Professional Documents
Culture Documents
PORTO VELHO
2013
DEIVIS NASCIMENTO DOS SANTOS
PORTO VELHO
2013
FICHA CATALOGRÁ FICA
BIBLIOTECA PROF. ROBERTO DUARTE PIRES
S2373l
Santos, Deivis Nascimento dos
Literatura e devir em Murilo Rubião: uma leitura na diferença / Deivis Nascimento
dos Santos. Porto Velho, Rondônia, 2013.
80f.
CDU: 82-34
INTRODUÇÃO...........................................................................................................01
1. DEVIR: DIFERENÇA.......................................................................................06
1.1 Pensando em diferença.............................................................................07
1.2 Literatura faz a diferença...........................................................................10
1.3 O impessoal: força personífuga.................................................................12
1.4 Ethos: Crítica e Clínica: o projétil literário..................................................15
3. RUBIÃO EM DEVIR.........................................................................................41
3.1 Teleco o coelhinho.....................................................................................44
3.2 Simples Dragões .......................................................................................54
3.3 Esse homem trouxe os quadradinhos (O homem do Boné Cinzento).......67
3.4
4. CONCLUSÕES................................................................................................76
5. BIBLIOGRAFIA................................................................................................78
INTRODUÇÃO
“[...] ser uma coisa é não ser passível de interpretação”
Fernando Pessoa
Reconhecendo que os signos literários podem ser tomados e produzidos em
diversas perspectivas, este trabalho objetiva investigar a articulação e produção de
um Devir atingido pelo procedimento literário que se concretiza como uma Diferença
na sugestão de Gilles Deleuze, em grande parte, e deste com Felix Guattari – em
conexão com outras confirmações argumentativas de outros autores pertinentes aos
pressupostos que nos fundamenta. Compondo ainda o objetivo principal, a
investigação especifica-se um pouco mais, ao sugerir a produção desse Devir, nos
contos do escritor brasileiro Murilo Rubião.
O Devir literário, enquanto realidade própria e articulador de diferença, sugere
uma operação de leitura que se torna incompatível com os procedimentos da
representação – entendida, sob tutela dos teóricos escolhidos, como processo de
mediação que submete os eventos literários à identidade, oposição, analogia e
semelhança; e entre ambas as perspectivas trava-se uma fecunda discussão.
A princípio, surge da indagação de como é possível criar novos conteúdos e
expressões ao pensamento que não estejam presos a reverberações de um núcleo
transcendente formal que preveem (com naturezas, universais, sujeitos, objetos,
propriedades etc.) as possíveis cadeias de expressões que serão suas
representantes dos níveis de designação mais simples aos aparatos analógicos,
metafóricos, simbólicos e de projeções. Portanto, inicia-se numa busca filosófica.
Mas esse início é, na realidade, o meio. A saída encontrada foi a conexão, o
encontro inevitável, com a não-filosofia, ou seja, os outros modos de retirar o
pensamento de sua imobilidade e que não estão necessariamente subalternos às
representações clássicas e estruturantes do pensar: atitudes imediatas que forçam
uma reorganização intempestiva de compreensão e ação: os momentos
revolucionários, as guerras, as sociedades secretas, as artes, enfim, a literatura; que
forçam uma fuga e a necessidade de alianças e máquinas a-significantes em relação
às vigências; configurações semióticas que cessam a circulação refratária da
interpretação – entendida como extração de sentidos, os sentidos por trás da
máscara; que vão desde as antigas moral da história e exegese, às metáforas e
1
alegorias funcionando como um espelho sempre do universo humanista; às vezes
com invertidos papéis, mas sempre sobre o mesmo arquétipo. (Deleuze costuma
dizer que representação e interpretação formam o casal do déspota e o padre . Ou
seja, são partes complementares de um dispositivo: um produz as propriedades, o
modelo; o outro detém o saber de extração, na produção em massa de enunciados,
deste sentido primeiro; e pode reconhecer e autorizar o que o pode substituir em
manutenção, em sua representação. Tomei a liberdade de chamar esse conjunto de
codec – emprestado da nossa tecnologia de informática, software de codificação e
decodificação1).
Mesmo partindo de uma aventura filosófica, essa perspectiva não deve
submeter o texto literário como suporte de conteúdos para uma visão filosófica. Ao
contrário, aposta na sua singularidade mais radical de expressão por intensidades,
quando produz diferenças irreversíveis, falhas intransponíveis que traem as
remissões, designações, denotações e conotações apoiadas em precedências para
funcionarem; que em seu plano faz nascer o que não existe, ao invés de apenas
representar o que já está dado. É neste ponto que é excesso, relação com o fora.
Mas é justamente aqui que atinge uma dimensão ética por excelência, pois é
abertura de novas possibilidades de vida, opondo-se ao âmbito ético-moral que já
predispõe os condutos. Trava-se então uma guerrilha contra os dualismos no seio
da própria linguagem: contra significados formados e reverberações representantes.
A linguagem literária deve ser projétil e não projeção: é uma realidade própria em
resposta ao real e não apenas o fantasma ou “algo que está por outro”; é a
positividade do simulacro, gerando um duplo não semelhante que passa a ser um
excesso em relação ao modelo; abolição da noção de original e derivado, bem como
a relação de semelhança que ignora o que se passa na diferença, tornando esta
apenas oposição conceitual, legitimando apenas o que se procede por identidade.
1
Este parêntese é um intervalo descontraído. CoDec é o acrônimo de
Codificador/Decodificador. Eles são programas que codificam e decodificam arquivos de
mídia, favorecendo compactação para armazenagem e descompactação para visualização.
Tal alusão a um dispositivo de mídia é devido ao funcionamento da representação como
mediação. Acesso em 20/11/2013: http://www.tecmundo.com.br/gravacao-de-disco/1989-o-
que-sao-codecs-.htm
2
Temos consequências, portanto, no modo de considerar a linguagem: deve-
se reconhecer que os agenciamentos coletivos são coextensivos à sua própria
origem e estão coagindo desde a menor articulação fonética à frase, aos discursos
ordenadores; reconhecer que a língua não é essencialmente informativa, nem para
que se acredite nela, mas para ser obedecida. O agenciamento literário deve
desestabilizar essas significâncias através de um uso intensivo, reatraindo o saber
para o sabor, fazendo Apolo abalar-se à sombra de Dionísio; diminuindo a
ofuscação e denunciando com o próprio corpo as arbitrariedades dos “naturais”, dos
próprios e propriedades, sujeitos individuais com pensamentos e interioridades a
expressar e objetos a se conhecer ou classificar. A literatura deve articular um plano
de composição, de imanência, que se torna senhor de seu sentido; experiência para
além da prescrição do possível. Resgata-se tudo ao pé da letra, caminhando sobre o
absoluto de um sentido, um devir que se dá como sentido. E nesse sentido exige-se
uma predisposição de leitura que não faça sínteses remissivas a partir de tropos,
simbolismos ou projeções, pois o Devir tem uma realidade e duração próprias,
diretamente estético-intensiva que escapam, mesmo em sua proximidade, à
dimensão retórica (conotações).
Dessa forma propõe-se uma leitura que acompanha os procedimentos
literários, observando as dimensões que criam, os efeitos que geram os elementos
narrativos em sua disposição interna; mas também observa o que acontece com
discursos (ideias e práticas) do nosso mundo externo em seu plano de composição
– discursos em pleno funcionamento, não representados. Na perspectiva em que se
espera Devir evocado, as observações não podem encarar o simulacro do texto
como abstração-significado que, no fundo, se “referiria” a algo de exterior. É preciso
tomá-lo como uma realidade completa em si, que deve ser visitada, explorada; em
que todos os efeitos são vivências afetivas e perceptivas: entrar no conto, em seus
cenários, como nós entramos em algum corredor obscuro, ou ambiente ensolarado;
se tal ambiente nos lembra outro em que já passamos, se já vimos essa pessoa em
algum lugar, que seja ao mesmo modo quando, do lado de fora, vemos algo que nos
lembra outro, mas ambos reais e com suas diferenças. Assim não se interpretará,
mas se descreverá (com todos os perigos que isto oferece como testemunho). Se
enquanto leitor despreocupado apenas se experimenta, enquanto compromisso
3
acadêmico se deve colar ao experimento nossos critérios expostos e se realizar o
relato.
Teremos que predispor o olhar para as anomalias, as a-significâncias e seus
afectos, projéteis que minam as instituições e corpos constituídos (os sujeitos, as
famílias, os Estados, os objetos, propriedades e classificações circulantes etc.);
principalmente, em nossa atualidade, contra um dos centros significantes que mais
tem emitido despotismos: o Homem: discurso despótico que recobre e se apropria,
conta a “História” das coisas. Mas os devires-minorias, animais, vegetais, minerais,
moleculares, cósmicos, nos testemunharão a sentir nessa “História” tão somente sua
autobiografia.
Predisposto esse olhar para Diferenças autênticas (pensadas em si mesmas),
o direcionaremos aos contos de Murilo Rubião. Deste, foram selecionados três que
dispõem de uma boa variedade possível de devires por atuarem em diferentes
elementos narrativos ao mesmo tempo: Teleco, o Coelhinho, Os Dragões e O
Homem do Boné Cinzento. Vejamos o quanto a escritura de Rubião é rica para além
do representável, em articulação de diferenças, sobre as quais os discursos
interpretantes têm de fazer recortes, exclusões ou recuperações delicadamente
forçadas sobre sua matéria indócil. Encaremos os signos como acontecimentos,
como presença de forças, seres de linguagem que só designam a si mesmos, mas
que, ao contrário de serem intransitivos ao mundo, são passagens a se fazer;
intensidades, no entanto respostas diretas àquilo que as provocam na circularidade
do mundo. É neste Devir que iremos, proposto por Deleuze, por Guattari, por
elementos de outros pensadores de quem se apropria componentes (Nietzsche,
Blanchot, Foucault, Derrida, Lyotard, Schwartz) e principalmente pelos escritores, os
criadores de Devir e dentre os quais, principalmente, Murilo Rubião. Enfim, o que
mais motivou esta dissertação não é a pretensiosa busca por um tema ou um
recorte ainda não tratado, mas o fascínio e inquietude que essa perspectiva de
leitura provoca, pela revisão inevitável de noções aceitas, dadas como irrevogáveis
pela constante prática (incluo aqui o autor da dissertação, que se sentiu muito
contrariado nos primeiros contatos com essas ideias). Não se espera, aqui, discutir
até os limites essa revisão que acompanha tal perspectiva; mas sim, contribuir com
4
um esclarecimento mínimo que situe a discussão e uma possível operação de
leitura.
