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Urdimento: s.m.

1) urdume;
2) parte superior da caixa do
palco, onde se acomodam as
roldanas, molinetes, gornos e
ganchos destinados às manobras
cênicas; fig. urdidura, ideação,
concepção.
etm. urdir + mento.

ISSN 1414-5731
Revista de Estudos Pós-Graduados em Artes Cênicas
Número 07

Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEART


UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA
CATARINA – UDESC
________________________________________________
Reitor: Anselmo Fábio de Moraes
Vice Reitor: Sebastião Iberes Lopes Melo
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Peter Johan Büguer
Diretor do Centro de Artes: Antônio Carlos Vargas de Sant’Anna
Chefe do Depto de Artes Cênicas: José Ronaldo Faleiro
Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Milton de Andrade Leal Jr.

CONSELHO EDITORIAL
________________________________________________

Prof. Dra. Ana Maria Bulhões de Carvalho Edelweiss – UNIRIO


Prof. Dra. Beti Rabetti – UNIRIO
Prof. Dr. Francisco Javier – Universidad de Buenos Aires
Prof. Dra. Helena Katz – PUC- SP
Prof. Dr. Jacó Guinsburg – ECA-USP
Prof. Dra. Jerusa Pires Ferreira – PUC-SP
Prof. Dr. João Roberto Faria – FFLCH-USP
Prof. Dr. José Dias – UNIRIO
Prof. Dra. Maria Lúcia de Souza Barros Puppo – ECA-USP
Prof. Dr. Mário Fernando Bolognesi – UNESP
Prof. Dra. Marta Isaacson de Souza e Silva – UFGRS
Prof. Dra. Neyde Veneziano – UNICAMP
Prof. Dr. Osvaldo Pellettieri – Universidad de Buenos Aires
Prof. Dr. José Roberto O’Shea – UFSC
Prof. Dr. Roberto Romano – UNICAMP
Prof. Dr. Sérgio Coelho Farias – UFBA
Prof. Dra. Silvana Garcia – EAD-USP
Prof. Dra. Silvia Fernandes Telesi – ECA-USP
Prof. Dra. Sônia Machado Azevedo – ECA-USP
Prof. Dra. Tânia Brandão – UNIRIO
Prof. Dr. Walter Lima Torres – UFPR
Apresentação
________________________________________________

Nossa publicação chega a seu número sete, renovando sua apos-


ta em ser uma caixa de ressonância importante nos domínios da
pesquisa em artes cênicas no Brasil. Nessa edição um significati-
vo número de contribuições aborda ângulos e perspectivas do tra-
balho atorial, revestindo-o com renovados olhares e preocupações.

Dando voz a pesquisas diversas que se encontram em andamento ou expri-


mindo conclusões a que chegaram, os pesquisadores que assinam os artigos
aqui reunidos acrescentam, sem dúvida, um vivo material ao debate sobre
o ator. Questões técnico-artísticas e estéticas esquadrinham os fascinantes
universos de criação envolvidos na interpretação, oferecendo um painel so-
bre as práticas hoje empregadas e em desenvolvimento em nossos palcos.

No lançamento dessa edição cumpre-nos informar que Urdimento foi


promovida ao nível A, segundo o Qualis fixado pela CAPES para a clas-
sificação dos periódicos nacionais. Promoção esta que muito nos hon-
ra e, ao mesmo tempo, nos faz renovar nosso compromisso de man-
ter o alto nível quanto à seleção das contribuições a nós endereçadas.

Em muito pouco tempo Urdimento estará lançando uma série de Cader-


nos monotemáticos e números especiais, preparados em torno de projetos
de pesquisa em curso no PPGT-Udesc. Tais iniciativas ampliarão, sem dúvi-
da, nosso campo de atuação, contribuindo para disseminar os esforços da-
queles que têm na universidade uma base para a criação de conhecimentos.

Aberta às colaborações nacionais e internacionais, nossa publica-


ção continua a ser um espaço para a reflexão, o debate e a divulga-
ção daquilo que de mais expressivo ocorre no campo das artes cênicas.

Edélcio Mostaço
editor
URDIMENTO é uma publicação anual do Programa de Pós-Gra-
duação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Esta-
do de Santa Catarina. As opiniões expressas nos artigos são de in-
teira responsabilidade dos autores. A publicação de artigos, fotos e
desenhos foi autorizada pelos responsáveis ou seus representantes.

FICHA TÉCNICA
________________________________________________
Editor: Prof. Dr. Edélcio Mostaço
Secretário de Redação: Afonso Nilson Barbosa de Souza
Secretária do Mestrado: Maria Cristina D’Eça Neves Luz da Conceição

Diagramação Editorial e Design Gráfico: Israel Braglia {48} 91262574 [israelbraglia@gmail.com]


Tratamento de Imagem (capa): Márcio Sheibel [marciosheibel@gmail.com]
Composição e Impressão: IOESC - Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina

{Editado no Núcleo de Comunicação CEART/UDESC}

Esta publicação foi realizada com apoio da CAPES

U58 u
Urdimento – Revista de Estudos Pós-Graduados em Artes
Cênicas /
Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de
Pós-Graduação em Teatro. – Vol 1, n.07 (Dez 2005) –
Florianópolis:UDESC/CEART
Anual
ISSN 1414-5731

1. Teatro - periódicos.
2. Artes Cênicas – periódicos.
3. Programa de Pós-Graduação em Teatro.
Universidade do Estado de Santa Catarina

CDD 792

Catalogação na fonte: Eliane Aparecida Junckes Pereira. CRB/SC 528


Biblioteca Setorial do CEART/ UDESC
Sumário
Os esvaziamentos do ator e da cena no teatro de Peter Brook 07
Larissa Elias

O Desempenho Atoral Rapsódico 17


Nara Keiserman

Codificar para recriar: a busca do “Punctum” 39


Renato Ferracini

O grotesco em Meierhold: princípios para acriação de uma nova teatralidade 49


Marisa Naspolini

KEAN – a arte do ator vista pelo romantismo 57


Claudia M. Braga

O riso no circo: a paródia acrobática 67


Mário Fernando Bolognesi

Apontamentos para o estudo da identidade artística 75


Antônio Vargas

A história no teatro: Recortes Medievais – o amor como subtítulo 83


Frederico Teixeira Gorski
Márcia Ramos de Oliveira
Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho

O Papel do Figurino no Teatro de Revista Carioca 101


Leila Bastos Sette

Investigando a recepção em um projeto de teatro na comunidade 117


Beatriz Angela Vieira Cabral
Dan Olsen

O Ator Especial: Estudantes Especiais Atuam no Teatro de Integração 129


Juliano Borba

Teatro e Prisão: o Núcleo Panóptico de Teatro e os resultados de um diálogo


improvável, mas possível. 145
Vicente Concílio

Teatro na Escola: Espaciotempo do Pensamento e da Sensibilidade 157


Profa. Ms. Marli S. C. Sitta
Profa. Dra. Graciela Ormezzano
Profa. Ms. Cilene M. Potrich

Caminhos do Teatro Infanto-Juvenil 167


Cibele Troyano

O método e a masculinidade em Virginia Wright Wexman 179


Carmem Filgueiras

O CORPO: PEQUENO GRANDE MÉTODO DA


INDISCIPLINA CÊNICA 183
Ciane Fernandes
UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina
CEART – Centro de Artes
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, caráter strictu sensu,


encontrando-se implantado desde o primeiro semestre de 2002.

PROFESSORES PERMANENTES
________________________________________________
André Luiz Netto Carreira
Antônio Vargas
Beatriz Ângela Vieira Cabral
Edélcio Mostaço
José Ronaldo Faleiro
Márcia Pompeo Nogueira
Milton de Andrade Leal Jr.
Valmor Beltrame
Vera Regina Collaço

PROFESSORES VISITANTES
____________________________________________
Armindo Jorge de Carvalho Bião – UFBA
Beti Rabetti – UNIRIO
Walter Lima Torres – UFPR

O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candidatos, em nível


nacional e internacional. Para acesso ao calendário de atividades, linhas
e grupos de pesquisa, seus integrantes, páginas dos professores, dos ex-
alunos, dissertações defendidas e outras informações consulte o sito virtual:
www.udesc.br/ppgt.
Os esvaziamentos do ator e da cena no teatro de
Peter Brook
________________________________________________
Larissa Elias*

No filme-documentário Brook par Brook, de seu filho, Simon¹, Pe-


ter Brook mostra uma escultura pré-colombiana que ele chama de Mulher
Sorridente. Ele diz que, no início dos ensaios, sempre mostra aquela imagem
para os atores porque ela traduz o esvaziamento. E diz ainda que a mulher
tem uma expressão de puro júbilo, e que isso é como o ator se esvaziando.
Em O Ponto de Mudança, ele descreve a escultura:

Tenho uma pequena estátua de Vera Cruz, representando uma


deusa com a cabeça jogada para trás e as mãos erguidas – tão
perfeita em sua concepção, proporção e forma, que a figura
expressa uma espécie de radiância interior. Para ter sido capaz
de criá-la, o artista deve ter experimentado essa radiância. Con-
tudo, não procurou descrever radiância para nós por meio de um
conjunto de símbolos abstratos. Não nos contou nada: apenas
criou um objeto que concretiza essa qualidade específica. No meu
entender, tal é a essência da grande representação. (BROOK,
1994: 306-307)

Meierhold afirma que para improvisar o ator precisa estar alegre: “O ator
só é capaz de improvisar quando se sentir alegre interiormente. Fora da
atmosfera da alegria criadora, do júbilo artístico, o ator não se descobre nun-
ca em sua plenitude” (CONRADO, 1969: 197). Alegria ou júbilo, vazio, ple-
nitude e improvisação, para Brook e Meierhold, são idéias entrelaçadas. A
Mulher Sorridente é uma figura estilizada de mulher, cuja aparência poderia
ser comparada à rudeza de um desenho infantil. Os traços da escultura são
os minimamente necessários para expressar seu estado de contentamento.
No mesmo texto em que se refere à escultura, Brook fala que se tivesse uma
escola de teatro começaria por coisas básicas: “iniciaríamos a estudar como

*Larissa Elias, atriz, integrante de Os Cênicos Cia. de Teatro. Mestre em


Teatro pela UNIRIO, com dissertação sobre Peter Brook, atualmente cur-
sando o doutorado.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 7 U
sentar, como ficar de pé, como levantar um braço [...] estaríamos apenas
aprendendo a ser atores” (BROOK, 1994:307). A Mulher Sorridente é, para
Brook, uma representação simbólica do ator vazio, isto é, aberto, disponí-
vel, pronto para expressar uma imagem. Em sua percepção o vazio visa a
plenitude e a plenitude é como o vazio: inesgotável. Esta pode ser
considerada uma noção ampla de ator vazio, que na prática se concretiza
através de uma série de aspectos técnicos.

No documentário, Peter Brook explica qual é, para ele, a diferença en-


tre a improvisação que se faz no Actor’s Studio, em Nova York, baseada no
método de Stanislavski², e a improvisação que ele mesmo faz. Na improvi-
sação do Actor’s o professor, ou o diretor, diz para o ator quem é o perso-
nagem, em que circunstâncias ele se encontra, qual a sua história passada,
qual a situação do momento e manda ele improvisar. O ator entra em cena
cheio de idéias previamente concebidas. Já na sua improvisação, ele entre-
ga um sapato para o ator e diz: improvise. O ponto de partida é um vazio, é
Brook quem fala.

Não vou me aprofundar nas questões relativas ao sistema de Stanis-


lavski, mas vale ressaltar que suas pesquisas sobre o ator tiveram várias
fases, e seu método, ao longo do tempo em que produziu, passou por mui-
tas transformações. Deve-se, portanto, distinguir a dinâmica da sua meto-
dologia das leituras posteriores que se fizeram dela. Em agosto de 2002, fiz
uma oficina com Valentin Tepliakov, professor da Academia Russa de Arte
Teatral, cujo programa curricular é também baseado no método de Stanisla-
vski. As improvisações que ele nos propunha fazer eram do mesmo teor da
improvisação do Actor’s Studio, descrita por Brook.

Pode-se ir muito longe na elaboração prévia desse tipo de improvisa-


ção, havendo ou não um texto como base. Se houver um texto as informa-
ções serão buscadas nele, se não elas serão inventadas pelo ator e/ou o
diretor. As improvisações na oficina de Valentin Tepliakov eram mais ou
menos assim: dois atores criavam intelectualmente uma situação e um
contexto. Por exemplo: um casal em crise. A mulher, médica, 45 anos,
independente financeiramente, se torna amante do diretor do hospital onde
trabalha. O marido também médico, 47 anos, é um pai ausente e exagera
na bebida. O casal tem três filhos etc. Dado o contexto, a ação é: o casal vai
se encontrar num bar e o marido vai revelar que descobriu o amante. O que
acontecia era improviso, mas os atores já entravam em cena com mui-
tas idéias prontas, e sua tendência, neste caso específico, foi falar
exasperadamente tentando informar ao público toda aquela história.

Isso é tudo o que Peter Brook tenta evitar. Ele aposta no contrário disso.

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Ou seja, que a história, as emoções, os sentidos, tudo, enfim, se estabeleça
a partir da relação concreta entre os atores, em cena. E o começo pode ser
qualquer coisa. Fiz uma outra oficina, em junho de 2002, com a atriz Lilo
Baur, que atuava na montagem de A Tragédia de Hamlet de Peter Brook, em
turnê pelo Rio de Janeiro, nessa época. Uma das improvisações que fizemos
era a seguinte: dois atores se encontravam, se sentavam e se cumprimen-
tavam com um “Bom dia”. De cada encontro surgia uma história diferente.
O modo como os atores sentavam, o tempo que cada um levava para
dizer “Bom dia”, a respiração, as pausas, se o “Bom dia” era repetido uma,
duas, três vezes ou mais, por cada ator, o modo de um ator olhar para o
outro, se os atores olhavam para a platéia, a reação da platéia, que por sua
vez, gerava no ator uma nova reação, se um ator sentava e levantava, e
repetia algumas vezes essa ação: a variação desses elementos, e tantos
outros que apareceram na hora, multiplicavam as histórias, os personagens
e as impressões. Nada era previamente elaborado. Tudo acontecia no ato, a
partir da relação dos atores entre si e destes com os espectadores.

Brook fala de uma improvisação, feita por uma atriz do CIRT³, num alber-
gue português, em Paris, bastante significativa:

Miriam Goldschmidt [...] sem pensar levanta o seu dedo polegar


e subitamente descobre, a partir da reação do público, que ela
na verdade está pedindo carona a um caminhão; então, instanta-
neamente, ela representa o papel de alguém que pede carona, e
isso naturalmente se desenvolve em uma saga da imigração que
envolve todos na sala (BROOK, 2000: 242-243).

Nestas duas últimas improvisações descritas, há apenas um fragmento,


um tema, um gesto ou uma palavra a partir do que se improvisa. É o ator e
uma ação; o ator e um objeto; o ator e uma palavra, às vezes só o ator, que
caminha e... acontece alguma coisa, e outra e assim por diante. Mas isso
nem sempre acontece e a improvisação pode ser um desastre, esse é um
grande risco que se corre. Uma boa improvisação raramente se repete, e,
geralmente, não se sustenta por muito tempo.

A utilização do silêncio é também uma forma de esvaziamento. Ficar em


silêncio e sustentar esse estado não é uma tarefa fácil para o ator. O exer-
cício de ficar parado, em silêncio, olhando para um outro ator, ou diante de
uma platéia, é um desafio, por vezes, sufocante, e que exige treinamento.
Exercícios com pausas, fala muito rápida ou muito lenta, assim como uma
série de outros exercícios, aparentemente formais por não terem relação di-
reta com os sentidos do texto, podem, pelo fato de retirarem o ator do modo
cotidiano de se comportar e de falar, e justamente por não se relacionarem

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aos sentidos, também aparentes, do texto, abrir um universo de significados
e possibilidades antes invisíveis, inaudíveis e imperceptíveis.

Em um de seus primeiros trabalhos experimentais, o Teatro da cruel-


dade, de 1964, Brook fez o que considera um de seus exercícios mais im-
portantes: um ator sentava-se no palco, de costas para o público, e ficava
durante quatro ou cinco minutos sem fazer nada. Foi a partir dele que Brook
pôde entender a qualidade do próprio evento, realizado na imediatez daque-
le instante por um ator, cuja força era inseparável da relação com a platéia.

Nessa experiência importava questionar todas as convenções, e impor-


tava antes conhecer a reação do público, saber quais os pontos de conver-
gência entre os espectadores e os atores. Era o jogo entre esses organis-
mos vivos que estava sendo profundamente explorado. A cada passo Brook
retinha mais fortemente a idéia de que tanto mais aberto o campo – e isso
significava um espaço teatral vazio, e isto vai então significar um ator vazio
–, mais livre era o jogo do imaginário e mais intensa a relação entre ator e
espectador.

Experimentar uma nova forma teatral objetivava uma relação nova com
o espectador, e isso implicava mudar os contextos, e para mudar os con-
textos era preciso deslocar-se. Viajar tornou-se uma necessidade para as
pesquisas de Brook e seu grupo internacional de atores. Eles foram para a
África e para os Estados Unidos, onde fizeram uma espécie de teatro impro-
visacional, os carpet shows ou espetáculos do tapete. Esse foi o caminho
para a descoberta de uma forma viva e original de fazer teatro. A improvisa-
ção e os exercícios eram uma maneira de escapar do teatro morto, nos dois
principais sentidos que Brook dá a esse termo, quais sejam, um mau teatro
e um teatro que começa a morrer no dia em que nasce. Seu objetivo era
“confrontar o ator o tempo todo com suas próprias barreiras, nos pontos em
que, no lugar da verdade de uma nova descoberta, ele coloca uma mentira”
(BROOK, 2000: 119).

Improvisar e fazer exercícios são formas de pesquisa, formas de o ator


se preparar e aprimorar seu instrumento, que é ele mesmo, seu corpo, sua
voz, seus pensamentos, suas emoções. A improvisação e os exercícios po-
dem ser tanto um meio, um processo para feitura de um espetáculo, como
podem ser o próprio espetáculo, como foram os carpet shows, que eram um
tipo de teatro improvisacional. Neste caso o próprio processo é exposto, e
por isso os carpet são uma radicalização do vazio. Nas improvisações sobre
o tapete o ponto de partida é o “zero”, no mesmo sentido que no início dos
ensaios para uma peça teatral, que irá posteriormente ser fixada, dever-se-
ia partir do “zero”, do “vazio”. Partir do vazio, significa, antes, partir de um

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ponto infinito de possibilidades. Mas essa é na verdade a intenção. Não
significa que seja fácil ou mesmo possível de se conseguir, ao contrário, é
muito difícil. Partir do vazio requer um longo e rigoroso aprendizado. Manter
potencialmente o vazio numa experiência exige mais ainda do ator. Exige
que ele aprenda a repetir diferente. Todos os atores, de qualquer tipo de
linguagem ou tradição, sabem que uma apresentação nunca é igual à outra.
Isso é quase um chavão no mundo teatral. Uma coisa nunca é idêntica à
outra, pois a vida é um devir e não há repetição no tempo. A premissa pode
ser verdadeira, mas exercê-la é uma tarefa complexa e muito sutil.
Retirar excessos e provocar rupturas geram um deslocamento que permite
um permanente ajuste de posição, e que pode, efetivamente, criar uma rela-
ção dinâmica e viva entre o teatro e o seu público. Isso pode ocorrer proposi-
tadamente, por pura necessidade, ou por acaso. É importante ressaltar que,
num processo criativo, as melhores descobertas surgem inusitadamente,
mesmo quando se tem objetivos definidos e se provoca intencionalmente al-
guma coisa. Ao lado do desenvolvimento técnico que ampara, que sustenta
o processo de criação, deve haver sempre um espaço vazio, um lugar aberto
para o inesperado.

Acaso e necessidade se confundem. A fronteira entre os dois é indefi-


nível. A necessidade pode fazer surgir uma imprevisível e nova forma. Mas
essa nova forma surge por acaso, mesmo quando a necessidade é objetiva-
mente provocada. Se a necessidade surge do acaso, a nova forma também
é um acaso. Mas se a necessidade foi provocada, a nova forma também foi
provocada, mas ainda assim surge por acaso, ou seja, podemos propor o
caminho, mas não controlar o resultado. Essas formulações poderiam sin-
tetizar um processo de criação, mas as palavras parecem não dar conta
suficientemente de descrevê-lo.

Peter Brook acredita que a necessidade violenta de projetar um signi-


ficado pode realmente criar uma forma imprevisível. Ela põe de lado a dis-
cussão estilística e pode produzir um momento único, imprevisto, essencial,
nascido da improvisação, técnica que se origina no contador de histórias,
que diante se sua platéia começa a narrar. Essa liberdade que se estabelece
entre, neste caso, o narrador e o espectador, Brook compara à liberdade do
romance, onde a relação entre escritor e leitor é fluida, sem entraves. Em
sua visão sobre essa relação, ou seja, sobre esse campo do imaginário que
se estabelece através dessa relação, está presente uma idéia de vazio como
um campo de possibilidades.

Em Shakespeare residem alguns dos princípios propulsores desses es-


vaziamentos que, segundo Brook, tecem a trama teatral. Uma das maiores li-
berdades do teatro elisabetano é a ausência de cenário. A plataforma aberta,

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apenas com portas e sacadas, permitia a Shakespeare explorar o imaginário
do espectador, sugerindo sucessivas imagens capazes de dar conta de todo
o universo físico. Essa liberdade, todavia, acredita Brook, não estava somen-
te na ausência de cenário, mas principalmente no favorecimento que este
teatro proporcionava à passagem do mundo da ação para o mundo psíquico,
das impressões interiores. Peter Brook compara essa passagem à mudança
de plano no cinema: para ele uma relação ideal com um ator verdadeiro num
palco sem cenário seria como a passagem contínua de um plano geral para
um close. É exatamente a mobilidade desse código que lhe confere leveza,
e é essa mobilidade que caracterizava o teatro elisabetano, a mesma que
Brook deseja para o teatro: quanto mais mobilidade, mais flexibilidade, mais
nudez, mais leveza e maior o alcance.

Esses mundos, da ação e das impressões interiores, são, na perspec-


tiva de Brook, equivalentes do Rústico e do Sagrado, cuja irreconciliada
oposição está contida em Shakespeare, e desta oposição, justamente, vêm
as “perturbadoras e inesquecíveis impressões de suas peças. É por serem
tão fortes que as contradições nos ferem com tanta profundidade”(BROOK,
2000: 89). Shakespeare, para Brook, contém Brecht e Beckett irreconcilia-
dos: na diversidade da sua escrita o homem é apresentado sob todos os as-
pectos, e a contradição é incorporada. Ele tematiza uma enorme amplitude
de afetos humanos e os expõe no extremo de suas potencialidades. Seus
personagens representam de modo intenso e inexorável o limite daquilo que
é demasiadamente humano. Harmoniosamente ou irreconciliados, de todo
modo, os contrários habitam Shakespeare. Seus textos abrigam o sublime e
o grotesco, o sagrado e o rústico. A um só tempo, os opostos vivem irrecon-
ciliados porque não se anulam, e aprofundam suas contradições, e vivem
harmoniosamente, pois dialeticamente se complementam. O que se pode-
ria denominar de ausência de estilo, é justamente o que torna o teatro de
Shakespeare flexível, pleno de possibilidades, potente, e, portanto, vazio.

É a dinâmica shakespeareana que Brook nos sugere absorver e acom-


panhar. Essa dinâmica que Voltaire considerou “bárbara”, porque não lhe era
possível entendê-la. E a questão que Brook levanta é: onde se encontram
os equivalentes dessa variedade e dessa flexibilidade do teatro elisabetano,
onde se encontra aquele “teatro rico”? Para ele esse teatro rico e rústico se
aproxima do teatro pobre e sagrado de Grotowski, pois ambos buscam um
novo olhar, uma nova maneira de compreensão. E Brook acredita que essa
busca deve ser uma necessidade permanente do teatro, pois para produzir
uma nova compreensão, para estabelecer novas formas de relação com a
vida, o teatro precisa experimentar formas mais diretas e reveladoras. Ele
afirma que já houve um tempo em que o teatro podia ser magia, mas que
nesse nosso tempo o teatro tem de ser revelador, porque o espectador não

U 12 - Dezembro 2005 - Nº 7
quer ser trapaceado, não quer o escondido, ele quer deliberadamente fazer
parte do jogo do imaginário.

Num espetáculo teatral a mudança e a interferência podem ser cons-


tantes. Esse é precisamente o sentido de um vazio permanente: a qualquer
momento do jogo, suas regras podem ser mudadas. Podem-se cortar cenas,
acrescentar ou suprimir falas, mudar figurinos, enfim, o espetáculo teatral
pode estar sempre sendo refeito, durante todo o processo de ensaios e du-
rante toda uma temporada. Quando Brook diz que o verdadeiro ator criativo
é o ator vazio, ele se refere à capacidade do ator de estar sempre buscando,
sempre recomeçando, à capacidade do ator de absorver novas descober-
tas, e abandonar uma conquista, às vezes, na véspera de uma estréia, à
capacidade do ator de não cristalizar uma forma para o personagem: “O que
interessa nos atores é sua capacidade de criar marcas imprevisíveis durante
os ensaios: o que decepciona num ator é quando ele é fiel à forma”(BROOK,
2000:108).

Em O Teatro e Seu Espaço, Peter Brook define o que considera um ator


verdadeiramente criativo:

O ator realmente criativo sente na estréia um terror diferente e


muito pior. Durante todo o tempo dos ensaios ele esteve explo-
rando aspectos de um personagem que se sente serem sempre
parciais, inferiores à verdade – portanto, o ator é compelido, pela
honestidade de sua busca, a desistir e recomeçar, num processo
infindável. Um ator criativo estará sempre disposto a se desemba-
raçar das formas acabadas do seu trabalho no último ensaio [...].
O ator criativo também deseja agarrar-se a tudo que descobriu,
também deseja a todo custo evitar o trauma de aparecer nu e
despreparado perante o público – e no entanto, é exatamente isso
que tem de fazer. Precisa destruir e abandonar seus resultados
precedentes, mesmo que isto que agora está adotando pareça
quase a mesma coisa. Isto é mais fácil para os atores franceses
do que ingleses, pois os franceses são de temperamento mais
aberto à idéia de que nada vale alguma coisa [no inglês nothing
is any good, quer dizer, nada é tão bom]. E esta é a única manei-
ra pela qual um papel pode nascer, ao invés de ser construído.
O papel que foi construído é o mesmo todas as noites – só que
lentamente se desgasta. Enquanto que, para o papel nascido ser
o mesmo, ele tem sempre que renascer, o que o torna sempre
diferente. (BROOK, 1970: 121-122)

Brook escreve esse texto antes da formação do CIRT e antes de se

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aventurar em suas viagens apresentando espetáculos sobre o tapete. Os
frutos desta experiência reafirmaram sua perspectiva sobre o ator criativo.
Um ator verdadeiramente criativo é sempre um espaço vazio. É um ator que
se arrisca a abandonar as formas encontradas e fixadas, do primeiro ao últi-
mo ensaio, ou durante a temporada; que é capaz de abrir mão de um gesto,
de uma marca, de uma fala, de uma conquista e recomeçar. O ator vazio é
um ator aberto às novas descobertas, às novas formas, um ator capaz de ser
no tempo, um ator que entende que uma repetição pode ser sempre diferen-
te, se ele estiver disposto a se recolocar.

Aqui reside, entretanto um paradoxo: repetir-se e ser ao mesmo tempo


original. A tal da diferença na repetição, problemática largamente explorada
pelo filósofo francês Gilles Deleuze. O grande salto da arte é aliar técnica e
espontaneidade. Mas como ser espontâneo ao repetir? Nas improvisações,
durante os ensaios, descobrimos espontaneamente coisas novas, e à medi-
da que o processo vai se desenvolvendo vamos fixando essas descobertas
naquilo que no teatro se chama partitura cênica. Aí começa o problema: re-
petir. O que sustenta a repetição é a técnica, mas a técnica não é suficiente
para manter a vivacidade daquele evento, é preciso algo mais. O quê? Es-
pontaneidade. Mesmo nos hapennings ou em espetáculos de improvisação
como os carpet shows, é o próprio Brook quem afirma, a morte fica à esprei-
ta, e a qualquer momento pode tragar aquela experiência.

Um círculo vicioso? Sem saída? Certamente não. O irreconciliável ha-


bita a “natureza” do teatro. Esse é o desafio. Mudar os contextos, retirar o
teatro dos edifícios teatrais, apresentar espetáculos sobre um tapete nos
lugares mais variados, essa foi a maneira, encontrada por Peter Brook e seu
grupo, de testar mais do que novas formas, a vivacidade das formas e os
significados que elas podem alcançar.

Notas __________________________________________
¹ Brook par Brook: portrait intime. Direção: Simon Brook. 2001. (filme)
² O Actor’s Studio foi fundado em 1947 por Cheryl Crawford, Elia Kazan e
Robert Lewis. Lee Strasberg, inicialmente professor do Actor’s Studio, se
tornou diretor da Escola em 1952, e desenvolveu ali um método baseado no
Sistema de Stanislavski.
³ Em 1970, Peter Brook criou juntamente com Micheline Rozan o Centro
Internacional de Pesquisas Teatrais (Centre International de Recherches
Théâtrales) – CIRT; Em 1974 eles fundaram o Centro Internacional de Cria-
ções Teatrais (Centre International de Créations Théâtrales) – CICT. CIRT e
CICT são dois centros, de pesquisa e criação, que coexistem para uma série
U 14 - Dezembro 2005 - Nº 7
de atividades simultâneas.

Bibliografia____________________________________
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. tradução: J. Guinsbrug e
outros. São Paulo: Perspectiva. 1995.
BRECHT, Bertol. Teatro dialético. tradução: Luis Carlos Maciel.
Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967.
BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. tradução: Oscar Araripe e
Tessy Calado. Petrópolis: Vozes, 1970.
___. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências tea-
trais: 1946-1987. tradução: Antônio Mercado e Elena Gaidano.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
___. The open door – thoughts on acting and theatre. New York:
Theatre Communications Group, 1995.
___. The empty space. New York: Touchstone, 1996.
___. Fios do tempo: memórias. tradução: Carolina Araújo. Rio de
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CHENG, François. Vide et plein – le langage pictural chinois. Pa-
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Referência Filmográfica________________________

Brook par Brook, portrait intime. Direção: Simon Brook. 2001.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 15 U
O Desempenho Atoral Rapsódico
________________________________________________
Nara Keiserman*

Esta escrita especifica a atuação rapsódica praticada pelo Núcleo


Carioca de Teatro, dirigido por Luiz Arthur Nunes, do qual sou co-fundadora e
onde estive como atriz e preparadora corporal de 1991 a 2002. Durante este
período foram encenados: A Vida Como Ela É, contos de Nelson Rodrigues
(1991 e 2002), Cândido ou O Otimismo, novela de Voltaire (1993), Tragédias
Rir, contos de vários autores (1996), Correio Sentimental de
Cariocas Para Rir
Nelson Rodrigues, as cartas escritas com o pseudônimo de Myrna (1999),
A Prosa do Nelson, contos, crônicas e reportagens de Nelson Rodrigues
(2000) e Um Menino de Paixões de Ópera, crônicas autobiográficas de Nel-
son Rodrigues (2000)¹.

A denominação de “rapsodo” para este ator foi adotada por Nunes para
reforçar a identificação com o modo épico de exposição de relatos, remeten-
do aos rapsodos gregos que recitavam trechos da Ilíada e da Odisséia.

O propósito artístico do grupo - reunido após a montagem de A Maldição


do Vale Negro, de Luiz Arthur Nunes e Caio Fernando Abreu, em 1988 - foi
claro desde o início: investir numa linguagem que explorasse a teatralidade,
envolvendo todos os aspectos da encenação, a partir da premissa de se
montar textos da literatura ficcional, em que a voz narradora é mantida no
palco.

Instalada no palco a voz do autor, convertido em personagem narrado-


ra, as formas épica e dramática passam a conviver num jogo produtivo de
intercâmbios. A explicitação deste jogo é parte da linguagem, que se propõe
revelar seus próprios procedimentos. Assim como o autor não desaparece
nos personagens, o diretor não esconde o uso dos recursos e estratégias de
encenação. Está assumida a linguagem do teatralismo épico. Os recursos

*Nara Keiserman, atriz, diretora, pesquisadora e professora na Escola de


Teatro da UNIRIO. Mestre pela USP, com a Dissertação A Preparação Cor-
poral do Ator: Uma Proposta Didática e Doutora pela UNIRIO, com a tese
Caminho Pedagógico Para a Formação do Ator Rapsodo.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 17 U
mobilizados pelo diretor estão numa estatura de signos, vocabulário e gra-
mática, que apresentam ostensivamente a sua condição de código.

O ator de que se ocupa esse texto, e objeto de minha investigação em


pesquisas que desenvolvo também fora do Núcleo², é aquele que trabalha
a composição de seu desempenho num teatro em que a própria dramatur-
gia está, em maior ou menor grau, na categoria do épico. Esta espécie de
atuação, que pode ser chamada de expositiva, demonstrativa ou
distanciada, é determinada pela atitude narrativa do ator e pelas funções
que exerce, de encaminhar as ações, de comentá-las, de introduzir persona-
gens, e em que se evidenciam o jogo entre as duas instâncias pelas quais
estabelece sua comunicação com os outros atores em cena e com o público,
a verbal e a gestual.

Coexistem nas montagens do Núcleo Carioca de Teatro duas


categorias principais de entidade narradora, a que denominamos de narrador-
personagem e de personagem-narrador, que determinam, para o ator a com-
posição de diferentes corpos:

O narrador-personagem é onisciente e se manifesta na terceira pessoa,


com maior ou menor grau de opinião e adesão afetiva ao relato. Mesmo não
sendo uma figura actante deste, está num patamar ficcional, de personagem
cuja função é narrar, e não se confunde com a figura pessoal do autor. É o
dono da voz autoral que conduz a narrativa, mas não pretende corporizá-la,
no sentido de assumir o seu papel, de “ser” Nelson Rodrigues, por exemplo,
ao narrar os contos de A Vida Como Ela É. Em relação à espacialização da
cena, poderá estar colocado num lugar afastado, como utilizado em Selva-
geria e Doente, de A vida Como Ela É, ou compartilhar o espaço da cena
com os personagens ficcionais, estabelecendo com eles, inclusive, uma inte-
ração fisicalizada em toques e/ou olhares. Neste caso, a participação afetiva
pode ser acentuada, como experimentamos em Despeito, de A Vida Como
Ela É e Noite de Almirante, de Machado de Assis, em Tragédias Cariocas
Rir, em que os narradores nutrem, pelos protagonistas, uma simpatia
Para Rir
evidenciada no modo enunciativo, nos gestos e nas locomoções.

O personagem-narrador se manifesta na primeira pessoa, e sua visão


do relato será sempre parcial, já que participou dos eventos ficcionais como
protagonista (O Morto, de Orígenes Lessa e Obscenidades de Uma Dona de
Casa, de Ignácio de Loyola Brandão, em Tragédias Cariocas Para Rir), ou
como coadjuvante (o personagem do Médico em Noiva da Morte, de A Vida
Como Ela É).

Há ainda situações em que a narrativa introduz personagens que se ex-

U 18 - Dezembro 2005 - Nº 7
põem através de diálogos ou, como ocorre muitas vezes em Cândido, este
personagem fruto do relato é também incumbido de narrar.

O ator rapsodo vai transitar entre estes corpos, passando de um para


o outro com fluência e ostentação, podendo mesmo chegar a habitá-los
simultaneamente, no caso em que empresta a voz à narração pretérita, en-
quanto seu corpo fisicaliza o personagem, presentificando-o³.
Inserido numa tendência do teatro contemporâneo, o trabalho do ator
rapsodo ecoa, evidentemente, certos princípios brechtianos, como a
não-metamorfose do ator no personagem, base da abordagem atoral
brechtiana. Termos como “acreditar” e “defender” o personagem, tão co-
muns num outro teatro, neste trabalho simplesmente não são levados em
conta, ou sequer mencionados. O fato de não estar colado ao personagem
e sim distanciado dele, oferece ao ator um espaço a ser preenchido por uma
opinião, um ponto de vista – fundamental tanto no teatro brechtiano quanto
no rapsódico. Mesmo no caso do personagem narrador ser o protagonista
da história narrada, ele estará sempre colocado, por diferentes recursos da
linguagem da encenação disponíveis, em algum grau de distanciamento que
permita revelar este seu caráter de manipulador e de encaminhador do re-
lato.

O ator é incumbido de corporizar (dar corpo e voz), fisicalizar (em atitu-


des, gestos, posturas, ações), de representar (em linguagem teatral) a in-
terface entre o épico e o dramático. Neste ato, em que se apodera da voz
autoral, tanto no sentido do autor do texto quanto no do autor do espetáculo,
e na mesma medida que estes, o ator tem seu temperamento, talento e ap-
tidões revelado – pelo simples fato da não metamorfose completa no papel
que representa. As palavras usadas para designar a relação do ator com os
personagens são: fazer o papel de, representar, falar em nome de, figurar,
ilustrar, compor. As três primeiras expressões remetem a uma situação em
que alguém (o ator) se coloca no lugar de outro (o personagem) para, numa
cerimônia qualquer (o acontecimento teatral), falar em seu nome (fazer o seu
papel). Os outros dois verbos, figurar e ilustrar, estão associados a desenho
corporal no espaço, enfatizando a visualidade da realização. Quando se diz
que o ator compõe, está se afirmando a disponibilização, pelo ator, de um
nível de consciência perceptiva, da orquestração do aparato expressivo, da
organização seqüencial dos esforços imprimidos, passíveis de algum tipo de
registro em descrição textual.

O verbo ser está ausente deste processo atoral. Estamos na categoria


do distanciamento, do teatro “apresentacional”, em que tudo é mostrado e
não vivenciado.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 19 U
Nada disso, entretanto, elimina a sinceridade da atuação. Mesmo
transitando nas categorias do grotesco, da tipificação ou do melodrama,
como ocorre em algumas montagens do Núcleo, o ator trabalha lidando com
a verdade da cena. Os traços que vão marcar suas composições estão fun-
dados em aspectos reconhecíveis do caráter do personagem, e distinguíveis
no texto. O ator rapsodo não necessita de uma psicologia que justifique suas
ações, já que a aproximação entre o ator e o personagem não se dá pela via
da identificação, mas por um acesso determinado pelo exercício constante e
claro de um ponto de vista. É este que vai atuar para o estabelecimento da
lógica, dos objetivos, da linha contínua da ação – para usar a terminologia
de Stanislavski. O ponto de vista será sempre o do narrador, falando em seu
próprio nome, ou filtrado pelo personagem em nome de quem fala neste ou
naquele momento.

Neste contexto, a gestualidade ilustrativa é procedimento fundamen-


tal para o estabelecimento da cena rapsódica. Temos utilizado a expres-
são “linguagem gestual” do ator no sentido de uma composição formal co-
nectada a um sentido manifesto e passível de leitura sígnica, que poderá
acompanhar, complementar ou substituir o enunciado verbal, forjando a pró-
pria linguagem estética para a cena. A linguagem gestual do ator rapsodo
será sempre passível de uma classificação tipológica. Seu caráter formal
suporta um tipo de decupagem, que tem como referências físicas principais
as partes do corpo envolvidas no movimento e os Fatores do Esforço do Mo-
vimento mencionados por Laban: peso, tempo, espaço e fluência. São es-
tes os parâmetros físicos de que dispus para elaborar as partituras gestuais
do meu desempenho nas montagens do NCT. O gesto ganha uma estatura
idêntica ao texto na sua intencionalidade de revelar o trabalho já realizado,
como se o ator dissesse para o espectador, durante a apresentação: “meus
gestos foram ensaiados, preparados cuidadosamente, exigiram-me esforço
e maestria, e agora, eu observo minha execução tanto quanto vocês”. As en-
cenações empreendidas têm a qualidade da ostentação dos procedimentos
teatrais, da própria representação, do “ensaiado”. Abordamos o espectador
pela via intelectiva, apostando na configuração de um teatro em que pensar
emociona.

Modo de elaboração

Caracterizam o trabalho do Núcleo Carioca de Teatro aspectos que se


referem ao modo processual dos ensaios. Trata-se de um coletivo em que
os mesmos atores e diretor estão presentes em todas as montagens, e isso
certamente estabelece alguns parâmetros. O entendimento artístico promo-
ve uma unidade vertical e horizontal, ou seja, no dia a dia dos ensaios e na

U 20 - Dezembro 2005 - Nº 7
continuidade entre uma montagem e outra. A personalidade artística de cada
ator, presente em todas as montagens, por si só já determina um parentesco
entre elas.

Há um treinamento constante. O grupo não inicia cada novo trabalho


simplesmente de onde parou o anterior, mas sim retoma todo o cabedal de
procedimentos que vem sendo trabalhado, o que garante a continuidade
dentro de uma mesma linha mestra de investigação.

A partir de indicações dadas pelo diretor, cabe aos atores especificar e


detalhar o seu modo pessoal (e coletivo) de elaboração vocal e gestual, atra-
vés de experimentação improvisacional, que pode se estender durantes mui-
tos ensaios até que se chegue a resultados considerados definitivos. Feito
isso, o diretor passa a exigir, com rigor, a execução do que está estabeleci-
do. Por outro lado, mesmo depois de estabelecida, e com a peça em cartaz,
o ator poderá ser solicitado a modificar mais ou menos a sua partiturização
de fala e movimento.

Como exemplo do desempenho rapsódico, faço um breve relato do


trabalho dos atores, tornando específica a minha própria atuação em duas
montagens, A Vida Como Ela É (1991 e 2002) e Correio Sentimental de Nel-
son Rodrigues, por considerá-las exemplares da pesquisa do Núcleo.

A vida como ela é

O início do espetáculo, considerando a entrada dos atores e a primeira


cena, O Desgraçado, define dois aspectos fundamentais da linguagem: o uso
de sombras chinesas e a narratividade que tem o público como destinatário.

Black-out, música de abertura. Os atores entram em cena e sentam, de


costas para a platéia. Refletores colocados dentro da caixa do palco, ilumi-
nam vagamente a cena, mantendo uma certa penumbra. Vêem-se as figuras
silhuetadas de um casal, homem e mulher, projetadas no centro do painel
de fundo, em tamanho natural. A posição dos atores em cena sugere que
estes, como a platéia, são espectadores do que se vai assistir, são também
ouvintes do que se vai contar.

Luz geral para a cena um. Inicia-se O Desgraçado e aquilo que se conta
é contado por todos. Com o texto narrativo dividido entre todos os atores, um
deles personifica o personagem título do conto. Todos se movimentam numa
dinâmica muito ágil, formando e desfazendo grupos de narradores, que por
vezes envolvem o protagonista, em outras são ouvintes que comentam entre
si – por atitudes, ou pequenas falas - o que está sendo narrado. As cadeiras

Dezembro 2005 - Nº 7 - 21 U
estão espalhadas pela cena, permitindo a realização de diferentes trajetó-
rias, e usadas pelos atores para a composição de quadros com vários planos
e alturas diferentes.

A primeira fala apresenta o protagonista, Peixoto. Os outros persona-


gens circunstanciais são exercidos por atores determinados, que saem com
naturalidade do plano da narração para passar ao breve plano dialógico.
Assim como foi este narrador que assumiu o papel, um outro poderia fazê-lo.
Não há qualquer indicação ou preparação para passar de uma função para
a outra. Este procedimento de extrema fluência na passagem do placo épico
para o dramático vai se tornar uma das marcas mais nítidas e almejadas no
trabalho do Núcleo.

Fui uma das narradoras incumbida, como parte deste coral rapsódico,
de contar as conseqüências da tara sexual do Peixoto. A elaboração que fiz
para cumprir esta função está norteada pela busca de um corpo participati-
vo, envolvido no relato e envolvente em relação a Peixoto. Há pouco espaço
para reflexão, no sentido de ação interior. A reflexão que possa fazer sobre
o que estou ouvindo é imediatamente exteriorizada, em atitude e jogo de
ocupação do espaço.

A segunda cena, Uma Senhora Honesta é feita com o recurso ilustrativo


gestual do Quadro Vivo e o texto na técnica da Dublagem. Dois atores fisica-
lizam os papéis de Luci e seu marido Valverde. Três atores estão sentados
em cada uma das laterais, na penumbra, de perfil para a platéia, de frente
para a cena que vão comandar com suas vozes. O texto dialógico é feito por
dois destes atores, enquanto os outros se encarregam de narrar, comentar,
e revelar os pensamentos de Luci e Valverde.

Os protagonistas executam as poses/atitudes adequadas ao texto e


se mantêm nelas enquanto não houver um novo impulso de intencionali-
dade que justifique ou motive uma mudança. É um procedimento de nítido
distanciamento, a ilustração sendo totalmente destacada do relato e que
as próprias composições gestual e textual tratam de enfatizar. As duas ins-
tâncias em que os personagens se manifestam passam por uma constru-
ção aproximada do grotesco. As poses são exageradas, contorcidas, mas
coerentes com a situação dramática. Os atores trabalham as vozes dos
personagens com grandes variações no uso de timbres e extensão vocal.

Coube-me a função textual na figuração de Luci, a senhora honesta. De


início, senti uma impossibilidade de escuta interior do texto, eu simplesmen-
te não conseguia ouvi-lo mentalmente, como se este não encontrasse eco
dentro de mim, e era como se aquelas palavras não coubessem na minha

U 22 - Dezembro 2005 - Nº 7
boca. No decorrer dos ensaios, passei a ouvi-las internamente, mas ainda
não conseguia reproduzir o que ouvia. Finalmente, com muito empenho e
inúmeras repetições fui conseguindo fechar o espaço entre escuta interior e
elocução.

Fui para a segunda montagem com o propósito de trabalhar num tom


mais grave. Ao ver o vídeo da peça, desagradou-me a voz excessivamente
estridente, chegando a comprometer o entendimento do texto. Ao obter o
grave como base, o resultado foi que pude usar uma extensão maior, ex-
plorar um contraste mais acentuado nos enunciados, pelo uso de intervalos
de som consideráveis. Numa mesma palavra de três sílabas, por exemplo,
faço uma sétima, do grave para o agudo e voltando, uma nota para cada
sílaba – a palavra é “escuta”. Devo dizer que não pensei nisto previamente.

Fui emitindo o que ouvia cada vez com mais nitidez e só depois é que
pude observar os intervalos e extensão alcançados. A personagem ganhou
em determinação e a atriz que se movimentava tornou ainda mais enfática a
sua composição corporal de qualidade grotesca.

Outra mudança que adotei para a temporada de 2002 é relativa à pos-


tura e atitude corporais. Na primeira montagem, por opção minha e não por
indicação do diretor, trabalhei de maneira a manter-me sempre em estado
de neutralidade corporal: sentada, com as pernas cruzadas, mãos sobre o
joelho, uma sobre a outra. Na segunda montagem, optei por ter os dois pés
no chão – uma garantia para o grave e para uma projeção vocal mais firme
– e deixei que meu corpo e inclusive o rosto trabalhassem junto com a inten-
cionalidade do texto. O fato de estar numa zona de penumbra da cena era
garantia de que estes pequenos movimentos não iriam interferir no espaço
da ação.

Selvageria é uma das cenas em que a linguagem está aproximada do


realismo, pelo modo como os dois atores protagonistas compuseram seus
personagens. Mas é uma chave de realismo que permite o exagero, a exte-
riorização exacerbada dos sentimentos, uma certa tipificação - principalmen-
te a personagem de Luciana, que exterioriza em pulsão melodramática o seu
sofrimento atroz pela morte do amante (notícia falsa dada pelo marido). O
momento final, que culmina com sua morte a pontapés, dados pelo marido,
é realizado com movimentos sustentados, lentíssimos e extremamente de-
senhados.

Elemento marcadamente épico é a presença do narrador-personagem


que, de fora, sem interferência no espaço da ação, inicia o relato. Em se-
guida, junta-se aos outros atores para participar do coro de vizinhos, sai de

Dezembro 2005 - Nº 7 - 23 U
cena com eles e volta para finalizar a narração.

Estou no coro dos vizinhos que vêm bisbilhotar o que está acontecendo,
atraídos pelos gritos de Luciana. Destaco-me por um momento, para falar
em nome da amiga que a aconselha a acalmar-se e volto a me integrar ao
coro. Construí a corporeidade desta vizinha sobre uma idéia de espanto pelo
que ouve e vê. A boca e olhos bem abertos, ombros elevados, como quem
levou um susto e aí ficou. Utilizei essa mesma construção na montagem de
2002.

Em Paixão, o texto está gravado e os personagens da história, Verita e


Alcides, são atualizados de duas maneiras. Em cena, utiliza-se um procedi-
mento que mescla os recursos do Quadro Vivo com um tipo de Pantomima
estilizada, em que os gestos “mimam” os diálogos e os pensamentos dos
personagens.

Os movimentos que levam os atores de uma pose para outra são sem-
pre muito lentos e seu desenho no espaço está impregnado de significações.
Esta qualidade confere-lhes a mesma estatura expressiva desempenhada
pelas próprias poses.

Nos painéis do fundo, em sombra chinesa com posturas estáticas, estão


os mesmos personagens mostrados no palco: Verita e Alcides, a Mãe de
Verita e o Médico, figurados ora por atores, ora através de recortes, de ma-
neira alternada ou simultânea. Estabelece-se entre as duas figurações uma
relação de duplicação, tornando mais graves os acontecimentos, e mesmo
oferecendo deles duas visões. Há um outro fato relevante: os atores em
cena são fisicamente muito diferentes dos que estão na sombra. É quase um
outro casal de Alcides e Verita, o que expõe a categoria épica da ilustração.
Estabelece-se um “é assim, mas também poderia ser assim”.

Minha função é a de representar a Mãe de Verita, em sombra, cuja uti-


lização exige que siga certos princípios: buscar a distância adequada entre
a tela e o refletor, e na construção da posição, considerar que o corpo deve
oferecer espaços para a luz. A parte do corpo que estiver encoberta pelo
próprio corpo simplesmente não será projetada. Além disso, não conto com
o rosto para figurar a expressão desejada. Todo o jogo expressivo deve ser
obtido pela colocação postural e de gestos. Esta cena foi cortada na segun-
da montagem.

A Cena 5, Romântica, como que engloba os recursos de Paixão e Uma


Senhora Honesta. O procedimento textual é o mesmo da dublagem de Uma
Senhora Honesta. Os atores narradores e os dubladores dos personagens

U 24 - Dezembro 2005 - Nº 7
estão sentados, desta vez, ao redor da área de ação e iluminados. Ao invés
da ação plasmada em quadros fixos, temos a ação contínua, como se fosse
Paixão num tempo mais cotidiano, e não esgarçado como é utilizado ali. Se
os personagens fossem os emissores do seu texto, seria tão realista quanto
Selvageria.

Faço a voz da Mãe da protagonista – são duas réplicas em dois encon-


tros fugazes com a filha Alicinha, e tenho algumas falas de narração. Minha
participação é tão somente textual. Diferentemente do que ocorre em Uma
Senhora Honesta, aqui nenhum empenho corporal é exigido para a enuncia-
ção adequada de minhas falas.

Noiva para sempre conta a história de duas irmãs, Dorinha e Helena,


apaixonadas pelo mesmo homem, Maurício. Os três atores que os represen-
tam usam máscaras de látex, cobrindo toda a cabeça e se movimentam con-
forme a técnica do Fotograma4, procedimento bastante utilizado pelo NCT,
em que o personagem é manipulado em poses sucessivas por um ator co-
locado atrás dele que está encarregado também da elocução verbal. Deste
modo, as suas falas são dadas pelos manipuladores, que, como os outros
personagens do conto, exercem também uma função narrativa. Os atores
se dividem, portanto, em: aqueles que compõem personagens que eventu-
almente narram, atores manipuladores que, como tal, dialogam e também
narram e atores que figuram, sem texto, os personagens manipulados.

