identidade constitucional, onde está implícito o potencial
emancipatório:

“Nesse contexto, deslocar a ênfase da identidade nacional – baseada na ideia de que


uma boa vida depende da pertença ao agrupamento humano por intermédio de laços
históricos, culturais, de lealdade e de sangue – para uma identidade constitucional
pode funcionar como catalizador na densificação das promessas constitucionais de
construir uma sociedade livre, solidária e justa.” (MELO DE SOUSA, 2013, p. 21)

O Estado assume então uma posição essencialmente ambígua, onde coabitam a


dominação, uma vez que “a pretendida hegemonia do Direito Estatal é um artifício político,
mediante o qual o poder instituído aspira a eliminar as próprias contradições políticas da
sociedade em que emerge” (LYRA FILHO, 1980a, p.19), mas também elevadas
potencialidades emancipatórias. De forma semelhante, a Constituição é fundamentada sob a
mesma ambiguidade, dado que a seleção de identidades e diferenças retratadas é enquadrada
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por limites sócio-históricos que constroem a narrativa constitucional por meio das ferramentas
da negação, metáfora e metonímia, ao mesmo passo que esses mesmos limites fornecem o
“material que deve ser reconformado mediante a negação da metáfora e da metonímia; ambos
os vínculos com e em oposição ao “eu” pre-constitucional e extra-constitucional”
(ROSENFELD, 2003, p. 91). Assim, o Constitucionalismo, enquanto parte do Direito também
é limitador e alienante, mas, uma vez que se sobrepõe às demais normativas
democraticamente promulgadas, ele é dotado de elevado potencial libertador:

“A Constituição é, a um só tempo, coercitiva e emancipatória: ela obriga e se impõe


coercitivamente a todos os que sob ela venham a se encontrar enquanto membros do
corpo legislativo soberano; e, à medida que eles se tornem obrigados a obedecer os
ditames das leis corretamente promulgadas, ela contribui para a emancipação dos
membros desse mesmo corpo” (ROSENFELD, 2003, p. 92)

Se “não se pode afirmar um novo direito em favor de uma categoria de pessoas sem
suprimir algum velho direito, que beneficiava outras categorias de pessoas” (BOBBIO, 2004,
p. 20), o velho preceito que teria de morrer seria o de uma igualdade por demais simplificada,
naturalmente homogenificadora, incapaz de compreender a diversidade nas múltiplas matizes
que existem e subsistem, possibilitando sob sua guarda o preconceito e a discriminação,
enquanto viola brutalmente o corpo e a felicidade de outrem. Apesar de todos os pesares, esse
não foi um direito reconhecido na Constituição de 1988, construída por parlamentares que
trataram dessa temática com a violência da chacota ou do discurso de ódio:

“Achamos que inserir no texto constitucional essa expressão é permitir a


oficialização do homossexualismo, muito em breve, como prática normal entre as
pessoas e que deve ser aceito por todos. [...] Não se trata, portanto, da necessidade
de respeito a uma característica própria, adquirida ou normal, das pessoas, como o
sexo, a cor, a posição social, a religião etc., e, sim de uma deformação, de ordem
moral e espiritual, reprovável sob todos os pontos de vistas genuinamente cristãos,
constituindo-se num dos maiores veículos de disseminação do terrível mal da
AIDS.” (ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1987b, p.4877)

Assim, se “todos os movimentos sociais [...] fundaram-se num direito que exprimia
sua posição e reivindicações” (BOURJOL, 1978, p. 124 apud LYRA FILHO, 1980b, p.18), o
Triângulo Rosa construiu a si mesmo na sólida base do direito de amar livremente. Os
desafios, dados por uma dogmática jurídica, restrita àquilo cristalizado pelo Estado ou pelo
ordenamento (costumes, usos, folkways e mores) da classe dominante, barram
momentaneamente um movimento que pautaria a conquista de quotas progressivas de
emancipação, cerne da sua luta por dignidade e essência de um regime verdadeiramente
atrelado à cidadania e à sua capacidade perpétua de reivindicar por novos direitos. Disso tudo,
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o que pode-se abstrair, tanto a partir de um paradigma do Positivismo Sociológico quanto do


Legalista, é que sempre quando a norma estatal é questionada, a repressão e a opressão são
desmascaradas (LYRA FILHO, 1980b). Mesmo mal sucedidos em seu intento imediato, os
militantes do movimento homossexual, com seus sonhos e sua voz emancipatória,
transformaram o real sentido de amar, de tal modo que jamais poderá ser dito que a
comunidade LGBT se omitiu nesse momento de diálogo que foi a Assembleia Constituinte e,
sempre estará registrado como, se a orientação sexual foi omitida, houve um intenso processo
de lutas simbólicas pela sua positivação.

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