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ARTIGO

“Escavando”
arqueologias
Alternativas
Cristóbal Gnecco11

1- Universidad del Cauca


cgnecco@unicauca.edu.co

"escavando" arqueologias Alternativas Cristóbal Gnecco


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Resumo
As arqueologias alternativas têm sido Abstract
definidas como programas de pesquisa bem Alternative archaeologies have been defi-
diferentes daqueles da arqueologia tradicio- ned as research programs different from
nal, mesmo posicionando assuntos tão cru- those of traditional archeology, even posi-
ciais como a descolonização e a luta contra tioning such crucial issues as decolonization
as hierarquias acadêmicas. Porém, elas and the struggle against academic hierar-
compartilham o núcleo filosófico da disci- chies. However, they share the philosophical
plina, herdado de sua origem moderna, so- core of the discipline, inherited from its mo-
bretudo a função epistêmica de escavar (e as dern origins, especially the epistemic func-
suas relações associadas). Este artigo busca tion of digging (and its associated rela-
responder se esse compartilhar ainda per- tionships). This article seeks to answer
mite (ou não) que elas sejam consideradas whether this sharing still allows (or not) to
alternativas. consider them alternative.

Palavras-chave: arqueologias alter- Keywords: alternative archaeologies,


nativas, arqueologias indígenas, escavar. indigenous archaeologies, digging.

REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 25 - N.2: 08-22 - 2012


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INTRODUÇÃO queologia: a escavação como o médio mais


Escavar é uma atividade física — esgota- legítimo para capturar a materialidade do
dora, feita com cuidado, sujeita a um trei- passado. A escavação e a materialidade do
namento rigoroso— central à prática arque- passado são conceitos tão sólidos que sua
ológica; no entanto, seu caráter empírico (o existência parece estar além de qualquer
de uma atividade que requer habilidades questão. Eles simplesmente são.
físicas, bem como o controle da mente) es- A arqueologia está baseada na ideia com-
conde uma outra de suas facetas: escavar partilhada de que o passado está enterrado e
também é um tropo poderoso, intimamente de alguma maneira cifrado/codificado nas
ligado ao tropo de um passado enterrado. coisas. O segredo do grêmio — cujo acesso
Na verdade, é bem ali, na relação emara- outorga privilégios e um sentido corporati-
nhada desses dois tropos, que a singularida- vo e cujo treinamento é a raison d’être do
de, relevância e até mesmo a importância da aparelho institucional—é como decifrar o
arqueologia estão baseadas; essa relação dá passado que fica enterrado e codificado; en-
acesso ao passado (por meio da escavação), fim, como descobrir os significados enterra-
muito mais do que as histórias baseadas em dos. O bom desempenho no processo de
documentos porque atinge uma profundi- encontrar/decodificar é a essência do jogo.
dade temporal maior. Os arqueólogos ainda O significado dado a esse processo tem mu-
se apegam à ideia de que a arqueologia está dado ao longo dos anos, desde o senso co-
em uma posição única para explicar a pro- mum não regulamentado até os protocolos
fundidade temporal e, portanto, as varia- científicos altamente ritualizados. O movi-
ções e mudanças (mas também as continui- mento mais importante (revolucionário) em
dades) que não estão disponíveis para o arqueologia nas últimas três ou quatro déca-
arsenal teórico e metodológico de outras das tem sido levar pessoas vivas (ou suas
disciplinas sociais. A forte presença da pro- culturas, como sejam definidas) para forta-
fundidade temporal na especificidade da lecer a hermenêutica arqueológica. As dife-
arqueologia solidifica a preeminência meta- rentes versões da etnoarqueologia articu-
física de escavar. lam-se com esse movimento, bem como as
chamadas arqueologias alternativas, não
UM CONSENSO (NÃO TÃO) QUEBRADO importa quão tão diferentes elas possam pa-
O consenso sobre a arqueologia (sobre recer. Os procedimentos para descobrir/
sua natureza, seu propósito, seus meios de descodificar tem mudado; em contraste,
avaliação), pacientemente construído pelo permanecem inalteradas a definição e o sig-
programa científico na década de 1960, foi nificado do que é coberto/codificado e, por-
destruído duas décadas depois pelo surgi- tanto, à espera de ser descoberto/descodifi-
mento de programas dissidentes dentro da cado para o bem do conhecimento
disciplina e pela confrontação subalterna. arqueológico —ou, como os arqueólogos
As vítimas dessa destruição foram a objeti- preferem dizer, para o bem da humanidade.
vidade e a higiene epistêmica, legados posi- Este último, o conhecimento arqueológico,
tivista dos quais a disciplina começou a se está completamente naturalizado.
afastar desde então, embora com relutância. Qualquer história mínima da disciplina
No entanto, ainda há um forte consenso em teria que aceitar que o consenso científico
torno de dois objetos discursivos robustos, foi quebrado há décadas. Mas isso realmente
que se tornaram o núcleo mais estável da ar- aconteceu assim? Foi destruído algo que

