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Artefactos

Peter Van Inwagen


Tradução de Vítor Guerreiro

Imagine um deserto, um verdadeiro deserto onde nada cresce e nada


há senão areia. Imagine que um regimento da Legião Estrangeira
chega a um determinado ponto nesse deserto com ordens para
garantir a segurança das rotas locais de caravanas, contra a
bandidagem. A primeira coisa que os legionários fazem é construir um
forte. Trazem retroescavadoras e com elas empurram as areias do
deserto até que o solo do deserto, antes nivelado, se parece com o
seguinte:

Terão trazido algo (um forte, digamos) à existência? Devo dizer que
não o fizeram. O que fizeram, para usar uma expressão que já
empreguei, foi rearranjar a mobília do mundo sem acrescentarem
coisa alguma à sua lista. As pás das retroescavadoras empurraram
grãos de areia — ou simples organizados de modo graniforme — e
empilharam-nos de um modo militarmente útil, mas não trouxeram um
só objecto à existência. (Contudo, se um dos legionários afirmasse,
«Construímos um forte», afirmaria desse modo uma proposição
verdadeira.) O forte, portanto, é um objecto virtual. Poderá servir de
modelo no nosso pensamento acerca de artefactos. Outros artefactos
diferem desse somente na medida em que os objectos virtuais que
são as suas “partes” — os objectos virtuais que vêm a ser agregados
no decorrer da sua construção — diferem entre si em dimensões,
forma e outras propriedades mais do que diferem entre si os grãos de
areia, e na medida em que estas “partes virtuais” se encontram
tipicamente ligadas por um conjunto mais diverso de forças físicas (o
forte mantém-se coeso, acima do nível granular, inteiramente pela
gravitação e pela fricção). Mas estas diferenças não são
ontologicamente relevantes.
Portugal | Brasil

Desconheço o que os filósofos diriam na sua maioria acerca do nosso


forte. Mas pelo menos alguns descreveram um caso semelhante de
um modo radicalmente incompatível com a imagem que procurei
esboçar no parágrafo anterior. O caso que tenho em mente é o do
pedaço de ouro e a (pelo menos momentaneamente) contérmina
estátua de ouro. Esse caso foi introduzido na secção 2 quando
discutíamos a tese de que todos os objectos têm no máximo uma
soma. Mencionei brevemente aí que alguns filósofos defendem que o
pedaço e a estátua são numericamente distintos. Quero agora discutir
mais cuidadosamente essa ideia. Uma vez que será conveniente ao
meu propósito imaginar uma estátua feita de uma matéria que possa
ser facilmente trabalhada com os dedos, irei, como um alquimista
notoriamente incompetente, transformar o ouro em barro.

Suponhamos que um escultor se depara com um banal pedaço de


barro e o molda com a forma de um homem. Segundo os filósofos em
quem penso, o escultor traz por esse meio um objecto — uma estátua
— à existência. Mas (dizem esses filósofos) o pedaço de barro
continua a existir. Ocupa a mesma região do espaço que a estátua e
tem a mesma forma e peso e cor e textura, mas mantém a sua
identidade separada. Temos de supor isso (dizem-nos esses filósofos)
porque há algo ali que tem propriedades que a estátua não tem. Essas
são, aproximadamente, as propriedades que Descartes atribuiu ao seu
célebre pedaço de cera. Há, por exemplo, algo ali que pode ser
moldado numa entre uma infinidade de formas, na sua maioria
diferindo radicalmente da forma que presentemente tem. Mas a
estátua não tem essa propriedade. Não pode ser radicalmente
deformada. Mesmo uma deformação modesta destrui-la-ia. Esse
objecto que não é a estátua e que pode sobreviver à deformação
radical é, evidentemente, o pedaço de barro. (Alguns filósofos diriam
que, além da estátua e do pedaço de barro, há uma terceira coisa, o
barro, que, ao contrário do pedaço, pode sobreviver a ser disperso
pelos quatro cantos da Terra. Não discutirei “o barro”, pois me parece
não levantar quaisquer problemas de princípio, além dos que são já
levantados pelo pedaço.) E não se trata apenas dessa propriedade
disposicional ou modal que o pedaço de barro não partilha com a
estátua. As propriedades históricas do pedaço diferem também das da
estátua, uma vez que o pedaço existe há mais tempo do que a
estátua.

Qualquer filósofo que adopte essa posição acerca da estátua e do


pedaço, presumivelmente, rejeitará a nossa asserção de que os
legionários nada trouxeram à existência com as suas
retroescavadoras. Dirá (presumivelmente) algo como: jazendo no solo
do deserto quando a Legião chegou, misturada com muitos outros do
seu género, estava uma certa massa de areia; as retroescavadoras
empurraram-na até se tornar fortiforme (separando-a, nesse processo,
de outras do seu género), produzindo assim um novo objecto, um
forte, um objecto que diferia da agora fortiforme massa de areia, nas
suas propriedades históricas e modais — mas somente nessas.

Isso parece-me uma perspectiva inacreditável. Consideremos o caso


da estátua e do pedaço de barro. Suponhamos que a estátua e o
pedaço existem ambos (embora na verdade eu negue que qualquer
deles exista). Assim, seguramente, as palavras “a estátua” são
simplesmente um nome que se aplica ao pedaço em diversos pontos
do seu percurso temporal. A propriedade ser uma estátua é
exemplificada pelo pedaço onde quer que o pedaço tenha a forma
apropriada. (Note-se que isso é justamente o que o defensor da
distinção numérica do pedaço e da estátua afirma vis-à-vis a
propriedade ser espacialmente coincidente com a estátua: essa
propriedade é exemplificada pelo pedaço sempre que o pedaço tem a
forma apropriada.) Se o leitor adoptar essa perspectiva incrível, então,
creio, deve também adoptar a perspectiva de que qualquer
forma outré que um pedaço de barro possa ter, esse pedaço é
espacialmente coincidente com um objecto com o qual, embora
ambos sejam distintos, partilha todas as suas propriedades
momentâneas. Tomemos um pedaço de barro e moldemo-lo com
alguma forma complicada e arbitrária. Chame-se “zingarelho” a
qualquer coisa que seja essencialmente dessa forma. Será que o leitor
trouxe à existência um zingarelho? Estou em crer que se o nosso
escultor trouxe uma estátua à existência, então o leitor trouxe um
zingarelho à existência. “Estatuiforme” é um predicado para forma
menos definido do que “zingarelhiforme”, sendo um predicado para o
qual dispomos de um uso, e o nosso escultor tencionou produzir algo
zingarelhiforme. Mas esses factos pareceriam irrelevantes para
quaisquer questões acerca da existência da coisa produzida. Se o
leitor pode fazer uma estátua deliberadamente, moldando barro, então
pode fazer um zingarelho acidentalmente, moldando barro. Mas se
pode fazer um zingarelho por acidente moldando barro, então tem de,
à medida que trabalha idilicamente o barro com as mãos, causar a
geração e corrupção dos membros de uma série compacta de
objectos de duração infinitesimal. É isso que me parece inacreditável.