5
1. Devir: Diferença
O rosto grave, olhar fixo, uma minúscula estrela cintila seu apelo talvez
menos por seu brilho do que pela treva que a envolve e a torna quase indiscernível
de si. Minúscula estrela anônima, justamente ao lado de uma tão midiática figura, já
violada por decalques que tomam a frente do olho e nos comunica o que não vemos:
a Lua. Com certeza, se o personagem fosse buscar a lua, nós teríamos
imediatamente muito mais coisas a dizer, comunicadas há tempos por todas as
projeções, simbologias, metáforas e analogias: a demonstração de amor à amada,
ou mesmo projeções de um desejo inominável por recalque, atraindo o lobisomem
como personificação da copulação macho-fêmea etc. No entanto, com um toque
feminino, Bárbara não indica a “pop-star”, mas uma minúscula estrela que, no texto,
não oferece amplas margens para sinônimo ou epíteto, pois é olhada e contemplada
apenas como uma minúscula estrela quase invisível ao lado da lua. A redundância é
necessária, pois, evento repentino sem interpretante, celebra o pequeno
esquecimento e alegria nervosa, pois grave é o rosto, de um olho que atingiu sua
plenitude de simplesmente “ver” uma estrela despida de discurso, e que, por isso,
oferece-se e oferece um instante de puro querer, sonho de bebê, com apenas
palpitações indiscerníveis se de prazer ou agonia; um devir irresistível no qual, os
mais resistentes, ou melhor, reacionários – todos nós ao primeiro impacto – talvez
ainda tentem perguntar: por que a estrelinha minúscula? (pergunta que almeja
resgatar algum discurso que nos salve do caos, da catástrofe). Ficamos instalados
na diferença, suspensos ao tempo-espaço homo faber, e por isso, contemporâneos
a uma vida em plenitude, olhando-nos “ao vivo”. Pelo desfecho desse conto nos
lançamos nesta investigação da expressão/pensamento na diferença através do
6
Devir que o agenciamento literário de Murilo Rubião pode sugerir. Vejamos, a
princípio, tendências contemporâneas a que a leitura de certo agenciamento em
Devir (conjunto discursivo) na obra muriliana pode se conectar.
Há estrelas que não vemos nos espaços escuros mas que, de acordo com
astrofísica, estão lá; se não as vemos é porque sua luz, devido à velocíssima
expansão, não chega a nossos olhos. Com este exemplo para chegar a uma
definição de “contemporâneo”, em Giorgio Agamben já vamos encontrando
conexões:
Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e
não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo [...] ser pontual
num compromisso ao qual se pode apenas faltar [...] o nosso tempo
[...] não pode em nenhum caso nos alcançar [...] o compromisso que
está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente
no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro
deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade.
(AGAMBEN, 2009, p. 65)
8
uma potência abominável ao platonismo: o duplo sem semelhança, a cópia maléfica.
No entanto, torna-se inútil apenas restituir os direitos da aparência, conferindo-lhe
sentido por proximidade a formas essenciais. É preciso que essa dessemelhança
atinja uma positividade capaz de abolir a necessidade preexistente, sobrecodificada,
potência primeira não mais recalcada pela ideia, tornando-se a própria coisa. Não se
trata somente de virar o simulacro contra o modelo, mas abolir a “noção” de original
e derivado, modelo e cópia, a relação de semelhança que ignora o que se passa na
diferença legitimando como saber apenas o que configura identidade:
É nessa aliança que surge uma procura na obra de arte e, em nosso caso
particular, na literatura, de uma instância de forças plenamente capazes de construir
verdades intensivas, de no seu finito plano engendrar infinitos, de fazer o
pensamento se empolgar e atuar livremente, discorrendo sobre sua superfície
9
expressiva que encerra todo conteúdo, ser e gramática, que se encontram
desterritorializados dos solos despóticos.
Literatura entra com essa cópia imperfeita, porém positiva, com essa potência
de desconfigurar o estabelecido em seu plano de composição. Na filosofia de
Deleuze compõe, como o diz Machado (2009, p. 29), seu procedimento de colagem
em que, ao privilegiar os pensamentos que diferem, utiliza dos procedimentos
literários para produzir seu discurso diferencial. Toma a literatura como intercessora
do pensamento, valorizando-a como processo autônomo e singular capaz de retirar
o pensamento de seu estupor e atuar sobre a(s) realidade(s). Para este pensador a
arte não é um suporte para um discurso filosófico subjacente, mas uma força
pensante capaz de revirar os modelos do pensar sedimentados e impostos por
representações clássicas. Dessa forma, faz interferir no percurso do pensamento
humano não só a linhagem da história da filosofia – em que escolhe principalmente
certos filósofos da diferença não tão classicamente difundidos – mas também o que
chama de não-filosofia ( as artes, a literatura no caso).
Poder-se-ia, neste aspecto de sua filosofia – se assim ainda se pode chamar
um pensamento que se quer nômade – tentar objetar que a literatura está de modo
servil a determinada filosofia. Entretanto, é o inverso: o que ele quer na linguagem
artística, literária, é sua potência singular que reverte os sentidos e, por isso, o
pensamento; arrastando-o para “fora”, a um ponto original de possibilidades.
Portanto, convoca, invoca a literatura em sua integridade física e espiritual, do jeito
que ela é: abolição do centro gravitacional do “é”: “[...] a experiência própria da
criação. E se pensar é criar, é porque faz nascer o que ainda não existe, em vez de
simplesmente representar o que já está dado” (LEVY, 2011, p. 128). Não viola,
portanto, com seu proveito tirado, a liberdade literária em nome de uma filosofia.
Esta é que faz uma concessão essencial, pensando em termos clássicos, pois se
conecta à não-filosofia e subsiste em seu plano. Deleuze distingue inclusive o modo
próprio de pensamento concernente às artes, à literatura, do modo propriamente
filosófico. Vemos em O que é a Filosofia? (2010) que, enquanto esta atua com
10
conceitos (concept), aquelas atuam a partir de um composto de sensações:
perceptos e afectos:
Os perceptos não mais são percepções, são independentes do
estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais
sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são
atravessados por eles [...] O artista cria blocos de perceptos e de
afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve manter-se
de pé sozinho [...] O percepto é a paisagem anterior ao homem, na
ausência do homem [...] Os afectos são precisamente esses devires
não humanos do homem, como os perceptos [...] são as paisagens
não humanas da natureza [...] só a vida cria tais zonas em que
turbilhonam os vivos, e só a arte pode atingi-la e penetrá-la em sua
empresa de cocriação [...] é preciso que o artista crie os
procedimentos e materiais sintáticos ou plásticos, necessários a uma
empresa tão grande que recria por toda parte os pântanos primitivos
da vida. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 193-194-199-200-205)
Alain Badiou, em Para uma nova teoria do sujeito (1994), faz uma discussão
sumária, porém precisa, sobre algumas tendências capitais de considerações sobre
a arte, principalmente na relação com a filosofia, que vem nos apoiar aqui. Distingue,
desde Platão, as tendências postas aqui em resumo:
didática: aparência e charme a uma verdade prescrita de fora, didática sensível com
objetivo educativo de uma verdade que a filosofia, ou os centros de saberes como
religião ou política, detêm por “exce lência” – vemos aqui a base mais simples da
leitura alegórica, metafórica, simbólica, representativa.
11
vantagem fica, no entanto com o poeta. Pois o pensador é apenas o
anúncio da virada [...] elucidação retroativa da historicidade do ser. Ao
passo que o poeta, no que lhe concerne, efetua na carne da língua, a
guarda do ser, daquilo que Heidegger chama de o Aberto.
A psicanálise, enfim, é aristotélica, absolutamente clássica [...] ensaios
de Freud sobre a pintura [...] Lacan sobre teatro ou poesia [...] A obra
de arte faz desvanecer, em sua forma, a cintilação indizível do objeto
perdido [...] provoca uma transferência porque exibe um objeto que é
causa do desejo. (BADIOU, 1994, p. 23-24).
13
As duas primeiras pessoas do singular não servem de condição à
enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós
uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o „neutro‟
de Blanchot). (DELEUZE, 1997, p. 13)
14
O fora concerne à força: se a força está sempre em relação com
outras forças, as forças remetem necessariamente a um fora
irredutível, que não tem nem mesmo uma forma, feito de distâncias
impossíveis de serem decompostas, através das quais uma força age
sobre outra ou é agida por uma outra.
15
possibilidades de cura” (MACHADO, 2009, p. 218). A linguagem desterritorializante,
o momento de crítica, abre, a partir da a-significância, novas possibilidades de vida,
aos “pensamentos fechados uma corrente de ar fresco ” – verso de um poema de
Bob Dylan citado em Diálogos (DELEUZE; PARNET,1998, p. 13). Esta é a dimensão
Clínica, recuperação da saúde mental que só se consegue no limite da palavra
louca, num devir-louco da linguagem. É justamente por isso que a imanência
solicitada à literatura não é intransitiva é, antes, intransigente. Se desinstala a noção
de objetos e sujeitos comunicantes, é para denunciar a arbitrariedade tornada
Natural sob certos despotismos e os centros exógenos de subjetivação e apreensão
do mundo. Atinge-se, enfim, numa linha de fuga criativa, uma abertura ética por
excelência, um espaço-tempo originário de conceber e sentir.