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mantém o seu núcleo ontológico e metafísi- mam a luz nas suas próprias mãos. O mes-
co? Foi destruído algo (a arqueologia) que mo acontece com o passado, selado e
sobrevive graças a sua associação aberta modelado na arquitetura do cosmos, a arte
com a cosmologia da modernidade, apoiado suprema de Deus. Agora o passado é algo
pelo tropo da descoberta? que está na sua materialidade e seu sentido
algo a ser descoberto. O passado torna-se
GOYA E O OLHAR MODERNO uma entidade que pode ser conhecida pelos
Dois retratos do pintor espanhol Fran- sentidos, comandados pela razão, e deixa de
cisco de Goya, A maja vestida e A maja des- ser algo revelado pela palavra divina.
nuda, encarnam o olhar moderno e apon- Com esses argumentos à mão é fácil de
tam para a obsessão ocidental com ver o que os arqueólogos fazem —e por quê.
descobrir, despir, despojar. O passo da maja Como disciplina ocidental, a arqueologia
vestida à maja desnuda indica a estratégia herdou o olhar moderno. O equivalente ar-
moderna (a da ciência): a maja nua encarna queológico de despir, descobrir y despojar e
a verdade do que é exposto ao olhar na sua escavar. O passado fica enterrado, então, e
realidade absoluta. O movimento de volta também é material. Para conhecê-lo, o pas-
para a maja vestida, apenas oculta: a verda- sado (que fica enterrado na escuridão na sua
de antes exposta é raptada e levada para o encarnação material) tem que ser exposto,
invisível, onde deixa de ser real para se tor- despojado, despido, iluminado, quer dizer,
nar ideologia. A ideia do nu como revelação escavado. Os arqueólogos escavam porque o
tem uma longa história no pensamento oci- passado está lá, em algum lugar, na sua for-
dental e representa a diferença entre um ma material: enterrado. A única maneira de
mundo real e um ilusório. A genealogia de reviver o passado (ou seja, torná-lo real) é
despojar, despir e descobrir assinala ao Ilu- através de sua saída à luz por médio da esca-
minismo como um momento transcenden- vação. Predicado sobre esses fatos, não é de
te da tradição judaico-cristã; desde então, a estranhar que o mais alto nível de negócio
capacidade de expor o que está enterrado se arqueológico seja saber onde escavar para
torna no centro de operação do conheci- recuperar o passado enterrado. Mesmo as
mento moderno. evidências superficiais contribuem para o
Desde Kant (1964) O argumento central efeito: se elas são recuperadas adequada-
do Iluminismo tem sido a oposição entre a mente, informam sobre o passado material
luz e as trevas —e suas dicotomias acompa- como era quando ele foi enterrado.1
nhantes: bem/mal, livre/submetido, conhe- Ficar abaixo da superfície é a condição
cimento/ignorância. Quando Kant (1964) que dá o rótulo de arqueológico às coisas.
teve que escolher um lema para o Iluminis- Considere a distinção bem conhecida pro-
mo propus sapere aude (atreva-se a conhe- 1- A condição dos elementos superficiais é única a este res-
cer); assim ele quis indicar que os seres hu- peito. Eles realmente estão em um patamar metafísico: tec-
nicamente pertencem ao contexto sistêmico mas informam
manos poderiam passar da custódia à livre sobre o contexto arqueológico —estou usando os termos pro-
postos por Schiffer (1972). O ponto importante para o meu
vontade pela iluminação, desta vez não divi- argumento, no entanto, é que apesar de que sua condição
na (a luz descendo dos céus para os seres particular pareceria exclui-los das escavações, não aconte-
ce assim. Os arqueólogos tratam os elementos superficiais
humanos), mas plenamente humana (a luz como se eles estiveram enterrados, imaginando o como eram
e como eles estavam localizados antes de serem deslocados
que ilumina a escuridão pelo uso consciente de seu depósito arqueológico. Os elementos superficiais tam-
e responsável da razão). Deus morre no exa- bém são escavados —as técnicas atuais para a recuperação
"adequada” de elementos de superfície são iguais às de qual-
to momento em que os seres humanos to- quer escavação.

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posta por Michael Schiffer (1972) entre o da antropologia, Johannes Fabian (1990) e
contexto sistêmico e arqueológico; Schiffer Michel-Rolph Trouillot (2003), destacaram
usou este ultimo conceito para descrever “os a reificação do campo —esse lugar emble-
materiais que passaram por um sistema cul- mático onde acontece o trabalho de cam-
tural e agora são investigados pelos arqueó- po— como a operação discursiva mais acei-
logos” (Schiffer 1972:157). Apesar de não tada na antropologia, a fonte mais legítima
especificar que o contexto arqueológico está da compreensão antropológica O campo
enterrado, todo o texto é um comentário a reificado (vaziado de qualquer carácter his-
essa afirmação implícita. Caso contrário, tórico-contextual) é o lugar onde o antropó-
como podemos aceitar que o contexto sistê- logo encontra o selvagem e onde as intera-
mico defina elementos envolvidos em um ções intersubjetivas são traduzidas em
sistema comportamental, enquanto o con- distancia profissional. Da mesma forma, o
texto arqueológico o faz com “materiais que trabalho de campo do arqueólogo e a esca-
passaram por um sistema cultural”? Os ele- vação são o lugar e a operação reificados que
mentos de um contexto arqueológico de al- possibilitam a descoberta de um passado
guma forma têm sido separados de um sis- também reificado. Além disso, as escavações
tema de comportamento por descarte arqueológicas são cercadas por proscrições
intencional ou acidental; estão, portanto, legais. Em muitos países, como a Colômbia,
longe do mundo dos vivos —já tem “passa- o ato de escavar é definido, controlado e pu-
do através de um sistema cultural” e não nido por regras institucionais promulgados
mais pertencem a um “sistema de compor- pelo Estado, aplicadas por instituições poli-
tamento.” Como entram de volta a um con- ciais (como o Instituto Colombiano de An-
texto sistémico, isto é, a um novo sistema de tropología e Historia) e curtidas pelos ar-
comportamento? Só existe uma maneira: queólogos, esses indivíduos estranhos que
tirando-os fora do contexto arqueológico, prosperam em outra potente dicotomia rei-
escavando-os. O produtor final desta opera- ficada, legal/ilegal, escondendo a historici-
ção é o arqueólogo. (Não surpreendente- dade de qualquer senso moral. Autorizar
mente, de acordo com Schiffer, os elementos aos arqueólogos para escavar, ao mesmo
de um contexto arqueológico “estão agora a tempo em que se proíbe a outros de fazê-lo,
ser investigado pelos arqueólogos.”) só procura garantir o acesso dos profissio-
Não há dúvida: os arqueólogos escavam. nais ao património, mais uma entidade rei-
Eles são parte do grêmio quando sabem ficada.
onde e como escavar. A experiência do tra- Assim se desenrola uma longa cadeia de
balho de campo (inteiramente legitimada reificações.
pela escavação) é a ocasião essencial, a fonte Tem mais sobre a naturalização. A alega-
da arqueologidade —o sentido de ser um ar- ção arqueológica de que os procedimentos
queólogo. Mas essa experiência é despojada de investigação, incluindo a escavação, tor-
de seu senso de evento e reificada como um naram-se autônomos por médios técnicos
encontro com o passado —como se este fos- ajuda a esconder que estão ligados a cosmo-
se uma coisa viva, externa aos sujeitos. Por logias poderosas; essa alegação os mostra
que não ver o campo de forma diferente, como simples operações técnicas em um
longe da naturalização produzida pela vazio cultural. Mas se a arqueologia está ba-
aprendizagem do ofício? Dois dos críticos seada na ideia de que o passado está enterra-
mais articulados da ontologia fundacional do, a compreensão que oferece está necessa-

