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08
ARTIGO
“Escavando”
arqueologias
Alternativas
Cristóbal Gnecco11
Resumo
As arqueologias alternativas têm sido Abstract
definidas como programas de pesquisa bem Alternative archaeologies have been defi-
diferentes daqueles da arqueologia tradicio- ned as research programs different from
nal, mesmo posicionando assuntos tão cru- those of traditional archeology, even posi-
ciais como a descolonização e a luta contra tioning such crucial issues as decolonization
as hierarquias acadêmicas. Porém, elas and the struggle against academic hierar-
compartilham o núcleo filosófico da disci- chies. However, they share the philosophical
plina, herdado de sua origem moderna, so- core of the discipline, inherited from its mo-
bretudo a função epistêmica de escavar (e as dern origins, especially the epistemic func-
suas relações associadas). Este artigo busca tion of digging (and its associated rela-
responder se esse compartilhar ainda per- tionships). This article seeks to answer
mite (ou não) que elas sejam consideradas whether this sharing still allows (or not) to
alternativas. consider them alternative.
mantém o seu núcleo ontológico e metafísi- mam a luz nas suas próprias mãos. O mes-
co? Foi destruído algo (a arqueologia) que mo acontece com o passado, selado e
sobrevive graças a sua associação aberta modelado na arquitetura do cosmos, a arte
com a cosmologia da modernidade, apoiado suprema de Deus. Agora o passado é algo
pelo tropo da descoberta? que está na sua materialidade e seu sentido
algo a ser descoberto. O passado torna-se
GOYA E O OLHAR MODERNO uma entidade que pode ser conhecida pelos
Dois retratos do pintor espanhol Fran- sentidos, comandados pela razão, e deixa de
cisco de Goya, A maja vestida e A maja des- ser algo revelado pela palavra divina.
nuda, encarnam o olhar moderno e apon- Com esses argumentos à mão é fácil de
tam para a obsessão ocidental com ver o que os arqueólogos fazem —e por quê.
descobrir, despir, despojar. O passo da maja Como disciplina ocidental, a arqueologia
vestida à maja desnuda indica a estratégia herdou o olhar moderno. O equivalente ar-
moderna (a da ciência): a maja nua encarna queológico de despir, descobrir y despojar e
a verdade do que é exposto ao olhar na sua escavar. O passado fica enterrado, então, e
realidade absoluta. O movimento de volta também é material. Para conhecê-lo, o pas-
para a maja vestida, apenas oculta: a verda- sado (que fica enterrado na escuridão na sua
de antes exposta é raptada e levada para o encarnação material) tem que ser exposto,
invisível, onde deixa de ser real para se tor- despojado, despido, iluminado, quer dizer,
nar ideologia. A ideia do nu como revelação escavado. Os arqueólogos escavam porque o
tem uma longa história no pensamento oci- passado está lá, em algum lugar, na sua for-
dental e representa a diferença entre um ma material: enterrado. A única maneira de
mundo real e um ilusório. A genealogia de reviver o passado (ou seja, torná-lo real) é
despojar, despir e descobrir assinala ao Ilu- através de sua saída à luz por médio da esca-
minismo como um momento transcenden- vação. Predicado sobre esses fatos, não é de
te da tradição judaico-cristã; desde então, a estranhar que o mais alto nível de negócio
capacidade de expor o que está enterrado se arqueológico seja saber onde escavar para
torna no centro de operação do conheci- recuperar o passado enterrado. Mesmo as
mento moderno. evidências superficiais contribuem para o
Desde Kant (1964) O argumento central efeito: se elas são recuperadas adequada-
do Iluminismo tem sido a oposição entre a mente, informam sobre o passado material
luz e as trevas —e suas dicotomias acompa- como era quando ele foi enterrado.1
nhantes: bem/mal, livre/submetido, conhe- Ficar abaixo da superfície é a condição
cimento/ignorância. Quando Kant (1964) que dá o rótulo de arqueológico às coisas.