Se, apesar destas considerações, o leitor estiver ainda inclinado a crer


na estátua que é distinta do pedaço de barro, considere o seguinte.
Temos uma serpente, uma serpente muito longa, fina e rija. Sem
cortar ou de algum modo ferir a serpente, enredamo-la
engenhosamente na forma de uma rede (usando uma arte de que
dispomos) e suspendemos a rede entre duas árvores. Somos,
portanto, artesãos. Fizemos que houvesse uma rede onde antes não
havia rede alguma. Não obstante, não expandimos o conteúdo do
mundo mas apenas o rearranjámos. Se imaginarmos que a nossa
serpente é um ser inteligente e a imaginarmos refletindo sobre a
questão “Haverá um objecto — uma rede — que é numericamente
distinta de mim mas de momento coincide espacialmente comigo?”
então prestamos um grave desserviço à reputação intelectual da
nossa indefesa criatura ficcional se a fizermos responder
afirmativamente a essa questão. Uma serpente inteligente,
genuinamente inteligente, nas curiosas circunstâncias que
imaginámos concluirá, após não mais do que um momento muito
breve de reflexão, “Não, não… Nada há aqui além de mim”. Se somos
também inteligentes, concordaremos com ela.1 Mas se concordarmos
mesmo que a serpente se transforma momentaneamente numa rede,
então, sem dúvida, devemos também concordar (se acreditamos de
todo em qualquer destas coisas) que o pedaço de barro se transforma
momentaneamente numa estátua e a massa de areia se torna
momentaneamente um forte. Mas por que razão acreditar em qualquer
dessas coisas? Por que razão (só para nos centrarmos em intuições)
acreditar na massa de areia? Supondo que os grãos de areia existem
— e, evidentemente, não creio neles, tão-pouco — que razão poderia
haver para acreditar na massa? Não me ocorre razão alguma a não
ser uma aderência ao Universalismo, e o Universalismo, como
vimos,2 é falso.

Não há, portanto, mesas e cadeiras, e não há quaisquer outros


artefactos — com a excepção improvável de umas poucas coisas
como a nossa rede viva. Os artesãos não criam; não, pelo menos, no
sentido de causarem a existência de coisas. Rearranjam objectos no
espaço e fazem certas relações de vinculação ocorrer ou deixar de
ocorrer (como no caso do escultor que delapida um bloco de
mármore) entre objectos. Mas, em última análise, o labor de Miguel
Ângelo e do mais habilidoso relojoeiro são tão destituídos de qualquer
genuína questão metafísica como o labor dos nossos legionários.
Todas essas pessoas estão simplesmente a deslocar de um lado para
o outro a matéria do mundo. (Espero não ser necessário afirmar que
essa descrição do labor dos artesãos, por muito importante que seja
para a metafísica, não tem quaisquer consequências para a estética
em particular ou para a teoria do valor em geral. Considere-se o valor
económico. Suponhamos que é necessário para um dado propósito
científico posicionar duas peças de equipamento que se encontram a
cerca de cem quilómetros de distância entre si, de tal modo que a
distância entre eles é conhecida à marca de cem milionésimos de
centímetro. Os cientistas podem passar três semanas e gastar dez mil
dólares a fazer isto e considerar bem gastos o tempo e dinheiro. O
posicionamento relativo preciso dos dois dispositivos, portanto, é uma
“coisa” de considerável valor económico, e provavelmente algo
muitíssimo frágil e cuidadosamente protegido. Mas ninguém suporia
que ao posicionar assim as duas peças de equipamento os cientistas
fizeram vir algo à existência. Arranjaram coisas preexistentes à sua
disposição e assim criaram valor económico. Vermeer arranjou coisas
preexistentes à sua disposição e assim criou valor estético. O valor
pode residir no arranjo de uma pluralidade de coisas; não tem de ter
um objecto único como veículo.)

Ora, se não há artefactos, então não há problemas filosóficos acerca


de artefactos. Ou, no mínimo, aqueles problemas filosóficos acerca
dos quais devíamos ter dito que eram “acerca de artefactos” são
problemas reais somente na medida em que as frases usadas para os
formular podem ser traduzidas por frases das quais se pode ver
claramente que não decorre a existência de quaisquer objectos físicos
a não ser os simples e os organismos. E não sei de qualquer
problema tradicional acerca dos artefactos que possa sobreviver a
esse género de tradução. Isto é particularmente verdadeiro acerca de
problemas de identidade e persistência através de mudanças
mereológicas. O maior e mais profundo dos problemas clássicos
acerca da identidade dos artefactos é o quebra-cabeças do barco de
Teseu. (Confio que quem se tenha disposto a ler até aqui conhece a
história.) A resposta à questão especial da composição que propus
lida, evidentemente, de forma abrupta com este quebra-cabeças: não
há barcos e portanto não há quebra-cabeças acerca da identidade de
barcos. Mas, embora isso seja inteiramente verdadeiro, pode ser
desenvolvido. Narremos a história do barco de Teseu numa linguagem
que não faça sequer uma referência visível a barcos. (Para simplificar
esse projecto, suponhamos que esses objectos virtuais a que
chamamos “barcos” são compostos inteiramente
por simples chamados “tábuas”. Ou, se preferir, podemos dizer que ao
narrar a nossa história tratamos as tábuas como “simples”, visto que
as suas identidades individuais não estão em causa e visto que as
suas partes virtuais e propriedades causais virtuais relevantes se
mantêm invariantes ao longo da história. Isso é um dispositivo útil que
nos permite usar palavras familiares como “tábua” e portanto nos
permite narrar a nossa história com um mínimo de aparato. Mas se
alguém insistir nisso, podemos permutar a nossa conversa acerca de
tábuas por uma conversa acerca de simples organizados
tabuiformemente.)