O plano de imanência em Deleuze não é a pseudo-imanência do recorte
estrutural, separação em significante e significado, ou sistema ideal abstraído de
processos culturais em andamento. Pelo contrário, faz guerrilha com esses
dualismos. No plano de imanência expressão e conteúdo estão em defasagens e
tensões apenas para que se construa e se funde um novo plano de pensamento e
liberdade, mas são indissociáveis: o agenciamento coletivo é coextensivo ao ponto
originário de expressão; se esta protesta é para rasurar seu conteúdo territorializado;
para fazer nascer uma coletividade-conteúdo virtual, implicando nesta um povo por
vir. Em tal perspectiva a literatura contorna o âmbito da estética enquanto apenas
processo de formalização que expõe o processo literário apenas como desempenho
habilidoso de significantes ou uma forma parabólica de redizer o mundo; caminho
pelo qual a reputação da literatura para a sociedade em vários momentos é levada
ao dissabor de uma especialidade teórica por determinados estruturalismos.
Por sua trajetória teórica, da experiência estrutural a abordagens discursivas
mais amplas, nada como um Todorov para nos falar:
17
2. CRÍTICA EM DEVIR: LENDO A DIFERENÇA
A crise que se passa aí é a do texto que está se tornando corpo e não apenas
fantasma que representa os corpos; a superfície literária passa a ser experiência em
19
sua materialidade, comportando potências e afectos que agem no mundo:
realidades em plural agindo sobre “a realidade” – refutando, repudiando no mínimo,
esse singular definido que pronuncia despoticamente seu caráter soberano. “Essa
navegação [...] acontece de fato [...] Quando a narrativa se torna romance, longe de
parecer mais pobre, torna-se a riqueza e a amplitude de uma exploração”
(BLANCHOT, 2005, p. 07). O devir, em uma perspectiva de leitura, compõe-se com
esses aspectos da “experiência literária”.
Vimos e veremos por vários momentos que o procedimento literário compõe
uma máquina de guerra, faz conexões anômalas para provocar traumas nas
estruturas fixas e reverberantes, abrindo linhas de fuga. Apesar de expressões
diferenciadas, é perceptível que neste “devir” reconhece-se, participa-se, apropria-se
da preocupação com a estrutura literária transgressiva, intransigente que vemos se
manifestar em muitos textos, teorias e críticas. A potência transgressiva está na
base de alguns termos utilizados por Deleuze e Guattari nas abordagens literárias
como língua menor, intensiva, a-significante (não representativa), tendo como efeito
uma desterritorialização.
Ainda, muitas outras focalizações de teoria e crítica literárias atuam sem
grandes problemas com os tropos linguísticos, linguagem figurada, equilibrada na
dualidade conotação/denotação; arquétipos psicanalistas, alegorias sociológicas etc.
– todos teoricamente bem construídos com suas positividades legítimas de
pesquisa, por vezes com fortes tendências ideológicas. Nesse âmbito, o Devir em
Deleuze é bem mais radical: não admite o sentido metafórico, simbólico, alegórico,
arquetípico como componentes do Devir. Sua potência desapropriante não admite
ser conotação, copiloto de sentidos “próprios”, ser inquilino em um território
preestabelecido. Pretende-se literal. Se tal linguagem faz guerrilha contra
transcendências, revoga sobrecódigos, portanto não pode haver sentido próprio que
preceda o atual do devir literário.
Não se compreende isto partindo da dicotomia langue/parole, em que há um
sistema ideal e uma realização sempre imprecisa deste. É preciso fugir de tal plano:
o sistema linguístico abstraído da fala, do uso pragmático, negligencia algo que lhe é
coextensivo e essencial na sua efetivação real que são os agenciamentos coletivos
de enunciação, a base produtora e propagadora dos “sentidos próprios”, das
20
denotações. Compreendendo que os significados constituídos não são “naturais”,
mas produzidos por vigências de um território, veremos então que o agenciamento
literário, como desapropriação semiótica, provoca com a sua fala, e imanente a ela,
insurreição e o surgimento, de uma nova língua; um uso “menor” autoprodutor de
seu sistema abstrato, para sabores anômalos, na corda bamba dos limiares, alaridos
e rumores:
Mesmo nos seus textos filosóficos, utiliza termos que o senso redundante nos
conduz apressadamente a interceptá-los como metáforas. Ao falar, por exemplo, de
ideias, utiliza termos como buracos negros num muro branco configurando um rosto,
nos esclarece:
“Suponhamos que ler Deleuze seja ouvir, mesmo que por intermitências, o apelo do
„literal‟”, afirma François Zourabichvili na introdução de seu Vocabulário de Deleuze
(2009, p. 10) e é com palavras quase bruscas que encontramos na obra de Deleuze
em elucidação do inseto de Kafka:
21
– denotativo; e outros conotativos – copiloto, não principal? – supõe uma máquina
binária, outro dualismo e:
Tais palavras são de Claire Parnet, neste livro Diálogos que escreve com Deleuze.
Propõem como unidade mínima linguística não os fonemas e vocábulos; mas um
agenciamento coletivo. Portanto que determinado sentido de um vocábulo seja o
“próprio” não é uma necessidade, apenas considera-se a partir de um determinante
solo de forças. Em uma língua menor, tensionada para os limites, o sentido próprio é
a resultante de forças: o devir, o tempo da diferença, sempre sentido flutuante,
nunca significado precedente. Neste sentido o devir é literal, pois as palavras foram
enxertadas e soam uma estranheza como propriedade, deve fazer fugir e perder de
vista a matrix, viver intensamente em seu plano de composição.
Podemos aproximar outros exemplos de perspecti vas que se sugerem a
literalidade como problema essencial. Em Introdução à Literatura Fantástica (2010),
Todorov sugere de que modo uma leitura alegórica pode ser um perigo ao
fantástico. É possível aproximarmos esse fato ao que ocorre com o Devir que
também não se dispõe à leitura alegórica. Assim como a literalidade do devir é
desencadeada em seu plano de composição, esse perigo alegórico indicado por
Todorov se oferece em detrimento do nível de consideração: “[...] não sobre a
natureza dos acontecimentos, mas sobre a do próprio texto que os evoca”
(TODOROV, 2010, p. 66).
Todorov nos expõe exemplos em que a evidência ou não, pelos próprios
textos, da presença da alegoria é que define o efeito do fantástico (implicando
portanto, se cabe ou não leitura alegórica). Há alguns declaradamente alegóricos
onde o nível de sentido literal tem pouca importância, as inverossimilhanças não
desconcertam, pois o foco está no sentido alegórico representado – como em uma
22
catacrese em que nem se percebe que há duas falas. Há outros que dividem a
atenção evidenciando que o sentido deve ser o alegórico, mas que se dê certa
importância à película literal, mesmo que desbotada para deixar ver o sentido
alegorizado; neste caso, o plano literal não pode ser ignorado por completo, mas
não tem soberania; o sentido alegórico é indireto, mas claramente indicado: “[...]
temos aí um exemplo em que o fantástico se acha ausente não por faltar a primeira
condição (hesitação entre o estranho e o maravilhoso) mas pela falta da terceira: ele
é morto pela alegoria, e uma alegoria que se manifesta indiretamente.” (TODOROV,
2010, p. 75). Em indicações que coagem a um mínimo de alegoria “o fantástico
encontra-se com isso bem enfraquecido” (TODOROV, 2010, p. 76). Já no exemplo
de Willian Wilson de Poe, um homem é perseguido por seu duplo e como desfecho o
mata em um duelo. Há ainda, indicações de alegoria, na fala do duplo à beira da
morte:
23
efeitos outros de sentido. Mostrando-nos, isto, mais uma perspectiva que leva em
conta o excesso incontrolável produzido, e que não se deverá dissolvê -lo em
irrealidade a menos que a obra, no seu plano interno, já o faça; caso contrário,
haverá completa violação. Sem confundir a leitura do Devir como o Fantástico em
Todorov, podemos vê-la como uma aliada para este aspecto de levar em
consideração antes de tudo o nível interno do texto para decidirmos se é literal ou
não “[...] o sentido literal não se perde. A prova disso é que a hesitação fantástica se
mantém (e sabe-se que esta se situa ao nível do sentido literal).” (TODOROV, 2010,
p. 75). Este teórico sugere então que nos instantes de fantástico, neste tempo da
hesitação, produz-se um efeito de sentido que só pode ser experimentado nessa
exata condição plasmada pela obra, sem remissão substitutiva na economia das
trocas (semelhanças e equivalências).
Convocamos, ainda sobre essa literalidade essencial, o testemunho de
Blanchot. Em O Livro por Vir (2005), no subtítulo Ao pé da letra, discorrendo sobre o
texto bíblico e questões envolvendo interpretação e, mesmo, tradução, nos
interroga: “Em que medida podemos acolher essa linguagem? ”. É-nos muito
conveniente a sua resposta, pois sintetiza a problemática das transcendências
impostas a leituras contra as quais a noção de devir investe; e, ainda, nos ajuda,
desde já, a problematizar os modos de remissão aos textos bíblicos que veremos na
leitura sugerida por Schwartz de Murilo Rubião.
24
Essa literalidade essencial sugere a alforria da palavra enquanto um ser, uma
realidade com potências e temporalidades que lhe são próprias e plenamente
capazes de alterar o curso das coisas; um acontecimento por excelência a tudo
aquilo que cruzar o seu caminho. Veremos nisto que toda indicação do texto – e
seus seres de linguagem – como ilustração, representação, realidade segunda, são
vetados para nossa proposta de leitura. Esta deve localizar os agenciamentos de
significação territoriais e tão logo os procedimentos que os arrastam, desfiguram,
propõem algo de radicalmente Outro. Deve interpor a nós os afectos, essas “forças
concretas dos vocábulos”, num arranjo tal que atravessam as coisas travestidas por
outrem e as devolvem nuas, como Derrida perante o gato em O animal que logo Sou
(2011); como a Esfinge cala-se à leitura de Blanchot, “sem segredo, para além da
qual não há nada senão o deserto que ela porta em si mesma e transporta em nós”
(2005, p. 130). Perguntamos, em discurso indireto livre, com a voz de Blanchot: O
que nos diz isto? “Que é necessário tomar tudo ao pé da letra; que estamos sempre
entregues ao absoluto de um sentido, da mesma maneira que estamos entregues ao
absoluto da fome, do sofrimento físico e de nosso corpo de necessidade”
(BLANCHOT, 2005, p. 123).