teve que escolher um lema para o Iluminis- Considere a distinção bem conhecida pro-
mo propus sapere aude (atreva-se a conhe- 1- A condição dos elementos superficiais é única a este res-
cer); assim ele quis indicar que os seres hu- peito. Eles realmente estão em um patamar metafísico: tec-
nicamente pertencem ao contexto sistêmico mas informam
manos poderiam passar da custódia à livre sobre o contexto arqueológico —estou usando os termos pro-
postos por Schiffer (1972). O ponto importante para o meu
vontade pela iluminação, desta vez não divi- argumento, no entanto, é que apesar de que sua condição
na (a luz descendo dos céus para os seres particular pareceria exclui-los das escavações, não aconte-
ce assim. Os arqueólogos tratam os elementos superficiais
humanos), mas plenamente humana (a luz como se eles estiveram enterrados, imaginando o como eram
e como eles estavam localizados antes de serem deslocados
que ilumina a escuridão pelo uso consciente de seu depósito arqueológico. Os elementos superficiais tam-
e responsável da razão). Deus morre no exa- bém são escavados —as técnicas atuais para a recuperação
"adequada” de elementos de superfície são iguais às de qual-
to momento em que os seres humanos to- quer escavação.
posta por Michael Schiffer (1972) entre o da antropologia, Johannes Fabian (1990) e
contexto sistêmico e arqueológico; Schiffer Michel-Rolph Trouillot (2003), destacaram
usou este ultimo conceito para descrever “os a reificação do campo —esse lugar emble-
materiais que passaram por um sistema cul- mático onde acontece o trabalho de cam-
tural e agora são investigados pelos arqueó- po— como a operação discursiva mais acei-
logos” (Schiffer 1972:157). Apesar de não tada na antropologia, a fonte mais legítima
especificar que o contexto arqueológico está da compreensão antropológica O campo
enterrado, todo o texto é um comentário a reificado (vaziado de qualquer carácter his-
essa afirmação implícita. Caso contrário, tórico-contextual) é o lugar onde o antropó-
como podemos aceitar que o contexto sistê- logo encontra o selvagem e onde as intera-
mico defina elementos envolvidos em um ções intersubjetivas são traduzidas em
sistema comportamental, enquanto o con- distancia profissional. Da mesma forma, o
texto arqueológico o faz com “materiais que trabalho de campo do arqueólogo e a esca-
passaram por um sistema cultural”? Os ele- vação são o lugar e a operação reificados que
mentos de um contexto arqueológico de al- possibilitam a descoberta de um passado
guma forma têm sido separados de um sis- também reificado. Além disso, as escavações
tema de comportamento por descarte arqueológicas são cercadas por proscrições
intencional ou acidental; estão, portanto, legais. Em muitos países, como a Colômbia,
longe do mundo dos vivos —já tem “passa- o ato de escavar é definido, controlado e pu-
do através de um sistema cultural” e não nido por regras institucionais promulgados
mais pertencem a um “sistema de compor- pelo Estado, aplicadas por instituições poli-
tamento.” Como entram de volta a um con- ciais (como o Instituto Colombiano de An-
texto sistémico, isto é, a um novo sistema de tropología e Historia) e curtidas pelos ar-
comportamento? Só existe uma maneira: queólogos, esses indivíduos estranhos que
tirando-os fora do contexto arqueológico, prosperam em outra potente dicotomia rei-
escavando-os. O produtor final desta opera- ficada, legal/ilegal, escondendo a historici-
ção é o arqueólogo. (Não surpreendente- dade de qualquer senso moral. Autorizar
mente, de acordo com Schiffer, os elementos aos arqueólogos para escavar, ao mesmo
de um contexto arqueológico “estão agora a tempo em que se proíbe a outros de fazê-lo,
ser investigado pelos arqueólogos.”) só procura garantir o acesso dos profissio-
Não há dúvida: os arqueólogos escavam. nais ao património, mais uma entidade rei-
Eles são parte do grêmio quando sabem ficada.
onde e como escavar. A experiência do tra- Assim se desenrola uma longa cadeia de
balho de campo (inteiramente legitimada reificações.
pela escavação) é a ocasião essencial, a fonte Tem mais sobre a naturalização. A alega-
da arqueologidade —o sentido de ser um ar- ção arqueológica de que os procedimentos
queólogo. Mas essa experiência é despojada de investigação, incluindo a escavação, tor-
de seu senso de evento e reificada como um naram-se autônomos por médios técnicos
encontro com o passado —como se este fos- ajuda a esconder que estão ligados a cosmo-
se uma coisa viva, externa aos sujeitos. Por logias poderosas; essa alegação os mostra
que não ver o campo de forma diferente, como simples operações técnicas em um
longe da naturalização produzida pela vazio cultural. Mas se a arqueologia está ba-
aprendizagem do ofício? Dois dos críticos seada na ideia de que o passado está enterra-
mais articulados da ontologia fundacional do, a compreensão que oferece está necessa-
sado e para formular ações para o planeja- relacionada como o arqueológico, mas abor-
mento social e ambiental atual (Andah dada desde uma cosmologia diferente, a es-
1995:173; adicionei os itálicos). cavação não foi contemplada como uma
Devemos entender este “apenas escavan- forma de encontrar aos antepassados. Quan-
do” metaforicamente já que alude às “fontes do o território foi caminhado os xamãs tive-
orais históricas e etnográficas”? Mesmo se ram aos ancestres falando através de seus
aceitamos o seu uso metafórico, qual é o sig- traços visíveis —que, segundo os relatos
nificado de “escavar” senão o encontro do modernos, sempre tem estado a plena luz.