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riamente ligada a sua escavação. Os sistentes ao tempo e postulam que a


dispositivos arqueológicos produtores de escuridão reina no profundo, a luz na super-
verdade são equivalentes a escavar camadas fície. O mito de Orfeu e o da caverna expos-
de significado. Qualquer discussão sobre a to pelo Platão na República são bons exem-
modernidade da arqueologia tem de lutar plos. Orfeu perde a Eurídice, quem o segue
com o fato, simples e breve, que a escavação fora do mundo dos mortos, porque ele trai a
é o tropo mestre das operações disciplinares. atração da luz e olha de novo a escuridão,
A escavação descobre verdades objetivadas onde ela fica. O escuro mundo inferior é
em coisas que evitam o tempo —mesmo a mostrado como o oposto triste e trágico da
teoria de formação procura isolar as traças luz, onde a felicidade e a satisfação são pos-
verdadeiras das acrescentadas (e.g., Sullivan síveis. No mesmo sentido, no mito da caver-
1978). As verdades/coisas reveladas pela ar- na Sócrates assinalou que
queologia pertencem à ontologia essencia- … na região do conhecível a ultima coisa
lista. Curiosamente, no entanto, as versões que pode ser vista, e com muito esforço, é a
pós-modernas da arqueologia que postulam ideia do bem; mas depois de ver, há que con-
que o significado histórico é contextual, par- cluir que ela é, na verdade, a causa de todas
ticipam de esta ontologia: as coisas arqueo- as coisas serem corretas e belas —no reino
lógicas ainda são o caminho para as verda- do visível é a fonte de luz e sua soberana;
des arqueológicas (não importa o quão no reino do inteligível também é soberana e
fracas, hesitantes, estratégicas e até políticas outorga verdade e inteligência — e de que o
elas sejam), graças a sua descoberta pela es- homem que vai agir com prudência, em pri-
cavação. Na verdade, essa coabitação do vado e em público, deve ve-la (Platão
construtivismo pós-moderno com um es- 1993:327).
sencialismo mais antigo não é uma curiosi- Os mitos construem ontologias. O mito
dade, mas uma tensão que expõe claramente da modernidade (a modernidade como
o núcleo moderno da disciplina e a fraqueza mito) é poderoso e durável e tem naturaliza-
de muitos ataques contra ele. As arqueolo- do o caráter histórico de seus conceitos. Pos-
gias alternativas (práticas disciplinares su- tula, de maneira central, a luz como a prove-
postamente desligadas de interesses e con- dora de liberdade, conhecimento e verdade.
troles ocidentais) também estão presas a este Como uma extensão deste significado ro-
fato, como vou mostrar depois. busto, a escavação é o recurso definitivo por
Tal como acontece com as ideologias, das meio do qual o passado como matéria vem
quais não podemos escapar mas sim falar à luz para ser decodificado como verdadei-
através delas (Hall 2010:299), também po- ro. Portanto, não é surpreendente que um
demos falar através da escavação. Nem ca- arqueólogo africano escreveu que...
tarse nem higiene, falar através da escavação Apenas escavando as conceituações das so-
é uma estratégia para ver: ao fazê-lo pode- ciedades rurais e urbanas da África, espe-
mos entender como ela tem sido fundamen- cialmente como são expressadas nas fontes
tal para a construção da estrutura metafísica históricas orais e etnográficas, podemos
e ontológica da arqueologia, podemos ver acessar o tecido dos sistemas de conheci-
com novos olhos, ver de novo. Os mitos são mento africanos... Entender esses sistemas
bons lugares para avaliar como pode se de- de conhecimento é uma base sólida para a
senvolver este novo olhar. Os mitos que sub- aprendizagem dos planos sociais e ambien-
jazem a modernidade são totalizantes e re- tais e dos desenhos das populações do pas-