25
vetores conceituais e os riscos de as leituras reconstituírem “ainda que em nome de
uma suposta „diferença‟ a mesma operação de uma antiga imagem do pensamento
em que a teoria funciona como um modelo transcendente a ser aplicado em uma
cópia” (MALUF, 2011, p. 22). É neste ponto que é preciso não só reconhecer como
afirmar em positividade que este trabalho se propõe a ler sobre o campo da
diferença, indicar potências informais, desconstituição dos sujeitos e objetos
constituídos; no entanto, sob as normas e técnicas acadêmicas, tendo o
compromisso conjetural, investigativo e explicativo; nenhuma pretensão de invalidar
teorias e ideias, mas pôr em discussão os aspectos criticados ou reafirmados ao se
acionar, como operação de leitura, o Devir sugerido.
Como seria uma análise dos contos de Murilo Rubião sob tal sugestão de
Devir? Pode tal pensamento fornecer subsídios para esse fim? Por isso faz parte, de
modo expansivo, a exposição de pressupostos, bem como utilização do conceito
realizada na literatura.
[...] tentativa de experimentar um certo modo de operar com a filosofia
da diferença [...] um certo modus operandi desse pensamento [...]
Dou-me conta ao final, enfim, que toda esta leitura só se torna possível
a partir do conceito de Devir que atravessa a filosofia de Deleuze. E
ainda mais que certas concepções espaço-temporais são
imcompatíveis [...] uma espécie de leitura “intempestiva” [...] com
vistas a fabular procedimentos de escrita, encontrando ressonâncias
poéticas e filosóficas que não se submetem à antiga ideia de filiação,
influência, contextos históricos ou regionais [...] Não se trata, assim, de
se descartar os fatos históricos, a memória voluntária, os estados de
coisas passados, o tempo cronológico, mas antes, de fazer com que
eles estejam em função deste outro tempo, que poderíamos chamar
de devir, tempo do futuro, acontecimento, ou tempo da diferença [...] e
as distâncias mesmas deixam de ser extensivas, empíricas, atuais,
para se tornarem intensivas: forças diferenciais atuando virtualmente
sobre os corpos (MALUF, 2011, p. 22-25).
28
sujeitos: “Estrutura oculta necessária às formas, significantes secretos necessário
aos sujeitos [...] Só existe, com efeito, numa dimensão suplementar àquilo que ele
dá (n+1)” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 54). O plano de transcendência é
teleológico, analógico:
seja porque assinala o termo eminente de um desenvolvimento, seja
porque estabelece as relações proporcionais da estrutura. Pode estar
no espírito de um deus, ou num inconsciente da vida, da alma ou da
linguagem: ele é sempre concluído de seus próprios efeitos [...]
Mesmo que o digamos imanente, ele só o é por ausência,
analogicamente (metaforicamente, metonimicamente, etc.). A árvore
está dada no germe, mas em função de um plano que não é dado.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 54)
Também separamos estes planos por necessidade explicativa. Mas eles não
cessam de se interporem. Os devires, de modos variáveis, sucumbem às forças
molares e se reterritorializam para novamente afrontarem um devir irresistível. O
plano de composição, de escritura, só pode fracassar, pois é impossível ser-lhe fiel.
Os fracassos fazem parte do plano, pois ele cresce e decresce com as dimensões
daquilo que ele desenvolve a cada vez; não paramos de passar de um ao outro, por
graus insensíveis e sem sabê-lo, ou sabendo só depois; não paramos de reconstituir
um no outro, ou de deixar extrair do outro. É justamente por isso que as leituras
representativas se dão ao lado, oferecendo riscos; como também são insuficientes
pois negligenciam os devires, os recobrem, os evitam sob vários disfarces e
mecanismos culturais de contenção como licenças poéticas, ou modos simbólicos
de regulação e recuperação.
É uma grande lição prática de uma leitura pronta a perceber os dois planos, o
modo como Deleuze e Guattari (1997, p. 62) demonstram a respeito de Em busca
do Tempo Perdido uma defasagem que ocorre entre o personagem, que tem suas
considerações em um plano transcendente, de organização; e o narrador, que
transpassa as coisas com afectos móveis, devires. O personagem Swann, não para
de pensar em termos de sujeito, formas e correspondências: uma mentira é uma
forma cujo conteúdo deve ser descoberto e vira um policial amador. Enquanto que
para o narrador uma mentira de Albertine não tem mais conteúdo, é emissão de
30
partículas dos olhos que valem por si, o ciúme não é o mesmo quando se passa de
Swann ao narrador.
2
Do Latim, Alien: o estranho, o outro.
31
superiores ou inferiores à „nossa‟, e todas comunicantes.” (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p. 18).
Dizemos que o Devir é uma singularidade-acontecimento, e se tem forma é
acidental. Distintas das formas essenciais, sujeitos ou objetos, as formas acidentais
são suscetíveis de mais e de menos: gradientes que compõem uma terceira
individualidade que não se confunde com a do sujeito ou objeto; um grau de branco,
um grau de animalidade, graus de extensão em latitude constituída por outras
individuações componíveis. “Um grau, uma intensidade é um indivíduo, Hecceidade,
que se compõe com outros graus, outras intensidades para forma r um outro
indivíduo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 38). O sujeito (o leitor implícito, no
mínimo; personagens, lugares, instituições) participa mais ou menos da forma
acidental, mas esses graus de participação implicam modulações na forma,
vibrações que não se permitem mais propriedades do sujeito, tornando-se um ser
próprio, individuação intensiva por usucapião imediato, propriedades
desterritorializadas em um composto de sensação.
Os “corpos constituídos” (o homem/mulher, o tempo, a família, a sociedade, a
personalidade, o país, a pedra, o animal), entidades molares, correspondem a uma
longitude. Os devires são os desencadeamentos de hecceidades, intensidades em
atravessamentos, em latitudes e transversalidades, borrando as demarcações.
Assim vamos já começando a entender o uso do termo mapa:
3
Veremos por que a expressão “demoníaco” no item específico sobre o devir-animal.
32
afectos, espectro plástico de mundos em alteridade: “É Ahab que tem as percepções
do mar, mas só as tem porque entrou numa relação com Moby Dick que o faz tornar-
se-baleia, e forma um composto de sensações que não precisa de ninguém mais:
Oceano” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 200).
Dir-se-ia que, das duas direções da física, a direção molar que se volta
para os grandes números e para os fenômenos de multidão, e a
direção molecular, que, ao contrário, embrenha-se nas singularidades,
nas interações e nas ligações à distância ou de ordens diferentes [...]
macrofísica [...] na outra orientação, a da microfísica, a das moléculas
que já não obedecem às leis estatísticas; ondas e corpúsculos, fluxos
e objetos parciais que já não são tributários dos grandes números,
linhas de fuga infinitesimais em vez de perspectivas de grandes
conjuntos (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 369).
35
não há devir-homem das forças minoritárias. Se há um devir-mar do humano, ao mar
também se impõe um devir, mas em música, em pintura, em escritura: aonde anda a
onda? Já se/nos perguntava Manoel Bandeira e lemos-sentimos que a onda anda na
silhueta sonora e rítmica desses versos. Enfim, no plano escritural, é quando a
escritura convoca os afectos inumanos em sua composição que nos põe em Devir,
“[...] do ponto de vista de uma semiótica que se liberou das significâncias formais
como das subjetivações pessoais.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 51)
Lembrança de um feiticeiro
“[...]enquanto Freud explica as coisas
o diabo fica dando toque”
Raul Seixas .
38
associativa, situação em que um deve sobrepujar o outro dependendo do
agenciamento contínuo; pois devir não é aliquid stat pro alíquo, algo que está por
outro, não tem a dimensão de um representante ) 4. Para o nosso modus operandi
com os devires “[...] mais do que distinguir espécies de animais, é preciso distinguir
estados diferentes, segundo eles se integrem em instituições familiares ou em
aparelhos de Estado, em máquinas de guerra, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.
25). Assim, é possível divisar na citação a seguir essas formas de tomar o animal;
primeiro volume de Mil Platôs, na sessão “Um só ou vários lobos?”, comentando
uma análise de Freud sobre o Lobo e os Sete cabritinhos, se afirma:
4
Umberto Eco em Semiótica e Filosofia da Linguagem (1991): p. 63, fala sobre a expressão
latina citada para a relação remissiva; na p. 191, a par de muitas definições de metáfora,
conclui que ela funciona sobre um tecido cultural, universo de conteúdo já organizados em
redes de interpretantes que decidem (semioticamente) da semelhança e da dessemelhança
das propriedades; e na p. 203, a partir de outros autores, como a ordem do simbólico está
fundada na lei, e ainda está como substituição de algo.
39
representados, far-se-á cartografia, navegaremos em notação de um mapa intensivo
do texto: como este dispõe os corpos plenamente constituídos – substâncias e
instituições em longitude –; e as intensidades – agenciamentos, alianças,
procedimentos desterritorializantes – que atravessam, modulam em latitude e
transversalidade, a um ser Outro. Enfim, tentar indicar e discutir como o texto realiza
uma crítica performática – ou as faz não existir – de formas essenciais ou
substanciais, de imagens pré-fixadas sobre a sensibilidade e o pensamento em jogo.
40
3. RUBIÃO EM DEVIR
É preciso manifestar desde o início, devido ao exposto até então, que a leitura
que aqui vai se configurando se põe em um plano distinto dos lugares em que se
assentam as leituras, enquanto representação sobre a obra de Murilo Rubião.
Portanto, de algum modo, não há oposição propriamente dita, mas uma interposição
em que as bases são outras. Pretendo situar a discussão dessa interposição
principalmente junto ao mais icônico trabalho interpretativo de Rubião, a saber, A
Poética do Uroboro (1981) de Jorge Schwartz, utilizando-o como exemplo entre as
leituras com evocações representativas. Considero-o uma brilhante varredura
elucidativa e, realmente, um empreendimento de amplitude e intimidade cuidadosa
que nos proporciona um pleno contato com a obra do escritor mineiro. Longe de
criticá-la em sentido negativo, pretendo expor os diferentes resultados, caminhos e –
na medida possível –, pressupostos, em justaposição. Ao sintetizar considerações,
concluir leituras e sentidos, a análise de Schwartz equilibra-se sobre a figura da
representação através dos arranjos arquetípicos, mitológicos, simbólicos,
metafóricos, subtextos, abrindo uma dualogia e até uma figura teleológica de um
desenvolvimento da obra em geral, o que nos evoca a descrição, por Lyotard, de
uma Metafísica do desenvolvimento que “[...] Assimila os acasos, memoriza o seu
valor informativo e utiliza-o como nova mediação necessária ao seu funcionamento.