Era uma vez certas tábuas que foram organizadas de modo naviforme. Chamemos-
lhes as Primeiras Tábuas. (“As Primeiras Tábuas” é um designador plural rígido, como
“Os Empiristas Britânicos”.) Uma das Primeiras Tábuas foi removida das outras e
colocada num campo. Foi então substituída por uma nova tábua; ou seja, um
carpinteiro fez que a nova tábua e as Primeiras Tábuas remanscentes ficassem
organizadas de modo naviforme, e justamente de tal modo que a nova tábua estava
em contacto com as mesmas tábuas com que a tábua removida estivera em contacto,
exactamente nos mesmos pontos. Chame-se às tábuas que foram então organizadas
de modo naviforme “Segundas Tábuas”. Uma tábua que foi simultaneamente uma das
Primeiras Tábuas e uma das Segundas Tábuas foi removida das outras, colocada num
campo e substituída (segundo o procedimento já explicado), com a consequência de
que determinadas tábuas ficam organizadas de modo naviforme. Então uma tábua que
foi uma das Primeiras Tábuas e uma das Segundas Tábuas e uma das Terceiras
Tábuas… Este processo foi repetido até todas as Primeiras Tábuas estarem no
campo. Foi então que se fez as Primeiras Tábuas ficarem organizadas de modo
naviforme, e justamente de tal maneira que cada uma delas ficou em contacto com as
mesmas tábuas com que estivera em contacto quando as Primeiras Tábuas estiveram
organizadas pela última vez de modo naviforme, e em contacto com elas justamente
nos mesmos pontos.

Não faz parte desta história que quaisquer barcos comecem a existir
ou deixem de existir ou que alguma vez tenham existido. Na história
não sucede senão que as tábuas são reorganizadas, misturadas,
postas em contacto, separadas e empilhadas. Mas em nenhuma
circunstância duas ou mais dessas tábuas compõem seja o que for, e
nenhuma tábua é sequer uma parte apropriada de coisa alguma. E
isso não é uma imperfeição na história ou no meu modo de a narrar.
Nada de interesse filosófico foi excluído da história. Tudo o que se
passou está representado (algo abstractamente, reconheço) na minha
descrição do modo como as tábuas foram misturadas durante um
determinado período. Não há, portanto, quaisquer questões filosóficas
a colocar acerca dos eventos que descrevi. Em particular, não uma
questão como “Qual dos dois barcos existentes no final da história é o
barco com que a história começou?” pois a história terminou como
começou: sem quaisquer barcos, de todo.

“Mas é certo que, no decorrer da vida quotidiana, proferimos frases de


identidade que referem artefactos. E ao proferir essas frases, por
vezes afirmamos coisas que são verdadeiras e por vezes coisas que
são falsas. Se afirmamos, “Esta é a casa que o João construiu” e se
trata da casa que o João construiu, então temos razão, e se se trata
da casa que a Joana construiu, então estamos errados. Como
explicaria o leitor esta diferença?”

Quão seriamente devemos tomar os termos singulares nessas


afirmações de identidade? Suponha que sucede os marcianos não
dizerem “Esta é a casa que o João construiu”; suponha que dizem
algo que se deixa traduzir literalmente por “A esses foi dada uma
organização casiforme pelo João”. (“Esses o quê?” Bom, isso o quê?
“Essa casa”. Essas coisas organizadas de modo casiforme.) Não vejo
razão para pensar que os marcianos não se poderiam “orientar no
mundo” tão bem quanto nós o fazemos. Mas será a nossa frase
metafisicamente superior à dos marcianos, na medida em que contém
o pronome demonstrativo “isso” e o substantivo contável “casa”, além
de um verbo agencial, “construir”, que, ao contrário do “organizar” dos
marcianos, tem um objecto singular? Será que a nossa frase revela
mais adequadamente a estrutura do mundo que a dos marcianos?
Não creio. Diria ainda que não penso que a linguagem dos marcianos
seja superior à nossa. Pode ser que a deles “revele mais
adequadamente a estrutura do mundo”, no sentido de que carece de
determinadas características susceptíveis de induzir em erro filósofos
que procuram descrever a estrutura do mundo e que são, consciente
ou inconscientemente, orientados nestas tentativas pela estrutura da
linguagem que usam para falar acerca do mundo. Mas a linguagem
não evoluiu com o fim de orientar a especulação filosófica. Não é para
isso que serve. (Trata-se de uma questão acerca da história biológica
da linguagem. Mas praticamente a mesma se põe acerca das histórias
das línguas particulares. As línguas não evoluem com o propósito de
orientar a especulação filosófica. Não é para isso que servem.) Pode
ser, portanto, que uma língua em que se tem de dizer “está a chover”,
ou na qual se pode usar “existe” como um predicado, seja
ontologicamente traiçoeira de modos que outras línguas imagináveis
não o são. Mas isso reflecte-se adversamente em tais línguas tanto
quanto o facto de algumas garrafas de vinho darem maus rolos da
massa se reflecte adversamente nessas garrafas de vinho.

A paráfrase, como o nosso recontar da história do barco de Teseu ou


a nossa análise anterior de “Algumas cadeiras são mais pesadas do
que algumas mesas” tem interesse filosófico sobretudo porque nos dá
alternativas aos nossos maneiras comuns de falar, alternativas que se
pode pôr em funcionamento quando os filósofos as sujeitam a
pressões dialécticas que não foram concebidas para suportar.
Considere um problema simples de identidade acerca de casas. O
Porco Sábio construiu uma casa inteiramente feita de tijolos
(simples honoríficos), dez mil tijolos. Isso foi há três gerações. Ao
longo dos anos, os seus industriosos descendentes substituíram dois
mil deles. Supondo que existe uma casa que o Porco Sábio construiu
e que existe uma casa aqui e agora, então ou a casa aqui e agora é a
que o Porco Sábio construiu ou não é, ou a Lei do Terceiro Excluído
tem de sofrer algum género de correção.3 Se o leitor crê que há, num
sentido filosófico estrito, casas — se crê que quando se organiza
tijolos de modo casiforme eles compõem algo — então enfrenta o
problema de escolher uma dessas alternativas. Mas suponha que
insistimos que quando se discute estritamente questões acerca da
identidade de artefactos, se leva a cabo um debate numa linguagem
que nada refere além de simples e organismos vivos e objectos
abstratos. Se seguirmos essa regra, não seremos de todo capazes de
formular quaisquer questões filosóficas acerca da identidade dos
artefactos. As únicas questões que encontraremos serão do seguinte
género: “Havia tijolos organizados de modo casiforme nesse
momento?”; “Quantos dos tijolos que estavam entre os que foram
organizados de modo casiforme nesse momento se encontram entre
os que estão organizados de modo casiforme agora?”; “O que foi feito
dos tijolos que foram substituídos?”