que está enterrado? Esta mitologia permite ver e sentir de outra
Outra questão surge quando examina- maneira. Em vez da obsessão moderna com
mos outras cosmologias. Na mitologia de a luz e o despir, se deleita em encontrar o
muitos povos ameríndios andinos o cosmos que nunca tem estado na escuridão. Por isso
é organizado em três níveis. Uma divisão de pode ser classificada como uma forma alter-
um mundo superior, este mundo e o mundo nativa de ver porque ao tomar distancia da
inferior é bastante comum. Embora possa mitologia moderna posiciona-se em outro
ser sincrética com o dogma cristão, também lugar no horizonte do olhar. Posso dizer o
parte dele: o mundo inferior (onde residem mesmo sobre as arqueologias alternativas
os espíritos e os ancestres, entre outros se- que surgiram nas últimas décadas?
res) está sempre em contato com este mun-
do, principalmente por meio de corpos de ARQUEOLOGIAS ALTERNATIVAS?
água (lagos, rios, cachoeiras). Não tem que As arqueologias alternativas podem ser
ser descoberto para ser. Os seres do mundo descritas como praticas afastadas dos prin-
inferior estão vivos, não mortos. Isto se es- cipais princípios disciplinares. Elas podem
tende também a outras áreas simbólicas. até mesmo ser vistas como um desafio à he-
Nos conflitos étnicos das últimas três déca- gemonia desfrutada pela arqueologia acadê-
das, a recuperação da cultura tem sido fun- mica/positivista por tanto tempo, uma do-
damental. Os seres que habitam o mundo minação construída por um consentimento
inferior tornam-se fornecedores culturais hoje despedaçado. As perspectivas feminis-
através da mediação dos xamãs. O significa- tas e indígenas têm sido destacadas como as
do de recuperação é essencial para as agen- propostas dissidentes mais relevantes dentro
das étnicas, já que implica recuperar o que da disciplina, rotuladas como arqueologias
foi tirado, especialmente pelo colonialismo. alternativas quando totalmente desenvolvi-
Há uma grande diferença entre recuperação das em programas por conta própria. Po-
e escavação: a primeira envolve recuperar o rém, estão realmente afastadas da arqueolo-
que já está vivo; o segunda refere a matéria gia dominante, desafiando a sua dominação?
morta, apenas animada pela hermenêutica Elas são realmente alternativas? Uma ma-
arqueológica. Assim, em muitas cosmolo- neira de esboçar uma resposta é avaliando a
gias não modernas a relação com o passado, sua perspectiva metafísica e ontológica. Ao
com os antepassados, não está mediada por fazer isso, é possível ver que mais freqüente-
processos que revelam-despem-escavam. mente do que não as arqueologias alternati-
Portanto, elas têm fortes razões cosmológi- vas retêm os princípios modernos da prática
cas para rejeitar a escavação. Em uma pes- disciplinar.
quisa na qual participei com uma comuni- Considerem o caso das chamadas arque-
dade Nasa do sul-oeste de Colômbia ologias indígenas (Watkins 2000; Smith e
Wobst 2005), que aceitam sem discussão a -la. Não é de surpreender, então, que ao re-
idéia moderna de que o passado fica enter- conhecer esta oferta de dissolução os princí-
rado e tem que ser escavado/descoberto. As- pios éticos de muitas associações —os de
sim surge uma questão importante: essas Canadian Archaeological Association, Aus-
arqueologias alternativas que retém princí- tralian Archaeological Association e World
pios centrais da modernidade são alternati- Archaeological Congress, por exemplo—
vas de que? Bem podem se afastar de certas estabeleçam como prioritário o treinamento
práticas arqueológicas, especialmente colo- de arqueólogos indígenas.