(LYOTARD, 1997, p.14), tornando a escritura uma projeção holográfica de sentidos
fundados alhures e representes. Assim, a grande criação de um escritor seria a de
conseguir representar tudo isso muito bem, esse nosso universo humano, com
remissões sutis, intertextos, máscaras. Ainda assim, a cobertura que faz da obra
muriliana é de uma abrangência tão precisa que há considerações de certos
aspectos que, a meu ver, atingem perfeitamente esse outro plano de leitura da não
representação, que não pude deixar de aproximá-lo ao âmbito do devir literário com
leve intuito, apenas colateral, de demonstrar sintomas dessa leitura não
representativa se mostrando em outros lugares – esses elementos de que me
aproprio estarão indicados nos momentos oportunos durante a leitura nos contos.
Concentremo-nos, por hora, nessas sínteses operacionais na representação.
Esta é tão evidenciada que é justamente no outdoor do livro, a quarta capa em que
encontramos enunciado:
41
Jorge Schwartz desvenda nos contos uma narrativa fundada nas
epígrafes que ilustram cada um dos textos. Elas constituem
fragmentos bíblicos que condensam, de modo sintético e metafórico,
os significados profundos da obra [...] Seja como questionamento ou
como denúncia, a linguagem do fantástico não se limita no texto de
Murilo Rubião a uma experiência lúdica de leitura. Ela serve, para o
autor, de metáfora mascaradora de outros textos – o cristão, o social e
o existencialista – sobre os quais repousa a obra.
(SCHWARTZ,1981, quarta capa, grifo meu)
42
serviente a uma realidade primeira e um signo com referência autoconstruída, sem
transcendência (maléfico, inútil ao mundo de fora), e é aqui que reside o fantástico.
Nesta questão, o que se relaciona com a perspectiva de leitura a que esta
dissertação se propõe não é apenas reconhecer que é nesse nível literal (literatura
como exploração e experiência) que reside um potente efeito de sentido, mas na
positivação dessa literalidade essencial, ou valorização dessa cópia imperfeita,
duplo que tem a potência de ser indócil à semelhança apresentando outra realidade,
sendo articulação de sua Diferença, de um Devir. A superfície, a experiência lúdica
da leitura, é que implode essas estruturas profundas, despóticas e coercivas e que
têm horror a potências que realizam, num mesmo movimento, seu efeito de sentido,
sua estrutura abstrata e sua realidade absoluta - que tem sua espessura na História,
seu efeito positivo e não representativo. Concorda-se que há questionamento e
denúncia, e nem poderia faltar, mas não no fundo, ou sobrecodificado. Os
personagens e procedimentos, os afectos, reagem diretamente sobre esse cristão,
esse social, esse existencial que oferecemos à turba da leitura.
Com certeza esse efeito do “fantástico” se passa com sujeitos plenamente
constituídos (o leitor, por vezes ainda com personagens, arrastando -os de suas
certezas). A meu ver Schwartz brilhantemente detecta em Rubião aspectos que
poderiam muito bem participar deste plano de leitura como, por exemplo, quando
indica momentos em que se chega ao absurdo em forma pura (SCHWARTZ, 1981,
p. 23); o que é um instante de devir próximo ao que Deleuze, em A lógica do Sentido
(DELEUZE, 2011, p. 77), sugere nos paradoxos de Alice, non sens, no tempo do
insensato. Mas para além destes aspectos, o que deverá diferir, portanto, o plano de
leitura a partir da noção de Devir e o representativo – este sob os parâmetros até
então expostos – é não ter os sujeitos ou objetos constituídos – expectativas do
leitor, configurações de mundo exterior, sujeitos, enciclopédia – como medida, ou
partida, da significação; mas como alvo, ou indiferença, das forças informais, que as
porão em devir e à deriva.
Como também já expomos, teremos uma aventura humana diferente; não
como homem animal autobiográfico que afirma contar a história do mundo quando é
tão somente a sua história, como nos diz Derrida (2011) em O Animal que logo sou.
Diante disto os (an?)tropos perdem força, não teremos sistemas metafóricos nem
43
personificação como produção de Devir, mas a forças personífuga. Se ainda há
figura, não tem a ver com retórica mas com uma figura imediatamente estética. Isto
não é anulação do humano, mas uma guerrilha contra o Humano tornado instituição,
portanto, centro propagador silencioso de significantes que impõem seu sentido
como modelo abstrato universal, os sentidos próprios, os próprios do homem [...]
denegação. Ela instituiu o próprio do homem, a relação consigo de uma humanidade
antes de mais nada preocupada com seu próprio, ciumenta em relação a ele.
(DERRIDA, 2011, p. 34); deslizaremos sobre linhas de fuga traçando novas
possibilidades, abertura originária para humanos por vir, ou tão somente, por virtual.
Rubião, 2010, p. 52
45
interceptadas a fazer atravessar um homem reinscrito, por essas expressividades,
numa intensidade significativa desconhecida que extrapola os planos, excesso
“significante” sobre um vazio significado: defasagem provocada: é aqui que o
espectro plástico da linguagem sugere sentidos virtualmente vivenciados mas não
significados, pois são estranhos à enciclopédia da cultura enquanto conhecido,
sendo a articulação de sua diferença: “[...] sejam quais forem as totalizações
operadas pelo conhecimento, elas permanecem assintóticas à totalidade virtual da
língua ou da linguagem” (DELEUZE, 2011, p. 51).
46
o “mar” que o consolava; aborrece e o resgata ao estado civil, e para tentar paz,
ameaça com a polícia. Mas, ao deparar-se com o coelhinho cinzento, tudo se torna
meigo e extraordinário, recupera-se e se intensificam os afectos flutuantes: o mar e
um coelhinho delicado, fantástico, de aventuras tamanhas.
Indaga ao coelho onde mora. Este afirma não ter morada certa, habitualmente
a rua. Reparando seus olhos mansos e tristes, convida-o a residir com ele. O coelho,
desconfiado se não gostasse de carne de coelho, transforma-se em girafa e mais à
noite seria cobra ou pombo: “[...] não lhe importará a companhia de alguém tão
instável?” (RUBIÃO, 2010, p. 53). Foram morar juntos.
No começo só alegrias e tensões mínimas, Teleco ajuda idosos e alegra
crianças, é um mundo reaberto para o personagem-narrador. Primeiro atrito grave:
discussão com a cunhada sobre negócios de família; mal humor e agravamento
devido à cena que encontra:
48
Sou Teleco, seu amigo – afirmou com uma voz excessivamente
trêmula e triste, transformando-se em uma cotia.
- E ela? Perguntei com simulada displicência.
- Tereza... – sem que concluísse a frase, adquiriu as formas de um
pavão.
- Havia muitas cores... o circo... ela estava linda... foi horrível... –
prosseguiu, chocalhando os guizos de uma cascavel.
Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar:
- O uniforme... muito branco... cinco cordas... amanhã serei homem...
– as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco
se metamorfoseava em outros animais. ( RUBIÃO, 2010, p. 58)
50
Como vemos nesta citação, Teleco consegue até mesmo desdobrar sua
contrassignificância. Ele próprio, sendo um excesso significante sob a falta de um
significado, designando apenas a si; faz com que suas transformações não sejam
limitadas a cópias de seres existentes, mas ainda a seres sem classificação, figuras
sem designação. Neste ponto as metamorfoses de Teleco atingem o excesso no
plano da expressão, abrindo uma falta no plano do conteúdo: se não é factual tal
pássaro, sua metamorfose não é imitação, mas sim criação, encerrando em si o
sentido. Teleco, como elemento paradoxal, articulador da diferença, circula através
das séries heterogêneas da linguagem:
A personífuga
53
personípeta, satura-se em um ser que é ato com todas as suas potências
implicadas; é este elemento imediatamente expressivo, casa vazia de significado,
que põe a vibrar, que cria, esse sentido da forma sempre insuficiente ou despótica,
sempre em busca – neste ponto concordando com Schwartz – do disforme,
desfigurado, encardido, sem dentes.
54
Um leitor de jornal falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se,
mencionando mulas sem cabeça e lobisomens. Já as crianças, “Apenas as crianças,
que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos
companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.” A
polêmica cansa e evitavam o assunto. Logo mais voltam ao assunto com o pretexto
de “aproveitamento dos dragões na tração de veículos” (RUBIÃO, 2010, p. 47), mas
houve decepção na partilha dos animais devido ao número em relação aos
pretendentes.
O padre interfere novamente e “os dragões receberiam nomes na pia batismal
e seriam alfabetizados.” (RUBIÃO, 2010, p. 48) Narrador-personagem irrita-se: “São
dragões! Não precisam de nome nem de batismo!” (RUBIÃO, 2010, p. 48), perplexo,
o reverendo abriu mão do batismo e o personagem-narrador resigna-se à exigência
de nomes. Subtraídos ao abandono são entregues ao personagem-narrador, em seu
exercício de magistério, para serem educados. Contraíram moléstias, diversos
faleceram. “Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos” (RUBIÃO, 2010,
p. 48), os mais bem dotados em astúcia, fugiam e se embriagavam.
O Dono do bar se divertia e até dava bebida grátis, a princípio; logo mais,
enfadado negava-lhes o álcool. Para se satisfazerem os dragões viram-se forçados
a furtos. O personagem-narrador “acreditava na possibilidade de reeducá-los”
(RUBIÃO, 2010, p. 48); com a amizade do delegado sempre os retirava da cadeia
(roubo, embriaguez, desordem). “Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia
a maior parte de tempo indagando pelo passado deles, família e métodos
pedagógicos seguidos em sua terra natal.” (RUBIÃO, 2010, p. 48). Vieram jovens e
tinham lembranças confusas “inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício,
logo após a escalada da primeira montanha.” (RUBIÃO, 2010, p. 48-49).