A minha posição, portanto, é a seguinte: estou tão disposto quanto o


leitor a usar frases que contêm “casa” ou “barco” nos afazeres
quotidianos da vida. Mas se começamos por insistir que as coisas de
que falamos estritamente e em cada aspecto se conformam a
princípios lógicos gerais como a lei do terceiro excluído, então insistirei
que nos afastámos dos afazeres quotidianos da vida e
consequentemente insistirei que adoptemos uma linguagem capaz de
suportar o peso de uma aderência plena e abrangente à lei do terceiro
excluído: uma linguagem que nada refere além de simples e
organismos vivos e objectos abstratos. Afinal de contas, isso é
essencialmente o que devemos fazer, e o que o próprio leitor faria, em
muitas outras circunstâncias. Se o leitor se tornar intransigente acerca
da aderência estrita ao princípio de não-contradição — isto é, se
insistir que mesmo a estrutura superficial das minhas frases nunca
tem a forma “p e não-p” — então não mais direi “Está e não está” em
resposta a “Está a chover?” e falarei, ao invés, em neblinas. Se insistir
que todo o fragmento de discurso com a forma sintáctica de uma
expressão singular referencial denota um objecto e que todo o
predicado exprime uma propriedade possível, não mais direi “Um pai
mediano tem 1.3 filhos” e direi que o número de crianças dividido pelo
número de progenitores masculinos é 1.3. Se insistir em levantar a
questão de o nigre4 que vemos diante de nós é o nigre que vimos na
semana passada, então recusar-me-ei de todo a usar o substantivo
contável “nigre” e falarei em animais organizados de modo nigriforme.
Recuando assim para outros géneros de linguagem, como é óbvio,
afirmo implicitamente que a linguagem para a qual recuei é tal que
qualquer verdade que possa ser expressa na linguagem original pode
ser expressa na “linguagem de refúgio”.

Será que a nossa linguagem de refúgio (a linguagem empregue em


paráfrases de frases de quantificação múltipla na secção 11) na
realidade nos dão um refúgio satisfatório? Não é fácil determinar. Sem
dúvida que há algumas coisas que podem ser ditas, ou podem
aparentemente ser ditas, na linguagem comum que não parecem
exprimíveis na linguagem de refúgio. Eis um exemplo saliente: “A
mesmíssima casa que está aqui agora permaneceu continuamente
aqui durante trezentos anos”. Seja o que for que possamos afirmar na
linguagem de refúgio, parece ao mesmo tempo demasiado vago e
demasiado informativo para ser uma paráfrase correcta dessa frase.
Suponha que experimentávamos o seguinte: “Há tijolos organizados
de modo casiforme aqui agora e têm estado neste local tijolos
organizados de modo casiforme em cada momento do tempo nos
últimos trezentos anos, e em quaisquer dois momentos no decurso
desses anos, separados somente por um curto intervalo, os tijolos
organizados de modo casiforme nesses dois momentos eram
basicamente os mesmos tijolos, e os tijolos neste local sempre
estiveram organizados basicamente do mesmo modo”. Essa
afirmação parece demasiado vaga porque contém expressões
explicitamente vagas, como “curto” e “basicamente o mesmo”, que
não correspondem a quaisquer elementos explicitamente vagos na
original. Essa afirmação parece demasiado informativa porque a
história que conta é sobremaneira específica. Sem dúvida que haverá
outras histórias, além desta acerca dos tijolos que (como
comummente suporíamos) compõem uma casa, que nos levariam a
afirmar que a mesma casa permanecera aqui durante trezentos anos?
(Não poderia uma ala inteira ser adicionada à casa num acesso febril
de esforço laborioso? Não poderia uma ala ter sido demolida mais
rapidamente ainda? Não poderia uma casa reter a sua identidade
através de tamanhas modificações catastróficas?)

Poder-se-ia tentar desenvolver a nossa paráfrase de modo a ter em


conta essas dificuldades. Mas embora não disponha de qualquer
argumento a favor disso, creio que nenhuma paráfrase de “A
mesmíssima casa que está aqui agora permaneceu aqui durante
trezentos anos” na linguagem da reorganização de tijolos é possível.
Ou, pelo menos, creio que isso é verdadeiro se a paráfrase tem de
referir somente tijolos e as suas relações mútuas, porque creio que a
frase original faz referência velada às actividades e intenções de seres
inteligentes, no que diz respeito à reorganização de tijolos.

Imaginemos uma situação em que determinadas pessoas — “nós” —


têm intenções bastante definidas no que diz respeito à reorganização
de alguns objectos — digamos, três. Suponhamos que organizamos
três lápis sobre uma mesa para formar um triângulo. Suponhamos que
fazemos um voto solene de manter essa organização tanto quanto
possível na sua forma original. (Talvez acreditemos que essa
organização afasta forças malignas.) Suponhamos que o conteúdo do
que prometemos realmente se parece, em detalhe, com algo do
género:

Se a organização dos lápis for desfeita, quem quer que repare nisso reorganizá-los-á
imediatamente do modo como estavam antes.

Se qualquer dos lápis desaparecer, será feita uma busca pelo mesmo; se não puder
ser encontrado ou se ficar danificado, será providenciado um lápis tão semelhante a
esse quanto possível para ocupar o seu lugar.

Verificar-se-á a organização pelo menos uma vez por hora, para ver se há ou não que
atender a um dos pontos anteriores; será publicado um horário para os responsáveis
por essa acção no quadro de comunicações.

Podemos imaginar que formamos uma sociedade e levamos os novos


membros a desempenhar esses deveres no caso de os membros mais
velhos morrerem ou renunciarem. Suponhamos que passaram
trezentos anos desde a fundação da sociedade e que nesse período
sete lápis (incluindo todos os originais) desapareceram e a eles se
substituiu outros. O conteúdo de um diário ou registo das actividades
da sociedade ao longo dos anos, ou o evento prorrogado e complexo,
cujo decorrer é registado nesse diário, será aquilo que designarei
como “história de manutenção”. Uma história de manutenção começa
com uma organização de objectos (tipicamente, objectos virtuais) e é
constituída pelas actividades de um grupo de seres inteligentes agindo
em concordância com as prescrições de uma “constituição” (como a
que consiste nas três regras anteriores e algumas regras acerca da
substituição de membros da sociedade) para manter essa
organização. Em qualquer dado ponto numa história de manutenção,
podemos afirmar que essa história tem determinados “objectos
actuais”: os objectos que se organiza assim segundo o padrão que a
instituição foi instituída para manter. No nosso exemplo, em qualquer
dado momento, três lápis são nesse momento os objectos actuais da
história de manutenção.

Um exemplo mais realista de uma história de manutenção poderia ser


dado pela história de uma pilha de lenha. Os troncos são inicialmente
empilhados de um certo modo, e esses troncos vão sendo
substituídos de acordo com uma instituição informal, em vigor entre as
pessoas que usam a pilha. Ou, mais uma vez, os nossos legionários
presumivelmente agem de acordo com as prescrições de uma
determinada instituição ao manter a organização de grãos de areia
apresentada anteriormente; se não o fizessem, o deserto logo ficaria
plano mais uma vez. Os troncos empilhados, portanto, são os objectos
actuais de uma história de manutenção, assim como os grãos de areia
empilhados. E, como argumentámos, uma casa difere de um forte de
areia ou uma pilha de lenha somente na medida em que os objectos
virtuais que a compõem e as forças físicas que garantem a
estabilidade da sua organização são mais diversos. E uma casa,
evidentemente, tem por norma uma história de manutenção. (Mesmo
se uma casa nunca sofreu quaisquer reparações, há normalmente
pessoas cujas responsabilidades e disposições para as desempenhar
as levariam a repará-la sob certas circunstâncias — como poderíamos
dizer, não há entradas no registo, mas as regras para as fazer foram
estabelecidas. E esse tanto é suficiente para a casa ter uma história
de manutenção.)