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sado e para formular ações para o planeja- relacionada como o arqueológico, mas abor-
mento social e ambiental atual (Andah dada desde uma cosmologia diferente, a es-
1995:173; adicionei os itálicos). cavação não foi contemplada como uma
Devemos entender este “apenas escavan- forma de encontrar aos antepassados. Quan-
do” metaforicamente já que alude às “fontes do o território foi caminhado os xamãs tive-
orais históricas e etnográficas”? Mesmo se ram aos ancestres falando através de seus
aceitamos o seu uso metafórico, qual é o sig- traços visíveis —que, segundo os relatos
nificado de “escavar” senão o encontro do modernos, sempre tem estado a plena luz.
que está enterrado? Esta mitologia permite ver e sentir de outra
Outra questão surge quando examina- maneira. Em vez da obsessão moderna com
mos outras cosmologias. Na mitologia de a luz e o despir, se deleita em encontrar o
muitos povos ameríndios andinos o cosmos que nunca tem estado na escuridão. Por isso
é organizado em três níveis. Uma divisão de pode ser classificada como uma forma alter-
um mundo superior, este mundo e o mundo nativa de ver porque ao tomar distancia da
inferior é bastante comum. Embora possa mitologia moderna posiciona-se em outro
ser sincrética com o dogma cristão, também lugar no horizonte do olhar. Posso dizer o
parte dele: o mundo inferior (onde residem mesmo sobre as arqueologias alternativas
os espíritos e os ancestres, entre outros se- que surgiram nas últimas décadas?
res) está sempre em contato com este mun-
do, principalmente por meio de corpos de ARQUEOLOGIAS ALTERNATIVAS?
água (lagos, rios, cachoeiras). Não tem que As arqueologias alternativas podem ser
ser descoberto para ser. Os seres do mundo descritas como praticas afastadas dos prin-
inferior estão vivos, não mortos. Isto se es- cipais princípios disciplinares. Elas podem
tende também a outras áreas simbólicas. até mesmo ser vistas como um desafio à he-
Nos conflitos étnicos das últimas três déca- gemonia desfrutada pela arqueologia acadê-
das, a recuperação da cultura tem sido fun- mica/positivista por tanto tempo, uma do-
damental. Os seres que habitam o mundo minação construída por um consentimento
inferior tornam-se fornecedores culturais hoje despedaçado. As perspectivas feminis-
através da mediação dos xamãs. O significa- tas e indígenas têm sido destacadas como as
do de recuperação é essencial para as agen- propostas dissidentes mais relevantes dentro
das étnicas, já que implica recuperar o que da disciplina, rotuladas como arqueologias
foi tirado, especialmente pelo colonialismo. alternativas quando totalmente desenvolvi-
Há uma grande diferença entre recuperação das em programas por conta própria. Po-
e escavação: a primeira envolve recuperar o rém, estão realmente afastadas da arqueolo-
que já está vivo; o segunda refere a matéria gia dominante, desafiando a sua dominação?
morta, apenas animada pela hermenêutica Elas são realmente alternativas? Uma ma-
arqueológica. Assim, em muitas cosmolo- neira de esboçar uma resposta é avaliando a
gias não modernas a relação com o passado, sua perspectiva metafísica e ontológica. Ao
com os antepassados​​, não está mediada por fazer isso, é possível ver que mais freqüente-
processos que revelam-despem-escavam. mente do que não as arqueologias alternati-
Portanto, elas têm fortes razões cosmológi- vas retêm os princípios modernos da prática
cas para rejeitar a escavação. Em uma pes- disciplinar.
quisa na qual participei com uma comuni- Considerem o caso das chamadas arque-
dade Nasa do sul-oeste de Colômbia ologias indígenas (Watkins 2000; Smith e

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Wobst 2005), que aceitam sem discussão a -la. Não é de surpreender, então, que ao re-
idéia moderna de que o passado fica enter- conhecer esta oferta de dissolução os princí-
rado e tem que ser escavado/descoberto. As- pios éticos de muitas associações —os de
sim surge uma questão importante: essas Canadian Archaeological Association, Aus-
arqueologias alternativas que retém princí- tralian Archaeological Association e World
pios centrais da modernidade são alternati- Archaeological Congress, por exemplo—
vas de que? Bem podem se afastar de certas estabeleçam como prioritário o treinamento
práticas arqueológicas, especialmente colo- de arqueólogos indígenas.
niais, e podem até mesmo colocar suas pró- De acordo com Nicholas (2008:1660), a
prias agendas, mas aceitam os princípios arqueologia indígena é caracterizada por
básicos da disciplina. As arqueologias indí- um ou mais dos aspectos seguintes:
genas são a melhor coisa que tem acontecido (1) A participação proativa ou a consulta
à arqueologia desde que o consenso científi- dos povos indígenas na arqueologia; (2)
co foi quebrado há uns vinte anos: o outro Uma declaração política preocupada com
étnico já não é mais a nêmeses, mas um alia- questões de autogoverno, soberania, direitos
do.2 Inclusive, alguns autores indígenas ofe- à terra, identidade e património dos indíge-
recem dissolver dicotomias radicais: “A ar- nas; (3) Uma empresa pós-colonial dese-
queologia indígena fica, talvez, em uma nhada para descolonizar a disciplina; (4)
posição única para desafiar, criativamente, Uma manifestação de epistemologias indí-
categorias hegemônicas e para desmantelar genas; (5) A base para modelos alternativos
marcos binários como ‘indígena’ e ‘arqueó- de gestão e administração do patrimônio
logo’” (Colwell-Chanthaphonh et al. cultural; (6) O produto de escolhas e ações
2010:231).3 Apesar das boas intenções, a de- feitas por arqueólogos individuais; (7) Um
saparição de dicotomias importantes em meio de poder e revitalização cultural ou re-
termos de confrontação serve, sobre tudo, sistência política; (8) Uma extensão, avalia-
para unir e solidificar a arqueologia ao fazê- ção, crítica ou aplicação da teoria arqueoló-
-la mais democrática. Se a dicotomia indíge- gica atual.
nas/arqueólogos foi acalorada e enérgica faz Como podem os pontos 3, 4 e 5 serem
um tempo, excludente e irreconciliável, as reconciliados com o ponto 8, que além de
arqueologias indígenas procuram dissolve- postular uma crítica da teoria arqueológica
atual também abraça sua extensão? O traba-
2- O jogada mais perfeita da arqueologia nos tempos mul- lho teórico que seguiu ao livro do Joe Wa-
ticulturais —mudar para continuar fazendo o mesmo que
sempre tem feito— imita o que fizeram os antropólogos tex- tkins Indigenous archaeology (2000), que
tualistas da década de 1980 e sobre quem Johannes Fabian
(1990:761) escreveu: "Devemos, portanto, temer que o que
“começou a enquadrar, explicitamente, a
parece ser uma crise é apenas barulho feito por os antropó- arqueologia indígena como um esforço para
logos que se reagrupam em suas tentativas de salvar seus
privilégios de representação?" Salvar privilégios: é isso. Os desafiar as bases coloniais da disciplina”
arqueólogos, membros de uma minoria cognitiva privilegia-
da, não querem perder os privilégios concedidos a eles por
(Colwell-Chanthaphonh et al. 2010:228; ver
serem os proprietários de uma forma de representação que, Atalay 2006, Smith e Wobst 2005), está base-
no máximo, eles estão dispostos a compartilhar, mas não
a mudar. ado no implícito de que uma arqueologia
3- Um argumento semelhante tem sido feito pelo Paul Lane
“descolonizada” pode reter o núcleo moder-
(2011:17); em sua opinião, um caminho para o avance de no da disciplina. Como podem as arqueolo-
uma arqueologia genuinamente colaborativa é abandonan-
do "a distinção implícita entre sistemas de conhecimento 'ar- gias alternativas ser definidas “como múlti-
queológico' e 'local'/’indígenas’ ", porque "isso apenas serve
para reforçar uma falsa distinção entre suas respectivas for-
plos discursos e práticas sobre as coisas de
ças em escalas globais e locais de aplicação." outro tempo” (Hamilakis 2011:408) se eles