Minha função é a de manipuladora de Dorinha, a preterida por Edgar,


que acaba por matar-se vestida de noiva, no leito nupcial de Helena, sua
irmã.

Na manipulação que faço, estabeleço uma variação em relação à dire-


ção do olhar: falo por Dorinha olhando para Helena, mesmo que não tenha
colocado a atriz que faz o papel com o rosto voltado para ela, olho para Dori-
nha ou ainda para quem ou para onde ela olha. É interessante olhar na mes-
ma direção do boneco, para firmar uma identidade entre texto e voz, mas é
igualmente interessante desvincular as duas categorias de significação. En-
fatizar o espaço entre os dois corpos é um meio de ostentar a manipulação
ilustrativa do relato.

Como nas outras cenas em que se utiliza o Fotograma e o Quadro Vivo,


não é só a postura estática que carrega os significados desejados. Mesmo
trabalhando na economia, eliminando qualquer movimento supérfluo na pas-
sagem de uma posição para a outra, há um componente do impulso, da ten-
são com que este movimento é realizado e este sim pode ser significativo.

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No caso de Dorinha, a pose carrega um grau de tensão que é mantido
nos movimentos de passagem.

Para Despeito estabeleceu-se um coro de três narradores, configura-


do como uma narração de dentro, o coro partilhando com os personagens
palmo a palmo do espaço em que acontece a história. Onipresente, esse
coro comenta e assiste a episódios como os que acontecem dentro da casa
de Marlene e seu marido Rafael, as conversas ao telefone entre Marlene e
Leocádio, que é o melhor amigo de Rafael e por quem Marlene se descobre
apaixonada, e ainda o momento em que Rafael mata Leocádio no seu escri-
tório.

Um momento exemplar da utilização de procedimentos epicizantes é


quando o coro narra o que o marido teria dito à Marlene, e o ator que o re-
presenta e que está ali ouvindo, completa o texto dizendo simplesmente:
“Ouviste bem?”

Meu papel é o da amiga Hermelinda, que dialoga com Marlene estimu-


lando-a, encorajando-a a se entregar para Leocádio. Sinto-me integrada ao
coro, com quem interajo através da ocupação harmonizada do espaço e de
atitudes de comentários sobre o desenrolar dos acontecimentos, tornando-
me também narradora em certos momentos. Essa interação com o coro tor-
nou-se mais nítida na segunda montagem.

Construí a corporeidade de Hermelinda sobre a idéia de uma libidino-


sidade amoral e despudorada. Durante grande parte da cena permaneço
sentada e para trabalhar na cadeira estabeleci dois focos principais, que
são a boca e as pernas, em movimentos bem nítidos: os braços dobrados,
perto do corpo, a mão direita na direção do rosto, a boca entreaberta, a lín-
gua encostando-se no dedo anular. Em alguns momentos, passeio o dedo
ao redor dos lábios, ou é a cabeça que se movimenta, mantida a mão na
mesma posição. Os dedos vão à boca, um por um, mordisco-os e lambo
como se estivessem melados – a imagem que me vinha sempre ao pensa-
mento era algodão doce. A estes gestos, contraponho em alguns momentos
um foco nas pernas. Com as pernas cruzadas, começo por girar o tornoze-
lo, depois giro o joelho. Mais adiante, estendo as duas pernas cruzadas à
frente – estou numa diagonal em relação ao público - o tronco vai para trás,
retorno para a posição básica de uma perna cruzada sobre a outra, tronco
vem arredondado para frente, fechando a figura. Volto a estender joelhos e
tronco, repetindo assim o primeiro movimento, e então descruzo as pernas,
levando um pé ao chão. Dobro o outro joelho, erguendo-o de maneira que o
pé encoste-se ao joelho da perna que está apoiada no chão. Estendo nova-
mente as pernas cruzadas à frente e refaço o movimento anterior: um pé no

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chão e o outro encostado no joelho. Repito esta seqüência algumas vezes,
de maneira sincronizada com a música e com o texto em que Marlene seduz
Leocádio ao telefone.

Em Noiva da Morte é o ator que faz o papel do Médico da famí-


lia quem narra a história de Alipinho, na primeira pessoa. O coro de
tias encarrega-se de comentários e de curtas falas de diálogo. A com-
posição carrega com despudor na caricatura destas figuras, pra-
ticamente alegorias da repressão e do falso moralismo burguês.

Estou no coro das tias. Parti de uma idéia de extrema contenção para
estabelecer o tronco ereto, rigidamente colocado. O movimento rápido da
mão que movimenta o leque provocou uma repercussão nos ombros, que
se movimentam com a mesma qualidade do movimento das mãos, em for-
tes sacudidas ritmadas, durante as locomoções. Movimentos pontuados de
cabeça, com inclinações firmes do tronco na direção dos focos de atenção,
completam a composição.

Em Doente tem-se um narrador de fora com poucas intervenções e os


dois protagonistas na técnica que chamamos de Bonecos Chineses – atores
manipulados em ação contínua, o manipulador colocado atrás, assoprando
de forma visível e às vezes até audível pela platéia o texto que deverá ser
dito pelo ator que representa o personagem.

Doente conta a história da mulher que trai o marido compulsivamente e


ao final enforca-se com o fio do ferro elétrico. Esta imagem aparece no re-
corte em sombra. O ator que faz o marido, Olímpio, está ajoelhado no centro
do palco, seus gestos de desespero endereçados à sombra.

Estou no papel de Georgette, a protagonista. Entro em cena sendo mani-


pulada. Minha primeira fala me é assoprada nesta trajetória, de modo que ao
chegar na marca eu já possa pronunciá-la. A elaboração da fisicalidade desta
composição, com todos os seus desdobramentos, envolve muitas questões
físicas para a sua execução, com parâmetros como: tensionamento muscu-
lar, caminhos do movimento dentro do corpo, uso do tempo, entendimento
dos códigos de movimento da parceira, percepção dos sentidos: audição e
visão. Vou me referir a estes aspectos, a fim de oferecer uma visão completa
do trabalho.

Há um grau de densidade muscular básico que deve ser exercido pelo


manipulado, que é o da tonicidade equilibrada, em que o corpo está ao mes-
mo tempo leve e auto-sustentado, flexível para que o manipulador possa
movimentá-lo sem esforço. A tonicidade do personagem vai sofrer mudan-

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ças, na medida em que ele vivencia estados emocionais diversos. Trata-se,
portanto, para o ator, de estar disponível para a manipulação e também para
o personagem, emprestando diferentes graus de tensão para diferentes par-
tes do corpo, modificando-os instantaneamente quando necessário.

É da técnica a idéia do movimento repercussivo. O manipulador leva


meus braços numa determinada direção, e correspondendo ao impulso dado
a este movimento, a ele vão aderir, ou não, cabeça, tronco e pernas. Mas
este efeito vai depender da densidade (tensão) corporal exercida no momen-
to, e de qualquer coisa como os caminhos do movimento dentro do corpo, o
que é absolutamente pessoal. Passa por determinantes como flexibilidade,
anatomia, maior ou menor experiência em trabalho corporal e sincronismo
com o parceiro.

Ao interagir com o outro personagem, que está sendo manipulado da


mesma forma, minhas percepções e atitudes estão voltadas para ele. Mas
tenho que estar ouvindo o que me diz o manipulador, que segue pronuncian-
do baixinho em meu ouvido a fala que já iniciei ou a próxima. Meu olhar não
pode ausentar-se do meu foco, que está eventualmente a minha frente, nem
meus ouvidos tornarem-se surdos ao que diz o meu manipulador (que está
nas minhas costas), o que resultaria num desastrado e indesejável esvazia-
mento da expressão. Tenho que ampliar a minha escuta e manter vivo o meu
olhar, divididos entre focos diferentes.

Quanto ao uso do fator tempo, há a duração do gesto, o tempo de es-


cuta do texto do interlocutor, o tempo entre a escuta da fala assoprada e a
sua emissão. Do ponto de vista do manipulado, a opção que se coloca é
entre: esperar que o manipulador assopre toda a fala para só então repeti-la
ou ir repetindo a medida em que a vai escutando. O certo é que os gestos
devem corresponder ao texto. A manipulação corporal deve seguir as inten-
ções do texto, o que não quer dizer que iniciem juntas. Todo o processo de
construção da cena é favorecido pelo conhecimento mútuo dos códigos de
expressão gestual do manipulador e manipulado. E isto só o treinamento na
técnica, os inúmeros ensaios e repetições, acompanhados de um desejo e
empenho verdadeiros de acertar é que podem vir em auxílio dos atores.

A todas essas questões acrescentam-se as trazidas pelo próprio conto.


Georgette chora muito, desesperada da sua doença, cheia de culpa, remor-
so e amor pelo marido. Como cuidar de todos estes procedimentos corporais
e ainda assim obter uma autenticidade na expressão de sentimentos como
esses? Como chorar de forma verossímil enquanto a atriz atrás de mim vai
dizendo o que eu devo dizer a seguir, em falas em que confesso minha trai-
ção, assumo com desespero a fatalidade de uma separação indesejada?

U 28 - Dezembro 2005 - Nº 7
Não sei exatamente por que caminhos vivifico meu aparato emocional, mas
posso dizer que a expressão do choro incontido vem com o gesto impingido
pelo manipulador, vem com o próprio texto, não importando se este é gerado
por mim ou por quem está atrás de mim e tem o comando.

Esta cena foi a que nos deu mais trabalho, que mais tempo de ensaios
exigiu e preciso confessar que, diferentemente das outras, a execução des-
sa cena nem sempre me satisfez - e isto nas duas montagens.

O Justo foi concebido com uma particularidade. A trilha sonora foi sendo
concebida simultaneamente à cena. Compúnhamos os movimentos sobre a
música sugerida. Não podemos supor uma execução desta cena sem essa
música que a fundamentou.

Com exceção feita ao protagonista, ao redor do qual o conto é constru-


ído, os demais personagens assumem as falas de narração que conduzem
os acontecimentos e fazem os comentários que a enriquecem. É uma narra-
ção de dentro do espaço da ação, dada no tom adequado ao que cada um
estipulou como traço principal para o seu personagem. Apenas dois deles,
Isaurinha, a filha de criação e Juca, o filho mais moço, têm falas narrativas
na primeira pessoa.

Esta é a cena, comparável com Despeito, em que a narração é total-


mente inserida na ação. Todos ouvem e reagem ao que o personagem nar-
rador está dizendo para a platéia. Neste procedimento, os textos narrativos
endereçados para dentro da cena acabam por se constituir em verdadeiros
diálogos.

O jogo épico, num cenário totalmente em aberto como o nosso, permite


a troca de ambiente numa simples mudança de direção do corpo do ator,
por exemplo, ou a fala narrativa resolve estas passagens, não só de espaço
como de tempo. Exemplo: o Pai chama Juca para conversar no escritório.
Os dois atores estão sobre o praticável que já foi utilizado como sendo tanto
a mesa de jantar da sala da família, quanto o quarto de Isaurinha e um cor-
redor da casa. O Pai pede a Juca que o acompanhe até o escritório, e basta
que um cruze pelo outro e está desenhado o escritório. Ali, o Pai se mata,
sendo o ato indicado por um simples gesto do ator de apontar um revólver
na direção da cabeça, no acorde forte da música. Numa atitude antiilusionis-
ta de ostentação do teatral, o ator deita-se no praticável, coloca a arma ao
lado do corpo e cruza as mãos sobre o peito. Os outros personagens vão se
aproximando, contritos. Está configurado o velório.

Faço o papel da Mãe. O figurino - um vestido fechado de lã, na altura

Dezembro 2005 - Nº 7 - 29 U
dos tornozelos, mangas compridas, chapéu alto e reto, empresta uma so-
briedade européia (sinto-me uma mulher russa) a esta figura reprimida pela
autoridade incontestável do marido. A situação terrível - a filha adotiva apare-
ce grávida e todos os homens da casa são suspeitos da paternidade – trou-
xe-me os ombros altos, para frente, mãos entrelaçadas na altura do peito,
boca apertada com os lábios repuxados para baixo. A posição atrás da mesa
obriga a movimentos largos e definidos de tronco. O fato de ter concebido a
partitura de falas e gestos do personagem sobre a música, trouxe-me uma
clareza nos tempos da respiração utilizados, como se viesse daí o tempo-
ritmo da expressão fisicalizada do personagem.

O Aleijado tem a mesma chave interpretativa de Selvageria. A narração


é iniciada por um amigo do protagonista, de nome Sandoval. O tom é joco-
so, brincalhão, afinal o “drama” é que Sandoval só gosta de mulher casada.
Para seduzi-lo, Sônia que é apaixonada por ele desde menina, casa-se com
um homem que tem uma perna mais curta que a outra, e por isso não pode
pretender que ela lhe seja fiel. Quando Sandoval se cansa de Sônia e a
abandona, o personagem título, Domício, ameaça matá-lo. O texto narrativo,
que é extremamente econômico, vai passando por todos os personagens,
cada um responsável pelos trechos em que está envolvido no acontecimen-
to de que trata a narração. .

Faço o papel de Sônia e aqui temos uma vantagem do épico. Sou muito
mais velha que o personagem (notadamente na segunda montagem, reali-
zada dez anos depois da primeira) e isso não tem a menor importância. Não
pretendo me fazer passar por Sônia, mas faço o seu papel, represento-a.
Então vou muito à vontade, em movimentos largos e ondulantes, seduzindo
Sandoval pelo telefone, com voz grave e provocante. Desfaço essa voz, que
é truque do personagem para impressioná-lo, e passo para uma voz mais
adequada à sua juventude, mais aguda, esfuziante. Minha chave é a leveza,
a presteza em passar de uma situação para outra, na alegre irresponsabi-
lidade dos atos do personagem. Mesmo nas falas de narração mantenho o
tom de agrado pelo modo como os acontecimentos vão se desenrolando.

Na figuração das carícias amorosas de Sônia e Sandoval, enquanto o


marido dorme depois do jantar, optamos por uma representação em que
Sandoval está sentado, de frente para a platéia. Sento com as pernas afas-
tadas e de frente para ele, sobre uma das suas pernas. Ele me sustenta pela
cintura, dando-me apoio para o movimento que vou fazer, de girar o tronco
de um lado para outro, arqueando-me cada vez mais para trás, rindo muito
até retornar num único movimento para a posição inicial, desta vez em rela-
xamento, braço apoiado no encosto da cadeira em que está o ator.

U 30 - Dezembro 2005 - Nº 7
A cena termina quando Sandoval, pressionado por Domício, vem jantar
novamente na casa do casal. Sentamo-nos os três à mesa, ao redor de uma
sopeira e eu anuncio, singelamente, que jantamos.

É o final da peça. Os outros atores juntam-se a nós, formamos um qua-


dro. Ilumina-se todo o painel do fundo, que está inteiramente tomado pelas
sombras em recorte utilizadas no decorrer da peça. A música é Juízo Final,
de Nelson Cavaquinho e diz que: “(...) do mal será queimada a semente / o
amor será eterno novamente”.

Correio Sentimental de Nelson Rodrigues

A peça é composta das cartas do correio sentimental e do folhetim A Mu-


lher que Amou Demais, a que vou me ater porque permite analisar a atuação
rapsódica num texto dialógico.

Escrito em vinte e cinco capítulos, com todos os elementos típicos do fo-


lhetim, A Mulher Que Amou Demais foi adaptado para o espetáculo em cinco
inserções, intercaladas pelas cartas de Myrna, abrangendo toda a gama de
acontecimentos do original.

Temos vários níveis de narração: Myrna (feita por uma única atriz, dife-
rentemente do que ocorre nas cartas, em que se tem sempre o coletivo de
narradores) é onisciente e introduz os personagens que ilustram a história
de Lúcia, a protagonista. Estes personagens se expressam através de diá-
logos e, algumas vezes, estão encarregados de falas em que narram o seu
passado. Lúcia trafega entre estes os dois mundos, o habitado por Myrna e
o dos personagens que presentificam a sua história. É a única a perceber a
presença de Myrna junto a ela, fazendo-lhe confidências e manifestando, em
linguagem narrativa, pessoalizada, os seus desejos, angústias, esperanças.
Constitui-se, assim, em uma colaboradora na narração da história, chegando
mesmo a completar frases iniciadas por Myrna.

A manipulação ostensiva com que Myrna conduz o relato faz com que
os atores, na composição dos seus personagens, adotem uma corporeida-
de que sugere a presença de um manipulador imaginário, o que resulta em
gestos extremamente desenhados no espaço e sustentados no tempo. Pró-
ximos à impostação melodramática, e sem ferir qualquer princípio de veros-
similhança, possuem acentos descotidianizados e complexos.

Houve uma peculiaridade na construção do desempenho atoral no fo-


lhetim. O texto nos foi entregue pelo diretor adaptador em capítulos, como

Dezembro 2005 - Nº 7 - 31 U
um folhetim que se preze, à medida que ia realizando as modificações ne-
cessárias para a transposição do texto para o palco. Portanto, lidávamos,
para a criação das primeiras cenas, com informações incompletas sobre os
personagens e a trama.

Nos papéis de Dona Dorinha, mãe de Lúcia, e de Dona Olívia, mãe de


Carlos e de Paulo, noivo de Lúcia, trabalhei a partir da idéia de estabelecer
uma diferença corporal entre as duas - que aliás contracenavam em certos
momentos - pela colocação nitidamente diferenciada da coluna vertebral.

O uso de um xale sobre os ombros para uma e ao redor do pescoço para


a outra, também oferecia uma distinção. Na verdade, no momento em que
eu fazia as duas dialogarem, nem tocava no adereço. A diferenciação dava-
se tão somente no corpo e na voz.

Concebi Dona Olívia ereta, quase rígida no seu sofrimento e austera


autoridade. Gestos econômicos, realizados nunca acima da linha da cintura,
os braços próximos do corpo, andar firme, lento e cadenciado, de quem não
perde o autocontrole – característica que o texto aponta também para o seu
filho Paulo.

Para Dona Dorinha, então, por contraste e servindo às circunstâncias


do texto, arredondei as costas. Deixando que esta postura repercutisse no
corpo inteiro, obtive: inclinação acentuada na cervical, a parte de trás da
cabeça quase se encostando à nuca, o queixo alto, gestos igualmente ele-
vados sempre na altura do peito, ganhando amplitude para frente e para
os lados, ágeis, nervosos. O caminhar era igualmente rápido, de passos
curtos e leves. Na cena em que as duas mães dialogam tornou-se muito sim-
ples passar de um corpo para outro com a fluência e prontidão necessárias.

Para a composição dos personagens Carlos e Virgínia foram usadas


meias máscaras neutras. Carlos é descrito como um homem belíssimo, qua-
se sobrenatural. Virgínia, tida como morta, reaparece sem memória. Se na
atitude dos atores ao comporem seus personagens para o Folhetim aparece
um manipulador imaginário, nestes dois, construídos com a máscara, a sua
presença parece ser ainda maior.

A composição de Virgínia trouxe-me várias questões. Primeiramente,


considerando a própria máscara, foi preciso ter movimentos muito definidos
comandados pelo pescoço, já que o olhar do personagem é dado pela dire-
ção para onde aponta o nariz. Optei por ter a coluna ereta naturalmente e
enfatizar os movimentos dos braços, punhos e mãos. Trabalhei espontane-
amente com a palma das mãos para cima - o que me dava uma sensação

U 32 - Dezembro 2005 - Nº 7
inequívoca de solidão, carência e abandono.

O diretor concebeu a primeira cena de Virgínia e Lúcia ao redor da mesa.


Pediu que além de girarmos ao redor dela, também girássemos ao redor de
nós mesmas. Estes giros fizeram-me sentir a presença forte das pernas, e
todo o jogo de peso/equilíbrio que traduzia a inquietação do personagem.
Adquiri também uma percepção muito forte do jogo possível entre os movi-
mentos de braços e pernas, de modo a produzir a leveza e fluência deseja-
das na figuração géstica do personagem. Havia uma ênfase nas transferên-
cias de peso, com ou sem locomoção.

Observei que se eu não tivesse um forte controle do movimento das per-


nas, seria muito difícil a execução da cena em que Paulo tenta matar Virgí-
nia no barco, cujo movimento é sugerido por um balanço sincronizado entre
tronco e pernas. Da mesma forma, na cena em que o personagem caminha
pelas ruas como uma sonâmbula o foco vai, mais uma vez, para o controle
do movimento das pernas.

Mas alguma coisa, a música talvez, trazia um forte chamamento para


os meus punhos. Estou em pé, sobre a mesa/praticável, de frente para a
platéia. Carlos, atrás de mim, pronuncia um nome, Virgínia, que ainda não
reconheço como meu. Mas é grande a minha comoção. Levo as mãos na
altura dos ouvidos, os cotovelos apontando para os lados. Em seguida, vou
aproximando-os à frente do corpo, até que as palmas das mãos encubram o
rosto/ máscara, os cotovelos baixos, ao mesmo tempo em que me ajoelho.
Já ajoelhada, giro os cotovelos para fora e vou, então, estendendo os braços
lateralmente, com uma tensão tão forte nos punhos, que demoro a desfazer.
Tenho que promover um esforço para estender finalmente as mãos, repetin-
do sempre “Virgínia, Virgínia...”

É a posição das mãos que marca a diferença no personagem, quando


ele recupera a memória: suas palmas voltam-se decididamente para baixo,
apontando para dentro, para o corpo.

Pude experimentar mais uma vez o prazer de passar com imediatismo


de um corpo para outro, quando, logo após o momento em que Dona Olívia
vê seu filho Paulo morto, a narração evoca a cena do assassinato. Coloco-
me de costas para a platéia. Entrego meu xale para um dos atores, e recebo
dele a máscara de Virgínia, que coloco imediatamente. O movimento de girar
sobre mim mesma, voltando à cena, já se dá em seu nome.

No trabalho que fiz com o Núcleo Carioca de Teatro, foi este persona-
gem, o de Virgínia, que me ofereceu maiores oportunidades de composição

Dezembro 2005 - Nº 7 - 33 U
elaborada. Nos contos encenados ou na novela de Voltaire há uma quali-
dade de síntese, de precipitação dos acontecimentos que favorece, inclusi-
ve, o tipo de teatralidade que nos interessa pesquisar, a da essencialidade.

É uma escrita acelerada, em que o autor não se detém no desenho


minucioso dos personagens. Já o Folhetim permitiu uma composição mais
elaborada, por colocar os personagens num universo alargado de circuns-
tâncias. Foi com Virgínia que meu foco passou da composição do Narrador
para a composição, ainda assim épica, de um personagem complexo e pre-
dominantemente dialógico.

Notas__________________________________________

¹ A VIDA COMO ELA É, encenação dos contos de Nelson Rodrigues, “O


Desgraçado”, “Uma Senhora Honesta”, “Selvageria”, “Paixão”, “Românti-
ca”, “Noiva Para Sempre”, “Despeito”, “Noiva da Morte”, “Doente”, “O Jus-
to”, “O Aleijado”. Recebeu várias indicações para prêmios, conquistando
os troféus SATED de Melhor Direção e Melhor Espetáculo. Estréia no Cen-
tro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 1991. Elenco: Maria Esme-
ralda Forte, Ivo Fernandes, Shimon Nahmias, Nara Keiserman, Francisco
de Figueiredo, Denise Izeckson, Eliane Costa, Abelardo Lustosa, substitu-
ído por Carlos Pimentel. Cenário e Figurino: Alziro Azevedo; Trilha Sono-
ra: Geraldo Torres; Iluminação: Rogério Wiltgen; Máscaras: Malu Rocha
e Félix Bressan; Preparação Corporal: Nara Keiserman; Assistente de Di-
reção: Flávio Rocha, substituído por Abelardo Lustosa; Produção Executi-
va: Márcia Dias; Direção de Produção: Ivo Fernandes e Shimon Nahmias.
CÂNDIDO OU O OTIMISMO, novela de Voltaire. O cenógrafo e figurinista Alziro
Azevedo foi indicado, por este trabalho, ao prêmio Shell de Melhor Figurino. Es-
tréia no Centro Cultural Banco do Brasil, 1993. Elenco: Maria Esmeralda Forte,
Ivo Fernandes, Shimon Nahmias, Nara Keiserman, Francisco de Figueiredo,
Eliane Costa, Maria Adélia. Cenário e Figurino: Alziro Azevedo; Trilha Sonora:
Mário Vaz de Melo; Iluminação: Rogério Wiltgen; Adereços: Malu Rocha; Pre-
paração Corporal: Nara Keiserman; Assistente de Direção: André Paes Leme;
Produção Executiva: Ângela Reis; Direção de Produção: Shimon Nahmias.
TRAGÉDIAS CARIOCAS PARA RIR, composta pelos contos “O Morto”,
de Orígenes Lessa, “Obscenidades
Obscenidades Para Uma Dona de Casa” Casa”, de Ignácio
Loyola Brandão, “Noite de Almirante”
Almirante”, de Machado de Assis, “Dentro da
Noite”, de João do Rio e “O Anão”
Noite” Anão”, de Rubem Fonseca. Estréia no Tea-
tro Cacilda Becker, Rio de Janeiro, 1996. Elenco: Maria Esmeralda Forte,
Shimon Nahmias, Nara Keiserman, Francisco de Figueiredo, Daisy Pozzato
e Maurício Grecco, substituído por Sérgio Xavier na segunda temporada.
Diretor Colaborador: Renato Icarahy; Cenário: Lídia Kosovski; Figurino e
U 34 - Dezembro 2005 - Nº 7
Adereços: Samuel Abrantes; Direção Musical: Mauro Perelman; Iluminação:
Rogério Wiltgen; Máscaras: Luciana Maia Produção: Assistente de Dire-
ção: José Eduardo dos Santos; Produção: Sarau Promoções Culturais Ltda.
CORREIO SENTIMENTAL DE NELSON RODRIGUES, cartas publicadas na
coluna de correio sentimental que Nelson Rodrigues manteve no jornal Diário
da Noite, de abril a dezembro de 1949, sob o pseudônimo de Myrna. Estréia no
Teatro Gláucio Gill, Rio de Janeiro, 1999. Elenco: Maria Esmeralda Forte, Nara
Keiserman, Francisco de Figueiredo, Ludmila Breitman e Alexandre Bordalo.
Cenário: Carlos Alberto Nunes; Figurino: Francisco de Figueiredo; Direção
Musical: Demetrio Nicolau; Iluminação: Luis Carlos Nem; Adereços: Carlos
Alberto Nunes, Francisco de Figueiredo e Fernando Sant’Anna. Maquiagem:
Francisco de Figueiredo; Preparação Corporal: Nara Keiserman; Pesquisa
Bibliográfica: Bárbara Carolino; Assistente de Direção: Alex Machado; Produ-
ção Executiva: Ângela Blazo; Direção de Produção: Francisco de Figueiredo.
A PROSA DO NELSON é composto de crônicas autobiográficas: crônicas
I e II,; “Um Menino de Paixões de Ópera” e “Lili Ardeu Como Uma Estre-
la”; crônicas de futebol: “Duplamente Poeta”, “O Deus das Batalhas”, “Meu
Personagem do Ano”, “O Nosso Obdulinho”, “O Escrete dos Loucos”; “O
Quadrúpede de 28 Patas”, “A Realeza de Pelé”, “O Pelé Branco”, “O Di-
vino Delinqüente”, “Descoberta de Garrincha”, “Garrincha não Pensa”, “O
Eichmann do Apito”, “Os que Negam Garrincha”, “Um Gesto de Amor”, “O
Grande Dia de Otacílio e Odete”; “Garrincha no Deserto”; e ainda repor-
tagens policiais: “Sofro Só por sua Culpa”, “Um Tiro Ecoou Entre os Ru-
mores da Festa e a Jovem Tombou Morta”, “A Paixão Religiosa de Maria
Amélia”. Estréia no Teatro do Planetário, Rio de Janeiro, 2000. Crônicas Au-
tobiográficas - Direção: Luiz Arthur Nunes; Elenco: Maria Esmeralda For-
te, Nara Keiserman, Francisco de Figueiredo, Ludmila Breitman, Alexandre
Bordalo, João Paulo Pantoja e Alex Machado; Reportagens Policiais - Dire-
ção: Nara Keiserman; Elenco: Henrique Pinho, Natasha Corbelino, Rena-
ta Porto, Saulo Rodrigues, Vivian Duarte; Crônicas de Futebol – Direção:
Demetrio Nicolau; Elenco: Isabel Peroni, Luciana Ferreira, Maria Luiza Ca-
valcanti, Mohamed Harfouch, Pedro Rocha, Tatiana Nogueira, Thales Cou-
tinho e Thiago Magalhães. Músicas e Direção Musical: Demetrio Nicolau;
Arranjos Vocais e Regência: Sérgio Sansão; Coral: Quebra-Vozes; Figuri-
no: Francisco de Figueiredo; Iluminação: Luca Pergon; Assistente de Dire-
ção (autobiográficas): Alex Machado; Produção Executiva: Aduni Benton.
UM MENINO DE PAIXÕES DE ÓPERA, frases e crônicas autobiográficas de
Nelson Rodrigues: as já mencionadas I, II, “Um Menino de Paixões de Ópe-
Estrela”, e ainda as crônicas V, X e X2, “O Fas-
ra” e “Lili Ardeu Como Uma Estrela”
cínio por Uma Grande Dor”, “A Grande Dor Não se Assoa”; “Pessoas, Mesas
e Cadeiras Boiavam no Caos”, “O Autor Sem Apoteose”. Estréia no Teatro
Villa-Lobos, Sala Arnaldo Niskier, Rio de Janeiro, 2000. Elenco: Maria Es-
meralda Forte, Nara Keiserman, Francisco de Figueiredo, Ludmila Breitman,

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Alexandre Bordalo e João Paulo Pantoja; Cenário: Carlos Alberto Nunes;
Figurino: Francisco de Figueiredo; Direção Musical: Demetrio Nicolau; Ilumi-
nador: Luis Carlos Nem; Preparação Corporal: Natasha Corbelino; Assisten-
te de Direção: Alex Machado; Diretor de Produção: Francisco de Figueiredo.
A VIDA COMO ELA É, segunda montagem. Estréia no Teatro Carlos Go-
mes, Rio de Janeiro, 2002. Elenco: Maria Esmeralda Forte, Nara Keiser-
man (substituída por Dayse Pozzato na segunda temporada), Francis-
co de Figueiredo, Ivo Fernandes, Eliane Costa, Isaac Bernat, Isabela
Lomez, Thiago Magalhães. Cenário e Figurino: Alziro Azevedo, reprodu-
zidos por Carlos Alberto Nunes e Francisco de Figueiredo; Trilha Sono-
ra: Geraldo Torres; Iluminação: Rogério Wiltgen; Máscaras: Fernando
Sant’Anna; Adereços: Carlos Alberto Nunes; Maquiagem: Francisco de
Figueiredo; Assistente de direção: Alexandre Bordalo; Produção Executi-
va: Marília Milanez e Analu Tannuri; Direção de Produção: Ivo Fernandes.
² Especificamente, na Pesquisa Institucional “O Ator Rapsodo: Pes-
quisa de Procedimentos para Uma Linguagem Gestual” Gestual”, na UNI-
RIO e no grupo teatral que dirijo, denominado AtoresRapsodos.
³ Este procedimento é amplamente utilizado na peça O Narrador, com
contos de diferentes autores, que dirigi com os AtoresRapsodos, em 2005.
4
A base dos procedimentos gestuais na construção da cena rapsódi-
ca do NCT é dada pelo que denominamos de Seqüências de Manipu-
lação, que se organizam em etapas determinadas por modificações no
fator peso do corpo do manipulado. As etapas são: Morto, Macaco, Bê-
bado, Impulso, Bonecos Chineses e Fotograma. Fazemos uma bre-
ve explicitação daquelas que são mencionadas, no corpo deste artigo.

Bibliografia____________________________________

BRECHT, Bertolt. Teatro dialético – ensaios. Tradução: Luiz Car-


los Maciel e outros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
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STANISLAVSKI, Constantin. A criação do papel. Tradução: Pon-
tes de Paula Lima. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1972.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 37 U
U 38 - Dezembro 2005 - Nº 7
Codificar para recriar: a busca do “Punctum”
________________________________________________
Renato Ferracini*

Acredito que um dos trabalhos mais difíceis para o ator seja o de desco-
brir mecanismos corpóreos concretos para que ele possa recriar, no mo-
mento do Estado Cênico¹, uma ação física em estado intensivo trabalhada
em qualquer treinamento. Essa dificuldade faz com que a grande maioria
das ações “expressivas”, em qualquer treinamento, esteja nesse ambiente
“não aproveitável”, ambiente mecânico e dos clichês pessoais do corpo co-
tidiano. Mas existem momentos, nesses treinamentos, nos quais ações físi-
cas orgânicas e estados corpóreos “vivos” ocorrem, justamente quando essa
“expressão” corpórea mergulha em um campo de intensividade, foge dos
clichês pessoais e redimensiona as ações que o corpo cotidiano realiza,
jogando-o no caminho da construção de um corpo-subjétil². Mas justamente
nesse momento de criação acontece uma segunda grande dificuldade: ou
nós atores vivenciamos esse estado ou ação e pela repetição de sua ocor-
rência - se acontecer - acabamos adquirindo naturalmente os mecanismos
para sua retomada; ou tentamos encontrar, forçar, estudar mecanismos cor-
póreos para uma posterior retomada de uma ação física ou estado. Acredito
que nem seja preciso dizer que muitas e muitas ações e estados que entram
nessa zona de intensividade são irremediavelmente perdidos pela nossa in-
capacidade de retomá-los e recriá-los posteriormente.

Podemos pensar que o ator, quando entra nesse estado intensivo, zona
virtual, gera linhas de fuga e desterritorializações do macro Plano de Organi-
zação no qual seu corpo se insere e ao mesmo tempo introjeta essas linhas
de fuga em formalizações musculares espaço/temporais. Durante esses úl-
timos treze anos de trabalho prático no LUME acabei percebendo que, para
que fosse possível uma retomada desses estados intensivos, eu deveria ten-
tar contrair essa ação global em micro elementos que seriam como pontos
musculares de retomada enquanto recriação dessas mesmas ações físicas
no Estado Cênico. Procedendo dessa forma eu acabava adquirindo, para
cada ação física, ou micro densidades musculares, ou micro articulações
espaço/temporais, ou micro impulsos, ou mesmo imagens e sensações, ou

* Renato Ferracini, Doutor em multimeios (UNICAMP), é ator- pesquisa-


dor-colaborador integrante do LUME - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas
Teatrais - UNICAMP.

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seja, pontos musculares específicos e contraídos que, quando ativados, me
remetiam às ações físicas e matrizes³, sendo possível sua retomada e re-
criação posterior. Todos esses elementos, independentes entre si, podiam
ser contraídos em conjunto ou em partes, ou seja, uma ação física poderia
conter apenas uma microarticulação de quadril como único ponto de reto-
mada/recriação, enquanto outra possuiria dois micro impulsos e uma micro
articulação que deveriam ser ativados em conjunto para que a recriação da
ação e/ou da matriz fosse possível. A criação desses “pontos” era trabalhada
de duas formas: ou através de uma percepção de repetição dessas mesmas
ações, ou através de uma pesquisa e busca ativa, corpórea. Esses pontos
musculares eram como “portas” de entrada para esse estado intensivo, que,
quando ativados se expandiam e recriavam a ação física ou o estado, tanto
em sua materialidade quanto em sua “vida” e organicidade, gerando tanto o
estado atual recriado desse estado (físico e muscular) como o próprio estado
virtual da ação enquanto intensividade. Tomando minha experiência pessoal
de recriação de ação como uma possível experiência válida, posso dizer
que, para que essas ações realmente expressivas (intensivas, orgânicas,
“vivas”) encontradas e pressionadas no treinamento sejam passíveis de ser-
em recriadas, devo encontrar nelas mesmas contrações, pontos de ativação
para a recriação da própria ação física no momento do ato artístico. A esses
pontos de ativação corpóreos ou vocais chamarei Punctum.

O conceito de Punctum, aqui, é emprestado de Roland Barthes, princi-


palmente da obra A Câmara Clara (1984). É utilizado por Barthes para no-
mear um “detalhe” na foto que chama a atenção daquele que olha. Punctum,
enquanto o que me punge, o que me toca, o que afeta. Claro que Barthes
coloca esse conceito enquanto recepção de um olhar na foto, um detalhe
expansivo e metonímico que leva o receptor da foto para estados outros, um
estado-em-arte da foto. Esse conceito de Punctum, em Barthes, está relacio-
nado ao conceito de Studium. Segundo Barthes:

Muitas fotos, infelizmente, permanecem inertes diante de meu


olhar. Mas mesmo entre as que têm alguma existência a meus
olhos, a maioria provoca em mim apenas um interesse geral e, se
assim posso dizer, polido: nelas nenhum Punctum: agradam-me
ou desagradam-me sem me pungir: estão investidas somente de
studim [...]. O Studium é o campo muito vasto do desejo indolente,
do interesse diversificado, do gosto inconseqüente: gosto / não
gosto (1984: 47)

Para o ator, o conceito de Studium de Barthes poderia estar vinculado ao


terreno da mecanicidade, dos clichês, da fisicidade. Mas podemos reutilizar
o conceito de Punctum para entendermos melhor a questão da recriação de

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ações físicas. Portanto, redimensiono aqui esse conceito na relação do ator
para com ele mesmo. O que chamo de Punctum físico é, muitas vezes, um
conjunto de pequenos detalhes da ação, mas são esses detalhes que inter-
essam enquanto caráter potencialmente expansivo e metonímico do Punc-
tum na ação física a ser recriada a posteriori. Metonímico no sentido de que
esse detalhe muscular contém, em potência e em estado virtual, o todo da
ação e que esse detalhe pode mobilizar esse mesmo todo, em um processo
de atualização, ou seja, de recriação da ação. Como diz Barthes: por mais
fulgurante que seja, o Punctum tem, mais ou menos virtualmente, uma força
de expansão. Essa força é principalmente metonímica (1984: 73). A reto-
mada de uma ação física, ou seja, sua recriação, é possível através da ati-
vação de um Punctum físico que é potencialmente expansivo e metonímico,
ou em outras palavras, a possibilidade da recriação da ação física no Estado
Cênico é possível através da ativação de pequenos detalhes corpóreos e ou
vocais, sejam eles micro ou macro densidades musculares, micro ou macro
ritmos e planos no tempo/espaço que mobilizam o todo, recriando a ação
física. Punctum, portanto, é uma porta de entrada corpórea para a recriação
da ação física, e sendo uma recriação lança o corpo cotidiano do ator em um
estado outro, um estado de corpo-subjétil, corpo-em-arte, corpo-em-jogo. At-
ravés desses detalhes físicos que recriam a ação física em sua intensividade,
o ator é capaz de reviver, ou melhor, recriar sua ação física no momento da
atuação. Esses pontos musculares (Punctum) são pontos musculares em
estado metonímico e contraídos que possibilitam um processo de atualiza-
ção - e, portanto recriações - de ações físicas vivenciadas anteriormente e
que se encontram virtualizadas no corpo enquanto memória. Assim, o que
chamamos, no LUME, de matriz codificada é, na verdade, um corpo varrido
por pontos que podem ser ativados no momento da atuação enquanto ação
a ser recriada nela mesma.

Não somos, de forma alguma, arrebatados por esse pontos, pelo Punc-
tum, mas existe claramente uma zona de controle dentro da própria expan-
são do Punctum, dentro da própria recriação da matriz. Em outras palavras,
ao mesmo tempo em que recriamos, sabemos que estamos recriando, por
mais arrebatadora que essa recriação seja, tanto para nós atores como para
os espectadores. Criamos, portanto, uma zona de jogo. E não confundamos
esse saber com uma questão intelectual. É o próprio corpo-subjétil, em esta-
do uno, englobado com o próprio estado mental, que “sabe” que está criando
com todas as forças. Dessa forma ele mergulha em um estado intensivo de
trabalho, de jogo, de correlações, de zonas de vizinhança, mas ao mesmo
tempo, “sabe” que está nesse estado, pode ativar outro Punctum, pode sair
desse estado e entrar em outros, pode se abrir para afetações, pode afetar,
desviar o foco, brincar com o espaço, “improvisar” e mesmo brincar com o
próprio Punctum e matrizes. Uma zona co-existente de criação e jogo, de

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controle e completo mergulho dentro dessa zona de intensividades.
O Punctum não é exclusivo de matrizes enquanto ações físicas codifica-
das. Eles se estendem a todo o trabalho do ator, mesmo os pré-expressivos.
Sabemos, por experiência, que a repetição de elementos técnicos e energéti-
cos treinados geram vivências físicas, energéticas e intensivas que são arma-
zenadas em estado virtual no corpo cotidiano. Essas mesmas vivências físicas,
energéticas e intensivas, como ações físicas expressivas que são trabalha-
das cotidianamente, também acaba gerando o Punctum ou conjunto deles por
repetição dos elementos pré-expressivos trabalhados e que podem ser ati-
vados a posteriori, recriando esse “estado” virtual previamente armazenado.

Sobre esse “estado” frisemos um ponto: relembremos que o Punctum,


segundo Barthes, possui um caráter expansivo e metonímico. E já verifica-
mos que para o trabalho de ator, ele também possui essas características,
mas, dentro do trabalho de ator essas características são, mais ou menos,
independentes. Assim, ao gerarmos o Punctum ou conjunto deles em trabal-
hos energéticos e/ou técnicos, podemos ativá-los, posteriormente em seu
caráter metonímico, mas não expansivo, ou, em outras palavras, podemos
ativar o Punctum sem que ele se expanda no espaço e recrie a ação físi-
ca formalizada. Quando ativamos o Punctum sem utilizar seu caráter ex-
pansivo, criamos o que chamamos, internamente, no LUME, de um estado
corpóreo no qual ativamos as intenções de todos os trabalhos pré-expres-
sivos, gerando uma dinâmica corpórea em uma suposta inatividade. Assim
podemos ativar o Punctum, ou conjunto deles, de vivências extremas do
energético, e de elementos pré-expressivos dos trabalhos realizados nos
treinamentos técnicos, jogando o corpo em uma espécie de estado corpóreo
extracotidiano, ou ainda, o que dá no mesmo, um estado dilatado, ou estado
intensivo, sem qualquer ação expandida. Para ser mais preciso, não é que,
no Punctum, suas características metonímicas e expansivas sejam complet-
amente independentes entre si: na realidade, ativando o Punctum de uma
matriz ativamos também seu caráter expansivo, mas esse último, de certa
forma, é controlável pelo ator. Ativando o Punctum, ou conjunto deles, de
uma ação-física, ou matriz, ou vivência do trabalho energético, ou elementos
pré-expressivos do treinamento técnico, ativamos, necessariamente, as ar-
ticulações e os impulsos desses trabalhos, mas os tapamos, os contraímos,
os “seguramos”, criando uma (in)tenção desses elementos, gerando micro
articulações, micro impulsos no espaço, mas que são, de certa forma, con-
cretos para o ator. Assim, o que chamamos de estado é um Punctum, ou
conjunto deles, ativados, tendo seu lado expansivo controlado, contraído.

É justamente esse controle que coloca o corpo em um estado de ação na


inação, inação essa aparente, pois o esforço em controlar e manter o Punc-
tum sem seu caráter expansivo faz com que tenhamos toda uma relação não

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cotidiana com nossa musculatura, o que dá a sensação interna, para o ator,
de uma dilatação corpórea e para o espectador, de fora, de uma presença
não natural do ator. Criamos um estado em intenção que prepara o corpo
cotidiano para um mergulho em uma zona intensiva. Em um jargão interno
dentro do LUME, quando ativamos somente o Punctum sem seu caráter
expansivo referentes a todo o trabalho técnico e energético trabalhado no
passado - sejam vivências do treinamento energético e/ou mesmo princí-
pios pré-expressivos de trabalho existente no presente de forma contraída e
em estado virtual no corpo cotidiano - dizemos que “entramos em trabalho”.
“Entrar em trabalho” significa, então, atualizar o Punctum, ou conjunto de-
les, contraídos em estado virtual de todo o trabalho pré-expressivo do ator
contraindo, controlando sua expansão. Obviamente, como as vivências e
o estado virtual de todo o trabalho é acumulativo, quanto mais tempo de
treinamento pré-expressivo um ator tenha, mais Punctum, ou conjunto de-
les, em estado virtual ele terá e, portanto mais “portas” de entrada haverá.
Mas tomemos cuidado: a palavra “mais”, aqui, não pode ser lida apenas de
modo quantitativo, ou ainda em relação a uma possível causa-efeito simplis-
ta, mas deve ser lida de forma qualitativa. O Punctum pré-expressivo pode
ser mais e mais “afirmado”, pontuado, sublinhado, redescoberto durante o
trabalho cotidiano pré-expressivo do ator. E quanto mais sublinhado o Punc-
tum, maior a força de sua expansão quando ativado. Assim, também, mais
potencializado o estado para o qual o Punctum, ou conjunto deles, remete
o corpo. Não porque o Punctum, em si, remeta o corpo cotidiano de forma
mais potencializada a esse estado, mas porque a força que será necessária
para não expandir um Punctum será maior, já que o próprio Punctum estando
mais sublinhado, possui uma força potencial e virtual de atualização maior.

Dessa forma, quando recrio uma matriz estarei ativando, necessari-


amente, um conjunto em camadas de um Punctum ou vários deles, pois
ao ativar o Punctum da matriz esse ativará, também, o Punctum de todo o
trabalho pré-expressivo enquanto camada anterior de trabalho. O Punctum
da matriz ativa o Punctum pré-expressivo formando uma rede que “liga”,
expande e transborda o corpo cotidiano, lançando-o à recriação de matrizes
e estados corpóreos “dilatados”, enfim, ao corpo-subjétil. Essa ativação em
conjunto e em camadas acontece, pois quando uma matriz nasce, nosso cor-
po está “em trabalho”, ou seja, o corpo está com o Punctum pré-expressivo,
ou um conjunto deles, ativado. Dessa forma, quando codifico uma matriz
corpórea, ou seja, quando encontro o Punctum capaz de recriar uma ação
física trabalhada por mim em treinamento cotidiano ou em trabalhos pontuais
– mimese corpórea, por exemplo – acabo trabalhando o Punctum, ou con-
junto deles, dessas matrizes que são pontuados sobre o estado de trabalho,
ou seja, sobre uma “camada” de Punctum pré-expressivo ativado. Portanto,
toda ativação/recriação de uma matriz, já que sua pontuação/codificação

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foi assentada nesse estado de trabalho, será uma ativação também desse
estado que se somará e se conectará à própria força intensiva da matriz. É
por isso que as matrizes de um ator em sua recriação, enquanto vocabulário
pré-expressivo de trabalho, são renovadas em sua força: quanto mais tempo
o ator utiliza para realizar um trabalho pré-expressivo, tanto mais ele afirma
o Punctum pré-expressivo. Quanto mais Punctum, ou conjunto deles, ele
descobre e sublinha em seu trabalho, enfim, quanto mais treina, mais seu
vocabulário também é sublinhado e afirmado, já que o “estado de trabalho”
ativado pelo Punctum pré-expressivo e a própria matriz formam uma ação
expressiva única, realizada em camadas que se diagonalizam e se retro-ali-
mentam, renovando-se.

Mas também devemos trabalhar para manter o Punctum de uma ação/


matriz. O tempo ocioso desgasta, desbasta o Punctum de uma ação física.
Nós, enquanto atores, sempre corremos esse perigo. Devemos, pois, retra-
balhar nosso vocabulário de ações/matrizes, recriando-as em sala de tra-
balho, sublinhando e aprofundando seu Punctum. Claro que um Punctum
muito sublinhado será mais difícil de ser desgastado e perdido, mas ações
e matrizes recentemente descobertas devem ser trabalhadas para que seu
Punctum , ou conjunto deles, seja cada vez mais acentuado e sublinhado.
Quando perdemos o Punctum de uma matriz, a “porta” de entrada para sua
recriação, não significa que não conseguimos reproduzi-la no tempo/espaço,
mas significa que essa reprodução passa a ser mecânica; a matriz não possui
mais um campo de intensividades e a musculatura apenas repete os movi-
mentos previamente assimilados da matriz e isso não interessa em absoluto.
O Punctum ativado, ao mesmo tempo em que lança a musculatura para uma
ação no tempo/espaço, lança também essa mesma ação em uma zona in-
tensiva, de criação. Por isso recriamos uma ação física, nunca a repetimos.
E o Punctum é a chave inicial dessa recriação.

Pela própria característica do Punctum em ser metonímico e expansivo


e esses elementos serem mais ou menos independentes, toda matriz terá,
então, um estado – quando o Punctum é ativado com um controle de sua
expansão - e uma ação – quando o Punctum é finalmente expandido e a
recriação da ação física acontece no tempo/espaço. Também a graduação
espaço/temporal entre esse estado e a ação total pode ser controlada. Po-
demos ter apenas o estado da matriz, enquanto ação numa aparente inação,
ou recriá-la apenas com suas ações muito reduzidas, pouco reduzidas e
mesmo com ações expandidas, maiores que a ação codificada propriamente
dita. Podemos, inclusive, omitir certos movimentos, realizar variações de rit-
mos e dinâmicas e mesmo tentar “colar” outras ações/movimentos por sobre
o estado da matriz. A essa possibilidade de brincar com a fisicidade da matriz
dei o nome de variação de fisicidade. Assim, para cada matriz teremos uma

U 44 - Dezembro 2005 - Nº 7
gama quase infinita de possibilidades de trabalho espaço/temporal, pois
para cada matriz poderemos criar submatrizes e variações dela mesma no
espaço/tempo.

Temos, portanto, dois universos que podem ser percebidos, apesar de


não serem absolutamente independentes: ao estado que o Punctum ativado
sem expansão recria, podemos chamar de corporeidade e a possibilidade
de toda a variação formal e mecânica sobre esse estado podemos chamar
de fisicidade. Podemos dizer que o ator deveria aprender a manipular a fisi-
cidade da ação sem nunca perder sua corporeidade. Esses conceitos difer-
enciados de corporeidade e fisicidade foram propostos inicialmente por Luís
Otávio Burnier:

A corporeidade é a maneira como as energias potenciais se cor-


porificam, é a transformação destas energias em músculo, ou seja,
em variações diversas de tensão. Esta transformação de energias
potenciais em músculo é o que origina a ação física (BURNIER,
2001: 75).

Já a fisicidade corresponde à parte mecânica pela qual se operacionaliza


uma ação física no tempo/espaço. Da fisicidade fazem parte o movimento,
a relação desse movimento com o tempo/espaço, enfim, elementos que cor-
respondem à ordem mecânica da ação física. Na definição do próprio Luís
Otávio Burnier:

Por fisicidade, entendo a maneira como o corpo age e faz, como


ele intervém no espaço e no tempo, o seu dinamorritmo. A cor-
poreidade é mais do que a pura fisicidade de uma ação. Ela, em
relação ao indivíduo atuante, antecede a fisicidade... [...] a cor-
poreidade está, pois, entre a fisicidade e as energias potenciais
do ator. Ela pode ser considerada como a primeira resultante física
do processo de dinamização das distintas qualidades de energias
que se encontram em estado potencial. Está muito próxima do
que podemos chamar de “qualidades de vibração”. Ela significa a
primeira etapa deste processo de corporificação das qualidades
de vibração, ao passo que a fisicidade significa a etapa final deste
processo (BURNIER, 2001: 75).