Podemos parafrasear “A mesmíssima casa que está aqui agora


permaneceu aqui durante trezentos anos”, do seguinte modo:

Há tijolos (ou, mais geralmente, objectos) organizados de modo casiforme aqui agora,
e esses tijolos são os objectos actuais de uma história de manutenção que começou
há trezentos anos; e em nenhum momento nesse período estiveram os então-actuais
objectos dessa história organizados de modo casiforme senão aqui.

(Se eliminássemos a última oração, obteríamos uma paráfrase de “A


casa que está aqui agora existiu durante trezentos anos”.) Sem dúvida
que se poderia melhorar essa paráfrase. Considere, por exemplo, a
seguinte dificuldade. Suponha que os tijolos que virtualmente
compõem uma casa permaneceram nesse local até há pouco tempo,
quando foram desmontados por um demónio caprichoso e
imediatamente organizados, uma vez mais, de modo casiforme, mas
seguindo um desenho inteiramente diferente. Então, a frase original
exprimiria uma falsidade mesmo quando compreendida no sentido lato
e popular. Mas a paráfrase pode muito bem ser verdadeira, pois pode
suceder que os blocos continuam a ser objectos de uma história de
manutenção tricentenária; se os responsáveis por manter a casa
começam imediatamente a desfazer o trabalho do demónio e a
colocar os tijolos novamente como estavam antes, então deveríamos
saber que isso teria sucedido. Uma segunda dificuldade: suponha que
toda a gente no mundo morria subitamente de uma causa que
deixasse os tijolos imperturbados. Nesse caso não há mais uma
história de manutenção da qual os tijolos são os objectos actuais, mas
“A casa existe” continua a exprimir seja que género de verdade for que
exprimia antes de todas as constituições se tornarem vácuas.

Creio que a todos esses exemplos se pode dar resposta. Por exemplo,
podemos afirmar que determinados tijolos são objectos
“apropriadamente actuais” da história de manutenção, que figuram na
nossa história se são os objectos actuais dessa história e, se estão
agora organizados de modo casiforme, não estão organizados de
modo casiforme devido à aplicação de forças que operam
independentemente da constituição que pertence a essa história. (No
nosso primeiro exemplo, os tijolos que estão aqui e agora organizados
de modo casiforme não são objectos apropriadamente actuais da
história da qual são objectos actuais, uma vez que a sua presente
organização casiforme se deve a um demónio cujas actividades não
fazem parte dessa história.) Tendo introduzido esse conceito,
podemos modificar a nossa paráfrase de modo que diga “(...) são os
objectos apropriadamente actuais (...)” Quanto ao segundo exemplo,
talvez fosse suficiente acrescentar uma oração mais ou menos como
“(...) ou se não são os objectos actuais de qualquer história de
manutenção, estão organizados muito aproximadamente a como a
última história de manutenção de que faziam parte os deixou”.

Sem dúvida que se poderia imaginar outros casos que tornariam


imprescindível um desenvolvimento ulterior da técnica de paráfrase
que introduzi por via do exemplo. (Por exemplo, o que dizer de coisas
como taças para vinho, que nunca são reparadas quando danificadas?
E o que dizer de coisas como charutos, que são, num certo sentido,
feitas para serem destruídas?) Não desenvolverei muito mais esta
linha, pois estou convencido de que a proposta que fiz está na pista
certa: afirmações que são aparentemente acerca da persistência de
artefactos fazem referência velada às disposições de seres
inteligentes para manter determinadas organizações de matéria.
Podemos comparar afirmações desse género com afirmações
aparentemente acerca da persistência de constelações (“Os céus
mudam lentamente; as constelações de hoje são as constelações a
que os gregos deram nome”), as quais fazem referência velada às
perspectivas de efectivos ou possíveis observadores dos céus.

Essa proposta tem a virtude de explicar certas tendências intrigantes


que temos no nosso discurso acerca da persistência de objectos
virtuais. Por que razão queremos dizer que o velho Ingersoll do tio
Henrique está agora em pedaços sobre a banca do joalheiro, e que
não há relógios na lata de retalhos do joalheiro, embora se pudesse
construir cinquenta relógios (de cem mil modos diferentes) a partir das
engrenagens e molas que ali se encontram? Resposta: porque as
engrenagens e molas espalhadas sobre a banca do joalheiro são os
objectos actuais de uma história de manutenção e nenhuma das
engrenagens e molas na lata de retalhos o é (ou seja, não há x tais
que os x estão na lata de retalhos e os x são os objectos actuais de
uma história de manutenção).5 Por que razão é pelo menos uma piada
dizer que isso é o machado do meu bisavô, embora tenha tido duas
novas cabeças e cinco novos cabos desde o tempo daquele? Por que
razão temos pelo menos uma tendência para afirmar que este barco é
o barco original de Teseu, embora as tábuas que Teseu originalmente
pisou se encontrem alhures e estejam organizadas entre si tal como
estavam quando ele as pisava? A resposta em cada caso reside no
facto de determinados objectos (virtuais) agora diante de nós serem
os objectos actuais de uma história de manutenção.6

A teoria de artefactos que propus nesta secção não responde a todas


as questões filosóficas acerca de artefactos. No restante da secção
tratarei de cinco questões acerca de artefactos que ficaram sem
resposta. O meu tratamento dessas questões pretende dar exemplos
de modos pelos quais se poderia ampliar e aplicar a teoria. Mas é
concebível que um filósofo que aceitasse a teoria pudesse preferir
outros tratamentos a algumas dessas questões ou todas.