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mantêm o núcleo ontológico da concepção vo à arqueologia (uma disciplina moderna


moderna dos tempos passados? Pode tal praticada por indígenas), mas um substanti-
“outro tempo” ser efetivamente promulgado vo que implica cosmologias alternativas em
através/desde a ontologia moderna? As ar- seus próprios termos. As arqueologias alter-
queologias alternativas têm ainda explorado nativas que mantenham os princípios bási-
outras metodologias de pesquisa (em sinto- cos da arqueologia reforçam a cosmologia
nia com cosmologias não ocidentais?), tais ocidental.
como as unidades de escavação redondas As arqueologias alternativas podem ser
propostas por Million (2005). No entanto, as comparadas com o etnodesenvolvimento, a
metodologias inovadoras aceitam escavar fim de ver como o estabelecimento rearticu-
como uma forma legítima de chegar ao pas- la dissonâncias potenciais. Em um artigo
sado; como tal, eles deixam intocada a onto- seminal sobre o tema, o antropólogo mexi-
logia que submeteu as cosmologias não oci- cano Guillermo Bonfil (1982:131) afirmou
dentais em primeiro lugar. Porém, isso é que o etnodesenvolvimento é “o exercício da
surpreendente porque um dos princípios capacidade social de um povo para cons-
principais das arqueologias indígenas, tal truir o seu futuro, beneficiando-se dos ensi-
como foi apresentado por uma de suas de- namentos de sua experiência histórica e dos
fensoras mais conhecidas, assinala que “em- recursos reais e potenciais de sua cultura,
bora o foco e os detalhes possam variar, um seguindo um projeto definido de acordo
traço comum entre as arqueologias indíge- com seus próprios valores e expectativas.”
nas que tenho observado é a incorporação, e No entanto, um documento de trabalho do
respeito para, as experiências e epistemolo- Banco Mundial (Partridge e Uquillas 1996:7)
gias de grupos indígenas no mundo” (Atalay revela o que as agências multilaterais pen-
2008:29). Como podem essas experiências e sam sobre isso: “Na linguagem do Banco
epistemologias ser respeitadas mantendo rí- Mundial, podemos dizer que para que o de-
gidos tropos modernos? Atalay mesma senvolvimento econômico seja sustentável,
(2008:30) parece avançar uma resposta: deve proporcionar novas oportunidades
Uma arqueologia em terra indígena, para as pessoas alcançarem seu potencial e
conduzida por povos nativos sem um olhar realizarem seus objetivos, tal como são defi-
crítico que inclui colaboração; que não in- nidos no seu próprio contexto cultural.” Na
corpora epistemologias indígenas e concep- verdade, o “projeto definido de acordo com
ções nativas da história, passado e tempo; ou seus próprios valores e expectativas” defen-
que descuida questionar o papel da pesqui- dido por Bonfil torna-se “novas oportunida-
sa na comunidade, seria um replicação do des para as pessoas alcançarem seu poten-
paradigma positivista arqueológico cial e realizarem seus objetivos” de acordo
dominante. com o capitalismo global. Assim, as arqueo-
As arqueologias indígenas estão em difi- logias alternativas são para a arqueologia o
culdades para garantir ser realmente alter- que o etnodesenvolvimento é para o desen-
nativas. Se o termo indígena implica manter volvimento: um adjetivo que não altera o
uma postura contra a modernidade (ou, substantivo, mas o torna mais legítimo.
pelo menos, a vontade de ser uma alternati- Se as arqueologias alternativas são consi-
va para a modernidade), onde fica a maior deradas do ponto de vista do campo, tal
parte de seu poder político e de suas pro- como foi definido pelo Pierre Bourdieu
messas utópicas, ele não pode ser um adjeti- (2002), surgem algumas coisas muito inte-

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ressantes. O campo arqueológico estaria escavar é assim contestada por apagamento.