Concordo com Luís Otávio, mas devemos tomar cuidado, pois, na


verdade, esses conceitos se imbricam e não devem ser pensados separ-
adamente: a fisicidade, enquanto mecânica da ação, suporta sua própria
corporeidade enquanto potência intensiva dessa mesma ação/matriz. Em
outras palavras, seria impossível gerar um estado, uma corporeidade, sem

Dezembro 2005 - Nº 7 - 45 U
uma formalização anterior que, quando suprimida em seu caráter expansivo
no ativar do Punctum dessa matriz, gera esse estado, gera a corporeidade
da ação. Mas a própria corporeidade suporta fisicidades espaço/temporais
que são mergulhadas no campo intensivo da corporeidade, numa espiral que
engloba ambos os conceitos, recriando a matriz e gerando submatrizes. A
corporeidade seria o estado da matriz; um Punctum ativado sem seu caráter
expansivo, jogando o corpo cotidiano em uma zona intensiva. A fisicidade
mergulha nessa zona e é absorvida por esse plano (corporeidade). A cor-
poreidade nada mais é que o estado “anterior” da matriz, intensivo, mas real
e coexistente, da ação física no tempo/espaço (fisicidade).

Notas__________________________________________
¹ Chamo de Estado Cênico o momento específico em que o ator se encon-
tra na ação de atuação juntamente com o público e com todos os elementos
que compõe a cena. Prefiro usar o termo “Estado Cênico” ao geralmente
usado “Estado de Representação” ou ainda “Representação” pois acredito
que o conceito de “representação”, mesmo não sendo usado nesse artigo
dentro de um território filosófico, pode gerar distorções dentro da conceitu-
ação do trabalho do ator, já que esse termo possui uma carga conceitual
histórica densa e pela massa enorme dessa carga pressionará, certamente,
o conceito teatral de “representação” que, dentro do território teatral, pode
ser simplesmente pensado enquanto atuação, ação de atuar. Se rebatido ao
seu conceito filosófico, devemos esclarecer que o ator não se coloca no lu-
gar de algo, não representa algo. Ele não é uma imagem imperfeita colocada
no lugar de uma outra imagem. Ele não é, portanto, uma segunda presença
que está no lugar de uma primeira presença que não está ali, seja de uma
suposta personagem, seja de uma imagem, seja de uma estado emotivo. Na
verdade, o ator cria uma ação poética recriada a cada instante no momento
em que atua, age em cena. Ele não se coloca no lugar de, mas cria um es-
paço único, uma ação única que gera um acontecimento também único.
² CORPO-SUBJÉTIL: um corpo-em-arte não pode ser conceituado como
uma ponta de um dualismo, mas como um corpo integrado e vetorial em
relação ao corpo com comportamento cotidiano. Chamei, então, esse corpo
integrado expandido como corpo-em-arte, esse corpo inserido no Estado
Cênico de corpo-subjétil. Subjétil seria, segundo Derrida, retomando uma
suposta palavra inventada por Artaud, a palavra ou a coisa [que] pode tomar
o lugar do sujeito ou do objeto, não é nem um, nem outro (Derrida e Berg-
stein, 1998: 23). Um subjétil não é um sujeito, muito menos o subjetivo, não
é tampouco o objeto, mas exatamente o quê e a questão do “quê” guarda um
sentido no que concerne ao que está entre isto ou aquilo [...] (1998: 38 - grifo
meu). Outra questão é que essa palavra subjétil pode, por semelhança, ser
aproximada da palavra projétil, o que nos leva à imagem de projeção, para
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fora, um projétil que, lançado para fora, atinge o outro e, como ficará mais
claro adiante, também se auto atinge. Essa aproximação pode ser realizada
já que “subjétil” é uma palavra intraduzível, pois, como foi supostamente in-
ventada por Artaud, não existe tradução possível em outras línguas. Corpo-
subjétil: um corpo em Estado Cênico, um corpo em arte, pois encontra-se
nesse “entre” objetividade - subjetividade, pois não é nem um nem outro
exatamente, mas os perpassa pelo meio, englobando as duas pontas da po-
laridade e todos os outros pontos que passem por essas linhas opostas. Ele
não é um ponto ou outro, linha ou outra, mas uma diagonal que atravessa
esses pólos abstratos e todos os pontos e linhas “entre”. Em segundo lugar
porque esse “entre” do subjétil, agindo como um projétil, lança-se para fora
para agrupar e incluir o outro, em um movimento que deveria ser natural no
trabalho do ator. Portanto, o corpo-subjétil engloba e diagonaliza um espaço
“entre” polaridades que se completam e uma ação que lança esse espaço
“entre” para fora, numa relação dinâmica. intrinsecamente, o terreno do tra-
balho do ator.
³ Dentro do âmbito de trabalho do LUME, podemos dizer que uma ação físi-
ca e/ou vocal orgânica, pesquisada e codificada por um ator e que dinamiza
seus campos intensivos potenciais, é chamada de “matriz”. Se procurarmos
no dicionário Aurélio, encontraremos algumas das razões para essa pala-
vra ter sido utilizada para definir uma ação física orgânica: “Matriz: lugar de
onde se gera ou se cria; aquilo que é fonte, origem, base; útero”. Assim, a
matriz é entendida como o material inicial, principal e primordial; é como a
fonte de material do ator, à qual ele poderá recorrer, sempre que desejar,
para a construção de qualquer trabalho cênico. A matriz é a própria ação
física/vocal, viva e orgânica, codificada que pode ser recriada no momento
do Estado Cênico. Dessa forma, cada ator possui um conjunto de matrizes,
que se torna seu vocabulário vivo de comunicação cênica – seu vocabulário
expressivo.

Bibliografia____________________________________
BARTHES, ROLAND. A Câmara Clara. Trad. Júlio Castañon Gui-
marães. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 1984.
BURNIER, LUÍS OTÁVIO. A arte de ator: da técnica à repre-
sentação. Campinas. Editora da Unicamp, 2001.DERRIDA,
JACQUES e BERGSTEIN, LENA. Enlouquecer o Subjéctil. Trad.
Geraldo Gerson de Souza. São Paulo. Fundação Editora da UN-
ESP. 1998.

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O grotesco em Meierhold: princípios para a
criação de uma nova teatralidade
________________________________________________
Marisa Naspolini*

A noção de grotesco se encontra em quase todas as vanguardas artísti-


cas do começo do século XX. Da literatura às artes plásticas, o termo é co-
mumente relacionado ao exagero, à caricatura, ao satírico ou ao fantástico.
Sua origem está fortemente ligada ao elemento pictórico, como os ornamen-
tos murais antigos redescobertos no Renascimento, que mesclam formas do
reino vegetal a corpos humanos ou de animais, reforçando a relação estreita
com a imagem, o insólito e o artificial.

Bakhtin (2002) relacionou o grotesco à cultura cômica popular. Para


ele, o conceito surge em períodos de transição ou de crise, em que a or-
dem antiga é questionada sem que um novo sistema a tenha substituído.
No seu entendimento, há uma tendência de reducionismo no uso do termo,
principalmente por parte de esteticistas alemães e russos. Ao se referir à
análise do pesquisador alemão Schneegans da obra de Rabelais, reprova
sua ignorância em relação à “ambivalência profunda e essencial” (BAKHTIN
2002:265) do grotesco, que estaria reduzido à idéia de profusão, hiperbolis-
mo e excesso, configurando-se ora como gênero cômico, ora como trágico.

Para o teórico russo, a especificidade do grotesco consiste justamente


em unir trágico e cômico ao mesmo tempo, tendo o corpo humano, e seus
limites com o mundo que o cerca, como base da concepção de seu aspecto
imagético. Trata-se de um corpo em movimento, que jamais está pronto ou
acabado, mas encontra-se eternamente em processo de construção.

Meierhold dá ao termo uma interpretação pessoal. Conceito-chave de


sua obra, o grotesco meyerholdiano não se reduz a uma figura de estilo,
exagero, hipérbole, mas integra as diversas contradições sobre as quais
funciona seu modo de criação: observação minuciosa e seleção rigorosa,
fragmento e generalização, realismo e convenção, política e estética, teatro

*Marisa
Marisa Naspolini é especialista em Análise do Movimento pelo Laban/Bar-
tenieff Institute of Movement Studies de Nova York e mestranda em Teatro
na UDESC. Professora do Departamento de Artes Cênicas da UDESC.

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de variedades e drama musical. A unidade de sua obra baseia-se na união
destes contrários e na tensão gerada por esta união.

O grotesco não é um elemento de contraste, mas a estrutura contras-


tante em si, movimento que liga duas imagens inversas, cômico e trágico ao
mesmo tempo, denominador comum a todas as formas teatrais que aguçam
a curiosidade do encenador russo. Meierhold vincula sua reflexão sobre o
grotesco ao desejo de aproximação de um grande público popular, criando
um mundo palpitante, em transformação permanente. Ao mesmo tempo em
que este conceito operaria como visão particular de mundo e de teatro, o
grotesco funciona como um método de articulação da encenação e do jogo
dos duplos conflitivos. Este sistema de contrastes torna-se plenamente visí-
vel na montagem de O Inspetor Geral, de Gógol, onde sua visão do grotesco
cênico se evidencia através das pantomimas e marionetes, que reforçam a
ficção e o jogo das máscaras, fundado na dualidade do tragicômico.

A duplicidade presente na vida do artista, que se alterna constantemente


entre o pessimismo suicida e o otimismo farsesco, erudito amante dos livros
e obcecado pelos exercícios físicos, revela o que ele próprio define como a
essência da teatralidade. O grotesco – duplo de estética e método - permite
a destruição da continuidade no nível da narrativa ou da psicologia, provo-
cando fenômenos de ruptura, e abre espaço para a instalação de uma nova
ordem calcada na construção de materiais e temas que dialogam através do
choque e da relação entre opostos.

Meierhold foi um homem em conflito permanente, consigo mesmo e com


sua prática, levando ao extremo a autocrítica desenvolvida, que se refletia
em sua obra espetacular. “Eu adoro as situações passionais no teatro e as
construo na minha vida”¹. Neste movimento permanente de criação/destrui-
ção, o inacabado encontra seu lugar de destaque. Em sua busca pela perfei-
ção, Meierhold não concebe o definitivo.

Numa espécie de revolta pessoal contra a realidade, o diretor russo se


incumbe da tarefa de transformar o teatro, acreditando que este pode con-
taminar o espírito de seu tempo, se “aqueles que servem à cena” tomarem
consciência de sua missão, liberando-o da reprodução cotidiana e suas fide-
lidades miméticas, submetendo-o somente a suas próprias leis: “Eu gostaria
que todos aqueles que servem à cena tomassem consciência de sua grande
missão. (...) Sim, o teatro pode desempenhar um papel enorme na reorgani-
zação de tudo o que existe” (PICON-VALLIN 1990:18)².

Para ele, a adoção do grotesco, princípio experimentado anteriormente


em várias de suas montagens, é a solução para a crise do teatro. Ao alterar

U 50 - Dezembro 2005 - Nº 7
a percepção do espectador, tirando-o do plano do conhecido e esperado e
instalando-o em outro, que ele não imaginava, Meierhold provoca um deslo-
camento constante, jogando com contradições agudas e gerando uma espé-
cie de surpresa no público.

Artificialidade e dualidade do corpo grotesco

Na construção de sua linguagem cênica, Meierhold elege o corpo do


ator como o local onde o grotesco se instala e ganha visibilidade. Seu cor-
po deve se transformar em obra de arte, assim como a música e o cenário.
Abandonando a supremacia do texto literário, o encenador busca a comu-
nicação efetiva do significado na cena através do dinamismo corporal do
intérprete. Em direção contrária à busca de um corpo natural, inspirado no
modelo grego enaltecido por Isadora Duncan, Meierhold procura construir
um corpo artificial, inspirado no ator oriental e no acrobata. Este corpo en-
contra sua liberdade na disciplina muscular e na organização do pensamen-
to, que permitem o domínio do gesto caótico natural. Levado ao extremo, o
ator se transformaria em marionete.

No início do século XX, período em que o corpo é revigorado por uma


paixão renascente pelo esporte e pelas competições olímpicas, o ator vê
seu status transformado. O treinamento a que é submetido visa, sobretudo,
aprimorar sua capacidade de reagir prontamente, desenvolver sua orienta-
ção espacial e domínio do movimento e aprender a gerar motivações “tea-
trais” e não psicológicas. O jogo teatral define-se como a arte de combinar
livremente um saber técnico corporal acumulado.

O ator também está submetido à dualidade própria da obra meyerhol-


diana. Influenciado pelas teorias de Constant-Benoit Coquelin, que acredi-
tava em uma “personalidade dual” (KUBIK 2002:4-5) do ator, Meyerhold se
refere a um primeiro self, constituído por aquele que atua (the player), e a
um segundo, constituído pelo instrumento (the instrument). Esta idéia ganha
concretude na fórmula N = A1 + A2, onde N é o ator formado por dois selves:
A1 é o primeiro, representando o ator metafísico (que concebe a idéia) e A2
é o ator físico (o que executa a idéia). Enquanto os músculos do ator me-
tafísico seriam trabalhados através de um processo de auto-descoberta e
uso da imaginação, a musculatura do ator físico demanda um trabalho mais
consciente, através de intenso treinamento corporal.

A prática da biomecânica, que envolve uma série de habilidades físicas,


incluindo elementos da dança, pantomima, ginástica, malabarismo, acroba-

Dezembro 2005 - Nº 7 - 51 U
cia e música, visa melhorar a independência expressiva de diferentes partes
do corpo, aprimorando no ator o seu uso do corpo de forma não cotidiana.

Uma sólida consciência do uso da gravidade e equilíbrio do corpo, aliada


ao treinamento do reflexo, da prontidão e da criação de memória muscular,
garante a este “ator-maquinista” um domínio eficiente de sua “máquina”, cuja
relação corpo-mente deve ser harmônica, garantindo que o corpo possa ex-
pressar em movimento tudo o que é possível entender mentalmente.

Este corpo dinâmico, ágil, ritmado, é fundamental para incorporar as ten-


sões e conflitos que se evidenciam em movimentos angulosos e exagera-
dos. Na ambição deste novo teatro, o espetáculo está centrado na figura do
comediante, misto de ator, cantor, dançarino, malabarista, acrobata, escultor
de seu próprio corpo. Novamente no exercício do duplo, Meierhold se inspira
de um lado no ator japonês, exótico e refinado, cuja gestualidade se apro-
xima da dança, e, de outro, no universo popular, origem do clown, do circo,
do petrushka (teatro de marionetes russo) e do comediante dell’arte. Mas é
preciso formar este novo ator.

O Corno Magnífico: grotesco, commedia italiana e objetos


animados

Na montagem deste espetáculo dedicado a Molière, em 1922, Meierhold


exibe abertamente seu jogo tragicômico, construído sobre tensões entre rea-
lidade e ficção, insólito e trivial, ação e forma, onde o ator combina diferentes
materiais e cria um sistema de personagens, com forte inspiração na Com-
media dell’Arte.

O espetáculo é concebido a partir das variantes francesas da Commedia,


apostando na sucessão alternada de números diferentes e em combinações
de ações precisas e repertorizadas. O número de atores em cena também é
fator primordial na construção de dramaticidade (o número ímpar implica em
conflito, tensão; o número par induz a uma complicação ou desaceleração
da cena, ou ainda à existência de intriga paralela).

A Commedia é vista como meio, não como fim. Diretor e atores estu-
dam roteiros e analisam a variação de certos elementos de base, buscando
trabalhar os mesmos personagens em diferentes situações. Por concentrar
os vários elementos das artes cênicas, o trabalho com a Commedia permite
alimentar uma prática imediata, através da composição de novos roteiros,
encenações variadas e manipulação de objetos de forte cunho teatral, além
de propiciar um estudo teórico da história e das tradições teatrais.

U 52 - Dezembro 2005 - Nº 7
Meierhold exige um manuseio hábil e respeitoso dos acessórios. Sua re-
ferência é novamente oriental. Ao treinar seus atores a manipular os objetos
cênicos, transforma-os em centro da ação dramática. O objeto escapa de
sua função cotidiana e torna-se parceiro do ator, tornando-se determinante
na movimentação que aquele exibe em cena. Além de auxiliar na definição
de caráter e situação social das personagens, os objetos funcionam como
ponto de apoio ao jogo, constituindo cadeias biomecânicas de ação e rea-
ção entre os atores e entre atores e objetos, revelando seu próprio caráter
duplo – ao mesmo tempo em que definem características da personagem,
evidenciam as habilidades do intérprete, reforçando a teatralidade (ou a não
cotidianidade) da ação. A poética de distanciamento entre a quantidade de
energia dispensada pelo ator e o objetivo da tarefa realizada na cena ajuda
a compor o tom grotesco nesta relação objetal.

Ao fazer um movimento de retorno às origens, resgatando formas de


teatro popular, Meierhold, dá vazão à sua necessidade de reencontrar vín-
culos com as tradições teatrais. A Commedia dell’arte, assim como o teatro
de feira, é representante dos gêneros que fazem da descontinuidade (ou da
fragmentação) a essência da cena, elemento fundamental na criação de seu
teatro do futuro. O comediante dell’arte, alegre, ágil e improvisador, ícone de
sua utopia nos anos 10, torna-se o embrião do ator eficaz, preciso e rigoroso
que encarna o ideal taylorista dos anos 20. Em ambos os casos, o jogo é
preciso, ritmado, geometrizado. O roteiro denominado A Caça, integrante do
repertório da Commedia, é destituído de seu caráter anedótico e, restituída
sua essência, transforma-se no exercício Disparando o arco, utilizado am-
plamente no treinamento biomecânico dos atores.

Dissonância, contraponto e polifonia

A música tem importância definitiva na encenação meierholdiana, contri-


buindo tanto para a precisão milimétrica do jogo (no que diz respeito ao ritmo
e à métrica) quanto para a construção de dissonância, princípio constitutivo
de toda organização musical, que reforça seu modelo de teatro da desconti-
nuidade. Indeciso na infância entre a carreira de violinista e a vida no teatro,
Meierhold opta por tornar a música um elemento onipresente em sua cria-
ção, principalmente a composição clássica russa e alemã.

Durante a montagem de O Inspetor Geral, em 1926, Meyerhold chama a


atenção de seus alunos para o papel primordial da música na sua concepção
de grotesco, particularmente no que diz respeito à noção de metamorfose na
cena:

“A música é a arte mais perfeita. Ao ouvir uma sinfonia, não esque-

Dezembro 2005 - Nº 7 - 53 U
çam do teatro. A alternância dos contrastes, dos ritmos, dos tem-
pos, a união do tema principal e dos temas secundários, tudo isto
é tão necessário no teatro quanto na música” (PICON –VALLIN
1990:338)³.

O espetáculo trabalha com uma idéia de orquestração, tanto visu-


al quanto sonora, uma organização tal dos elementos de cena (ator, luz,
movimento e objetos) que gera uma composição explosiva, na qual a
transformação, a metamorfose, aparece como característica primor-
dial de linguagem, distanciando-se de uma eventual vulgarização do
grotesco e aproximando-se de uma idéia de carnavalização, introduzi-
da através do vocabulário da rua, da mascarada e das artes populares.

Inicialmente, as idéias musicais de Meierhold mantiveram diálogo cons-


tante com as pesquisas desenvolvidas por Jaques-Dalcroze e Isadora Dun-
can, calcadas na simetria e na concordância rítmica. Nas aulas que ministra
em seu estúdio, de 1913 a 1917, conduzidas não mais a partir da prática
operística, mas de um estudo dos scenarii da Commedia dell’arte, a músi-
ca é concebida como “uma corrente que acompanha os deslocamentos do
ator sobre o espaço cênico e os momentos estáticos de seu jogo” (PICON-
VALLIN 1989:03) e sua pesquisa se apóia sobre o uso da música na dança
de Duncan e Füller e nos estudos de Dalcroze, assim como sua utilização no
circo, nas variedades e no teatro oriental. Mas, a partir de 1917, ele passa
a recusar a aplicação das teorias de Dalcroze ao teatro e rechaça a dan-
ça de Duncan, que qualifica de tediosa e repetitiva, inaugurando um novo
tipo de relação entre música e movimento, no qual cada um reina em seu
respectivo plano, recusando sua coincidência e submissão à métrica. Está
dado o primeiro passo para a formulação de sua teoria do contraponto, que pas-
sa a fundamentar as leis cênicas do movimento do ator no tempo e no espaço.

A teoria do contraponto encontra aplicação em vários de seus espetácu-


los, nos quais a música atua não como fundo musical, mas como uma

“grade de interpretação de uma dramaturgia, um ponto de apoio


para a composição cênica, um meio de triunfar sobre o naturalis-
mo, uma vez que ela coloca em cena um ritmo que rompe com o
mundo do cotidiano” (PICON-VALLIN, 1989:2)4 .

Meierhold aposta na criação de dois tecidos paralelos, um cênico e ou-


tro musical, que não coincidem, mas constroem conjuntamente uma rede
rítmica, polifônica, com desenho claro e plástico, baseado na economia de
movimentos, que propicia um diálogo no qual a cena nunca ilustra a música,
mas a revela e completa.

U 54 - Dezembro 2005 - Nº 7
Esta prática evidencia a reivindicação da mise en scène meierholdiana
de “deixar à imaginação do espectador a liberdade de completar o que não
foi dito” (GUINSBURG 2001:59), idéia tão cara ao drama simbolista. O míni-
mo de ação permitiria o máximo de tensão, sugerida no desenho plástico do
corpo da personagem, que permite “o mergulho do espectador na intimidade
do drama” (idem).

Enquanto operador essencial de uma nova teatralidade, o grotesco su-


pera o esquematismo fácil da estilização e busca uma representação plena
da existência humana, contraditória, dionisíaca, mas sobretudo avessa a
maneirismos e acúmulo de detalhes, ao sentimentalismo e a sutilezas psi-
cológicas. O sentido físico que emana desta fonte energética, irradiante de
ação, presente na configuração grotesca em Meierhold, encontra no próprio
artista sua principal referência. Sua alma inquieta é a tradução mais fiel do
conceito que o norteia. São suas as palavras, numa alusão à montagem de

A Barraca de Feira: “O grotesco busca o supranatural, sintetiza a quin-


tessência dos contrários, cria a imagem do fenômeno. Assim, impele o es-
pectador a tentar decifrar o enigma do inconcebível” (GUINSBURG 2001:63).
Meierhold vê nele um recurso “capaz de propiciar uma nova epifania do
belo”.

Para Guinsburg, o conceito de grotesco que ele propõe em 1911, e que


impõe no ano seguinte, parece capaz de fornecer a perspectiva menos redu-
tiva de sua obra, abrindo-lhe uma possibilidade de análise mais aprofundada.
Ao estruturar toda sua obra teatral, o grotesco permite um novo olhar sobre
o cotidiano. Unindo fantástico e real, sonho e realidade, Meyerhold organiza
de forma teatral suas próprias contradições e as de sua época. A nova ordem
imposta pelo corpo tragicômico de seu ator e sua imagem em movimento na
cena aponta para um modelo expressivo que revoluciona o contexto teatral,
indo além do espaço cênico e refletindo-se na própria reorganização do edi-
fício teatral e das relações na sociedade do início do século XX.

Ao contrapor-se à estética do belo, abrindo espaço para a consciência


da relatividade e da dialética, o grotesco se afirma como forma de expressão
provocativa que atravessa os séculos. Seu papel na arte tem sido sobretudo
o de “firmar a existência das coisas, criticando-as” (PAVIS 2003:189). Neste
sentido, podemos pensar seu lugar na produção artística atual. Ao localizar e
buscar compreender o homem tragicômico contemporâneo, o grotesco pos-
sibilita também sua transformação permanente. A idéia de inacabado e mu-
tante, própria desta estrutura que encerra o contraste em si mesma, coloca
o grotesco num lugar específico – não como peça de museu ou referência

Dezembro 2005 - Nº 7 - 55 U
histórica, mas como um conceito vivo que pode traduzir as questões de seu
tempo, este tempo.
Notas__________________________________________
¹ No original: “J’aime les situations passionnées au theatre et je m’en cons-
truis dans la vie” (PICON-VALLIN 1990:17).
² No original: “Je voudrais flamber de l’esprit de mon temps. Je voudrais que
tous ceux qui servent la scène prennent conscience de leur grande mission.
(...) Oui, le théâtre, peut jouer um rôle enorme dans la réorganization de tout
ce qui existe”. (PV 18).
³ Entrevista com estudantes, realizada em junho de 1938, in Artigos, Cartas,
Discursos, Entrevistas. Moscou: Iskousstvo, 1968, tomo II, p. 506.
4
A citação é uma referência à utilização de uma sinfonia de Tchaikovski na
montagem de “O Jardim de Cerejeiras”, de Tchekhov, em 1914. Tradução de
Roberto Mallet.

Bibliografia____________________________________
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renas-
cimento: o contexto de François Rabelais. SP: Hucitec e Annablu-
me, 2002.
CAVALIERE, Arlete. O Inspetor Geral de Gogol / Meyerhold. SP:
Perspectiva, 1996.
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gia di “Le Cocu magnifique” e Il montaggio e l’attore in Civiltà Tea-
trale nel XX Secolo. Bologna: Il Mulino, 1986.
GUINSBURG, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. SP: Perspec-
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tem of actor training in Movement for actors (org. Nicolle Potter).
NY: Allworth Press, 2002.
MEYERHOLD, Vsevolod. Textos teóricos. Madrid: ADEE, 1992.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. SP: Perspectiva, 2003.
PICON-VALLIN, Béatrice. Meyerhold – Les Voies de la Création
Théâtrale. Paris: Éditions du Centre National de la Recherche
Scientifique, 1990.
PICON-VALLIN, Béatrice. A música no jogo do ator meyerholdia-
no in In Le jeu de l’acteur chez Meyerhold et Vakhtangov. Paris:
Laboratoires d’études théâtrales de l’Université de Haute Bretag-
ne, 1989. Tradução de Roberto Mallet.

U 56 - Dezembro 2005 - Nº 7
KEAN – a arte do ator vista pelo romantismo
________________________________________________________________

Claudia M. Braga*

O final do século XVIII assiste a profundas alterações políticas e sociais


por toda a Europa, ocasionadas em grande parte em conseqüência do mo-
vimento anti-monarquista ocorrido na França, que tem seu ápice em 1789 e
continua a reverberar pelo país e pelo continente ao longo de todo o século
XIX.

Estas alterações, que marcarão o fim de uma época, sobretudo no que


se refere à organização social, são, por sua vez, resultado de transformações
do próprio pensamento europeu que redundarão, em termos de expressão
artística, num movimento de reação radical às regras neoclássicas em todas
as formas de arte, entre elas o teatro.

Hugo e o prefácio de Cromwell

Malgrado sua existência nos palcos ser manifesta desde antes desta
data, é apenas em 1830 que o movimento romântico será objeto de um texto
que buscará estabelecer suas bases teóricas. Este texto, verdadeiro mani-
festo dos anseios da nova geração de autores que se lançava nas letras,
aparecerá como prefácio do drama Cromwell – ele próprio inexpressivo em
termos teatrais – de Victor Hugo.

Considerando-se pois que, na realidade, as propostas estéticas apre-


sentadas pelo “Prefácio” já estavam sendo levadas a efeito desde antes de
seu aparecimento – nos melodramas, por exemplo, ou mesmo em peças já
classificadas como românticas, como o Henri III, de Alexandre Dumas, que
estreara em 1829 – sua importância deve-se mais à posição ocupada por
seu autor entre os novos poetas e ao fato de terem sido tais propostas ali
sistematizadas que às “novidades” que continham.

E o que propunha o Prefácio de Cromwell?

Basicamente, em primeiro lugar, o fim da divisão entre os gêneros, apoia-

* Claudia M. Braga é professora Adjunta da UFSJ São João del-Rei (MG)

Dezembro 2005 - Nº 7 - 57 U
do no pressuposto de que, na vida, o belo e o grotesco se entrecruzavam
e se superpunham, formando um todo contínuo. Nesse sentido, segundo
Hugo,

(...) a musa moderna verá as coisas com um olhar mais elevado


e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente
belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracio-
so, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra
com a luz. (1988: 25)

Mais ainda, Hugo estabelecia a noção do gênio, do talento artístico, e é


esta a questão que aqui nos interessará sobremaneira.

Um novo conceito de “artista”

Até o século XIX o artista era, de modo geral, alguém que expressava a
sociedade, fosse ele ator, pintor ou autor, teatral ou não. Sobre estes últimos,
observa Harnold Hauser:

Até o século XVIII, os autores nunca haviam sido outra coisa


senão os porta-vozes do seu público; cuidavam dos seus leitores,
assim como os criados e empregados tratavam dos seus bens
materiais. Aceitavam e confirmavam os princípios morais e os cri-
térios de gosto geralmente reconhecidos, não os inventavam nem
os alteravam (...) É só no século XVIII que o público se separa
em dois campos diferentes, e a arte em duas tendências rivais.
Daí por diante, cada artista é confrontado por uma dualidade de
ordens opostas: o mundo da aristocracia conservadora e o da
burguesia progressiva, entre um grupo que se agarra obstinada-
mente aos velhos valores, tradicionais e supostamente absolutos,
e outro que se baseia no ponto de vista de que mesmo esses
valores, e eles mais do que nada, são historicamente condicio-
nados, e que outros, mais recentes, estão mais de acordo com o
bem geral. (1982:884)

A transformação trazida pelo surgimento desta divisão entre conserva-


dores e progressistas obrigará o artista a tomadas de posições antes inima-
gináveis mas que serão todavia efetuadas e, no desenrolar dos embates
ocorridos, findarão por afastá-lo dos vitoriosos burgueses de 1789, sobre-
tudo após os eventos conhecidos como os Três Gloriosos (julho de 1830),
que depõem mais uma vez um Bourbon do trono francês e contam com ativa
participação dos artistas das letras. Assim, depois de 1830, ainda segundo
Hauser, “a burguesia passa a suspeitar do artista, e prefere à aliança de até

U 58 - Dezembro 2005 - Nº 7
então, a neutralidade. A Revue des Deux Mondes opina agora que não é ne-
cessário, mas efetivamente indesejável, que o artista tenha idéias políticas e
sociais próprias” (1982:899).

Dessa forma, é efetivamente a partir do século XIX que o artista ga-


nharia um status diferenciado com relação ao grupo social, passando a ser
aureolado com o conceito do “talento”, do “gênio”, o que o libertaria das re-
gras comportamentais e o colocaria, digamos assim, à margem das normas
sociais estabelecidas.

Este é também o pensamento que aparece no prefácio, no qual o artis-


ta descrito Hugo será aquele que

é uma árvore que pode ser açoitada por todos os ventos e irrigada
por todos os orvalhos, que traz suas obras como seus frutos, da
mesma forma que o fabuleiro trazia suas fábulas. Para que pren-
der-se a um mestre? Enxertar-se com um modelo? Vale mais ain-
da ser o espinheiro ou cardo, alimentado com a mesma terra que
o cedro e a palmeira, que ser o fungo ou o líquen destas grandes
árvores. (1988:59) e, com efeito, é desse modo que começaram
a se ver a si próprios os artistas de modo geral, numa atitude de
diferenciação facilmente reconhecível mesmo nos dias de hoje.

Se o conceito se arraiga e mantém-se colado à imagem do artista até


a atualidade, é todavia no século XIX – no período romântico em especial
– que ele será mais amplamente discutido e vivenciado, tendo sido objeto,
no caso específico dos atores, de mais de um “tratado” ou “manual” de in-
terpretação, escrito pelos próprios atores, e ainda, como se verá adiante, de
pelo menos um drama de grande sucesso.

A arte de representar e o século XIX

No embalo das propostas românticas, da noção de gênio ali inseridas, a


função do ator tomara outra dimensão ao longo do século, passando a ser
definida, entre todas as profissões artísticas, como aquela que mais neces-
sita da liberdade, da “experiência” vívida da emoção para se realizar ple-
namente. Este ponto de vista, que exclui entretanto os atores cômicos, se
manifestará de diferentes formas. Alexandre Dumas, por exemplo, definirá
explicitamente as diferenças entre a representação de comédias e de dra-
mas e, assim, as diferentes exigências feitas aos atores de cada um dos
gêneros.

A comédia é a pintura de costumes e o drama é a das paixões;

Dezembro 2005 - Nº 7 - 59 U
a comédia é a sociedade, o drama é a humanidade. A socieda-
de muda, cada século lhe dá uma nova face. A humanidade é
invariável, suas paixões são idênticas; elas se manifestam da
mesma maneira no teatro hindu, no teatro grego, no teatro roma-
no, no teatro inglês, no teatro alemão e no teatro francês. O ator
chamado a representar a comédia deve então ter “visto”. O ator
chamado a representar o drama só necessita de ter “experimen-
tado”. (DUMAS, 1867:V – tradução nossa)

No mesmo sentido, alguns atores, como Riccoboni (1707-1772), Aristi-


ppe (1800?-1864?) e o brasileiro João Caetano (1808-1863), se dedicarão
a registrar para a posteridade suas técnicas e estratégias de representação,
que enfatizavam, de modo geral, a excessiva emoção de que eram presos
esses profissionais e a conseqüente necessidade de um constante autocon-
trole no ato da representação.

Como exemplo deste tipo de posicionamento, poderíamos citar as


Lições Dramáticas, de João Caetano – que exprimem não apenas o ponto
de vista deste ator sobre a arte de representar mas também o de François
Riccoboni, cujo L’art du théâtre é a mais clara fonte dos escritos do ator bra-
sileiro – que afirma em seu manual que “o ator imita, e não iguala a natureza.
O seu jogo é todo de convenção, criando, por assim dizer, uma segunda na-
tureza para si, comovendo-se, arrebatando-se e exasperando-se até o ponto
que lhe convém” (PRADO, 1984:27). Vale dizer que esta mesma convenção
mencionada pelo ator, ele próprio terá, por sinal, certa dificuldade em seguir,
a se considerar os comentários gerais a respeito de sua extrema entrega às
emoções dos personagens, quando no palco.

O ator romântico

Entre os artistas da cena no período, alguns chamaram a atenção sobre


suas formas de atuar, angariando tanto a admiração de seu público quanto
os comentários – nem sempre elogiosos – da crítica, a respeito de sua arte.
No Brasil, João Caetano dos Santos dominou os palcos da capital (o Rio de
Janeiro, à época), desde sua estréia, em 1838, até aproximadamente 1860
quando, além de bastante perseguido pelos jovens intelectuais ligados à
corrente realista, adoece gravemente, o que o impede definitivamente de
voltar aos palcos.

Com um talento talhado para o romantismo, João Caetano buscaria en-


tretanto um modelo de interpretação neoclássico: o francês Talma, conhecido
ator trágico. O brasileiro se aproximaria mais, todavia, da forma interpretativa
de Frédéric Lemaître, ator romântico celebrizado por sua atuação como Ro-

U 60 - Dezembro 2005 - Nº 7
bert Macaire, em L’Auberge des Adrets (1823).

Menos admirado, mas também conhecido do brasileiro Santos e bastan-


te famoso na Europa e na América do Norte – em cujos palcos se apresentou
de 1820 a 1821 – é o ator inglês Edmond Kean (1787?-1833) quem melhor
encarna o espírito do tempo, tanto na forma de representação apaixonada
quanto na assimilação do conceito de marginalização social em que passa a
ser colocado o artista.

Um tanto tumultuada pelos excessos a que se entregava, a vida pessoal


de Edmond Kean chamou tanta atenção quanto sua carreira artística. Se seu
talento na interpretação – dedicado expressivamente aos grandes perso-
nagens shakespeareanos – consagrou-se a partir de sua representação do
Shylock, no Mercador de Veneza (1814), suas aventuras (ou desventuras)
amorosas obrigaram-no, por exemplo, a deixar a Inglaterra em 1820. No pe-
ríodo em que trabalhou nos palcos norte-americanos, construiu também aí
uma sólida reputação. Sua saída do país deveu-se, entretanto, a mais uma
complicação causada por seu intempestivo caráter: a quebra de um contrato
de representações em Boston inviabilizou a continuidade de sua carreira
norte-americana.

A entrega total deste ator às paixões e à arte transformou-o, de certa for-


ma, no protótipo do ator romântico, guindando-o à categoria de personagem,
como se observa em Kean ou désordre et génie, drama de Alexandre Dumas
inúmeras vezes transformado em filme – sendo a primeira filmagem de 1923
e a última, por nós conhecida, de 1988, com Jean-Paul Belmondo no papel
principal – e reescrito por Jean-Paul Sartre no século XX.

Kean – a desordem que explicaria o gênio

A peça de Dumas, em sua busca de recriar no registro romântico o quase-


personagem que teria sido o ator Edmond Kean, traça, neste percurso, um perfil
da “grande sociedade” do século e de suas posições sobre o artista em geral.

Logo ao abrir-se o pano, numa conversa entre as condessas de Kœfeld


e Gosswill, fica estabelecida a situação do ator nesta sociedade. Perturbada
pelos comentários maliciosos da segunda a respeito de um possível amor
por Kean, a condessa de Kœfeld pergunta à companheira porque não se po-
deria amá-lo. A resposta não deixa dúvidas sobre qual seria o ponto de vista
geral sobre os atores:

Amy – (…) d’abord, parce que c’est un comédien, et que,


ces sortes de gens n’étant pas reçus dans nos salons...

Dezembro 2005 - Nº 7 - 61 U
(...) Kean est un véritable héros de débauche et de scandale
! un homme qui se pique d’effacer Lovelace par la multiplicité de
ses amours, qui lutte le luxe avec le prince royal, et qui, avec tout
cela, par un contraste qui dénonce son extraction, revêt, à peine
débarrassé du manteau de Richard, l’habit d’un matelot du port,
court de taverne en taverne, et se fait rapporter chez lui plus sou-
vent qu’il n’y rentre.
(...)
Un homme criblé de dettes, qui spécule, dit-on, sur les caprices
de certaines grandes dames pour échapper aux poursuites de ses
créanciers. (Acte I, scène II)

Nesta altura entra em cena o conde de Kœfeld, informando haver con-


vidado o maior ator da Inglaterra para o jantar. O fato causa certo escândalo
entre as damas e a explicação do conde acaba por estabelecer a distinção
entre as pessoas “de bem” e os artistas:

Le comte – Pourquoi pas ? Le prince royal l’invite bien !


D’ailleurs, inviter, inviter comme on invite ces messieurs, en qua-
lité de bouffon : nous lui ferons jouer une scène de Falstaff après
le dîner... Cela nous amusera, nous rirons. (Acte I, scène III)

Feitas as apresentações, o drama se desenvolve no embate entre este


“olhar” assimilado pela voz geral e a figura de Kean que transita diante dele.
Nesse conflito, embora o ator seja sempre pintado com as tintas da nobreza
de caráter e da lealdade, tampouco a intimidade do ator mostrada por Du-
mas desmentirá – muito pelo contrário, aliás – a fama de desregramentos
que o artista carrega. A rubrica de abertura do 2º ato traça um quadro nada
edificante de seus momentos fora do palco:

Un salon chez Kean. Au lever du rideau, le théâtre présente


toutes les traces d’une orgie. Kean dort sur une table, tenant d’une
mais le tuyau d’une pipe turque, et de l’autre le goulot d’une bou-
teille de rhum. David est étendu sous la table. Tom est couché.
Bardolph est à cheval sur une chaise. Des bouteilles vides ont
roulé à terre ; deux ou trois, à moitié pleines, son restées sur la
table. (...)

Este “gênio em desordem” tem em Salomon, seu ponto, uma espécie de


anjo da guarda que tenta poupar-lhe os vexames públicos e, ao chegar para
acordá-lo, expulsa os companheiros de orgia. Nem Salomon, entretanto, dei-
xa de tecer para si próprio comentários sobre o mestre...

U 62 - Dezembro 2005 - Nº 7
Salomon – (…) C’est la sixième fois depuis le commencement
du mois, et nous sommes aujourd’hui le 7 ! Et avec qui encore
fait-il de pareilles orgies ? Avec de misérables cabotins qui jouent
le Lion... la Muraille... (...) Vraiment, si on les trouvait ici, je serais
bien honteux pour l’illustre Kean... (…)
Quand je pense que j’ai là, devant les yeux, couché comme un
boxeur éreinté, le noble, l’illustre, le sublime Kean, l’ami du prince
de Galles !... le roi des tragédiens passés, présents et futurs... qui
tient en ce moment le sceptre... (Il aperçoit la bouteille que Kean
tient par le goulot.) Quand je dis sceptre, je me trompe... Oh ! mon
Dieu ! (Acte II, scène I)

E a justificativa apresentada pelo ator para os excessos recriminados


por seu subalterno inicia a versão do artista para seu modo de vida.

Kean – Tu as raison, mon vieil ami, tu as raison ; je sens que je


me tue avec cette vie de débauches et d’orgies ! Mais, que veux-
tu ! je ne puis en changer ! Il faut qu’un acteur connaisse toutes
les passions pour les bien exprimer. Je les étudie sur moi-même,
c’est le moyen de les savoir par cœur. (Acte II, scène II)

Ao longo da peça Dumas completa o perfil de seu herói, talhado com o


cinzel do contraste: se suas origens são humildes, tendo iniciado a carreira
como saltimbanco, sua alma é mais nobre que a dos nobres com os quais é
comparado; ainda que se entregue ao álcool, seu caráter o exime das culpas
maiores que daí poderiam decorrer; mesmo seu comportamento para com
as mulheres apresentado no drama desmente as afirmações inicialmente
prestadas sobre ele.

Observa-se, então, que no próprio ator é aplicada a “teoria dos opostos”


proposta pelo romantismo. O retrato de Kean ali pintado é em si o que de
melhor se poderia esperar como comprovação de que num só espaço, num
só homem, convivem lado a lado o grotesco e o sublime.

Quanto à relação do ator com a sociedade, Dumas a mostra sempre


ambivalente, sendo ele ao mesmo tempo respeitado e amado por sua genia-
lidade em cena e repudiado por suas origens e sua profissão.

Neste sentido, se na comparação com o Príncipe de Galles ou com o


conde de Kœfeld Kean é visto como igual em estatura moral e nobreza,
num confronto com lord Mewill, um nobre devasso e empobrecido por uma
vida de jogos, que se recusara a um duelo com o ator, Dumas eleva seu
protagonista a um status muito maior que o de seu adversário, traçando um

Dezembro 2005 - Nº 7 - 63 U
quadro comparativo extremamente depreciativo para o par da Inglaterra, o
que possivelmente traduz, também, o declínio da autoridade nobiliárquica
característico do século:

Kean, reposant à terre une chaise qu’il avait soulevée – Oui,


vous avez raison, il y a trop de distance entre nous. Lord Mewill
est un homme honorable, tenant à une des premières familles
d’Angleterre... de riche et veille noblesse conquérante... si je ne
me trompe. Il est vrai que lord Mewill a mangé la fortune de ses
pères en j e u x de cartes et de dés, en paris de coqs et en courses
de chevaux ; il est vrai que son blason est terni de la vapeur de sa
vie débauchée, et de ses basses actions... et qu’au lieu de monter
encore, il a descendu toujours. Tandis que le bateleur Kean est
né sur le grabat du peuple, a été exposé sur la place publique, et,
ayant commencé sans nom et sans fortune, s’est fait un nom égal
au plus noble nom, et une fortune qui, du jour où il voudra bien,
peut rivaliser avec celle du prince royal... Cela n’empêche pas que
lord Mewill ne soit un homme honorable, et Kean un saltimbanque
! – Il est vrai que lord Mewill a voulu rétablir sa fortune au détriment
de celle d’une jeune fille belle et sans défense ; que sans faire
attention qu’elle était d’une classe au-dessous de la sienne, il l’a
fatiguée de son amour, poursuivie de ses prétentions, écrasée de
son influence. Tandis que le saltimbanque Kean a offert protection
à la fugitive, qui est venue la lui demander, qu’il l’a reçue chez
lui comme un frère aurait reçu une sœur, et qu’il l’en a laissée
sortir pure, ainsi qu’elle y était entrée... quoiqu’elle fût belle, jeu-
ne et sans défense... Cela n’empêche pas que Mewill ne soit un
lord, et Kean un saltimbanque !... Il est vrai que lord Mewill, pair
d’Angleterre, a son siège à la Chambre suprême, fait et défait les
lois de notre vieille Angleterre, porte une couronne comtale sur
sa voiture, et un manteau de pair sus ses épaules, et n’a qu’à
dire son nom pour voir ouvrir devant lui la porte du palais de nos
rois... Cela fait que parfois lord Mewill, lorsqu’il daigne descendre
parmi le peuple, change de nom, soit qu’il rougisse de celui de ses
aïeux, soit qu’il ne veuille pas les faire rougir... Alors il prend celui
d’un bateleur et d’un saltimbanque et signe une lettre de ce faux
nom... Ceci est une affaire de bagne et de galères... rien de plus...
rien de moins... entendez-vous, milord ? Tandis que l’histrion Kean
marche à visage découvert, lui ! et dit hautement son nom ; car le
lustre de son nom ne lui vient pas de ses aïeux, mais y retourne
;... tandis que l’histrion Kean arrache le masque à tout visage, au
théâtre comme à la taverne, et fort de la loi qu’il a reçue, l’invoque
contre celui qui l’a faite... Lorsque l’histrion Kean offre à lord Mewill

U 64 - Dezembro 2005 - Nº 7
de ne rien dire de tout cela, à la condition qu’il lui fera satisfaction
d’une insulte, dont la société pourrait lui demander justice, lord
Mewill répond qu’il ne peut pas se battre avec un bateleur, un
saltimbanque, un histrion... Oh ! sur mon honneur ! c’est b i en
répondu, car il y a trop de distance entre ces deux hommes. (...)
(Acte III, scène XIV)

Ao mesmo tempo em que o eleva em estatura moral, Dumas o coloca,


entretanto, como alguém que é prisioneiro de sua arte, que o sufoca e da
qual não aufere lucros financeiros e que não lhe garantirá uma velhice con-
fortável. A personagem chega a expressar essas opiniões a Salomon, que
aventa a hipótese de o ator começar a ordenar melhor sua vida, o que provo-
ca violenta reação de Kean, que justificará novamente, então, a necessidade
do “gênio” em desordem para o florescimento do talento artístico, dizendo
que se Deus lhe houvesse dado a honorável faculdade da ordem ele seria
vendedor de tecidos e não ator.

E este gênio consagra-se inteiro a sua arte. No último ato, perturbado


por fortes emoções pessoais o ator tenta recusar-se a representar, amaldi-
çoando a profissão que lhe obriga a fingir emoções que não são suas.

Kean – (...) Oh ! métier maudit... où aucune sensation ne nous


appartient, où nous ne sommes maîtres ni de notre joue, ni de
notre douleur... où, le cœur brisé, il faut jouer Falstaff ; où, le cœur
joyeux, il faut jouer Hamlet ! toujours un masque, jamais un visa-
ge... Oui, oui, le public s’impatiente... car il m’attend pour s’amuser,
et il ne sait pas qu’à cette heure, mes larmes m’étouffent. Oh ! quel
supplice ! et puis, si j’entre en scène avec toutes les tortures de
l’enfer dans le cœur ; si je ne souris pas là où il me faudra sourire,
si ma pensée débordante change un mot de place, le public siffle-
ra, le public, qui ne sait rien, qui ne comprend rien, qui ne devine
rien de ce qui se passe derrière la toile... qui nous prend pour des
automates... n’ayant d’autres passions que celles de nos rôles...
Je ne jouerai pas. (Acte IV, scène VIII)

Ele vai para o palco, apesar dos protestos. Durante a representação, po-
rém, tomado de fúria, insulta o herdeiro do trono inglês e o par da Inglaterra,
sendo exilado do país. E se na vida real o ator faz carreira nos Estados Uni-
dos durante seu período de exílio – interrompendo-a, novamente, em razão
de seu intempestivo caráter – o drama, por sua vez, encerra-se no momento
em que ele decide partir para a América do Norte, ao ser informado de seu
banimento.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 65 U
Se não é o modelo de interpretação ideal, Kean representa, no entan-
to, o modelo do artista romântico tal como o viam o Hugo do “prefácio” e o
próprio Dumas, trazendo em si e para a cena os contrastes propostos pelo
movimento, a contraposição de sensações díspares, a desordem aliada e
explicando o talento, sendo, tanto o homem real quanto a personagem, uma
das mais expressivas representações da união do grotesco ao sublime.

Bibliografia____________________________________
DUMAS, Alexandre. Drames romantiques. Paris, Omnibus, 2002.
DUMAS, Alexandre. Souvenirs dramatiques. Paris, 1867.
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte, Tomo II.
Trad.: Walter Geenen. 3ª ed. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1982.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime (Prefácio de Cromwell).
Trad. Célia Berretini. São Paulo : Perspectiva, 1988.
PRADO, Décio de Almeida. João Caetano e a Arte do Ator. São Pau-
lo : Ática, 1984.

U 66 - Dezembro 2005 - Nº 7
O riso no circo: a paródia acrobática*
________________________________________________
Mário Fernando Bolognesi*
Bolognesi**

Em 30 de Janeiro de 1999, o Circo di Roma estava instalado em Pal-


meira das Missões, no interior do Estado do Rio Grande do Sul. O espetá-
culo noturno teve a seguinte formação: Primeira parte: Apresentação inicial,
com o proprietário Roberto Robattini; Trapézio voador, com a participação
do palhaço Chevrolé; Reprise cômica, O salto mortal na escada, com a lata
na mão, com os palhaços Chevrolé e Parafuso; Laços e chicotes; Reprise,
O namoro dos palhaços, com os mesmos palhaços; Bambolê; Malabares.
Segunda parte: Double trapézio; Cavalo amestrado; Reprise, A magia, com
gansos, com a dupla cômica que participou das demais reprises; Pôneis
amestrados; Trapézio em balanço; Corda indiana; Elefantes.

Após o trapézio voador (número que abriu o espetáculo) foram anun-


ciados os palhaços Chevrolé e Parafuso. Chevrolé, momentos antes, havia
participado do trapézio. A trupe de vôos é composta por três artistas: o apa-
rador, um volante e o palhaço. Na primeira iniciativa, Chevrolé preparou uma
passagem para as mãos do aparador, o que não aconteceu. Na segunda
vez, ele vacilou e o aparador arrancou-lhe as calças. Envergonhado, ele caiu
na rede de proteção, procurando esconder suas “partes íntimas”.

Os palhaços Chevrolé e Parafuso, com roupas bastante folgadas e co-


loridas, entraram no picadeiro e encenaram o Salto mortal na escada com a
lata na mão¹. A participação deles se deu em meio à movimentação dos gar-
çons de pista na desmontagem da rede de proteção do trapézio. Chevrolé
trazia uma escada, enquanto seu amigo Parafuso carregava uma lata. Che-
vrolé lançou o desafio de executar um salto mortal de cima da escada, com
uma lata na mão, prometendo que cairia sentado em uma cadeira da platéia
(no trapézio voador, o trapezista-volante executou um salto mortal, sem lata
alguma, com rede de proteção). É claro que o salto não ocorreu: a dupla era

* Estudo decorrente da pesquisa Clowns: dramaturgia, interpretação e


encenação, financiada pela Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa no
Estado de São Paulo

**Mário Fernando Bolognes, Instituto de Artes da Universidade Estadual


Paulista, Campus de São Paulo (SP). Pesquisador do CNPq.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 67 U
demasiadamente atrapalhada para tal empreitada. O salto anunciado termi-
nou deslocado no enredo, que passou a explorar tópicos secundários, como
as nádegas do Parafuso, no momento em que segura a escada, ou mesmo
o encaixar dos pés de Chevrolé no vão das pernas de seu companheiro, ou
ainda, o esquecimento da lata, quando o palhaço saltador (Chevrolé) está no
alto da escada. A paródia da acrobacia foi apenas um motivo inicial para o
despertar do riso. A comicidade, nesse caso, deixou de lado o enredo e seus
aspectos dramatúrgicos e foi se instalar na inabilidade dos palhaços.

Chevrolé (no alto) e Parafuso em O salto mortal na escada com a lata na mão. Circo di
Roma. Palmeira das Missões/RS, 30/01/99.