niais, e podem até mesmo colocar suas pró- De acordo com Nicholas (2008:1660), a
prias agendas, mas aceitam os princípios arqueologia indígena é caracterizada por
básicos da disciplina. As arqueologias indí- um ou mais dos aspectos seguintes:
genas são a melhor coisa que tem acontecido (1) A participação proativa ou a consulta
à arqueologia desde que o consenso científi- dos povos indígenas na arqueologia; (2)
co foi quebrado há uns vinte anos: o outro Uma declaração política preocupada com
étnico já não é mais a nêmeses, mas um alia- questões de autogoverno, soberania, direitos
do.2 Inclusive, alguns autores indígenas ofe- à terra, identidade e património dos indíge-
recem dissolver dicotomias radicais: “A ar- nas; (3) Uma empresa pós-colonial dese-
queologia indígena fica, talvez, em uma nhada para descolonizar a disciplina; (4)
posição única para desafiar, criativamente, Uma manifestação de epistemologias indí-
categorias hegemônicas e para desmantelar genas; (5) A base para modelos alternativos
marcos binários como ‘indígena’ e ‘arqueó- de gestão e administração do patrimônio
logo’” (Colwell-Chanthaphonh et al. cultural; (6) O produto de escolhas e ações
2010:231).3 Apesar das boas intenções, a de- feitas por arqueólogos individuais; (7) Um
saparição de dicotomias importantes em meio de poder e revitalização cultural ou re-
termos de confrontação serve, sobre tudo, sistência política; (8) Uma extensão, avalia-
para unir e solidificar a arqueologia ao fazê- ção, crítica ou aplicação da teoria arqueoló-
-la mais democrática. Se a dicotomia indíge- gica atual.
nas/arqueólogos foi acalorada e enérgica faz Como podem os pontos 3, 4 e 5 serem
um tempo, excludente e irreconciliável, as reconciliados com o ponto 8, que além de
arqueologias indígenas procuram dissolve- postular uma crítica da teoria arqueológica
atual também abraça sua extensão? O traba-
2- O jogada mais perfeita da arqueologia nos tempos mul- lho teórico que seguiu ao livro do Joe Wa-
ticulturais —mudar para continuar fazendo o mesmo que
sempre tem feito— imita o que fizeram os antropólogos tex- tkins Indigenous archaeology (2000), que
tualistas da década de 1980 e sobre quem Johannes Fabian
(1990:761) escreveu: "Devemos, portanto, temer que o que
“começou a enquadrar, explicitamente, a
parece ser uma crise é apenas barulho feito por os antropó- arqueologia indígena como um esforço para
logos que se reagrupam em suas tentativas de salvar seus
privilégios de representação?" Salvar privilégios: é isso. Os desafiar as bases coloniais da disciplina”
arqueólogos, membros de uma minoria cognitiva privilegia-
da, não querem perder os privilégios concedidos a eles por
(Colwell-Chanthaphonh et al. 2010:228; ver
serem os proprietários de uma forma de representação que, Atalay 2006, Smith e Wobst 2005), está base-
no máximo, eles estão dispostos a compartilhar, mas não
a mudar. ado no implícito de que uma arqueologia
3- Um argumento semelhante tem sido feito pelo Paul Lane
“descolonizada” pode reter o núcleo moder-
(2011:17); em sua opinião, um caminho para o avance de no da disciplina. Como podem as arqueolo-
uma arqueologia genuinamente colaborativa é abandonan-
do "a distinção implícita entre sistemas de conhecimento 'ar- gias alternativas ser definidas “como múlti-
queológico' e 'local'/’indígenas’ ", porque "isso apenas serve
para reforçar uma falsa distinção entre suas respectivas for-
plos discursos e práticas sobre as coisas de
ças em escalas globais e locais de aplicação." outro tempo” (Hamilakis 2011:408) se eles
ferente vemos com preocupação como as phonh et al. 2010:233) o tempo provou (e
possibilidades alternativas terminam refor- ele vai faze-lo ainda mais firmemente nos
çando à disciplina no processo de torná-la próximos anos) que os compromissos disci-
delas. Talvez seja a hora de seguir em frente, plinares e as práticas metodológicas não fo-
não propondo arqueologias alternativas, ram ampliados senão aprofundados —ou
mas buscando construir alternativas para a seja, um compromisso decidido com a cos-
arqueologia que realmente sejam alternati- mologia ocidental e uma fé cega na existên-
vas para a cosmologia ocidental. cia de um passado enterrado e criptografa-
O manifesto sobre a arqueologia indíge- do.6 Por que não afirmar, então, que “a
na recentemente subscrito por alguns de incorporação das perspectivas indígenas
seus defensores mais articulados e eloquen- em nosso trabalho proporciona amplos be-
tes (Colwell-Chanthaphonh et al. 2010:233) nefícios intelectuais para a disciplina”
declara enfaticamente: (Colwell-Chanthaphonh et al. 2010:233)?