constituído por (a) a existência de um capi- Apagando-a podemos chegar a um novo
tal comum, o arqueológico, definido por campo de saber em que não é mais tomada
uma temporalidade (progressiva, teleológi- como um fato inevitável para chegar ao pas-
ca), um alvo reificado (o passado), uma ma- sado. A arqueologia —mas também a mo-
terialidade (o passado em coisas), e uma dernidade— é falada, apresentada não como
localização (o passado em coisas enterra- uma entidade auto-evidente que “é preciso
das), e (b) pela luta para apropria-lo (em dizer, porque ele vem sem dizer” (Bourdieu,
termos de formação, participação, até mes- 1977:167), mas como uma criação histórica
mo um estilo). Em primeiro lugar, um capi- que é totalmente exprimível e pensável.
tal comum é definido através da hegemonia, A escavação apagada torna-se histórica.
isto é, por consentimento: todos os partici- A reificação da escavação como produtora
pantes no campo aceitam que o arqueológico de verdade (na qual têm sido predicadas
é seu capital comum. Em segundo lugar, o operações aparentemente díspares, como a
fato de participar na luta reproduz o campo psicanálise e o sistema jurídico) é contestada
ao aceitar as suas regras (como definir e re- por apagamento. As arqueologias alternati-
produzir o seu capital) e também reproduz vas podem assim tornar-se não arqueolo-
posições estabelecidas dentro do campo: gias; elas podem se tornar alternativas para
quem o domina, quem é subserviente ao seu a arqueologia. Na verdade, o passado tam-
domínio, quem se esforça para ser domi- bém é apagado porque incorpora uma tem-
nante. poralidade que é totalmente moderna
Mas outras alternativas são possíveis. (aquela do evolucionismo burguês) e as al-
ternativas para a arqueologia estão contra a
OUTROS MUNDOS: modernidade —alinhadas, como estão, com
Se a escavação é um dos tropos mestres diferentes horizontes sociais, longe dos
das operações arqueológicas modernas, o mandatos ocidentais. Tudo somado, esta pa-
que implicaria não escavar? Mais precisa- lestra escava até a reificacão da arqueologia.
mente, pode uma arqueologia sem escava- No entanto, ele só faz isso metaforicamente,
ção ser uma arqueologia alternativa? Se as- pois não pretende descobrir senão ajudar a
sim for, é arqueologia, afinal? Estas perguntas construir outra casa para a vida histórica.
podem ser respondidas através da reflexão Acabar com a escavação é acabar com o
sobre experiências arqueológicas que se li- condicionamento material do passado. O
vram da escavação —sentindo-as e falando passado liberado da escavação aparece em
sobre elas, enquanto sua natureza arqueoló- outros lugares: nas memórias, nas paisagens,
gica é utilizada apenas como uma referência nos ensinos, no futuro. Uma arqueologia
flutuante, não como um ponto de referência que mantém a escavação e a materialidade
contra a qual podem ser medidas. Em qual- do passado, não importa quão radical e al-
quer caso, estas arqueologias alternativas, ternativa seja, é moderna, apesar de si mes-
mesmo que não completamente arqueológi- ma. Pelo contrário, uma arqueologia sem
cas, apagam a escavação em vez de tentar escavação e sem a crença quase mística na
eliminá-la; ao fazê-lo, a escavação é lida materialidade do passado desestabiliza a
dentro de um campo diferente de significa- modernidade, a cosmologia que alimenta a
ção, em toda a sua concretude histórica. Não arqueologia. O sentido de lugar se transfor-
escavar, então, mas escavar. A reificação de ma: não é mais o local de trabalho de campo

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arqueológico —o locus icônico onde acon- presente, reconhecendo que as ocorrências


tece a escavação, estabelecido e determina- do passado não estão depositadas em mo-
do por preocupações disciplinares— mas o mentos sucessivos enquanto o tempo se
lugar da história como experiência vivida. move, mas são constitutivas desse mo-
Pensar a história como evento (relação, mento.
ação, processo) não pode mais que desesta- Mesmo um pensador heterodoxo como
bilizar o que foi estabilizado pelo trabalho Ingold, cujo trabalho é um poderoso cha-
hegemônico e ideológico. Desestabilizar o mado para levar a sério as ontologias rela-
cânone arqueológico: esse poderia ser o ob- cionais, não ocidentais, toma como certo
jetivo mínimo do apagamento das premis- que os arqueólogos escavam e que o passa-
sas modernas da disciplina. Desestabilizar o do está enterrado (“Não é que os arqueólo-
cânone, mas apenas para abrir outras portas; gos deixaram de escavar em busca da evi-
como Arturo Escobar (1998:39) afirmou so- dência de vidas passadas”). Mesmo aqueles
bre sua crítica do desenvolvimento “O obje- arqueólogos que aceitam os limites filosófi-
tivo da análise é contribuir a libertar o cam- cos da sua prática e seus envolvimentos po-
po discursivo para que a tarefa de imaginar líticos ainda salvam um campo de atuação
alternativas possa começar.” A libertação do no qual a disciplina impera: o passado como
campo discursivo da arqueologia começa ao matéria, apenas acessível por médio da es-
pensar historicamente, isto é, historicizando cavação. Qualquer abordagem “arqueológi-
os conceitos principais da disciplina, o seu ca” baseada na escavação e na materialidade
núcleo metafísico e ontológico mais estável. do passado está presa pelos princípios mo-
Implica historicizar o passado (e os meios dernos que construíram a disciplina. Nesse
para chegar a ele), essa entidade imanente e sentido, as arqueologias alternativas que
atemporal moderna em busca da qual os ar- postulam
queólogos vão com o mesmo zelo e urgência ... colaboração com as comunidades lo-
dos cavaleiros medievais atrás do Graal. A cais; o desenvolvimento de perguntas de
estratégia é de-autonomizar o passado da pesquisa e agendas que beneficiam grupos
sua matriz ocidental, tirando-o de lá, acom- locais que são desenvolvidas e aprovadas
panhando-o para viver em outro lugar. por eles; respeito e adesão às tradições lo-
Tim Ingold (2010:160) tem se aventura- cais na hora de realizar trabalho de campo e
do nas terras mutáveis da predição para de laboratório; utilização de práticas tradi-
imaginar como vão ficar a arqueologia e a cionais de gestão de recursos culturais;
antropologia daqui a quatro décadas. Nesse misturar métodos indígenas com aborda-
tempo, a arqueologia… tornou-se um ana- gens científicas; e um reconhecimento e res-
cronismo porque o tópico que ainda tem peito para a conexão ininterrupta do passa-
esse nome há muito tempo já perdeu a sua do com o presente e o futuro (Atalay
associação com a antiguidade. Não é que os 2008:30)
arqueólogos deixaram de escavar em .… também aceitam que os vestígios do
busca da evidência de vidas passadas, mais passado estão codificados em coisas enter-
do que os etnógrafos deixaram de partici- radas. Supostamente, elas adotam a arqueo-
par nas vidas que estão acontecendo ao seu logia a fim de engajá-la “de forma diferen-
redor, no que chamamos o presente. Mas te:”
eles abandonaram a pretensão de que o pas- Defendo que o objetivo de pesquisar e
sado é mais velho, ou mais antigo, do que o desenvolver abordagens indígenas na ar-