As duas performances acima descritas são suficientes para se alcançar


o núcleo central do espetáculo circense, que oscila drasticamente entre o
corpo sublime do artista acrobata e o corpo grotesco do palhaço, entre a
superação dos limites biológicos, sob controle do artista, e a inferioridade
biofísica trazida à cena pela perturbação não controlada da performance dos
cômicos. Certamente, a exibição acrobática serve de referência ao interlúdio
cômico². O contexto sócio-cultural no qual se funda a reprise cômica foi dado
anteriormente, de modo a propiciar um recrudescimento da necessidade de
exposição da situação contextual, o que se traduz na economia dramatúrgi-
ca, típica das reprises que parodiam o espetáculo circense. Nesse aspecto, o
contraponto necessário ao desempenho dos palhaços foi dado pelo número
antecessor, cumprindo um dos requisitos básicos da comicidade clownesca,

U 68 - Dezembro 2005 - Nº 7
qual seja, o de se efetivar em torno de duplicidades. Nesse caso, o trapézio vo-
ador serviu como um interlocutor necessário à comicidade. O outro elemento
a evidenciar o duplo necessário à eficácia cômica circense é o próprio palhaço
ajudante que se contrapõe às “qualidades” de seu parceiro saltador³.

Os espetáculos circenses de variedades, que predominam nos picadei-


ros brasileiros4, não se fundam em recursos metafóricos ou simbólicos.
Os artistas, especialmente os acrobatas, não interpretam papéis, tal como
nos espetáculos teatrais. A exibição acrobática atinge um grau mínimo de
representação e o desempenho corporal do artista é sua maior ferramenta
cênica. Quaisquer possíveis significações são oriundas do corpo sublime
que se expõe ao risco e estão localizadas na performance em si mesma, no
exclusivo tempo e momento de sua duração. Esse é o limite e ao mesmo
tempo a grandeza do espetáculo acrobático circense, cujo aprendizado se
dá predominantemente a partir da experiência acumulada pelos mais velhos.
O desempenho do artista, nesse caso, não remete a nenhuma realidade
exterior. Em outros termos, não há qualquer espécie de configuração de
significados que ultrapasse o universo específico do picadeiro. O acrobata
circense não representa: ele se apresenta e vive seu próprio tempo, com seu
ritmo próprio5. Mas, há subliminarmente um nível mínimo de representação,
porque o artista e sua performance estão inseridos em um espetáculo. O
número recebe uma certa composição visual, com figurino apropriado, e,
nesse caso, a vestimenta remete o espectador a um determinado contexto
cultural. Ele se efetiva com base em um determinado acompanhamento mu-
sical, que pode servir apenas como ilustração das peripécias apresentadas,
como também pode ser o elemento central de condução do tempo dramático
próprio do número, com introdução, desenvolvimento e clímax. Contudo, é
uma representação distinta daquela própria da cena teatral porque, em prin-
cípio, é uma apresentação de si mesmo, pois o artista demonstra e vivencia,
em público, as suas qualidades e proezas. Representação e vida fundem-se
em um mesmo ato. No circo, o corpo sublime dos acrobatas não simboliza,
não é figurativo, não é presença na ausência. Os níveis mínimos de inserção
em um complexo de significação são dados pela totalidade dos elementos
visuais, sonoros e de iluminação. Acresce-se a esses elementos a inserção
do número na seqüência do espetáculo, além da própria apresentação e nar-
ração do número, que é dada pelo Mestre de Pista, ou por um outro narrador,
no picadeiro ou fora dele6.

O olhar do público sobre os acrobatas, em um primeiro momento, é mar-


cado por uma relação harmoniosa, especialmente no momento da entrada
ao picadeiro e da introdução do número. Mas, assim que se iniciam as de-
monstrações de risco, na evolução do número, essa relação habitual se rom-
pe e um certo estranhamento toma conta do público: está aberta a via para a

Dezembro 2005 - Nº 7 - 69 U
surpresa e o assombro. O número arriscado denuncia a incapacidade do pú-
blico em alcançar a proporção dada ao corpo pelo acrobata. A performance
do acrobata evidencia a sua superioridade biológica. Espectador e exibição
artística estão em estado de ruptura e assim permanecem até o desfecho
final. Após o clímax e a esperada eficiência acrobática, no entanto, a ruptura
anterior é superada e a platéia, então, retoma o equilíbrio, manifestando a
admiração e o regozijo perante o risco apresentado pelo artista e vivenciado
pelo público. Sem o recurso da metáfora, o corpo constrói e revela sentidos
até então desconhecidos, porque repõe ao público as potencialidades que o
corpo não vivencia no cotidiano. Retém-se na memória da platéia a exposi-
ção de um corpo que supera os limites do dia-a-dia.

À experiência do sublime o espetáculo circense acresce a exposição do


grotesco. Esta serve de antídoto para sedimentar a experiência do assom-
bro. O relaxamento provocado pelo riso não é somente contraponto à tensão
que o sublime explora. Mas, também aqui, o corpo tem a primazia. No sen-
tido inverso ao do sublime, os palhaços exploram o seu lado obscuro, uma
dimensão igualmente rejeitada no dia-a-dia.

O palhaço é o ponto de ligação entre o circo e o teatro e traz de volta a


representação simbólica, sob a égide da performance7. Se a performance
acrobática, como se viu, está desprovida de um valor simbólico ou meta-
fórico, a do palhaço, por outro lado, retoma minimamente os requisitos da
representação. Os palhaços são, a um só tempo, atores e autores de suas
entradas e reprises. Pode-se dizer que há uma “dramaturgia” anterior à en-
cenação e nesse aspecto sua representação se aproxima da idéia da re-pre-
sentar, isto é, de tornar novamente presente algo que existe anteriormente
e que, no caso em questão, é dado pela tradição clownesca. Contudo, não
se trata de um texto previamente concebido para ser encenado8. A repre-
sentação cômica circense, no exemplo aqui tratado, funda-se sobre a idéia
da paródia, que necessita de algo que a antecede, no registro do sério, que
possa ser objeto de zombaria.

Basicamente, são duas as formas da comicidade clownesca atual: em


um primeiro registro, a paródia e a sátira; depois, as farsas clownescas. As
paródias têm seu olhar dirigido sobre o próprio circo e suas várias habilida-
des (é o caso específico da encenação de O Salto Mortal, por Chevrolé e Pa-
rafuso). Mas elas também se estendem a outros universos, como o teatro,
a ópera, o cinema, os esportes, as profissões, etc. A sátira está presente no
picadeiro enfatizando as imperícias e defeitos humanos, ou então se volta à
própria sociedade, tendo como objeto de derrisão autoridades, hierarquias
etc. As farsas clownescas, por sua vez, dirigem-se exclusivamente ao uni-
verso exterior ao circo e suas lides e com muita freqüência se efetivam em

U 70 - Dezembro 2005 - Nº 7
maquinários construídos em tamanho desproporcional, como uma espécie
de conversão improvisada e exagerada dos mais variados assuntos9.

O Salto mortal na escada com a lata na mão, apresentado por Chevrolé


e Parafuso, se inscreve no âmbito da paródia das lides circenses. De acordo
com Propp,

“A paródia consiste na imitação das características exteriores de


um fenômeno qualquer de vida (das maneiras de uma pessoa,
dos procedimentos artísticos etc.), de modo a ocultar ou negar
o sentido interior daquilo que é submetido à parodização. É pos-
sível, a rigor, parodiar tudo: os movimentos e as ações de uma
pessoa, seus gestos, o andar, a mímica, a fala, os hábitos de sua
profissão e o jargão profissional; é possível parodiar não só uma
pessoa, mas também o que é criado por ela no campo do mundo
material. A paródia tende a demonstrar que por trás das formas
exteriores de uma manifestação espiritual não há nada, que por
trás delas existe o vazio. (...) Desse modo, a paródia representa
um meio de desvendamento da inconsistência interior do que é
parodiado.” (Propp, 1992, p. 84-85)

Ou seja, a paródia se caracteriza pelo esvaziamento dos sentidos espi-


rituais, a partir da ênfase exagerada das aparências exteriores.

Ocorre, todavia, como se viu anteriormente, que a performance acrobáti-


ca não é apresentação de sentidos espirituais. Ela é pura corporalidade que
se expõe em espetáculo, sem se referir a nada que a extrapole. Ou seja, ela
não tem nenhuma outra significação, a não ser aquela dada em si mesma.
Portanto, não pode haver o “desvendamento da inconsistência interior” da
performance acrobática. Assim, a paródia do palhaço tem algo de peculiar e
é o mesmo Propp quem completa: “A paródia do palhaço, no entanto, reve-
la não o vazio do que é parodiado, mas a ausência nele das características
positivas que imita.” (1992, p. 84-85) Não há na paródia circense a ênfase
no esvaziamento dos sentidos interiores e maiores. O salto mortal parodia-
do foi apenas motivo inicial da performance cômica. Rapidamente, ele foi
abandonado e a comicidade se voltou exclusivamente para a inabilidade dos
palhaços. Em última instância, a personagem que pretende parodiar termina
sendo o objeto último do risível e a comicidade, então, abandona qualquer
espaço e contexto exterior e se volta para o próprio palhaço. A razão última
da comicidade retorna à própria personagem e sua imperícia, característica,
aliás, que faz do riso circense algo particular: em realidade, nas entradas
parodísticas dos palhaços ri-se menos das inferências ao mundo externo e
mais dos desajustes da personagem no seio do espetáculo circense (razão

Dezembro 2005 - Nº 7 - 71 U
última que acompanha esse tipo cômico desde seu nascedouro).

Por ser recurso básico de todo o aprendizado circense, o salto mortal é


freqüentemente abordado nas entradas e reprises dos palhaços10. Como a
ótica cômica do palhaço dá-se sob a forma do ridículo, a educação corporal
do artista de circo aparece ao público como algo ao mesmo tempo trivial e
de extrema dificuldade. A trivialidade se caracteriza através da imanência
do salto que permeia o aprendizado, a ponto de se cristalizar na memória
corporal dos artistas como uma espécie de alfabeto básico da arte circense.
No entanto, e ao mesmo tempo, esse passo inicial do aprendizado corporal,
colocado sob o viés do grotesco, evidencia a extrema dificuldade de sua
realização, dentre outras coisas porque nas entradas clownescas ele rara-
mente se efetiva. Com isso, o palhaço apresenta ao público sua própria ina-
dequação às lides acrobáticas, ainda que o exercício de sua profissão exija
o domínio (ao menos mental) dos movimentos básicos de um salto mortal.

O palhaço faz do objeto ou situação parodiados motivos para expressar


a carência de sentidos espirituais em si mesmo. Falta-lhe a inteligência ne-
cessária para organizar um salto mortal, fazendo uso de uma escada e car-
regando uma lata na mão. Essa operação é por demais complicada para a
sua frágil articulação entre um objetivo (o salto mortal) e os meios propostos
para sua execução (escada e lata). Ele não tem coordenação mental (e tam-
bém motora) suficiente para associar e encadear esses movimentos e seus
respectivos objetos. Essa disritmia torna-se evidente em sua performance
no picadeiro. A dramaturgia, nesse caso, tem papel subsidiário. A ênfase da
comicidade está depositada em seu corpo desajeitado e inábil para a tarefa
proposta.

O riso provocado pelos palhaços quando parodiam os números de varie-


dades circenses, não advém, necessariamente, do escárnio de algo externo.
Ocorre a zombaria, mas ela se dá em uma relação direta entre o público e a
própria personagem. Ri-se de suas trapalhadas em função das característi-
cas próprias da personagem. Não há indícios miméticos de situações exte-
riores. O picadeiro e a inaptidão do palhaço são os requisitos básicos desse
tipo de comicidade. As situações cômicas provocadas pelo palhaço, quando
parodia o acrobata, não são “manifestações exteriores de vida espiritual, que
escondem interiormente uma substância que lhes é inadequada.” (Propp,
1992, p. 154) Esse tipo de comicidade reporta-se exclusivamente à persona-
gem palhaço e às suas características e sentidos históricos que enfatizam a
rudeza, a imprudência, a imperícia e a ignorância. Nessa personagem tudo
é exterior e o riso que daí advém enfatiza justamente a força viva dessa
exterioridade que não esconde sua força interna, ao contrário, reforça-a e
enfatiza-a11. Não há ruptura e desacordo entre as substâncias exteriores

U 72 - Dezembro 2005 - Nº 7
e as interiores. Ambas são enfatizadas pela via da exterioridade da inter-
pretação, que se funda na peculiaridade da personagem palhaço. Se fosse
possível algum tipo de abstração, nesse caso, poder-se-ia afirmar que, em
última instância, o riso parodístico no circo tem uma única fonte: o palhaço,
uma personagem carregada de uma simbologia própria, que estabelece um
grau de cumplicidade cômica com a platéia. A simples entrada no picadeiro
já é indicativo para o realçar do espírito cômico, uma espécie de acordo táci-
to entre o artista e o público. A entrada do palhaço convida a platéia a entrar
no mundo do riso, quando os objetos risíveis não são exteriores à própria
personagem. Na atuação do palhaço não ocorre o assombro e a ruptura que
caracterizam a performance acrobática. Ela parece ser um convite ao jogo
improvisado da descontração, quando a personagem termina sendo, conco-
mitantemente, objeto e veículo do riso. O palhaço instaura uma espécie de
jogo pactual do cômico, isto é, um certo sentimento comum da necessidade
e exercício do riso, sem necessariamente pautar-se pela zombaria a algo
exterior. Uma conclusão dessa natureza é válida apenas para as paródias
dos números circenses. O mesmo não se pode dizer quando o palhaço di-
reciona seu enfoque cômico para a hierarquia social ou as autoridades, por
exemplo.

Notas_______________________________________
¹ O salto mortal na escada com a lata na mão está reproduzido em meu
livro Palhaços (São Paulo: Edunesp, 2003), p. 211-212.
² Para uma leitura semiótica do espetáculo circense, consultar Bouissac,
1971, em que aparece a distinção entre a superioridade biológica controlada
do acrobada e a inferioridade descontrolada dos clowns (p. 105).
³ “...le clown qui se produit seul en pist est très rare; cela arrive dans les
‘reprises’, mais alors il parodie l’acrobate ou le dresseur qui vient d’achever
son numéro et qui constitue donc le deuxième élément du couple; ou encore,
um clown très célèbre peut faire l’ECONOMIE d’um partenaire em utilisant
le régisseur de piste (Monsieur Loyal) comme interlocuteur. Em règle géné-
rale, dans la synchronie qui nous concerne ici, il y a toujours deux acteurs,
souvent trois, parfois um plus grand nombre, chacun ayant une fonction dé-
terminée dans le système littéraire que l ‘numéro’ met em oeuvre.” Bouissac,
1972, p.292.
4
Há outras modalidades de espetáculo circense no Brasil, como o circo-
teatro, que apresenta exclusivamente melodramas e comédias, ou os es-
petáculos mistos, com números de variedades na primeira parte e teatro na
segunda, ou ainda os espetáculos com variedades e show musical.
5
“These circus performances depend on a totality of presence and on its
complete visibility. And these circus bodies neither analogize, metaphorize,
nor allegorize absence or nostalgia, grief or longing, etc. These bodies in
Dezembro 2005 - Nº 7 - 73 U
performance are exactly qhat they show themselves to be – they are reality,
and neither fantasy nor ideology.” Handelman, 1991, p. 213.
6
Ver Bouissac, 1971.
7
“A ‘performance’ teatral envolve ao mesmo tempo o palco (e tudo o que,
antes, prepara o espetáculo) e, depois, a platéia (com toda a receptividade
de que ela é capaz).” Pavis, 1999, p. 339.
8
Ver o primeiro dos três sentidos da representação teatral, tal como propos-
to por Pavis, 1999, p. 338.
9
Ver a respeito Levy, 1991, particularmente o capítulo VI, “Le répertoire des
clowns”, p. 45-51.
10
No capítulo 4 “O repertório clownesco”, de meu livro Palhaços, eu abor-
do a presença do salto mortal em diversas entradas e reprises. Bolognesi,
2003, p. 103-142.
11
Ver Propp, 1992, o capítulo “O riso bom”, p. 151-158.

Bibliografia____________________________________
BOLOGNESI, M. F. (2003) Palhaços. São Paulo: Edunesp.
BOUISSAC, P. (1971) “Pour une sémiotique du cirque.” Semioti-
ca. Journal of the International Association for Semiotic Studies,
vol III, nº 2, p. 92-120.
______. (1972) “Les avatars du clown: transformations sémio-
tiques et parallélisme des systèmes.” Semiotica. Journal of the
International Association for Semiotic Studies, vol V, nº 3, p. 290-
296.
HANDELMAN, D. (1991) “Symbolic types, the body and the cir-
cus.” Semiotica. Journal of the International Association for Se-
miotic Studies, vol 85, n. 3/4 , p. 205-225.
LEVY, P. R. (1991) Les clowns et la tradition clownesque. Sorvilier:
Ed. La Gardine.
PAVIS, P. (1999) Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva.
PROPP, V. (1992) Comicidade e riso. São Paulo: Ática.

U 74 - Dezembro 2005 - Nº 7
Apontamentos para o estudo da identidade
artística
________________________________________________
Antônio Vargas*

Nos últimos anos, as transformações tecnológicas que promoveram as


dinamizações econômicas através dos fluxos de capitais produziram impor-
tantes e bruscas alterações nos comportamentos e nas práticas do trabalho,
em especial no tópico estabilidade. Fato semelhante também ocorreu no que
diz respeito à estrutura familiar, mas preponderantemente como conseqüên-
cia das reivindicações feministas e dos movimentos de direitos dos homos-
sexuais.

Por estes motivos, entre outros, nos últimos anos um fenômeno constan-
te em várias áreas de conhecimento tais como educação, sociologia, antro-
pologia e filosofia têm sido pensar o conceito de identidade, questionando-o
como algo monolítico. E igualmente pertinente é a aplicação destas conside-
rações ao estudo dos processos constitutivos da identidade artística.

Origem, trânsito e ascensão social: A obra como meio, o mercado e


o mito.

Creio que não há dúvida entre os que estudam os processos de cons-


trução da identidade artística, sobre a importância do mercado enquanto
espaço no qual se dá o jogo de aceite e rejeição das práticas artísticas .Toda
a pessoa que opta por tornar-se artista já possui uma bagagem cultural que
é resultado de suas relações sociais, de sua história de vida. Mas isto não
significa que o artista pretenda que sua prática se circunscreva apenas aos
limites destas relações sociais. A aceitação de suas práticas por parte de
um coletivo mais amplo do que aquele que constitui sua teia de relações
pessoais é sempre desejada e, veremos, necessária. Maior importância pos-
sui para aqueles artistas não que não nascem no berço de uma família
relacionada ou inserida no sistema de arte. Geralmente, a realização desta
necessidade implica em obter o reconhecimento de pessoas de estratos so-

*Antônio Vargas, Pós-Doutorado Universitat de Barcelona, UB, Espanha,


artista plástico, professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro da
UDESC.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 75 U
ciais mais elevados o que por sua vez traz, além de benefícios econômicos,
reconhecimento e destaque junto ao seu coletivo de relações. Contribui para
sua ascensão social na medida em que o coloca em melhor posição nas
negociações simbólicas por ser visto como um intermediário entre diferentes
realidades sociais. É absolutamente natural, portanto, que o artista busque
o reconhecimento de indivíduos e instituições que representam os estratos
mais elevados da pirâmide social. É em meio a este jogo que é negociada
a aceitação da prática artística e através dele que a identidade artística se
constrói. Perguntas que pesquisas de campo podem contribuir a compre-
ender são, por exemplo: Em que medida o desejo de representar valores
culturais de origem são abandonados em detrimento de valores represen-
tativos dos segmentos sociais que o artista deseja conquistar? Que fato-
res materiais e simbólicos são determinantes para estas transformações?
E que mecanismos ou fatores atuam como elementos aglutinadores entre
os desejos de ascensão e os de representação de sua origem ? Tais ques-
tões estão relacionadas a conceitos como os de semelhança e diferença.

HALL (in da Silva,2004:104) recorda que para a crítica descontrutivista


o conceito de identidade se revela como uma “idéia que não pode ser pen-
sada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem
ser sequer pensadas”. Mas Hall não deixa de recordar que as questões
relativas a identidade podem ser pensadas tanto pela análise das práticas
discursivas como pela dos processos de subjetivação, sendo neste último
caso, mais adequado pensarmos em identificação que propriamente em
identidade. Neste sentido, e distanciando-se de uma conceituação do senso
comum que veria a identificação elaborada a partir do reconhecimento de
elementos comuns (origem, características, etc) o autor alia-se à abordagem
discursiva que vê a identificação como um processo nunca pleno, sempre
inconcluso, sempre “em processo”. Por esta razão a identificação é sempre
condicional e contigenciada. Assim, ao pensar a identidade incorporando a
subjetividade implícita ao conceito de identificação Hall propõe uma reflexão
em torno de um conceito não essencialista mas “estratégico e posicional”.
Por conseqüência – esclarece o autor- esta conceituação não se refere a
um “eu coletivo, capaz de estabilizar, fixar ou garantir o pertencimento cultu-
ral ou uma ‘unidade’ imutável que se sobrepõe a todas as outras diferenças
– supostamente superficiais.” (idem:108).

De fato, nos parece que Hall está correto ao entender que o estudo da
identidade não deve se ater ao conceito de “identidade coletiva”. Mas no
estudo dos processos de construção da identidade artística é preciso ter o
cuidado para não jogar fora o bebê junto com a água do banho, pois como
enfatiza NEUMANN (1992) o estudo sobre a mitologia artística indica clara-
mente que sua influência na aceitação ou rejeição das práticas artísticas é

U 76 - Dezembro 2005 - Nº 7
considerável. E a mitologia artística é uma forma de concepção ( e constru-
ção) coletiva da identidade! O artista enquanto figura social, é um símbolo,
naquele sentido em Cassirer ou Jung definiram, e as histórias que contam
suas ações ao longo dos séculos reafirmando modelos de comportamento
encontram-se incrustadas na cultura humana, independente de classe social
, nacionalidade ou etnia ( KRIS & KURZ 1982). Mitemas sobre a proteção
ou origem divina, o nascimento difícil, precocidade, abandono, encontro com
o protetor, domínio técnico, apenas para citar alguns dos principais com-
ponentes das narrativas heróicas, encontram-se lautamente registrados em
críticas jornalísticas , livros biográficos e catálogos e exercem influência sig-
nificativa no processo de construção da identidade do artista, pois interferem
na aceitação de suas práticas. Apenas a título de exemplo: Em um artigo
sobre Cacilda Becker, Luís André do Prado (1998), autor da biografia da
atriz brasileira que tem como título Cacilda Becker, Fúria santa demonstra as
tendências excepcionais da atriz, que não se originariam no berço da família
natural e sim em uma suposta herança divina dos criadores do teatro: os
gregos. Diz assim:

“Cacilda nasceu em 1921, numa família sem nenhum histórico


artístico”. (...) “Primordialmente, a família é originária da Grécia.
Tanto que a própria Cacilda acreditava ter descendência direta
dos gregos: ‘ meus avós maternos são alemães e minha avó pa-
terna, italiana, meu avô paterno, grego. Nosso jeito é primitivo
– vivemos do instinto, agarramo-nos às coisas, ao jardim. Temos
apenas o vício de viajar.”(PRADO, 1998:74)

Relacionado ao nascimento surgem os mitemas indicativos da Precoci-


dade. O herói, de criança, e de jovem já revela sua natureza incomum, e da
mesma forma o artista revela seu talento.

No mesmo texto, um pouco a frente, PRADO se serve deste mitema


quando diz que Cacilda:

“ (...) integrou pela primeira vez um elenco teatral sem nunca ter
assistido a uma peça” (p.74) “Aos 9 anos, apresentou-se num
palco pela primeira vez, numa festa de colégio, ainda em Piras-
sununga. Isso virou um hábito: além de dançar em casa para
“espantar a fome”, em toda festa de encerramento do ano letivo,
do primário ao secundário, lá estava Cidinha (apelido de infância)
com a dança inventada por ela mesma.” (1998:77)

De forma semelhante, EICHENBERG ao falar do teatrólogo e diretor

Dezembro 2005 - Nº 7 - 77 U
Peter Brook diz:

“Brook fez sua primeira montagem de Hamlet aos 7 anos


de idade, quando, com a ajuda de marionetes de papelão,
encenou para seus pais a conhecida tragédia do príncipe da
Dinamarca.”(2002:115)

Agora vejamos: inúmeras crianças encenam e quando adultos seguem


outras profissões com poucas relações com a arte. Mas no texto a afirma-
ção deste fato (real ou não) de sua biografia auxilia no reconhecimento das
qualidades heróico-artísticas, e estimula o leitor a “entender e aceitar” as
qualidades artísticas da prática. Para alguns, estes fatos não passariam de
um aspecto anedótico, sem maiores repercussões no estudo da identidade
artística. Mas uma análise mais acurada revelaria o equívoco desta descon-
sideração.

Identidade e diferença.

As considerações sobre o “transito” ou “negociação” do artista com os


diferentes estratos sociais mostram uma questão importante no processo
de construção da identidade artística : as relações entre “centro-periferia”.
É na busca de um maior reconhecimento que o artista migra da cidade me-
nor para a maior; do interior do estado para a capital, de uma capital com
menor mercado consumidor para outra com maior e de um país periférico
culturalmente para outros países com maiores potencialidades de repercus-
são artística. E nestes deslocamentos as identidades regionais e nacionais
interferem nos processos de negociações simbólicas que geram aceitação
ou rejeição das práticas artísticas de uma forma muito mais significativa do
que nas relações que se estabelecem dentro da cidade de origem do artis-
ta, isto é, naquela na qual ele inicia sua caminhada para o reconhecimento.
O artista que inicia sua carreira profissional na cidade de Chapecó, interior
de SC e que migra para a Capital do Estado, Florianópolis, em princípio,
enfrentará uma situação semelhante a do artista que iniciou sua carreira em
Florianópolis e migra para a capital São Paulo, por exemplo, pois ambos
estarão se deslocando de centros de menor para maior consumo artístico.
Mas também será semelhante à situação do artista brasileiro ou argentino
que migra para as grandes capitais da Europa ou EEUU. Assim sendo, os
problemas que enfrentarão serão grosso modo semelhantes no que tange a
esta questão. E as causas destes problemas derivam de aspectos concre-
tos e simbólicos. Concretos porque o conhecimento tende a se concentrar
nos grandes centros econômicos e no campo da arte isto não é diferente. A
riqueza econômica gera o consumo artístico e estimula o debate e as trans-
formações da área, pois fomenta viagens, exposições e publicações.

U 78 - Dezembro 2005 - Nº 7
Conseqüentemente, aquele que reside longe do centro enfrenta mais
dificuldades para acompanhar o debate e as transformações mais recentes
das práticas artísticas. Possui maior dificuldade de acesso a galerias, tea-
tros e outros espaços de veiculação. Sua superação implica em uma maior
exigência de tempo e recursos para deslocamentos aos centros nos quais
ocorre o debate (seja Porto Alegre, São Paulo, New York, Barcelona ou
Londres) os quais implicam em outros gastos como hospedagem, aquisições
diversas, etc as quais chocam com a realidade do artista que justamente por
atuar em um mercado menor obtém uma receita também menor com sua
prática artística. Daí reside a leitura – não obrigatoriamente correta – que o
artista que vem do interior esta menos preparado que o artista que reside na
capital. Esta leitura ocorre igualmente quando o artista migra de uma capital
“menor” para uma maior (eixo Rio-São Paulo, p.e.) ou de um país periférico
para os grandes centros culturais do exterior. O eventual equívoco decorre
do fato de que a avaliação se apóia unicamente sobre o tamanho do mer-
cado de origem do artista, seja das cidades do estado, das capitais ou dos
países, sem levar em conta outros fatores como a história de vida do artista.
No entanto, eventuais equívocos confirmam a regra, como toda exceção.

Mas esta leitura também é simbólica, porque esta co-implicada com as


imagens ancestrais do centro e da cidade nas quais o que esta fora do cen-
tro, nas aforas das muralhas da cidade é o terrorífico, o lugar em que habita o
deus Pan e conseqüentemente, o lugar onde o pânico e o caos se instalam.
Imagens, por certo, em franco confronto com a realidade dos grandes cen-
tros urbanos dos países periféricos nas quais o caos e o pânico já habitam o
próprio interior das cidades. Mas são imagens poderosas e ainda presentes
no imaginário coletivo. Cabe ressaltar, porém, que este tipo de simbolismo,
assim como os tipos de problemas vividos pelos artistas em suas migrações
territoriais não se aplicam as identidades construídas através das práticas
artísticas que se desenvolvem exclusivamente na internet. Estas, de fato,
pela sua singularidade e novidade pleiteiam reflexões e estudos específicos,
as quais neste artigo não serão tratadas, mas que futuramente pretendemos
abordar.

A imagem formulada sobre o artista migrante é simbólica também, por-


que é uma imagem mitológica, ou seja, decorre de uma ação que encontra
similar nas ações narradas pelas mitologias heróicas sob as quais se cons-
trói a mitologia artística. Neste caso, a migração para outra cidade ou centro
corresponde aos mitologemas das viagens, da agonística e do aprendizado
heróico. Nesta etapa da vida do herói, ampliam-se em todos os sentidos, os
campos de aprendizagem e de experiência. CAMPBELL (1993) sublinha que
nesta fase as dificuldades são muito freqüentes na jornada do herói, porém

Dezembro 2005 - Nº 7 - 79 U
elas funcionam como provas que testam sua inteligência e perspicácia de
superação.

TRINDADE (2003) em artigo sobre a atriz Juliana Carneiro da Cunha


nos diz:

“(...) em 1970, mudou-se para Paris, e o coreógrafo Maurice Béjart


passou a ser seu novo mestre no centro de Formação do Intérpre-
te Total...” “Juliana trocou o sucesso profissional e financeiro cada
vez mais certo no Brasil pelo desemprego e anonimato em Paris.”
(2003: 108)

Como se vê, o mito ensina que as viagens representam um período de


grande aprendizagem na vida dos artistas. Período este no qual adquirem
um grande domínio do exercício de suas funções. Sob esta ótica, por mais
difícil ou mal fadada que seja a experiência vivida pelo artista no seu deslo-
camento, esta sempre poderá terminar de forma positiva se o artista retornar
ao seu lugar de origem, pois desta forma se fechará o círculo mítico da
partida-aprendizado-retorno. E a conseqüência é que em seu retorno será
reconhecido não apenas pelo aprendizado que adquiriu em sua aventura,
mas principalmente pelo fato de ter retornado para compartilhá-lo com o seu
coletivo.

Deve-se ter presente que a leitura que institui a “diferença “ entre o ar-
tista local e o artista migrante ao ser simbólica é classificatória e portanto
possui uma repercussão social. Como recorda WOODWARD (2000)

As identidades são fabricadas por meio da marcação da dife-


rença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sis-
temas simbólicos de representação quanto por meio de exclusão
social. A identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identi-
dade depende da diferença. Nas relações sociais, essa forma de
diferença – a simbólica e a social – são estabelecidas, ao me-
nos em parte, por meio de sistemas classificatórios. Um sistema
classificatório aplica um princípio de diferença a uma população
de uma forma tal que seja capaz de dividi-la ( e a todas as suas
características) em ao menos dois grupos opostos – nós/eles (por
exemplo, servos e croatas); eu/outro.(2000:39,40)

Em sua junção simbólico-social a aplicação de um princípio classificató-


rio de diferença apoiado sobre uma lógica binária implica obrigatoriamente
que um dos termos seja inferiorizado. Neste caso, o artista que migrou de
um centro pequeno ao retornar pode vir a ser supervalorado frente ao artis-

U 80 - Dezembro 2005 - Nº 7
ta local já que este último pode vir a ser considerado como aquele que não
saiu, o que não possui outras vivências.

Pode-se observar que o elemento mítico atua assim como um “restau-


rador” e “instaurador” da identidade artística que se fragiliza no processo mi-
gratório quando este não gera um maior inserção mercadológica ou quando
frustra alguma das expectativas do artista.

Outras ações decorrentes da prática artística e que se encontram co-


relacionadas com a mitologia artística, tais como o entendimento de domí-
nio técnico, merecem uma atenção especial por suas implicações junto aos
diferentes estratos culturais e as conseqüentes reações de aprovação ou
rejeição das obras artísticas. Mas a necessidade de uma atenção singular
apenas reforça a tese de que a mitologia artística se constitui em um para-
doxo que deve ser considerado no estudo dos processos de construção da
identidade do artista.

Bibliografia____________________________________
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix,
1993
CASSIRER,Ernst. Esencia y efecto del concepto de símbolo. Ed.
FCE, México, 1989
EICHENBERG, Fernando. A Matéria de Hamlet. In revista Bravo!
SP. Junho de 2002. Ano 5. N. 57
HALL, Stuart. Quem precisa da Identidade? In Identidade e dife-
rença: A perspectiva dos estudos culturais. Org. Tomaz Tadeu da
Silva, Editora Vozes, RJ. 2000
KRIS, E & KURZ,O. La leyenda del artista. Madrid:Catedra,1982
NEUMANN, Eckhard. Mitos de artista. Madrid:Técnos,1992
PRADO, André L. Por falar nisso, viva Cacilda Becker! Bravo , SP,
Setembro de 1998. N.12
TRINDADE, Mauro. De volta pra Casa. In revista Bravo! Agosto
de 2003.
VARGAS, A. C.:
- O símbolo no estudo da hierofania estética. PERISCOPE MA-
GAZINE. Internet: , v.1, 2001. http://www.casthalia.com.br/castha-
liamagazine/casthaliamagazine1.htm
- Antropologia simbólica:hermenêutica do mito do artista nas artes
plásticas In: As questões do sagrado na arte contemporânea da
América Latina ed.Porto Alegre : Editora da Universidade UFR-
GS, 1997, p. 55-67.
- A ruptura contemporânea com as aporias vanguardistas na cons-
Dezembro 2005 - Nº 7 - 81 U
trução de um novo paradigma estético-social. Porto Arte-Revista
do mestrado da UFRGS. Porto Alegre: , v.8, p.81 - 88, 1994. .
- A liberdade de criação e a cultura popular. Porto Arte- Revista do
Mestrado em Artes Visuais da UFRGS. , v.6, p.16 - 24, 1993.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução
teórica e conceitual. In Identidade e diferença: A perspectiva dos
estudos culturais. Org. Tomaz Tadeu da Silva, Editora Vozes, RJ.
2000

U 82 - Dezembro 2005 - Nº 7
A história no teatro: Recortes Medievais – o amor
como subtítulo
________________________________________________
Frederico Teixeira Gorski *
Márcia Ramos de Oliveira **
Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho***

I - A história no teatro: uma proposta de arte-educação¹

O projeto de extensão A história no teatro: uma proposta de arte-educa-


ção visava, por meio da linguagem das artes cênicas, aprofundar e difundir
o conhecimento acerca dessas duas áreas, destacando sua conexão com a
literatura e a filosofia dos períodos que ele abrange: da antiguidade greco-
romana e da Idade Média. Ele foi coordenado pela Profa Dra. Márcia Ramos
de Oliveira, historiadora, que ministra as disciplinas de História Antiga e Me-
dieval na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). O projeto,
que envolveu alunos de vários cursos, contou, também, com a colaboração
de outras professoras da mesma universidade: Ms. Bárbara Giese (História),
Dra. Beatriz Vieira Cabral (Teatro e educação), Dra. Maria Brígida de Miran-
da (Teatro), e Dra. Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho (Filosofia).

É pertinente observar que, com o apoio do projeto, foi promovido o en-


contro: I Simpósio Lendo, Vendo e Ouvindo o Passado, no qual, dentre ou-
tras coisas, foram discutidos temas relativos ao medievo, com a presença de
pesquisadores, como os Professores Dr. José Rivair de Macedo e Dr. João
E.P.B. Lupi, medievalistas. Alguns membros do grupo tiveram, também, a
oportunidade de participar do Simpósio Internacional, em Porto Alegre, Os
sete Pecados Capitais, ampliando suas informações sobre o período medie-
val. Por fim, lembremos, ainda, a interação entre as atividades deste projeto
de extensão e as de outro projeto, na mesma Universidade, desenvolvido
como grupo de pesquisa, intitulado Gregos e Baianos, e que buscava tra-

* Frederico Teixeira Gorski, graduando em Psicologia na Universidade Fede-


ral de Santa Catarina.
** Márcia Ramos de Oliveira, doutora em História, Professora da Universi-
dade do Estado de Santa Catarina.
*** Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, doutora em Letras Clássicas.
Foi professora da Universidade do Estado de Santa Catarina até abril de
2005.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 83 U
çar paralelos entre cultura clássica e medieval e cultura brasileira. Foi muito
oportuno, naquele momento, que este grupo estivesse estudando a obra do
cantador e trovador Elomar Figueira Mello, permitindo constatar, aqui, o que
o Prof. José Rivair de Macedo denomina de “permanência da medievalidade
na cultura posterior (moderna e contemporânea)”².

Antes de passar à segunda parte, ressaltemos a possibilidade de levar


tal projeto de extensão, a partir de seus resultados finais, e por meio das
montagens cênicas e leituras dramáticas, para além do espaço universitário,
especialmente aos estudantes da rede de ensino fundamental e/ou médio.
Como bem observou o Prof. Rivair de Macedo, “um bom caminho para se
compreender essas proposições [as de ser a Idade Média uma “civilização
de gestos”, ou uma “civilização da palavra e da voz”] é explorar no ensino ou-
tras possibilidades de comunicação, como a imagem e a oralidade (Macedo,
2003, p. 118).

II - Recortes Medievais – o amor como subtítulo - processo de compo-


sição da peça³

Tendo esses elementos apresentados, passemos, agora, ao método


narrativo proposto pelo roteiro e à forma como foram trabalhados.

A partir do momento em que o grupo decidiu pela montagem de um


espetáculo teatral, foi escolhido como texto básico Sete cantigas de amigo,
de Martin Codax (servindo-nos de diferentes gravações desta obra). A es-
colha justifica-se devido ao interesse dos próprios alunos no tema do amor
cortês, a partir da leitura do texto clássico de Denis de Rougemont, L’amour
et l’occident. Chamou a atenção do grupo, por exemplo, o questionamento
sobre alguns aspectos da poesia trovadoresca, como o da imagem da mu-
lher, que não correspondia à realidade; pois Rougemont chega a perguntar
se não seria possível que o Amor trovadoresco fosse, na realidade, o cor-
respondente “profano” ao Amor cátaro (a palavra Amor, no provençal, é do
gênero feminino e, para os cátaros, Deus é Amor).

O argumento da peça é o que segue: trata da tentativa de oito estudantes


de Idade Média de verter para a linguagem teatral seus estudos. A pesquisa
sobre as representações das mulheres e as perspectivas contemporâneas
sobre a história revelam como, em cada época, as interpretações históricas
vão sendo tomadas como verdades. Em suas próprias fantasias, encontram
seus espelhos, perdem-se em um jogo de ilusões e, dentro desse labirinto,
encontram sua transformação por meio do vinho e da música, duas referên-
cias ao deus Dioniso.

U 84 - Dezembro 2005 - Nº 7
Esse argumento, como foi dito anteriormente, fez uso da forma como
a diretora, Maria Brígida4, trabalhou os atores e atrizes. O intento, portanto,
foi duplicar cada personagem, empurrando um dos duplos para o período
histórico trabalhado e projetando a personalidade dos participantes para os
seus objetos de estudos, o que caracteriza o anteriormente citado jogo de
espelhos. Para reforçar essa idéia por meio de recursos cênicos, optou-se
por apresentar temas medievais, como amor cortês, bruxaria e igreja, tra-
balhando-os em uma cena e, em geral, apresentando posteriormente uma
versão satírica da abordagem. Esse recurso permitiu também questionar as
formas como a mídia, através do cinema, principalmente, reflete o período
medieval, muitas vezes passando desse uma visão estereotipada e simplis-
ta. Assim, em determinado momento, discute-se também a questão do papel
e posição da mulher na Idade Média, usando textos de autores como Carla
Casagrande, Georges Duby e outros como referência.

O emprego do método não é, por certo, original, se o tratarmos desde o


ponto de vista dos textos teóricos de Brecht (1970:1939) sobre o teatro.

O jogo de contradições aparece na obra do dramaturgo alemão como


ponto fundamental para se obter o efeito artístico pretendido, qual seja: não
apenas atrair o espectador, mas despertar uma postura crítica, de reflexão
sobre as coisas que vê no palco. Dessa forma, ao colocarmos em cena per-
sonagens que se vêm perdidos entre um e outro reflexo de sua existência,
pretendíamos levar o espectador não apenas a imergir no período histórico
que representávamos, mas, também, a refletir sobre a própria historiogra-
fia.
Por outro lado, é necessário mostrar que o paralelo com o texto brechtia-
no não deve ser levado a todas as suas conseqüências, na medida em que
essa contradição é colocada em cena de uma forma não prevista na teoria
brechtiana. Em vez de trabalhar a contradição no personagem, o texto tra-
balha com a duplicação de personagens, mecanismo que mais bem leva o
espectador a compreender cada parte como um único personagem e que,
ao invés de empurrá-lo para uma posição crítica, produz a identificação.

Desde esse ponto de vista, portanto, o referencial teórico da montagem


deixa o teatro para se referir a outra arte – a literatura5. A questão do outro
e do espelho, assim, tem sua inspiração na obra do escritor argentino Jorge
Luis Borges, que escreve, a certa altura:

Mirar el río hecho de tiempo y água


y recordar que el tiempo es otro río,
saber que el tiempo es otro río
y que los rostros pasan como el água (1996:1960)

Dezembro 2005 - Nº 7 - 85 U
Temos, então, a partir do ponto de vista do texto, três referenciais narra-
tivos e teóricos que podem ser nele investigados. Dentre eles, contudo, fo-
ram previstos durante a composição apenas dois. O de Carlos Saura, como
método de composição, e o de Borges, como teoria geral da arte e como
método narrativo para o trecho final da peça. Veremos agora, como se de-
senvolveram em cada cena.

A primeira cena tem por objetivo colocar o espectador dentro do ambien-


te escolhido para a peça, evocando assim uma imagem comum de quando
se trata do período medieval – qual seja, o ambiente monástico. Utilizou-se
as badaladas de um sino e a recitação de Ave Maria6, em latim, como ele-
mentos sonoros para alcançar esse efeito, nenhuma luz para essa cena,
que termina com o barulho de recortes que se iniciam ainda durante a fala
do monge. Esse último recurso fez referência ao título e ao argumento da
peça, ao explicitar a idéia de que toda interpretação é também um recorte
histórico e não dá conta de tudo o que pretende tratar; deixa, porém, a pos-
sibilidade de interpretação do recorte da própria fala do monge. Em meio ao
som das tesouras, divide-se a primeira e a segunda cena pela entrada do
sino, novamente, como uma referência a um ambiente monástico, em que as
atividades eram controladas pelo toque dos mesmos, indicando a hora.

Os estudantes acendem suas velas e inicia a segunda cena, com a lei-


tura de um trecho das Cantigas de Amigo (Ondas do Mar de Vigo), de Martin
Codax, compositor galego-português7 do século XIII. Também aqui se deve
destacar um elemento semiótico importante para a peça. Os estudantes en-
contram-se dispostos como em sala de aula, porém não há a presença de
um professor, ou professora, o que indica um lugar não-institucional, embora
a atmosfera, de monastério, pela voz do monge e dos sinos, seja claramente
institucional.

Dessa leitura, destaca-se um dos atores, que irá, então, imaginar a cena
seguinte. Agora com Ondas do mar de Vigo interpretada pela New London
Consort, dirigida por Philip Pickett. Cada um dos atores se adequa à cena,
em que novamente se apresentam elementos da Idade Média. Uma das
atrizes fica no centro, sobre uma das mesas, evocando ao mesmo tempo
a Donzela que canta a saudade de seu amado e a da Virgem, que ganha
destaque dentro do culto católico nesse período (encontramos a justificativa
para essa fusão na obra de Rougemont, 1939[1972]). Dois outros atores
lerão seus livros, como símbolo do surgimento das primeiras universidades
na Europa. Um outro fica posto à frente, como que remando um barco – uma
referência explícita ao conteúdo da canção.

U 86 - Dezembro 2005 - Nº 7
A divisão entre essa cena e a seguinte é marcada pela entrada do celu-
lar, que quebra o encantamento. Nesse elemento, encontra-se também um
ponto de vértice entre as duas realidades que se trabalham aqui. Ele quebra
a atmosfera da cena anterior, e assume a função de troca de atividades antes
operada pelo sino. É nesse instante, também, que uma oitava personagem é
inserida na peça. Ela vem do meio do público, tocando sempre um sino tibe-
tano, como referência à chegada dos ciganos à Europa, também no período
medieval. A cena será destacada pela narrativa de uma história que ocorre a
uma das estudantes, mas que pouco a pouco se mistura também com seus
estudos. Sua história é encenada pela estudante que recém entrou em cena,
e uma das outras atrizes. Essa última irá imaginar e protagonizar a cena
seguinte, que é precedida pela inserção de uma canção de Elomar Figueira
Mello, O Pedido. A escolha desse compositor se deu pela ocorrência de te-
mas medievais em suas composições. O Pedido faz parte do repertório de
Auto da Cantigueira, umas das óperas compostas pelo compositor baiano, e
é, na ópera, cantada pela protagonista, pedindo a seu amigo que lhe traga
da feira objetos para se embelezar.

Na cena que segue, uma das atrizes já estará vestida com trajes medie-
vais, e protagonizará uma cena de amor cortês. Ela fala de seu amigo, que a
seduz, a retira do centro da cena, como se a levasse para os aposentos ma-
trimoniais e a enclausurasse. Ele, então, vai recontar a história, assim como
os troubadours cantavam as cantigas de amigo como se pela voz de uma
mulher. Para deixar isso mais evidente, ele modifica a história, na sem pro-
testo da atriz que protagonizou a cena anterior. Não obstante, em vez de um
autêntico troubadour, sai-lhe uma imitação de Fred Astaire. As constantes
correções do ator que “estuda para ser o bardo” chamam a atenção de um
terceiro, o qual o ameaça com a espada, pedindo-lhe Ine gesach die heide,
do Minnesinger Neidhart von Riuwental, um autor alemão do século XIII, que
se destaca, entre outras coisas, pela forma irreverente com que trata o amor
cortês em suas canções.

O retorno do sino, a quase transfiguração dos atores em personagens,


a confusão dos que se encontram no limite entre uma coisa e outra. Esse é
o significado proposto na transição da sétima para a oitava cena, na qual o
processo se completa. Para esse ponto, utilizou-se Hoy Comamos y beba-
mos, de Juan del Enzina. Todos estarão vestidos com suas roupas de papel,
menos o Bardo, que inicia a canção e, no meio dela, ganha sua roupa, carac-
terizando, assim a última passagem. As roupas de papel são os substitutos
das máscaras, o que fica evidente na nona e última cena. Nessa, em que os
personagens são todos apresentados com forte dose de ironia pelo Bardo, o
vértice se encontra na figura do próprio, pois é o personagem que se desloca
da periferia para o centro, ao longo da peça e que desmascara a pretensa

Dezembro 2005 - Nº 7 - 87 U
veracidade medieval dos atores/personagens.

Antes de apresentar o roteiro, gostaríamos de destacar alguns pontos


que podem ser utilizados em esquetes e leituras dramáticas, em escolas. As
duas cenas que se destacam mais claramente do conteúdo geral da peça,
embora talvez as mais importantes para o entendimento da mensagem pre-
tendida, são a sétima e a oitava. Elas podem ser adaptadas para uma apre-
sentação, em que o conteúdo do monólogo da última cena possa aparecer
entre uma e outra. Dos personagens, a cigana é uma das que apresenta um
encantamento forte o bastante para ter sua participação acentuada em pe-
quenos esquetes. Ela, juntamente com o Bardo, ou mesmo individualmente,
pode atuar como condutora do pequeno espetáculo. Esse papel de “mani-
pulador de marionetes”, assumido pelo Bardo, não deve ser utilizado para
o caso da cigana, pois o tom tão ácido utilizado pelo Bardo, para o caso da
outra personagem, pode reforçar estereótipos e preconceitos que não são,
de forma alguma, o intuito nem da peça, nem do educador.

Outra possibilidade, é a de que esse texto seja passado aos educadores,


que devem “preparar” seus alunos para a peça, que deveria, então, sofrer
apenas pequenas modificações, adaptando algumas linguagens para a faixa
etária alvo. Dessa forma, seria uma forma de levar os alunos ao teatro.

Se, contudo, a peça puder ser encenada em um auditório, ou sala de


aula, pode-se aproveitar muito bem os recursos aí disponíveis. A primeira
cena, então, deve diminuir, retirando-se a fala do monge, e iniciando-se a
partir dos recortes. Nesse caso, saem as velas e o sino, e o ponto de troca
de cena é o próprio fim do recorte. O celular pode permanecer; embora perca
sua função inicial, é lúdico o suficiente.

III - Recortes Medievais – o amor como subtítulo. Roteiro

CENA 1
(Todos sentados em suas carteiras, de costas para o público. Serão sete
atores, quatro na fileira mais próxima ao público, três postos a frente des-
tes. Portarão todos uma tesoura e uma cartolina, no centro da qual está a
letra de Ondas do mar de Vigo. Terão mochilas penduradas às cadeiras, e
velas e fósforos sobre a mesa. Pouco a pouco, escutam-se as badaladas
de um sino: Blémmmm... Blémmmm (3x)... Ouve-se a voz de um monge):
MONGE: - Gloria Patri, et Filio: et Spiritui sancto.
Sicut erat in principio, et nunc, et semper: et in
saecula saeculorum, Amen. Alleluia.
(Ainda antes que termine, devem todos iniciar o recorte, como se estivessem
a recortar a própria fala do Monge, e, ao mesmo tempo, uma auto-referência.

U 88 - Dezembro 2005 - Nº 7
O ator responsável pela oração deve fazê-lo de tal maneira que o público
não perceba, por meio de seus gestos, posto que estará de costas, que é ele
quem o faz. Ouve-se o sino mais uma vez, ressoa três vezes. O recorte pára.
Os atores acendem suas velas.).

CENA 2
(Começam os atores a ler o poema, todos com a voz em volume um pouco
acima do sussurro. A leitura deve ser feita como se houvesse alguma difi-
culdade em achar o sentido correto para as palavras. Por vezes, percebe-se
um prazer único na leitura. Um a um, os atores farão elevar as suas vozes
sobre o mar sussurrante. Todavia, nessa hora, farão a leitura convencional
do poema, apenas em línguas diferentes, conforme a ordem: Galego-Portu-
guês, Francês, Italiano, Alemão, Espanhol, Inglês e Português. Essa leitura
deverá ser feita como se empunhada a alguém que se encontre longe no
mar – às ondas quando se formam lá longe, na esperança de que tragam a
pessoa amada.
No momento da leitura em Português, um dos atores (Italiano-Monge) levan-
tará a cabeça, jeito de quem teve grande idéia, buscará o som portátil, que
estará na coxia à esquerda, cruzará o palco e, com cara de quem imagina
uma cena, ligará o aparelho.)

CENA 3
(Todos devem agora agir como se fossem os personagens da imaginação do
ator que saiu com o som. A atriz que pronunciou o texto em português vai se
erguer sobre a mesa, olhar no infinito, voltada agora para o público. Todos
farão o mesmo movimento em direção ao público conforme suas atividades.
O ator que falou inglês e o que falou alemão vão retirar da mochila um livro
e sentar sobre a mesa, lendo-o (símbolo da busca pelo conhecimento e do
surgimento das primeiras universidades), o Galego busca um pau de chuva
e, bem próximo ao público, rema o seu barco. As duas outras atrizes tam-
bém brincarão com seus instrumentos, um pandeiro com arroz. Continuam o
movimento mesmo depois de acabada a música. Os que lêem o livro recitam
Ondas do Mar de Vigo na língua em que o fizeram anteriormente. Toca o
celular.)