Primeira questão: o que dizer de adições ou modificações estruturais


consideráveis a um artefacto? Não pode uma nova ala ser adicionada
a uma casa? Quando a velha ala norte é consumida num incêndio,
não podem os proprietários decidir não a reconstruir? Não poderá uma
casa ser consideravelmente reconstruída de modos que não podem
ser descritos em termos de adição ou subtração de quartos ou alas?
Não pode uma casa manter a sua identidade através desses
episódios, em seja que sentido for passível de manter a sua
identidade através da substituição gradual dos tijolos que a compõem?
Não haverá questões análogas acerca de barcos e pontes — e
mesmo acerca de relógios e sapatos? Quanto a mim, pode-se dar
respostas plausíveis a essas questões no enquadramento da teoria
que propus, se pressupormos que as “constituições” que subjazem a
pelo menos alguns géneros de história de manutenção permitem
acréscimos e decréscimos significativos no número de objectos
actuais dessas histórias ou permitem mudanças significativas no modo
como os objectos estão organizados, tal como a constituição de um
estado pode permitir um acréscimo ou decréscimo significativo no
número pastas ministeriais, ou mudanças estruturais significativas na
organização ministerial. (Nesse caso, poderia ser mais apropriado
falar numa história de manutenção e modificação, em vez de
simplesmente numa história de manutenção, mas manterei a
expressão original.) Se, como parece razoável, uma história de
manutenção pode ser regida por uma constituição com esta
característica, então há um modo óbvio de escrever paráfrases de
frases aparentemente acerca da persistência de artefactos através da
reconstrução. Eis uma paráfrase modelo: “Quando foi construída, essa
casa acolá era menor, uma vez que só em 1952 foi acrescentada a
garagem” é parafraseada como “Os objectos iniciais da história de
manutenção dessas coisas organizadas de modo casiforme acolá
ocupavam colectivamente menos espaço do que ocupam essas
coisas acolá, uma vez que só em 1952 os então objectos actuais
dessa história incluíram coisas organizadas de modo garagiforme”. Se
alguém ficar desconfortável com o contraste entre a frase original
simples e idiomática e a sua paráfrase pouco natural e abstrusa,
deixai-o reflectir no contraste entre a frase simples e idiomática “O Sol
pôs-se atrás dos ulmeiros” e a sua paráfrase pouco natural e abstrusa
(p. 112).

Segunda questão: O que dizer acerca de frases modais e


contrafactuais que aparentemente são acerca de artefactos? Ou seja,
frases como “Esta casa podia ter sido maior” ou “Se esta casa fosse
maior seria mais fácil avistá-la do outro lado do rio”? Uma paráfrase da
primeira pode servir como modelo: “Estas coisas organizadas de
modo casiforme são os objectos de uma história de manutenção tal
que poderia ter tido objectos que colectivamente ocupassem mais
espaço do que essas coisas efectivamente ocupam”. O leitor notará
que desta sugestão decorre que a nossa capacidade de atribuir
verdade ou falsidade a proposições expressas por frases como “Esta
casa podia ter sido maior” depende da nossa capacidade de identificar
eventos em situações contrafactuais. Podemos atribuir valor de
verdade a essas frases somente na medida em que somos capazes
de afirmar acerca de uma história de manutenção efectiva que isso,
esse mesmo evento, teria ocorrido sob determinadas circunstâncias
contrafactuais.7
Terceira questão: O que dizer de frases nas quais ocorrem palavras
ou expressões que são aparentemente nomes próprios de artefactos
— frases como “O Palácio de Buckingham é confortável”?8 Talvez
notemos que os eventos, como os continuantes, podem ter nomes
próprios: “Segunda Guerra Mundial”, “Revolução Francesa”, e assim
por diante. Mas nesse caso não há razão pela qual uma história de
manutenção não poderia ter um nome próprio — um nome como,
digamos, “a história do Palácio de Buckingham”. (Os nomes próprios
de histórias de manutenção não precisam de conter nomes próprios —
ou aparentes nomes próprios — de artefactos. Poder-se-ia introduzir
um nome próprio para uma história de manutenção simplesmente
apontando e dizendo algo como “Vê essas coisas organizadas
palacianamente? Chamemos à história de manutenção de que elas
são os objectos actuais “Winifred””.) Se assim for, então “Os objectos
actuais da história do Palácio de Buckingham estão organizados de
modo confortável” pareceria uma paráfrase aceitável de “O Palácio de
Buckingham é confortável”.

Essa sugestão pode, evidentemente, ser combinada com a sugestão


anterior para gerar um modo de parafrasear frases como “O Palácio
de Buckingham podia ser ainda mais confortável”.

Quarta questão: O que dizer acerca de artefactos que se mantêm a si


próprios? Podemos imaginar uma máquina que se reparasse e
realizasse outros tipos de manutenção a si própria. Ou, se o leitor
preferir, podemos imaginar uma série de partes de uma máquina
organizadas de modo tal a preservar determinadas características da
sua organização mútua contra a dissolução entrópica, explorando de
um modo flexível as oportunidades que lhes são oferecidas pelo seu
ambiente. Essas partes nunca seriam os objectos de uma história de
manutenção no sentido de uma história de operações realizadas sobre
elas por agentes externos capazes de agir segundo propósitos. Noutro
sentido, mais liberal, de “história de manutenção”, evidentemente,
seriam os objectos de uma história de manutenção idêntica às
operações mútuas dessas mesmas partes. Não haveria pelo menos
tanta razão para afirmar que essas partes de máquina comporiam um
objecto real, que persiste no tempo, quanta a que há para afirmar o
mesmo acerca dos átomos ou simples cuja actividade constitui a vida
de um organismo?

Bom, talvez. Não afirmei, estritamente falando, que não há quaisquer


artefactos, mas somente que (além dos simples) não há senão
organismos vivos. Lembremos a nossa serpente inteligente, que foi
momentaneamente um artefacto. Se um superbiólogo do futuro
chegasse a fazer uma ameba “directamente” a partir de átomos, talvez
essa ameba fosse simultaneamente um artefacto e um organismo.
Talvez a criatura do Dr. Frankenstein fosse simultaneamente um
artefacto e um organismo. E talvez uma máquina que se pudesse
manter a si própria fosse um organismo. (Talvez o nosso clube de
autómatos seja um exemplo de semelhante máquina: não vejo
qualquer razão para pensar que um organismo, em termos de
necessidade conceptual, tenha de ser um objecto espacialmente
conectado.) Quando as pessoas falam na possibilidade de os
cientistas “criarem vida”, normalmente pensam na possibilidade de
criar coisas vivas cujas partes virtuais não-vivas de maiores
dimensões são enormes moléculas orgânicas: coisas que têm o tipo
de vida que nós e os cães e as amebas temos. Mas talvez possa
haver coisas vivas que têm molas e diodos ou montagens desses
componentes como suas partes virtuais não-vivas de maiores
dimensões. Não é fácil determinar isso. Se é ou não difícil determinar
porque a possibilidade dessas “máquinas vivas” está muito afastada
da nossa experiência e não temos senão uma ideia muitíssimo vaga
de como se supõe que devem ser, ou se isso é difícil de imaginar
simplesmente porque o conceito de vida é vago, é em si mesmo difícil
de determinar.

Alguém que em geral simpatize com a minha posição poderá pensar


que esta tem de ser tornada mais flexível. Essa pessoa poderá sugerir
que o tipo de evento que deve figurar numa resposta correcta ao
problema especial da composição é um tipo de que as vidas “moles”
ou “orgânicas” ou “biológicas” são um caso especial, um tipo que
poderia ter como membros não só vidas moles mas “vidas rígidas”:
eventos constituídos pelas operações mútuas de objectos virtuais não-
vivos suficientemente grandes para serem visíveis. Não sou
irremediavelmente hostil a essa sugestão. Tão-pouco estou preparado
para a subscrever.