"escavando" arqueologias Alternativas Cristóbal Gnecco


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queologia não é desmantelar a prática ar- ções colonialista, nacionalista e imperialista


queológica ocidental…4 A arqueologia não é do passado” (Atalay 2008:31)? É a ontologia
inerentemente boa ou ruim; é a sua aplica- moderna realmente necessária para reforçar,
ção e a sua prática as que têm o potencial de aprofundar e ampliar as concepções alterna-
privar e ser usadas como forças colonizado- tivas da história? As respostas afirmativas a
ras (Atalay 2008:33). estas questões só podem ser tautológicas:
Assim, a sentido colonial da arqueologia qualquer informação arqueológica destina-
não descansa em si (“arqueologia não é ine- da a server necessidades alternativas (indí-
rentemente boa ou ruim”), mas na forma genas ou não) só pode cumprir o seu papel
como foi usada. Esta declaração dispensa à se é produzida por interpretações alternati-
ontologia moderna de qualquer culpa na vas.
composição e estruturação do mundo nos Mas pode muito bem ser o caso que ou-
últimos cinco ou seis séculos e deixa a culpa tros mundos não precisam da arqueologia
para seus praticantes. É precisamente neste predicada pela ontologia moderna. Peter
tipo de raciocínio onde repousa mais con- Schmidt (1995:119) escreveu que “a maior
fortavelmente o apregoado triunfo da mo- parte da história antiga da África só é acessí-
dernidade: a modernidade não produz con- vel através de abordagens arqueológicas” e,
sequências porque é neutra; os erros, se portanto, que “há razão para centrar a aten-
houver, tem que ser atribuídos, somente, aos ção, mais uma vez, nas construções arqueo-
modernizadores descontrolados.5 Assim, no lógicas do passado como um meio para
processo de adoção disciplinar, surge uma construir uma história africana independen-
arqueologia remodelada: te, autêntica e distintiva;” ainda, ele reconhe-
Ao invés de desmantelamento, a arqueo- ceu um paradoxo no seu argumento:
logia exige reflexão crítica e uma mudança Ao mesmo tempo, a arqueologia é uma
positiva se é para continuar a ser relevante e atividade tipicamente ocidental. Seus
eficaz. As abordagens da arqueologia indí- paradigmas e epistemologias dominantes
gena oferecem um conjunto de ferramentas muitas vezes colidem com as necessidades
para usar na construção de uma mudança históricas, as visões do passado, e as formas
positiva no interior da disciplina, mas estas de estruturação do tempo e do espaço na
são ferramentas, conceitos, epistemologias, África. Assim, um paradoxo é desdobrado:
e experiências para remodelar, não para des- um repertório de técnicas e abordagens que
mantelar (Atalay 2008:33). promete maneiras significativas para recu-
É o conhecimento “agregado” fornecido perar os passados ​​africanos até então
por uma arqueologia remodelada realmente obscurecidos é acompanhado por pressu-
necessário mais do que como uma força postos teóricos que estão, muitas vezes, fora
para “falar de volta ao poder das interpreta- de sintonia com as sensibilidades, necessida-
4- Na mesma linha, falando sobre como a "multivocalidade"
des e estruturas africanas (Schmidt
em arqueologia deve implicar compartilhar a autoridade 1995:119).
sobre as coisas e os discursos arqueológicos, Colwell-Chan-
thaphonh et al. (2010:233) afirmam que "compartilhar a Como pode ser resolvido esse paradoxo?
autoridade o não exige nenhuma alteração dos atributos
científicos mas apenas para a pretensão subjacente de a pro-
Tornando local o que a modernidade quer
priedade científica do passado, livre dos contextos sociais e universal? Isso não é uma maneira rápida
políticos que cercam a arqueologia" (adicionei os itálicos).
para reforçar a modernidade? Esta não é
5- Este é o mesmo argumento geral usado para justificar
o capitalismo, amplamente defendido pelas ações de atores
uma questão menor. Aqueles de nós que es-
"alternativos," como os ambientalistas. tamos interessados ​​em uma arqueologia di-