CENA 4
(Um ator [alemão] retira o celular do bolso, e é como se todos acordassem
de um transe, como se o som do celular correspondesse à função anterior
do sino, todos modificam suas ações e começam a organizar a sala como se
fosse uma taverna. O alemão atende o celular, se projeta um pouco à frente
do palco buscando escapar do barulho.)
ALEMÃO: - Hola, cariño! ... Como? ... Ahora no puedo, me lo podes pregun-
tar cuando nos vemos? ... No, estoy en el teatro... No, estoy representan-

Dezembro 2005 - Nº 7 - 89 U
do... En el teatro digo... Bueno, nos vemos en una hora? Beso.
(Guarda o aparelho, e se junta aos outros, fica a um canto, da mesma manei-
ra que os outros, olhando para o centro, sem saber exatamente o que fazer.
A cartomante [Carú] entra pela entrada do público ressoando o sino tibetano.
As personagens que estão em cena estranham a presença dessa nova figu-
ra. A espanhola [Grazi] recepciona a cartomante na entrada do palco, antes
que essa suba a escada. As duas cumprimentam-se. A espanhola [Grazi]
chama Renata para junto da cartomante).

ESPANHOLA (chamando): - Renata!


(Renata se aproxima da cartomante, as duas sentam-se no proscênio. A
cartomante começa a ler as mãos de Renata. Os outros personagens não
compreendem. Formam um quadro, todos atrás da mesa, indagando que
presença era aquela. A espanhola [Grazi] vai para trás da mesa, olha para a
portuguesa [Jú], e começa a contar uma história, e assim começam as duas
a costurar).
ESPANHOLA: - Eu e o Guilhão (todas a olham espantada com o nome) nos
conhecemos foi durante um show de rock. Eu cheguei, ele estava na porta.
Um amigo disse: “eu conheço, vamos lá que eu te apresento!”. Mas eu fi-
quei tímida. Meu amigo disse que haveria uma cartomante no local. Ficamos
eu e o Guilhão um de frente para o outro, até que, de repente, estende-se
uma toalha na mesa ao lado (deve ser esse o instante em que a toalha se
irá efetivamente estender ao lado). Sentamos os dois ao mesmo tempo. Eu
perguntei só sobre coisas da faculdade...
(Enquanto isso, as personagens, aos poucos, vão compreendendo, e se dis-
persam a fim de fazer suas atividades. Um toma do violão, o outro mexe com
uma espada, etc. O Italiano senta-se no fundo do palco, à direita do público,
com um livro na mão. O inglês estará provando movimentos com a espada.
O Galego e o Alemão conversam sobre música e sobre a cena seguinte, em
voz baixa).
CARTOMANTE: - Você não quer saber nada sobre o amor? (a outra faz ges-
to tímido) Ele está mais próximo do que imagina.
ESPANHOLA: - Ele só falou de amor.
CARTOMANTE: - O cavaleiro deve cortejar a sua dama para obter dela con-
fiança. Deve jurar-lhe fidelidade e manter o seu segredo. À dama, cabe tratar
o cavaleiro como o senhor ao seu vassalo, deve protegê-lo e buscar desfa-
zer-se de toda investida de seu Amigo. Se não puder, lembre-se de que o
verdadeiro amor é cortês.
(Quando terminam, o Bardo, estará falando ao Amigo sobre a música me-
dieval)
BARDO: Para a próxima cena, na qual a Francesa se enfeita para o Amigo,
será utilizada essa música do Elomar. Mais ou menos assim:
Já que tu vai lá na feira

U 90 - Dezembro 2005 - Nº 7
traga di lá para mim
água da fulô qui chêra
um nuvêlo e um carrin
trais um pacote de misse
meu amigo ah se tu visse
aquele cego catado
Um dia ele me disse
jogano um mute de amo
qui eu havéra di vivê
pur esse mundo
e morrê ainda em flô.

CENA 5
(A Espanhola e a Portuguesa terão terminado a roupa que costuram, e a
levarão para a que escuta a cartomante. Essa, tendo vestido a roupa, vai su-
bir à mesa e recontar a história. Com exceção do Amigo, por-se-ão os outros
em posição de Xadrez, três de cada lado do palco, observando o ritual da
Francesa-Donzela).
FRANCESA: - ... Show!... Eu vi... Bunito! Na porta... Meu amigo disse: Eu
conheço, vamu lá eu te apresentu! Eu conheço...
(Todos os outros atores devem se colocar assistindo à cena, embora um de-
les [o Bardo-Alemão] permaneça ao violão. O que falou galego se aproxima
da mesa em gestos corteses. Vai segurar a mão da donzela, beijá-la na testa
e sentá-la sobre a mesa, de costas para o público, simbolizando a clausura
da mulher.)

CENA 6
(Vem para frente, acende um cigarro e diz ao Bardo que pensou numa músi-
ca. Cantará o seguinte, em ritmo de As time goes by, e dançando estilo Fred
Astaire.)
GALEGO: - Bunita, ela me viu
na porta e brilhou
um amigo disse
Vem, vamos lá eu te apresentu
Bunita, ela me viu
Beijou-me e partiu
E eu não me esqueci
Vem, vamo lá eu te apresento.
(O Bardo tenta sem sucesso interromper a cantoria várias vezes, buscando
explicar-lhe que mais fale do que cante, como num jogo de professor e aluno
de música. O Bardo primeiro lhe instrui a não sapatear, depois a trabalhar
melhor os gestos e, por fim, desiste. )
BARDO: - Está melhorando, mas tens que pensar na questão do Amor, aca-

Dezembro 2005 - Nº 7 - 91 U
bas de deixar a tua amante e deves pensar nisso. O ritmo da melodia deve
se adaptar ao das palavras. Mais ou menos assim (mostra no violão).

CENA 7
(O Inglês interrompe a discussão)
CAVALEIRO: - Ine gesach die Heide!
(O Bardo toca)
CAVALEIRO (Entra com vigor, achando que vai arrasar): - Nunca esteve o
prado em melhor veste (titubeia, mas sem perder a pose)
A verde floresta enche meus olhos
Por ambos percebemos a chegada da primavera
As moças devem procurar seus parceiros,
Perambular baixo o céu claro de verão
Dançar em roda com espírito elevado (Põe as mãos frente ao peito, referin-
do-se aos seios fartos de uma mulher).
(Busca a Francesa-Donzela e a traz para compor o tablô vivân).
(O Bardo vai à frente, tocando, e interrompe seu instrumento para recitar)
BARDO: - A primavera é louvada por muitas vozes
Florescem as flores em muitos lugares
Onde antes nenhuma pôde ser encontrada
Eleva-se a tília, de folhagem plena.
Aí inicia, pelo que se vê (abre o gesto em direção às mulheres que estão no
tablô, que insinuam-se, risinhos, olhares, etc.)
Uma dança de jovens da corte
(Volta a tocar.).
DAMA: - Para quem deveria me arrumar?
Os bobos foram seduzidos pelo sono, (olha para o Amigo)
[e eu me encontro desesperada
Alegria e honra são nesse mundo de pouca valia
São só palavras, que os homens atiram ao léu
Nenhum corteja uma mulher, a quem fosse fiel. (vai compor o tablô)
ESPANHOLA: - Fica tu com a tua desgraça
Com alegria é que se deve envelhecer
Homens ainda há, que com prazer servem
Às mulheres que bem se parecem (Bate nas ancas)
Vira essa boca pra lá
Que me corteja um que a tristeza pode
[afugentar.
CARTOMANTE (indo-se para o lado do Amigo, que estará dormindo): - Este,
se me agrada, deves me mostrar
O cinto que me envolve será teu (roda à baiana)
Diga-me seu nome, quem te corteja de tal maneira (volta-se em direção ao
outro casal)

U 92 - Dezembro 2005 - Nº 7
(De volta ao Amigo, de novo o olhar lascivo, subindo a mesa, sobre a qual
dorme o Amigo)
Eu ontem sonhei contigo, que uma mão te dizia adeus
A outra... adiantava a rezadêra
PORTUGUESA (em direção ao Bardo): - Riuwental que é de todos bem co-
nhecido
É ele o meu afeiçoado,
Que boas palavras me tem rendido
Por isso, será bem recompensado
Vou enfeitar-me para satisfazer sua intenção (Badala o sino).
Pois estão a tocar meio dia!
(todos juntos)
TUTTI: - As Moças devem procurar seus parceiros
Perambular baixo o céu claro de verão
Dançar em roda com espírito elevado.
(Ouvem-se risinhos e cochichos, tudo se dispersa. O monge grita)
MONGE: - Estamos atrasados! Amanhã será dia de Santo André!

CENA 8
(Põem-se todas a realizar cada um suas atividades. O Bardo e o Amigo sen-
tam-se na mesa, o primeiro a dedilhar uma música qualquer, um resquício
daquela outra. A Dama e a Cartomante discutem a moda medieval. A Portu-
guesa e a Espanhola ensaiam algumas danças. O monge, mais à frente no
palco, se penitencia. Frente a ele uma garrafa de vinho. Lê a Summa Teoló-
gica. Todos, se falam, o fazem de forma quase ininteligível à platéia. Cada
grupo terá sua vez de elevar o som de suas atividades acima do barulho feito
pelos outros. Foco na Cartomante e na Francesa-Dama.)
DAMA: - Ah, tá muito difícil. Afinal de contas, é pra ser um vestuário, francês,
alemão, o quê?
CARTOMANTE: - Acho que não importa, segundo esse livro, as mulheres
causavam a maior confusão social com essa mistura de estilos, combinando
a moda de um país com a de outro.
DAMA: - Que fashion! Bem, o que importa é que o corpo deve ser bem co-
berto, pois os vestidos devem passar pureza, não é?
CARTOMANTE: - Sei não! As mulheres eram consideradas as filhas de Eva,
e o vestuário uma evolução do pecado original.
DAMA: - Agora confundiu minha cabeça. Acho mais fácil fazer roupa de ho-
mem.
CARTOMANTE: - Isso também depende. Escuta esse verso:
Vestem à vilã, com capas à francesa/ Justas na cintura à maneira masculina/
Pontas grandes à guisa alemã/ Delicadas e brancas como um arminho.
Trazem nos seus capuzes viseiras/ E mantéis à cavaleiro/ com carapuços, e
apertadas na cinta/ com seios indefinidos à moda inglesa.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 93 U
E diz um padre: “e por isso a população diminui e a sodomia aumenta”.
(Foco no Cavaleiro)
CAVALEIRO (olhando para a espada, primeiro com alguma curiosidade, de-
pois com admiração, e depois querendo usá-la): -
Ó gelo da luta
Vara da ira
Fogo de elmos
Dragão da espada
Roedor de elmos
Espinha da batalha
Varre a casa dos ventos
À procura do castelo do corpo
Das mulheres pecadoras
Adentra a casa do alento
(Olha para a Espanhola e para a Portuguesa dançando e grita)
Sois a causa da peste! Bruxas!!
(As duas recuam e gritam para que não atrapalhe suas danças. O Cavaleiro
se refaz.
Seguem as duas dançando. Continuam a cantarolar o que cantarolavam.
Era uma versão medieval da história de Medeia. Sempre repetindo o que
agora irão cantar, retomarão, após o ataque, o mesmo canto. Têm agora o
foco.)
AS DUAS: - Jasão, com pena do pai,
À esposa mágica vai
E pede a Medeia que ajude
a trazer a juventude
De volta ao pobre ancião.
Medeia,
Ao chegar à lua nova
Que era o tempo para a prova
Põe no fogo um caldeirão
E utensílios onde estão
Seus remédios, de mistura.
Como sumo, sangue e água pura;
(Repetem, diminuindo o volume da voz. Foco no monge. De frente para o
pão e o vinho)
MONGE (lendo a Summa Teológica): - Quaestio XCLVI Art. V - Utrum ratio-
ne virginitatis aureola debeatu.
Parece que a aureola não é devido à virgindade.
Pois, quanto maior difficultas in opere, ibi debetur maius praemium. . Ora, Se
maiorem difficultatem possuem in abstinendo et delectationibus carnis vidu-
ae quam virgines; e Jerônimo diz, que quanto maiores dificuldades sofre um
em se abster de prazeres ilícitos, tanto maior é o prémio, e isso diz quando

U 94 - Dezembro 2005 - Nº 7
faz o elogio da viuvez. E o Filósofo também ensina que a mulher que já não é
virgem tem mais veemente desejo carnal pela imaginação do prazer gozado.
(Rogando) Perdoai-me Senhor! Por haver pecado!
Perdoai-me Senhor! Pois pecarei mais uma vez! (Bebe e come!)
(O Amigo e o Bardo, sentados sobre a mesa, irão assistir a tudo com um
sorriso no rosto, alegres com a festa que está por vir. Ao verem o padre, rirão
mais e o Bardo, virando-se para o amigo, como quem acaba de encontrar o
tom certo para a ocasião, irá mostrar ao outro a música.).
BARDO (mostrando a música): - Oy comamos y bebamos ... (Canta o pri-
meiro refrão sozinho mais ou menos 3 ou 4 x, as pessoas vão se integrando
a canção, mas sempre com alguma interrupção entre as repetições, como
que aprendendo a música. Os homens vêm a frente cantar, as mulheres
preparam a mesa, cantando. Depois vêm as mulheres para a frente Na es-
trofe final, os dois primeiros versos são cantados somente pelo Bardo [em
staccato e mais baixo]. )
BARDO: Tomamos hoy gasajados, que mañana viene la muerte.
(Quando termina, o Cavaleiro ameaça com a espada, retira, o Amigo vem e
coloca sobre o Bardo o chapéu de Bardo, e o monge passa para esse uma
bebida. Retomam a canção, a Espanhola lidera a descida. Dão uma volta
pela platéia, e vão retornando ao palco. Toca o celular do Bardo, todos os
personagens ficarão à mesa comendo e bebendo)

CENA 9
BARDO (ao celular, retornando ao palco). –
Hola, cariño! Que tal? No, no, ya esta! ¡Puedes hablar, claro! (Vira-se para a
Portuguesa, passa a guitarra) No, olvidálo, nadie se dio cuenta... (De novo
à Portuguesa) Oye, ¿me podes ponerla en el case que está ahi? Gracias,
muy amable! (De volta ao Celular, já falando com o público). ¿El espetáculo?
¿De que se trata? Bueno, se trata de un intento de ocho estudiantes de Edad
Media de poner en escena lo que están estudiando... Si, la composición del
Espectáculo nos puso algunos problemas. El primer, es de que no se sabe al
cierto que formas tenía el teatro en esa época. El otro, es que todo lo que se
sabe viene de las imágenes y de los textos, de la arqueología, esas cosas...
... Exactamente, el problema de las interpretaciones... Ni todo lo que parece
muy evidente es lo que parece, y luego la história tiene mucho de las artes.
... Ahi lo tienes, considerando que el mas esperado era utilizarse del teatro
que normalmente se utiliza para hablar de Edad Média, pero que es de siglos
posteriores, o aún utilizar técnicas modernas para poner en escena las imá-
genes que nos llegán, se nos ha sugerido una tercera posibilidad. Cual sea,
la de que se podría llevar esos problemas al proscenio. Así se lo ha hecho.
Los ocho estudiantes se encuentran en sus ofícios de estudiantes, en que
ya resuena las fantasias que tienen de la época. El lugar de la no-institución
contrasta con la atmosfera de institución. Uno a uno, van imaginando esce-

Dezembro 2005 - Nº 7 - 95 U
nas y de hacerlo encuentranse en un juego de espejos y mirages que los
llevan a consecuéncias todavia no conocidas... ... Puede ser que por lá mú-
sica y por lo vino, pues al final casi se transforman en un coro de bacantes.
... Quienes són? Te lo cuento.
(Chama o primeiro)
Ricardo! Es el estudiante que imagina la tercera escena. Él estudia el famo-
so teologo italiano Tomás de Aquino. Quiere ser el monje.. Su encanto por la
Española le ha puesto lo que es el sentimiento de la culpa, y, aun que no la
deje de querer, encuentra en eso su mascara. O sea, para santo, no sirve!
(Virando-se ao Monge). Bendición, cura!
La protagonista de la escena que imagina Ricardo se llama Juliana. Su mira-
da silvestre viene a propósito de su colocación en el lugar de la Virgen, pues
se dice que esa personaje cristiana se ha identificado con la Ártemis griega,
la diosa de la casa. Pero estudia brujaría. Se enamora del que hace el Bardo
y talvez por eso se ha convertido en lo que ahora se encuentra. (Vira-se para
a Portuguesa, fitando-a. Diz baixinho) Ché, qué guapa la tipa! (escuta ao
telefone) Como? No, no como vos, nada que ver, vos sos maravillosa! (Toma
um tapa da Portuguesa) Ciao, he, gracias por todo, muy amable...
Luego vienen las três mujeres por las cuales los hombres todos olvidarianse
de su destino. Graziela, Carú y Renata, por favor! Graziela cuenta a sus ami-
gos una história que succedió a ella. Luego de contarlo, envuelve los otros
actores en su imaginación. Ella estudia los tejidos, y un poco de brujaría,
pues, dicen, la vestimienta no es un sinal de civilidad. Carú es la estudiante
de los gitanos, que llegan en esa época a Europa. Con Renata, actua lo que
cuenta Graziela. Pero el vestido que hacen a Renata a pone a fantasiar como
sería la vida de una princesa. En estudiante, su interés es por Eleonora de
Aquitania, patrona de las artes y ciências en su tiempo. ... Si, pero un poco
naive... se enamoró de uno que la traicionó con la gitana, y luego de otro
que tampoco es un caballero ejemplar. (Olha-as) Un momento, cariño, las
tengo que dispensar! (uma a uma, a cigana por primeiro) Quieres encuentrar
tu séquito? Por ese camino, por favor! Antes, hay que poner la ropa ahi (In-
dicando as coxias. Para um momento, a olhar, vira para a Francesa) Oh, ¡la
petite, petite bourgeoise! (De volta para o público) ¡Voulez vous rencontrez
vos amis? (Olha para ela novamente). Alors, debrás dejar tu ropa donde es-
tán las otras, (virando para público) Pues al paraíso solo entran los que estan
desnudos... de pecados, es decir. (Notando a Espanhola, dando-lhe a volta)
Hola, amorcito, (fala-lhe ao ouvido, apontando para as coxias). ¡No te olvides
de la ropa! (De volta ao celular) Hola, cariño! No es que estan como chicos,
les tengo que decir todo. ... Claro, por el vino y por la música.
Bueno, adelantemos todo. Volmir!
El estudiante de Martin Códax, quiere ser el troubadour... No, me parece
que no... Tuviera nacido en el tiempo de Fellini – era él y Giulietta Masinna
en la película... ¡Sale un Fred Astaire! Pero con Edad Média un desastre.

U 96 - Dezembro 2005 - Nº 7
(Despedindo-se) Ciao, recuerdate, un poco menos de sapateado, vas a salir
un superstar!
Como no podría faltar, el estudiante de los romances de caballería. Telles.
No ese es el mas chistoso. Quijotesco, diria, parodía el otro con una canci-
ón aleman y despues cree que lucha contra las brujas... La verdade es que
tiene la espada por compensasión... Si, fantasias regresivas, el falo, esas
cosas... (Ao Cavaleiro) Por favor,
Que te parecen? Hay cura para eso?
Yó? El bardo ibérico... Imaginálo vos, con ese accento... casi me sale un
tango!
El público? Casi todos Filosofos, estan ahi parados... un poco espantados,
me parece... Maravillados? No sé... me parece que contemplan... claro...
(Retirando-se) No, hace como unos cinco minutos que terminó... No, yo soy
el normal... Por qué sigo hablando en castellano?
(fecham-se as cortinas).

Conclusão

O resultado final dessa etapa do projeto foi considerado positivo, tendo


mesmo superado as expectativas dos próprios participantes. Como proje-
to interdisciplinar que se propunha, mostrou-se promissor não apenas por
conseguir integrar estudantes de diversas áreas, mas também porque a
contribuição trazida por esses destaca-se no trabalho desenvolvido. Com a
apresentação da peça e o posterior debate gerado em torno da mesma, por
meio da apresentação dos resultados em diversos seminários, cumpriu-se,
em parte, com o objetivo de socializar o conhecimento trabalhado, esten-
dendo-o a outros espaços além do acadêmico. Sobre a utilização do teatro,
gostaríamos de enfatizar que o objetivo não foi o de encenar uma passagem
da história ou apresentar, de um modo meramente ilustrativo, uma persona-
gem conhecida. Outrossim, buscou-se desenvolver um trabalho que possi-
bilitasse o aprendizado de uma nova linguagem, colocando os estudantes
em contato com trabalhos de diversos autores e estilos de representação, e
incentivando o grupo a criar sua própria encenação, a partir de uma pesqui-
sa sobre aspectos da cultura, ciência, arte, sociedade da época estudada.

Com isso, pode-se concluir que a interface entre as ciências e as artes


não é só possível, como promissora. Não é, por certo, uma verdade recém
descoberta, mas cabe ressaltá-la, tanto mais se temos em conta que o dis-
curso contemporâneo tende a uma separação entre essas áreas. Separação
essa que, muitas vezes, vem travestida de um discurso puramente pedagó-
gico para as artes, em que elas devem servir de propaganda para a ciência,
ou ideologias políticas, pretensamente científicas, ou ainda por um caráter
de revelação que faz da arte a mãe de todas as ciências. Que o presente

Dezembro 2005 - Nº 7 - 97 U
trabalho pode avançar e ser melhorado, é certo. Permite, contudo, refletir
acerca desse complexo relacionamento a que nos referimos, colocando a
ciência e a arte como métodos de reflexão que não são propriamente anta-
gônicos, mas complementares e que, por isso, devem ser aproximados.

No início do ano de 2005, o grupo que realizou essa encenação se dis-


solveu. Os trabalhos teatrais em torno da peça se interromperam, mas o
texto originado a partir desse projeto pode agora servir de registro e pon-
to de partida para outros grupos que queiram seguir por esse caminho.

Notas__________________________________________
¹ Uma versão mais detalhada desta parte foi apresentada no II Encontro do
GT de Antiga – ANPUH PR/IV Encontro do Grupo de Estudos de História
Antiga e Medieval do PR e SC, em outubro de 2004, por Maria Cecília de
Miranda Nogueira Coelho.
² Sobre a presença de temas medievais na cultura nordestina, ver a obra de
Câmara Cascudo, Vaqueiros e Cantadores .
³ Uma primeira versão desta segunda parte foi apresentada, no II Colóquio
Filosofia e Ficção, em novembro de 2004, na UDESC, por Frederico Teixeira
Gorski.
4 A partir do segundo semestre – o projeto teve início em março de 2004 -,

ele contou com a participação mais ativa da Profa Maria Brígida de Miranda
Yencken, de quem esteve a cargo o trabalho de preparação física dos alunos
– dois bolsistas e os outros sete participantes –, composição e direção de
uma peça. O objetivo da oficina teatral foi o de despertar o poder criativo vol-
tado à construção cênica. Foram utilizados exercícios e jogos teatrais de in-
tegração de grupo, expressão corporal e vocal, sensibilização espacial deri-
vados de várias abordagens, incluindo o sistema de Konstantin Stanislavsky,
os jogos de Augusto Boal e exercícios físicos de capoeira. Nesse estádio
– lembremos que este é o relato de um projeto em andamento -, contamos,
também, com o apoio de dois músicos que pesquisam a música medieval do
séc. XII e XIV, Glauber Sezerino e Silvana Mariani, ambos graduados pelo
Departamento de Música da UDESC.
5 Onde se coloca também a importância do texto para a peça, ainda que

este não seja o único aspecto a ser levado em conta para uma montagem.
6 A idéia inicial era que o personagem gritasse a hora em latim. Depois,

contudo, optou-se por essa oração, que, afinal, vem bem a propósito - basta
ver que é também nesse período que a imagem da Virgem ganha destaque
no culto católico.
7 Optamos por utilizar essa denominação, lembrando a origem comum dos

dois idiomas. Esse ponto, pouco discutido e comentado, deve ser destacado
quando de debates sobre a peça, principalmente em ambiente escolares,
U 98 - Dezembro 2005 - Nº 7
pois a omissão desse fato histórico reforça uma postura política de negativa
ao povo daquela região da Espanha de obter sua independência política e
reconhecimento de seu idioma.
8 A estréia da peça, em 10 de novembro de 2004, no Teatro da UBRO, em

Florianópolis, teve a seguinte equipe. Direção: Maria Brígida de Miranda Yen-


cken. Roteiro: Frederico Gorski. Assistente de direção: Ricardo Sontag. Ato-
res (entre parenteses, sua área de estudo e seu personagem): Ana Carolina
Dionísio (Jornalismo e História, faz a Cigana), Frederico Gorski (Psicologia,
o Bardo), Graziela Francisco (História, a Espanhola), Juliana Walendy (Pe-
dagogia, a Portuguesa), Luis Fernando Telles D’Ajello (Filosofia e História,
o Cavaleiro), Renata Rogowski (Geografia, a Dama/Donzela), Ricardo Son-
tag (Direito e História, o Monge), Volmir Cordeiro (Artes Cênicas, o Amigo).
Iluminação: Ivo Godois. Contra Regra: Michele Maria Stakonski (História).
Figurinos: O grupo.

Bibliografia____________________________________

BOCCALATO, M.M. A invenção do Erotismo.São Paulo: EDUC,


1996.
BORGES, J. L. Arte poética. In: _______. El hacedor. Buenos Ai-
res: Emecé, 1996 [1960].
BRECHT, B. Über experimentelles Theater. Frankfurt: Suhrkamp
Verlag, 1970 [1939].
CASCUDO, L. da C. Vaqueiros e Cantadores. São Paulo: Ediou-
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DUBY, G.; PERROT, M. Historia das mulheres no Ocidente: Idade
Média. 3v. Porto: Afrontamento; São Paulo: EBRADIL, 1990.
DUBY, G.. Imagens da Mulher. Porto: Afrontamento, 1990.
GOUGAUD, H. O livro dos amores – contos da vontade dela e do
desejo dele. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MACEDO, J.R. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto,
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MACEDO, J.R Repensando a Idade Média no ensino da História,in
KARNAL, L. História na sala de aula. SP: Contexto, 2003
NOGUEIRA, C.R.F. Bruxaria e História Bauru: EDUSC, 2004.
ROUGEMONT, D.. L’amour et l’Occident.. Paris: Plon, 1939.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 99 U
O Papel do Figurino no Teatro de
Revista Carioca
________________________________________________
Leila Bastos Sette*

Esse artigo se refere a uma parte da pesquisa intitulada: “O Baú do


Ator – o papel do figurino na construção do espetáculo do teatro de
revista carioca, nas primeiras décadas do século XX” XX”, realizada duran-
te o curso de Mestrado em Teatro, em 2004, na UNIRIO. Esse trabalho
reconstitui e analisa importantes figurinos extraídos das rubricas das peças
de teatro de revista, de fotografias e desenhos de quadros-charges, de jor-
nais e revistas ilustradas, durante a segunda fase do gênero, antes da re-
vista carioca se transformar na féerie do espetáculo puramente visual. Na
busca através das caricaturas impressas e dos textos das revistas – en-
cenadas ou não – o trabalho de pesquisa tratou de examinar a constru-
ção e a linguagem cênica do figurino revisteiro, a partir da análise da arte
dos caricaturistas, em comparação com a arte dos revistógrafos – autores
e caricaturistas – que trabalharam na mesma época, no Rio de Janeiro.

Já se destacou a familiaridade dos caricaturistas com os re-


cursos cênicos e a linguagem teatral (Belluzo, 1992). Eles se
apresentavam como hábeis manipuladores dessa linguagem, f
azendo seus calungas e bonecos se comportarem como atores
através dos movimentos, dos gestos e da expressão. Todo esse
jogo cênico remetia ao desempenho nos palcos. De fato, era
através dessa configuração que se moviam os intelectuais humo-
ristas. Nas conferências literárias, eles faziam questão de marcar
esse papel. (VELLOSO, 1996: 68)

Nas primeiras décadas do século XX¹ o teatro de revista apresentava


os momentos mais importantes do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro:
“revoluções, grandes inventos, modas, acontecimentos artísticos ou literá-
rios, espetáculos, crimes...” (BASTOS, 1908: 128) utilizando os múltiplos
e variados recursos cênicos do teatro cômico popular. As cenografias e
os figurinos desse tipo de espetáculo, de grande teatralidade e apelo vi-

*Leila Bastos Sette, bacharel em Artes Cênicas, com especialização em


Cenografia, Figurinista e Professora de Educação Artística. Recentemente,
concluiu o curso de Mestrado em Teatro, através do Programa de Pós-Gra-
duação em Teatro, do Centro de Letras e Artes, da UNIRIO.

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sual, imprimiam a estética cênica específica do gênero. Segundo Décio de
Almeida Prado, o teatro de revista “constituiu-se na forma mais rica e mais
rentável do teatro comercial”. (PRADO, 1999:102). Esse gênero de teatro,
procedente da França, chegou aqui, via Portugal, em meados do século XIX
e, nas primeiras décadas do século XX, teve grandes momentos de glória .

Na mesma ocasião, Artur de Azevedo consagrou-se como o maior revis-


teiro do Brasil, criando famosos personagens, caricaturas políticas da época
e alegorias, com o auxílio do seu irmão romancista e caricaturista Aluízio de
Azevedo, o qual desenhou os figurinos das revistas: O Bilontra (1886), O
Homem (1888) e Fritzmac (1889). Das dezenove revistas que Artur Azevedo
escreveu, seis foram de parceria com Moreira Sampaio e O Mandarim, em
1883, devido ao seu grande sucesso, foi considerado o marco inicial do tea-
tro de revista carioca.

Geralmente, nas revistas de ano, os compadres chegavam na cidade


à procura de algo ou alguém, criando uma ação motivadora, a fim de pas-
sar o Rio de Janeiro em revista, mostrando a galeria de tipos cariocas e os
acontecimentos mais importantes daquele momento. Em O Ano Que Passa
(1907), Artur Azevedo contou com o auxílio do caricaturista português Ju-
lião Machado para desenhar os seus bonecos ou “figurinos-personagens” e,
apesar dessa revista nunca ter sido encenada nos teatros, a sua estrutura
era a mesma das revistas de ano apresentadas nos palcos cariocas.

E nesse mundo-imagem, nessa história-instantâneo, com os


quais se estreitam os laços da virada do século, tem importância
também fundamental a disseminação, via imprensa empresarial,
dos portraits-charges de figuras conhecidas, sobretudo a partir
de 1896, quando a Gazeta de Notícias começou a imprimir as
“caricaturas instantâneas” de Julião Machado, ao lado de perfis
pessoais redigidos por Lúcio de Mendonça. Prática que se torna-
ria freqüente nos outros grandes jornais do tempo. (SÜSSEKIND,
1987: 107)

Na segunda fase da evolução do gênero, já na década de 1920, o teatro


de revista se transformou no principal entretenimento e veículo de comuni-
cação de massa da cidade, lançando no mercado as famosas marchinhas
carnavalescas e as estréias das revistas, que coincidiam com a proximidade
dos festejos de Momo, aqueciam a competição entre as sociedades, ran-
chos e cordões, os quais invadiam os palcos dos teatros nacionais, antes
dos famosos desfiles das Sociedades Carnavalescas, na moderna Avenida
Central, no centro do Rio de Janeiro: grande palco ao ar livre. Ao mesmo
tempo, começou uma fase gloriosa desse teatro musicado, sob a influência

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das companhias de revistas estrangeiras que aqui estiveram.

As alegorias medievais foram aos poucos sendo substituídas pelas ale-


gorias tipicamente brasileiras. Os trajes cênicos e adereços contribuíram para
a consagração desse gênero, pois além das “doenças com os nomes (febre
amarela, malária) escritos nos figurinos” (VENEZIANO, 1999: 149), diversos
personagens, caricaturas dos tipos sociais, alegorias e fantasias eram ime-
diatamente reconhecidos através dos seus trajes, adereços e acessórios.

Nesse tipo de teatro os figurinos configuravam os próprios personagens


do nosso dia-a-dia, no início do século XX. Logo, o Zé Povinho, o Chefe- de-
Família, o Bilontra, a Cocotte, a Mulata e o Mulato, o Caipira, o Almofadinha,
o Sportmam, o Dândi, a Melindrosa, o Malandro, o Português e diversas ale-
gorias eram vestidos e encenados, com grande freqüência. Esses mesmos
personagens revisteiros surgiam nos desenhos e caricaturas dos intelectuais
e humoristas Raul Pederneiras, Kalixto e Luiz Peixoto – turunas e quixotes
(VELLOSO, 1996), dentre outros caricaturistas e revistógrafos, na época em
que o teatro de revista se tornara o gênero teatral preferido do carioca.

Na modernidade, a visibilidade e a arte do deciframento se


apresentam como instrumental decodificador, capaz de dar sen-
tido ao conjunto. Na revista Estação Teatral (1910), são várias as
seções do tipo: “o que dizem de nós”, “o que dizem uns dos outros”
(23-7-1910). Há um frenesi em revelar e trazer à tona as opiniões
e impressões dos “outros”, sejam elas amistosas ou adversas. No
editorial da publicação, informa-se que o interesse da revista é a
vida teatral, mas “sem desprezar as miuçalhas dos bastidores, as
anedotas e bisbilhotices” (Estação Teatral, 2-7-1910).

As caricaturas são uma das expressões mais significativas no


discurso dessas revistas que se pretendem “modernas”. Comen-
tando a eleição de Coelho Neto para a diretoria do Teatro Munici-
pal, Lima Barreto não perde a ocasião de fazer seu portrait-char-
ge. (VELLOSO, 1996: 101).

Os revistógrafos, também, trabalhavam com a caricatura, tanto cênica


quanto escrita, utilizando uma linguagem semelhante à da literatura ilustrada
e impressa dos jornais e revistas, o que tornava os desenhos significativos,
à medida que delineavam os figurinos, com traços caricaturais, fortes e pre-
cisos, dos tipos sociais, alegorias e personalidades, na forma de imagens
instantâneas, mas, essencialmente, teatrais, pois além do caráter ligeiro e
improvisado, tanto na cena do teatro de revista quanto na cena desenhada
no papel, trabalhava-se muito mais com a estilização das formas, o que tor-

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nava os figurinos mais visuais e ilustrativos, sinalizando e/ou identificando,
facilmente, o grande número de personagens. Outra característica importan-
te do gênero, além da crítica política e de costumes, era um “certo esplendor
visual: cenários variados, mutações à vista, belos figurinos (muitos desenha-
dos por Aluízio de Azevedo nas revistas do seu irmão Artur). Este aparato
cênico culminava nas apoteoses de fim de ato, sobretudo no final da peça”.
(PRADO, 1999: 104). O grande ator cômico, nesse tipo de teatro, comunica-
va-se com a platéia distanciando-se da personagem e encantando o público
com o seu brilho natural.

No palco, quem dava vida e consistência aos tipos esquemáticos da


revista, bem como aos da opereta e da mágica, eram os atores cômicos, es-
pecialistas da comunicação imediata com a platéia. Cantavam com a pouca
voz que tinham, sem aperfeiçoamento musical, mas sabiam extrair do texto
a salacidade, o duplo sentido sexual que os autores haviam disseminado no
texto, para que explodissem na hora certa em cena, graças aos olhares ma-
liciosos, os gestos e inflexões equívocos dos intérpretes. Nada era dito com
todas as letras, tudo ficava subentendido. (PRADO, 1999:107)

O ator Vasques foi o primeiro em ordem cronológica e no mérito. Se-


guido por Brandão – O Popularíssimo – e João Machado Pinheiro e Costa,
conhecido como “Machado Careca”. Entre os nacionais podemos citar: Xisto
Bahia, “extraordinário nuns papéis em que imitava roceiros, capadócios e
outros tipos populares do Brasil e João Colas, filho de um maestro de música
ligeira, festejadíssimo na canção Matuto do Piauí, que realmente ele faz com
primor” (BASTOS, 1908: 230). Entre as atrizes destacavam-se: Pepa Ruiz,
Cinira Polônio, Aurélia Delorme e, nas décadas de 1920 e 1930: Aracy Cor-
tes, Margarida Max, Otília Amorim e Alda Garrido, dentre outras famosas.

A década de 20, contudo, deu lugar a um espetáculo de revista mais ela-


borado, onde o luxo e a beleza das gilrs iluminaram a cena carioca. Come-
çou um período glorioso para esse tipo de espetáculo, sob a influência das
companhias de revistas estrangeiras Bataclã e Velasco que aqui estiveram.
Sobre esse fato Neyde Veneziano, escreveu:

Com belas e glamourosas girls exibindo as pernas sem as anti-


gas meias grossas das nossas coristas, a troupe francesa influen-
ciaria a tal ponto o teatro ligeiro brasileiro que, imediatamente, o
que era chamado “nu artístico”, aqui se instalou. E, ao despirem-
se as meninas, muitos corpos decepcionaram seus fãs. As muito
gordinhas perderam a graciosidade diante das esbeltas francesas.
Mudaram-se os conceitos estéticos. Mudou-se também o concei-
to estrutural da revista. O texto e a música passaram, então, a

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emoldurar o real foco de interesse: a mulher. Os figurinos recebe-
ram um maior cuidado, assim como a iluminação e os cenários”.
(VENEZIANO, 1991: 42-43)

O teatro de revista, ao criticar o Rio de Janeiro e seu tempo, desenhou


em cores vivas o nosso povo, fixando nossos tipos, modas e costumes. Os
contrapontos criados com as tentativas de modernização da cidade, vincu-
lados aos ideais da Belle Époque formaram um quadro de imagens contras-
tantes que os revistógrafos souberam reproduzir. A construção das persona-
gens através dos figurinos enriqueceu o espetáculo e a própria arte de se
vestir, criando a aparência da aparência.

O papel do figurino foi importante, no teatro de revista carioca, a partir


do momento em que fatos e personagens emergiam em forma de “perso-
nagens-superfícies”, ou seja, “personagens explicitamente figurinos” (SÜS-
SEKIND, 1987: 109). Trajes caricaturais que, com seus contornos ligeiros,
vestiam os “personagens-charges” ou “personagens-crônicas” e construíam
as famosas caricaturas de políticos e demais personalidades, além das inú-
meras alegorias, pessoas e personagens. Apesar desses figurinos saltarem
da dupla dimensão da folha impressa, não deixavam de ser bidimensionais
ou simples “encadernações”, como é O Trabalho, personagem alegórico em
O Bilontra, de Artur Azevedo (1985: v. 2, 501), na cena transcrita abaixo:

FAUSTINO, depois o TRABALHO, que ouve parte do diálogo


quando passa pelo fundo, vestido de operário, e levando sua fer-
ramenta.
FAUSTINO – Diabos levem a polícia! Justamente quando a sorte
ia mudar, é que a maldita cercou a casa! Oh! Mas deixe estar, que
a caipora não há de durar eternamente!
TRABALHO – Há de durar enquanto me evitares!
FAUSTINO – Olá! O meu amigo dos manjericões! Hoje a encader-
nação é mais barata, hein?
TRABALHO – Hoje eu sou um operário, e vou para a oficina exer-
citar o brio dos que se acharem ao meu lado! Enquanto tu passa-
vas a noite numa espelunca, para ganhares, ao cabo de muitas
horas, metade da soma que o trabalho honesto poderia render em
menos tempo, o operário dormia, refazendo as forças para reco-
meçar no dia seguinte a tarefa de véspera. (Dando-lhe uma peça
de ferramenta.) Toma! Vem comigo!

No momento em que o personagem troca de figurino, automaticamente,


ele troca de papel. Naquele momento O Trabalho era um operário e, nos de-
mais quadros da revista, esse mesmo personagem aparece vestido com ou-

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tros figurinos, ou melhor, outros personagens-figurinos. Essa sobreposição
de imagens, na representação plana e ilustrada, característica do teatro de
revista, permite um exame dos figurinos através das caricaturas e desenhos
impressos nos jornais e revistas da mesma época.

Logo, importantes figurinos puderam ser reconstituídos através dos de-


senhos de Julião Machado em O Ano Que Passa de Artur Azevedo, revista
publicada e ilustrada mensalmente no jornal O País durante o ano de 1907,
no Rio de Janeiro. Os textos das revistas que serviram como fontes primárias
dessa pesquisa, também, foram valiosos, pois as suas rubricas, assim como
os desenhos de Julião Machado para a revista de Artur Azevedo reúnem
todos os aspectos plásticos e visuais do espetáculo. Os muitos e variados
figurinos, que puderam ser examinados e analisados, foram organizados de
acordo com as suas diferentes funções e significações, nos seguintes gru-
pos:

I - O Figurino-Tipo Social

O Teatro de revista reinventou inúmeros personagens-tipos, principal-


mente, no final do século XIX. No entanto, alguns se destacaram mais, tanto
pela sua tradição popular, quanto pela sua constância e permanência nos
palcos do teatro cômico, musicado e ligeiro da época, como por exemplo: o
Zé-Povinho, o Mulato, o Malandro (ou o Bilontra), o Pelintra, o Português, o
Policial, o Chefe-de-Família, o Coronel, o Caipira, o Dândi, o Almofadinha, a
Baiana, a Mulata, a Melindrosa e a Cocotte, dentre outros.

II – O Figurino-Personalidade

A sátira política sempre foi a maior atração do teatro de revista, princi-


palmente, nas revistas de ano, época em que a censura, talvez, fosse mais
branda ou as caricaturas menos maliciosas... No teatro de Artur Azevedo,
grandes literatos e personalidades do espetáculo republicano desfilaram nos
palcos das revistas cariocas como, por exemplo: Rodrigues Alves, Oswal-
do Cruz, General Roca e outras figuras importantes do cenário político da
cidade, naquele momento. Tanto no teatro de revista, quanto nas charges
impressas, muitas figuras ilustres da época podiam ser identificadas em situ-
ações diversas, na maioria das vezes, vestindo trajes fantasiosos, como na
charge onde Olavo Bilac é desenhado com a indumentária de general-chefe,
montado num cavalo alado (SALIBA, 2002: caderno de fotos). Podemos per-
ceber que, através da arte da caricatura, diversos personagens são recria-
dos pelos caricaturistas, pois estes, não encontrando barreiras materiais, re-
produziam qualquer circunstância ou personalidade, da forma mais variada

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e bizarra possível.

No teatro de revista, no entanto, a produção dos quadros-charges en-


frentava algumas dificuldades materiais, a começar pelo próprio corpo do
ator que deveria ter o físico e a estatura ideais para vestir a personalidade
caricaturada. Inclusive, alguns atores chegaram a se especializarem em de-
terminados figurões da política nacional. Porém, a construção dessa modali-
dade de figurino sempre dependeu, em grande parte, do trabalho de artistas
e técnicos, sobretudo, do trabalho cuidadoso da maquiagem, pois o que de-
fine a caricatura, na cena teatral, é, principalmente, a máscara facial, que,
independente dos trajes e adereços, deve realçar os traços mais significati-
vos do rosto caricaturado, a fim de que seja imediatamente reconhecido pela
platéia. As roupas e pertences do personagem, realistas ou não, comple-
mentavam o figurino, determinando o espaço-tempo da ação e variavam de
acordo com os acontecimentos que envolviam a personalidade caricaturada,
o que, normalmente, era a causa e a origem da sua criação.

Na década de 1930, Getúlio Vargas foi um “figurino-personalidade” mui-


to representado e admirado pelo público do teatro de revista carioca. Ele
assume diversos papéis em diferentes momentos, como por exemplo: O Mo-
torneiro (PAIVA, 1991: 429) representado por Oscarito, em Rumo ao Catete
(1937), de Luiz Iglésias e Freire Jr., e V
Vestido de Maestro (VENEZIANO,
1994: 141),na Companhia Walter Pinto.

À medida em que as referências políticas foram censuradas, os quadros-


charges desapareceram, gradativamente, do teatro de revista carioca, dei-
xando um espaço maior para os quadros féericos e números de canto e dan-
ça que, desde a segunda década do século XX, já vinham se aperfeiçoando,
principalmente, sob a influência das companhias de revistas estrangeiras. A
partir desse momento, o figurino, dotado de uma nova funcionalidade e plas-
ticidade “bataclânica”, valorizou ainda mais o corpo feminino, dando origem
às revistas féericas, deslumbrantes shows de gilrs e vedetes, ora vestidas
com fantasias deslumbrantes, ora exibindo os seus corpos esculturais, nus
ou seminus.

III – O Figurino-Alegoria

Letra ao pé da imagem: este o jogo que se inaugura na literatura


brasileira sobretudo desde a configuração desse novo horizonte
técnico na virada do século. Desde a redefinição da idéia de reali-
dade, agora mesclada a essa paisagem-segunda, que tanto pode
transformá-la como referendá-la. Paisagem de imagens técnicas

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com a qual se começa a conviver com mais intensidade, no Brasil,
a partir dos anos 90 do século XIX e das primeiras décadas do sé-
culo XX. Porque o mesmo desejo de modernização, que impulsio-
na reformas urbanas e sanitárias, dirige-se para o aparelhamento
técnico da sociedade brasileira. E para essa paisagem-segunda,
povoada por cartazes, fotos, fitas e charges. Para um horizonte
de imagens. (SÜSSEKIND, 1987: 104-105).

São inúmeros e variados os figurinos-alegorias, principalmente, nas re-


vistas de ano. Eles poderiam representar uma simples referência, como O
Projeto, personagem da revista Fritzmac, de Artur Azevedo (1987: 410), “que
atravessa a cena da direita para a esquerda montado num velocípede, com
uma casaca de abas exageradamente compridas”, as quais vão encurtando,
a cada aparecimento do personagem em cena; os figurinos fúnebres e até
assustadores, como A Tuberculose e O Teatro, em O Ano Que Passa, de
Artur Azevedo (1987: 620) e todas as virtudes e vícios que desfilavam nas
revistas cariocas, desde os esfarrapados males à sofisticação e o luxo dos
deuses, reis, musas e muitas outras alegorias que habitavam os palácios
dos quadros de fantasias.

As charges impressas e os quadros do teatro de revista mostram o pro-


cesso de modernização que transformou a “cidade-capital” em grande palco
ao ar livre, para o desfile dos personagens “absolutamente-figurinos” (SÜS-
SEKIND, 1987: 104): tipos sociais, alegorias, personalidades e fantasias,
os quais são redesenhados de forma ligeira, mas com traços marcantes e
plenamente visuais. O Figurino-Cidade é o protagonista do teatro de revista
e da moda carioca, numa época em que “a tendência andrógina, mascu-
linizada, anulava as curvas”. (SENAC, 2000: 75) e recriava a imagem da
Mulher-Cidade, independente e moderna, que atravessava e desfilava nos
palcos, ruas e na Avenida Central.

Nas caricaturas, o Brasil moderno aparece como uma monta-


gem. Assemelha-se a um teatro: o cenário sugeria ambientes de
sonho e de fantasia, mas por trás do pano existia outra realidade.
E era para essa realidade que os caricaturistas queriam chamar a
atenção. A revista D. Quixote publica, no dia 26 de abril de 1922,
uma caricatura extremamente expressiva sob o título: “Arranjando
a casa”. Nela, a cidade do Rio de Janeiro aparece representada
por uma senhora da alta sociedade. Ela está num salão muito
elegante e luxuoso. Em uma das paredes há um enorme brasão
com a inscrição: “1822-1922”. Essa senhora ordena então a seu
mordomo – que é o presidente Epitácio Pessoa: - “Arrume a sala
de visitas!” Recomenda que ele esconda todos os objetos feios no

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quintal ou no quarto dos fundos. Esse lixo não pode ser visto de
maneira alguma pelas visitas da casa.
(VELLOSO, 2000: 127-128).

Essa charge descrita por Monica Velloso desmascara a realidade da-


quele momento, encoberta pelas reformas de fachadas –“o cenário sugeria
ambientes de sonho e de fantasia” – verdadeiros shows ilusionistas das polí-
ticas de modernização e de saneamento. Ao mesmo tempo, esse figurino-Ci-
dade, figurino-alegoria da Capital Federal, é um traje elegante com adornos
modernos, que enfeitam a “senhora da alta sociedade”: uma dama de pele
muito clara e de cabelos curtos. O decote do seu vestido deixa os ombros,
o colo e os braços de fora; a saia, em linha reta, desenha uma figura alon-
gada. Porém, voltada de costas para o observador, oculta o seu rosto e o
seu olhar... A sua postura e o modelo do vestido, de tecido macio e sedoso,
remetem à imagem atraente e sensual da Cocotte, da Madame Petit-Pois,
a famosa francesa, interpretada por Cinira Polônio, na burleta Forrobodó
(1912), de Luiz Peixoto e Carlos Bittencourt.

O modelo da saia desse traje da Cidade reproduz a “linha barril, que


tinha um efeito tubular” (SENAC, 2000: 72), com um recorte decorado, de
cor mais clara, contornando toda a extensão do quadril. O seu comprimento
termina abaixo da linha dos joelhos, formando pontas nas laterais, com um
barrado de renda larga, sobre o qual traz escrito, em letras grandes e legí-
veis, a palavra “cidade”. Através desse desenho pode-se deduzir que, sobre
a barra (faixa larga de renda) do vestido, ou seja, sobre andaimes, a fachada
da Cidade se ergue como um grande cartaz de mulher bonita e moderna,
com o cabelo cortado à la garçonne. A parte anterior da sua blusa é enfeitada
com a imagem do globo, que pertence ao Brasão das Armas do Rio de Ja-
neiro. Meias de seda preta e sapatos “à barette (de presilha abotoada) com
saltos carretel”. (SENAC, 2000: 76) sustentam esse figurino- Cidade.

Essa aparência atraente e teatral que revela uma outra aparência – a


fachada moderna – no teatro de revista, também é plana e superficial, retrato
da modernidade, alegoria da cidade-capital e se desdobra no figurino-Ave-
nida Central, alegoria da urbanização, representada pela ampla e modernís-
sima Avenida Central da charge impressa na revista Tagarela de 21 de julho
de 1904, “usando um chapéu enorme que lhe esconde a forma do rosto, a
mulher se funde e se confunde com a Avenida errada” (VELLOSO, 2004: 51)
e representada por Cinira Polônio, na revista Cá e Lá (REIS, 1999: 99).

A mulher do desenho da charge, na revista Tagarela, usa um chapéu


de aba larga e flexível, semelhante aos modelos criados por Coco Chanel,
que estavam em voga, na mesma época (SENAC, 2000: 35). Geralmente,

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os figurinos que representavam os tipos sociais famosos, naquele momento,
como a Cocotte, surgiam na forma de alegorias, como era o caso da Cidade,
que vestia um traje da moda, a fim de representar o processo de moderni-
zação e embelezamento de fachada. A mulher chique, elegante e refinada
vestiu a recém criada Avenida Central. São personagens alegóricos que,
freqüentemente, desfilavam no teatro de revista carioca.

Avenida chic/ Eu sou a Central/ Da elegância o tic/ Dou à capi-


tal!/ Cem casas botei/ Por terra, e, a giz/ Aos donos paguei/ Aquilo
que quis!/ Morros traspassei/ Furei tudo, à tesa/ Mas, bela fiquei/
Que é uma beleza!.../ A Avenida chic/ Eu sou a Central/ Da ele-
gância o tic/ Dou à capital! (Reis, 1999: 106).