Por mais de um século, a maioria políti- De qualquer forma, por que eles teriam que
ca, um seleto grupo de auto-nomeados mor- ser ampliados se ainda os adversários mais
domos habilitados pela riqueza e afiançados declarados da modernidade, como os povos
por leis, têm dominado a investigação ar- indígenas, vêm ao encontro da arqueologia?
queológica. A arqueologia indígena é a ten- Estar de acordo com a concepção moder-
tativa de inserir e integrar diferentes pers- na do passado (enterrado e material) pode
pectivas do passado no estudo e gestão do ser tanto um movimento estratégico daque-
patrimônio — para acomodar os diferentes les que opõem a modernidade em outros as-
valores que existem para a arqueologia na pectos, ou bem um meio legítimo de cons-
nossa democracia pluralista. trução histórica, como muitos defensores da
São “os diferentes valores que existem arqueologia indígena têm afirmado com de-
para a arqueologia” o que uma democracia terminação. Mas, se aceitar o núcleo ontoló-
pluralista busca no “estudo e gestão do pa- gico e metafísico duro da arqueologia ocorre
trimônio”? Se a democracia contemporânea à custa de outras cosmologias e contribui
procura proteger os direitos das minorias para apagar oposições radicais, o preço é
para que eles não sejam devorados por muito alto. No entanto, Joe Watkins
aqueles das maiorias, essa proteção só pode (2000:178) é otimista sobre o futuro da ar-
ser consagrada outorgando acesso às cos- queologia desde uma perspectiva indígena:
movisões dominantes? Essa é uma concep- “Os arqueólogos são lentos para mudar, mas
ção amplamente difundida da democracia eles estão mudando.” O mesmo otimismo so-
—de fato, é a maneira favorecida pelas so- bre o futuro da disciplina pode ser ouvido
ciedades multiculturais. Embora os autores naqueles que promovem uma abordagem
do manifesto da arqueologia indígena são etnográfica em arqueologia (Hollowell e
claros em dizer que a democracia que eles Mortensen 2009; Hamilakis 2011). Eu não
têm em mente “não significa a simples aber- sou tão otimista. Duas condições contempo-
tura do campo para todos, senão que deve râneas solidificam o isolamento da arqueolo-
encorajar-nos a perseguir um terreno co- gia, aprofundam as suas origens modernas e
mum, pesquisando como trabalham pontos dificultam a sua militância política transfor-
de vistas diferentes na ampliação dos com- 6- Isso é exatamente o que a filósofa da arqueologia Ali-
promissos filosóficos e as praticas metodo- son Wylie (2005) tem afirmado por muito tempo: o com-
promisso com os princípios da arqueologia qua realismo
lógicas da disciplina” (Colwell-Chantha- (científico).
madora: (a) a sua acomodação às políticas …a luta dos movimentos sociais inspira-
multiculturais, especialmente a correção po- dos no projeto duma “política da identida-
lítica e a mercantilização da alteridade, e (b) de” não alcançará a radicalidade do pluralis-
a sua articulação com o mercado de contrato, mo que pretende afirmar a menos que os
na qual a prática disciplinar é voltada para as grupos insurgentes partam de uma consciên-
necessidades do desenvolvimento. Acho que cia clara da profundidade de sua “diferença,”
o consentimento subalterno à arqueologia quer dizer, da proposta de mundo alternativa
moderna, só aparentemente reformada, em que guia sua insurgência. Diferença que aqui
breve pode ser adicionado à lista. De fato, um entendo não com referência a conteúdos
estabelecimento “reformado” tem o prazer substantivos em termos de “costumes” supos-
de compartilhar o que mais preza com sujei- tamente tradicionais cristalizadas, imóveis e
tos anteriormente marginalizados: a coerên- impassíveis frente ao acontecer histórico, se-
cia epistêmica disciplinar. Os seus ganhos não como diferença de meta e perspectiva por
são muitos: continua praticando a arqueolo- parte de uma comunidade ou um povo.
gia como foi estabelecida pelos padrões mo-
dernos (não muda nada do seu tecido meta-
físico e ontológico); o faz em público
(generosamente); se sente mais democrático
(ao compartilhar); fica mais perto do que
costumava chamar o “selvagem,” apazigua
suas exigências enquanto convencendo-se de
que a proximidade disciplinar equivale a co-
alescência espacial, temporal e cultural. En-
quanto isso, a arqueologia continua espa- Bibliografia
lhando os frutos do Iluminismo e recebe
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