Quinta questão: “As histórias de manutenção, em alguns aspectos,


são como aquilo a que chamámos “vidas”. São indubitavelmente
eventos homeodinâmicos. Por que não explorar essa semelhança e
“inserir” artefactos na nossa ontologia? Mais formalmente, por que não
dar a seguinte resposta ao problema especial da composição?

(∃y os x compõem y) se e somente se

a atividade dos x constitui uma vida ou os x são os objectos actuais de uma história de
manutenção.

Essa resposta contraria todos os meus instintos mais profundos. A


questão de determinadas coisas constituírem ou não uma vida é uma
questão acerca das relações que têm entre si e acerca de nada mais.
A questão de determinadas coisas serem ou não os objectos actuais
de uma história de manutenção, porém, é uma questão acerca dessas
mesmas coisas e também de outras. Podemos afirmar que agir de
modo a constituir uma vida é uma relação multígrada “interna” e que
ser o objecto corrente de uma história de manutenção é uma relação
multígrada “externa”. Os meus instintos mais profundos dizem-me que
a composição é uma relação interna e que, portanto, uma resposta
apropriada ao problema especial da composição tem de assumir a
forma de uma afirmação que assere uma equivalência extensional
necessária entre a relação expressa por “os x compõem algo” e uma
qualquer relação multígrada interna. Ou podemos evitar falar em
relações externas e internas e dizer simplesmente que uma resposta
apropriada ao Problema Especial da Composição tem de ser conforme
ao seguinte princípio:

Se os x compõem algo, e se os y duplicam perfeitamente os x (tanto nas suas


propriedades intrínsecas e nas relações espaciotemporais e causais que têm entre si),
então os y compõem algo.

Considere-se, por exemplo, alguns blocos que são empilhados de


modo torriforme. Suponha que Deus criava uma réplica perfeita,
átomo-a-átomo (ou simples-a-simples) de cada bloco e que alguém
empilhava as réplicas para formar uma torre exactamente do mesmo
modo que os originais se encontram empilhados. (Ou seja, suponha
que alguém fazia que o seguinte se verificasse: Para cada x, y, e R,
se x e y são dois dos blocos originais e R é uma relação causal ou
espaciotemporal, a réplica de x está em R com a réplica de y se, e
somente se, x está em R com y.) Então as réplicas compõem algo
(uma torre de blocos, presumivelmente), se, e somente se, os originais
compõem algo.

A resposta “liberal” ao problema especial da composição que ora


consideramos não se conforma ao princípio da replicação (como lhe
chamo). Suponha que uma criança esvazia um saco de blocos sobre o
soalho e que alguns desses blocos por acaso caem de tal modo que
formam uma pilha torriforme. Suponha que ninguém reparou neste
facto. Suponha que a criança empilhou outros blocos exactamente do
mesmo modo quando visitava uma tia afectuosa e sentimental, que
decidiu manter esses blocos precisamente como a criança os deixou,
em memória da sua visita. Se a resposta “liberal” está correcta, então
os blocos do último exemplo compõem algo e os blocos do primeiro
exemplo não, o que viola o princípio da replicação. (Podemos notar
que o princípio da replicação exclui qualquer metafísica de acordo
com a qual a existência de coisas físicas depende das atitudes ou
actividade mental de seres humanos ou outros observadores do
mundo. Se não houvesse seres humanos — ou marcianos ou seja o
que for — então haveria estrelas e electrões e montanhas se, e
somente se, há efectivamente estrelas e electrões e montanhas. A
nossa actividade conceptual pode envolver muito o delimitar de
fronteiras, mas delimitar uma fronteira em torno de uma região
espacial repleta não torna verdadeiro que há uma dada coisa que
preenche precisamente essa região. Se as operações causais mútuas
das coisas nessa região podem fazer isso, não requerem qualquer
assistência das actividades mentais de observadores externos, e se
não podem fazer isso, nenhuma actividade externa as pode ajudar a
fazê-lo.)

Ora, poder-se-á argumentar que a tese central deste livro, a resposta


proposta, não se conforma ao princípio da replicação. Suponha-se
(como poderia prosseguir o argumento) que há alguém exactamente
igual a mim — até ao patamar subatómico — excepto que essa
pessoa perdeu a orelha direita. Sejam os x os átomos que compõem a
dita pessoa, e sejam os y os átomos que me compõem, não tomando
em consideração os que compõem a minha orelha direita. Nesse
caso, segundo a resposta proposta, os x compõem algo, mas os y,
que replicam perfeitamente os x nas suas propriedades intrínsecas e
nas relações que têm entre si, não compõem coisa alguma. E essa
consequência da nossa suposição viola o princípio da replicação.
Respondo que a suposição é impossível, devido ao facto de que as
actividades dos átomos adjacentes à minha orelha direita são
afectados pela presença dos átomos que compõem (virtualmente)
essa orelha, e assim não reproduzem as actividades dos átomos na
posição correspondente na minha contraparte mutilada, que compõem
tecido cicatricial e não são adjacentes a seja o que for além de ar.
Mais geralmente, se os xcompõem um organismo mutilado, então não
poderia haver y tais que os y replicam perfeitamente os xe os y se
encontram apropriadamente entre alguns objectos que compõem um
organismo não-mutilado. (Um universalista poderia formular a ideia do
seguinte modo: nenhuma parte apropriada de um organismo não-
mutilado poderia ser uma réplica perfeita de um organismo mutilado.)
“Mas suponha que no preciso instante em que a orelha da sua
contraparte é amputada a substituem por um apêndice inorgânico que
replica perfeitamente os poderes causais da orelha amputada. Então
os átomos adjacentes ao “interface” comportar-se-iam exactamente
como se teriam comportado se a orelha não tivesse sido amputada”.
Se o “apêndice” replicasse perfeitamente os poderes causais da
orelha amputada, até ao patamar atómico, teria de ser uma réplica
átomo-a-átomo da orelha e portanto não seria “inorgânica”. Os átomos
que virtualmente a comporiam seriam imediatamente assimilados pela
minha contraparte, que assim se tornaria uma réplica perfeita de
mim.9 E esse resultado não contradiria o princípio da replicação.

Não sei como defender a minha fidelidade instintiva a esse princípio


excepto tentando, como tentei, apresentar o princípio a uma luz tão
apelativa quanto possível. Em todo o caso, é fácil ver por que razão
alguém dotado dos meus instintos rejeitaria uma resposta ao problema
especial da composição que envolva essencialmente o conceito de
uma história de manutenção.

Há uma segunda razão para rejeitar qualquer resposta semelhante.