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ferente vemos com preocupação como as phonh et al. 2010:233) o tempo provou (e
possibilidades alternativas terminam refor- ele vai faze-lo ainda mais firmemente nos
çando à disciplina no processo de torná-la próximos anos) que os compromissos disci-
delas. Talvez seja a hora de seguir em frente, plinares e as práticas metodológicas não fo-
não propondo arqueologias alternativas, ram ampliados senão aprofundados —ou
mas buscando construir alternativas para a seja, um compromisso decidido com a cos-
arqueologia que realmente sejam alternati- mologia ocidental e uma fé cega na existên-
vas para a cosmologia ocidental. cia de um passado enterrado e criptografa-
O manifesto sobre a arqueologia indíge- do.6 Por que não afirmar, então, que “a
na recentemente subscrito por alguns de incorporação das perspectivas indígenas
seus defensores mais articulados e eloquen- em nosso trabalho proporciona amplos be-
tes (Colwell-Chanthaphonh et al. 2010:233) nefícios intelectuais para a disciplina”
declara enfaticamente: (Colwell-Chanthaphonh et al. 2010:233)?
Por mais de um século, a maioria políti- De qualquer forma, por que eles teriam que
ca, um seleto grupo de auto-nomeados mor- ser ampliados se ainda os adversários mais
domos habilitados pela riqueza e afiançados declarados da modernidade, como os povos
por leis, têm dominado a investigação ar- indígenas, vêm ao encontro da arqueologia?
queológica. A arqueologia indígena é a ten- Estar de acordo com a concepção moder-
tativa de inserir e integrar diferentes pers- na do passado (enterrado e material) pode
pectivas do passado no estudo e gestão do ser tanto um movimento estratégico daque-
patrimônio — para acomodar os diferentes les que opõem a modernidade em outros as-
valores que existem para a arqueologia na pectos, ou bem um meio legítimo de cons-
nossa democracia pluralista. trução histórica, como muitos defensores da
São “os diferentes valores que existem arqueologia indígena têm afirmado com de-
para a arqueologia” o que uma democracia terminação. Mas, se aceitar o núcleo ontoló-
pluralista busca no “estudo e gestão do pa- gico e metafísico duro da arqueologia ocorre
trimônio”? Se a democracia contemporânea à custa de outras cosmologias e contribui
procura proteger os direitos das minorias para apagar oposições radicais, o preço é
para que eles não sejam devorados por muito alto. No entanto, Joe Watkins
aqueles das maiorias, essa proteção só pode (2000:178) é otimista sobre o futuro da ar-
ser consagrada outorgando acesso às cos- queologia desde uma perspectiva indígena:
movisões dominantes? Essa é uma concep- “Os arqueólogos são lentos para mudar, mas
ção amplamente difundida da democracia eles estão mudando.” O mesmo otimismo so-
—de fato, é a maneira favorecida pelas so- bre o futuro da disciplina pode ser ouvido
ciedades multiculturais. Embora os autores naqueles que promovem uma abordagem
do manifesto da arqueologia indígena são etnográfica em arqueologia (Hollowell e
claros em dizer que a democracia que eles Mortensen 2009; Hamilakis 2011). Eu não
têm em mente “não significa a simples aber- sou tão otimista. Duas condições contempo-
tura do campo para todos, senão que deve râneas solidificam o isolamento da arqueolo-
encorajar-nos a perseguir um terreno co- gia, aprofundam as suas origens modernas e
mum, pesquisando como trabalham pontos dificultam a sua militância política transfor-
de vistas diferentes na ampliação dos com- 6- Isso é exatamente o que a filósofa da arqueologia Ali-
promissos filosóficos e as praticas metodo- son Wylie (2005) tem afirmado por muito tempo: o com-
promisso com os princípios da arqueologia qua realismo
lógicas da disciplina” (Colwell-Chantha- (científico).

"escavando" arqueologias Alternativas Cristóbal Gnecco


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madora: (a) a sua acomodação às políticas …a luta dos movimentos sociais inspira-
multiculturais, especialmente a correção po- dos no projeto duma “política da identida-
lítica e a mercantilização da alteridade, e (b) de” não alcançará a radicalidade do pluralis-
a sua articulação com o mercado de contrato, mo que pretende afirmar a menos que os
na qual a prática disciplinar é voltada para as grupos insurgentes partam de uma consciên-
necessidades do desenvolvimento. Acho que cia clara da profundidade de sua “diferença,”
o consentimento subalterno à arqueologia quer dizer, da proposta de mundo alternativa
moderna, só aparentemente reformada, em que guia sua insurgência. Diferença que aqui
breve pode ser adicionado à lista. De fato, um entendo não com referência a conteúdos
estabelecimento “reformado” tem o prazer substantivos em termos de “costumes” supos-
de compartilhar o que mais preza com sujei- tamente tradicionais cristalizadas, imóveis e
tos anteriormente marginalizados: a coerên- impassíveis frente ao acontecer histórico, se-
cia epistêmica disciplinar. Os seus ganhos não como diferença de meta e perspectiva por
são muitos: continua praticando a arqueolo- parte de uma comunidade ou um povo.
gia como foi estabelecida pelos padrões mo-
dernos (não muda nada do seu tecido meta-
físico e ontológico); o faz em público
(generosamente); se sente mais democrático
(ao compartilhar); fica mais perto do que
costumava chamar o “selvagem,” apazigua
suas exigências enquanto convencendo-se de
que a proximidade disciplinar equivale a co-
alescência espacial, temporal e cultural. En-
quanto isso, a arqueologia continua espa- Bibliografia
lhando os frutos do Iluminismo e recebe
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mais. Então, vou trocar minhas palavras: sou practice. American Indian Quarterly 30(3-4):280-310.
Atalay, S. 2008 Multivocality and indigenous archaeologies.
otimista de que existem alternativas à arque-
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arqueologia que se abre a outros mundos e, York.
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outros mundos a partir da arqueologia: ou- bridge University Press, Cambridge.
tras sociedades, outras temporalidades, ou- Bourdieu, P. 2002 Campo de poder, campo intelectual.
tras formas de aglutinação, outras formas de Montressor, Madrid.
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ppert, D.; Mcguire, R.; Nicholas, G.; Watkins, J.; &
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