A República, personagem da revista Amendoim Torrado (1925), de Luiz


Peixoto, por sua vez, demonstra o desejo de substituir o seu barrete por
um chapéu mais moderno. No entanto, esse desejo de mudança expresso
através do figurino, não se concretizou, porque, depois de experimentar os
diferentes modelos de chapéus, a personagem-alegoria se apega ao seu
barrete frígio, arrependida até de ter pensado em abandoná-lo. Esse impor-
tante acessório, também, é personificado na charge de Kalixto que desenha
o barrete metamorfoseado na forma de uma grande cabeça de um animal
indefinido. Nessa charge de 1913 (SALIBA, 2002: 68) a resistência às mu-
danças está implícita, a partir do momento em que o barrete, além de adotar
a fisionomia de um animal, também envelhece, apesar de manter os seus
traços originais. Muito interessante, contudo, é perceber essas nuances atra-
vés do figurino, no teatro de revista e na cena impressa.

A Justiça, diferente da Cidade e da República, que são representadas


pela figura idealizada de uma jovem e bonita mulher, geralmente, aparece na
pele da mulher mais envelhecida e “esfarrapada”. Considerada como divin-
dade e virtude a Justiça, geralmente, é representada com os olhos vendados
vestindo um traje greco-romano e segurando, em cada mão, uma espada e
uma balança. No teatro de revista e na charge impressa esse figurino-alego-
ria aparece como a imagem de uma senhora repleta de males, como pode-
mos observar no texto da revista O Homem, de Artur Azevedo (1987: 301),
na cena em que “a Justiça entra com as vestes rotas, a balança quebrada e
os olhos vendados”, pedindo socorro, desesperada:

TODOS – Que é isso? Que foi? Quem é a senhora?


JUSTIÇA – Eu sou a Justiça... e tão esfarrapada que, confesso,
estou vendida no meio de tanta gente... Doze cidadãos, que de-
viam defender-me, juraram dar cabo de mim... Já me deixaram
neste estado, e, não satisfeitos ainda de me haverem posto fora

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de casa a pontapés, perseguem-me até a rua!

Ferina e maliciosa, porém, é a charge que aparece na revista O Malho,


em 1913 (SALIBA, 2002: caderno de fotos), onde a Justiça é representada
por uma senhora sentada, que segura no colo a espada, ao mesmo tempo
em que ampara um policial, o qual dorme escorado na sua perna e não vê
passar um figurão, autor de um roubo de cem contos, enquanto que um
homem pobre, vestido com roupas remendadas, é preso por outros dois po-
liciais, por haver roubado um queijo. Essa Justiça, com um vestido branco,
longo, sem detalhes e calçando sapatos masculinos, traz a venda nos olhos,
porém um deles está destampado, assim como um dos seus seios. Tão gor-
do quanto o seio descoberto, esse olho acompanha o figurão de cartola, flor
na lapela, anel no dedo e bengala, usando um traje de homem rico.

IV – O Figurino-Fantasia³

Os figurinos-fantasias foram subdivididos em quatro grupos:

• A fantasia histórica e a fantasia mitológica e/ou fantástica – do


personagem de época dos quadros históricos e o figurino-fantasia
do personagem mitológico e/ou fantástico, dos quadros de fantasia;
• O figurino-fantasia dos personagens cômicos tradicionais do tea-
tro popular;
• O figurino-cenografia;
• O figurino feérico das vedetes e gilrs, repleto de plumas e paetês,
que dominou a cena revisteira, a partir da década de 30, na terceira
fase do gênero, no momento em que a féerie tomou conta do teatro
de revista carioca.

V – O Figurino do Ator Cômico

Importantes figurinos foram analisados de acordo com as suas especi-


ficidades, dentro de cada grupo. O figurino do ator cômico, porém, foi exa-
minado separadamente, devido as suas diferentes funções e plasticidade,
principalmente, a partir do momento em que, nesse caso específico e, na
maioria das vezes, parece que o figurino funcionava como a segunda-pele
do ator. Diferente dos demais figurinos da cena revisteira, que não aderem
ao corpo, o figurino do ator é o conjunto dos seus gestos, sons, maquiagens,
cabeleiras, roupas e demais complementos, no momento mágico em que ele
“exibe os seus dotes profissionais”.

O figurino-personagem, através do corpo do ator, cumpre com a sua

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função de forma diferente do figurino do ator cômico que, geralmente, veste
o personagem (no sentido de encarnar esse personagem) mostrando, ao
mesmo tempo, a sua fachada. Enquanto que o figurino-personagem carre-
ga em si, prontos e impressos, os traços e características do personagem,
o ator-cômico, com os instrumentos próprios da sua natureza e urdindo as
tramas da interpretação, constrói o figurino-personagem, que se transforma
na sua segunda pele.

[...] um trajeto atorial envolvido em práticas teatrais assenta-


das em específicas formas de trabalho de intérprete; formas muito
concretamente voltadas para a construção e o aperfeiçoamento,
quase sempre, de um único personagem, com o qual o ator aca-
ba de se confundir não apenas na arte do palco, mas também na
vida. Trata-se aqui, portanto, de um “figurino” que, mesmo sem
qualquer rasgo, foi vestido por ator dedicado a intensa exercita-
ção corporal através da qual almejava formar e manter aqueci-
dos os repertórios de atuação por ele longamente preparados e
sempre disponíveis para serem acionados por uma cena que não
desdenhava, fosse o diálogo com uma tradição cultural popular
mais ampla, ligada às manifestações festivas contempladas com
a farta presença de máscaras (como as carnavalescas lembra-
das pelo ator, e que antecederam e coexistiram com o fenômeno
rigorosamente teatral da commedia dell’arte), fosse a prática de
um depurado aprimoramento técnico, necessário à boa execução
de cabriolas muito especiais, isto é, cabriolas que viriam a ser
cenicamente traduzidas como expressões artísticas de um teatro
destinado a provocar tanto o riso quanto o espanto: suportes para
uma atitude receptiva de admiração. Trata-se, portanto, este “fi-
gurino”, de componente estrutural, meio interpretativo imprescin-
dível para a máscara/personagem trabalhada continuamente pelo
ator, “por mais de vinte anos”. (RABETTI, 2000: 11)

Na revista Meia Noite e Trinta (1923), de Luiz Peixoto, podemos obser-


var um quadro em que o ator, sozinho no palco, interpretava diversos perso-
nagens, fazendo “cabriolas” com as trocas de chapéus de diferentes mode-
los. O seu traje de cena não está definido no texto porque, provavelmente,
se tratava de uma roupa confortável que já havia se moldado ao seu corpo,
facilitando os seus movimentos, gestos e funcionado, quase sempre, como
a sua segunda pele, a fim de que, também, a sua forma e plasticidade não
interferissem nas suas criações instantâneas, de contornos ligeiros, quando
usava apenas os seus recursos naturais, com o auxílio de alguns objetos e
diferentes modelos de chapéus, para a platéia identificar os personagens
que representava.

U 112 - Dezembro 2005 - Nº 7


Na análise dos figurinos do texto dessa mesma revista foi sugerido para
a cena acima citada que o ator usasse uma roupa confortável, de tecido
macio e de tonalidade escura, afim de que esse traje não interferisse nas
características dos personagens que interpretava sucessivamente e que,
principalmente, facilitasse os seus movimentos.
Um outro exemplo interessante do papel do figurino do ator cômico, no teatro
de revista carioca, podemos verificar através do trabalho do ator Mesquiti-
nha, que, num dos seus famosos monólogos, se sentava, demonstrando
timidez, com cara de azarado e segurando um chapéu furado, apresentava
o seguinte texto:

“Duzentas mil pessoas. Era um dia de sol no Maracanã. A bola


vinha de lá e...pimba! No meu chapéu novo...(mostrando o furo
no chapéu).”
Daí em diante, ele segurava o público até por 20 ou 30 minutos.
Um grande diseur, além de cômico. E um clown, sem dúvida.
Paralelamente, a técnica também era muito importante. A dicção,
a voz, a postura, a dança, as artes circenses contavam para que
se obtivessem bons resultados neste tipo de teatro. Pedro Dias,
Grande Othelo e Oscarito vieram do circo.

Nesse quadro, Mesquitinha, também, utilizou um complemento do figu-


rino – o chapéu – como um objeto cênico propulsor da ação cômica, prepa-
rando a platéia antes de iniciar um longo monólogo. A partir do momento em
que ele mostra o seu chapéu, afirmando que é novo e que contém um furo
devido à bola que “vinha de lá e...pimba!”, o ator cria uma sobreposição de
imagens, que une a figura do homem tímido e azarado, à imagem da bola
atingindo, no meio de milhares de pessoas, justamente, o seu chapéu.

Segundo Bergson, “as atitudes, os gestos e os movimentos do corpo


humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar
numa simples mecânica”4. O inverossímel da ação e do furo do chapéu
causado pelo golpe de uma bola, quando o seu aspecto, em contraste com
o texto, deveria ser de desgaste e envelhecimento, além de outros prováveis
traços desse figurino, como: o próprio tipo franzino do ator e a maquiagem,
associados ao seu traje pobre e desalinhado, sapatos velhos, etc. constru-
íam a rigidez da ação simples e da imagem do homem sem sorte e infeliz.
Essa técnica cênica da charge humorística é usada na charge impressa que
também capta o risível na rigidez da “materialidade de uma ação simples”.
(BERGSON, 2001: 19).

A arte do caricaturista é captar esse movimento às vezes imperceptível

Dezembro 2005 - Nº 7 - 113 U


e, ampliando-o, torná-lo visível para todos os olhos. Faz caretear seus mode-
los como eles mesmos o fariam se chegassem até o extremo de seu esgar.
Advinha, por trás das harmonias superficiais das formas, as revoltas profun-
das da matéria. Realiza desproporções e deformações que deveriam existir
na natureza em estado de veleidade, mas que não puderam concretizar-se,
porque reprimidas por uma força melhor. Sua arte, que tem algo de diabóli-
co, reergue o demônio que o anjo subjugara. (BERGSON, 2001: 19-20)

O trabalho de criação do figurino, no teatro de revista, se explica através


dessa visão de Bergson, pois, assim como na arte da caricatura impressa,
ele é construído graças ao esforço do ator, que ajusta o seu traje de cena
e acessórios, adequando as suas formas e materiais, como se ajustasse a
própria alma do personagem no seu corpo, antes sequer desse figurino-per-
sonagem se transformar na sua segunda pele.

Os compères também usavam trajes de cena que “caíam como uma


luva” e, além de serem adequados à cena e ao tipo do ator, agradavam o
gosto popular, diferente dos trajes das commères que, geralmente, eram
representadas por atrizes que se vestiam em cena com trajes elegantes e
de acordo com a moda. A beleza e a boa aparência vinham em primeiro lu-
gar, acompanhadas pelo agradável timbre de voz e gestos refinados. Esse
figurino poderia variar, desde um simples, mas elegante, traje de passeio,
um traje fantasioso, fantástico ou/e original, até um figurino de grande luxo e
beleza.

Notas__________________________________________

¹ “O teatro profissional carioca da primeira metade do século era um teatro


do primeiro ator – ou dos atores em geral – em que o fato da cena presidia
a diversão em um sentido pré-moderno, histriônico. Diversão; trata-se de um
teatro voltado para a diversão de massa”. In: Brandão, Tânia. “Operários do
Verbo”. Revista de Teatro, no. 501. Rio de Janeiro: SBAT, julho de 1997, pp.
7-10.
² Sobre a evolução desse gênero teatral no Brasil: Roberto Ruiz, Aracy Cor-
tes. Linda Flor, 1984 e O Teatro de Revista no Brasil: Das origens à primeira
Guerra Mundial, 1988; Flora Süssekind, As Revistas de Ano – e a invenção
do Rio de Janeiro, 1986; Salvyano Cavalcanti de Paiva, Viva o Rebolado:
vida e morte do teatro de revista brasileiro, 1991; Neyde Veneziano, O Te-
atro de Revista no Brasil, Dramaturgia e Convenções, 1991 e Não Adianta
Chorar: teatro de revista brasileiro... Oba!, 1996; Ângela Reis, Cinira Polônio:
a divette carioca, além das dissertações de mestrado dos autores: Daniel
Marques da Silva, Maria Filomena Chiaradia e Ana Beviláqua, entre outros
U 114 - Dezembro 2005 - Nº 7
(vide bibliografia).
³ A palavra “fantasia” nesse caso é usada para designar o traje fantasioso,
ou seja, a roupa que contém elementos fantasiosos, tanto no seu desenho,
quanto nos materiais empregados na sua construção, além dos acessórios
e adornos que o complementam e ajudam a caracterizar a fantasia, como as
máscaras, chapéus, cabeleiras, etc.
4 BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São

Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 22.

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U 116 - Dezembro 2005 - Nº 7


Investigando a recepção em um projeto de teatro
na comunidade
________________________________________________
Beatriz Angela Vieira Cabral*
Dan Olsen**

Sumário

Esta pesquisa examinou distintas formas de recepção estética a um pro-


jeto de teatro em comunidade - envolveu atores do Curso de Licenciatura em
Teatro da UDESC, atores da comunidade sem experiência anterior na área,
e espectadores. Uma investigação quantitativa foi conduzida por Dan Olsen
(Universidade de Slagelvelsem, Dinamarca) e subsidiou a subseqüente aná-
lise qualitativa por Beatriz Cabral (UDESC/UFSC).

O objetivo foi obter, com a colaboração de Dan Olsen, dados específicos


sobre o impacto da experiência nos participantes, como ponto de partida
para ampliar e aperfeiçoar a compreensão dos mesmos a respeito da estéti-
ca teatral sendo investigada, e em decorrência, sua recepção ao projeto em
curso.

Os procedimentos incluíram a aplicação de um questionário centrado


nos objetivos estéticos e pedagógicos do projeto. O cruzamento dos dados e
suas variáveis salientaram pontos de vista e interesses, similares e distintos,
por parte dos três grupos que interagiram neste espetáculo.

Introdução

“Teatro em Trânsito – formas interativas de teatro em comunidade” é um


projeto de pesquisa que investiga uma estética teatral centrada na realiza-
ção de cenas distintas e simultâneas, realizadas em lugares representativas
da memória histórica de uma comunidade, e estruturadas a partir do cruza-
mento entre fatos e histórias populares vinculados a estes lugares. As cenas
se repetem tantas vezes quantas forem o seu número, e a caminhada dos
espectadores de uma cena à outra outorga ao evento um sentido de cerimô-

* Beatriz Angela Vieira Cabral, professora do Programa de Pós-Graduação


em Teatro UDESC.
** Dan Olsen, professor Universidade de Slagelvelsem - Dinamarca

Dezembro 2005 - Nº 7 - 117 U


nia e confraternização.

Esta forma teatral se baseia na interação entre alunos e professores de


teatro com os moradores da comunidade na qual se realiza o trânsito, entre
os quais se encontram pessoas de diversos extratos sociais e diferentes
idades. A interação acontece no interior de cada cena, entre os elencos das
diversas cenas, no contato com o público, com as pessoas entrevistadas
a respeito das histórias locais, e com todos aqueles que cederam espaços
físico e materiais de apoio. As formas interativas que promovem esta intera-
ção constituíram a fase inicial desta pesquisa (2001-2002) e se referem às
estratégias e convenções teatrais utilizadas.

Trata-se de um projeto de montagem intercultural, onde o elenco de cada


cena é composto pelos “daqui” e os “de fora”, os quais associam histórias
de vida e memórias à estrutura dramática criada pelo grupo de pesquisa. As
cenas, com uma duração máxima de 10 minutos cada uma, resumem mo-
mentos da história ou histórias mitológicas coletadas através de entrevistas
com idosos da comunidade. Neste sentido, além do resgate histórico, se
está fazendo história.

Foram realizados quatro trânsitos, entre 2001 e 2004, um por ano. A in-
vestigação, de caráter processual, pode ser caracterizada enquanto prática
como pesquisa, uma vez que a experiência acumulada inter-relaciona pes-
quisa e extensão e se reflete nas disciplinas ofertadas na graduação e mes-
trado. O foco atual da investigação está centrado nas questões de impacto e
risco e o planejamento e análise metodológica inclui estudos sobre inclusão
e democratização das diferenças. A avaliação contínua está amparada pelas
teorias de Pierre Bourdieu (no que se refere à avaliação diagnóstica) e Henri
Giroux (no que se refere ao planejamento de situações que envolvam traves-
sias teóricas e práticas).

Este artigo focaliza a experiência realizada em 2003 no município de


Bombinhas/SC, a qual contou com a participação de Dan Olsen na esfera da
observação, documentação e parceria na análise de dados. A análise de im-
pacto e risco, decorre da aplicação de um questionário, usado como suporte
para a realização de entrevistas após o espetáculo.

Coleta de Dados

O questionário reúne informações sobre a recepção do espetáculo por


três grupos distintos de participantes: atores com experiência anterior (alu-
nos e professores de teatro), atores sem experiência anterior (participantes
da comunidade) e espectadores. Suas questões focalizam os objetivos do

U 118 - Dezembro 2005 - Nº 7


projeto teatral. O questionário e entrevista permitem assim examinar a eficá-
cia da forma com que estes objetivos foram realizados, através da observa-
ção de seu impacto nos participantes. A análise quantitativa foi realizada por
Olsen e a qualitativa por Cabral.

O formato do questionário foi escolhido por Cabral entre os vários des-


critos e comentados por Olsen. As questões se referem aos objetivos do
projeto de pesquisa. A primeira questão lista os cinco objetivos priorizados
no planejamento da montagem, e as seguintes focalizam cada um destes
objetivos, listando para cada um, cinco categorias a serem ordenadas de 01
a 05, sendo 01 a que causou maior impacto ou risco. Foram assim 06 ques-
tões referentes a impacto e 06 referentes a risco.

Os pressupostos estatísticos incluíram um teste sobre a validade dos


dados, uma vez que estes se referiam a 05 cenas independentes entre si
– pretendeu-se assim verificar se as variáveis apontadas pelos atores destas
distintas cenas poderiam ser consideradas como pertencentes à mesma po-
pulação. Isto é, sendo as cenas independentes, as respostas obtidas pode-
riam ser relacionadas ao projeto como um todo, sendo assim representativas
da estética teatral sob investigação?

O teste estatístico, teste de Friedman, se baseou na gradação de 01


a 05 dadas a cada questão. A validade é rejeitada se a probabilidade da
ocorrência for menor ou igual a 0.005. Validade aqui entendida como possi-
bilidade dos dados serem generalizados para o universo investigado em sua
totalidade.

As respostas dos 25 atores com formação em teatro foram examinadas


independentemente das cenas a que pertenciam. No caso deste grupo, duas
entre as seis questões sobre impacto, passaram no teste estatístico: “Que
aspecto do teatro em trânsito o impressionou mais?” e “Em relação ao lugar,
qual foi o maior impacto?” Olsen investigou estas duas questões mais deta-
lhadamente, isto é, considerando as variáveis incluídas em cada uma.

As respostas dos espectadores não precisaram passar pelo teste de


Friedman, uma vez que estes responderam a partir das cinco cenas obser-
vadas; as respostas correspondem assim à recepção do espetáculo como
um todo, e podem ser generalizadas à estética teatral sendo investigada.

Os gráficos abaixo exemplificam as opções dos atores referentes às va-


riáveis que causaram maior impacto nos atores: dramaturgia, lugar, perso-
nagens, relação música – texto ou conteúdo sócio – histórico. Os números
listados verticalmente correspondem à contagem das opções, e no sentido

Dezembro 2005 - Nº 7 - 119 U


horizontal estão representadas, da esquerda para as direita a primeira, se-
gunda, terceira, quarta e quinta opções.

Gráfico 01

Gráfico 02

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Gráfico 03

Gráfico 04

Dezembro 2005 - Nº 7 - 121 U


Gráfico 05

Comentário sobre a Investigação Estatística

É interessante notar que os estudantes de teatro, atores de cenas distin-


tas, concordaram quanto ao aspecto que causou mais impacto nesta monta-
gem.

Dramaturgia, segundo eles, foi o aspecto mais importante da cena, se-


guido por conteúdo histórico-social (segunda opção), lugar (terceira opção)
e personagem (quarta opção). O menor impacto foi causado pela relação
música-texto.

Em relação à dramaturgia, este grupo considerou situações inesperadas


como a característica mais importante da narrativa, e em segundo lugar, os
diálogos. Quanto ao conteúdo histórico-social fatos históricos pouco conhe-
cidos foi a primeira opção, seguida pela história não-oficial e pela ressonân-
cia com a época atual, ambas opções empatadas em segundo lugar.
Outro aspecto no qual houve concordância por parte dos atores foi nas ca-
tegorias beleza natural e lugares históricos, considerados como os mais im-
portantes em relação ao uso do espaço.

O mesmo questionário foi respondido pelo mesmo número de especta-


dores, representantes de extratos sociais distintos da comunidade. As res-
postas foram similares àquelas dadas pelos atores, embora os espectadores
não estivessem restritos a uma cena em particular – eles responderam sobre
o trânsito como um todo, sem diferenciar as cinco cenas.

U 122 - Dezembro 2005 - Nº 7


Segundo o ponto de vista dos espectadores, o maior impacto foi causa-
do por Dramaturgia, sendo que nesta categoria apontaram como primeira
opção a variável possibilidade de interpretações distintas, e como segunda
opção situações inesperadas.

A segunda categoria eleita pelos espectadores foi Lugar, e nesta variável


a primeira opção foi dimensão histórica, seguida por recursos cênicos.

Anotações em direção a uma análise qualitativa

A decisão de realizar uma investigação quantitativa sobre a recepção


dos participantes no tocante ao seu envolvimento em um projeto de teatro
em comunidade decorreu principalmente do entendimento de que ter estes
números à mão poderia ser um ponto de partida significativo para a realiza-
ção de entrevistas e de uma análise qualitativa.

Em primeiro lugar, o questionário representa um instrumento eficaz para


envolver todos os participantes na análise da experiência. Ele está estrutura-
do a partir da estética particular a esta abordagem de teatro na comunidade,
e ressalta as diferenças referentes à maneira pela qual os indivíduos perce-
bem os elementos centrais do drama.

Na análise em processo estão sendo considerados os dados coletados


com os atores com formação em teatro em contraponto com os dados dos
espectadores. Dois aspectos ressaltam como ponto de partida:

Por um lado, fica visível que as alternativas com as quais ambos os


grupos concordaram foram aquelas que resultaram de um trabalho intenso
e mais aprofundado pelo grupo de pesquisa – a seleção de fatos históricos
que tivessem ressonância com a época atual e seu cruzamento com histórias
pessoais e comunitárias, obtidas através de entrevistas, foram tarefas que
demandaram mais horas de trabalho e discussões em todas as experiências
realizadas. O reconhecimento que estes procedimentos não foram suficien-
tes para dar voz a um grupo grande e heterogêneo, exigiu mais do que um
simples roteiro – foi necessário a presença de um dramaturgista para cada
cena, o qual desenvolveu o roteiro após os primeiros ensaios e submeteu o
texto ao grupo de pesquisa para revisão e sugestões de re-formatação.

Por outro lado, as diferentes recepções da mesma cena em muitos ca-


sos estiveram relacionadas com a especialização ou habilidade do receptor
no que concerne o aspecto observado. Por exemplo, uma professora de
dança, ao ser entrevistada, reconheceu que as dificuldades para criar core-
ografias com movimentos expressivos por crianças na faixa dos 7 anos de

Dezembro 2005 - Nº 7 - 123 U


idade, durante um período de tempo tão curto quanto o disponível para esta
montagem, a fez valorizar este tipo de trabalho mais do que qualquer outro.
Outro exemplo foi dado pelos diretores das várias cenas – este reconhe-
ceram, também em entrevista, que suas avaliações estavam relacionadas
com suas expectativas a respeito do trabalho; eles avaliaram seus atores de
acordo com as intenções estabelecidas na etapa do planejamento.

Em segundo lugar, o questionário inclui a dimensão pedagógica de ex-


plicitar aos participantes a estrutura e os objetivos do projeto. A primeira
etapa da pesquisa quantitativa se referiu à aplicação dos questionários aos
alunos e professores de teatro que participaram da montagem como atores
e diretores de cena. Seus testemunhos, em geral, foram de que se surpre-
enderam com a diversidade dos objetivos, embora em momentos distintos
do processo de montagem tivessem tido consciência de todos eles. O fato é
que o questionário permitiu a visualização do projeto de forma integral, o que
facilitou a percepção das interações entre objetivos, cenas, e suas implica-
ções na configuração da estética sendo investigada.

A segunda etapa da aplicação dos questionários envolveu os atores,


com formação em teatro, entrevistando os atores da comunidade – cada
ator aplicou o questionário, como base para a entrevista, com um dos atores
da comunidade. Ter passado pela experiência, e aplicar o questionário sob
a forma de entrevista, foi importante e necessário devido aos conceitos e
estratégias mencionadas nas questões. Muito do fazer teatral, ao não ser
formulado adequadamente no momento em que é proposto, é difícil de ser
identificado de forma teórica.

A terceira parte da entrevista envolveu atores e equipe de pesquisa na


entrevista com os espectadores. O processo de análise, até este momento,
tem se concentrado na recepção dos atores versus a recepção dos especta-
dores.

Em terceiro lugar, ficou visível a contribuição deste tipo de pesquisa


quantitativa para um olhar distanciado do pesquisador em relação ao objeto
pesquisado. Neste caso, em particular, os resultados obtidos foram contrá-
rios às expectativas criadas pelo grupo de pesquisa, e isto favoreceu um
novo olhar sobre a cena e o projeto.

A expectativa inicial de que haveria uma distinção significativa entre a


recepção por parte dos alunos de teatro e por parte dos espectadores não se
concretizou, e, em alguma medida, revelou-se no sentido oposto ao espera-
do.
O projeto tem focalizado a encenação de rituais e a interação canto – di-

U 124 - Dezembro 2005 - Nº 7


álogos, como forma de dar voz a todos os participantes. Outro aspecto enfa-
tizado é a presença do contador de histórias em cena, como forma de intro-
duzir ou mediar os conflitos e as informações históricas. Este(a) contador(a)
é geralmente uma personagem da história recente da comunidade, que pos-
sa ser reconhecida como tal. A expectativa era que rituais, canto e persona-
gens típicas da localidade obtivessem a preferência do público. Entretanto,
a primeira opção do público foi Dramaturgia, e na segunda, Lugar, a primeira
variável foi Dimensão Histórica.

É interessante notar que todas as cenas incluíram interações canto/mú-


sica/dança-texto. Uma possível explicação para ser esta a última opção, por
atores e espectadores, pode estar no fato de que foram os próprios elencos
quem identificaram a música e definiram a forma como esta foi inserida na
cena. Isto indica que não houve um desafio maior em termos de descoberta
ou atuação. Além disso, a música selecionada era em grande parte, conhe-
cida da comunidade, enquanto a estética teatral do trânsito foi nova para os
observadores. Isto explica porque os únicos votos para música e canto foram
dados pelos atores que trabalharam em uma cena onde 21 crianças, entre
07 e 09 anos, cantaram e dançaram músicas indígenas, em Guarani (língua
dos índios que lá habitaram).

O fato de que as questões referentes a Risco não foram validadas pelo


teste de Feldman não significa que este não ocorreu, de forma diferencia-
da, em cada cena. O que se pode observar com clareza é que o risco é
específico a cada situação e não há como obter consenso em um trabalho
caracterizado pela montagem de cenas independentes e distintas, em locais
também distintos. O risco está assim relacionado diretamente com o conteú-
do da cena (cruzamento das interfaces do texto teatral). Por exemplo, o risco
de apresentar um conflito político da comunidade difere do risco de envolver
crianças com técnicas circenses. Este entendimento aponta para o fato de
que o questionário não pode ser visto como um meio para observar priorida-
des ou definir problemas, mas sim como um guia para perceber que com que
tipo de risco cada grupo interagiu, e para mediar a entrevista.

Finalmente, esta análise da terceira experiência com o teatro em trânsito


ainda não está concluída. São inúmeras as possibilidades de cruzamento
dos dados - por exemplo, pode-se comparar a recepção dos atores de fora
com a dos atores da comunidade; entre os atores das diferentes cenas; a re-
cepção dos homens e das mulheres; de crianças e adultos, etc. Além disso,
é possível comparar os resultados entre duas experiências, caso o questio-
nário volte a ser aplicado. Para professores e estudantes este trabalho pode
ser considerado enquanto prática como pesquisa. Diários de bordo e proto-
colos registram os processos interativos das montagens e fornecem material

Dezembro 2005 - Nº 7 - 125 U


para o desenvolvimento de uma estética teatral de cunho intercultural para
trabalhos em comunidades. A cada experiência novos elementos de impacto
e fatores de risco são percebidos. O aspecto intercultural, além de favorecer
uma perspectiva de estranhamento, no sentido de romper com as interações
cotidianas, amplia também as possibilidades de leitura das cenas ao intro-
duzir perspectivas distintas para interpretar ações e atitudes. O questionário,
como subsídio para entrevistas, torna-se assim um instrumento importante
na análise da recepção, permitindo entender como pessoas com formação e
background cultural distintos percebem o espetáculo.

A análise da segunda experiência, realizada no município de Nova Tren-


to/SC, transcorreu durante o processo de montagem, a partir de textos de
Pierre Bourdieu (1982, 2001) e Henri Giroux (1986, 1997). No primeiro caso,
foram focalizados os conceitos de habitus e violência simbólica. Procurou-se
primeiramente detectar, na prática da própria equipe, posturas de produção
e recepção incorporadas pelos diretores e atores a-criticamente, e suas im-
plicações estéticas e pedagógicas. Paralelamente, discutiu-se a coordena-
ção e atuação dos alunos e professores de teatro frente aos participantes da
comunidade. Neste caso, o questionamento focalizou o conceito de violência
simbólica, e a eventualidade de impor modelos ou juízos de valor.

Com textos de Giroux se fez o contraponto, procurando-se olhar a inte-


ração universidade-comunidade por outro ângulo: o potencial do teatro, um
fazer artístico interativo e intercultural, para romper cruzar fronteiras e demo-
cratizar diferenças.

Neste sentido, a aplicação do questionário, na terceira experiência, foi


uma tentativa de precisar melhor as diferentes perspectivas para aprofundar
o debate teórico. No entanto, observou-se que estas diferenças não apa-
receram na apreciação do espetáculo; quando ocorreram, no processo de
montagem, foram resolvidas em grupo. E, o acompanhamento do processo
de montagem tornou evidente, a todos os participantes, que similaridades
e diferenças, no tocante à produção e recepção do espetáculo, não estão
distribuídas entre os com formação específica e os amadores, ou os “daqui”
e os “de fora”. Mas, para aprofundar esta questão será necessário um novo
trânsito, com acompanhamento e documentação do processo de montagem
e da recepção do produto final.

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U 128 - Dezembro 2005 - Nº 7


O Ator Especial: Estudantes Especiais Atuam no
Teatro de Integração
________________________________________________
Juliano Borba*

Neste artigo, o projeto de Teatro Aplicado Os Astronautas, realizado com


Estudantes Especiais é analisado através da narrativa em diálogo com qua-
tro perspectivas diferentes e complementares: educação especial contem-
porânea; narrativa e construção de identidade; possibilidades concretas de
explorar narrativa com ganhos estéticos e educacionais através do drama; e
teatro como possibilidade de síntese artística coletiva da narrativa e de troca
comunitária.

Contexto Geral do Projeto

O projeto Os Astronautas aconteceu no primeiro semestre de 2004 du-


rante as aulas curriculares de arte da turma Oficina II na Escola Especial
Caminho da Esperança em Palhoça, na Grande Florianópolis. Uma cidade
de geografia rica em montanhas e praias e uma população proveniente, em
sua grande maioria, de regiões rurais de Santa Catarina, Rio Grande do Sul
e Paraná. A escola atende atualmente 128 estudantes e possui um grupo de
trabalho de 33 profissionais incluindo presidente; assistente social; secretá-
rias; motoristas; merendeiras, auxiliares de serviços gerais, fisioterapeuta
e professores. Estes alunos, em sua grande maioria são provenientes dos
bairros periféricos e carentes da cidade. (KATO: 2004)¹.

Todos os 128 estudantes possuem algum nível de deficiência mental, 42


possuem deficiência mental e deficiência física, e destes 16 são cadeirantes;
10 estudantes possuem também deficiência visual; 6 possuem também de-
ficiência auditiva; 18 possuem síndrome de Down e 9 possuem deficiência
severa e podem ser autistas (KATO: 2004).

Como professor de arte curricular da Associação de Pais e Amigos dos


Excepcionais - APAE de Palhoça, recém chegado, me deparei com professo-

*Juliano Borba é formado em Artes Cênicas pela UDESC e mestre em Teatro


Aplicado pela Universidade de Exeter, Inglaterra. É professor colaborador de
teatro-educação e estágio da UDESC, coordenador da ABRA – Associação
Brasileira de Arteducadores e do PAPE – Projeto Aventuras do Peri.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 129 U


res e estudantes que me mostraram um folder sobre o Festival Nossa Arte da
Federação Brasileira das APAEs e me pediram para realizar um montagem
para os estudantes da APAE de Palhoça poderem participar deste referido
evento. Com um espaço de três meses para montar a apresentação e uma
carga horária apertada, foi escolhida a turma Oficina II, a mais hábil para atu-
ar e a narrativa fantástica “Os Três Astronautas”, escrita por Umberto Eco,
para ser o motivo da exploração dramática para a apresentação.

Com idades diversas, variando entre 15 a 40 anos, os 12 estudantes da


Oficina II em seu dia a dia escolar fazem pequenos trabalhos manuais como
soldar circuitos eletrônicos, artesanato em papel e ajudam na manutenção e
limpeza da escola. Eles possuem facilidade de comunicação em relação aos
demais, porém não desenvolveram a capacidade de ler e escrever. A função
semiótica nestes estudantes, apesar de latente, era claramente menos de-
senvolta do que em crianças normais. Politicamente, há um constrangimento
relacionado a esta turma na escola, pois explicita o caráter segregacionista
das instituições de educação especial – APAE`s, principalmente da região
sul do Brasil. Em realidade estas escolas atuam desarticuladamente com as
outras instituições de ensino especial e regular e não conseguem promover
a integração. Os estudantes desta turma, portadores de necessidades espe-
ciais brandas, poderiam estar integrados na escola normal e possivelmente
estariam lendo, escrevendo e trabalhando. Este mal estar é possivelmente
aliviado na percepção mais ampla do problema educacional. A sociedade
ainda se prepara para assumir criticamente as responsabilidades sociais dos
sucessos e derrotas escolares como centrais para o seu desenvolvimento.

Evoluções lentas estão acontecendo. Segundo dados do senso escolar


1998-2004 sobre a política de atendimento da educação especial no Brasil,
as inclusões de estudantes especiais em escolas regulares com assistên-
cia especializada subiram de 13% em 1998 para 34,4% em 2004, sendo
o menor índice, 27% em 2004, encontrado na região sul, onde o referido
projeto aconteceu². Na Declaração de Salamanca de 1994, resultado de
um importante diálogo internacional sobre necessidades educativas espe-
ciais, um conjunto de diretrizes para a integração dos portadores de neces-
sidades especiais foi proposto para as nações do mundo³ . Estas apontam
para a transformação das escolas e universidades em espaços integradores
programados e projetados para valorizar a diversidade com uma pedagogia
centrada no indivíduo e suas especificidades.

Para Dewey, um dos pioneiros a formular uma pedagogia centrada no


educando, a educação deve ser baseada em problema e diversão e o pro-
fessor deve se responsabilizar pelo desenvolvimento positivo de autocon-
ceito e auto-estima propondo problemas que desafiem os estudantes den-
U 130 - Dezembro 2005 - Nº 7
tro de suas habilidades, encorajando os a vencer e reconhecendo os seus
sucessos (HENSON, 2003). Estas premissas foram especialmente úteis e
formaram a base da ação prática e pedagógica.

O Projeto

O envolvimento dos estudantes foi crucial para a autoridade do grupo no


processo e produto artístico. Para isso adotamos um formato claro, simples
e este se repetiu como um ritual, engajando-os em atividades carregadas
emocionalmente e conectadas com o nível de habilidade para captar seus
interesses e motivá-los. Essa estrutura serviu como ponto de apoio para o
grupo, facilitando a compreensão do nosso itinerário e da estrutura para ati-
vidade artística.

No início da cada aula fizemos uma roda dialógica com cumprimentos,


anúncios, coisas para contar e por fim a proposta da aula. O aquecimento
era físico, psicológico/mental, emocional ou híbrido dependendo da ativida-
de central do encontro, sendo muitas vezes realizado com músicas, bailes,
cirandas e jogos. A atividade central de cada encontro foi gradualmente tran-
sitando dos jogos tradicionais e cooperativos para os jogos teatrais, explora-
ção prática da narrativa e depois a composição e repetição/ensaio das cenas
do espetáculo. No fim de cada encontro, fizemos uma roda de avaliação com
o objetivo de recapitular o encontro e selecionar os melhores momentos.

Esta avaliação final foi explorada através de diversas linguagens, princi-


palmente verbal, imagem corporal, dança e desenho.

No início do ano letivo, antes do projeto de montagem ser iniciado, pro-


pusemos uma estrutura de jogos tradicionais, colaborativos e teatrais com
intuito de tornar as aulas de arte um ambiente motivador e prazeroso, bem
como para coletar as primeiras informações sobre o potencial dos estudantes
de uma forma sutil e lúdica. Na primeira aula, por exemplo, usando a estraté-
gia do professor–personagem, entrei na sala como um repórter e entrevistei
os alunos. Com um pincel atômico de microfone, obtive dos que podiam se
comunicar oralmente informações como nome, principais atividades, onde
moram, atividades prediletas, etc. Com os dados coletados do grupo impro-
visei com violão uma música usando essas informações, salientando muito
bem o nome de cada um e suas qualidades. O violão foi então compartilhado
para quem quisesse cantar a sua música.

Na segunda aula, acompanhando o interesse do grupo por música, pro-


pus uma ciranda. Dançamos uma ciranda de passo simples e alguns senti-
ram dificuldade em acompanhar, principalmente uma estudante que possuía

Dezembro 2005 - Nº 7 - 131 U


dificuldade de locomoção e de permanecer em pé. Mesmo assim ela quis
participar e o fez com o apoio generoso do grupo. Na seqüência construímos
uma coreografia de composta por movimentos e sons através da união da
contribuição individual. Ou seja, cada participante propunha um movimento
e som e essa proposta ia se unindo às dos outros participantes. Esta coreo-
grafia criada coletivamente foi proposta e repetida como aquecimento para
os jogos colaborativos e teatrais no encontro seguinte. Era uma forma de uti-
lizarmos e entendermos na prática o conceito de Zona de Desenvolvimento
Proximal de Vygotsky (1998)4. Pudemos perceber o nível extremamente gra-
dual de autonomia do grupo na realização da atividade. Sempre buscamos
repetir algo significante do encontro anterior, atividades, jogos, coreografias
e por fim as cenas. Essas últimas foram repetidas exaustivamente sempre
contando com a típica motivação e generosidade do grupo.

Para estes estudantes com necessidades educativas especiais mode-


radas, com habilidades de relacionamento, noção de identidade e narrativa
limitadas, porém com disposição e generosidade muito acima da média, a
estrutura dos jogos teatrais de Viola Spolin, apesar de complexa, se tornou
um método particularmente interessante para treinamento do ator especial
quando explorada de forma simplificada em seus três elementos chave -
foco, instrução e avaliação - de forma gradual, repetida e com a participação
dinâmica do facilitador dentro e fora do jogo.

A roda no fim do encontro para avaliar nosso itinerário possibilitou perce-


ber a função narrativa como um desafio comum à maioria dos participantes
da montagem. Eles não tinham facilidade de organizar a experiência vivida
e narrá-la ao grupo. Possuíam conseqüentemente dificuldade de assimilar e
acomodar histórias com uma trama complexa. Esse foi meu primeiro grande
desafio da montagem. Introduzir a história escolhida, Os Astronautas, para
poder improvisar e montar o espetáculo.

Ao mesmo tempo, aconteciam virtuoses narrativas que nos impressio-


navam. Um exemplo disso aconteceu em um encontro na fase intermediaria
do projeto. No aquecimento a proposta era para cada participante cantar e
dançar uma música calma tocada por mim no violão, enquanto o restante
do grupo imitava. Quando foi a vez de Jedson, ele sem esforço dançou a
vida dele, resumindo naquela dança sua relação com a família, a religião, os
amigos, a escola, através de um jogo gestual maravilhoso. Marina, estagiária
de jornalismo que estava documentando se emocionou muito com a beleza
e a sensibilidade que ficou em prantos de choro. Revelou estar apaixonada
pelos participantes e seus processos. Ela tornou-se uma colaboradora assí-
dua.

U 132 - Dezembro 2005 - Nº 7


A escolha da história se justificou por ter uma trama simples, por seu
poder lúdico e questionador. Narrei a história para o grupo seguidamente
ao mesmo tempo em que objetivamos a preparação teatral destes partici-
pantes, ou seja, facilitamos de forma prática seu entendimento de cena, de
espaço cênico, de ação, personagens sem introduzir, no entanto conceitos.
Para o grupo entender e explorar a narrativa, depois desta haver sido con-
tada repetidas vezes, dividi a história em seis partes (1- Preparação para a
grande viagem; 2- A Nave Espacial; 3- Explorando Marte; 4- Saudade da
Terra; 5- Amizade com os Inimigos; 6- O Marciano: beleza na diferença.) e
passamos a entender cada parte isoladamente. No início usamos imagens
congeladas coletivas adaptando Teatro-Imagem de Boal. Depois propomos
improvisações dirigidas usando a estrutura de jogos teatrais que estava já
sendo praticada e finalmente decidimos por continuar e finalizar o processo
através da composição das cenas.

De fato as improvisações da narrativa não funcionaram tão bem como


as experiências com os jogos teatrais no início dos trabalhos. Os atores fica-
vam perdidos, sem saber o que fazer, sem pontos de referência em relação
ao que a narrativa propunha, mesmo depois de avaliarmos e repetirmos as
atividades. Com exceção das improvisações sem fala, que não apenas fun-
cionaram, mas possibilitaram perceber que havia um desafio intransponível
para o grupo dentro do tempo que dispúnhamos: unir ao gestual corporal a
voz e o verbo para comunicar a narrativa.

Tornou-se, a partir dessa avaliação, uma opção de encenação, montar


o espetáculo privilegiando o corpo e a música e sem falas. Experimentamos
também entrevistar os personagens, congelar a cena e pedir para os ato-
res falarem o que seu personagem estava pensando naquele momento, po-
rém estas propostas estavam além das possibilidades gerais do grupo para
aquele momento. Passei então a usar os materiais propostos até então para
compor e dirigir as cenas diretamente.

A fase de produção do espetáculo foi intensa e contou com o apoio e


flexibilidade de toda a equipe do APAE de Palhoça e especialmente com o
apoio da professora Arlita Benz com a produção dos figurinos e adereços.
Conseguimos com a Universidade Federal de Santa Catarina uma visita ao
Planetário com o intuito apresentar ao grupo novas questões e possibilida-
des relacionadas aos planetas, viagens espaciais, estrelas, vida fora da terra,
entre outros. A saída dos alunos da escola, a interação com os profissionais
da Universidade e o que eles puderam vivenciar dentro do Planetário foram
extremamente importantes, pois geraram novos parâmetros, informações e
motivação. Entendi essa saída não apenas como parte de um processo para
composição do espetáculo, mas um evento, uma integração social, um resul-

Dezembro 2005 - Nº 7 - 133 U


tado em si.

Três meses depois do início do projeto, estreamos com o espetáculo


em construção, na própria escola, com uma platéia de alunos e professores.
Um debate informal com os professores, depois da apresentação, nos pos-
sibilitou ajustar detalhes para a segunda apresentação, no Festival Nossa
Arte, para uma platéia de alunos especiais e professores em sua maioria. A
crítica foi positiva, recebemos o prêmio principal da categoria artes cênicas,
pois se tratava de um festival competitivo. Os estudantes queriam apresentar
mais, estavam encantados com a receptividade das platéias: os aplausos, os
abraços e tapas nas costas de parabéns os impressionaram positivamente.
Adaptamos o espetáculo para a rua e participamos de um evento comunitá-
rio sobre o Meio Ambiente. Apresentamos para uma platéia de crianças das
escolas públicas e particulares da cidade de Palhoça. Fomos convidados a
apresentar na XI Semana da Sociedade Inclusiva no SENAC para uma pla-
téia de profissionais e interessados em Necessidades Especiais.

Recebemos outros diversos convites para apresentação, em escolas


normais, em eventos e festas, porém a rotina de apresentação obriga toda a
escola a trabalhar mais, os motoristas precisam transportar o grupo, cenário
e figurino, os professores precisam se adaptar as saídas, a direção preci-
sa organizar as coisas, acarretando trabalho extra para quem já trabalha
demais, ganha pouco e carece de motivação. Os convites apresentados à
direção para as apresentações na comunidade e eventos foram um a um re-
cusados e o projeto foi morrendo aos poucos, mesmo com a insistência dos
estudantes que persistiram interessados durante todo o segundo semestre.

Jogos, Narrativa e Repetição na Formação do Ator Especial

A formação desse grupo de atores especiais aconteceu dentro de três


perspectivas metodológicas: jogos, exploração da narrativa e repetição. De
acordo com Peter (2003) brincadeira, jogo, drama e teatro possibilitam o
fortalecimento de partes do funcionamento do cérebro necessárias para um
pensamento mais flexível, habilidades de comunicação, e maior sensibilida-
de para as interações sociais. Teatro e drama, por sua vez, oferecem uma
estruturada oportunidade de participação do mundo social. Como uma arte
social, teatro possibilitou a esses atores especiais contato com conflito e nar-
rativa e conteúdos transversais como Identidade, Cultura, Viagem, Diferen-
ças Humanas através da interdisciplinaridade do drama de forma gradual, ao
mesmo tempo experimentavam possibilidades de comunicação através do
corpo-voz, não necessariamente dimensionadas pela linguagem verbal.

O processo de exploração artística foi informado pelas premissas educa-

U 134 - Dezembro 2005 - Nº 7


cionais do Construtivismo de Piaget e do Sócio-Interacionismo de Vygotsky,
exemplos de pedagogias centrada no estudante. Esse entendimento de pos-
sibilitar a construção do conhecimento através da ação reflexiva - que se
abria para avaliação do grupo possibilitando um melhor entendimento da
experiência vivida - e possibilitar uma interação humana colaborativa - valo-
rizando as diferenças humanas presentes - se tornou evidentemente neces-
sária no trabalho de teatro-educação com a turma Oficina II. Para usar essa
perspectiva educacional de forma concomitante e interligada, foi preciso en-
tender como cada individuo poderia ali realizar a função de ator criativo no
processo de construção do espetáculo. Foi clara a necessidade de conhecer
cada indivíduo daquele grupo em sua humanidade, através de detalhes so-
ciais, econômicos, e dimensões subjetivas e imaginárias. Essas informações
foram obtidas e alimentaram as trocas sociais que aconteceram no início do
trabalho com o grupo e foram importantes para mapear as reações, expor
contradições, e segundo Mantoan (1989:135) quando acontecem de forma
intensa e emocional, criando conflitos que obrigam o sujeito a reagir, possi-
bilitam a diminuição gradativa das deformações cognitivas.

Para esse mapeamento idealizamos um questionário de avaliação para


ser usado como referencial para identificar os desenvolvimentos individuais.
Adaptamos posteriormente a uma estrutura similar, porém mais complexa,
usada por Gaynor Peach (2003:15), que por sua vez emprestou de Flo Lon-
ghorn (2000:6).

“Vontade de responder a situações de aprendizado; desenvol-


vimento da atenção e foco; consciência de si, dos outros e do
meio; 1nteração com os outros; iniciativas lúdicas, participação
em jogos; iniciativas de comunicação de qualquer modo; iniciati-
vas de diversão; coordenação e desenvolvimento sensório-motor;
respostas a recompensas e sanções; habilidades de remover bar-
reiras ao aprendizado; interação com o ambiente” (PEACH 2003:
15).

Dentro desse contexto, para analisar coletivamente os significados de


cada experiência vivida e para avaliar o desenvolvimento individual dos ato-
res/estudantes especiais, utilizamos representações através de desenhos,
imitações, jogos, brincadeiras de faz de conta, expressão gestual, teatro
imagem, teatro-fórum, entrevistas e estímulos.

Atividades lúdicas em artes e drama podem ligar a lacuna entre o com-


portamento brincalhão das crianças e a aparente falta dessa característica
encontrada em muitas crianças com necessidades complexas e severas.
Contudo essa fronteira será mais facilmente cruzada através da segurança

Dezembro 2005 - Nº 7 - 135 U


de uma estrutura clara que se repete para as situações de jogo propostas,
libertando-os para decisões e escolhas dentro de fronteiras gradualmente
crescentes. Como exemplo dessa necessidade de estrutura clara e repeten-
te, Gaynor Peach (2003), no projeto de pesquisa com oito crianças portado-
ras de necessidades educativas severas e complexas na Inglaterra, cantou a
mesma música de bom dia com a ajuda de um boneco de mão para o grupo
durante o ano inteiro, isso significou 1400 vezes a mesma música. Como
resultado ela celebrou a participação tímida e gradual dessas crianças que
conseguiam antever o que viria na brincadeira.

Estudos psicológicos sobre o desenvolvimento humano, baseados prin-


cipalmente nas contribuições de Piaget, centraram-se em como o ser hu-
mano faz sentido das experiências e internaliza sua percepção através de
representações mentais, e que estas, por sua vez, influenciam seu compor-
tamento e entendimento. A forma significativa para esse processo é a da
narrativa, explorada através dos jogos dramáticos, simbólicos e do faz de
conta. Um exemplo desse processo narrativo, o comportamento tipicamente
brincalhão das crianças, consiste em sua forma de pesquisa e conexão com
o mundo e pode revelar seus entendimentos e sentimentos para com fatos,
eventos e pessoas (PETER, 2003:21).

Esta rota para a competência social, porém, é menos direta e possí-


vel para crianças e indivíduos com necessidades educativas especiais, que
carecem de habilidades espontâneas para entender as experiências e/ou
interagir com as pessoas e com o ambiente. Segundo Piaget (1971), as ex-
periências sensório-motoras são consideradas a fundação das habilidades
para formar representações e entendimentos conceituais. Para Vigotsky
(1998), a forma com que os adultos mediam a interação entre as crianças e
interagem com elas nestas oportunidades de jogo, afetará a maneira como
elas subseqüentemente aprenderão sobre o ambiente e o modo de se com-
preenderem como parte da sua cultura e da sua sociedade. Esta premissa
é especialmente verdade para as crianças e indivíduos que dependem dos
adultos para ter acesso aos jogos, socializações e outras oportunidades do
ambiente.

Narrativa: construção de identidade e exploração dramática

Foi na transformação da narrativa através do drama e depois para o


teatro ocorreu muito do trabalho artístico e criativo em Os Astronautas. Para
isso acontecer foi preciso entender como trabalhar o drama para explorar a
narrativa, que possui em si uma estrutura e uma simbologia dentro do nível
médio de possibilidade do grupo O entendimento de narrativa para além da
arte foi fundamental. Narrativa está em quase tudo o que existe. Muitas de

U 136 - Dezembro 2005 - Nº 7


nossas experiências no mundo são através de narrativa, quando narramos,
ou por outra, socializamos nossas experiências, e como receptores, quando
experiências de outros são divididas conosco. Além de arte, narrativa, en-
quanto primeira ação mental, é essencial para a construção da nossa iden-
tidade pessoal e coletiva. “Narrativa não é uma invenção estética criada por
artistas com o objetivo de controlar, manipular ou ordenar experiências, mas
um primeiro ato da mente transferido da vida para a arte” (HARDY, 1987:1 in
COCKETT, 1999:65).