Ainda havia o mau humor devido às noites mal dormidas e ressacas
alcoólicas. Continua-se o exercício do magistério, e a ausência de filhos contribuiu
para que o mestre “lhes dispensasse uma resistência paternal. Do mesmo modo,
certa candura dos seus olhos obrigava-me a revelar faltas que não perdoaria a
outros discípulos”. Odorico, o dragão mais velho, trouxe as maiores contrariedades,
alvoroçado por saias “principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas.
As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo
55
para viver com ele” (RUBIÃO, 2010, p. 49) O personagem-narrador, tenta destruir a
“ligação pecaminosa”, sem conseguir combater “[...] uma resistência surda,
impenetrável [...] palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel
e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava”. (RUBIÃO,
2010, p. 49). Junto à mulher o dragão Odorico é encontrado morto, rumores de tiro
fortuito e erro de caçador, mas o olhar do marido abandonado pode desmentir a
versão.
O carinho é transferido para o último dos dragões, recuperado e afastado da
bebida. “Nenhum filho talvez compensasse tanto com amorosa persistência [...]
aplicava-se nos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as
compras feitas no mercado [...] com os meninos da vizinhança . Carregava-os nas
costas, dava cambalhotas” (RUBIÃO, 2010, p. 49). O professor encontra sua “[...]
mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo,
compreendi que ele atingira a maioridade” (RUBIÃO, 2010, p. 50) O fato fez crescer
a simpatia que dragão João tinha entre moças e rapazes. Agora demorava-se pouco
em casa, sempre em grupo cobrado a alegrar soprando fogo, cheio de vaidade, toda
festa solicitava sua presença, mesmo as religiosas.
“Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município”
(RUBIÃO, 2010, p. 50), vem um circo com eventos extraordinários e um homem que
engolia brasas. Jovens interrompem o ilusionista e anunciam que têm coisa melhor.
Sob a réplica desafiante do circo João desce e vomita fogo. Recebe e recusa
propostas para trabalhar no circo “[...] dificilmente algo substituiria o prestígio de que
desfrutava na localidade. “Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito
municipal” (RUBIÃO, 2010, p. 50).
Várias são as versões sobre a fuga de João, dentre elas, amores por uma
trapezista – talvez estratégia do circo para seduzi-lo –; e também se iniciara em
jogos e retomara o vício da bebida; ao fim, o narrador-personagem-mestre: “Seja
qual for a razão, depois disso muitos dragões tem passado pelas nossas es tradas.
“E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que
permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas,
encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos” (RUBIÃO,
2010, p. 51)
56
Em “Os Dragões”, num volume quantitativo, poderíamos dizer que o plano
representativo-humano predomina: temos todo um cenário com sujeitos da variada
atividade humana: o padre, o professor, o delegado, a esposa, as crianças, a
educação, a igreja, o entretenime nto (circo), a cidade e toda a civilidade. E o que
fazer com a trama que treme a contrapelo: abrupto aparecimento de Dragões de um
modo “a-histórico desprovido de contexto” (SCHWARTZ, 1981, p. 39) e a
insalubridade, a apatia e o sumiço ao ser inscrito nessa ambiência humana.Temos
uma problemática da alteridade, justamente onde os devires se acendem.
Mas a alteridade também não cessa de ser subjugada, arquivada e
redistribuída – e é intrinsecamente na linguagem que isto se dá – na economia de
equivalências e semelhanças, onde a diferença é subordinada à identidade;
teríamos como representações, por exemplo, (alteridades recapturadas) as
contrastantes civilizações (bipolaridades ou multipolaridades da geopolítica,
colonizador-colonizado), o marketing estético e as demasiado morais “belezas
interiores” (belas e feras, feio por fora, bonito por dentro), os mitos dos contrários, o
patinho feio (lido como desenvolvimento da feiúra em beleza) etc. Mas não teríamos
ainda uma alteridade radical, fora dessa apropriação global-capitalista das
diferenças que as devolve como produto e consumo, agenciando os sujeitos, e as
subjetividades, no momento mesmo em que falam, veem ou ouvem . Tal alteridade,
ficando mais distante ainda de escapar a um fundo mais imperceptível e implacável,
poderoso centro irradiador, aquela autoridade dada por Deus a Adão, o eixo
humanístico de classificação “[...] esse homem da gleba, criado como réplica de
Deus [...] recebe imediatamente a ordem de sujeitar os animais. Ele deve para
obedecer, marcá-los com sua ascendência, sua dominação, em verdade, seu poder
de domar”. (DERRIDA, 2011, p. 35); ou mesmo em recapturação tropológica, em
codecs metafóricos, alegóricos, realizando com esses dragões o que Derrida temia
fazer ao gato:
[...] a reapropriação antropomórfica teria começado, uma
domesticação mesmo poderia já estar em ação se eu cedesse à
minha própria melancolia; se me engajasse, para escutá-lo em mim, a
sobreinterpretar o que o gato poderia assim, à sua maneira, dizer-me,
[...] sugerir ou simplesmente significar em uma linguagem de traços
mudos, isto é, sem uma só palavra [...] desejo assim confessado de
escapar à alternativa da projeção apropriante e da interrupção cortante
57
[...] não estou disposto a interpretá-lo ou a senti-lo em negativo
(DERRIDA, 2011, p. 40)
58
monstros antediluvianos; o povo benzendo-se, abrindo seu arquivo com mulas sem
cabeça e lobisomens. “Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os
nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões.
Entretanto, elas não foram ouvidas.” Logo mais, dedicaremos bastante ouvido para
elas; fiquemos com as outras considerações.
As considerações do vigário, a do leitor de jornais com uma fraca formação, e
a do povo com seu ato de benzer-se, corroboram a vestir o dragão com a figura
demoníaca. Deleuze e Guattari põem os estranhos devires como pactos
demoníacos. Afirmo que ironicamente, pois não recuperam aí a figura mitológica do
demônio, mas o fato de que assim eram identificados pela doutrina religiosa, devido
à aliança herege que se realiza – o feiticeiro, as bruxas, com os animais, os
vegetais, com os elementos químico-físicos etc. –, ou seja, traem a palavra de
Ordem; compõem novos sentidos não subalternos ao centro de verdades das
catedrais e castelos. Nestes lugares, dessa formam, localizam-se forçosamente o
elemento estranho em uma origem de registro, detendo, portanto, os protocolos
autorizados de julgamento (padre/déspota, codec).
Logo depois, vem a apreensão dos dragões pela utilidade possível, pela
economia e técnica: animais domésticos e de trabalho, aproveitamento dos dragões
na tração de veículos – com insucesso devido ter poucos dragões para muitos
pretendentes. Por fim, decide o vigário, a apreensão mais grave do estranho:
“receberiam nome na pia batismal e seriam alfabetizados” (RUBIÃO, 2010, p. 48). O
narrador-personagem-mestre irrita-se: “São dragões! Não precisam de nome nem de
batismo!” (RUBIÃO, 2010, 48). Reação de um espírito já fascinado com a alteridade
do dragão e que resiste a algo que faça cessar esse devir. Perplexo, o reverendo
abriu mão do batismo; o outro, cede à exigência de nomes. Segue-se então a trama
da nomeação, educação e participação social: “Segundo os homens (integrados e
representativos da sociedade) os dragões não podem subsistir no meio social sem a
palavra. Justifica-se então a necessidade de atribuir-lhes nomes e sua posterior
alfabetização” (SCHWARTZ, 1976, p. 39). Ainda na leitura de Os Dragões já
mencionamos esse domínio a partir da nomeação, desígnio de Adão por Deus, junto
à citação de Derrida. Este, como no questionamento com o gato, ainda tem muito a
nos dizer sobre essa dominação:
59
é como se o gato lembrasse, como se ele me lembrasse, sem dizer
uma só palavra, o relato terrível da gênese. Quem nasceu primeiro
antes dos nomes? Quem viu chegar o outro em seu território, há muito
tempo? Quem terá sido o primeiro ocupante, e portanto o senhor? O
sujeito? Quem continua muito tempo sendo o déspota? (DERRIDA,
2011, p. 39)
Como todo olhar sem fundo, como os olhos do outro, esse olhar dito
“animal” me dá a ver o limite abissal do humano: o inumano ou o a-
humano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir
da qual o homem ousa se anunciar a si mesmo, chamando-se assim
pelo nome que ele acredita se dar. E tudo pode me ocorrer, eu sou
como uma criança pronta para o apocalipse, eu sou o próprio
apocalipse, ou seja, o último e o primeiro evento do fim, o
desvelamento e o veredito. Eu sou o apocalipse, eu me identifico a ele
correndo-lhe atrás [...] atrás de toda a sua zoologia. (DERRIDA, 2011,
p. 31)
E então é o devir-dragões que continua a agir, mesmo com toda forma de contenção
realizada, como um presságio indeterminado de liberdade.
60
Quando sugere-se a composição “mestre-personagem-narrador”, é para
tentar registrar um delírio no discurso narrativa deste conto, que é a bifurcação do
personagem que ora é personagem-mestre e suas ações estão enquadradas no
quadro social de colonização da alteridade-dragão; ora é narrador-personagem, com
um discurso anti-mestre, contra sua funcionalidade, este que não participou dos pré-
julgamentos no início sobre os dragões e que ouviu as crianças em sua voz frágil e
sem vez, fascinado pela singularidade dragonácea (interessante termo cunhado por
Schwartz (2010, p.39) para referir a alteridade dos dragões não inferida da
significação dos humanos da cidade). Mas mesmo esse narrador fascinado, mesmo
raramente, ainda sucumbe por instantes ao mestre, e o deixa afirmar que Odorico, o
dragão mais velho, trouxe as maiores contrariedades, alvoroçado por saias
“principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres
achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver
com ele” (RUBIÃO, 2010, p. 49). Esse instante narrativo, ele mesmo, é imbuído de
hierarquia familiar, “irmão mais velho”; de violência à alteridade naturalizando
comportamentos adquiridos, “vagabundagem inata” 5; o mestre ainda tenta destruir o
que testemunha como relação pecaminosa de Odorico com a mulher de outrem. O
narrador não encontra mais os olhos do dragão que direcionam em sorrisos para a
mulher. E neste ponto, junto com o narrador, perdemos de vista o devir -dragões que
vemos completamente afogado na circularidade social – ainda assim, com infrações
penais. Odorico é encontrado morto, de tiro, sugestivamente passional.