Considere-se uma vez mais o barco de Teseu. Afirmámos que apelar
à noção de uma história de manutenção explica por que razão temos
uma forte tendência para afirmar que o barco que “sofre manutenção”
é o barco cujas tábuas Teseu originalmente pisou. Mas não
esqueçamos que temos também uma forte — talvez mais forte —
tendência para afirmar que o barco “reconstruído” é esse barco. Se
aceitamos uma resposta ao problema especial da composição que
implique que tábuas organizadas de modo naviforme podem compor
um objecto, então seremos confrontados com a tarefa de reconciliar
essas tendências opostas, e essa é uma tarefa que seria agradável
evitar. (Note-se que não há qualquer tendência para identificar
um organismo “reconstruído” com o “original”. Se Deus “reagrupasse”
os átomos que me compuseram há dez anos, o organismo resultante
seguramente não seria eu.)

Nesta secção discutimos certas frases portugesas, como “Esta casa


permaneceu aqui durante trezentos anos”, que são normalmente
discutidas em ligação com “o problema da identidade ao longo do
tempo”. Mas se a nossa resposta ao problema especial da
composição estiver correcta, essas frases não podem ter qualquer
conexão mais íntima com esse problema (seja o que for ele ao certo),
pois nesse caso não há casas ou outros artefactos, e assim não há
qualquer problema acerca da sua persistência ao longo do tempo.

Na secção seguinte, a secção 14, examinaremos a persistência ao


longo do tempo dos únicos objectos que há: organismos e simples.
(Examinaremos também o problema da identidade contrafactual ou
“identidade transmundial” para organismos e simples.) Na secção 15
discutiremos um problema especial, porém importante, da identidade
ao longo do tempo para organismos: o problema do “transplante
cerebral”.

Peter Van Inwagen


Retirado de Material Beings (Ítaca: Cornell University Press, 1990), secção 13. Revisão da tradução
de Lucas Miotto.

Notas
1. Um argumento que provavelmente nos ocorrerá, visto que somos tão
inteligentes, é que — supondo a sobreveniência do mental relativamente
ao físico — se há uma rede distinta de uma serpente, a rede tem todas
as mesmas crenças que a serpente (deixando de parte minudências
acerca de crenças indexicais). Como a serpente, a rede crê que existia
antes de a serpente ter sido entretecida para formar uma rede e que
continuará a existir depois de a serpente ser desenredada. Ao contrário
da serpente, porém, a rede estará errada nessas crenças. A rede está,
por exemplo, felizmente insciente de que deixará de existir quando a
serpente for desenredada. Dado que nenhuma serpente deixa de existir
quando a serpente é desenredada, a rede está errada ao pensar que é
uma serpente. ↩
2. O autor aqui faz referência ao capítulo 8 de Material Beings. Nesse
capítulo, o autor caracteriza o Universalismo como a tese de que “Em
todo mundo possível no qual, por exemplo, Tom, Dick e Harry existem,
também existe um conjunto que só os contém a eles” (p. 74). N. do
T. ↩
3. Note-se que a hesitação acerca de como responder à questão “Será a
casa que está agora aqui a mesma que estava aqui então?” não é para
ser explicada por referência à nossa hesitação acerca de aplicar ou não
algum termo geral vago — a menos que esse termo seja “mesma”.
Embora “casa” seja indubitavelmente um termo geral vago, esse facto
pareceria irrelevante para a nossa hesitação, visto que — podemos
assim estipular — a casa que está agora aqui e a casa que aqui estava
então são ambas casos centrais, perfeitamente claros de casas. Ou pelo
menos isso é verdade se as casas são objectos tridimensionais. Se as
casas são objectos tetradimensionais, que se prolongam no tempo bem
como no espaço, então podemos explicar a hesitação acerca de como
responder à pergunta sobre a casa “agora” e a casa “então” serem ou
não a mesma, por referência à hesitação acerca de aplicar ou não um
termo geral vago. Esse ponto será desenvolvido em detalhe na secção
18, que inclui também uma discussão da vagueza e da Lei do Terceiro
Excluído. ↩
4. “Nigre” é o termo usado por van Inwagen para se referir a um animal
que, ao longe, se parece com um tigre negro, mas que na verdade é
uma colecção de seis animais agrupados na forma de um tigre negro.
Inwagen usa o exemplo para ilustrar que tal como incorreríamos em erro
ao afirmar “há aqui um nigre” — já que não há no mundo um objecto que
seja um nigre, mas apenas diferentes objectos agrupados na forma de
um nigre — incorreríamos igualmente em erro ao afirmar
que há cadeiras, mesas, ou outros artefactos. Nada no mundo, de
acordo com Inwagen, é uma mesa ou cadeira. Há apenas objectos
agrupados na forma de uma mesa ou cadeira. Leia-se a piada original
sobre o nigre em Material Beings, p. 103-105. N do T. ↩
5. Não afirmo que a teoria de artefactos que propus “torna verdadeira” a
frase “O velho Ingersol do tio Henrique está agora em pedaços sobre a
banca do joalheiro”. Se isso é ou não assim, depende de que proposição
foi, de acordo com a nossa teoria, expressa por essa frase.
Seguramente não é verdadeiro que as peças sobre a banca estão agora
organizadas de modo relojiforme, e pode-se argumentar plausivelmente
que a frase citada exprime uma verdade (de acordo com a nossa teoria)
somente se essas peças estão agora organizadas de modo relojiforme.
Afirmo apenas que essa teoria dos artefactos explica a nossa tendência
para proferir aquela frase e a correspondente ausência de qualquer
tendência para proferir qualquer frase semelhante no que diz respeito às
partes que estão na lata dos retalhos. ↩
6. Concedo, porém, que a nossa teoria nada faz para explicar a nossa
tendência pelo menos igualmente forte para afirmar que o barco
reconstruído a partir das tábuas “originais” é o barco original. ↩
7. As minhas próprias perspectivas acerca da identidade contrafactual de
eventos encontram-se em “Ability and Responsability”, Philosophical
Review 87 (1978): 201-224, e An Essay on Free Will (Oxford: The
Clarendon Press, 1983), pp. 167-170. ↩
8. Esta questão foi-me colocada por Eric Olson. ↩
9. Isto é talvez demasiado simples. O que é seguramente verdadeiro é o
seguinte: pelo menos a camada de átomos que compõem virtualmente
a superfície do apêndice justamente na interface do apêndice carnal
teria de ser uma réplica perfeita da camada correspondente de átomos
na orelha amputada, se o apêndice na realidade replicasse
perfeitamente os poderes causais da orelha amputada. Mas então esses
átomos seriam assimilados pelo organismo. Podemos aplicar esse
raciocínio uma e outra vez, uma camada de átomos de cada vez, até
que todo o apêndice tenha sido assimilado — e seja, efectivamente,
uma orelha. ↩

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