É importante entender o subtexto das histórias criticamente. As narrati-


vas são também base para sustento e a conquista do poder. A maioria das
histórias a que somos expostos, como as histórias usadas pelos estúdios Dis-
ney, por exemplo, não desafia o status quo ou da esperança e força para as
pessoas levantarem suas vozes e agirem no sentido de uma transformação5.
Narrativa toca o centro dos sistemas culturais, políticos e sociais e é usada
como ferramenta para sustentar ou resistir relações de poder.

Se for preciso ter boas histórias para o teatro, é certa a necessidade de


escolher boas histórias para o trabalho educacional através do drama. Uma
história naturalista, que depende de um realismo psicológico tem menos uti-
lidade do que aquelas que permitem tratamento estilizado.

“Boas histórias exploram alguma coisa significativa da condição


humana.
Elas agitam nossa imaginação, nos conectam com o mundo em
um sentido que não é puramente pessoal. Boas histórias fazem
seus ouvintes compreenderem seus significados por si próprios”
(COCKETT, 1999:71).

A decisão do que é uma boa história pode ser encontrada através de


uma série de perguntas: “A história pode ser contada através da ação? Que
tipo de transformação acontece na história? Em que sentido a história fica
diferente no final em relação ao começo? Existe um momento em direção
ao qual a história converge? Você pode dizer exatamente onde e quando?
Quais os valores e princípios presentes na história? Sobre o que a histó-
ria é realmente?” (Ibid). E dentro dessa história escolhida o professor deve
possibilitar aos alunos entenderem o ápice da história, o seu momento mais
importante, onde ocorre a transformação. Cocket propõe que a história seja
dividida em unidades e cada unidade uma ação-chave/ imagem-chave. Em
cada unidade as perguntas centrais são: como isto pode servir para a narra-
tiva? Onde você quer que a platéia coloque seu foco? Como isto vai estimu-
lar a imaginação do público? Esta proposta pode ser determinada pela ação
e esta pode estar ligada ao significado implícito da história (Ibid). Já Cecily

Dezembro 2005 - Nº 7 - 137 U


O´Neill, indo por outra via, acredita que a história pode servir com pré-texto
e este precisa ser transformado e recriado através do drama. O professor
deve ser hábil em explorar a história, modificá-la, usar os personagens não
mencionados, entrar nas perspectivas pessoais e globais das ações dos per-
sonagens, avançar ou retroceder no tempo.

“Experiências dramáticas significantes não surgirão necessa-


riamente da simples adaptação e dramatização do que parece ser
um pré-texto apropriado. Este enfoque parece ir mais em direção
a um trabalho explanatório do que exploratório, em que as idéias
e temas são demonstrados ao invés de serem descobertos e ex-
plorados” (TAYLOR, 1995:17).

Estas duas posições acima apresentadas por Cockett e O´Neill, foram as


referências principais para os trabalhos de exploração dramática e comple-
mentaram a fundamentação teórica baseada em Freire (1977) e Boal (1998).
Inicialmente usando a estrutura que a narrativa escolhida propõe e gradu-
almente introduzindo formas de explorar e recriar os momentos escolhidos
dentro das possibilidades do grupo.

A História

A narrativa escolhida, Os Três Astronautas de Umberto Eco, conta sobre


uma corrida internacional para chegar ao planeta Marte. Três países podero-
sos e inimigos escolheram seus astronautas mais especiais para completar
essa missão. Partiram então o astronauta Russo, o Americano e o Chinês.
Mesmo tentando chegar primeiro, ironicamente todos chegaram ao mesmo
tempo em Marte. Eles então, individualmente examinam o planeta duran-
te todo o dia. As montanhas eram vermelhas, as arvores andavam e eram
amarelas, os rios corriam paralelos ao chão e eram verdes. Tudo era bem
diferente do planeta Terra. A noite chegou e fez um silêncio enorme. Os as-
tronautas ficaram com saudade da terra. Eles se olharam e tentaram esbo-
çar um sorriso. Apesar de línguas diferentes eles perceberam que possuíam
sentimentos semelhantes, saudade, frio, fome. Sentaram juntos e aprende-
ram a se conhecer.

Quando amanheceu eles perceberam um barulho muito estranho. Um


ser verde muito feio e estranho, com um nariz em forma de tromba, antenas
no lugar de orelhas e seis braços saiu do meio de algumas árvores. Era
horrível vê-lo! Ele disse: GRRRR. Na língua dos marcianos isso significava:
Quem são esses seres horríveis!? Os terráqueos acharam que significava
algum grito de guerra e decidiram matá-lo com suas armas atômicas. Neste
momento um pássaro marciano caiu do seu ninho e começou a piar sem

U 138 - Dezembro 2005 - Nº 7


parar, de medo e frio, como se estivesse chorando. Então o marciano soltou
fumaça de seu nariz, segurou a pássaro entre os braços para aquecê-lo.
Os terráqueos perceberam que o marciano estava chorando à sua maneira.
Eles entenderam que o marciano gostava dos animais e tinha sentimentos.
Baixaram as armas e se aproximaram do marciano estendendo a mão. Este
que possuía seis braços conseguiu cumprimentar a todos e ficaram amigos.
Quando os terráqueos partiram o marciano prometeu retribuir a visita.

Reflexões Finais

O processo de treinamento do ator especial – explorar e entender nar-


rativas, personagens em situações diversas, explorar possibilidades lúdicas
e comunicativas do corpo e da voz possibilitou desenvolvimento humano,
cognitivo e social. Para estudo dividimos o planejamento, execução e avalia-
ção em três áreas: jogos – para desenvolver a capacidade de usar o corpo
espontaneamente. Foi trabalhando de forma extremamente gradual, sendo
que muitos deles foram desafiantes de mais para a capacidade atual do
grupo; exploração dramática da narrativa – que foi o trabalho sobre a histó-
ria e a temática e como transformá-la em imagem e ação; e a repetição - a
perspectiva de repetir o máximo de coisas que funcionaram para um contato
maior e mais tranqüilo com a experiência.

Para isso foi necessário contextualizar a prática, saber mais quem são
esses atores ao mesmo tempo em que realizamos aspectos teóricos do de-
senvolvimento humano e do que poderia ser a educação transformadora
e crítica desse ator especial. Por exemplo, o entendimento prático do que
Vygotsky chama de ZDP – Zona de Desenvolvimento Proximal foi impor-
tante para avançarmos gradualmente no processo de formação deste ator.
Avançamos gradualmente percebendo que atividades podiam realizar com
auxílio do facilitador. Trabalhamos através da repetição para eles conquis-
tarem habilidade de resolver o problema com o auxílio próprio grupo. Cada
nova habilidade e independência nos informavam que poderíamos passar
para algo mais desafiante, consolidando o aprendizado e criando zonas de
desenvolvimento proximais sucessivas.

A visão contemporânea da educação entende o ser humano integrado


na natureza e sociedade valorizando a diferença, a democracia e a transfor-
mação como parte fundamental da vida humana na terra. Dentro dessa pre-
missa, a instituição de educação especial deveria atender diretamente ape-
nas os indivíduos que ainda não estão preparados para serem integrados.
O novo paradigma dessas instituições se direciona a constituírem-se como
centros formadores de profissionais integradores dos estudantes especiais.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 139 U


Indo neste caminho, o Ministério da Educação – MEC lançou um projeto
nacional de educação especial chamado Educação Incluída: Direito a Diver-
sidade. O projeto está em uma fase piloto acontecendo em 109 municípios
do Brasil, com o objetivo de capacitar educadores e transformar os sistemas
de ensino isolados e desarticulados em sistemas integrados e inclusivos.
Contudo, as políticas de educação especial estão se desenvolvendo ain-
da desconexas às vanguardas educacionais propostas em Salamanca em
1994. Estas políticas e ações precisam transformar as escolas em espaços
inclusivos, democráticos e críticos capazes de fomentar a mobilização, a
construção do saber e um ambiente de luta por um mundo melhor possibili-
tando a transformação dos diversos setores da sociedade.

No caso do projeto Os Astronautas foi claro perceber a resistência geral,


porém sutil da escola pouco depois do seu início. Não somente porque suas
ações promoviam questionamentos e propostas de novos paradigmas, mas
porque esta ação cultural e pedagógica movimentava a rotina da escola,
de alimentação, transporte, horários de outros professores. Estas propostas
obrigam novas posições, flexibilidade de organização, conhecimento e mu-
dança. As contradições da educação não param ai. O projeto Os Astronautas
foi motivado por um festival competitivo com a função de eleger as melhores
obras.

As ações e iniciativas precisam ser radicais em promover os valores e


princípios humanos resistentes às ideologias dominantes sutilmente traba-
lhadas em nosso habitus6 com o poder de nos fazer agir de forma competiti-
va e elitista em nome de uma educação popular inclusiva e transformadora.

Notas__________________________________________
¹ Deficiência mental é um funcionamento intelectual geral significativamente
abaixo da média, oriunda do período de desenvolvimento, concomitantemen-
te associadas a duas ou mais áreas da conduta adaptativa ou da capacidade
do individuo em responder as demandas da sociedade, nos seguintes as-
pectos: comunicação; cuidados pessoais; habilidades sociais; desempenho
na família e sociedade; independência na locomoção; saúde e segurança;
desempenho escolar; lazer e trabalho. (BRASIL, 1998)

² Dados atualizados através do portal eletrônico do Ministério da Educação


http://portal.mec.gov.br/seesp/index.php?option=content&task=view&id=110

³ Conferência Mundial de Educação Especial com delegados representantes


de 88 países e 25 organizações internacionais se reuniram em Salamanca

U 140 - Dezembro 2005 - Nº 7


na Espanha de 7 a 10 de junho de 1994 e resultou em uma declaração que
focaliza os governos e organizações a reconhecerem a necessidade urgente
de possibilitar que crianças, jovens e adultos portadores de necessidades
especiais possam freqüentar as instituições regulares de ensino transforma-
das em instituições modernas e inclusivas.

4
ZDP – Zona de Desenvolvimento Proximal é um dos conceitos mais impor-
tantes de Vygotsky. Para ele o indivíduo possui, além do desenvolvimento
real, ou seja, aquilo que ele pode realizar sozinho, um estágio de desenvol-
vimento intermediário, chamado de proximal ou potencial, correspondente
ao que o indivíduo pode realizar com a ajuda do facilitador ou do grupo. Para
mais ver Vygostky 1998.

5
Ver Zipes 1997 para mais informação sobre Disney e industria cultural.

6
Habitus é conceituado por Bourdieu (1979) como um conjunto de ações
ideológicas inconscientes, determinações sociais, sistema de disposição e
de percepção, “estruturas estruturadas predispostas a funcionar como es-
truturas estruturantes”, com poder para programar a produção, circulação e
o consumo dos indivíduos e classes. Um conceito com potencialidade para
possibilitar a observação e identificação das forças ideológicas hegemôni-
cas ligadas aos interesses sutis dominantes. Para uma interessante análi-
se prática deste conceito ligada ao contexto latino americano ver Canclini
1995:62;79-80.

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Teatro e Prisão: o Núcleo Panóptico de Teatro e
os resultados de um diálogo improvável, mas
possível.
________________________________________________
Vicente Concílio*

Origens

Quinze anos separam o encerramento da polêmica investida da produ-


tora e atriz Ruth Escobar, que coordenou um processo teatral que durou oito
meses dentro da Penitenciária do Estado, na capital paulistana, e o retorno
de um programa que ousasse citar a palavra “teatro” naquele mesmo lugar.

A Penitenciária do Estado, ou PE, fazia parte de complexo do Carandiru,


famoso presídio, o maior da América Latina e que chegou a comportar dez
mil homens presos, demolido recentemente para, em seu lugar, ser constru-
ído uma área de lazer, o Parque da Juventude.

Durante aquele ano de 1980, Ruth e uma equipe de artistas, dentre os


quais o diretor Roberto Lage, produziram um espetáculo com os presos, Aqui
há Ordem e Progresso, que obteve grande repercussão por retratar de forma
bastante aberta as condições de vida do homem preso: a dificuldade do re-
torno à sociedade após a prisão, o medo de perder a família, as relações de
poder instituídas no espaço prisional são alguns exemplos da temática sobre
a qual o espetáculo versava.

Vencida a censura interna do presídio, a peça conseguiu realizar diver-


sas apresentações ao longo de um mês, e o grupo partiria para um segundo
trabalho. No dia de Natal daquele ano, uma briga relacionada ao encerra-
mento de uma partida de futebol iniciaria um processo que desembocaria em
uma série de rebeliões. A direção da casa responsabilizou o grupo de teatro
e seu poder “subversivo” pelo motim e acusou Ruth Escobar de incitar a re-
belião e a proíbe de retomar seu trabalho, instaurando um processo contra

* Vicente Concilio: ator, diretor, professor de teatro. Atualmente realiza seu


mestrado em Artes Cênicas na ECA/USP, na área de Teatro-Educação,
com a diseertação “Teatro e Prisão: dilemas da liberdade artística em proc-
essos teatrais com população carcerária”.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 145 U


ela. A resposta de Ruth foi rápida, com uma série de declarações à imprensa
e a publicação de um livro, Dossiê de uma Rebelião, no qual ela documenta
os textos produzidos pelo grupo, coleta críticas dos que assistiram ao espe-
táculo e organiza uma série de notícias relacionadas à rebelião produzidas
pela imprensa.

A polêmica em torno de Ruth quase encerra um outro processo, mais


antigo que o dela, coordenado pela atriz Maria Rita Freire Costa na Peniten-
ciária Feminina da Capital (PFC), que acontecia desde 1978, denominado “A
Arte como Processo de Re-Criação em Presídios”. Também apoiada por uma
equipe de artistas, Maria Rita instaurou processos colaborativos de criação de
espetáculos cujos temas eram trazidos pelas presas integrantes do processo,
sendo estas responsáveis também pela criação das cenas e dos diálogos.

Este processo contou com a participação, até 1980, do ator e diretor


Elias Andreatto e os dois últimos espetáculos ganharam registro e notorie-
dade ao serem filmados e transformados em documentários pelo cineasta
Denoy de Oliveira. São eles Fala Só de Malandragem e Nós de Valor... Nós
de Fato.

O documentário Fala Só de Malandragem foi vencedor do Festival de


Brasília, na escolha do público, em 1985. Uma das detentas foi considerada
“Melhor Atriz Coadjuvante”, pois apesar de ser um documentário, ela apare-
cia como a personagem, uma vez que o espetáculo teatral era mostrado na
íntegra no decorrer do filme.

A repercussão deste filme, embora apresentando o espetáculo quase


três anos depois de sua estréia, foi um dos mais fortes argumentos contra a
instituição da pena de morte no Brasil, tema de forte apelo na época, quando
diversos setores da sociedade debatiam os principais tópicos a serem leva-
dos em consideração na Nova Constituição Brasileira, que seria aprovada
pelo Congresso Nacional em 1988.

Esses trabalhos, tanto o de Ruth Escobar quanto o de Maria Rita encontra-


ram, em plena ditadura militar brasileira, um espaço de criação de consci-
ência crítica e de liberdade de opinião dentro de instituições punitivas por
excelência. Construídas para reforçar o silêncio e a coerção, essas institui-
ções penais foram palco de eventos cênicos que representaram os medos,
os anseios e esperanças de homens e mulheres que não tinham muita saída
que não esperar o fim de sua pena. E tiveram a oportunidade, a chance ou a
sorte de realizarem algo por que se orgulharem em um presídio, onde não há
muito espaço para a construção de nada, exceto o reforço da delinqüência.

U 146 - Dezembro 2005 - Nº 7


Em 1996, o projeto Teatro nas Prisões colocaria de novo a arte teatral
dentro do Carandiru, agora fazendo uso das técnicas consagradas do CTO
- Centro de Teatro do Oprimido, notadamente as técnicas de teatro-fórum,
a fim de conscientizar a população carcerária acerca da prevenção e trata-
mento das DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e da AIDS. Trata-
va-se do Projeto Drama – DST/AIDS. Mais tarde, o foco do projeto seria a
questão dos Direitos Humanos, e aí as oficinas teatrais não seriam direcio-
nadas somente aos presos, mas a todo o corpo funcional das unidades que
receberam o Projeto Drama – Direitos Humanos em Cena.

O Projeto Teatro nas Prisões, então uma parceria da Fundação Prof.


Dr. Manoel Pedro Pimentel de Amparo ao Preso – FUNAP (órgão vinculado
ao Governo do Estado de São Paulo cuja missão institucional é promover
trabalho, educação e cultura nos atuais 130 presídios que compõem o cor-
po principal da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São
Paulo) e o TIPP Center (Theater in Prison and Probation) da Universidade
de Manchester, na Inglaterra, atingiu 34 unidades prisionais até seu encerra-
mento, em dezembro de 2001.

Foi um longo processo cujos resultados ainda se fazem sentir nas ins-
tituições pelos quais o projeto passou, notadamente o fim do tabu da utili-
zação do termo “direitos humanos” entre os funcionários das penitenciárias,
que viam no termo com muito preconceito, entendendo que ele só dizia res-
peito aos “direitos dos manos”.

É dentro desse processo de revitalização do debate acerca da qualidade


de vida oferecida aos presos que, em 1998, um dos monitores de educa-
ção da FUNAP, integrante da equipe do Projeto Drama – DST/AIDS, con-
segue permissão para iniciar uma oficina de teatro dentro do Centro de Ob-
servação Criminológica, o COC, considerada ala de segurança máxima do
Carandiru por abrigar presos jurados de morte pela natureza do crime que
cometeram, o que os impedia de conviver em uma ala comum do presídio.

Tratava-se de uma unidade bastante rígida, nas quais ainda sobreviviam


práticas pouco usuais no sistema como a ordem de os presos só caminha-
rem pelos corredores em fila, com mãos para trás e cabeça baixa. Nesse
ambiente, estrearia uma versão de “O Compadecida”, encenada por
O Auto da Compadecida”
homens presos e dirigida por Jorge Spínola, dando início ao que se confi-
guraria em um projeto de “Montagem de Espetáculos” cuja continuidade vai
resultar na criação do Núcleo Panóptico de Teatro.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 147 U


A experiência no COC

Os três primeiros dos cinco espetáculos aconteceram no antigo Centro


de Observação Criminológica (COC) do Complexo do Carandiru, presídio
destinado à população masculina, em cumprimento de pena no regime fe-
chado. Foi lá que em 1998 estreava O Auto da Compadecida, de Ariano Su-
assuna, em montagem que, por falta de elenco feminino, acabou colocando
na boca de um novo personagem, o “Arcanjo Gabriel”, as falas que deveriam
ser atribuídas à figura da mãe de Jesus, que inclusive dá nome ao texto.
Aparentemente, a solução não evitou que o intérprete ganhasse o apelido
de “anjinho” no presídio, o que comprova o forte preconceito enfrentado pelo
grupo de teatro não só pelo corpo dirigente quanto pelos próprios presos,
que chamavam a atividade de “balé”.

O fato é que após três apresentações dentro da própria unidade, o gru-


po conquistou a até então inédita possibilidade de apresentar o espetáculo
na Penitenciária Feminina do Butantã, feito que abriu caminhos para que o
grupo ganhasse o direito de mostrar, pela primeira vez na história do sis-
tema penal paulista, um produto teatral, interpretado por homens presos,
em um espaço distante das malhas penitenciárias: no TUCA, o Teatro da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em junho de 1999, ao qual
seguiram duas apresentações no Teatro Sérgio Cardoso, em agosto do
mesmo ano, ambas com ampla cobertura pela imprensa escrita e televisiva.

Sobre a montagem Suassuna escreveu, em sua coluna no jornal Folha


de São Paulo:

“Um deles (referindo-se a um dos presidiários) chegou a declarar: Em


toda minha vida de crime eu nunca senti emoção tão grande quanto a
de trabalhar no teatro. Pois posso garantir, a ele e aos outros, que minha
emoção não foi menor. Lembrado das palavras do Cristo, o problema do
castigo de uma pessoa humana sempre me angustiou; e, mesmo impotente
como seja, sempre foi profunda a compaixão que eu sinto por qualquer con-
denado. Assim, fiquei contente ao ver que minha peça tinha levado um pou-
co de alegria (e talvez alguns momentos de reflexão) tanto aos atores que
a encenaram quanto ao público de detentos que assistiu ao espetáculo. Por
alguns momentos voltei a ser o menino que, na pequena cidade de Tapera,
sertão da Paraíba, por ordem da tia e da mãe ia, com outros irmãos, visitar
os presos da cadeia local, numa tentativa (também inócua, sei) de amenizar
sua terrível e dolorosa condição”.

O espetáculo seguinte continuou a se aprofundar no universo farsesco e


popular da dramaturgia de Suassuna, com a montagem de A Pena e a Lei,

U 148 - Dezembro 2005 - Nº 7


que iniciou suas apresentações em 2000, e seguiu o caminho trilhado pela
montagem anterior: apresentações dentro da própria unidade, apresenta-
ções em outros presídios e apresentações em outros espaços, chegando
inclusive a levar a encenação para outras cidades que não a capital paulista,
como Sorocaba.

Desta vez, entretanto, o grupo contou com a participação de uma “atriz


convidada”, Alexandra Tavares, que tinha então vinte anos e possibilitou uma
enorme conquista para o processo, uma vez que o COC era considerado
uma das instituições mais rígidas em todo o sistema.

Dessa forma, a possibilidade de permitir que uma jovem atriz participas-


se de ensaios, considerando obviamente que ela participaria de atividades
que pressupunham contato físico e estudo coletivo para a elaboração das
cenas, tudo isso ganhava alto valor simbólico, visto que consolidava não só
a credibilidade artística do grupo, como ampliava sua responsabilidade para
com a própria manutenção do teatro como atividade dentro da unidade pe-
nal.

Neste sentido, é imprescindível atribuir ao teatro o caráter agregador e


coletivo inerente a seu exercício. Daí o peso de suas conquistas em um pre-
sídio, instituição total (GOFFMAN, 2001) que prima pela individualização dos
que a ele estão submetidos, ao mesmo tempo em que promove uma forte
massificação no trato desses seres com as regras, que em princípio todos
estão submetidos de modo equânime, promovendo o que Goffman define
como mortificação do eu (GOFFMAN, 2001).

A experiência do COC acaba quando o Complexo do Carandiru é desa-


tivado, e seus presos são transferidos, em sua maioria, para a Penitenciária
do Tremembé, no final de 2001.

Mas durante todo aquele ano, o grupo constrói O Rei da Vela, de Oswald
de Andrade, texto escrito em 1933, mas que só conheceria os palcos em
uma montagem histórica realizada pelo Teatro Oficina em 1967, quando o
contexto político do país renovaria os significados de um texto que, definiti-
vamente, é um dos mais instigantes já produzidos pela nossa dramaturgia,
e que conquista cada vez mais atualidade na medida em que as estruturas
políticas, sociais e econômicas do Brasil parecem pouco ter mudado ao lon-
go de todos esses anos que nos separam do autor modernista.

Esta montagem representou a conclusão de um longo processo de cons-


trução de sentidos para a possibilidade de inserção de práticas teatrais em
presídios, ampliado justificativas que estivessem vinculadas simplesmente

Dezembro 2005 - Nº 7 - 149 U


ao caráter “ressocializador” da arte. O discurso da ressocialização invaria-
velmente promoveria um julgamento das atitudes individuais de cada partici-
pante do processo, desviando a atuação da prática teatral de seu eixo mais
interessante: o de promover um exercício coletivo de construção artística.

O Rei da Vela foi convidado, pelo próprio diretor do Teatro Oficina, Zé


Celso Martinez Correa, a se apresentar no emblemático edifício que serve
de palco, há mais de trinta anos, para as históricas encenações de um gru-
po que é referência na trajetória das lutas de resistência cultural do teatro
brasileiro frente aos problemas financeiros e estéticos que fazem parte da
identidade de nossos grupos teatrais.

A apresentação obteve grande repercussão e garantiu quase o dobro


da capacidade do teatro, com o público lotando os três andares do espaço
que compõe a área que lhe é destinada, no arrojado teatro projetado pela
arquiteta italiana Lina Bo Bardi. Lá o público viu, além do espetáculo, aquilo
que sempre ficou vedado pelas cortinas: cada um dos atores, enquanto re-
cebia seus aplausos, ser algemado com brutalidade e, escoltados por dois
policiais cada um, serem levados para o porta-malas do camburão que os
levariam ao presídio.

Mulheres de Papel

Em 2002 e 2003, a construção de um novo espaço e de novos vínculos


de reconhecimento artístico aconteceria na Penitenciária Feminina do Tatu-
apé (PFT), ao lado da famigerada unidade da Febem, famosa por promover,
junto a seus 1.600 adolescentes detidos, as mais escandalosas rebeliões do
sistema da Fundação Estadual para o Bem - Estar do Menor.

Ali, durante dois anos, entre muitas lutas por espaço para ensaios, que
passaram da capela, que virou fábrica e exilou o teatro para o salão de bele-
za, do qual foi transferido para uma unidade intermediária entre uma fábrica
de pirulitos e a entrada do pavilhão, ou seja, servia de passagem, o projeto
só conseguiu finalmente ganhar um espaço próprio e apropriado para o tra-
balho com as cenas, uma sala do segundo andar do pavilhão destinado às
unidades de trabalho, em meados do segundo ano de processo.

Como isso foi conquistado? Pela boa vontade do presídio, infelizmente,


não foi. A FUNAP decidiu, pela primeira vez na história da instituição, pagar
uma bolsa-salário às participantes (este caráter de ineditismo acontece por
que o que está em jogo é uma ação cultural e educativa, sem caráter de
produção de bens que não bens culturais e simbólicos, o que representou
grande passo para a política educacional e cultural promovida pela FUNAP).

U 150 - Dezembro 2005 - Nº 7


Assim, o teatro foi alçado à categoria de “posto de trabalho”, e não mais de
“atividade cultural”, o que elevou sensivelmente a credibilidade da atividade
artística em relação aos apoios que vinha recebendo da direção e dos fun-
cionários da unidade penal.

Nos meses de setembro e outubro, foram realizadas doze apresentações


do espetáculo Mulheres de Papel, adaptação do texto Homens de Papel, de
autoria de Plínio Marcos, cuja obra sempre esteve voltada para a exposição
das mazelas sociais de nosso país e de suas personagens marginalizadas.

A cena, tomada por um grupo de catadoras de papel, decididas a pro-


mover uma greve contra os abusos que vinham sofrendo do comprador do
material por elas recolhido do lixo, tem como conflito principal discussões
na ordem dos limites entre as expectativas individuais e seu confronto com
decisões de ordem coletiva, materializadas no embate entre o grupo e a per-
sonagem Nhanha, que não pretende aderir à paralisação pela necessidade
de conseguir dinheiro para levar a filha ao médico.

Esta complexa relação entre decisões coletivas, por um lado, e opções


individuais, por outro, acabavam por refletir o próprio processo de constru-
ção das regras que conduziam os ensaios e que, portanto, definiram o pró-
prio processo de construção do grupo. Tratava-se de um relacionamento
diferente do habitual, para as presas, com o conceito de regras. Até então,
as regras não se apresentavam a elas como um corpo orgânico, passível de
alterações em fluxo dinâmico a fim de atender às necessidades do grupo,
e que só teriam sentido se realmente fossem obedecidas não por medo de
punição, mas por serem essenciais ao pleno funcionamento dos ensaios.

O espetáculo foi visto por aproximadamente 1000 pessoas, dentre pre-


sas e público “de fora”, composto por muitas pessoas que entravam em um
presídio pela primeira vez, o que significava uma clara possibilidade de der-
rubada dos muitos muros que a sociedade erige em relação ao universo
penal.

Entretanto, a despeito de toda a repercussão obtida pelo trabalho, o pre-


sídio decidiu proibir as apresentações para o público externo, alegando im-
possibilidade do setor disciplinar em revistar com a devida qualidade todas
as pessoas que adentravam na unidade a cada apresentação.

A conclusão recaiu de forma drástica sobre o próprio trabalho, com a


decisão da FUNAP em retirar o projeto Teatro nas Prisões da Penitenciária
Feminina do Tatuapé, e representou um golpe muito duro para as participan-
tes do processo. De qualquer forma, a decisão repercutiu em instâncias mais

Dezembro 2005 - Nº 7 - 151 U


elevadas na hierarquia da Secretaria da Administração Penitenciária, que
derrubou a diretoria responsável pela saída do projeto da unidade, o que não
deixa de revelar a importância atribuída ao teatro por figuras importantes na
implantação de políticas públicas destinada a população encarcerada.

Muros

Resulta então que a mais recente incursão do Núcleo Panóptico de Te-


atro ganhou a possibilidade de trabalhar não mais submetida às regras das
unidades prisionais, mas fora delas. Desde março de 2004 o trabalho passou
a ser realizado com dez presos em regime semi-aberto e dez ex-presidiários,
além de um grupo de atores profissionais de diferentes formações.

O processo tomou como pontos de partida o conto O Muro, de Jean-Paul


Sartre e cenas de O Balcão, de Jean Genet, que se uniram ao trabalho de
criação dos atores e do encenador a fim de produzir um forte discurso cêni-
co cujo objetivo central era o de manifestar o valor da resistência diante da
opulência dos opressores e da necessidade de se construir um apelo con-
tra as formas de tortura, seja as que se encontram mascaradas em gestos
assistencialistas, seja nas suas formas escancaradas e humilhantes, como
agressões físicas e manifestações de força injustas, tão comuns no trato
com os indivíduos encarcerados

O conto de Sartre, O Muro, trata do tema, tão caro ao existencialismo, da


situação limite. Um grupo de revolucionários é torturado, das mais diversas
formas, a fim de que se revele o paradeiro do líder do movimento. Transplan-
tado para a nossa complexa realidade atual, quem seriam os revolucioná-
rios, quem seriam os torturadores?

Partindo destas indagações e realizando debates que acompanhavam


o processo de improvisações, que procurava estabelecer a aquisição dos
códigos e princípios da linguagem cênica e do trabalho de interpretação te-
atral, o grupo realizava instigante processo de elaboração de sentidos para
as ações e diálogos escritos no texto, que ganhavam novas possibilidades a
cada vez que iam para a cena.

Passaram pelo processo aproximadamente 50 pessoas, muitas das


quais acabaram abandonando o trabalho à medida que conseguiam
um emprego, ou simplesmente não se identificavam com a natureza
da prática teatral. Com os presos em regime semi-aberto, a situação fi-
cava bem mais complicada: suas vidas ainda estão submetidas à es-
trutura da prisão, e cada deslize por eles cometido, seja por chegarem
atrasados à unidade prisional, seja por tentarem entrar na unidade carre-

U 152 - Dezembro 2005 - Nº 7


gando qualquer produto que lhes é proibido portar, como peças de rou-
pa ou alimentos, eles eram automaticamente desligados do trabalho.

São pequenos deslizes que a prisão transforma em grandes delitos, so-


bretudo pelo motivo de que o indivíduo em regime semi-aberto vive metade
do tempo com a ilusão da liberdade, e briga por manter o máximo dela du-
rante o tempo em que ainda ficará atrás das grades, provocando confusões
por coisas que consideramos absolutamente banais, como o direito de levar
uma revista para o quarto (no caso deles, para a cela).

De qualquer forma, o trabalho obteve grande repercussão graças ao fato


de haver se transformado no último evento que possibilitaria ao público co-
nhecer parte da antiga Casa de Detenção, o Carandiru, o mais famoso dos
presídios, alçado a monumento da irresponsabilidade de nossos políticos
para com o tratamento do preso, quando cenário do famoso massacre em
que 111 homens foram assassinados pela tropa de choque da Polícia Militar,
sob ordem do então governador Luiz Antonio Fleury Filho, no fim de 1992.

As oito apresentações tiveram lotação esgotada e o Núcleo, que recebeu


o reconhecimento de instâncias públicas de financiamento, através da apro-
vação do trabalho do Núcleo Panóptico pela comissão da Lei de Fomento
ao Teatro para a Cidade de São Paulo, Lei 13.279-02 , seguiu apresentando
o espetáculo em diversos locais durante todo o ano de 2005. Além disso, a
continuidade do aperfeiçoamento dos artistas através de um novo processo
de trabalho teatral resultou na escolha do próximo trabalho do grupo, que op-
tou por se debruçar sobre o texto Marat-Sade, de Peter Weiss, com intenção
de estrear em meados de 2006, sob direção da atriz Lígia Borges, uma das
fundadoras do Núcleo.

Sentidos do teatro na prisão

Aparentemente, denominar uma proposta de trabalho em teatro e edu-


cação de “Projeto
Projeto de Montagem de Espetáculos” parece reduzi-la a um sim-
ples processo de encenação pouco interessante em termos pedagógicos:
aquele em que atores obedecem às marcações feitas por um diretor cuja
concepção nasce de sua “genialidade” e não da interação entre um processo
que englobe propostas trazidas por todos os artistas envolvidos.

Por outro lado, em um contexto em que as propostas envolvendo teatro


estavam dominadas por uma abordagem das técnicas de teatro do oprimi-
do que privilegiavam a utilização da cena como meio para transmissão de
conteúdos referentes aos temas colocados em discussão (DSTs e Direitos
Humanos), era importante deixar claro que a proposta de Jorge Spínola ex-

Dezembro 2005 - Nº 7 - 153 U


ploraria outros aspectos das práticas em teatro e educação.

A frente de “Montagem Espetáculos”, dentro do Projeto Teatro nas


Montagem de Espetáculos”
Prisões, conquistou portanto um espaço para novas possibilidades de tra-
jetória educacional, agora mais voltada para as relações entre a cena e as
possíveis repercussões e buscas de sentido para um processo artístico, ou
seja, fundamentado em princípios de liberdade de criação, e o regime puni-
tivo de privação de (justamente!) liberdade.

Este paradoxo, fundamental entre os muitos outros com os quais se lida


ao promover um exercício de criação teatral em uma prisão, está intrincado
no cerne de todas as atividades enquadradas nas propostas “reabilitadoras”
promovidas pelo presídio. Embora a maior parte dos esforços da instituição
penal esteja voltada para o controle da massa encarcerada e para o com-
bate a manifestações que abalem sua ordem interna, o discurso defendido
pela prisão é outro, o de que sua ação está voltada para a transformação do
infrator em cidadão responsável, mediante cumprimento da pena.

Sobre esta questão, Foucault, no célebre Vigiar e Punir (FOUCAULT,


2004) erige elaborada explanação, demonstrando que, paralelamente à con-
solidação da prisão como modelo punitivo que se sobressaiu no mundo dito
civilizado, organizaram-se uma série de saberes a partir de discursos pro-
duzidos pelas mais diversas ciências (a arquitetura, a psicologia, o direito, a
psiquiatria, a pedagogia, etc.). A soma desses discursos termina por elaborar
a Criminologia, responsável fundamental para a construção do conceito mo-
derno de delinqüência, que sobrepõe ao ato transgressor, portanto crimino-
so, o impulso transgressor, de tal forma que passa a se debruçar sobre o
indivíduo, agora envolvido em uma série de laudos, exames e testes que vão
ligá-lo eternamente a sua atitude penalizada.

Desta forma, não resta ao indivíduo penalizado, objeto da ação de todo


aparato técnico-científico elaborado pelo saber penitenciário, outra alterna-
tiva que não carregar eternamente o estigma de ter sido preso, e sua vida
será tolhida de toda sorte de possibilidades oferecidas aos “normais”, de tal
forma que não restem muitas alternativas que não o retorno ao mundo do cri-
me. É por essa razão que no Brasil os índices de reincidência penal chegam
ao número alarmante de 70%.

Diante de toda sorte de estereótipos sociais e de visões deformadas dos


indivíduos submetidos à prisão, o teatro promove, para além de todas as
questões relativas ao desenvolvimento do potencial artístico daqueles que
participam das atividades e se envolvem na construção do evento cênico, o
momento da troca entre espectadores e artistas, concentrados justamente

U 154 - Dezembro 2005 - Nº 7


no período curto de tempo em que o espetáculo é apresentado e submetido
ao aval da platéia.

Este momento, esperado ansiosamente durante todo o processo que


leva à construção do espetáculo, catalisa uma série de expectativas pro-
duzidas pelos dois lados que compõem o momento da troca: os atores pro-
curarão entregar o melhor de si e esperam que a platéia, por sua vez, saia
surpreendida e enriquecida por haver desfrutado do resultado cênico de toda
a experimentação que os atores vivenciaram a fim de chegar na encenação
final.

O projeto Teatro nas Prisões e o Núcleo Panóptico de Teatro defende-


ram, inicialmente de forma sutil, a partir de textos que criticavam a estruturas
que mantêm as desigualdades sociais de nosso país, e atualmente de forma
mais escancarada, ao fazer uso de um texto que revela as estruturas de
manutenção da ordem injusta que permanece embasando a política e manu-
tenção das mazelas nacionais, a possibilidade de realização de espetáculos
que construam notável qualidade artística e envolvimento real de todos os
participantes na produção de um discurso cênico que irradie questionamento
e sentidos diversos aos que tiverem possibilidade de apreciá-lo.

Para além do próprio processo teatral, e de todos os problemas que


envolvam a produção de uma encenação dentro de presídios, tendo na po-
pulação carcerária seus principais protagonistas, interessa ao Núcleo Pa-
nóptico o momento do encontro com o público, quando este, normalmente
surpreendido pelo poder transformador da arte, reage emocionado à quebra
da expectativa de assistir a um espetáculo com presos, e conhece uma face
que não costuma associar a esse universo: a beleza e prazer da fruição de
uma arte de resistência, que derruba preconceitos e constrói novas conota-
ções a essas vidas encarceradas.

No caso específico da atuação do Núcleo Panóptico, não é raro


que esta experiência ganhe outras conotações, uma vez que a pla-
téia está ciente de que o espetáculo presenciado é composto pelo tra-
balho artístico de um grupo de pessoas ao qual se prefere manter a
maior distância possível, uma vez que a segurança “aqui fora” pa-
rece ser proporcional ao número de pessoas trancadas “lá dentro”.

Dessa forma, não é exagero defender que os aplausos, muitas vezes,


não se dirigem apenas ao espetáculo, mas sobretudo ao fato de se pre-
senciar um exercício autêntico de possibilidades inesperadas, uma vez que
produzidas por prisioneiros, que durante algum tempo puderam habitar, no
espaço mágico do teatro, outros territórios que não os submundos ao qual

Dezembro 2005 - Nº 7 - 155 U


se convencionou a eles atribuir.

Notas__________________________________________
¹ A Lei de Fomento ao Teatro destina à produção teatral da cidade de São
Paulo 6 milhões de reais, distribuídos em dois processos de seleção reali-
zados no decorrer de cada ano. Os critérios de avaliação compreendem a
análise da importância de se viabilizarem propostas cênicas que não pre-
tendem se submeter a leis do mercado e que se preocupem em multiplicar
e difundir a arte teatral por toda a cidade.

Bibliografia____________________________________
COSTA, Maria Rita Freire. A Arte como Processo de Recriação em
Presídios. Catálogo do Projeto. São Paulo, 1983.
ESCOBAR, Ruth. Dossiê de uma Rebelião. São Paulo, Global, 1982
(Coleção Passado e Presente).
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São Paulo, Global, 1985.
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lis: Vozes, 2004.
FREIRE, Paulo e BETTO, Frei. Essa Escola Chamada Vida – Depoi-
mentos ao Repórter Ricardo Kotscho. São Paulo, Ática, 1986.
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SUASSUNA, Ariano. Valquíria e o Carandiru. Folha de São Paulo,
São Paulo, 13 jul. 1999. Caderno Ilustrada.

U 156 - Dezembro 2005 - Nº 7


Teatro na Escola: Espaciotempo do Pensamento
e da Sensibilidade
________________________________________________
Profa. Ms. Marli S. C. Sitta*
Profa. Dra. Graciela Ormezzano**
Profa. Ms. Cilene M. Potrich***

Considerações iniciais

Neste artigo pretendemos divulgar uma pesquisa cuja temática tratou


das significações emergentes de uma experiência estética realizada com
professoras de educação básica, visando contemplar a educação do sensí-
vel por meio de atividades teatrais com foco no desenvolvimento percepti-
vo.

Os objetivos do estudo foram compreender o significado da experiência


estética teatral no processo de ensino e de aprendizagem; promover e valo-
rizar um saber mais sensível na escola e perceber a contribuição dos jogos
e exercícios teatrais do Teatro do Oprimido de Augusto Boal (1998) para
as professoras participantes. O sentido de experiência estética teatral está
associado, neste trabalho, à capacidade sensível do ser humano de orga-
nizar os estímulos que lhe alcançam o corpo, para que ele sinta e perceba
a interdependência dos múltiplos aspectos inerentes à condição humana,
potencializando a vida.

Os referenciais teóricos permitiram agrupar idéias de vários autores, jun-


tamente com a proposta do Teatro do Oprimido de Augusto Boal (1998), que,
de algum modo, têm uma visão de inteireza em contrapartida à excessiva
fragmentação do conhecimento observada na escola.

Nesta investigação utilizamos uma metodologia de cunho fenomenoló-

* Marli S. C. Sitta, mestre em Educação (UPF), Coordenadora do Grupo Vi-


ramundos, professora da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul.
** Graciela Ormezzano, doutora em educação (PUCRGS), professora e
pesquisadora do curso de Educação Artística e do Programa de Pós-Gradu-
ação em Educação – UPF.
*** Cilene M. Potrich, mestre em Educação (PUCRGS), professora do curso
de Educação Artística:Artes Plásticas, Pedagogia e Publicidade e Propagan-
da – UPF.
Dezembro 2005 - Nº 7 - 157 U
gico, desenvolvida conforme os passos propostos por Giorgi e Comiotto, ci-
tados por Ormezzano e Torres (2002). A compreensão fenomenológica das
entrevistas, por sua vez, permitiu descrever e interpretar as essências e as
respectivas dimensões emergidas do fenômeno em estudo. O campo de
ação foi a Escola Estadual de Ensino Médio Amantino Vieira Hoffmann, na
cidade de André da Rocha, Rio Grande do Sul. As entrevistadas foram dez
professoras de diversas áreas do conhecimento, todas da escola pública
mencionada, atuando da educação infantil ao ensino médio, que participa-
ram de sete encontros, totalizando quarenta horas/aula.

As atividades foram desenvolvidas seguindo os passos: aquecimento,


desenvolvimento e encerramento (ORMEZZANO, TORRES, 2003). A cada
encontro eram definidos pelas participantes o tema e os objetivos do encon-
tro seguinte, de acordo com os quais eram planejados os exercícios e os
jogos teatrais do Teatro do Oprimido de Augusto Boal (1998) a serem traba-
lhados, conforme as cinco categorias: I- Sentir tudo que se toca; II- Escutar
tudo que se ouve; III- Ativar os vários sentidos; IV- Ver tudo que se olha; V-
A memória dos sentidos. Esses jogos e exercícios foram explorados coleti-
vamente e estiveram vinculados ao desenvolvimento dos sentidos corporais.
Neles, o autor mencionado mostra o teatro como uma linguagem, dentre
outras linguagens possíveis, capaz de criar caminhos por meio dos quais as
pessoas possam amenizar algumas respostas de impulsos mecânicos que
privam o corpo de atuações mais originais, criativas e espontâneas. Nesse
sentido, comenta: “Nós respiramos com o corpo todo: com os braços, com
as pernas, os pés, mesmo que os pulmões e o aparelho respiratório tenham
uma importância prioritária no processo. Nós cantamos com o corpo todo
[...]. Fazemos amor com o corpo inteiro [...]” (BOAL, 1998: 88).

Ao final dos sete encontros, as dez professoras responderam à questão:


“O que significou para você esta experiência de educação estética teatral?”
A entrevista foi gravada, transcrita e compreendida por meio do método fe-
nomenológico, citado por Ormezzano e Torres (2003). Foi necessário colo-
car em suspensão alguns preconceitos ou julgamentos prévios e permane-
cer fiel ao sentido das informações trazidas pelas participantes, permitindo
o fenômeno emergir espontaneamente e do qual surgiram três essências,
compostas pelos achados das dimensões fenomenológicas.

Visando descrever e interpretar as essências emergentes, não explicá-


las, apresentamos cada uma delas buscando pontos de aproximação com a
educação do sensível. A primeira essência fala sobre o sentido da educa-
ção considerando os cinco sentidos; a segunda, refere-se à estética como
um modo de pensar, sentir e experimentar; a terceira focaliza o processo de
humanizar e socializar a escola.

U 158 - Dezembro 2005 - Nº 7


O sentido da educação em todos os sentidos

Nesta essência as entrevistadas manifestaram terem se sentido apoia-


das, estimuladas e valorizadas através das experiências teatrais. Conside-
raram que foi possível realizar uma ressignificação do seu fazer pedagógico
porque refletiram sobre sua prática em sala de aula. A reflexão e os exercí-
cios permitiram-lhes descobrir suas limitações, mas também suas habilida-
des, o que lhes trouxe maior autoconfiança para o exercício da profissão de
educadoras, ou seja, proporcionando-lhes conhecimentos mais significati-
vos, mais aproximados do seu cotidiano e do da escola, capazes de aproxi-
má-las da história e dos bens culturais da sociedade.

Na dimensão de valorização profissional e auto-estima as participan-


tes puderam realizar uma espécie de “revisão profissional” que evidenciou
possibilidades e perspectivas de futuras reformulações em seu fazer peda-
gógico. Perceberam que a prática e os conhecimentos organizados podem
determinar uma ação consciente e de qualidade, podendo, assim, resultar
em grande contribuição para uma cultura mais autêntica e uma educação
mais prazerosa. Alguns desses aspectos foram observados nas falas das
participantes, como ouvimos de M.C.:

Sempre se exigiu de nós, temos todo um processo de história


em cima, principalmente política, que devemos ter o mesmo pas-
so. Só se consegue o mesmo objetivo se todos caminharmos na
mesma direção. E não é assim, acho que tinha que se valorizar
mais, criar esse espaço interno, do eu, pra minha educação, eu
me dar esse espaço e que os outros me permitam ter esse espa-
ço, eu tenho que lutar pra que os outros me permitam esse espa-
ço. Afinal eu me preparei para isso e este espaço é meu! Então,
valeu a pena ter participado dos encontros, percebi que gosto das
coisas que faço, e gosto de mim (risos).

No depoimento de M.C., é possível perceber que ela possui boa auto-es-


tima, porém admite que, para ser valorizada, necessita ter uma postura bem
determinada, lutar, resistir, mostrar seu valor e também ter conhecimento
sobre a história da educação para saber de onde vêm alguns (pré)conceitos
hoje inseridos na sua profissão e também no próprio caráter. Barbosa (2001)
aponta que a falta de conhecimento sobre o passado está levando os edu-
cadores e as educadoras do Brasil a valorizarem excessivamente a novi-
dade, numa atitude que vem contribuindo para uma espécie de fazer sem
propósito determinado, ou seja, um fazer sem que haja um cuidado com sua
inter-realização ou com a elaboração cuidadosa de objetivos nas atividades

Dezembro 2005 - Nº 7 - 159 U


realizadas em sala de aula.

As transformações do educador aparecem a partir do discurso das en-


trevistadas, como fala S.J.:

[...] brincando, jogando e me expondo saí mais enriquecida dos


encontros. Pude perceber algumas de minhas falhas. Hoje vejo
as coisas de outra forma, fazendo com que o meu trabalho no dia-
a-dia fique melhor. Algumas vezes eu colocava barreiras para me
proteger como se o mundo fosse só meu, mas percebi que não
é, que só se tem um mundo porque se convive com os outros e a
construção dele depende de todos.

Transformar, em muitos aspectos da vida humana, significa caminhar


para o “novo”; permite várias direções, tanto fáceis quanto difíceis, porém
sempre desafiadoras. Ao educar, para a transformação, é necessário refletir,
também, sobre os limites humanos dos educadores e sobre a necessidade
de serem colocadas em estado de suspensão algumas concepções já enrai-
zadas que ficam atravancando o trânsito das idéias, ou seja, é preciso que
os educadores se dispam dos pensamentos predeterminados e, parafrase-
ando Alves (2003), permitam-se pensar sobre as próprias idéias e as da
comunidade escolar de sua inserção.

Esta essência revela os conteúdos mais significativos em busca de no-


vos desafios e relaciona a procura constante das educadoras por dar sentido
às suas ações pedagógicas. Tal procura foca a sensibilidade e a humani-
zação, que podem construir seres humanos para um pensamento criativo.
Como aponta Meira (2003), direcionar a educação para o olhar sensível,
num mundo onde o cálculo da máquina define os ritmos numa velocidade
que ultrapassa toda reflexão, exige dos educadores em geral entrelaçar vá-
rios aspectos do saber tidos como “não sérios” em termos de ciência, como
os conhecimentos artísticos e os conhecimentos culturais.

Nesse sentido, para D.C., é fundamental saber o que se passa com


aquele ser humano que está na sala de aula:

Em primeiro lugar, é preciso conhecer a realidade do aluno.


Saber dessa realidade se torna a aprendizagem mais abrangente
e mais próxima do grupo, porque a aprendizagem só acontece
se houver uma aproximação entre as pessoas envolvidas nesse
processo. [...] tem muita coisa que é imposta na educação e que é
difícil mudar, então é melhor buscar significados para que o aluno
goste daquele conteúdo.

U 160 - Dezembro 2005 - Nº 7


O dito por D.C. vai ao encontro do escrito por Maffesoli (1996: 60): “Ao
se prender, de maneira crispada, ao instituído não se pode ou não se quer
apreciar a vida em seu estado nascente”. Assim, é possível entender a ne-
cessidade de ressignificação das atitudes do educador para uma prática que
reordene e reavalie permanentemente suas ações em prol da autonomia.
O estético: um modo de pensar, sentir e experimentar

Esta essência se configurou quando as entrevistadas manifestaram a


necessidade de uma prática pedagógica mediada, simultaneamente, pela
teoria e pela prática, pela razão e pela emoção, pelo sentir e pelo pensar,
ou seja, de um fazer pedagógico que não apenas faça, mas que também dê
sentido à educação.

De fato, os educadores, em sua maioria, estão conscientes da importân-


cia da linguagem afetiva, pela qual as idéias provoquem emoções e sensa-
ções para que a aprendizagem aconteça de forma efetiva e significativa. De
acordo com Meira (2003), a educação estética é capaz de mediar a teoria e
a prática, o inteligível e o sensível, e chega a nós por meio dos sentidos, dos
sentimentos e da linguagem do afeto. O pensamento estético tem uma com-
preensão, ao mesmo tempo, universal e subjetiva, visto que implica uma res-
posta que qualquer pessoa pode experimentar a partir de suas emoções.

Foi possível considerar uma pedagogia do corpo quando as participantes


apontaram para a necessidade de resgatar a educação do processo massifi-
cante em que muitas vezes está imersa e colocá-la numa relação abrangen-
te, interativa, ou seja, que não restrinja a atuação do educando ao esque-
ma mecanicista estímulo-resposta, que não desconsidere o corpo desse ser
em processo educativo, reduzindo-o à condição de uma dimensão humana
“sem prestígio” na escola. Na visão de Duarte Júnior (2001:125),“[...] grande
parte de nosso agir cotidiano fundamenta-se nesse saber corporal básico,
primitivo em sua origem, mas com enorme potencial para ser desenvolvido e
lapidado, ou seja, educado”.