O carinho do mestre é direcionado para o último dragão, que é recuperado de
vícios sociais e dedica-se aos estudos. Aqui ocorre uma trama familiar e uma nova
complicação com o devir. Segue o narrador a respeito do dragão João, sugerindo
que nenhum filho talvez compensasse tanto com amorosa persistência, “[...]
aplicava-se nos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as
compras feitas no mercado [...] com os meninos da vizinhança. Carregava -os nas
costas, dava cambalhotas (RUBIÃO, 2010, p. 49). O devir mostra sinal de vida. Ao
mesmo tempo em que é inscrito na instituição familiar, ainda porta uma vazão
anômala, demoníaca; a anomalia ocupa hereticamente, e positivamente, o lugar do
5
Neste fato, até revemos, por exemplo, a fofoca preconceituosa que se faz no Brasil sobre a
preguiça “inata” do indígena.
61
filho, o lugar da descendência. A árvore é desviada, trai a raiz, cria um vínculo
lateral, rizomático, conjunção disjuntiva, proliferação sem filiação. O mestre tem
esposa, mas não filhos; ouve as crianças e é o único a testemunhar a
indeterminação insistente dos dragões. As dragonidades se agravam e a esposa
alerta que João cuspira fogo. Narra -se que sua maioridade chegara e a reapreensão
dos atributos dragonáceos se opera novamente, a simpatia entre as moças e
rapazes aumentam a se ver, nesse fogo, entretenimento e pirotecnia, showman,
mesmo nas festas religiosas. Inscrevem-no no jogo das disputas ao abrir um desafio
entre seu atributo dragonáceo – traduzido, abduzido em artifício, ilusionismo,
“costumeira proeza de vomitar fogo” – e o ilusionista do circo. O circo gostaria de
contratá-lo, mas houve recusa, nada superaria seu prestígio e até planejava futuros
– o que poria totalmente abaixo sua preciosa a-historicidade –, ser prefeito.
Mas, silenciosamente, uma linha de fuga. Ninguém sabia do desaparecimento
de João, e tal como veio, restava m apenas vagas conjeturas; vagava por rumores.
Fugiu novamente para sua a-historicidade, carregando consigo, levando -os até à
borda da cidade, o narrador-personagem fascinado que traiu definitivamente o
mestre. “Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu futuro,
mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem futuro.
Trai-se potências fixas que querem nos reter” (DELEUZE/PARNET, 1998, p. 53);
conjuntamente com as crianças, os alunos, a insistirem que os dragões
permaneçam sem receber resposta. Nessa estrada, na borda e além, talvez não
haja palavras, nem linguagem capaz de chamados, apelos ou frases, nem de
respostas. Somente aquele fundo obscuro em que aquelas crianças e o
personagem-narrador, com os quais somos arrastados , puderam experimentar e
permanecerem afetados por dragonidades singulares irreversíveis – não as
catalogadas –, onde uma mesma força inumana originária compreende dragões e
humanidades.
Da experimentação e da interpretação
Diferentemente do que ocorreu em relação a Teleco, o coelhinho, com Os
Dragões houve uma maior conjugação com a leitura realizada por Roberto Schwartz.
A trama da crítica ao humano é bem desenvolvida pelo crítico e na descrição bruta
62
deste aspecto quase não acrescento. No entanto, nas sínteses e conclusões, na
cauterização afirmativa da leitura, ainda é preciso diferenciar. Apesar de indicar
muito bem como os humanos eram totalitários em sua supremacia discursiva sobre
a alteridade dos dragões, certas considerações suas, do lado externo também o são
– sob a perspectiva de leitura em contra-representação desta dissertação – ao
realizar uma genealogia da origem dos dragões, da tradição mitológica que devem
participar, aferindo com isso significados ao conto.
A ânsia de atribuir características humanas ao dragão faz com que
sejam eliminados os atributos “dragonáceos” [...] A crítica à sociedade
e ao homem é levada até as últimas conseqüências, através de uma
inversão nos valores convencionais atribuídos ao dragão. [...] no nível
conotativo [...] assim como a serpente, que, à diferença do dragão,
possui referente concreto-real, a tradição literária ocidental
convencionou o dragão como símbolo do mal (SCHWARTZ, 1981, p.
39/40)
Pretendo argumentar, aqui, que esses dragões criados por Murilo Rubião, são
signos excessivos, escapam à enciclopédia dos dragões e que mesmo uma inversão
simbólica não os contém, pois não os tira do eixo do bem e do mal. Os dragões de
Rubião são plasmados em um percepto bem diferente dos dragões mitológicos, sem
tonalidade épica nem de combate. Em que se parecem com os dragões de
“Hércules, Sigurd, São Miguel, São Jorge” (SCHWARTZ, 1981, p. 40) no eixo do
bem e do mal? Neste conto, se não estão sendo “o mal” também não são “o bem”
moralmente construído pelas doutrinas onde essa tradição simbólica do dragão se
formou. Estes dragões são justamente a suspensão dessas alternativas sobre o
mesmo eixo, em prol de pluralidades indeterminadas. A apropriação humana e
social criticada no conto deve atingir a noção de “bem” como constructo seu. Dessa
forma experimentamos os afectos desses dragões de um modo totalmente outro dos
dragões mitológicos; eles traem também a árvore de seus ancestrais. O que se
percebe neles no contexto do conto, é ainda o que se nos apresenta para o mundo
de cá, tal como afirma Schwartz neste trecho.
O Dragão surge como elemento “puro”, sem contexto nem história, e
instaura uma relação de identidade com as crianças da cidade. [...] Os
meninos assim como os Dragões, vêm ao mundo desprovidos de um
repertório preconceitual, e não apenas sua origem mas o percurso dos
dois dentro da sociedade é análogo [...] por isso as crianças são as
únicas que conseguem perceber os Dragões do modo que eles são:
“simples dragões” (SCHWARTZ, 1981, p. 40)
63
É somente agora que quero relacionar a epígrafe, uma vez que é sugestivamente tomada
como remissão, como alusão a um texto anterior, como quem dá continuidade em
representações e participa de uma metafísica do desenvolvimento. Diferentemente de aludir,
de confirmar informações; o que Rubião conseguiu realizar com a obsessão das epígrafes é
que são um furo, uma vazão entre as realidades implicadas nos textos, por onde passam
corpos e potências de lá para cá e daqui para lá; é um roubo de forças, como um gato de
energia elétrica. Neste caso específico, se apropria apenas do corpo-dragão e sua potência
muda, imediata e sem comentários, presença de dragão. Não fez questão de corroborar sua
carga simbólica no contexto bíblico e, ainda, devido à vazão contrária, o ironiza.
Há uma imanência ao corpo-dragão, que somente por raríssimas traduções seriam
possíveis o seu recorte para epígrafe; ou então Rubião tenha arriscado versões do latim.
Devido às interpretações na circularidade dos significados reciprocamente substituíveis, em
pelo menos quatro versões não encontro os dragões, mas chacais; e no lugar da ave citada,
umas “avestruzes”, outras “corujas”. Em Jó, 30, 29 temos:
No contexto bíblico, Jó assim se expressa devido não estar mais aos cuidados do
Pai, estando em penúria, sendo desprezado por todos, inclusive pessoas
desprezíveis; é banido do convívio social, de modo que tenha tido somente animais
asquerosos como companhia. Se na tradução o chacal é autorizado ao lugar de
dragões é porque o que importa é generalidade simbólica de “mal”, asqueroso; e o
6
http://www.bibliaon.com/jo_30/ acesso em 18/11/2013
7
http://biblia.gospelmais.com.br/jo_30/ acesso em 18/11/2013
8
http://latinitas.org/biblia/iob.pdf acesso em 18/12/2013
64
que importa é falar de algo mal em oposição um bem (estar sob os cuidados e
aceitação de Deus).
Em Rubião esse contexto não se conecta. O título de seu conto é o critério, o
que interessa é apenas o corpo-dragão que será todo recriado em se u conto – caso
contrário, chacais caberiam também –, não é tomado como asqueroso nem figura do
mal, nem de submundo – a não ser pelo discurso criticado no conto. É mesmo
instância de fascínio, paira indiferentemente ulterior ao bem e ao mal, com toda a
simpatia infantil. A coruja ou o avestruz nada integram. E como encaixar a figura de
Jó se, para esse, os animais estão em negativo, no submundo da bruta miséria
humana da irracionalidade, aliança impura de sua condição deplorável. Fora da dócil
integração remissiva, há mesmo uma salutar traição: “Sempre há traição em uma
linha de fuga. Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu
futuro, mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem
futuro. Trai-se potências fixas que querem nos reter” (DELEUZE/PARNET, 1998, p.
53). É um drible na historialidade:
Quanto à história, à historicidade, em verdade à historialidade [...]
pertencem precisamente a esta autodefinição, a esta autoapreensão, a
esta autossituação do homem e do Dasein humano em relação ao
vivente e à vida animal, a esta autobiografia do homem que pretendo
questionar hoje [...] todas essas palavras, e em particular a história,
pertencem de maneira constitutiva à linguagem, aos interesses e aos
enganos desta autobiografia (DERRIDA, 2011, p. 49/50)
65
elo que liga o homem ao dragão, rompe-se a possibilidade de
salvação do primeiro. Os dragões passam então a subsistir na cultura
humana como reminiscência e como vontade; permanece o homem
lutando nas portas da cidade, lutando entre o devaneio do passado e o
gesto incalculável do futuro. O tempo que lhes resta é o presente da
condenação: “postados na entrada da cidade”, batalham aqueles que
não conseguem esquecer o lembrete de Dante: Lasciate ogni
speranza voi che entrate. (SCHWARTZ, 1981, p. 41)
9
“Bildungsroman é um tipo de romance que se caracteriza pela formação do
protagonista e do leitor nos princípios do humanismo, produzindo uma tentativa de
síntese entre práxis e contemplação”. Consideração sobre o romance de formação a
partir do artigo de Flavio Quintale Neto (Doutorando em Teoria Literária e Literatura
Comparada pela USP e professor dos cursos de Letras e Filosofia da Universidade
Metodista de São Paulo): Para uma interpretação do conceito de Bildungsroman (2005).