Segundo B.A., as experiências estéticas mostraram-lhe uma nova ma-


neira de ministrar as aulas: “Sabe, aquela atividade que a gente propõe para
o aluno: senta e faz o que o professor está propondo! Ela pode ser feita de
outra maneira usando o corpo. Ele vai se ‘soltar’ e aprende com maior fa-
cilidade”. Esta entrevistada percebeu que a expressão corporal realizada
através dos exercícios teatrais pode deixar o aluno agir de forma mais livre
e espontânea, ficando mais receptivo; portanto, aprendendo de forma mais
significativa.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 161 U


Ao falar sobre a alegria de educar por meio do teatro as entrevistadas
consideraram que vêem nas artes cênicas uma possibilidade importante de
tornar a aprendizagem, além de mais alegre e prazerosa, reveladora de pen-
samentos e sentimentos. Suas falas apontam, de certa forma, tanto para o
sentido subjetivo como para o significado social do teatro, excelente veículo
de inclusão. Isso é possível perceber nas palavras de M.S.:

[...] o teatro pode auxiliar numa aprendizagem mais eficaz. Acre-


dito que cada vez mais os professores precisam incorporar essa
magia do teatro dentro da sua sala de aula, porque o teatro deixa
o ambiente alegre, desperta a curiosidade nos alunos, faz eles
participarem e ter vontade de realizar o trabalho. Porém, os alu-
nos só vão participar e fazer se eles virem antes o prazer no pro-
fessor. O professor deve participar das atividades teatrais junto
com o aluno para incentivá-lo.

As atividades e os jogos teatrais podem ser mediadores da vida real do


aluno para a vivência estética do imaginário, constituindo-se numa fonte pre-
ciosa de maturação e desenvolvimento do cérebro humano e, também, num
exercício de “treinamento” de futuros papéis que poderá vir a exercer. Na
perspectiva de Duarte Júnior (2001: 135), “[...] a ficção, a imaginação daquilo
que ainda não é, mas poderia ser, consiste, pois, numa das mais eficazes
ferramentas de que dispõe a humanidade para a criação do saber”.

Nesta essência aparece também a relação espaço-tempo no processo


de aprendizagem, como é possível observar nas considerações de E.X.:

[...] faltam tempo e espaço para atividades de reflexão sobre a


gente mesmo e nossas ações. Geralmente, esse tempo e espaço
são usados para discussões de conteúdos a serem dados aos
alunos: faça assim, faça assado. Nós somos humanos, todo o dia
a gente acerta e a gente erra, mas eu nunca tive, nos vinte anos
que sou professora, momentos para ver esses pontos. Eu nunca
fiz isso, mas agora, com esses encontros eu pude refletir.

No depoimento de E.X. fica evidenciada a importância de espaços nos


quais, por meio de uma linguagem clara e simples, possam abrir-se indaga-
ções que encaminhem às suas próprias reflexões. Para Mèlich (1994), o ser
humano não se limita a adaptar-se ao meio, nem simplesmente a transfor-
má-lo. Por ser humano, quer dar sentido ao meio em que vive e, então, ao
atribuir-lhe significação, rompendo a temporalidade.

U 162 - Dezembro 2005 - Nº 7


O processo de humanizar e socializar a escola

Na última essência as entrevistadas evidenciam a presença do outro e


afirmam que a educação vai dividindo, para não dizer esfacelando, os sujei-
tos que dela participam. Falta também a conexão entre os conhecimentos
curriculares já programados com a vida do educando.

A alteridade na educação aparece como uma dimensão dessa essência


quando as entrevistadas reconhecem um outro que emerge e afeta ou altera
o modo de ser e atuar das pessoas em contato com este outro. Segundo
Maffesoli (1996), a alteridade permite que os seres humanos se reconheçam
em outrem a partir de outrem (um outro enquanto qualquer outro, podendo
ser um objeto, por exemplo). Então, é possível dizer que a alteridade propõe
multiplicações do eu e que, ao nos colocarmos no papel de outros, podemos
entender melhor a importância das nossas emoções e ações e também das
alheias. D.C. considerou que, ao refletir sobre ela mesma, pôde aproximar-
se com maior facilidade dos seus alunos. Declarou textualmente:

Eu consegui trabalhar com aquelas dificuldades que os alunos


têm por causa de sua história particular. Entendo que às vezes
a gente trata o “outro” de maneiras diferentes, achando que este
“outro” tem que fazer a coisa do jeito que a gente quer. Mas quan-
do a gente se põe no lugar dele é diferente. Consegui me colocar
no lugar do “outro”, ou seja, do meu aluno, e bastante! Assim,
o grupo se uniu mais. Com as atividades pude refletir sobre os
meus alunos e sobre mim mesma.

A esse respeito, Merleau-Ponty (1999: 54) aponta que “[...] é na dor do


outro que posso reconhecer a minha própria dor; é no azul do outro que
posso reconhecer meus próprios azuis; é na dúvida do outro que reconheço
minhas próprias dúvidas”. No entanto, é exatamente aí que educandos e
educadores podem reconhecer a si próprios e permitir-se ver os outros como
eles são, num convite a melhores maneiras de ser e de agir, interferindo na
realidade da qual fazem parte.

As entrevistadas apontam para os paradigmas educacionais emergen-


tes quando abordam a visão de totalidade típica da arte, neste caso, do
teatro. De acordo com essa visão, os problemas atuais no âmbito educa-
cional não podem ser abordados isoladamente dos demais problemas que
afetam o mundo. Assim, por exemplo, B.A. comentou: “Percebi meu aluno
na totalidade enquanto realizava as atividades. Ele usava o corpo todo, se
soltava mais, se percebia melhor, sentindo a presença dos outros colegas e

Dezembro 2005 - Nº 7 - 163 U


do professor, integrava-se melhor ao seu ambiente. Isso fazia bem a ele e a
mim também.” Esta entrevistada referiu ainda que, por meio das atividades
teatrais pôde ter uma sensação de inteireza, de integralidade, o que a fez
ampliar sua percepção, confirmando, assim, o caráter participativo e envol-
vente do teatro. Concordamos com Capra (1996), quando diz que os pro-
blemas educacionais são sistêmicos, ou seja, estão dentro de um contexto e
dizem respeito ao mundo todo, não apenas às partes que estão diretamente
ligadas a um problema específico.

Outra dimensão presente nesta essência é a que se refere à utopia de-


sejável e ao sonho aparecendo nas palavras de M.Z.:

É isso que me move: a busca para ser a cada dia um pouco me-
lhor, como pessoa e como profissional e os encontros me moti-
varam para ir em frente e lutar por aquilo que acredito. Senti-me
amparada, apoiada e estimulada. Sou movida a estímulos. Como
é bom ouvir pessoas que digam que vale a pena lutar pela educa-
ção. Eu acredito muito no poder que a educação tem para mudar
e transformar as pessoas e a sociedade.

Na fala desta entrevistada é possível perceber um comprometimento


marcante. Paulo Freire (2000) aponta que uma educação progressista ja-
mais pode, em nome da ordem e da disciplina, castrar a altivez tanto do
educando quanto do educador. Ao contrário, pode incentivar educandos e
educadores a se moverem no sentido de aproveitar toda oportunidade para
testemunhar o compromisso deles com a realização de um mundo melhor.

Considerações finais

Pelo evidenciado nesta investigação, os jogos e exercícios teatrais do


Teatro do Oprimido de Augusto Boal (1998) mostraram-se eficientes no de-
senvolvimento de estratégias possíveis para enfrentar as incertezas que cer-
ceiam nossa realidade educacional.

A experiência estética teatral depende de um aprendizado e, à medida


que os códigos estéticos forem familiares a quem a eles estiver exposto, não
como um adereço ou divertimento, mas como parte fundamental e essencial
da realidade, a própria maneira de sentir irá se refinando, tornando as pes-
soas mais sensíveis às sutilezas da vida, aos meandros do mundo interior
e exterior. Assim, será intensificada a percepção do estar no mundo, do co-
nhecer, reconhecendo que somos sujeitos inalienáveis, únicos e capazes,
possuidores de um saber corporal fundador de todos os demais saberes, por
mais abstratos que sejam, permitindo o nosso processo de reflexão.

U 164 - Dezembro 2005 - Nº 7


Ao final dos encontros foi possível perceber que as participantes apon-
tavam para significativos caminhos de reorganização do seu papel como
educadoras na construção de um saber sensível e inteligível, visto que o
teatro é capaz de dar sua contribuição ao considerar o ser humano em sua
multidimensionalidade.

Portanto, com esta investigação, pensamos ter conseguido ampliar o


papel do teatro e seus objetivos na educação básica, para tornar educadores
de diversas áreas mais conscientes do seu compromisso social e mais sen-
síveis não somente às suas dimensões corporal e psíquica, mas também ao
reconhecimento da corporeidade de seus educandos. Reconhecendo pro-
fessores, alunos, funcionários e pais como integrantes do grande sistema da
escola, instituição inserida numa cultura, numa sociedade e num ambiente
natural. A vida da comunidade escolar, compreendida em termos de redes
humanas, cria pensamentos e significados que podem originar novas formas
comunicacionais.

Notas__________________________________________
Deficiência mental é um funcionamento intelectual geral significativamente
abaixo da média, oriunda do período de desenvolvimento, concomitantemen-
te associadas a duas ou mais áreas da conduta adaptativa ou da capacidade
do individuo em responder as demandas da sociedade, nos seguintes as-
pectos: comunicação; cuidados pessoais; habilidades sociais; desempenho
na família e sociedade; independência na locomoção; saúde e segurança;
desempenho escolar; lazer e trabalho. (BRASIL, 1998)

Dados atualizados através do portal eletrônico do Ministério da Educação


http://portal.mec.gov.br/seesp/index.php?option=content&task=view&id=110

Conferência Mundial de Educação Especial com delegados representantes


de 88 países e 25 organizações internacionais se reuniram em Salamanca
na Espanha de 7 a 10 de junho de 1994 e resultou em uma declaração que
focaliza os governos e organizações a reconhecerem a necessidade urgente
de possibilitar que crianças, jovens e adultos portadores de necessidades
especiais possam freqüentar as instituições regulares de ensino transforma-
das em instituições modernas e inclusivas.

ZDP – Zona de Desenvolvimento Proximal é um dos conceitos mais impor-


tantes de Vygotsky. Para ele o indivíduo possui, além do desenvolvimento
real, ou seja, aquilo que ele pode realizar sozinho, um estágio de desenvol-
vimento intermediário, chamado de proximal ou potencial, correspondente
Dezembro 2005 - Nº 7 - 165 U
ao que o indivíduo pode realizar com a ajuda do facilitador ou do grupo. Para
mais ver Vygostky 1998.

Ver Zipes 1997 para mais informação sobre Disney e industria cultural.

Habitus conceituado por Bourdieu (1979) como um conjunto de ações ide-


ológicas inconscientes, determinações sociais, sistema de disposição e de
percepção, “estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estru-
turas estruturantes”, com poder para programar a produção, circulação e o
consumo dos indivíduos e classes. Um conceito com potencialidade para
possibilitar a observação e identificação das forças ideológicas hegemôni-
cas ligadas aos interesses sutis dominantes. Para uma interessante análi-
se prática deste conceito ligada ao contexto latino americano ver Canclini
1995:62;79-80.

Bibliografia____________________________________

ALVES, Rubem. Alegria de ensinar. Campinas. 7.ed. Campinas: Pa-


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dias: duas visões em arte e educação. 2.ed. São Miguel do Oeste:
Arco Íris/Unoesc, 2003.

U 166 - Dezembro 2005 - Nº 7


Caminhos do Teatro Infanto-Juvenil
________________________________________________
Cibele Troyano *

O ano de 1948 pode ser considerado como um marco na história do te-


atro infanto-juvenil brasileiro. Até então o teatro para crianças, a despeito de
contar com autores da envergadura de Olavo Bilac, por exemplo, obedecia a
propósitos estritamente didáticos e moralistas.

A montagem de O Casaco Encantado, de Lucia Benedetti, com produção


de Paschoal Carlos Magno e um elenco que contava com atores profissio-
nais de renome, como Henriette Morineau, inaugura, por assim dizer, a nova
modalidade teatral. Seus princípios eram idênticos aos que nortearam os
fundadores do moderno teatro brasileiro: ampliar as platéias, proporcionan-
do-lhes uma verdadeira experiência estética e assim socializar a cultura.

Sucederam-se, ao longo da década de 50, encenações de diversas pe-


ças infanto-juvenis que, além do sucesso junto ao público, passaram a me-
recer a atenção dos mais respeitados críticos de teatro da época, tais como
Décio de Almeida Prado, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira,
Barbara Heliodora,Yan Michalski e Paulo Francis.

Se em seu percurso o teatro infantil, seja por razões políticas ou de mer-


cado, distanciou-se da vocação estética que motivou a geração dos anos 50,
é necessário ressaltar que houve, por outro lado, um importante avanço em
sua dramaturgia.

Dentre os responsáveis por este avanço está o autor e encenador pau-


lista Vladimir Capella.

Capella inicia sua carreira em 1978. Desde então, tem sistematicamente


encenado seus textos que, apesar do reconhecimento da crítica especializa-
da, ainda não obtiveram a devida atenção por parte de estudiosos e pesqui-
sadores.

Sua obra foi objeto de minha dissertação de mestrado: O enigma da


* Cibele Troyano, atriz e socióloga, mestre em teatro e educaçãopela na
ECA-USP.
Dezembro 2005 - Nº 7 - 167 U
morte no teatro de Vladimir Capella¹

A análise de sua obra traz à tona umas das mais polêmicas questões
que o teatro infantil suscita: sua especificidade ou não enquanto modalidade
artística.

A controvertida discussão divide as opiniões. De um lado estão os que, con-


trários a qualquer distinção entre teatro adulto e teatro infantil, argumentam
que demarcar aprioristicamente fronteiras etárias para o teatro implica em
acentuar a desigualdade entre o emissor da mensagem (sempre um adulto)
e o receptor (a criança). Esta prática tem como conseqüência a produção
de textos de qualidade artística duvidosa, seja por seu caráter didático e
moralista, seja por sua deliberada simplificação estética.

Dentre os representantes desta corrente está Maria Lúcia de Souza Bar-


ros Pupo. Suas idéias estão expostas no livro No reino da desigualdade,
publicado em 1991 pela editora Perspectiva.

De outro lado, encontram-se os que defendem a especificidade do teatro


infantil. Segundo estes, o teatro para crianças teve início em 1948, e desen-
volveu ao longo de sua história uma poética própria, que apresenta certa
independência em relação ao teatro adulto.

Nas páginas de Maria Clara Machado, de Claudia de Arruda Campos,


publicado pela EDUSP em 1998, pode-se encontrar uma detalhada defesa
destas idéias.

A irresolvida discussão ganha novos contornos a partir do trabalho de-


senvolvido por Vladimir Capella. Um breve panorama de sua dramaturgia
será aqui traçado, com o intuito de mostrar em que medida isto acontece.

O texto de estréia de Capella, escrito em parceria com José Geraldo Ro-


cha, Panos e Lendas, é um espetáculo musical, cuja dramaturgia tem como
princípios a dessacralização do texto, a quebra da quarta parede e do palco
italiano, o predomínio do elemento lúdico e a explicitação das convenções
teatrais, premissas que caracterizaram o teatro dos anos 60 e 70.

Com um cenário flexível e um figurino que se transforma às vistas da


platéia, a peça conta a história do mundo, conforme a mitologia indígena.
O texto trata do ciclo da vida, através de dois personagens centrais, o índio
Caru e seu filho Rairu.

Com as inúmeras canções que compôs especialmente para o espetá-

U 168 - Dezembro 2005 - Nº 7


culo, Vladimir Capella recebeu, por Panos e Lendas, um Molière, o mais im-
portante prêmio então conferido ao teatro. Premissas estéticas semelhantes
foram aplicadas em Avoar, texto escrito em 1980 e encenado em 1985.

A peça trata das perdas decorrentes da vida nas grandes metrópoles.


Avoar é um texto composto quase que exclusivamente por canções folcló-
ricas, parlendas e brincadeiras. Sua originalidade consiste na escolha e no
encadeamento das cantigas e dos brinquedos em torno de um conflito cen-
tral: como trazer de volta à cidade cinzenta uma lua, uma palmeira e uma
canção. Após uma longa viagem em busca destes elementos, o conflito é
solucionado através da arte: ao entoarem a canção que dá nome à peça,
os personagens trazem a lua de volta, que chega acompanhada por um céu
estrelado.

Como a Lua, escrita e encenada em 1981, apresenta a primeira perso-


nagem capelliana: Payá, um índio que nasce predestinado a sofrer por amor.
Desesperado por ter sido abandonado pela amada, ele morre de tristeza,
despertando a compaixão do deus Rudá, que lhe permite dormir por cem
anos. Passado este tempo, Payá ressurge em meio a um centro urbano, na
figura de um palhaço.

Os recursos utilizados por Vladimir para falar à criança sobre a dor pro-
vocada por um amor não correspondido abrem novos caminhos para sua
então nascente dramaturgia.

A solução encontrada foi a de mostrar o drama de Payá em um plano


mítico, ocorrido em um tempo distante - o princípio do mundo - e entremeá-
lo com cenas urbanas, protagonizadas por crianças contemporâneas. Estas,
com suas dúvidas e inquietações em relação ao amor, ao nascimento e à
morte, traçam um paralelo entre ambos os tempos da ficção, estabelecendo
uma dialética entre os conflitos de Payá e os seus próprios.

A quebra das dimensões convencionais de tempo e de espaço é radica-


lizada em Antes de ir ao Baile, encenada em 1986. Desta vez, passado, pre-
sente e futuro são tratados aleatoriamente no transcurso da peça, até serem
mostrados de forma simultânea na cena final, em que se dá o encontro de
quatro velhos com sua infância e de quatro crianças com sua velhice.

A história de quatro velhos, que viajam em direção à morte num pequeno


barco azul, é alternada com a de quatro crianças em busca de aventuras.
Entre ambas as histórias, um professor de artes é constantemente men-
cionado pelas crianças, que se inquietam com as questões que ele suscita
sobre a vida, a morte, o futuro.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 169 U


Por fim, ocorre o inusitado encontro entre os velhos e as crianças. Conver-
sam, trocam afetos e objetos, compõem uma canção. As crianças então se
despedem e assumem o lugar dos velhos no barco, rumando para o desco-
nhecido.

Em Antes de ir ao Baile não há protagonistas. As personagens são mos-


tradas menos por sua história do que por algumas lembranças e projeções
que têm dela. Não há um conflito dramático explícito. Há uma única canção,
apresentada em diversos momentos da peça com diferentes arranjos mu-
sicais, que funciona como um leitmotiv, prática inédita até então no teatro
infantil.

Pode se dizer que Como a Lua e Antes de ir ao Baile modificaram a


história do teatro infanto-juvenil, tanto por sua ousada construção dramatúr-
gica, como pela abordagem de temas nem sempre considerados afeitos às
crianças, como o desejo, a paixão, a velhice e a morte.

Prosseguindo em sua pesquisa, Capella, ainda na década de 80, redes-


cobre os contos de fadas, sob a ótica de Bruno Bettelheim.

Em seu, hoje clássico, Psicanálise dos contos de fadas², o psiquiatra


austríaco Bruno Bettelheim analisa os mais populares contos de fadas, dis-
cutindo suas repercussões na psiquê da criança.

Bettelheim trouxe uma preciosa contribuição para toda uma geração que
lutara por transformar os paradigmas da Educação, ao argumentar que os
contos de fadas são fundamentais na formação psíquica de qualquer crian-
ça, que neles encontra os significados profundos de sua própria existência. A
criança, através desses contos, segundo ele, é capaz de elaborar questões
complexas como a morte, o envelhecimento, as dores, as paixões e os me-
dos e assim enfrentar seus próprios conflitos.

Influenciado por estas idéias, Capella adapta a história de Cinderela. E


desde logo, o faz de uma maneira singular: a matriz escolhida é a versão
recolhida em Sergipe por Silvio Romero, Maria Borralheira.

Ainda que baseado na matriz bettelheimiana, Capella transcende as


prerrogativas estritamente pedagógicas que o autor atribui aos contos de
fadas, construindo personagens isentos de quaisquer maniqueísmos, com
traços psicológicos e conflitos interiores bastante desenvolvidos, dotando o
texto de múltiplas leituras.

Maria Borralheira aborda os mesmos temas que até então caracteriza-

U 170 - Dezembro 2005 - Nº 7


ram a dramaturgia de Vladimir Capella. Entretanto, o conto de fadas tornou
possível mostrar questões como a sexualidade e a morte de forma mais ex-
plícita.

Assim por exemplo, a peça tem início com um solene funeral, mostrando
a morte da mãe de Borralheira. Em determinado momento, aparece em cena
o corpo morto da vaquinha Lua, amiga da protagonista, e assassinada pela
madrasta. O príncipe Bernardo apaixona-se por Maria Borralheira, ao vê-la
banhando-se nua em uma cachoeira.

Talvez por se tratar de um conto de fadas, a peça é construída com maior


linearidade que as anteriores (apesar de conter uma cena de flash back) e
requer cenários e figurinos mais suntuosos. O espetáculo se aproxima das
grandes encenações que tomaram os palcos durante a segunda metade dos
anos 80.

As montagens subseqüentes de Vladimir Capella mantêm o caráter gran-


dioso inaugurado com Maria Borralheira, com exceção de O Dia de Alan, a
peça que a sucedeu.

Neste texto, escrito em 1988, Vladimir fez a experiência de aplicar a es-


trutura do conto de fadas numa história realista e contemporânea. Alan é um
menino pobre, que convive com o preconceito de seus colegas de escola.
A dor pela morte da professora de artes, com a qual mantinha uma relação
maravilhosa, conduz o protagonista a enfrentar a estrutura escolar, que tudo
faz para o excluir. Um boneco que tinha sido criado por ele na aula de artes
e que fora destruído pelos colegas, ressurge como um super herói e o auxi-
lia a dominar a classe e a expor seu desejo de ser respeitado. Durante seu
discurso, Alan despe-se diante de todos que, sensibilizados, colocam sobre
ele um manto e uma coroa e o proclamam rei.

A opção de Capella de colocar Alan completamente despido, na cena


final da peça, fez com que o espetáculo não fosse bem aceito pelas escolas,
limitando assim a temporada do espetáculo que, entretanto, foi muito bem
aceito pela crítica.

Um novo caminho da dramaturgia de Vladimir Capella é aberto com uma


pesquisa em torno da mitologia grega. O resultado foi o texto Píramo e Tis-
be, escrito e encenado em 1990. A história do amor impossível dos jovens
Píramo e Tisbe é construída pouco a pouco ao longo do texto, que se inicia
com o mito grego da criação. A tragédia do casal de amantes é precedida por
uma série de histórias de amor igualmente trágicas, como a de Eco e Narciso
e a de Orfeu e Eurídice, que preparam o público para acompanhar o triste

Dezembro 2005 - Nº 7 - 171 U


destino dos jovens protagonistas.

Provavelmente pela riqueza do material pesquisado por Capella, o texto


resultou mais longo do que os que o antecederam. Os discursos de todas as
personagens colocados na segunda pessoa e seu vocabulário mais rebus-
cado foram recursos indispensáveis para que o autor obtivesse da platéia
a emoção pretendida. Por estas razões, Píramo e Tisbe resultou um es-
petáculo menos acessível às crianças pequenas. Guardadas as ressalvas
ao termo, que reascende a velha polêmica, a peça poderia ser classificada
como “teatro jovem”, modalidade inaugurada há cerca de 10 anos, com pre-
miações e verbas próprias.

Aliás, já em 1984, Vladimir havia encenado Filme Triste, seu único texto
apresentado como “teatro adulto”, sobre a vida da juventude dos anos 60.
Por tratar de temas políticos e históricos menos próximos do mundo infantil,
a peça pode ter sido uma das precursoras deste mesmo “teatro jovem”.

Em 1992, ocorre a primeira adaptação literária. Por encomenda de um


produtor, Capella escreve O Saci, a partir do livro de Monteiro Lobato, au-
tor que curiosamente não conhecera na infância. O encontro, segundo um
depoimento de Vladimir, fez com que ele tomasse mais consciência de seu
próprio trabalho e compreendesse melhor toda a literatura infanto-juvenil
contemporânea: “Fiquei deslumbrado como quando se acha a fonte, o nas-
cedouro de uma grande cachoeira”.

Na adaptação do conto, pode-se identificar os temas recorrentes na


dramaturgia capelliana: os medos, a morte, a descoberta da sexualidade:
Pedrinho quer descobrir os segredos da mata. Escraviza o Saci e empreen-
de com ele uma aventura para salvar Narizinho, raptada pela Cuca. Nesta
empreitada, conhece alguns mistérios da vida, como desejo e a paixão, que
experimenta ao admirar a Iara banhando-se desnuda.

No final da aventura, Pedrinho sai vitorioso, libertando a prima. É acla-


mado como um herói. Ao ser interrogado sobre a Iara, ele não revela que a
conhecera. O menino transformara-se. Descobrira os segredos do amor.
As lendas brasileiras são retomadas, agora focalizando as principais per-
sonagens deste universo: A Iara, o boitatá, o curupira, etc. A música, como
sempre, exerce um papel fundamental, destacando-se uma gravação exclu-
siva da Bachiana número 5, de Vila Lobos, por Vânia Bastos, utilizada como
“o canto da Iara” para seduzir Pedrinho.

A aproximação entre a dramaturgia de Capella e a literatura infanto-juve-


nil gerou quatro textos, escritos entre 1996 e 2001, nos quais são abordadas

U 172 - Dezembro 2005 - Nº 7


não só as obras, mas as próprias biografias de seus autores. A novidade
trazida por Capella nestes textos é a de transformar em personagens os au-
tores focalizados, inseri-los nos seus próprios universos ficcionais e, através
deste recurso, discutir o próprio fazer artístico.

O papel da arte e da criação artística, sempre presentes na dramaturgia


de Vladimir Capella, ganha destaque neste grupo de textos.³

O Homem das Galochas, sobre a vida e obra de Hans Christian An-


dersen, é o primeiro deles. O texto foi escrito em 1996 e revisto em 19974

Hans Christian Andersen aparece como o principal personagem de O


Homem das Galochas. O texto promove um estranho encontro entre o poeta
em seus derradeiros momentos de vida e o pequeno Hans. As galochas má-
gicas que possibilitaram tal encontro permitem também que Andersen possa
manifestar seu último desejo. Ele as calça e incumbe o menino de continu-
ar contando suas histórias, (que foram apresentadas ao longo da peça). O
menino pergunta o nome do poeta e se surpreende ao descobrir que ambos
eram a mesma pessoa, Hans Christian Andersen.

Capella mostra o ciclo de vida do personagem, estabelecendo um jogo


entre ficção e realidade, no qual os contos selecionados são apresentados
como fatos de vida do escritor e os fatos de sua vida como histórias de ficção.
Assim por exemplo, há uma passagem do texto na qual a mãe do menino
insiste em fazê-lo freqüentar a escola e deixar de sonhar em ser um artista
importante. Achando graça de seus desejos ela lhe diz que ele se “parece
com um patinho feio que sonha sonhos de cisne”, dando a impressão de que
a frase teria inspirado o famoso conto que ele viria a escrever no futuro.

Os demais textos deste grupo são O Clone do Visconde, O Gato Malha-


do e a Andorinha Sinhá e O Colecionador de Crepúsculos, que serão comen-
tados mais abaixo.

Em 1999, após O Homem das Galochas, Vladimir retoma o conto de


fadas, com uma história criada por ele, sempre em consonância com as pre-
missas de Bettelheim.

Clarão nas Estrelas conta a história de um príncipe que beira à loucura,


devido a um feitiço imposto por sua autoritária mãe. É salvo por uma cria-
da do palácio, Maria, que depois de enfrentar, com a ajuda de seu pêndulo
mágico, as perseguições da rainha, dá um tiro de espingarda no príncipe,
libertando o pássaro que o habitava. Ambos se casam no final.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 173 U


O texto tem uma construção bastante complexa. Com vários focos de
narratividade e uma estrutura circular, a trama tem início com Maria atirando
no príncipe, para a seguir voltar no tempo e contar a história de ambos. Os
relatos de Maria ao príncipe sobre sua infância e a perda de seus pais são
construídos de modo a tornar simultâneas ação e narração. A peça, além
dos temas sempre tratados pelo teatro de Vladimir Capella, introduz novas
questões, como por exemplo, a depressão e a loucura. Além disso, ressalta
a importância do auto-conhecimento como meio indispensável à realização
da pessoa humana: “É preciso conhecer tua história... para saberes quem
és”, diz Maria ao príncipe.

No mesmo ano, o inquieto Capella realiza uma nova experiência drama-


túrgica: escreve Imagens, um roteiro para um espetáculo teatral sem pala-
vras, com música ilusionismo e circo.

Escrito para ser apresentado no parque de diversões Hopi Hari, Imagens


explora os mais impressionantes recursos visuais, sem deixar de abordar
os instigantes assuntos que integram o universo temático capelliano. Vida e
morte, desejo e sexualidade são abordados neste texto com menos de 10
páginas. A peça versa sobre de uma noiva raptada por um mago do mal, no
dia de seu casamento. O noivo sai à sua procura, enfrenta o terrível mago e,
ao arrancar sua máscara, descobre que ele e o mago eram a mesma pes-
soa.

O roteiro de Imagens, que pode ser considerado como uma grande rubri-
ca, é exemplar para a retomada de uma antiga discussão suscitada pela dra-
maturgia contemporânea: a oposição texto e cena. Nos textos de Capella, as
rubricas foram ganhando maior espaço ao longo do tempo, tornando difícil
a separação entre o autor e o encenador. Algumas delas chegam a assumir
feições literárias. Em Clarão nas estrelas, por exemplo, pode-se ler: “o im-
portante é que o anjo esteja envolto numa indescritível luz”. Vladimir afirma
que seu desejo, ao escrever um texto de teatro, é que o leitor tenha uma
perfeita visão daquilo que acontece em cena. Ressalva, contudo, que suas
rubricas não pretendem impor a futuros encenadores a sua própria concep-
ção de montagem, mas apenas torná-la a mais clara possível.

Miranda, escrita em 2000 e encenada em 2003 traz a história de uma


menina que se veste de homem para enfrentar o mundo. Com ressonâncias
de Diadorim, Maria Gomes, da literatura de Cordel, Joana D’Arc, Shakespe-
are e os contos medievais, Miranda parece completar o ciclo das persona-
gens femininas criadas por Capella, a partir de Maria Borralheira. Para ser
feliz, Miranda deve encontrar a própria identidade (como Borralheira), salvar
o rei da loucura (como Maria, de Clarão nas Estrelas) e ainda libertar a cida-

U 174 - Dezembro 2005 - Nº 7


de da opressão política imposta pela rainha. A cura do rei e a conseqüente
salvação da cidade só se tornam possíveis depois que Miranda lhe revela
sua condição de mulher, desnudando-se perante ele.

Poder político, homossexualismo e incesto são os novos temas aborda-


dos por Vladimir Capella nesta peça que, em virtude da cena de nudez, foi
impedida de estrear no teatro previsto, por determinação do diretor da es-
cola que o administra. A proibição interrompeu bruscamente o compromisso
firmado, de oferecer o espaço para uma temporada estável do espetáculo.
Sem contar com qualquer patrocínio, Miranda esteve em cartaz por curtíssi-
mo período em uma unidade do Sesc/SP.

Em 2001, Vladimir escreve seus mais recentes textos, focalizando auto-


res literários e suas obras.

O Clone do Visconde retoma a obra de Monteiro Lobato, realizando uma


verdadeira alegoria da criação literária. Lobato aparece como personagem e
enfrenta um fato singular: Emília alterara uma de suas histórias, realizando
um rico funeral para o Visconde de Sabugosa, que havia sido morto por uma
jaca que lhe caíra na cabeça.

Admirado, ele chega a afirmar: “... mas eu não escrevi isso!”


Intrigado com o atrevimento, ele descobre que o funeral era apenas um pen-
samento de Emília que, inconformada com a morte do amigo, desejara pres-
tar-lhe uma última homenagem.

Lobato, sensibilizado com as nobres intenções da boneca, admite que


aquela história mereceria um final mais feliz. Procura-a e oferece sua ajuda
para ressuscitar Sabugosa. Torna-se então coadjuvante de sua própria per-
sonagem e, sob as imperiosas ordens de Emília, traz o Visconde de volta.
Um jogo semelhante é proposto por Capella em O Colecionador de Crepús-
culos, sobre a vida e obra de Luis Câmara Cascudo. Desta vez o próprio
Cascudo é salvo da morte pelas mãos de uma das personagens que imor-
talizou.

O compadre da Morte, o conto central do espetáculo, mostra a história


de um caipira que dá seu filho para ser batizado pela Morte. Esta, em troca,
o torna um médico de prestígio. Graças a este contrato, ele pode “prever” a
cura ou não de um doente, conforme a posição ocupada pela comadre dian-
te do leito. Ao longo da peça, Câmara Cascudo, mostrado por um boneco,
aparece fazendo anotações, fumando seu charuto e apreciando o entarde-
cer. Até que, em determinado momento o caipira, tomando conhecimento do
delicado estado de saúde de Cascudo, vai visitá-lo. A Morte está posicionada

Dezembro 2005 - Nº 7 - 175 U


de forma a indicar que não havia salvação possível. O caipira então a enga-
na, mudando rapidamente a cama de lugar e salva vida do folclorista. Afirma
ainda que Cascudo só morrerá no dia em que ele (o caipira) morrer. Depois
de enganar a morte mais algumas vezes, o caipira é finalmente vencido por
ela. Sua morte coincide com a de Cascudo.

A peça, composta dos vários “causos” e relatos recolhidos por Câmara


Cascudo, parece fechar um ciclo da dramaturgia de Vladimir Capella pro-
duzida até o momento. O dramaturgo traça um painel, a partir dos contos
recolhidos pelo folclorista, que sintetiza muitas das aventuras que ele próprio
empreendeu em seu percurso. As ressonâncias de Panos e Lendas e Avoar,
através das lendas e das canções brasileiras estão ao lado da abordagem
dos mitos fundadores de nossa cultura, como a Iara, já presente em O Saci.
A adaptação do conto A menina enterrada viva, um dos episódios que com-
põem a trama, retoma, ainda que com personagens menos verticalizados,
o mesmo universo simbólico dos demais contos de fadas trabalhados por
Capella.

O Colecionador de Crepúsculos, texto cuja riqueza merece um estudo


à parte, espera há três anos que surja um patrocínio para ser levado ao pal-
co.

Também está inédito O Clone do Visconde, em virtude de problemas de


direitos autorais junto à família de Lobato.

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, a mais recente encenação de


Vladimir é também uma adaptação literária em que o autor da obra aparece
como personagem. Neste caso, Jorge Amado é colocado em cena dizendo
ao filho que escrevera uma história, mas que iria contá-la com sua própria
voz, pois o menino com apenas um ano de idade, ainda não podia compre-
ender as letras. É interessante notar que, por meio desta fala, Capella faz
com que o próprio Jorge Amado justifique a transposição de texto literário
para o palco.

A obra de Vladimir Capella conta ainda com um pequeno romance in-


fanto-juvenil : Fim que vira começo que vira, publicado em 1988 pela editora
Acadêmica e textos para teatro de bonecos: Do outro lado e Sonhos, não
abordados neste artigo.

Como músico compôs diversas canções, algumas gravadas por can-


tores profissionais, sem contar as que criou para seus espetáculos.

O teatro de Vladimir Capella é exemplar para a compreensão dos múlti-

U 176 - Dezembro 2005 - Nº 7


plos caminhos percorridos pelo teatro infantil brasileiro. Sua obra vem mos-
trar que quaisquer prescrições extra-artísticas, quando se trata de incluir
crianças na platéia, tornam-se meios de discriminar e diminuir o próprio tea-
tro.

Capella, ao abordar as grandes questões humanas em textos construí-


dos com o máximo apuro estético faz de seu teatro uma arte para todas as
idades.

Resta apontar quais as características de sua poética que permitem a


aproximação do público infantil.
Em primeiro lugar, a recepção da criança é possibilitada pela poesia contida
nos textos, que os torna sintéticos o bastante para permitir que sejam apre-
ciados sem dispersão.

O emprego poético e sugestivo da palavra e os cuidados com os as-


pectos visuais (sempre recomendados nas rubricas), são qualidades que
permitem que a recepção do espetáculo ocorra, sobretudo, através da sen-
sibilidade.

A música, traduzida em belas canções cantadas ao vivo ou em sofis-


ticados arranjos instrumentais, apresenta-se como uma linguagem co-par-
ticipante do teatro capelliano e também se configura como um importante
veículo de aproximação do seu teatro com o público infantil.

A criação de personagens infantis como seres pensantes, críticos e


agentes de seu próprio destino, são fatores que também permitem a fruição
e o deleite da criança.

Ao adulto, além do prazer sensível que estas opções estéticas igual-


mente lhe proporcionam, o teatro de Vladimir Capella permite muitas outras
instâncias de produção de sentido.

A história do teatro infantil brasileiro dos últimos 25 anos é assim escrita


por Vladimir Capella como uma história que busca, antes de tudo, romper
limites e permitir que o prazer proporcionado pela arte possa ser comparti-
lhado por desiguais. Esta é sua grande contribuição.

Notas
________________________________________________
¹ Disponível na Biblioteca da ECA/USP

Dezembro 2005 - Nº 7 - 177 U


² Bettelheim, Bruno. Psicanálise dos contos de fadas. RJ: Paz e Terra, 1980
³ Em toda a dramaturgia de Vladimir Capella, a arte desempenha um papel
essencial na solução dos conflitos vividos pelas personagens. Por exem-
plo, em Avoar, é a canção que traz a lua de volta à cidade. Payá, de Como
a lua, supera sua desilusão amorosa transformando-se em palhaço. Rosa,
a protagonista de Filme Triste, vence a solidão tornando-se escritora. Alan
impõe-se se diante dos colegas graças à ajuda do boneco que criara na aula
de artes.
4 Costuma ser uma prática de Capella retomar seus textos e reescrevê-los,

ora atualizando-os no tempo, ora acrescentando rubricas com as descober-


tas decorrentes das encenações que realiza.

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orientação da professora doutora Maria Lúcia de Souza Barros
Puppo.

U 178 - Dezembro 2005 - Nº 7


RESENHA

O método e a masculinidade em Virginia


Wright Wexman
________________________________________________
Carmem Filgueiras*

Título: Masculinity in crisis – Method acting in Hollywood in: Mo-


vie acting – the film reader.
Autora: Virginia Wright Wexman
Editora: Routledge, Nova Iorque
Ano: 2004
Número de páginas: 127-144.

O ponto de partida de Virginia Wexman (Universidade de Princeton)


para relacionar o momento de maior aceitação de Stanislavski e a formação
de um novo herói cinematográfico é a lendária sugestão que sir Laurence
Olivier deu a Dustin Hoffman quando filmavam A maratona da morte (1974).
Preocupado com o colega, adepto do Método, que estava vivendo como um
maratonista, Olivier perguntou: “Por que não tenta representar?”.

Wexman faz um breve balanço da recepção de Stanislavski no cinema


americano e afirma que o desejo de realismo levou Hollywood ao Método
porque suas técnicas dão ênfase ao que há de próximo entre ator e perso-
nagem e delineiam, de modo particular, um novo tipo de herói romântico. O
ator do Método busca em sua memória emotiva o sentimento apropriado ao
personagem, mas, através de uma técnica de interpretação e por isso, para
Wexman, é possível ver tanta artificialidade na atuação de filmes como Uma
rua chamada pecado quanto em qualquer outra performance.

Mas, o furor causado pelo Método não foi à toa. Comparadas à escola
britânica, outra grande influência do cinema americano, as teorias de Sta-
nislavski levam a uma maior identificação entre ator e personagem, ao invés
de incentivarem a audiência a manter certa distância intelectual em relação
ao ator. Baseado na busca da verdade interior do ator, o Método faz dele

* Carmen Filgueiras é mestranda em Teatro (UniRio) e pesquisa o uso da


noção de jogos de linguagem de Wittgenstein em processos de dramatiza-
ção.
Dezembro 2005 - Nº 7 - 179 U
um bocado autor e, através de técnicas de improvisação, imaginação, rela-
xamento e uso da memória afetiva, o intérprete aumenta sua capacidade de
apresentar uma ação que pareça viva.

Wexman aponta como, ainda que Stanislavski tenha escrito pensando


no teatro, é no cinema que suas idéias são potencializadas. O ator treinado
pelo Método não precisa mais ignorar o público, a verdade interior é captada
pela câmera antes de se cristalizar em um excesso de encenações teatrais
e a interpretação pode manter seu frescor. Além disso, a análise de cenas
como partes individuais e emocionalmente auto-referentes facilitam o pro-
cesso de fazer cinema com suas exigências externas de descontinuidade.
Para Wexman, apesar dessas qualidades, o interesse do cinema soviético
por Stanislavski não foi desenvolvido porque cineastas como Eisenstein e
Pudovkin estavam tomados pela questão da edição dos filmes.

Conforme Wexman, a absorção norte-americana do Método teve que


esperar cerca de 30 anos por questões políticas. Entre 1920 e 1930, mem-
bros do Teatro de Arte de Moscou imigraram para os Estados Unidos. Mas, o
teatro de Alla Nazimova, Richard Boleslavsky e Maria Ouspenskaya continha
uma forte preocupação com as frustrações da classe operária, o que não é
uma característica muito comercial. Apenas quando Lee Strasberg promulga
sua própria versão do Método, através do Actors Studio, Stanislavski é po-
pularizado. Strasberg passa a aumentar a ênfase no caráter psicológico e,
conforme a autora, o conceito de improvisação de Stanislavski como modo
de criar um senso de comunidade entre os atores se transformou em uma
grande celebração da neurose da interpretação individual.

A valorização do ator sobre o personagem segue a necessidade da in-


dústria de produzir astros, ao invés de atores. Wexman afirma que, grosso
modo, Strasberg transformou uma teoria igualitária e socialista em uma má-
quina de fazer celebridades. O curioso é que os três atores mais associados
ao Actors não foram exatamente formados por ele: Montgomery Clift nunca
fez uma aula no Studio, James Dean assistiu a poucas e parou depois da pri-
meira crítica que Strasberg lhe fez e Marlon Brando estudou com Stella Ad-
ler, que discordava das interpretações que Strasberg fazia de Stanislavski.

Wexman acredita que a associação inapropriada entre o Método e es-


trelas que não estudaram no Actors Studio estimulou as recentes pesquisas
de Richard Dyer (em Stars) e James Naremore (em Acting in the cinema)
sobre o que torna uma atuação do Método distinguível. Mas, para a autora,
mesmo que não influenciados diretamente por Strasberg, os astros da época
adaptaram técnicas do Método para sustentarem uma identificação como
rebeldes, transformando-as em clichês, por exemplo, quando o relaxamento
U 180- Dezembro 2005 - Nº 7
necessário à criação do papel vira uma postura de desleixo do ator.
Depois de dar o panorama histórico da apropriação do Método por
Hollywood, Wexman passa a fazer uma interpretação sobre a construção de
um novo tipo de herói possível a partir das sutilezas daquelas técnicas. O
conflito principal de filmes como Juventude Transviada é a dificuldade que
o herói rebelde tem para definir sua identidade em relação à figura paterna
e o Método tem a habilidade de criar as condições necessárias para dar a
uma cena a carga emocional tradicionalmente considerada feminina. Quan-
do James Dean, em Juventude Transviada, diz a seus pais, em um choro an-
gustiado: “vocês estão me fazendo em pedaços!”, ele está dando uma nova
configuração ao modelo masculino. A criatividade valorizada pelo Método
estimula a crença em uma imagem em formação e, assim, o novo herói pode
ganhar corpo. Mas, um corpo que ainda precisa da história de amor para dar
os termos em que a masculinidade é entendida e avaliada.

Virginia Wexman afirma que, nos últimos anos, a influência do Método


na criação da persona do astro tem sido reformulada. No lugar da ansiedade
de relações românticas fragmentadas, os atores contemporâneos formados
pelo Método, como Robert de Niro, Dustin Hoffman e Al Pacino projetam um
frio narcisismo que sugere que eles estão além do romance. Assim, muitos
dos filmes de sucesso desses atores tratam da falência do relacionamen-
to romântico, enquanto seus filmes que seguem um roteiro de história de
amor tradicional não têm encontrado o mesmo público. Para esses atores,
o drama da identidade nem sempre envolve uma relação com uma mulher.
Wexman finaliza o artigo afirmando não ser claro como os pensamentos que
expôs se relacionam com as mudanças de convenções para o romance e o
casamento, mas que, no mundo de comercialização artística que Hollywood
é, essas mudanças sempre têm um sentido.

O artigo de Virginia W. Wexman é singular na qualidade de sintetizar a


história da recepção de Stanislavski nos Estados Unidos, mostrando a sua
importância na formação do ideal de ator de cinema e de herói de cinema,
desde Brando até Hoffman. Além disto, os parágrafos dedicados à atuação
de Marlon Brando, em Sindicato de ladrões, são ricos pelas relações traça-
das entre as técnicas de interpretação e a formação da estrutura de estilo e
de gênero no cinema.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 181 U


RESENHA

O CORPO: PEQUENO GRANDE MÉTODO DA


INDISCIPLINA CÊNICA
________________________________________________

Ciane Fernandes*

Título: O Corpo: Pistas para Estudos Indisciplinares


Autora: Christine Greiner
Editora: Annablume
Ano: 2005
Número de páginas: 150

Com sua capa, título e tamanhos despretensiosos, quase como um livro


de bolso, O Corpo: Pistas para Estudos Indisciplinares, de Christine Greiner
(São Paulo: Annablume, 2005), surpreende. Cada parágrafo evoca tanta tro-
ca de informação, tantas referências de distintas áreas e épocas, que merece
uma leitura calma, cuidadosa, e a longo prazo. Tão rico em dados como uma
coleção de vários tomos, que já começou em Leituras do Corpo, organizado
por Greiner e Cláudia Amorim, pela mesma editora, tem ainda uma grande
vantagem; com seu “corpo” leve, pode ser carregado para aulas, ensaios,
dentista, etc. E, de repente, no dentista, enquanto leio meu livro altamente
acadêmico disfarçado de livro de bolso (em meio a outros leitores de revis-
tas bem menos politicamente engajadas), lá está o assunto do momento:
“...dentes são uma ferramenta e, por isso, podem ser substituídos em certa
medida por uma ferramenta que faça analogamente o que os dentes fazem,
como é o caso da faca. ... O corpo vivo é mais do que uma coisa estendida
num espaço visual, e sim todas as relações que suscita e que em certa me-
dida são absolutamente singulares” (p.101).

O livro de Greiner é como um “corpo vivo”: está constantemente sus-


citando novas relações. Toda boa leitura é assim, transforma nossa visão
do mundo e interação com ele. Mas no caso deste nosso compact book,

*Ciane Fernandes é Ph.D. em Artes & Humanidades pela New York Uni-
versity; professora da Escola de Teatro e do Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da UFBA e pesquisadora associada do Laban/Bartenieff
Institute of Movement Studies; autora dos livros: Pina Bausch e o Wuppertal
Dança-Teatro (São Paulo e New York) e O Corpo em Movimento.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 183 U


seu tema é exatamente essas redes interativas, a partir do corpomídia (sub-
título com a contribuição de Helena Katz, 125-133). Este não precisa es-
tar em meio a uma parafernália tecnológica ou repleto de eletrodos, apesar
de que Greiner inclui autores das neurociências e experimentos diversos,
mas sempre para discutir temas de amplo alcance, e aplicando-os às artes.
Prosseguindo aquela colocação sobre o corpo vivo, a autora analisa, por
exemplo, estudos com pacientes com neuropatia, para traçar a relação entre
imagem e esquema corporal, como um influencia e organiza o outro.

Greiner chega a definir e diferenciar os controversos conceitos de ima-


gem e esquema corporal de maneira sucinta e bem fundamentada. Estes
seriam assuntos mais relativos às terapias psicossomáticas do que a Estu-
dos Culturais, por exemplo, mas estes últimos são igualmente abordados no
livro. A inclusão de temas como estes não é limitante. Ao contrário, abre para
mais discussões com autores diversos, como Judith Butler e Robert C. Post,
entre outros, ao tratar da violência implícita exercida sobre o corpo.

Os muitos autores ou temas não são listados linearmente, o que seria um


contra senso ao se falar em corpo. A autora vai pouco a pouco entrelaçando
idéias, usando diferentes fontes para contrapor ou confirmar cada perspec-
tiva, em um plenário aberto para discutir um assunto fundamental – especial-
mente em nossas “sociedades democráticas” (e teatros) onde reina a “hiper-
trofia da linguagem verbal” (p.92). Apesar de ser tema em moda nos últimos
anos, o estudo do corpo tem publicação limitada no Brasil, e é abordado por
algumas poucas escolas estrangeiras (como o Performance Studies e seu
recente On The Presence of The Body, org. André Lepecki, 2004), felizmente
em grau cada vez maior. Neste sentido, a obra vem preencher uma lacuna
não somente nas artes em geral, mas também nas diversas outras áreas que
aborda, pois sua organização não linear, porém clara, tem muito a acrescen-
tar a estas últimas.

Talvez seja este o grande trunfo deste “pequeno” livro: se nós artistas
estamos sempre acostumados a pedir emprestado metodologias de outras
áreas mais “avançadas”, em meio à crescente complexidade do mundo con-
temporâneo é a vez das artes reinventarem um modo de pesquisar, escrev-
er, analisar, menos atomizado e mais relacional. Ou seja, é hora de trazer
o corpo, marginalizado nas ciências e academia em geral, para o centro da
prática e organização da produção (que passa, então, a ser processo). Cabe
a nós substituir um corpo usado como meio de produção intelectual e cientí-
fica, analisado como camadas dissecadas em um laboratório, por este corpo
vivo, ativo, reorganizador de novos sistemas de conexões não lineares.

Durante o decorrer do livro, diferentes opiniões fluem como os líquidos no

U 184 - Dezembro 2005 - Nº 7


corpo (sangue, linfa, etc.), desembocando aqui e ali em definições também
transitórias; aliás, a respeito da transição. A partir do fio condutor “corpo”,
temas e debates como desconstrução, “estrangereidade” (p.105), cognição
e cultura, corpo e ambiente, psique e política, são puxados em sua teia
histórica e entrecruzados como feixes neuronais de informação.

Tanto conteúdo concentrado nos traz de volta ao corpo também porque


nos silencia. Seu título poderia muito bem ser: Tudo sobre Corpo (parafrase-
ando Almodóvar) ou Tudo que você sempre quis saber sobre Corpo (para-
fraseando Woody Allen), substituindo palavras em homenagem a Freud e
Foucault, respectivamente, “incorporados” nas discussões de Greiner. Dis-
creto e modesto, O Corpo é inteligente, flexível, complexo e fundamental.
Leitura obrigatória nas indisciplinas deste novo milênio.

Dezembro 2005 - Nº 7 - 185 U


URDIMENTO recomenda os seguintes periódicos ligados às Artes
Cênicas:

• Repertório (UFBA)
• O Percevejo (UNIRIO)
• Sala Preta (USP)
• O Teatro Transcende (FURB)
• ArtCultura (UFB)
• Cadernos de Teatro (O Tablado)
• Folhetim (Teatro do Pequeno Gesto)
• Revista do Lume (UNICAMP)

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5700 caracteres com espaços por lauda;
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após as notas, obedecendo o seguinte padrão: SOBRENOME, Nome, Título
(tradutor), Local, Editora, Ano, páginas referidas (ex: 13-16). para periódicos
e jornais: SOBRENOME, Nome, Artigo/Reportagem, Periódico ou Jornal, nº
V (tradutor), Local, Editora, Ano ou Data, páginas referidas. Periódicos não
devem ter títulos abreviados.
4- para indicações de obras no corpo do texto ou final da citação: SO-
BRENOME, Ano: número da página). Para quaisquer outras normas, seguir
o padrão ABNT vigente;
5- no corpo do texto, usar primeira letra maiúscula e toda(s) a(s) palavra(s)
em itálico para nomear títulos de peças, óperas, livros, títulos e obras em ge-
ral;
6- as colaborações devem incluir uma brevíssima apresentação do au-
tor, visando situar o leitor, de no máximo 3 linhas;
7- à parte, o colaborador deve enviar uma autorização para a publica-
ção. Caso inclua fotos, desenhos ou outros materiais gráficos da autoria de
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Revista Urdimento
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