10
Se transporta alguém de longe, lembro-me de Heráclito e sua preferência a estar com as
crianças e não nas assembléias.
66
3.3 Esse homem trouxe os quadradinhos (O Homem do Boné Cinzento)
“O culpado foi o homem do boné cinzento. Antes da sua vinda, a nossa rua
era o trecho mais sossegado da cidade.” (RUBIÃO, 2010, p. 151). Corria tudo em
ordem na residência e na vizinhança do narrador Roderico e seu irmão Artur até a
chegada de um rico celibatário, Anatólio – de quem cobria a cabeça um boné xadrez
preto e branco, com dentes escuros e um cachimbo curvo. Este último, de hábitos
estranhos, deixava a todos perplexos, nunca era visto saindo de casa. Artur
desenvolveu uma forte obsessão em acompanhar a rotina do velho estranho e
sentia uma eufórica alegria em vê-lo: “Olha, Roderico, ele está mais magro do que
ontem!”. Roderico se agastava e achava um aborrecimento a obsessão de
acompanhar a vida do velho e seu definhamento. Seu irmão descobre o nome do
ancião e sua irritação responde: “fosse Nabucodosor!” (RUBIÃO, 2010, p. 152). Uma
bonita moça adentra a casa do estranho para logo mais não dar mais nem sinal de
permanência.Três meses mais tarde, a moça surge para partir do casarão. Anatólio,
à visão de Artur, continua emagrecendo. A confiança que o narrador Roderico em
seus nervos e discernimentos decrescia instaurando uma ansiedade, segundo este,
não tanto pelo velho, mas por seu irmão de quem se lhe afundavam os olhos; e para
lhe provar que não havia anormalidades passa a vigiar também o homem do boné
cinzento. Percebe que sua magreza realmente fascina e lhe indica um fato: o
homem está ficando transparente. Roderico agora assusta-se, através do corpo se
via objetos e o ambiente, o coração dependurado na maçaneta da porta. Artur
também emagrecia mas Roderico ainda não dava importância: Anatólio era sua
única preocupação agora, que de tão magro só tinha perfil. No dia seguinte, o
homem sem mais o que emagrecer, reduz o crânio e o boné folga sobre os olhos, o
vento dobra seu corpo sobre si, num espasmo lança um jato de fogo que varre a rua
– Artur excitado, Roderico atemorizado –, ao fim escorre-lhe uma baba
incandescente e o incendeia; resta somente a cabeça, coberta pelo boné. Artur
afirma que é como previra, sua voz gradativamente afina e se distancia, o corpo
67
diminui a centímetros, Roderico o sustém nas mãos, com a ponta dos dedos, logo
Artur se transforma em uma bolinha negra a rolar em sua mão.
Dos planos
Três meses para a saída da moça, “Sozinha como viera, carregou as malas
consigo”. (RUBIÃO, 2010, p. 153). O velho continua emagrecendo no discurso de
Artur. Chega-se então a um momento decisivo; se o celibatário fascina e afeta até
mesmo fisicamente Artur, este começa a despertar em Roderico um mal-estar,
insegurança quanto aos fenômenos que para este até então estavam bem
registrados pelas recorrências. Algo salta para fora do plano, algo invade o plano,
cisma:
Por outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus nervos
decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto
69
pelo magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano,
cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos.
Para lhe provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a
vigiar o nosso enigmático vizinho. (RUBIÃO, 2010, p. 153)
A partir daqui, não vemos mais o velho e os fenômenos de Artur filtrados pelas
resoluções lógicas de Roderico. Tal mundo previsível se desfaz, os fluxos e planos
agora são únicos e o Roderico-narrador acompanha, comunga, colado e
passivamente o que se segue. Vemos sucumbir toda a lógica ordenada de seu
discurso, e sua percepção passa ser um dueto com a de Artur – levando consigo o
leitor implícito – com partículas de nós aqui de fora – da desconfiança assegurada
pela lógica à sensibilidade direta dos fatos extraordinários.
Tal narrador extra, mencionado bem mais acima, é o próprio Roderico depois
de tudo, como indica a frase introdutória que implica, antes de tudo, que a voz vem
de depois de tudo; ciente de que o culpado de tudo que ocorreu/ocorre/ocorrerá
foi/é/será o homem do boné cinzento. Ou seja, o Roderico que está com seu irmão,
passa por sua trama, sucumbe à de Artur, ao final, está apto a ser o narrador do
início do conto, que tem onisciência e conhece os detalhes e o culpado de tudo o
que ocorrerá.
Tal frase no início, cria um percepto, aquela impressão de se ter um terceiro
olhar, pouco mais acima, mais conhecedor que o Roderico que ainda vai passar pela
história e Artur; provoca uma vertigem temporal, pirando Cronos, quebrando o
relógio, estonteando a capacidade psicológica de suster um tempo; fazendo emergir
o fundo não estriado do tempo, aquém de ter um início meio e fim, “o instante
pervertendo o presente em futuro e passado insistentes, „impiedosa linha reta do
Aion‟”. (PELBART, 2010: 71)
O discurso, testemunho, de Artur contém uma sintaxe delirante que como diz
Manoel de Barros, voa fora da asa. Afora toda a euforia, que forma de se
comunicar!: é gaguejante mas promissora, sussurrante de presságio, é sempre
descentrada porém intensa. E, em suas designações dos fenômenos, a sua
semântica principal são as cores. As cores contem o sentido do que ele diz e o
destino dos fatos, Artur é tomado num devir-cor e esta cor num devir-linguagem. A
sua versão da história está em xadrez: pontos brancos, pontos cinzentos,
quadrinhos perfeitos de duas cores; pronto, anunciara aquele que trouxe os
71
quadrinhos e desaparecerá – o desaparecimento não é um dos limites das cores? –;
anunciara aquele que ficou transparente, incendiou-se, show pirotécnico de cores a
nos narrar a sua, literalmente, brilhante versão dos fenômenos. Falando em
pirotécnico, interessante compartilhar aqui outro devir-cor da escritura e sentido
realizado por Rubião, em O Pirotécnico Zacarias, que já na epígrafe convoca a luz
do meio-dia e a estrela D‟Alva do livro de Jó. Neste conto o Branco é um dos
maiores sentidos e, quando um sol brilhando como nunca, diz-se: “os homens
compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque minha existência
se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura
dos meus olhos”. (RUBIÃO, 2010, p. 20) Seu destino, Artur, foi uma bolinha preta.
Há conjuntamente o Devir-cósmico, a distensão entre os anômalos de ligação
mais sideral. Convulsivamente são reclamados pelo cosmo, esse inumano nos
contém em potência, são distendidos ao sólido limite, a bolinha preta; polarizado na
outra ponta pelo éter, vapor e transparência absolutos; conectados por
incandescência, aquecimento e combustão – experimentamos aí, talvez, um espanto
como o dos pensadores originários percorrendo pelos elementos cósmicos e
devires.
Da experimentação e da interpretação
12
São pontes, na teoria da relatividade geral, que permitem ligar duas regiões muito
afastadas do espaço-tempo. http://www.portaldoastronomo.org/cronica.php?id=25 Acesso
em 20/11/2013.
74
75
4 Conclusões
76
Ainda, outra grande contribuição aos Estudos Literários, reside na reflexão
sobre o Devir-expressivo apontado por Deleuze/Guattari: se um corpo constituído
(uma personalidade, um evento, uma coisa) é tensionado em devir-outro, esse outro
também é comovido em devir. No caso da literatura, se o escritor, e seus universos
virtuais, são afrontados por devires estranhos (animais, vegetais, cósmicos...), ele
que já é tomado pela escritura, só pode sustentar essa afronta irresistível –
acontecimento que toma em si o sentido da existência do que nele se envolve –
dando-lhe escritura; ou seja, essa coisa torna-se escritura. O que não é o mesmo
que dizer escrever sobre isso; este isso – seus afetos, suas potências – sendo o
corpo da escritura. Manoel Bandeira – exemplo rápido para uma conclusão – não
escreve sobre a onda, como assunto. Aonde anda a onda? Seus afectos
(movimentos, ritmos, dobras, zoadas) tornaram-se escritura. A contribuição está em
favorecer que se perceba a possibilidade de um processo semiótico como esse, sem
a dimensão da imitação, devires que talvez sejam responsáveis por grande parte
das escrituras, daqueles que escrevem para não morrer, propagando seus devires,
bibliotecas inteiras de devires.
Posso somar a estas conclusões, que Murilo Rubião nos guarda, e aguarda –
pois pretendo mantê-lo em estudos – muito mais surpresas nesta perspectiva de
Devir. Mas, percebi também, que ele tem um perfil bem complexo para tal análise,
pois mantém os dois planos – o representativo e o de Devir – em proximidade
estonteante de modo que concluo também que é uma singularidade sua, nos dois
primeiros contos analisados, tal proximidade provocante; há uma luta de ironia
melancólica, sussurrante, entre os dois planos – diferenciando-se assim, por
exemplo, do mar e vento loucos, de sideração sanguinária de Achab e Moby Dick,
tão citados por Deleuze.
77
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. 9ª ed. São Paulo: Cultrix,
2001.
BLANCHOT. Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas Forte. São
Paulo: Perspectiva, 2011. (Estudos, 35/ dirigida por J. Guinsburg)
DELEUZE, Gilles; GUATARI, Félix. Crítica e Clínica. Tradução Peter Pál Pelbart. 2 ª
ed. São Paulo: Ed. 34, 2011.
______. KAFKA, para uma literatura menor. Tradução Rafael Godinho. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2003.
78
______. Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia 2.. Vol 4. Tradução Suely Rolnik.
São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, G.; PARTNET, C. Diálogos. Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo:
Ed. Escuta, 1998.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução Fábio Landa. 2ª ed. São
Paulo: Unesp, 2011.
MALUF, Annita Costa. Poéticas da Imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar
Rio de Janeiro: 7 Letras / Fapesp, 2011.
RUBIÃO, Murilo. Obra Completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
79
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São Paulo: Ática, 1981.
(Ensaios, 74)
80